Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 279
São Paulo, de 3 a 9 de julho de 2008
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Nações Unidas
Na Bolívia, a indecisão da direita
O legado de
Após anunciar o boicote ao referendo revogatório, os governadores da oposição boliviana voltaram atrás e já admitem participar. A decisão se deu após vitória nas eleições para o governo departamental de Chuquisaca, cujo resultado demonstrou a perda de apoio ao governo central na área urbana. Pág. 10
Cem anos após o nascimento do ex-presidente chileno, Salvador Allende, esquerda comemora a herança deixada pelo socialista. “Esse aniversário acontece numa fase em que o continente está de novo tentando fazer mudanças”, diz Ivan Pinheiro, do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Pág. 9
Allende
Perseguição ao MST traz de volta o velho autoritarismo Documento aprovado por unanimidade pelo Conselho Superior do Ministério Público do RS, que pede a dissolução do MST, é um desrespeito à Constituição. Para Fábio Konder Comparato e Plinio Arruda Sampaio, o fato tem traços flagrantes de autoritarismo e remonta aos “anos de chumbo” no país. Na Carta Magna, estão previstos o direito de associação, reunião em locais abertos ao público
Sob críticas, Mugabe não deixa o poder no Zimbábue
Raimundo Paccó/Folha Imagem
No dia 27 de junho, o velho líder nacionalista Robert Mugabe, de 84 anos, se reelegeu presidente do Zimbábue em um segundo turno em que o candidato da oposição, Morgan Tsvangirai, se recusou a participar. Seus defensores alegam que Mugabe está sendo punido pela comunidade internacional por ter se afastado do Banco Mundial e do FMI. Seus críticos dizem que justamente por ter se aproximado dos dois órgãos é que os equívocos em seu regime floresceram. Págs. 10 e 11
e a proibição de interferência estatal em associações e cooperativas. Todas essas garantias são ignoradas na ata, que pede também que se proíbam as marchas, que as escolas do movimento sejam desativadas e os acampamentos, desmontados. A historiadora Virgínia Fontes lembra que fatos semelhantes aconteceram na ditadura de Getúlio Vargas e nas vésperas do golpe militar de 1964. Págs. 4 e 5
Monocultura da cana avança sobre o Cerrado O estímulo ao etanol vem prejudicando a saúde e a produção de agricultores que vivem no Cerrado, no Alto São Francisco, em Minas Gerais. Cercados pelo monocultivo de cana, eles sofrem com doenças causadas pelos venenos utilizados pelos latifundiários e com a degradação ambiental. Pág. 8
Revisão da Lei do Petróleo volta à pauta Estima-se que as reservas brasileiras de petróleo possam atingir até 14 trilhões de dólares. O montante atiça a cobiça das transnacionais, enquanto movimentos exigem maior controle nacional. Já o governo acena com a criação de uma estatal, mas não romperia contratos. Pág. 3 Divulgação
Cerca de 60 mil professores se reuniram no vão livre do Masp e aprovaram a continuidade da greve
TEATRO SOBRE A CIDADE Em apresentações na capital paulista, mostra encena, questiona e discute a lógica capitalista da arte. Pág. 12
Professores de SP rejeitam proposta e greve continua Os professores da rede pública de São Paulo rejeitaram, em assembléia com mais de 60 mil docentes, as propostas apresentadas pelo governo de José Serra (PSDB). Dentre as concessões da Secretaria de Educação estão a incorporação de gratificações, reajuste salarial de 5%, realização de um concurso público para efetivação de 72 mil professores admitidos em caráter temporário para jornada de 10 horas e alterações no Decreto nº 53.037. Mas os professores seguem exigindo a revogação do decreto. Além desta, consta da pauta do movimento um reajuste salarial que reponha as perdas acumuladas desde 1998, gestão democrática e autonomia da escola. A greve continua até a nova assembléia, programada para o dia 4. Pág. 7
Oposição quer responsabilizar Yeda por fraude O presidente da Assembléia Legislativa gaúcha, Alceu Moreira (PMDB-RS), decidiu arquivar o pedido de impeachment da governadora Yeda Crusius (PSDB). A medida, considerada autoritária, acabou esfriando as pressões para que a tucana deixasse o cargo. Mas a oposição ainda tenta responsabilizar Yeda pelas fraudes no Detran e cobra explicações sobre casa de R$ 1,5 mi que ela comprou em 2006. Pág. 6
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de 3 a 9 de julho de 2008
editorial A ULTRA-DIREITA ocupou grande espaço nos noticiários brasileiros das últimas semanas e, ao que tudo indica, promete se manter nas primeiras páginas e capas de jornais e revistas, bem como nas chamadas das rádios e TVs, além – é óbvio – de ficar para cima e para baixo nas listas, blogs e sites da comunicação virtual. Ministério Público... Dois desses escândalos, ainda que sinalizando direções opostas e partindo de posturas antagônicas, tiveram como ponto de partida o Ministério Público. O primeiro, o Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) que, em reunião secreta, constituiu uma força-tarefa visando uma ação civil-pública pela dissolução e decretação da ilegalidade do MST. O MP-RS articula-se claramente com o Executivo gaúcho, que tem à sua frente a arqui-corrupta governadora tucana Yeda Crusius. Como parte desse conúbio promíscuo entre o Executivo e o MP-RS, a grande mídia comercial. Esta não apenas repercutiu as ações e declarações do comandante da Brigada Militar, como também – no momento exato – levou à cena pública o documento secreto do Conselho Superior do MPRS, cujo conteúdo e natureza não contestou, tentando criar uma cortina de fumaça para as múltiplas acusações
debate
Senhores, controlem seus radicais ... de corrupção que envolvem a senhora Crusius. ... e Ministério Público O segundo escândalo tem origem no Ministério Público de São Paulo. No dia 26 de junho, os procuradores Eugênia G. Fávero e Marlon A. Weichert, honrando tradição que vem sendo construída por essa instituição, protocolaram, nas Procuradorias da República do Rio, de São Paulo e de Uruguaiana (RS), representações em que pedem abertura de ação judicial contra agentes públicos acusados de seqüestros e assassinatos durante a ditadura. A iniciativa pode ter como ponto de chegada pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a interpretação da expressão “crimes conexos” que consta da lei da Anistia, e que vem sendo assacada pela direita enquanto sinônimo de “anistia recíproca”: seqüestradores, torturadores, assassinos e seus mandantes estariam de antemão anistiados – mesmo sem jamais haverem sido julgados e condenados. As famílias O entendimento de “anistia recíproca” jamais foi aceito pelas entidades de defesa dos direitos humanos, pelos
presos políticos, banidos, exilados e perseguidos pós-64, bem como por seus familiares. Em outubro de 2006, uma ação judicial foi aberta pela família Teles, reforçada por ação similar aberta no final do ano passado pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, assassinado pelos órgãos de repressão, em 1971. Ambas as ações pedem o reconhecimento da responsabilidade do coronel Brilhante Ustra pelas torturas contra a família Teles (inclusive duas crianças) e contra Luiz Merlino que, no caso, redundaram em sua morte. O coronel Ustra Antiga gíria de presos comuns, “dar uma sugesta” significa “enquadrar”, e é quase sinônimo de “pagar um sapo seco”, que significa “ameaçar”. São exatamente essas duas expressões que melhor definem a defesa do coronel Ustra, que a revista Época – como no caso do decreto secreto do MP-RS – “vazou” em sua edição desta semana. Além das mentiras de praxe, o texto é entrecortado de expressões como “revanchismo” e outros lugares comuns próprios da direita quando pressionada sobre o assunto. Além disso, outro velho chavão, já desgastado desde o Tribunal de Nüremberg, quando do
julgamento dos crimes de guerra dos nazistas: “Eu cumpria ordens superiores”. Seria a peça de defesa apenas tediosa, não fossem suas entrelinhas, e o anúncio feito pelo senhor Ustra de que, além de várias altas patentes atuais do Exército, arrolará como sua testemunha o hoje senador pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Romeu Tuma. De acordo com o coronel, o senador Tuma “acompanhou e viveu a situação de violência da época e o trabalho do DOI, já que, como delegado da Polícia Civil, era o elemento de ligação entre o Comando do II Exército e o Departamento de Ordem Política e Social, órgão no qual estava lotado”. Ou seja, o que o coronel Ustra quer dizer é que, se ele cair, arrastará muita gente importante consigo e que, portanto, elas que encontrem uma saída para a situação em que se encontra: encurralado. Quem com porcos se mistura, farelos come Há alguns meses, o coronel Ustra deixara “vazar” também que uma das suas testemunhas seria o senador e ex-presidente da República, José Sarney (PMDB-AP). Mas “pagar um sapo seco” para um ex-presidente, ou “dar uma sugesta” num senador,
Quase pé de página A propósito, em entrevista ao Correio do Povo, de Porto Alegre (domingo 29 de junho), a antropóloga e professora Adriana Dias (Unicamp), baseada em pesquisas que desenvolveu durante seis anos, afirma que o neonazismo possui cerca de 150 mil simpatizantes em todo o Brasil. Enfim, como já afirmou o professor Florestan Fernandes, “O lucro não carece de democracia”.
crônica Luiz Ricardo Leitão
Rudá Ricci
Os partidos, as eleições de outubro e o mapa político do Brasil
O Estado Mínimo de Bruzundangas Gama
JÁ SE disse muito sobre a quantidade de partidos brasileiros. A crítica à quantidade baseia-se na falta de projeto próprio, possibilitando que muitos partidos se limitassem a ser linhas auxiliares. Com efeito, o país caminha rapidamente para uma estrutura bipolarizada, entre PSDB e PT, mas nem todos os outros partidos que gravitam ao redor destes dois hegemônicos ou dominantes são simplesmente auxiliares. A intenção deste artigo é sugerir que vai se consolidando algo além de partidos dominantes e seus auxiliares. Temos, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, 27 partidos políticos registrados no país: PMDB, PTB, PDT, PT, DEM, PCdoB, PSB, PSDB, PTC, PSC, PMN, PRP, PPS, PV, PTdoB, PP, PSTU, PCB, PRTB, PHS, PSDC, PCO, PTN, PSL, PRB, PSOL e PR. O IBGE oferece uma listagem de prefeitos e seus partidos de origem, de 2004. É fato que muitos deles já não estão mais nos partidos pelos quais foram eleitos. Mas temos a partir daí uma base de análise. O PMDB era o partido com mais prefeitos eleitos, 1.132, totalizando 20% dos municípios brasileiros. Em seguida, despontava o PSDB, com 1.098 prefeitos (19,7%). O então PFL (hoje, DEM) tinha eleito 959 prefeitos, totalizando 17%. Esta é a maior distorção do dado do IBGE, já que este partido sofreu uma contínua defecção de prefeitos, obrigando-o, inclusive, a alterar seu nome. Em seguida, surgiam PP, PTB, PL e PDT, oscilando entre 10% e 4% do total de prefeitos eleitos no país. PT tinha, neste período, eleito 217 prefeitos (4%), PPS possuía 213 (3,8%) e PSB havia eleito 135 prefeitos (2,4%). A mudança neste panorama foi resultado da ofensiva do Palácio do Planalto, tendo Lula à frente. PSDB, DEM e PPS deixaram de controlar 50% das prefeituras de grandes cidades conquistadas em 2004. Tendo por base as 100 maiores cidades do país, a base governista governava, em 2004, 54 cidades e, hoje, governa 76. O maior beneficiado foi o PMDB (de 12 para 18), seguido pelo PSB (de 8 para 11) e PP (de 2 para 4). PSDB perdeu 3 das 21 prefeituras que comandava; DEM perdeu uma prefeitura e PPS perdeu 7, sendo o maior prejudicado até então. É comum se afirmar, entre analistas políticos tupiniquins, que as eleições municipais não possuem nenhuma relação com a agenda nacional. O eleitor estaria totalmente focado no líder e agenda local, até mesmo nas relações pessoais estabelecidas com cada candidato. Não deixa de ser uma verdade, mas muito simplória. Isto porque desconhece o poder e arranjos políticos que os governos estaduais e federal operaram no período anterior às eleições municipais e mesmo nas convenções partidárias. O caso mais evidente é a aliança do PT com PSDB na capital mineira. Mas não só. Em 2004, os dois partidos fizeram aliança eleitoral em 121 cidades
deve representar muito pouco para quem está na situação do coronel: apenas um xeque ao cavalo. E o alvo do coronel agora é um xeque-mate: o senador Tuma, além de ser da base de sustentação do atual Governo, é conhecido e reconhecido publicamente como pessoa próxima do atual presidente da República, de cuja amizade privaria. Quem sabe, trate-se da última cartada do coronel, um risco calculado, pois ao longo dessa transição sem fim, não têm sido raros casos como o delegado Sérgio Paranhos Fleury que, num 1º de Maio, escorregou do seu iate, ou como o do senhor Alexander von Baumgarten, desaparecido depois de ser levado para dar umas voltas de traineira pela Baía da Guanabara. De qualquer modo, como diz outra gíria de cadeia, “passarinho que come pedra sabe o ... esôfago que tem”.
