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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 6 • Número 283

São Paulo, de 31 de julho a 6 de agosto de 2008

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br Beyrouth

Joel Coelho

BONDINHO DE SANTA TERESA

Governo Cabral quer privatizar sistema bonde

A direita avança na França

O bondinho de Santa Teresa, um dos mais queridos e pitorescos programas turísticos do Rio, está na mira do governador Sergio Cabral para ser privatizado. O governo solicitou um estudo para viabilizar a concessão do serviço. A Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa, fundada nos anos de 1980 e que obteve o tombamento dos bondinhos como patrimônio histórico e cultural em 1988, vai entrar com uma ação civil pública contra o governo Cabral. Pág. 7

A apatia dos tradicionais partidos da esquerda francesa, o Socialista (PS) e o Comunista (PCF), tem facilitado o projeto do presidente Nicolas Sarkozy de concentrar poderes para imprimir um governo fortemente liberal. Além disso, as direções de duas centrais sindicais, ligadas ao PS e ao PCF, oferecem pouca resistência, permitindo que Sarkozy retire direitos e combata violentamente movimentos sociais. Pág. 10

Juan Felipe Barriga/SP

Fracasso da Rodada de Doha ameaça legitimidade da OMC tentativas de negociação bilateral. De seu lado, os movimentos sociais presentes ao encontro comemoraram o fracasso. Eles entendem que a assinatura de um acordo significaria a cristalização de um modelo em que os países do Sul exportariam produtos agrícolas e os países desenvolvidos se manteriam como fornecedores de bens de alto valor agregado. Pág. 9 Roosewelt Pinheiro/ABr

Na Colômbia, violência é a marca de Álvaro Uribe

A tentativa de concluir a Rodada de Doha de liberalização comercial fracassou no dia 29 de julho, na Suíça. O resultado dos nove dias de reunião é reflexo do modelo ultrapassado de negociações da OMC. O consultor em Relações Internacionais, Kjeld Jacobsen, destaca que o acordo esboçado em Genebra era pouco ambicioso e prevê o fortalecimento de

Na Colômbia, a política de segurança do presidente Álvaro Uribe tem sustentação na violência, na guerra contra a guerrilha. Em entrevista ao Brasil de Fato, Carlos Lozano, membro do Partido Comunista colombiano, revela que, em quatro anos, a principal medida de Uribe para combater a criminalidade em Medellín foi bombardear as favelas. Pág. 11 Reprodução

Durante encontro em Goiás, índios Kraô defenderam a demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol

Novo capítulo da disputa em torno da Raposa Serra do Sol Em agosto, o STF deverá julgar o caso da Raposa Serra do Sol. Em maio, o órgão mandou suspender a ação de retirada dos arrozeiros e não-indígenas da região, até que a ação movida contra a homologação fosse julgada. Paulo Maldos, do Conselho Indigenista Missionário, afirma que, se o STF rever a homologação, abrirá precedentes para que terras indígenas em todo país sejam contestadas por fazendeiros e grupos econômicos. “[Estes] não aceitam que terras públicas fiquem nas mãos de comunidades tradicionais, assim como não aceitam reforma agrária”, avalia. Pág. 6 Proinpa

Mesmo com a extinção da CPMF, os preços sobem Ao contrário do que a oposição e as entidades patronais alegavam quando pretendiam extinguir a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, em dezembro de 2007, o preço das mercadorias não reduziu com o fim da contribuição. Ainda que

CULTURA Homenagens e publicações celebram o centenário de nascimento de Solano Trindade, um dos maiores poetas negros do Brasil. Pág. 8

a crise dos alimentos gere pressões sobre a inflação, os cerca de R$ 40 bilhões que seriam arrecadados pela CPMF neste ano foram, em sua grande parte, incluídos na margem de lucro das empresas, as quais nem sequer esboçaram uma diminuição dos preços. Pág. 3

MST denuncia criminalização promovida pelo Poder Judiciário O andamento da reforma agrária e o rechaço às criminalizações: essas são as duas pautas principais que mobilizaram, no dia 25 de julho, os integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Eles realizaram em 11 Estados uma Jornada de Lutas para marcar o Dia do Trabalhador Rural. “Queremos denunciar também o processo de criminalização dos movimentos sociais, que impede a discussão sobre o futuro da agricultura e enfraquece a democracia no país”, afirma José Batista de Oliveira. Pág. 4

Bolivianos celebram Ano Internacional da Batata O Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) declarou 2008 como o Ano Internacional da Batata. A Bolívia, país em que o tubérculo é a base da alimentação da população, celebrará a ocasião com uma série de atividades. Arqueólogos descobriram que a batata teve origem há 8 mil anos, às margens do Lago Titicaca, na fronteira entre o Peru e a Bolívia. Atualmente, mais de 280 mil famílias bolivianas estão envolvidas diretamente na produção das cerca de mil diferentes espécies de batata. Pág. 12


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editorial

Caso Daniel Dantas Primeiras conclusões

fante atrapalha muita gente, dois elefantes atrapalham, atrapalham muito mais. Três elefantes atrapalham, atrapalham, atrapalham muita gente, quatro elefantes atrapalham, atrapanham, atrapa

debate

crônica Dom Tomás Balduino

Maria Luisa Mendonça

Etanol, de herói a vilão Maringoni

APESAR DO esforço do governo brasileiro para convencer a comunidade internacional de que o etanol é “renovável”, entre 2007 e 2008 houve uma mudança significativa em relação a essa imagem. Recentemente, denúncias de problemas sociais e ambientais fizeram com que a União Européia reduzisse sua meta de uso de agrocombustíveis, fixada inicialmente em 10% até 2020. Em 7 de julho de 2008, o Comitê de Meio Ambiente do Parlamento Europeu aprovou a redução dessa meta para 4% até 2015, quando uma nova resolução será adotada a partir de estudos mais aprofundados sobre seus impactos. A meta de 4% inclui o uso de hidrogênio e energia elétrica nos transportes, o que significa uma redução ainda maior na utilização de agrocombustíveis. Dois dias antes da votação, a agência de notícias France Presse havia registrado uma reunião informal de ministros de energia da União Européia e descreveu que “o que parecia ser um impressionante engano por parte de políticos em Bruxelas chega a tal ponto que a imagem dos biocombustíveis mudou em um período de meses, de salvadores do clima para forasteiros do clima” (“EU ministers ‘discover’ biofuels not an obligation after all”, 5/7/2008). Segundo nota da organização Amigos da Terra, “membros do Parlamento Europeu votaram para reduzir de forma significativa as metas de promoção de biocombustíveis diante de evidências crescentes de seus impactos no preço dos alimentos, nos povos e na biodiversidade, e de sua incapacidade de combater a mudança climática”. O próprio Comitê Científico da Agência Européia de Meio Ambiente (EEA - European Environment Agency) havia recomendado a suspensão da meta de 10% na utilização de agrocombustíveis e avaliado a necessidade da realização de estudos mais abrangentes sobre seus riscos. O problema de muitas pesquisas realizadas anteriormente foi excluir os impactos ambientais do modelo de produção, de utilização de recursos naturais (como terra e água) e da pressão sobre áreas de preservação ou de produção de alimentos. Uma reportagem da revista Time observa que a maioria dos estudos tem calculado o potencial de seqüestro de carbono dos agrocombustíveis sem levar em conta o impacto da implantação de monocultivos em áreas onde a vegetação e o solo acumulam uma quantidade maior de carbono. “É como se esses cientistas imaginassem que os biocombustíveis fossem cultivados em estacionamentos”, comenta a matéria (“O mito da energia limpa”, 14/4/08). Um dos estudos mais importantes sobre a mudança nas formas de utilização da terra e sua relação com o aumento nas emissões de carbono foi publicado pela revista Science (28/ 2/2008). Os autores afirmam que “A maioria dos estudos anteriores descobriu que substituir gasolina por bio-

No Brasil, sabemos que as plantações de cana avançam rapidamente, além de “empurrar” a fronteira agrícola das fazendas de gado e soja combustíveis poderia reduzir a emissão de carbono. Essas análises não consideraram as emissões de carbono que ocorrem quando agricultores, no mundo todo, respondem à alta dos preços e convertem florestas e pastos em novas plantações, para substituir lavouras de grãos que foram utilizadas para os biocombustíveis”. O artigo cita o aumento do preço da soja como fator de influência para acelerar o desmatamento na Amazônia e estima que seu cultivo para a produção de diesel resulta em uma “dívida de carbono” que levaria 319 anos para ser compensada. De acordo com o pesquisador Timothy Searchinger, da Universidade de Princeton, “Florestas e pastos guardam muito carbono, portanto não há como conseguir benefícios ao transformar essas terras em cultivos para biocombustíveis”. Essa pesquisa demonstra que os efeitos da produção de agrocombustíveis devem ser avaliados a partir de todo o ciclo da expansão de monocultivos. No Brasil, sabemos que as plantações de cana avançam rapidamente, além de “empurrar” a fronteira agrícola das fazendas de gado e soja. Diante disso, um estudo confiável de impacto ambiental teria que incluir todo o setor agrícola. Em janeiro de 2008, o Instituto de Pesquisas Tropicais Smithsonian constatou que o etanol produzido a partir da cana-de-açúcar e o biodiesel feito a partir da soja causam mais da-

nos ao meio ambiente do que os combustíveis fósseis. A pesquisa alerta para a destruição ambiental no Brasil, causada pelo avanço das plantações de cana e soja na Amazônia, na Mata Atlântica e no Cerrado. Segundo o pesquisador William Laurance, “a produção de combustível, seja de soja ou de cana, também causa um aumento no custo dos alimentos, tanto de forma direta quanto indireta” (Agência Lusa, 9/1/2008). Um relatório da entidade The Rights and Resources Initiative (RRI) revelou que a atual demanda por alimentos, por novas fontes de energia e fibras de madeira para fabricação de papel deve causar “mais desmatamento, mais conflito, mais emissões de carbono, mais mudanças climáticas e menos prosperidade para todos” (BBC News, 14/7/2008, “Forests to fall for food and fuel”). A divulgação desses estudos confirma as denúncias de organizações sociais e demonstra a mudança de tom no debate internacional. Como observou o jornal El País, “diversos centros de pesquisa e a maior parte dos grupos ecológicos e de direitos humanos emitem diariamente declarações, afirmando que os biocombustíveis não contribuem para combater as mudanças climáticas, que provocam graves impactos ambientais em regiões de alto valor ecológico, alteram o preço dos alimentos e que consolidam um modelo agrícola de exploração trabalhista e alta dependência de grandes multinacionais” (“Biocombustíveis perdem o rótulo ecológico”, 31/3/2008). Brasil, há evidências de sobra para comprovar estes impactos. Como lembra a sabedoria popular, a pior cegueira é daqueles que não querem ver. Maria Luisa Mendonça é jornalista e coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

O atraso do Ministério Público do RS AO PROPOR a extinção do MST, o Ministério Público do Rio Grande do Sul fez uma surpreendente auto-revelação. Este setor sulino desta nova instituição pública, saudada como defensora da sociedade civil, mostrou-se como um velho quisto que conseguiu a façanha de preservar dentro de si o atraso de 40 anos atrás. Este grupo do Ministério Público está pensando e agindo hoje exatamente como os militares da ditadura de 1964. Conforme escreveu magistralmente José de Sousa Martins, “O golpe de Estado foi dado contra a possibilidade dos trabalhadores rurais chegarem à cena política e promoverem, com sua participação, seus direitos e suas reivindicações, uma verdadeira revolução política na organização do Estado brasileiro... A maioria dos militares nunca teve discernimento para compreender que a entrada dos trabalhadores rurais na cena política teria quebrado os últimos grilhões que atavam e atam o Brasil aos processos mais imobilistas da tradição escravista, oligárquica e senhorial”.( A Luta pela Terra, Paulus, pág. 72). A finalidade da lei iníqua da segurança nacional, inspirada na Escola das Américas, é principalmente a de quebrar a espinha dorsal de qualquer organização camponesa em qualquer parte do país. Eis aí o que chegou hoje à tona no Rio Grande do Sul. Tudo é possível neste mundo! E já que se fala em controle externo do Judiciário, por que não começar a pensar num instrumento adequado que enfrente este tipo de fenômeno estranho? Acredito que as diversas manifestações públicas recentes de juristas e de intelectuais apontam nesta linha. No ditado do povo “há males que vêm pra bem”. Uma forma de tirar partido positivo desta atitude nefasta do Ministério Público do Rio Grande do Sul seria a criação de um controle do Ministério Público. O crime do MST e de todas as organizações camponesas, segundo estes senhores, é de se meterem em política. É o mesmo que incriminar os levantamentos das multidões populares da Bolívia que enfrentaram e venceram politicamente os incrustados no poder, os entreguistas do patrimônio do povo às transnacionais. É o mesmo que incriminar a massa do povo venezuelano que venceu politicamente o golpe das elites contra o governo democraticamente eleito.