A mudança neste panorama foi resultado da ofensiva do Palácio do Planalto, tendo Lula à frente. PSDB, DEM e PPS deixaram de controlar 50% das prefeituras de grandes cidades conquistadas em 2004 (pequenos municípios, em sua maioria) e ganharam as eleições em 44% dos casos. Já estão previstas alianças eleitorais entre os dois partidos em 200 municípios. E não são alianças sem vínculo algum, com desejos dos caciques estaduais ou nacionais. Contudo, a possível aliança entre os dois partidos dominantes do Brasil será obra de uma ou duas eleições adiante. Trata-se de uma aproximação, um teste inicial, nas eleições de outubro deste ano. Ocorrerão acomodações internas, nos dois partidos, e a militância se acostumará lentamente a este novo mapa partidário. Assim, as eleições de outubro continuarão medindo força entre, até aqui, situacionistas e oposicionistas (ao governo federal). Em outras palavras, temos um jogo de xadrez no qual partidos com perfil programático ou ideológico que aproxime os dois pólos (PSDB e PT) podem ganhar alguma projeção. PT já caminha para o centro, ao menos o PT governista. A agenda do governo federal é social-liberal, alguns ministérios mais focados na agenda social, outros na agenda de mercado. PSDB, que já tinha adotado esta referência programática, procura atualizar ainda seu discurso e projeto, mas suas novas lideranças (como o governador Aécio Neves) já iniciam movimentos ousados de aproximação. A questão que fica, então, é se haveria algum partido neste espectro que seria o fiel deste casamento entre partidos dominantes. Pelo movimento dos últimos meses, o PSB é o candidato mais nítido a este posto.
Não menosprezando o peso político do “partido mosaico” que é o PMDB. Não por outro motivo, foram os dois partidos que ganharam o espólio de PSDB, DEM e PPS a partir da ofensiva do Palácio do Planalto. Se esta hipótese se confirmar, PPS, DEM e PV (este último, enfrentando grave crise de identidade) ficarão sem o lugar de destaque que até agora tinham adquirido. Serão “partidos do passado” justamente porque não conseguiram ler a mudança do mapa eleitoral que se configurava. Trata-se de uma hipótese, mas plausível, e que pode auxiliar na leitura do resultado das eleições de outubro. Para finalizar, uma última palavra a respeito da lógica territorial. Segundo estudos do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), os prefeitos que mais se reelegem no segundo turno eleitoral do país são os do norte e nordeste do país, principalmente em municípios grandes, com mais de 200 mil habitantes. E quase 30% dos ex-prefeitos que estavam afastados do cargo por um ou dois mandatos, retornaram ao cargo na última eleição. Para o coordenador da articulação políticoinstitucional do IBAM, François Bremaeker, o fenômeno estaria vinculado à segurança dos eleitores. Poderíamos, assim, afirmar que o eleitorado local tende a uma postura mais conservadora e desconfia das ousadias ou mudanças bruscas. O nordeste volta a emergir como a região com mais número de reeleitos ou reconduzidos ao cargo (superior a 48%). No sudeste, o índice ficou próximo de 34%. Este é o motivo de Lula e Aécio investirem tanto no nordeste, nos últimos tempos. A aliança em Belo Horizonte tem por base o apoio de Ciro Gomes. Neste sentido, as eleições de outubro, no nordeste, podem selar o futuro do mapa partidário e eleitoral do país. E, assim, consolidariam o fortalecimento do centro social-liberal do espectro partidário nacional: pouco ousado, enraizado na cultura local e fortemente manipulado pelos governos estaduais e federal. Rudá Ricci é sociólogo, doutor em Ciências Sociais e Diretor Geral do Instituto Cultiva
UM CASAL mineiro luta na Justiça pelo direito de instruir seus filhos dentro de casa, ou seja, fora do sistema formal de ensino, noticiam os jornais de Bruzundangas. Davi e Jônatas, dois garotos de 15 e 14 anos, respectivamente, deixaram a sala de aula há dois anos, por “livre e espontânea vontade”, e estudam apenas com os pais, que são adeptos do homeschooling (“ensino domiciliar”), movimento que reúne mais de um milhão de adeptos somente nos EUA. Por desafiar a legislação brasileira, que proíbe tal opção, os dois respondem a processos de “abandono intelectual” nas áreas cível e penal – e, se forem condenados, poderão até perder a guarda dos filhos. A alegação oficial dos pais é a mais previsível possível: atribuem sua decisão à péssima qualidade do ensino no país. Os educadores de norte a sul do país, apreensivos, respondem, com indubitável razão, que a escola não é necessária apenas pelo conhecimento que transmite, mas também pelo contexto no qual ele é transmitido. O convívio no coletivo é decisivo para a iniciação na vida social, em que as diferenças sempre deverão buscar um denominador comum. Mesmo que a escola pública não ofereça a seus usuários uma educação de qualidade, privar o menor da interação com outras crianças de sua idade não contribui para seu desenvolvimento pleno, frisa o professor titular da USP, Nélio Bizzo. Seu colega Jamil Cury, da PUC-MG, é ainda mais incisivo, ao enunciar que a escola é também uma via de socialização institucional que visa à superação do egocentrismo. Esses argumentos, absolutamente inquestionáveis, não parecem convencer o casal. Como, aliás, não comoveram uma outra família de Anápolis, que em 2001 impetrou mandado de segurança para que seus três filhos, entre seis e nove anos, não precisassem freqüentar regularmente o colégio em que estavam matriculados. Os pais goianos perderam no STJ por 6 a 2, mas aquela causa disse-nos muito sobre a falência do Estado burguês de Bruzundangas. Obviamente, a opção dos casais é somente uma saída totalmente individual para o problema: “Não dá para deixar que cada um resolva a escolaridade do seu filho à sua maneira”, sintetiza a educadora paulista Guiomar Mello. Apesar da ‘solução’ improvisada, própria de um “consumidor” insatisfeito, e não de um cidadão indignado, o episódio evidencia o caráter excludente de uma República que afiança vários direitos à burguesia e reserva às classes populares tão somente deveres – ou, o mais das vezes, priva-as das poucas conquistas obtidas à custa de muita luta, como acontece lá mesmo em Goiás, onde o curso de Direito oferecido aos lavradores sem-terra pelo convênio do INCRA com a UFGO está prestes a ser cassado por ciosos promotores que defendem a primazia do “mérito” sobre a nova “cota”, isto é, a prerrogativa dos civilizados agronegociantes sobre os bárbaros assentados do MST. O Estado de Direito, aliás, continua a padecer nas mãos das elites tupiniquins. No recente episódio envolvendo o Exército e a comunidade do Morro da Providência, no Rio, a opinião pública descobriu, estarrecida, que segmentos expressivos da força militar possuem relações bem mais que promíscuas com os varejistas do narcotráfico local. Que o digam as armas apreendidas com os soldados do tráfico, 22% delas provenientes dos soldados trajados de verde-oliva, conforme nos informa o Relatório da CPI do Tráfico. Não era para surpreender-se tanto: há menos de quatro décadas, ali nos porões do DOI-CODI, sob a chancela de oficiais ianques, os militantes da resistência à ditadura eram cobaias de torturas que, até o novo século, seriam utilizadas contra todas as vítimas de Tio Sam, fosse nos cárceres de Pinochet e Videla, na América do Sul dos anos de 1970, seja nas celas da base estadunidense de Guantánamo, onde estão os presos da ‘Guerra’ do Iraque. As mães da Providência não puderam sequer pleitear o direito à educação ou à saúde. Se pudessem arrancar alguma coisa do Estado Mínimo, elas somente pleiteariam o direito à vida, cada vez mais exíguo no país do futuro. Por tão pouco, abençoadas sejam essas mulheres que cantarão sempre o mesmo estribilho, ansiosas por embalar o filho que agonizou no lixão à beira-mar. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular)
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
de 3 a 9 de julho de 2008
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brasil Geraldo Falcão/Petrobras
Está aberta a disputa pelo petróleo brasileiro SOBERANIA Momento da descoberta de novos blocos é propício para retomar o debate com a sociedade sobre a Lei do Petróleo Dafne Melo da Redação AS DESCOBERTAS de novos blocos de petróleo na Bacia de Santos têm deixado as grandes corporações internacionais do setor petroleiro atentas às decisões do governo brasileiro relativas aos marcos regulatórios em que se dará a exploração e a comercialização do combustível fóssil. As regras ainda estão incertas, mas o Executivo já começou a dar alguns sinais. No fim de junho, o ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, adotando um discurso progressista de que o petróleo encontrado deve pertencer ao povo brasileiro, anunciou a possibilidade da criação de uma nova estatal que administraria essas novas reservas. Para isso, a Lei do Petróleo, de 1997, deverá ser alterada. Porém, Lobão já deixou claro que não irá romper contratos. Isso significa que as transnacionais que já estiverem instaladas nessas regiões continuarão a explorá-las, mesmo que com novas taxações. O Bloco Carioca, por exemplo, já é explorado pela Repsol (espanhola) e British Gas (inglesa), em 25 e 30%, respectivamente. Fernando Siqueira, da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), não vê com bons olhos a medida. “Não estou fazendo proselitismo em favor da Petrobras. Acredito que essa estatal que eles propõem é para gerir os leilões. O que tem que fazer é mudar a Lei nº 9.478, a Lei do Petróleo, e o Decreto nº 2.705/98 que regulamentou a participação do governo. Não adianta criar uma estatal que vá continuar fazendo leilões e entregando áreas para empresas estrangeiras explorarem e pagarem ao Brasil apenas 40% do produto”, opina.