O crime do MST e de todas as organizações camponesas, segundo estes senhores, é de se meterem em política E por falar em América Latina, o Brasil se destaca hoje neste continente como o país onde a sociedade civil dá o exemplo da maior riqueza sócio-econômica-política e cultural precisamente através da organização dos diversos movimentos camponeses, especialmente do MST, que, desde a sua criação, vem lutando pela democratização da terra. Apesar dessa luta incessante, infelizmente o quadro que se vê hoje no campo é de desordem e de injustiça. Desordem por causa da gigantesca grilagem, isto é, a apropriação ilegal e ilícita do solo por brasileiros e estrangeiros, em grande parte ignorada pela União. Injustiça por causa da devastação da natureza, com a implantação da monocultura do agronegócio em vista do lucro. Injustiça porque até hoje não tivemos a reforma agrária que, conforme a Constituição de 1988, é o verdadeiro caminho do cumprimento da “função social da propriedade terra”. Injustiça por causa da exclusão da massa de quatro milhões de camponeses que precisam da terra para viver e trabalhar, exclusão que se dá através da violência institucionalizada e das milícias privadas, violência dos homicídios, das expulsões maciças da terra, permitindo o acesso à terra somente pela via do trabalho escravo. Se, com a atuação patriótica dessas organizações camponesas, ainda assistimos a este quadro de desordem e de injustiça, imaginem o Brasil sem esta presença? Temos, portanto, que agradecer a Deus por esses movimentos do campo e, juntamente com a maioria de nosso povo, dar todo apoio a estas organizações camponesas, inclusive ao MST, e defendê-las contra os estrategistas do atraso que, como os militares de 64, ignoram a necessidade da subversão para que os excluídos possam, com dignidade, participar da condução dos destinos de nossa sociedade. Dom Tomás Balduino é bispo emérito de Goiás (GO) e ex-presidente nacional da CPT.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

Sem CPMF, preços e arrecadação sobem ECONOMIA Contrariando o discurso da oposição, fim do imposto do cheque não foi repassado para o consumidor Fabio Pozzebom/ABr

Renato Godoy de Toledo da Redação OITO MESES após a maior derrota do segundo mandato do governo Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso, o fim da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), o argumento da oposição e de entidades patronais para defender a extinção do tributo não pode ser confirmado na economia brasileira. De acordo com eles, a suspensão do imposto permitiria às empresas diminuir o preço final das mercadorias, beneficiando duplamente os consumidores, que deixariam de pagar os 0,38% sobre as movimentações financeiras e comprariam produtos mais baratos. Mas, pelo contrário, a pressão inflacionária teve uma das maiores altas do Plano Real. Os R$ 40 bilhões que seriam arrecadados pela CPMF neste ano foram, em sua grande parte, incluídos na margem de lucro das empresas, as quais nem sequer esboçaram uma diminuição dos preços. Mas, para alguns analistas, parte dos efeitos do fim da CPMF pode estar sendo ocultada pela pressão inflacionária causada pela alta dos alimentos. Ao mesmo tempo, a arrecadação de impostos cresceu 10% no primeiro semestre deste ano, em relação ao mesmo período de 2007, quando a CPMF ainda estava vigente. Os principais motivos para o recorde de recolhimento foram o crescimento econômico e a alteração de alíquota e base tributária do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Essa contribuição sofreu alterações em janeiro, logo após o revés do Planalto no Congresso. A ação do governo onerou o setor financeiro e dificultou o crédito, o que causou descontentamento entre as associações de banqueiros. O aumento da arrecadação tem sido o principal argumento da oposição para rechaçar a proposta da base governista que pretende criar um novo tributo destinado a aportar as perdas orçamentárias oriundas do fim da CPMF.

Em defesa da CSS, o deputado petista Pepe Vargas afirma que “o imposto tem um viés de solidariedade social e justiça tributária, pois apenas 5% da população terá que pagar o tributo” Para o economista aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Guilherme Delgado, o aumento de arrecadação é um fenômeno que já podia ser observado antes da extinção do imposto. “Isso está ligado ao crescimento econômico e ao grau de inadimplência do fisco e das obrigações dos consumidores. Supondo que normalmente o grau de adimplência seja de 70%, em períodos de crescimento econômico ele chega a 85%. Por isso que há essa virtuosidade da arrecadação, que possibilita que ela tenha uma taxa de aumento maior do que o total da economia”, ilustra.

CSS A Contribuição Social para a Saúde (CSS), aprovada na Câmara em junho, é apontada por opositores como a “ressurreição” da CPMF, apesar de algumas diferenças em relação ao formato do antigo tributo. Se aprovada no Senado, a CSS incindirá em 0,1% sobre as movimentações financeiras, em

Quanto

40 bilhões

de reais é a quantia que seria arrecadada em 2008 com a CPMF vez dos 0,38% da sua “antecessora”. Ficariam isentos da taxação aqueles com salários inferiores a R$ 3.038. Tal como à época em que o debate em torno da CPMF se acirrou, a esquerda tem visões diferentes sobre a r eedição do chamado imposto do cheque. Para alguns setores, sobretudo os mais próximos ao governo, a CSS seria uma versão mais distributiva da CPMF, já que o tributo antigo isentava apenas aqueles com rendimentos inferiores a três salários mínimos.