Royalties A Lei do Petróleo, feita no governo Fernando Henrique Cardoso, acabou com o monopólio de exploração da Petrobras e abriu o capital da empresa. O Estado ficou com 40% e o restante está nas mãos de acionistas, dentre eles o próprio Estado que, no total, soma 54% das ações. Essa Lei também prevê que as taxas cobradas pelo Estado podem variar de 0 a 40%. Um índice bastante baixo, em relação à média mundial de 85%. “A Lei do Petróleo é extremamente benéfica ao capital privado. Os royalties cobrados pelo Estado brasileiro são um dos mais baixos do mundo. Além disso, a Lei Kandir garante a ausência de impostos para a exportação de matérias-primas, ampliando ainda mais os lucros dessas empresas”, avalia o jornalista Igor Fuser, estudioso do assunto, que recém lançou o livro Petróleo e poder
Plataforma P-52, da Petrobras: Lei do Petróleo beneficia o capital privado
Quanto
14 trilhões
de dólares pode ser o valor das reservas brasileiras de petróleo – o envolvimento militar dos EUA no golfo pérsico. Entretanto, há indícios de que essas regras possam mudar no caso dos blocos de pré-sal da Bacia de Santos. A ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, afirmou à imprensa que a cobrança de royalties “não poderão ocorrer nos moldes atualmente em vigor no país”. Um grupo de trabalho, formado por assessores do Ministério de Minas e Energia, está estudando a Lei do Petróleo e deverá elaborar um relatório para ser apresentado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva em, no máximo, 60 dias. Fuser pondera que esse movimento, por parte do governo, de aumentar royalties, por exemplo, deve ser visto criticamente. “Eles querem encerrar essa discussão rapidinho, aceitam ganhar menos, mas não vão aceitar perder o controle sobre essas riquezas”, destaca.
Novo patamar Caso o potencial dessas reservas se confirmem, o Brasil alcançará um novo patamar. Fernando Siqueira comenta que há aproximadamente 48 blocos recém-descobertos. “Juntos, há uma estimativa de que a reserva seria de 90 bilhões de barris. Para se ter uma idéia, o Iraque tinha 120 bilhões quando os Estados Unidos o ocupou”, compara. Se essas perspectivas se confirmarem, continua Siqueira, o Brasil passaria a ter a quarta maior reserva, atrás apenas da Arábia Saudita, Irã e Iraque, respectivamente. Em termos de riqueza, conjectura Siqueira, “se arredondarmos a reserva para 100 bilhões de barris, com o petróleo a 140 dólares, isso representa uma riqueza de 14 trilhões de dólares”. Igor Fuser acredita que poderá, então, haver uma maior sensibilização de setores da sociedade e atores políticos para a necessidade de se ter o controle dessa descoberta. “Hoje, a exploração do petróleo brasileiro por empresas estrangeiras é um grande negócio, o que até então tem passado despercebido porque o Brasil não é um produtor importante no cenário mundial”, observa. Agora, todavia, com as novas jazidas, o interesse sobre o destino dessa riqueza vai aumentar. “Está ficando difícil explicar porque essas empresas vêm aqui levar nosso petróleo, se temos a tecnologia e a capacidade de dar conta dessa exploração. Essas descobertas são um estímulo fortíssimo para a discussão sobre o petróleo na vida nacional”, finaliza.
Barril chega a 140 dólares e não deve abaixar Não há perspectivas de que a produção acompanhe a demanda da Redação Na última semana de junho, o preço do barril de petróleo bateu recorde de preço nas bolsas de valores internacionais. Com pequenas variações, passou a ser negociado por 140 dólares. Ainda que se leve em conta a desvalorização do dólar, pondera o jornalista Igor Fuser, “é uma alta espetacular”. Esse aumento, que na verdade vem acontecendo gradativamente ao longo dos últimos oito anos, está ligado ao fato de que, pela primeira vez na história, a demanda por esse combustível está se equiparando à produção, sem que haja perspectivas concretas de aumento da oferta global. Segundo Fernando Siqueira, da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), isso já estava sendo anunciado por alguns especialistas há pouco mais de 10 anos. Entretanto, explica que as grandes corporações do ramo – junto com órgãos do campo institucional, como a Agência Internacional de Energia e a Agência de Informações Energética – esconderam a iminência da crise, para não prejudicar os negócios nesse importante setor da economia mundial. Como justificativa para a alta, esses atores apontam fatores conjunturais, a maioria ligada à geopolítica global. “Especialistas e a imprensa sempre apontavam uma série de acontecimentos, como a Guerra do Iraque, iminência de uma invasão do Irã pelos EUA, furacão em New Orleans, dentre outros, para justificar a alta, que seria conjuntural e, portanto, passaria. Mas essas conjunturas passaram e o preço continuou subindo”, avalia Fuser.
Pico Embora o mundo ainda produza petróleo em abundância, essa realidade, apontam especialistas, não deve perdurar. Ainda que não haja consenso em relação à aproximação do pico da produção mundial de petróleo, um número cada vez maior de especialistas acredita que, se já não se está nesse ponto, está-se muito próximo dele. “Não será mais possível acompanhar o ritmo acelerado da expansão do consumo, mesmo com a descoberta dessas novas jazidas no Brasil.
Estamos chegando a um ponto em que o crescimento econômico do mundo não vai poder mais se dar com base no petróleo, o que é um impasse sério, pois até hoje ele se deu assim. O desenvolvimento do capitalismo, desde o início, deu-se com base nos combustíveis fósseis. Carvão mineral, depois petróleo. Essa perspectiva de gargalo, de estrangulamento da oferta de petróleo, é o grande fator estrutural que está impulsionando a alta dos preços”, opina Fuser. Fernando Siqueira também acredita nesse impasse e afirma que as recém descobertas de novos campos no Brasil não serão de grande ajuda. “O pré-sal está com uma previsão de reserva de 90 bilhões de barris, o que representa 10% da reserva mundial. Isso atenua um pouco, mas muito pouco”. Siqueira aponta que dificilmente o preço do barril ficará mais barato, muito pelo contrário. “Vai aumentar mais, os analistas já estão fazendo projeções para os anos seguintes, e não são nada animadoras”. O banco Morgan Stanley garante que, neste mês, o barril chega a 150 dólares.
Substituição Embora a busca por fontes alternativas se coloque como um imperativo, o capital ainda não conseguirá ter uma saída a curto prazo
para todas as demandas que surgirão. Os agrocombustíveis, além de ficarem circunscritos ao combustível para automóveis, “é apenas um paliativo”, afirma Igor Fuser, uma vez que não têm potencial de substituição total do petróleo. Fernando Siqueira aponta que o combustível fóssil é usado em mais de 3 mil produtos de uso comum, entre eles, plásticos, fertilizantes e produtos farmacêuticos. “Foi até uma irresponsabilidade termos nos baseado tanto no petróleo, mas é a nossa realidade hoje. Ele é substituível, mas isso não se faz da noite para o dia”. Siqueira argumenta que, para o capitalismo, ele até agora é a melhor opção para se garantir maior produtividade e, portanto, maiores ganhos. “O petróleo é de fácil manuseio, produção, aquisição”, diz. Fuser ainda lembra que, mesmo que hipoteticamente, se pudesse continuar suprindo a humanidade de todo petróleo necessário, há outra questão que aponta para a insustentabilidade do modelo, a ambiental. “Se conseguíssemos manter uma produção que acompanhasse a taxa de crescimento da economia mundial, quais seriam os impactos sobre o ambiente? Ou seja, a humanidade tem hoje um dilema na entrada e na saída de energia. Não há alternativas de fontes”, completa. (DM)
No Brasil, gasolina é mais cara que nos EUA Com a alta do petróleo, o preço do litro da gasolina nos Estados Unidos chegou a R$ 1,70 o litro, batendo todos os recordes. Mesmo assim, o preço é mais baixo que no Brasil, onde o litro está, em média, custando R$ 2,50. Para efeitos comparativos, o litro da gasolina na Venezuela, onde o Estado subsidia o setor, é vendido a R$ 0,06. Na Argentina, em junho, onde a crise entre o agronegócio e o governo federal também gerou um desabastecimento de combustível nos poços, a gasolina atingiu preço similar ao dos Estados Unidos, R$ 1,60. Fernando Siqueira, da Aepet, explica que o preço da gasolina no Brasil acompanha os padrões internacionais, uma exigência dos acionistas da empresa. Quando a empresa colocou parte de suas ações na bolsa e abriu seu capital, passou a operar pelas regras do mercado, tendo que manter suas ações valorizadas no sistema financeiro. “Há uma pressão fortíssima dos acionistas para manter os preços altos, baseada nos preços internacionais”, destaca. Outro fator, explica Siqueira, é que o governo brasileiro cobra impostos altos, e as distribuidoras têm uma margem de lucro bastante generosa. “A parcela de retenção do lucro da distribuidora é elevado. A Petrobras retém em média 20%, e as outras retém em média 28%”, afirma. (DM)
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Jefferson Bernardes/Palácio Piratini
Mansão de Yeda e a CPI do Detran: polêmica continua CRISE Debate sobre impeachment esfria, mas tucana ainda responde por compra da casa e fraude Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS)
A governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius
é evidente que ela, pelo menos, tinha conhecimento do esquema. “Acredito que o conhecimento da situação ela tinha. Nas gravações da Polícia Federal, a figura de Yeda Crusius aparece como a intermediadora da disputa entre o empresário Lair Ferst e o grupo de Flávio Vaz Netto, ex-presidente do Detran”, avalia o deputado estadual Fabiano Pereira (PT), que preside a CPI. A bancada de oposição também irá pedir a responsabilização dos ex-secretários Délcio Martini (Secretariageral) e Ariosto Culau (Secretaria de Planejamento e Gestão); do ex-chefe da Casa Civil, César Busatto; do ex-em-
Fraude no Detran e corte de investimentos CUT quer os R$ 44 milhões desviados de volta de Porto Alegre (RS) Para os trabalhadores, o discurso da governadora Yeda Crusius (PSDB) sobre a crise financeira do Rio Grande do Sul gera revolta ao passo que a fraude no Detran é desvendada. Isso porque a maior parte dos envolvidos tem relação direta ou indireta com integrantes do próprio governo e com a chefe do Palácio Piratini, ou participaram da campanha eleitoral em 2006. Desde que assumiu, em 2007, a governadora promoveu corte de 30% nos investimentos das secretarias estaduais em nome da “crise do Estado”. Saúde e educação, setores dos quais a população carente necessita, foram os mais atingidos. Funcionários de todos os setores, desde a educação até a segurança, não receberam reajustes salariais ou ficaram com um índice muito abaixo do reivindicado. O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Celso Woyciechowski, relata que a sociedade não suporta mais os roubos do dinheiro público enquanto sofre com serviços de má qualidade. “A governadora tem noticiado aos quatro cantos que não tem recurso. Mas, para a corrupção, tem recurso. É dessa forma que a corrupção atinge a sociedade. Ao invés de ir para os serviços sociais, como Saúde e Educação, o dinheiro público é roubado. Queremos que pelos menos os R$ 44 milhões desviados através da fraude sejam recuperados”, diz.
Divisão Para o ex-deputado estadual Frei Sérgio Görgen, apesar da governadora não sofrer o impedimento, a vida política do governo já está comprometida. Aliado à insustentabilidade do mandato, está o fato do comando ser extremamente dividido. As alianças feitas entre os partidos mais conservadores do Estado foram “quebradas” pelos interesses específicos de cada legenda. Porém, Frei Sérgio prevê que a violência policial contra os movimentos sociais deve persistir. “Um detalhe importante para mim é que se trata de uma crise específica desse governo, que, desde que começou, foi como um governo em crise. Não consegue fazer nada administrativamente, não resolve os problemas de gestão que disse que resolveria e o pior é que ele é extremamente repressivo e não negocia nada com os movimentos sociais”, diz. (RC)
baixador do Rio Grande do Sul em Brasília, Marcelo Cavalcanti; do deputado federal pelo Partido Progressista, José Otávio Germano; e do presidente do Tribunal de Contas do Estado, João Luis Vargas, além de todos os indiciados pelo Ministério Público pela fraude na autarquia. Com essa decisão dos deputados de oposição, é bem provável que a CPI do Detran encerre com dois relatórios. Um oficial, do relator da comissão, Adilson Troca (PSDB), que, por ser do mesmo partido da governadora, deve fazer de tudo para que a CPI seja o menos prejudicial a Yeda – inclusive não aceitando a responsabilização sugerida pe-
Plano “fracasso”
Um informe da Organização das Nações Unidas contra as Drogas e o Crime (Unodoc) revelou, em meados de junho, que, em 2007, o cultivo de folha de coca aumentou 27%, chegando a 99 mil hectares de extensão. William Browfield, embaixador estadunidense na capital colombiana Bogotá, afirmou que, mesmo com esse crescimento, o Plano Colômbia não fracassou e desqualificou o documento da ONU, ressaltando que, apesar da expansão da área, a produção está reduzindo.
los deputados de oposição. E outro relatório, da oposição, incluindo os indiciamentos. Além da falta de provas que evidenciem a participação direta de Yeda no esquema de fraude do Detran, o atual governo ainda conta com a blindagem dos parlamentares da situação, que são maioria na Assembléia Legislativa. O pedido de impedimento encaminhado pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e pelo Partido Verde (PV) nem chegou a ser avaliado pelos deputados; ele foi arquivado pelo presidente da Assembléia, deputado estadual Alceu Moreira (PMDB). O procurador-geral da Casa, Fernando Ferreira, tinha dado aval jurídico para o prosseguimento do pedido, mas determinou que Moreira decidisse sobre a abertura do processo. Sozinho, o parlamentar considerou que não existiam provas suficientes para o prosseguimento do processo. A deputada federal Luciana Genro (Psol-RS) criticou a decisão. “O deputado Alceu Moreira foi arbitrário em decidir sozinho e não deixar que os demais deputados pudessem avaliar e discutir o pedido de impedimento. Há provas de que a governadora sabia dos esquemas do Detran e de que ela sabia do loteamento dos seus partidos, que utilizam as estatais para financiar as suas próprias legendas”, afirma.
Preconceito de Estado
No dia 27 de junho, a chacina do Morro do Alemão completou um ano. Nessa data, o Ato pela Vida Contra o Extermínio reuniu cerca de 300 manifestantes em frente à Igreja da Candelária. As 19 vítimas do massacre e as três vítimas do Morro da Providência foram lembradas nominalmente, algumas pelas próprias mães. O governo fluminense afirma que mortes como essas são um custo inevitável do enfrentamento entre as forças repressoras do Estado e traficantes de drogas. Tal discurso é considerado racista e inspirado no modelo de segurança da Colômbia, segundo especialista ouvido pela reportagem.
Preso membro da CPT
Sem provas, a Justiça Federal de Marabá, no Estado do Pará, condenou o advogado e membro da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra a uma pena de 2 anos e 5 meses de prisão, por manifestação pelo assentamento de famílias no Pará. Segundo Dom Tomás Balduíno, a condenação foi um claro “aviso” aos movimentos sociais, pois a decisão se configurou “numa forma de jurisprudência como um gesto de pressão política”.
Provas de um crime
O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) apontou os “equívocos” na condução das obras que originaram, em janeiro de 2007, uma cratera na região de Pinheiros, na zona oeste da capital paulista. Para o promotor que acompanha o caso, o desabamento pode ser caracterizado como um crime. No entanto, nem o metrô paulista, nem o consórcio Via Amarela se responsabilizaram pelas mortes e pelo pagamento de indenizações às famílias desabrigadas.
fatos em foco
Entidades de defesa dos direitos humanos se movimentam para organizar vários eventos por ocasião dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em dezembro, inclusive um tribunal de alto nível para denunciar os crimes praticados pelo Estado brasileiro contra pobres, negros, jovens, trabalhadores, mulheres e movimentos sociais. Os casos mais recentes de violações praticados por agentes do Estado são gravíssimos.
Uma casa à altura da governadora De acordo com Yeda, mansão no valor de R$ 1,5 milhão deve refletir “altivez” de ser governadora de Porto Alegre (RS) Outro tema que parecia estar submerso, mas foi reavivado, é a casa da governadora Yeda Crusius em uma área nobre de Porto Alegre (RS). Investigações da CPI do Detran apontam que a mansão, adquirida um mês depois de finalizada a campanha eleitoral, vale mais do que o registrado pela governadora e não estaria de acordo com os rendimentos recebidos por ela. A CPI levantou ainda a suspeita de que a casa teria sido comprada com restos de verba de campanha – mais precisamente, cerca de R$ 400 mil teriam sido tirados do caixa para a compra da mansão. No dia 30 de junho, o Psol e o PV entraram com uma ação no Ministério Público Especial junto ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) por improbidade administrativa contra Yeda. O advogado que assinou a ação, Pedro Ruas, avalia que os partidos querem que o TCE investigue a aquisição da casa, que pode ter sido com verbas ilícitas. “A nossa expectativa é de que o TCE investigue dois aspectos: o primeiro, é que o valor de mercado daquela casa é superior ao que foi informado pela governadora. O valor de mercado fica entre R$ 1,5 milhão e R$ 1,6 milhão e ela informou R$ 750 mil. O segundo aspecto é que nem mesmo o preço informado por ela estaria de acordo com os rendimentos de deputada federal, na época, de professor universitário ou de sua família. É uma casa com características de mansão, foi reformada em 2007 e tem mobília nova, portan-
Estudantes protestam na residência da tucana Cerca de 30 estudantes protestaram, na manhã do dia 30 de junho, em frente à casa da governadora Yeda Crusius (PSDB), no bairro Vila Jardim, em Porto Alegre. Eles exigem uma investigação real sobre a compra da mansão. “O objetivo é chamar a atenção do povo gaúcho a todas essas denúncias de corrupção que atingem o governo”, disse Marcio Duarte, da União Nacional de Estudantes (UNE). O ma-
A mansão de Yeda
to isso deve ter um custo alto. E nós queremos saber quanto foi exatamente, quem pagou, por que pagou, como pagou”, explica.
“Altivez” A governadora não tem falado em público sobre a questão da casa. A única vez que se pronunciou, em um programa de debate em rede local de televisão, afirmou que tinha todos os comprovantes de compra da casa. No entanto, disse que somente iria apresentá-los quando a CPI do Detran encerrasse os trabalhos. No mesmo programa de TV, justificou o fato de comprar uma mansão porque precisava de uma casa que refletisse a “altivez” de ser governadora. O procurador Geraldo da Camino tem 15 dias para decidir se a governadora terá que comprovar como pagou a casa. Caso sejam constatadas as irregularidades na compra da casa, a governadora Yeda Crusius pode sofrer desde multas pesadas até sanções na área criminal, além do congelamento da propriedade. (RC)
nifesto dos estudantes, que somente gritavam palavras de ordem, foi reprimido pela Brigada Militar. Integrantes do Batalhão de Choque empurraram os estudantes até uma esquina, onde teve princípio de conflito. Alguns manifestantes receberam golpes de cassetete, sendo um detido por desacato. No mesmo dia, outros dois estudantes foram presos por brigadianos em frente ao Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, durante protesto contra a corrupção no Rio Grande do Sul. A manifestação ocorreu ao final do ato público em defesa da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, no auditório Dante Barone, da Assembléia Legislativa. O motivo das prisões não foi esclarecido pela Brigada Militar. (RC)
Hamilton Octavio de Souza
Violações oficiais
Comunicação PT
APESAR DO debate sobre o impedimento da governadora Yeda Crusius (PSDB), do Rio Grande do Sul, ter baixado o tom, as polêmicas em torno da fraude do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RS) e da corrupção no governo ainda devem permanecer por muito tempo. A tendência é que a governadora passe a enfrentar processos de responsabilidade administrativa pelas fraudes no Estado. O principal processo será na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), na Assembléia Legislativa, que apura os desvios no Departamento de Trânsito. A bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) já adiantou que irá propor a responsabilização de Yeda no relatório final da CPI. Embora não existam provas sobre a participação direta da governadora na fraude, a oposição afirma que
saiu na agência
Esquerda feminina Três mulheres de luta e com trajetórias políticas nas correntes de esquerda disputam a Prefeitura de Porto Alegre (RS), uma das capitais mais politizadas do país. Maria do Rosário, do PT, Manuela D’Ávila, do PCdoB e Luciana Genro, do Psol, querem derrotar o prefeito atual e candidato a reeleição, José Fogaça, do PMDB. Tudo indica que o primeiro turno terá uma disputa bastante acirrada.
Prisões lotadas Não é de hoje que o sistema penitenciário brasileiro está falido, por superlotação e especialmente porque não consegue reduzir a reincidência. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça, o número de presos aumentou de 401.236, em 2006, para 422.373, em 2007, mais de 5,2%. E o aumento de vagas não acompanha o crescimento da criminalidade.
Nenhuma dúvida O chefe de gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho, expôs, na revista Veja do dia 28 de junho, o que pensa seu chefe sobre as questões ambientais: “Vou ser bem claro aqui: ele acha importante a preservação, mas, entre um cerradinho e a soja, ele é soja. O ambiente é uma questão importante, mas não é decisiva. O que é decisivo é a economia”. Não precisava nem confirmar.
Crise profunda Administrado há alguns anos por um comitê de bancos credores, o jornal O Estado de S. Paulo, tradicional diário da família Mesquita, corre o risco de ser incorporado por outro grupo empresarial. Apoiador entusiasmado das políticas neoliberais, o jornal é mais uma vítima do acelerado processo de concentração capitalista nos meios de comunicação, no qual apenas alguns grupos devem sobreviver.
Outra solução Estudo do Ibase concluiu que o maior programa social do Brasil, o Bolsa Família, não consegue resolver de forma definitiva o problema da fome na maioria das famílias atendidas: 11,5 milhões de brasileiros (20,7%) continuam com insegurança alimentar grave; 18,9 milhões (34,1%), moderada; e 12,5 milhões (28,3%), leve. Melhora a alimentação, mas não muda a estrutura da pobreza. Rumo profissional Educadores, professores, psicólogos e outros profissionais ligados à educação iniciaram campanha contra o Projeto de Lei nº 187/08, do senador Sérgio Zambiasi, do PTB-RS, que impõe a aplicação obrigatória de testes vocacionais nas redes públicas e privadas de ensino médio. O movimento contrário ao projeto defende a implantação de programas de orientação profissional e a reflexão criteriosa sobre a inserção dos jovens no mercado de trabalho. Sem a sentença dos testes!
Operação Condor O Poder Judiciário da Argentina, Chile e Uruguai continua colocando na cadeia ex-torturadores das ditaduras militares do Cone Sul: no dia 30 de junho, o general Manuel Contreras, ex-dirigente da polícia secreta chilena, foi condenado à prisão perpétua pelo assassinato do general Carlos Prats, um crime planejado e executado na Operação Condor. Aqui no Brasil os crimes da ditadura continuam impunes. Projeto eleitoral Nas eleições municipais de 2004, apesar da restrição da direção nacional do PT à aliança com o PSDB, os dois partidos ficaram coligados em mais de 140 municípios. Agora, em 2008, dados preliminares indicam que a aliança PT-PSDB acontece em mais de 200 municípios. A de Belo Horizonte (MG), não formalizada, visa inclusive apoiar a candidatura presidencial de Aécio Neves em 2010.
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Greve dos professores paulistas continua EDUCAÇÃO Propostas apresentadas pelo governo de José Serra são rejeitadas em assembléia geral com 60 mil participantes Raimundo Paccó / Folha Imagem
Michelle Amaral da Redação PROFESSORES DA rede pública do Estado de São Paulo promovem greve que dura quase 20 dias, em protesto contra o decreto 53.037, instituído em maio pela Secretaria da Educação, e em cobrança ao cumprimento da pauta de reivindicações apresentada ao governo de José Serra (PSDB) em janeiro. Desde o início da paralisação, aprovada em assembléia geral na Praça da República, Centro de São Paulo (SP), no dia 13 de junho, o professorado paulista realizou outras duas assembléias no vão livre do Masp, nos dias 20 e 27 de junho, nas quais estiveram presentes cerca de 60 mil docentes.