“Não adianta isentar por faixa de salário, porque as empresas vão repassar a taxa para o preço final do consumidor” Enquanto a CPMF tinha três destinações diferentes – Saúde (0,20%), Previdência Social (0,10) e Bolsa Família (0,08) –, a CSS destinaria toda sua arrecadação para a Saúde. Mesmo os 20% que poderiam ser desviados pela Desvinculação de Receitas da União (DRU, que foi prorrogada na sessão seguinte à que derrubou a CPMF) seriam obrigatoriamente repassados ao Fundo Nacional de Saúde. Anualmente, a CSS renderia R$ 11 bilhões aos cofres públicos. A oposição argumenta que o valor poderia ser coberto pelo incremento da arrecadação apresentado no primeiro semestre.

SUS O deputado federal Pepe Vargas (PT-RS) foi relator de um projeto substitutivo da Emenda 29, que trata de destinações financeiras de recursos da Saúde e tem como um dos itens a criação da CSS. Na opinião do parlamentar, o recurso que deixou de ser arrecadado pelos cofres públicos foi apropriado por agentes privados e retirou verbas do Sistema Único de Saúde (SUS). Ao explicar por que defende a CSS, o petista faz uma defesa do SUS. “Mesmo aqueles que têm plano de saúde procuram o SUS. As urgências e emergências são atendidas pelo SUS, assim como os transplantes”, afirma. Sobre as diferenças entre os tributos, Vargas aponta avanços contidos na CSS. “Esse imposto tem um viés de solidariedade social e justiça tributária, pois apenas 5% da população terá que pagar o tributo. Então, aqueles que podem arcar com um plano de saúde contribuirão para os que não podem. É um imposto muito importante para a Saúde”, resume. A análise de Vargas, no entanto, encontra resistência em alguns setores da esquerda. O economista Rodrigo Ávila, da Campanha pela Auditoria Cidadã da Dívida, acredita que a aprovação da CSS não irá promover uma “justiça tributária”, porque a isenção para aqueles com rendimento abaixo de R$ 3.038 atinge apenas os trabalhadores com registro em carteira, que receberão a restituição do valor gasto com o tributo. “Cerca de 50% da população está na informalidade. Além do que, não adianta isentar por faixa de salário, porque as empresas vão repassar a taxa para o preço final do consumidor. Então, o trabalhador pode pagar por ela no preço do produto e em transações financeiras, se for informal”, explica.

Aprovada na câmara em junho, a CSS é apontada como uma nova versão da CPMF

Reforma tributária do Congresso ainda não é a ideal, diz petista Wilsom Dias/Abr

Economistas temem que verba da Seguridade Social deixe de ter garantias constitucionais da Redação A extinção da CPMF, em dezembro de 2007, acelerou o debate no Congresso acerca de uma reforma tributária. No entanto, o esboço do que vem sendo formulado até agora não aponta para uma mudança efetiva no sistema tributário brasileiro, no sentido de tornar a cobrança de impostos um instrumento de distribuição de renda. Outra polêmica alimentada pela proposta é a suposta desvinculação de verbas que têm hoje a Seguridade Social como destino. De acordo com uma proposta inicial, um novo tributo, o Imposto sobre Valor Adicionado Federal (IVA) seria criado para substituir contribuições que têm destinação obrigatória para a Seguridade Social, prevista pelo artigo 195 da Constituição de 1988. O Programa de Integração Social (PIS), a Contribuição para Financia-

“Se, por um lado, a desoneração da folha de pagamento facilita a contratação, por outro, ela tira dinheiro da Previdência. Para cada ponto percentual diminuído na contribuição patronal, o sistema previdenciário deixa de arrecadar R$ 3,1 bilhões” mento da Seguridade Social (Cofins), destinados ao Seguro-desemprego e à Seguridade Social, respectivamente, seriam incluídos no IVA Federal. O projeto deve estabelecer que o repasse do novo tributo para a Seguridade não pode passar de 38% do total arrecadado pelo tributo. A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), também destinada à Seguri-

Para o deputado Pepe Vargas, imposto tem “viés de solidariedade social e justiça tributária”

dade, seria extinta e incorporada ao Imposto de Renda declarado pelas empresas.

Polêmica O economista Guilherme Delgado se opõe à proposta por considerar que ela desobriga o Estado a garantir os recursos da Seguridade Social. “Do ponto de vista dos setores populares, essa é maior crítica à proposta. Se a questão do orçamento da Seguridade não for resolvida, a reforma será um enorme retrocesso. O gasto com a Seguridade tem um efeito equalizador; se tirar recurso desse sistema, a desigualdade aumenta”, posiciona-se. Já o deputado federal Pepe Vargas (PT-RS), que participa da comissão que elabora a reforma, afirma que os recursos da Seguridade, além de estarem garantidos pelo projeto, podem aumentar a receita, em função de um provável aumento na base tributária. “Não concordo com essa análise [de Delgado]. Ela é parcialmente verdadeira, pois os recursos da Seguridade estão garantidos constitucionalmente. Também pelo fato de que a desoneração da folha de pagamento [referente ao Salário-Educação, equivalente a 2,5% da folha] vai deixar a contratação mais barata, possibilitando mais contratações. Com mais empregados, as contribuições para a Seguridade aumentarão. Há um cálculo que aponta um crescimento no total arrecadado, com base na nova composição tributária”, ressalta. Sérgio Miranda, ex-deputado federal (PDT-MG),

acredita que a proposta ataca os recursos da área social. “A Seguridade é uma das conquistas mais avançadas da Constituição. Com ela, foram asseguradas as igualdades de direito e a multiplicidade de fontes de recursos. Não adianta o governo dizer que isso não vai mudar nada. Não se pode discutir política social sem discutir financiamento”, contesta.

Previdência Para Pepe Vargas, a principal preocupação em torno da reforma tributária não deveria ser a possível “desconstitucionalização” de recursos da Seguridade, mas sim a desoneração da contribuição previdenciária das empresas. Hoje, as empresas destinam 20% da folha para a Previdência. O governo sinaliza que pretende reduzir gradativamente essa porcentagem, chegando a 14% em seis anos. “Se, por um lado, a desoneração facilita a contratação, por outro, ela tira dinheiro da Previdência. Para cada ponto percentual diminuído na contribuição patronal, o sistema previdenciário deixa de arrecadar R$ 3,1 bilhões. Em seis anos, teria uma perda de R$ 18,6 bilhões. Essa quantia não seria suprida pelo aumento de trabalhadores registrados. O governo afirma que o Tesouro cobriria essa perda, mas nós queremos que isso seja especificado, para sabermos qual será a fonte de custeio substitutiva”, revela. Para Sérgio Miranda, a medida pode servir de pretexto para uma nova etapa

da reforma da Previdência. “Isso pode aumentar o que eles chamam de déficit da Previdência. Se tira de um lado, tem que compensar de outro. E isso não foi feito. Pode ser que não tenhamos problemas agora, mas no futuro o governo pode se arrepender amargamente”, analisa Miranda.