Contra-proposta Diante da pressão exercida pela mobilização, a secretária de educação, Maria Helena Guimarães de Castro, recebeu, no dia 19 de junho, representantes do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) para informar as propostas elaboradas pelo Estado. São elas: incorporação de gratificações, reajuste salarial de 5%, realização de um concurso público para efetivação de 72 mil professores admitidos em caráter temporário (ACTs), para jornada de 10 horas, e alterações no Decreto nº 53.037. Com a revisão feita pela Secretaria, o decreto não teria aplicabilidade para este ano, passando a valer a partir de 2009. Na primeira versão, os professores que acumulassem mais de 10 faltas, de qualquer natureza, ficariam impedidos de optar pelo artigo 22, assim como aqueles que usufruíssem de licenças médicas e prêmio,
Professores da rede estadual de ensino se concentram no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista
Quanto
72 mil professores
trabalham em caráter temporário em São Paulo
excetuando-se a licença gestante. De acordo com a nova proposta da Secretaria, o limite de faltas passa de 10 para 12, e a opção pelo artigo 22 valerá para todos que usufruírem licenças médicas e prêmio. No caso da prova seletiva de âmbito regional instituída no decreto, a Secretaria ratificou que a mesma será com conteúdo programático e aplicada a
todos os professores temporários, porém não haverá eliminação, como era antes. O teste passa a ter caráter classificatório, com respeito ao tempo de serviço. Para os professores em estágio probatório, que, conforme o decreto, ficariam impedidos de optar pelo artigo 22, a nova regra estabelece que somente os que entrarem na rede a partir da vigência do decreto é que não poderão pedir remoção nos três anos iniciais de trabalho.
Rejeição Contudo, na assembléia geral realizada no dia 27, a cate-
goria decidiu manter a greve. Os professores rejeitaram as propostas da Secretaria. Eles não aceitam as alterações no decreto e continuam exigindo a revogação do mesmo. Na pauta entregue ao governo em janeiro, a classe também defende reajuste salarial que reponha as perdas acumuladas desde 1998, novo plano de carreira, fim da aprovação automática, gestão democrática e autonomia da escola. Outras necessidades apresentadas pelos professores são o estabelecimento de um limite máximo de 35 alunos por sala, melhores con-
dições de trabalho, incorporação das gratificações com extensão aos aposentados, concurso público estadual e garantia de emprego e estabilidade a todos os professores. A greve continua até a nova assembléia, programada para o dia 4.
Tentativa de acordo A Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região, órgão do Ministério Público do Trabalho, convocou a Apeoesp e a Secretaria da Educação para uma audiência de mediação, no Núcleo de Dissídios Coletivos, no dia 27, com o objeti-
vo de propor um acordo para a solução do conflito trabalhista. Somente compareceram à audiência o então presidente da Apeoesp, Carlos Ramiro de Castro (no dia seguinte, Maria Izabel Azevedo Noronha, da chapa 1, assumiu o comando do sindicato, após vencer as eleições), e alguns membros do sindicato. Já a secretária de educação não compareceu e também não enviou representantes. Diante disso, a procuradora Oksana Maria Dziura Boldo entendeu como descaso a ausência de integrantes da Secretaria e decidiu dar entrada com dissídio coletivo no Tribunal Regional do Trabalho (TRT). Em nota, a Apeoesp afirma que apresentou à Procuradoria um documento no qual a Secretaria de Educação autoriza a contratação de professores eventuais para cobrir a falta daqueles que estão em greve. A Apeoesp explica que tal prática é ilegal, pois desrespeita regulamentação do Supremo Tribunal Federal. A procuradora acatou a denúncia e solicitou ao sindicato a relação das escolas em que isso está ocorrendo, para caracterizar prova concreta da ação governamental e, assim, acionar a Secretaria.
Para entender Artigo 22 – Garante aos professores recém-aprovados em concurso a possibilidade de conseguir transferência para escolas ou municípios mais próximos de seu local de moradia, de onde tenha saído ou queira sair outro titular. O professor atribui as aulas como substituto até o final do ano letivo, sendo esse processo intermediário ao processo de remoção, que demora mais tempo até que o docente consiga uma vaga efetiva.
ECONOMIA
Sem empresa estatal, agrocombustível será internacionalizado, diz presidente do Ipea Segundo Márcio Pochmann, se Brasil tivesse mantido política econômica do governo Vargas, hoje seria a 3ª maior economia do mundo Elza Fiúza/ABr
Beto Almeida de Brasília (DF) Caso o Brasil não crie uma empresa pública de energia renovável para fazer o enfrentamento com o mercado global que tende a se concentrar, o país será inevitavelmente esmagado e o setor, internacionalizado. O alerta é do economista Márcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um organismo estatal que está neste exato momento levando adiante um conjunto de estudos sob o nome sugestivo de Repensar o Brasil. “O Brasil vai ter que adquirir capacidade, que não tem no dia de hoje, para fazer parte desse mercado global de energia”, explica Pochmann, lembrando que, embora o país disponha de grandes empresas produtoras de agrocombustíveis, especialmente na região Centro-Sul, até com tecnologia de ponta, sua capacidade é relativamente pequena para fazer o enfrentamento com os poderosos oligopólios que dominam o mercado global de energia. “Não vejo outra alternativa que não a concentração do setor em torno de uma empresa pública de energia renovável”, opina. Para Pochmann, “se não traçarmos uma estratégia clara e competente, mais dia ou menos dia seremos inapelavelmente internacionalizados”, lembrando que o exemplo da Vale do Rio Doce, criada como empresa estatal na Era Vargas, deve ser considerado para que, como país, revisemos nossos planos e nossas políticas.
Quanto
90% poderia ser o ín-
dice dos brasileiros protegidos pela CLT se a política varguista permanecesse
O presidente do Ipea concorda que momentos de crise mundial podem também representar oportunidades para que países com grande potencial de crescimento, caso do Brasil, reposicionem-se política e estrategicamente, e aproveitem as crises para crescer. “Foi o que fizemos na crise capitalista de 1929, pois a revolução de 30 representou uma inversão de políticas estratégicas, priorizando o desenvolvimento nacional e deslanchando o mercado interno”, recupera. O mesmo exemplo teria ocorrido na crise do petróleo, em 1973, quando o Brasil elaborou o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) e, no mesmo período constituiu o Pró-Álcool. “Na crise atual, também há oportunidade para o Brasil se colocar”, ressaltando que, agora, no segundo governo Lula, está sendo reorganizada uma maioria política para dar sustentação à elaboração de um pensamento estratégico de longo prazo.
Grande potência Pochmann desenvolveu estudos que revelam que, se o Brasil tivesse mantido a política econômica da Era Vargas, hoje teria a terceira maior economia do mundo. “O Brasil foi o segundo país do mundo que mais cresceu no período compreendido de 1890 a 1980. Esse crescimento produtivo nos retirou da posição
gam impostos e que ainda não fez as reformas do bem-estar social. Alguns segmentos foram muito mais privilegiados do que outros”, reconhece. No entanto, Pochmann calcula, baseado nos estudos que fez, que se tivesse sido mantida a mesma política econômica da Era Vargas, hoje o Brasil, com uma carga tributária bem menor, de 22% do produto interno bruto (PIB), teria uma receita três vezes maior do que a que hoje arrecada, com uma carga tributária de 27% do PIB. Além disso, ele sustenta que, mantida a linha varguista, o Brasil poderia ter agora de 80 a 90% dos trabalhadores sob a proteção da CLT, enquanto que hoje tem apenas um terço dos trabalha-
Politicamente, a Revolução de 1930 levou o Brasil a construir uma nova maioria que tinha por meta superar o Brasil rural, empreender o desenvolvimento nacional e expandir o mercado interno
O presidente do Ipea, Márcio Pochmann
de sermos a 56ª economia do mundo para, em 1980, nos tornarmos a oitava. E isso foi feito pela persistência e a disciplina dos que nos antecederam, que possuíam uma visão do Brasil”, explica. Politicamente, a Revolução de 1930 levou o Brasil a construir uma nova maioria que tinha por meta superar o Brasil rural, empreender o desenvolvimento nacional e expandir o mercado interno.
“Foi uma trajetória de sucesso, do ponto de vista da expansão das bases materiais da economia nacional. Evidentemente, vieram também os problemas, porque o país não fez as reformas clássicas do capitalismo, como a reforma agrária, a reforma tributária e a reforma urbana”, complementa. Lembra que, por não ter feito também essas reformas, o Brasil continua sendo um país onde os ricos não pa-
dores sob esta condição, também nascida na Era Vargas. A essa altura da entrevista, Pochmann lembra Celso Furtado e repete o economista já falecido, que em 2004 afirmou que “nunca estivemos tão longe de ser o país que poderíamos ser”.
A nova dependência Pochmann aponta a crise da dívida externa em 1980 – imposta pela oligarquia financeira mundial – como o fator político determinante para a desconstrução daquela maioria política desenvolvimentista organizada pela Revolução de 1930, quando a prioridade da política econômica passa a ser o controle da inflação.
“O Brasil dos anos de 1970 e 1980 tinha um modelo de desenvolvimento baseado nas empresas estatais que produziam tecnologia. Era um tripé: o capital externo, o capital nacional e o setor produtivo estatal. Mas o capital externo não trouxe produção de conhecimento, isto foi feito no setor estatal. Petrobras, Telebrás, Mineração, Vale do Rio Doce, tudo vem da visão estratégica montada lá atrás, na Era Vargas”, destaca. Com a crise da dívida externa nos anos de 1980, surge a visão equivocada que tem como lema “quanto menos Estado, maior seria o setor privado”. “Nada disso aconteceu. A redução do Estado resultou em menor setor privado nacional, a saída do Estado expandiu o capital externo”, avalia, lembrando que as 500 maiores empresas que atuavam no Brasil em 1980 eram dois terços de empresas nacionais privadas ou estatais, uma situação que hoje se modificou para apenas 50% de capital nacional, enquanto o capital externo avançou para dominar metade da economia brasileira. “Transferimos 15% do PIB para o capital internacional e criamos uma nova dependência”, denuncia. Condição que pode ser evidenciada ao se analisar o setor de patentes. Enquanto o setor acadêmico nacional e tecnológico é responsável por 2% da produção de conhecimento científico internacional, temos apenas 0,2% das patentes mundiais, ao passo que países como China, Malásia, Índia e Coréia do Sul, com forte participação do Estado, aumentaram significativamente sua participação nas patentes em nível internacional, argumentou o presidente do Ipea, órgão que está coordenando um trabalho para uma nova política estratégica para o Brasil, sustentada nas novas condições políticas surgidas no segundo governo Lula, o que explicaria a sua própria presença na direção da entidade, tão importante para o país.
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Monocultivo da cana devasta o Cerrado no Alto São Francisco CAMPO Com estímulo à produção de etanol, agricultores se vêem cercados pela degradação ambiental Fotos: Maria Luisa Mendonça
Maria Luisa Mendonça de Lagoa da Prata (MG) O CERRADO é conhecido como “pai das águas”. Ele é responsável por abastecer as principais bacias hidrográficas do país. Em seu território estão as nascentes do rio São Francisco e seus afluentes, como o Samburá, o Santo Antônio e o do Peixe, além do rio Grande, que deságua no Paraná. A fauna e a flora são riquíssimas e guardam muitas espécies ameaçadas de extinção. Na Serra da Canastra, foram identificadas mais de 300 espécies de aves e 7 mil de plantas. No município de Lagoa da Prata, já existe uma usina de açúcar desde a década de 1970, de propriedade de Antonio Luciano, “coronel” e latifundiário, conhecido como um dos maiores grileiros de Minas Gerais. Mais recentemente, a transnacional francesa Louis Dreyfus adquiriu essa usina e expandiu o monocultivo de cana-de-açúcar para a produção de etanol. Nos últimos dois anos, outras empresas passaram a participar do processo de expansão da monocultura da cana na região.
Destruição Os efeitos são devastadores. Na fazenda de Antonio Luciano, chegaram até a desviar o curso do rio São Francisco para facilitar o escoamento da produção, sem licença ambiental ou estudos técnicos. Tanto no período inicial de implantação da cana, como nessa fase recente, a monocultura substitui áreas de lavouras e criação de gado, além de destruir as reservas florestais e a mata ciliar. Na implantação dos plantios, as empresas fazem queimadas clandestinas das matas nativas à noite, derrubam e enterram as árvores, para fugir da fiscalização.
“Os contratos são de 12 anos e depois disso a cana já acabou com tudo. A usina usa máquinas pesadas para preparar a terra e causa erosão do solo. Depois, queimam a cana e a cinza se espalha por toda a região. Eu não quis arrendar e estou cercado de cana”, revela agricultor “Hoje é comum encontrarmos animais mortos nas estradas, fugindo da devastação das matas. Já encontramos lobo, raposa, tamanduá-bandeira, tamanduá-mirim, lontra, quati, tatu, serpente, garça, coruja e lagarto, além de peixes mortos no rio, como surubins, que chegam a pesar 40 quilos. Plantam cana até na beira dos rios e das lagoas”, afirma Francisco Colares, professor de zoologia na Universidade de Iguatama. Segundo Colares, a usina de Lagoa da Prata utiliza a água do São Francisco em todo o processo de produção – para irrigação durante o cultivo, para lavar a cana depois da colheita e para resfriar as caldeiras no processamento. Em um dos pontos de captação, o bombeamento é de 500 litros por segundo – quantidade de água suficiente para abastecer todo o município.
Crescimento O processo de expansão é intenso. A empresa Total constrói uma usina em Bambuí e está prevista a implantação de mais outras três na região – duas em Arcos e uma em Iguatama, além da expansão da pro-
Quanto
7 mil
espécies de plantas estão ameaçadas pelo avanço da cana dução em Lagoa da Prata. O cultivo de cana chega até a Zona de Amortecimento do Parque Nacional da Serra da Canastra, considerada pelo Atlas da Biodiversidade em Minas Gerais como sendo de importância biológica extrema. O parque fica entre as nascentes do São Francisco e a bacia do rio Grande. A preservação da Zona de Amortecimento (a área circundante ao parque) é essencial para garantir sua conservação. A produção de cana no local causa grande impacto, por seu potencial invasor, o intenso uso de agrotóxicos, entre outros. A usina Itaiquara se instalou no município de Delfinópolis e plantou cana em áreas de preservação permanente, próximas ao grande reservatório de águas de Furnas. Joaquim Maia Neto, chefe da unidade do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), responsável pelo Parque Nacional da Serra da Canastra, conta que a cana chega até a margem do reservatório. “Plantam praticamente dentro da água. Desmataram a área e praticaram queimadas, o que representa um grande risco a toda região. O Ministério Público moveu uma ação contra a empresa e esperamos que a área seja recuperada em breve, e os responsáveis, punidos pelo dano ambiental. É necessário que os órgãos competentes fiscalizem essa atividade, pois a monocultura traz sérios problemas ambientais. O Brasil deveria priorizar uma agricultura diversificada”, afirma.
Cercados de cana O Secretário de Agricultura e Meio Ambiente do município de Luz, Dario Paulineli, descreve outros impactos na região: “A cana se expandiu rapidamente nos últimos anos. A empresa Louis Dreyfus fez muitos contratos de arrendamento com agricultores locais, e o impacto ambiental foi enorme. A usina aplica o veneno de avião e atinge os agricultores vizinhos e a população das cidades. Desmatam madeira de lei, árvores protegidas por lei como o pequizeiro e a gameleira, plantam cana perto das nascentes dos rios, não respeitam os estudos de impacto ambiental. Muitos animais estão morrendo com a devastação das matas”. Para o agricultor Gaudino Correia, não vale a pena arrendar a terra. “Os contratos são de 12 anos, e depois disso a cana já acabou com tudo. A usina usa máquinas pesadas para preparar a terra e causa erosão do solo. Depois, queimam a cana e a cinza se espalha por toda a região. Eu não quis arrendar e estou cercado de cana. Aqui não tem mais terra para lavoura, e por isso subiu tanto o preço dos alimentos. Meus vizinhos deixaram de produzir milho, feijão, café, leite e arrendaram a terra para a empresa Total. Eu ainda planto milho, feijão e produzo leite, mas para o produtor o preço não aumentou, só para o atravessador e para a população. Ainda consigo produzir leite porque faço a ração. Se fosse comprar, não sobrava nenhuma renda. O preço da ração aumentou 50% e fica difícil criar animais”, descreve. O agricultor Sebastião Ribeiro tem a mesma posição. “A usina insistiu, mas eu não quis arrendar minha terra. Meus vizinhos arrendaram e depois ficaram com depressão, porque é o mesmo que perder a terra. O que vai acontecer se os agricultores deixarem de plantar alimentos?”, indaga. Ribeiro explica também que a usina faz irrigação da cana com pivô central, usando água do São Francisco.
Usina em ação: devastação de recursos naturais e da agricultura local
Empresas fazem propaganda enganosa Ao invés de desenvolvimento, companhias levam degradação ambiental e sobrecarregam serviços públicos dos municípios de Lagoa da Prata (MG) Apesar da propaganda das empresas, que dizem gerar emprego e desenvolvimento, organizações locais denunciam que as usinas que operam no Alto São Francisco não respeitam leis ambientais e trabalhistas. “Usam venenos violentos que afetam a saúde dos trabalhadores e da população. Onde antes se produzia milho, feijão, café, leite e outros alimentos, agora é só cana. Não há crédito para os pequenos produtores, mas o Banco do Brasil tem dinheiro de sobra para incentivar as grandes usinas, que destroem o Cerrado e a Amazônia. Essa política vai deixar uma herança de destruição”, prevê Carlos Santana, assessor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bambuí. Ele explica que na região “tem serviço, mas só braçal. Os trabalhadores chegam de todas as partes do país para cortar cana e o aluguel na região aumentou muito. Outra conseqüência foi o congestionamento do sistema de saúde pública. Os cortadores de cana recebem por produção e isso causa a exploração. Muitos ficam doentes e não conseguem mais trabalhar”.
“Como (o presidente Lula) pode dizer que a cana não substituiu áreas de produção de alimentos? As usinas estão trazendo miséria e vai faltar comida na mesa da população”, alerta sindicalista Estado ausente Especialistas alertam que não há fiscalização eficiente sobre os impactos sociais e ambientais. Lessandro da
Costa, diretor da Associação Ambientalista do Alto São Francisco, explica que o Estado deveria priorizar a preservação das nascentes dos rios. “É como desgastar as veias que levam o sangue para o coração. Essa expansão tem sido muito rápida e a idéia é dobrar a produção de cana na região. A agricultura familiar vai sumir, e podem faltar alimentos”, afirma. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lagoa da Prata, Nelson Rufino, denuncia que “a usina Louis Dreyfus causa grande destruição do meio ambiente. O trator da empresa arranca as árvores e depois enterra para esconder o crime ambiental. Somente metade dos canais onde depositam o vinhoto é feita de cimento. Nos outros canais, o vinhoto vai direto para o subsolo e para os rios. Nós chamamos o vinhoto de ‘água que fede’”.
Saúde do trabalho Rufino descreve ainda os impactos sociais nos municípios da região: “As cidades estão totalmente cercadas, porque a cana chega até as áreas urbanas. A empresa joga veneno de avião e o índice de câncer na população é enorme. Só na minha família temos cinco casos, e isso é comum na cidade. Há mais de 140 trabalhadores afastados por problemas de saúde como tendinite, complicações de coluna, asma e outras doenças pulmonares. Temos registros de cinco casos de mortes por acidentes de trabalho. Dois trabalhadores caíram nas caldeiras, um morreu durante a queima da cana e outros dois faleceram em acidentes com o trator”. Grande parte dos cortadores de cana é migrante e está vulnerável à exploração e ao preconceito. O local onde vivem, em Lagoa da Prata, é chamado de “Carandiru”. Rufino afirma que, “para os trabalhadores, a situação piorou porque perdemos renda. Ano passado fizemos uma greve de
Quanto
140
trabalhadores estão afastados por problemas de saúde 45 dias e conseguimos um aumento de R$ 2,50 para R$ 2,80 por tonelada de cana cortada. Mas a empresa quer buscar uma forma de nos incriminar e está processando o sindicato”.
Superexploração Outra forma de manipular os trabalhadores é estimulando a competição. Para isso, a empresa os divide em grupos, de acordo com a quantidade de cana cortada. Quem não cumprir a meta, não será contratado na próxima safra. Aqueles que atingem a maior meta vão para a turma dos “touros”, que cortam de 17 a 25 toneladas de cana por dia. Muitos trabalhadores desse grupo foram afastados por problemas de saúde e agora são chamados de “bezerros doentes”. Mesmo em áreas onde já havia atividade agrícola, o monocultivo da cana gera um grau muito maior de devastação, porque substitui agricultura diversificada por cultivos homogêneos e contínuos, o que leva à destruição total das reservas florestais. A demanda das empresas por grande quantidade de terras de boa qualidade, com acesso à água e à infra-estrutura, gera devastação dos recursos naturais e da agricultura local. Portanto, não é verdade que a indústria da cana se expande para áreas degradadas e terras marginais, como afirma o governo. Moacir Gomes, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bambuí, conclui que “o presidente Lula não conhece a realidade. Como pode dizer que a cana não substituiu áreas de produção de alimentos? As usinas estão trazendo miséria e vai faltar comida na mesa da população”. (MLM)
Usinas utilizam a água do São Francisco para irrigação e lavagem da cana e resfriamento de caldeiras
de 3 a 9 de julho de 2008
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américa latina Francia Carolina Gómez Román
Abertura da exposição Homenagem e Memória, relizada no Centro Cultural Palacio de La Moneda, em Santiago, no Chile, e que comemora o centenário do nascimento de Allende
HÁ CEM anos nascia o ex-presidente chileno Salvador Allende, símbolo de luta, resistência, coerência e esperança para a esquerda latino-americana. O legado deste socialista, que governou o Chile de 1970 a 1973 – e teve seu mandato e vida interrompidos por um golpe militar patrocinado pela CIA – continua presente na América Latina. “O pensamento de Allende é atual. Esse aniversário acontece numa fase em que o continente está de novo tentando fazer mudanças”, diz Ivan Pinheiro, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB). De acordo com ele, celebrar o centenário do ex-presidente, que nasceu em 26 de junho de 1908, é “comemorar a luta do povo chileno, e lembrar de um dos maiores lutadores da América Latina”. Para o escritor e historiador chileno Reginaldo Parada, “Allende foi coerente até o último momento de sua vida”.
“Comete-se um erro quando se olha para trás para recordar Allende. Por sua obra, por seu projeto, seus sonhos, por suas lutas, Allende está no futuro”, diz Tomás Hirsch Na presidência
Allende passou à história como o primeiro socialista que chegou à presidência de um país através de uma eleição. Após concorrer por três vezes à presidência, em 1952, 1958 e 1970, elegeu-se apoiado pela coalizão Unidade Popular (que unificara comunistas, socialistas e parte da esquerda católica). Dia 11 de setembro de 1973, o presidente foi deposto em um golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet (1974-1990), dando início a uma das ditaduras mais violentas do mundo, que matou mais de 3 mil pessoas. Na opinião de Tomás Hirsch, do Partido Humanista, o ex-presidente chileno não faz parte do passado. “Cometese um erro quando se olha para trás para recordar Allende. Por sua obra, por seu projeto, seus sonhos, por suas lutas, Allende está no futuro”. Hirsch, que foi candidato à Presidência da República do Chile, em 1999 e em 2005, pela frente de esquerda Juntos Podemos Más, acredita que “Allende foi basicamente um latino-americano. Foi um homem muito visionário que desde o começo compreendeu que a luta do povo no Chile é a luta na América Latina. E, hoje em dia, seu legado também é o da esperança para todo o povo latino-americano”.