Regressividade Mesmo defendendo as alterações no sistema de cobrança de impostos, o deputado Pepe Vargas afirma que a reforma tributária apresentada ainda está longe do ideal, mas ela representa um avanço dentro da atual “correlação de forças”. O deputado acredita que essa é apenas uma primeira etapa da reforma, que visa simplificar o sistema de cobranças. “Esse não é o nosso projeto ideal. Sabemos que, com ele, não partiremos para uma justiça tributária efetiva, já que a regressividade e os impostos indiretos, sobre o consumo, continuarão sendo as características predominantes”, considera. Vargas prevê que a reforma será votada após as eleições municipais de outubro. A partir daí, segundo ele, poderá ser realizado um debate sobre a estrutura injusta do sistema tributário brasileiro. “Queremos aumentar a faixa de isenção do imposto de renda e ter um universo maior de alíquotas [atualmente, há apenas duas faixas]. A bancada do PT, assim que surgiu a discussão sobre a reforma tributária, protocolou um projeto de imposto sobre grandes fortunas”, conta. (RGT)


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brasil

MST faz jornada contra criminalização MOBILIZAÇÃO Movimento promoveu atos em 11 Estados no dia 25 de julho para denunciar ação do Ministério Público gaúcho Douglas Mansur/Novo Movimento

Dafne Melo da Redação Para marcar o Dia do Trabalhador Rural, 25 de julho, movimentos ligados à Via Campesina realizaram uma Jornada Nacional por Reforma Agrária, com uma série de mobilizações em 11 Estados do país. Foram ocupados nove escritórios do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), nas cidades de Itapeva (SP), Brasília (DF), João Pessoa (PB), Goiânia (GO), Recife (PE), Porto Alegre (RS), São Luís (MA), Maceió (AL) e Salvador (BA). Marchas foram feitas em Francisco Beltrão (PR) e Fortaleza (CE). Os movimentos afirmam que a reforma agrária está totalmente parada e exigem o assentamento de 140 mil famílias e a criação de um programa de agroindústria para assentados. “Só a reforma agrária pode resolver o problema da crise do preço dos alimentos, com o fortalecimento de um modelo de produção baseado em pequenas e médias propriedades, que produzem 70% dos alimentos consumidos no país”, defende José Batista de Oliveira, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). As mobilizações também buscam rechaçar as recentes investidas, por parte do Ministério Público do Rio Grande do Sul, de aumentar a repressão contra o MST. “Queremos denunciar o processo de criminalização dos movimentos sociais, que impede a discussão sobre o futuro da agricultura e enfraquece a democracia no país”, afirma Batista. Outro ponto de pauta foi o protesto contra a prisão do

Em coletiva de imprensa, o jurista Fábio Konder Comparato denuncia a criminalização do MST

“O Ministério Público não pode estar a serviço de partidos políticos, mas parece que é isso que está acontecendo no Rio Grande do Sul”, alerta advogado do movimento advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Pará, José Batista Gonçalves, condenado à prisão por participar de protesto no Incra.

Coletiva Para abordar esse tema da criminalização, representantes do MST, advogados e entidades de direitos humano rea-

lizaram, no dia 24, uma coletiva de imprensa em São Paulo (SP), na qual criticaram o Ministério Público do Rio Grande do Sul e do Ministério Público Federal (MPF). O advogado do movimento, Aton Fon Filho, repudiou as ações judiciais impetradas contra o movimento e anunciou o envio de denúncias à Organização das

Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA). Para Fon, o movimento tem sido vítima de uma articulação “que tenta nos colocar como foras-da-lei e criminaliza as ocupações de terra como sendo atos de terrorismo. A mídia também tem publicado calúnias a nosso respeito”. O advogado faz um alerta: “O Ministério Público não pode estar a serviço de partidos políticos, mas parece que é isso que está acontecendo no Rio Grande do Sul”. Nos últimos dois anos, despejos de áreas cedidas, proibição de qualquer deslocamento

de famílias acampadas, uso da violência para dispersar mobilizações e criminalização de lideranças e de movimentos sociais têm sido a estratégia do Ministério Público Estadual e da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, Estado governado por Yeda Crusius (PSDB), para dissolver o MST. No dia 29 de julho, cerca de 150 policiais despejaram 70 famílias na cidade de Gramado dos Loureiros, na região Noroeste do Rio Grande do Sul. Parte das famílias estão acampadas na faixa de domínio da RS-324 e outra parte em um assentamento do MST no local.

Carazinho Com base no relatório do MP gaúcho, o Ministério Público Federal em Carazinho (RS) acusa oito trabalhadores rurais de crimes contra a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983), que define os crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social, sob a ótica de repressão do regime militar. O advogado Aton Fon chama atenção para o fato do processo do MPF de Carazinho correr em sigilo. “Ao fazer isso, afirma-se que esse processo não interessa a sociedade”, nota. Segundo ele, com o sigilo, “busca-se manter um véu sobre futuras ilegalidades e crimes que possam ocorrer contra os direitos humanos”. Na coletiva, o advogado fez um apelo aos jornalistas para que denunciem essa situação e ajudem a suspender o segredo de justiça. O jurista e professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Fábio Konder Comparato, classificou como “delírio” o enquadramento de integrantes do MST na lei de segurança nacional. “Mas é um delírio com o objetivo claro de defender a indústria de papel do Rio Grande do Sul”, observa. Comparato critica o fato de se tentar julgar o MST por ameaçar a integridade territorial do país, enquanto “12 quilômetros quadrados de terra são adquiridos por estrangeiros todos os dias. Alguma autoridade pública levantou isso?”. Para ele, o episódio evidencia que Ministério Público está se guiando por uma ideologia que privilegia a superposição da propriedade sobre a vida das pessoas. (Com informações do MST – colaborou Tatiana Merlino, da Redação)