Pouco a comemorar
Apesar de acreditar-se que Allende é um exemplo para a América Latina, não é no Chile que seus passos estão sendo seguidos. Para Ivan Siqueira, “é incrível avaliar que a [atual presidente chilena] Michelle
Bachelet é do mesmo partido que Allende [Partido Socialista]”. Segundo ele, infelizmente hoje a esquerda chilena tem “pouco a comemorar e muito o que lutar. Há muita repressão aos estudantes e ao povo indígena Mapuche”, O historiador chileno Reginaldo Parada, presidente do Centro de Estudos Políticos “Presidente Salvador Allende Gossens”, acredita que os próprios socialistas “tentam se esconder na sombra do expresidente”. Para ele, as alianças que foram feitas a partir da década de 1990 fazem com que hoje o país viva uma “democracia disfarçada”.
Herdeiros de Allende
Desde que o ditador Augusto Pinochet saiu do poder, em março de 1990, a frente Concertación – que reúne o Partido Socialista (PS, de Bachelet), a Democracia Cristã (DC), o Partido pela Democracia (PPD) e o Partido Radical Social Democrata (PR) – está no poder. “Apesar de ter sido presa política, tenho um péssimo conceito dela. Hoje, os chilenos que vivem fora do país não têm direito a votar, e o Chile ainda adota o modelo educacional criado no final da década de 1980 pelo ditador falecido Augusto Pinochet, com pequenas alterações”, lembra Reginaldo Parada. De acordo com as fontes ouvidas pelo Brasil de Fato, na Bolívia, Venezuela e Equador há mudanças em curso que podem ser consideradas herdeiras da experiência de Allende. Para Tomás Hirsch, a “América Latina está vivendo um novo processo, que não é revolucionário. É uma tentativa de encontrar um caminho, e é o que está marcando o atual momento histórico latino-americano”. Na avaliação de Ivan Siqueira, “as grandes alamedas as quais Allende se referiu estão sendo abertas nesses três países, onde há governos comprometidos com isso”. Em seu último pronunciamento, Allende disse “fiquem sabendo que, muito mais cedo do que tarde, as grande alamedas por onde passa o homem livre se abrirão novamente, para construir uma sociedade melhor”.
Forças conservadoras
Além de discutir o legado do ex-presidente chileno, Ivan Siqueira acredita que o momento é importante para se refletir as razões da derrota do governo de Salvador Allende. “Na minha avaliação, uma das causas da derrota foi o fato de as forças conservadoras terem sido subestimadas”, acredita. “Se no Brasil um governo que não tinha proposto fazer nem a metade das reformas que Allende quis fazer no Chile, instalou-se uma ditadura, por que não poderia acontecer o mesmo lá”, questiona. Para Siqueira, o Chile foi um “laboratório para o imperialismo, que usou métodos lá que estão usando na Bolívia, Venezuela e em outros países”. Em sua avaliação, “não podemos subestimar a capacidade e a ferocidade da direita, que pode destruir qualquer governo legitimamente eleito que queira contrariar de seus interesses”, conclui. (Colaborou Eduardo Sales de Lima, da Redação)
Salvador Allende, 100 anos
Fidel Castro
CHILE No centenário de nascimento do primeiro socialista que chegou à presidência de um país através de uma eleição, militantes discutem sua herança na América Latina Reprodução
Tatiana Merlino da Redação
Via chilena para o socialismo da Redação Médico de profissão, Salvador Allende nasceu na cidade portuária Valparaíso em 26 de junho de 1908. Militou durante toda a vida no Partido Socialista do Chile, que ajudou a fundar. Concorreu por três vezes à presidência da república, em 1952, 1958 e 1970, elegendose na terceira tentativa, apoiado pela Unidade Popular, numa coligação comunista-socialista. Nas eleições de 1952, reuniu uma escassa votação, em 1958 ficou com 28,5%, e em 1964 chegou a 38,6% do eleitorado. O avanço da esquerda culminou com a vitória de Allende nas eleições de 4 de setembro de 1970, quando recebeu 36,3% dos votos, superando o direitista Jorge Alessandri, que registrou 34,9%, e o democratacristão Radomiro Tomic, que ficou com 27,8%. Com um forte apoio popular, Allende conseguiu unanimidade no Parlamento para nacionalizar as grandes minas de cobre – principal recurso chileno – que, durante 40 anos foram exploradas por companhias estadunidenses. Allende tenta socializar a economia chilena, com base num projeto de reforma agrária e nacionalização das indústrias. Por meio de sua política, a chamada “via chilena para o socialismo”, nacionaliza os bancos e algumas grandes empresas, e enfrenta pressões políticas estadunidenses. O governo do socialista levou à oposição dos democrata-cristãos de direita e à antipatia do efetivo militar chileno. Nas eleições parlamentares de março de 1973, a Unidade Popular aumentou seu apoio e sua força legislativa, ao receber 43,3% dos votações, mas o Senado declarou o governo inconstitucional, o tribunal das contas públicas não reconheceu a legalidade de suas ações e surgiu a ameaça de um golpe. Quando Allende se preparava para convocar um plebiscito, num discurso que faria no dia 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas chefiadas pelo general Augusto Pinochet, com ostensivo apoio dos Estados Unidos, dão um sangrento golpe de Estado que derruba o governo da UP. Allende morreu quando as Forças Armadas rebeladas contra o governo constitucional atacaram o Palácio de La Moneda. Há duas versões aceitas sobre sua morte: uma é a de que ele se suicida no Palácio cercado por tropas do Exército, com a arma que lhe fora dada por Fidel; a outra é a de que ele foi assassinado pelas tropas invasoras. “Colocado numa transição histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo”, foram suas últimas palavras em mensagem difundida a partir do palácio de La Moneda. (TM)
Nasceu há cem anos em Valparaíso, no sul do Chile, em 26 de junho de 1908. Seu pai, de classe média, advogado e tabelião, militava no Partido Radical chileno. Quando eu nasci, Allende tinha 18 anos. Realiza seus estudos médios em um liceu da cidade natal. Em seus anos de estudante pré-universitário, um velho anarquista italiano, Juan Demarchi, o põe em contato com os livros de Marx. Gradua-se como aluno excelente. Gosta de esporte e o pratica. (...) Egressa como oficial de reserva do Exército. Já o faz como homem de idéias socialistas e marxistas. Não se tratava de um jovem mole e sem caráter. Era como se adivinhasse que um dia combateria até a morte defendendo as convicções que já começavam a se formar em sua mente. Decide estudar a nobre carreira de Medicina na Universidade do Chile. Organiza um grupo de colegas que se reúnem periodicamente para ler e discutir sobre o marxismo. (...) Em 1933, forma-se como médico. Participa na fundação do Partido Socialista do Chile. (...). É preso durante quase meio ano. (...) Em setembro de 1939, (...) publica um livro seu sobre medicina social. (...) Ascende em 1942 a Secretário-Geral do Partido Socialista do Chile. (...) Em 1952, a Frente do Povo o postula para Presidente. Tinha então 44 anos. Perde. Quatro anos depois, em 1958, é proclamado candidato à presidência pela Frente de Ação Popular, constituída pela União Socialista Popular, o Partido Socialista do Chile e o Partido Comunista. Perde a eleição para o conservador Jorge Alessandri. Assiste em 1959 à tomada de posse de Rómulo Betancourt como Presidente da Venezuela, considerado até então como uma figura revolucionária de esquerda. Viaja nesse mesmo ano a Havana e se entrevista com o Che e comigo. Respalda, em 1960, os mineiros do carvão, que paralisam seu trabalho durante mais de três meses. Denuncia, junto ao Che, em 1961, o caráter demagógico da Aliança para o Progresso na reunião da OEA que aconteceu em Punta del Este, Uruguai. Designado de novo candidato à presidência, é derrotado em 1964. (...) Encabeça, em 1966, a delegação que assiste à Conferência Tricontinental de Havana. Visita a União Soviética no 50° Aniversário da Revolução de Outubro. No ano seguinte, 1968, visita a República Democrática da Coréia, a República Democrática do Vietnã, onde tem a satisfação de conhecer e conversar com o extraordinário dirigente desse país, Ho Chi Minh. Inclui nesse mesmo percurso o Camboja e Laos, em plena efervescência revolucionária. Depois da morte do Che, acompanha pessoalmente até o Taiti três cubanos da guerrilha na Bolívia, que sobreviveram à queda do Guerrilheiro Heróico e se encontravam já em território chileno. A Unidade Popular, coalizão política integrada por comunistas, socialistas, radicais, MAPU, PADENA e Ação Popular Independente, proclama-o seu candidato em 22 de
janeiro de 1970, e triunfa em 4 de setembro nas eleições desse ano. É um exemplo verdadeiramente clássico da luta por vias pacíficas para estabelecer o socialismo.(...) Allende assume legalmente e com toda dignidade o cargo de presidente do Chile em 3 de novembro de 1970. Começa no governo sua heróica batalha pelas mudanças, enfrentando ao fascismo. Tinha já 62 anos de idade. Coube-me a honra de ter compartilhado com ele 14 anos de luta antiimperialista, desde o triunfo da Revolução Cubana.(...) Em 1972 denuncia na Assembléia Geral das Nações Unidas a agressão internacional da qual é vítima seu país. É ovacionado em pé durante longos minutos. Visita nesse mesmo ano a União Soviética, México, Colômbia e Cuba. Em 1973, (...) o imperialismo e a direita agravam uma luta sem quartel contra o governo da Unidade Popular e desatam o terrorismo no país. Escrevi-lhe seis cartas confidenciais à mão, com letra pequenina e uma caneta de pon-
Depois da morte do Che, acompanha pessoalmente até o Taiti três cubanos da guerrilha na Bolívia, que sobreviveram à queda do Guerrilheiro Heróico e se encontravam já em território chileno ta fina entre os anos de 1971 e 1973, nas quais lhe abordava temas de interesse com a maior discrição.(...) Eu desconfiava de Pinochet desde que li os livros de geopolítica que me obsequiou durante minha visita ao Chile. (...) Em 11 de setembro de 1973, morre heroicamente defendendo o Palácio de la Moneda. Combateu como um leão até o último suspiro. Os revolucionários que resistiram ali à investida fascista contaram coisas fabulosas sobre os momentos finais. As versões nem sempre coincidiam, porque lutavam de diferentes pontos do Palácio. A diferença dos depoimentos consistia em que uns afirmavam que os últimos disparos os fez contra si próprio para não cair prisioneiro, e outros, que sua morte se deu por fogo inimigo. O Palácio ardia atacado por tanques e aviões para consumar um golpe que consideravam trâmite fácil e sem resistência. Não há contradição alguma entre ambas as formas de cumprir o dever. Em nossas guerras de independência, houve mais de um exemplo de combatentes ilustres que, quando já não havia defesa possível, privaram-se da vida antes de cair prisioneiros. Há muito que dizer ainda sobre o que estivemos dispostos a fazer por Allende, alguns o escreveram. Não é o objetivo destas linhas. Hoje se cumpre um século de seu nascimento. Seu exemplo perdurará. (a íntegra deste texto pode ser lida na Agência Brasil de Fato, www.brasildefato.com.br) Fidel Castro Ruz, Junho 27 de 2008.