ANÁLISE Leonardo Melgarejo

E agora, presidente? Sem-terra esperam pronunciamento do governo federal sobre os verdadeiros criminosos do Rio Grande do Sul Maria Orlanda Pinassi Em outubro de 2007, circulou na sociedade gaúcha o Manifesto de São Gabriel – assinado pelo Sindicato Rural da cidade, um afiliado da Federação de Agricultores do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul). O documento que abre com a seguinte queixa: “Nós, produtores e produtoras do Estado do RS, reunidos em São Gabriel, calcados na inabalável crença na democracia e no Estado de direito como base intransponível para o crescimento sustentado da nação, na ocasião em que nos reunimos para receber em nossa terra a presença de Sua Excelência o Ouvidor de Se-

É, sobretudo, brutalidade o que comprovam as denúncias e imagens captadas das operações de despejo de acampamentos legalmente ocupados gurança Pública do RS, Adão Paiani, vimos através deste Manifesto expressar, de maneira clara e veemente, nossa indignação frente à forma canhestra, dúbia e beligerante com que os entes do Estado conduzem a Política Nacional de Reforma Agrária no Estado do Rio Grande do Sul.” As notícias dão conta de que

o protesto dos ruralistas gaúchos – sócios-menores das poderosas papeleiras (Aracruz, Votorantim e Stora Enso possuem juntas mais de 150 mil hectares de terra para plantio de pinus e eucalipto no Rio Grande do Sul, e a previsão é atingir um milhão de hectares até 2015) que avançam sobre as terras do Estado – vem sendo ouvido e seus apelos, atendidos. Bom exemplo é o informe nº 298 da Farsul (ano 22, julho de 2008), que estampa a manchete “Estado de direito chega ao Estado” e um indisfarçado júbilo pelas recentes ações do Estado contra o MST. Esse é o teor das informações fornecidas pela mídia que escolheu o caminho da expiação. Daí um profilático silêncio paira sobre o “humanismo“ que costuma caracterizar essa entidade patronal riograndense, tão evidente em outro Manifesto de São Gabriel, de 2003, distribuído pelos mesmos produtores e produtoras sequiosos de “democracia”: “Se tu, gabrielense amigo, fores procurado por um faminto do MST, dê-lhe um prato de comida com três colheres cheias de qualquer veneno para rato. Se possui um avião agrícola, pulveriza à noite 100 litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos. Sempre terá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles. Se és proprietário de terras ao lado do acampamento, usa qualquer remédio de banhar gado na água que eles utilizam para beber. Rato envenenado bebe mais água ainda. Se possui uma arma de caça cali-

Operação de guerra: Brigada Militar gaúcha se prepara para invadir área ocupada pelo MST em São Gabriel (RS), em maio deste ano

Logo na entrada da cidade, [os trabalhadores rurais] foram recepcionados por um ostensivo aparato policial que os submeteu – um a um, incluindo crianças – à severa revista bre 22, atira de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo a 1.200 metros de distância”. Eis o “Estado de direito” evocado pelo Ministério Público do RS* para criminalizar e “quebrar a espinha dorsal do MST”. Eis o “Estado de direito” a que aspira a ofensiva reacionária do Estado ora governado por Yeda Crusius (PSDB) e pelos métodos poucos ortodoxos do comandante da Brigada Militar, coronel Paulo Mendes. Nesse quadro, a “democracia” aludida só logrará êxito se precedida de vigilante “limpeza social” executada, preferencialmente, com violência exemplar. É, sobretudo, brutalidade o que comprovam as denúncias e ima-

gens captadas das operações de despejo de acampamentos legalmente ocupados, de dispersão das colunas, de repressão sobre as ações das mulheres da Via Campesina no dia 8 de março e de outras tantas manifestações organizadas pelo movimento. Apesar disso, e a exemplo de outros Estados do país, integrantes do MST do Rio Grande do Sul não se intimidaram com a violência física nem com os ataques morais sofridos e, no dia 22 de julho, iniciaram uma marcha, a primeira desde a divulgação das proibições relacionadas pelo MP. Representando todos os acampamentos do MST no Estado, cerca de 600 trabalhadores e 150 crianças partiram da Fazenda Santa Rita rumo à capital Porto Alegre.

Logo na entrada da cidade, foram recepcionados por um ostensivo aparato policial que os submeteu – um a um, incluindo crianças – à severa revista. Ao invés de medo, transpareceu ainda mais a estatura moral e a legitimidade do movimento diante da tropa de choque esmaecida. Às treze horas, a marcha entra na sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para participar de audiência pública com o superintendente Mozart Dietrich e exigir o cumprimento do acordo de assentar 200 famílias ao longo deste ano. Suas justificativas, mais uma vez, recaíam sobre as exigências dos ruralistas de São Gabriel, que pretendem que a região seja considerada “área livre de assentamento”, para o que lançam mão de toda sorte de ameaças contra proprietários em dívida com a União para que não vendam suas terras para o órgão da federação. Em duas horas e meia de reunião, nenhum fato novo ou alentador foi dirigido à representação dos acam-

pados presentes na plenária. Em contrapartida, assistiram ao lamentável reconhecimento de impotência do órgão frente ao futuro da política de reforma agrária no Estado. Desde então, os acampados ocupam o prédio do Incra na capital esperando que o governo federal se pronuncie em relação ao obscurantismo do poder público gaúcho, aos verdadeiros criminosos do Estado e tome uma decisão mais efetiva para a concretização da reforma agrária. * Em audiência pública da Comissão dos Direitos Humanos do Senado Federal, realizada no dia 24 de junho, foi divulgada ata do Conselho Superior do MP que deliberou a formulação de uma política de intervenção da procuradoria pelo fim do MST e de suas escolas, e pela investigação do Incra, da Conab e da Via Campesina. Maria Orlanda Pinassi é professora da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), campus Araraquara.


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Diogo Leitão e Miriam Mainard ANÁLISE DA MÍDIA Ou quando a Polícia Federal coloca um dos seus na cadeia Memélia Moreira de Brasília (DF) A IMPRENSA brasileira, mais que a internacional, é uma grande usina de experimentos. Nas “cozinhas” de jornais, como chamamos a redação, receitas e mais receitas são testadas quase que diariamente. Nem sempre as melhores chegam à mesa. Ora falta pimenta, alguns trazem açúcar demais e as iguarias se tornam cada dia mais raras. Sem contar os fenômenos que produzem as mais descosidas análises e se agrupam num pacote chamado “cientista político”. Estes comentam desde a contusão do genial Robinho (e são capazes de jurar que a culpa é do governo), até os intrincados labirintos do poder, como se fossem oniscientes e onipresentes. E com tanta empáfia que chegam a enganar os desavisados. Na maioria das vezes, erram seus prognósticos, mas continuam despejando toneladas de palavras nos olhos e ouvidos de pessoas que querem apenas tomar

conhecimento dos fatos e ver respondidas aquelas simples perguntas formuladas por Cícero, da Roma antiga: Quê? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê? Com a popularização da internet, cada pessoa com acesso a um computador tornou-se, potencialmente, um jornalista. Mas não é desses que vamos falar, até porque o espaço é pouco. Fiquemos com os chamados profissionais da imprensa. Mesmo que discordemos deles, devemos admitir que escrevem bem, têm fontes seguras de informação e sustento, mas se dedicam, principalmente, a desinformar, confundir e, mais que isso, dilapidar reputações, principalmente se estas não se circunscrevem ao território das diferentes elites que a cada dia são descobertas e saltam das páginas das colunas sociais, onde saltitam em ilhas paradisíacas, para as páginas policias, com ou sem algemas. É, por exemplo, o caso de dois jornalistas muito famosos: Miriam Leitão e Diogo Mainardi. A primeira tem uma história mais surpreendente. Desertou de seus ideais de juventude, quando chegou inclusive a ter veleidades de guerrilheira durante a ditadura militar e chegou a ser presa e torturada e, depois de toda essa trajetória corajosa, assumiu uma fide-

lidade canina aos interesses do que há de pior no Brasil. O caso do agora réu Daniel Dantas desnudou os últimos resquícios de jornalismo que restavam nessa que foi uma brilhante repórter. No dia 8 de julho, quando o país acordou com a notícia e as imagens da prisão de Dantas e uma gangue de fazer inveja aos saudosos e inocentes irmãos Metralha, a brilhante jornalista não conseguiu entender o que estava acontecendo. Chegou a gaguejar durante uma emissão na rádio CBN quando comentou o caso e confessou, “não estou entendendo...”. Até seus colegas na empresa estranharam o comportamento da brilhante repórter. Foi o caso de Carlos Alberto Sardenberg. Num momento que lembrou o triste episódio do ministro Rubens Ricúpero na campanha presidencial de 1994 (Ricúpero, sem saber que havia um canal de microfone aberto por esquecimento, numa conversa amena com um jornalista da TV Globo, confessou “o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde”, referindo-se a seu candidato Fernando Henrique Cardoso), Sardenberg, depois de ouvir a senhora Leitão, disse: “ela está estranha hoje”. A conversa era para se restringir ao estúdio, mas havia um canal de microfone aberto e foi captada pelos ouvintes.

Ainda insatisfeita com a prisão de Dantas, a jornalista, no dia seguinte, antes da concessão de habeas corpus brindou os ouvintes e telespectadores dizendo, “passadas mais de 24 horas das prisões, a denúncia da Polícia Federal ainda não está muito clara...”. Não está muito clara para quem, cara-pálida? Posso explicar: Dantas é o tipo de pessoa que, ao ser preso, não se surpreendeu, e que a parcela da sociedade que tem acesso à informação acha que foi quase tarde demais. No afã de defender Dantas, a senhora Leitão moveu mundos e fundos, pesquisou com afinco e, finalmente, chegou à incrível conclusão de que o tal réu não é um banqueiro, apenas usa a marca Opportunity. Daí... deve ter concluído com seu fecho velcro, se não é banqueiro, não deve ter cometido crimes financeiros. Só faltou contar uma do papagaio... Mas Miriam Leitão tem um concorrente de peso nesse jornalismo de sabujo. Trata-se do jornalista (?) Diogo Mainardi. De seu veículo, a revista Veja (e posso falar com precisão porque trabalhei nesse semanário) diz-se que, “por questão de higiene, é melhor não ler”. A especialidade de Mainardi é demolir reputações, principalmente de colegas de profissão, a exemplo do jornalis-

ta Franklin Martins e pessoas de bem. Preconceituoso, já chegou a dizer que, se o convidarem para ir, por exemplo, a Cuiabá fazer uma palestra para a qual lhe pagassem R$ 10 mil, daria 15 mil do seu próprio bolso “para não ter de ir a Cuiabá”. Defensor incansável de Dantas, seu nome consta no relatório da operação Satiagraha quando dirigida pelo delegado Protógenes Queiróz. Dele, o intimorato delegado diz que “colaborou com a organização criminosa”. E agora que seus diletos amigos amargaram algumas horas de uma cela fria, tenta se defender dizendo que já denunciou a tal organização criminosa. Mas esses dois são apenas um pequeno exemplo de uma imprensa que prefere comentar a dieta alimentar

da ministra Dilma Rousseff (como fez o próprio Mainardi), a mostrar a luta contra o trabalho escravo, a luta pela reforma agrária e a ascensão das classes D e E a uma vida menos indigna.

MST ocupa fazenda de Daniel Dantas no Pará Juliano Domingues de São Paulo (SP) Desde o dia 28 de julho, cerca de mil integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) permanecem acampados na Fazenda Maria Bonita, no município de Xinguara (PA). A área, que fica a 25 quilômetros de Eldorado dos Carajás, foi comprada ilegalmente em 2005 pela empresa Agropecuária Santa Bárbara Xinguara, pertencente ao grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas – hoje envolvido em escândalos de corrupção. Segundo o próprio Instituto de Terras do Pará (Iterpa), a área pertence ao Estado, ou seja, é pública e não podia ter sido vendida. De acordo com o integrante da coordenação nacional do MST, Ulisses Manaças, a ocupação é apoiada por vários integrantes de organizações da sociedade civil e serve para denunciar um processo já recorrente de compra de terras públicas por grandes empresas. “São grupos financeiros que, quando não controlam eles mesmos essa prática [de compra], criam empresas fantasmas para fazer as transações. A maioria dessas terras é pública. O Iterpa já se manifestou dizendo que se trata de uma terra do Estado que entrou em um pacote do grupo denominado Santa Bárbara, ligado ao Daniel Dantas, que ficou responsável por comprar terras no sul e no sudeste do Pará”, afirma. Manaças espera que a sociedade se mobilize para pressionar a Justiça, para que ela “dê o destino correto a esse bando, desbaratado pela Polícia Federal”.