12 de 3 a 9 de julho de 2008
cultura
Teatro por vias opostas Zeca Caldeira
Veridiana Mott
NA CIDADE Mostra encena e discute a luta contra a comercialização da arte Vanessa Ramos de São Paulo (SP) NO LARGO Santa Cecília, em frente à igreja e ao metrô, em São Paulo (SP), camelôs vendem seus diversos produtos: pipoca, yakissoba, CDs, doces, bebidas, cigarros. Carros de polícia circulam na região, trabalhadores não param, estudantes retornam da escola. Na igreja, muitas orações. Do lado de fora, mendigos e crianças. E, ali mesmo, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, eis que brota na rua a arte teatral como uma flor que fura o asfalto e, pode ser símbolo de uma nova construção em meio ao caos urbano. O cenário acima fez parte da mostra Teatro sobre a Cidade, promovida pelo Sesc Consolação em parceria com o grupo Tablado de Arruar, entre 3 e 28 de junho, com debates e apresentações de espetáculos. Nos debates ocorridos nos dias 3, 10, 17 e 24, discussões sobre a dimensão pública da arte dramática e a relação entre a produção teatral e a cidade levantaram questionamentos sobre qual é o destino dos palcos ao seguir a lógica do capitalismo, bem como se os grupos que organizam as peças conhecem o seu público. Além disso, os espetáculos incluídos na mostra levaram à tona problemas existentes na cidade, como especulação imobiliária, pobreza e relações mercantilizadas. Assim, se colocou em pauta a realidade da população que sofre nas cidades, levando essa mesma população a se reconhecer numa peça teatral e, dialeticamente, o público, inicialmente espectador, é convidado a se tornar protagonista para dramatizar sua própria rotina.
Política Essas peças são, na verdade, uma exceção à regra. Afinal, as produções teatrais de grande repercussão dizem respeito “à política de defesa do atual estado das coisas, isto é, do capitalismo. É impossível desenvolver qualquer projeto de politização (sempre no sentido que nos interessa) no âmbito do mercado”, conforme as palavras da professora e pesquisadora teatral Iná Camargo. Ela acrescenta ainda que o processo de politização que se pretende efetuar através do teatro deve possuir objetivos claros, pautados numa linguagem autêntica e própria, utilizando-se de temáticas que abordem os problemas de seu interesse e desvinculando-se por inteiro das demandas de mercado, pois este “transforma em mercadoria até mesmo as lutas contra ele”. Assim, eis uma das possibilidades de pensar como a arte pode suscitar reflexões sobre o nosso cotidiano, as relações em nossa sociedade e a ordem capitalista, por meio de uma representação sutil e por vias opostas – pautada na relação teatro e marxismo (ver texto abaixo) ou mesmo influenciada por momentos do teatro político no Brasil (ver box). Dentre aqueles que apresentam uma perspectiva diferente, pode-se citar o Engenho Teatral (ver box), Cia. São Jorge de Variedades, Tablado de Arruar, Teatro de Narradores e o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Tais grupos têm buscado desenvolver algo que aproxime população e teatro, tendo como objetivo, entre outros, pôr em pauta as situações e a história da população urbana e rural, do trabalhador, que pouco se vê representado de forma digna nos espaços cul-
Cena do espetáculo A rua é um rio, do Tablado de Arruar
Marxismo e teatro Brecht e Walter Benjamin foram os primeiros a teorizar a arte dramática como ferramenta de transformação de São Paulo
O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado, da Cia. São Jorge de Variedades
“Se a relação entre cena e público for a mesma, isto é, pautada pelo teatromercadoria, tanto faz que seja superprodução ou uma peça acessível: o resultado político é o mesmo”, revela Iná Camargo turais nos quais suas causas e reivindicações ficam em segundo plano.
Hegemonia Vale lembrar que as criações artísticas no país são parte da manutenção dos interesses de uma classe dominante. “O Estado, no Brasil, sempre teve políticas de cultura, desde os tempos coloniais. Nessa época, a política cultural do Estado ficava por conta da Igreja, usando o teatro como instrumento de colonização, e da polícia, reprimindo qualquer manifestação que fugisse às normas ditadas pela Igreja e pela Coroa”, lembra Iná. A pesquisadora salienta que, mesmo após as mudanças de modo de governo ocorridas no país, esse tipo de situação não se alterou: “A República sempre patrocinou a cultura do interesse das classes dominantes [locais e mundiais]. Isso não sofreu nenhuma alteração até agora, nem no governo do PT”. Na rua Apesar de não serem exclusivamente vinculados à classificação de teatro de rua, os grupos que se apresentaram durante a mostra tiveram a experiência do diálogo teatral no espaço urbano através de intervenções em plena cidade. Essa intervenção pode ser justificada, mesmo que implicitamente, devido ao fato do teatro ser “um fenômeno urbano desde os tempos mitológicos, levando em consideração ainda os que ocorriam no oriente, como na Índia, China e Japão, dos quais se tem conhecimento”, conforme Iná. Assim, o teatro de rua cumpre respeitável papel na sociedade e é uma das mais antigas manifestações da cultura popular, colocando-se, além disso, em um espaço de caráter coletivo, marcado pela diversidade e participação do público. É pensando nisso que, desde 2007, a Cia. São Jorge de Variedades tem realizado encenações e pesquisas na rua através do espetáculo O San-
to Guerreiro e o Herói Desajustado, que fala do encontro de um cavaleiro solitário (Dom Quixote) com São Jorge, representado como símbolo da coletividade. Encenado dentro da mostra, o espetáculo teve como pano de fundo a seguinte pergunta: “como coletivos, que têm em seus princípios a horizontalidade nas relações, uma posição crítica frente a uma sociedade em que o dinheiro é o único valor que interessa, podem se juntar e se compreender como uma parte insatisfeita da sociedade que não está interessada na manutenção das coisas, e sim na transformação?”, conta a integrante do grupo, Mariana Senne. E conclui: “levar indagações como essa para a rua faz todo o sentido”. No entanto, o diferencial da peça não está simplesmente no fato dela ser realizada ou não na rua. Iná, alertando sobre as disparidades entre as grandes produções teatrais e as produções populares mais acessíveis financeiramente ao público em geral, diz: “Se a relação entre cena e público for a mesma, ou seja, pautada pelo teatro-mercadoria, tanto faz que seja superprodução ou uma peça acessível, o resultado político é o mesmo”.
Protagonismo Ainda na amostra, o Tablado Arruar apresentou A rua é um rio, inspirada no livro Parceiros da Exclusão, da arquiteta e urbanista Mariana Fix. O espetáculo trata da remoção de uma favela para a construção de um grande empreendimento imobiliário, narrando a trajetória de duas personagens inseridas em diferentes contextos e classes sociais, conforme nos apresenta Clayton Mariano, pesquisador e integrante do grupo. Questionando sobre até que ponto o teatro se alia à população de modo verdadeiro, sem reproduzir o sistema que a exclui, o pesquisador acrescenta que o teatro de rua não é um fim em si mesmo, mas sim a necessidade do grupo estreitar a relação do teatro com a cidade, pois esta, “hoje, salvo em raríssimas exceções, é o espaço privado do capital”, afirma. Dessa forma, grupos teatrais que pensam essa arte por um viés verdadeiramente multicultural e dialético com os atores do espaço urbano são exemplos concretos de protagonismo através de projetos que incluem pautas de temas sociais e propiciam o questionamento da função do teatro no espaço público, e da contestação do mesmo que, historicamente, tem se colocado na transmissão das idéias e valores da classe dominante.
A relação entre marxismo e teatro foi estabelecida, de modo mais importante, nos anos de 1920, na Alemanha. O dramaturgo Bertolt Brecht e o filósofo Walter Benjamim foram os primeiros a atrelar suas reflexões e atuações à insatisfação com a ordem social. Brecht, que nesse período já se afirmava marxista, construiu uma relação teórico-prática de enorme relevância para o teatro nessa linha. No campo teórico, desenvolveu o conceito de teatro épico, em que demonstrou que esse tipo de teatro se defronta com todos os aspectos da ideologia burguesa presentes na sociedade, ao contrário do dramático. Já na prática, “além de escrever peças inteiramente inspiradas na teoria marxista, como é o caso de A santa Joana dos Matadouros, desenvolveu as peças didáticas, que fazem parte do repertório do teatro de agitprop (agitação e propaganda) alemão”, explica a pesquisadora Iná Camargo.
te um ensaio, a idéia de que o artista deve se reconhecer como trabalhador e lutar pela transformação das relações de produção. Essas relações de produção estão explícitas em nossa sociedade. Observandose nas cidades, por exemplo, como se revelam as condições brutais da classe trabalhadora. Num contexto social ampliado, ao questionar sobre a possibilidade de relacionar a produção teatral e a cidade, a partir de uma visão marxista, Iná afirma que é possível estabelecer essa relação, porém “é preciso que essa visão seja mais
Transformação Quanto ao filósofo Walter Benjamin, sua importante contribuição foi a construção do conceito de “autor como produtor”. Inspirado nos experimentos de Brecht, desenvolveu, duran-
pautada pela luta de classes do que pelo fetichismo da mercadoria”.
Brasil No Brasil, o marxismo influenciou muitos dramaturgos, no período de 1950, que, sensíveis aos problemas sociais, tornaram-se ícones de uma nova mentalidade no país e, até os dias atuais, instigam profundas reflexões sobre o papel do teatro como instrumento de politização. Entre eles, podemos citar Fernando Peixoto, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Dias Gomes, entre outros. (VR)
Teatro político brasileiro Em relação ao teatro político no Brasil, pode-se reconhecer três momentos importantes. O primeiro, no início do século 20, com os anarquistas. Posteriormente, entre 1958 e 1968, com o nascimento do Teatro de Arena de São Paulo encenando Eles não usam black tie, de Gianfrancesco Guarnieri. Por fim, o mais radical foi o momento da criação do Movimento de Cultura Popular em Recife (PE) e do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Com o golpe em 1964, o Estado combateu o teatro político, enrijecendo após o ato institucional nº 5 (AI-5). Depois disso, só o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), já neste século, retomou a questão do teatro político na teoria e na prática. A pesquisadora Iná Camargo relata que esses foram períodos importantes e de ruptura que contextualizaram a história do teatro em nosso país e, quanto ao MST, o que se observa é uma atuação teatral de olhar politizado do cotidiano atual. Essa realidade em nossa sociedade é destoada apenas por alguns grupos que agem em sentido contrário à lógica vigente. (VR) Divulgação
Engenho Teatral O grupo Engenho Teatral surgiu em 1979, com o nome de Apoena e com o espetáculo Mãos Sujas de Terra, tratando da expulsão do posseiro no campo, seguido de A Ferro e Fogo, sobre o movimento operário brasileiro no fim dos anos de 1970. Em 1993, surge com o projeto Engenho Teatral, saindo do centro da cidade para a periferia, conforme relata o diretor do grupo, Luiz Carlos Moreira. Com capacidade para 200 espectadores, realiza apresentações gratuitas na periferia de São Paulo através de um teatro móvel. Além de apresentações abertas ao pú-
blico em geral, organiza sessões exclusivas para escolas, entidades, igrejas e movimentos, sendo que já atendeu 800 instituições. Composto atualmente por sete integrantes, o grupo já trabalhou com o hiphop, realizou oficinas, debates, encontros e levou seus espetáculos para mutirões, acampamentos e ocupações, junto com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e o MST. Após percorrerem todas as regiões da capital, encontram-se, neste momento, fixos na Zona Leste, em frente ao metrô Carrão, no Clube Escola Tatuapé. No dia 19, estréiam o espetáculo Outro$ 500, que fala da história do Brasil a partir das vítimas do capital. (VR) Mais informações: www.engenhoteatral.com.br