Jornada A ação integrou a Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária, realizada em torno do Dia do Trabalhador Rural, 25 de julho, que denuncia a lentidão no processo de criação de assentamentos, as promessas não cumpridas e a prioridade do governo pelo modelo do agronegócio. As ações condenam também a criminalização dos movimentos sociais, especialmente no Rio Grande do Sul e no Pará. “No dia 25 de julho, dia nacional do trabalhador rural, resolvemos ocupar uma das fazendas até então tidas como do grupo Santa Bárbara, por entendermos que lugar de ladrão é na cadeia e as terras públicas são para a reforma agrária”, completa Manaças. (Radioagência NP)


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Roosewelt Pinheiro/ABr

saiu na agência Mexicanos rejeitam reforma petroleira Mais de 80% dos mexicanos se opõem às mudanças na legislação do petróleo propostas pelo presidente Felipe Calderón. A consulta foi organizada por partidos de esquerda, sobretudo a aliança que apoiou o candidato Lopez Obrador nas eleições de 2006. Calderón quer permitir a participação de capital privado na estatal Pemex, além de abrir o setor de petróleo para a atuação da iniciativa privada. O projeto do governo mexicano tramita no Congresso e deve ser apreciado em setembro. Cerca de 1,3 milhão de cidadãos participaram da consulta, realizada no dia 27.

Constituição Cidadã no Equador

Durante encontro realizado em Goiás, índios defenderam a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol

A Assembléia Nacional Constituinte aprovou, no dia 24 de julho, um projeto de Constituição com importantes avanços sociais e políticos. Ratificado com folga, 94 votos a favor e 32 contra, o texto será agora submetido a um referendo em 28 de setembro. A nova Carta Magna consagra o direito à água como fundamental e declara o Estado como plurinacional. Para o presidente Rafael Correa, o texto corresponde aos anseios de milhões de equatorianos que apoiaram decididamente os eixos da revolução cidadã.

Privatização da Amazônia

STF julga o caso da Raposa Serra do Sol INDÍGENAS Se rever homologação, órgão abre precedente para que outras terras sejam contestadas Dafne Melo da Redação MAIS UM capítulo da longa luta pela homologação das terras indígenas de Raposa Serra do Sol deverá ocorrer no mês de agosto. A pauta será uma das primeiras a ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após a volta de seu recesso. A máxima instituição jurídica do país irá definir se a retirada dos rizicultores e outros não-indígenas deve ser levada a cabo na região; os ministros poderão ainda determinar uma flexibilização das demarcações ou até suspender a homologação, possibilidades vistas pelo conjunto dos movimentos sociais como extremamente preocupantes. Para pressionar o órgão, movimentos e entidades indígenas e a Via Campesina irão fazer uma série de atos nos dias 12 e 13 de agosto, ocasião em que entregarão um abaixo-assinado ao STF. Para Paulo Maldos, assessor político do Conselho Indígena Missionário (Cimi), a decisão será um importante momento do Supremo mostrar que não tem uma posição classista, como tem ficado demonstrado com a atual Operação Satiagraha. A luta dos povos originários para que seja reconhe-

“Os arrozeiros, ligados a grandes grupos econômicos, não aceitam que terras fiquem de fora do mercado. Toda terra tem que ser disponível para eles, seja onde e qual for, não aceitam terras públicas nas mãos de comunidades tradicionais, assim como não aceitam reforma agrária” cido o direito de permanência na Raposa Serra do Sol foi finalmente reconhecida em 2005 com a homologação [ver cronologia]. Após três anos de diversas contestações judiciais e muitos conflitos, com forte e violenta resistência por parte de um grupo formado por cinco arrozeiros que se recusam a sair do local, o STF interrompeu, em abril, a operação da Polícia Federal que estava retirando os invasores das terras indígenas. Os fazendeiros alegam que o plantio de arroz é responsável por 6% da renda do Estado e que a saída do local geraria danos econômicos ao Estado de Roraima.

Precedentes Maldos explica que todas as etapas do processo de reconhecimento de uma terra como indígena – identificação, delimitação, demarcação e homologação – obedeceram a todas as regras e demandas legais. “Ninguém contesta o laudo antropológico que dá base a todo processo, ou seja, ninguém contesta que, historicamente, a terra é indígena. Então, para barrar vão apontar pequenas fa-

lhas administrativas”, avalia. Caso o STF não entenda a questão dessa forma, o grande temor é que fique aberto juridicamente um precedente para que outras homologações de terras indígenas sejam revistas. “Seria voltar à estaca zero. O Estado brasileiro cumpriu todas as etapas e o STF reverte tudo?”, questiona o assessor do Cimi, que alerta que esse retrocesso também abre possibilidade de se contestar outras áreas pertencentes a todos povos tradicionais, como quilombolas, seringueiros e ribeirinhos. Para Maldos, o que está em jogo, no fundo, são projetos de desenvolvimento opostos. “Os arrozeiros, ligados a grandes grupos econômicos, não aceitam que terras fiquem de fora do mercado. Toda terra tem que ser disponível para eles, seja onde e qual for, não aceitam terras públicas nas mãos de comunidades tradicionais, assim como não aceitam reforma agrária”, critica. Um outro argumento constante dos arrozeiros tem sido o fato de que a demarcação fica em uma faixa de fronteira, o que feriria a soberania nacional. Maldos assinala, entretanto, que, se a preocupação fosse com a soberania nacional, nada mais lógico do que deixá-las com os povos originários. “Quando a terra é homologada, ela é da União, mas com usufruto dos indígenas. As terras continuam a pertencer à nação. O Estado pode e de-

ve monitorar, fiscalizar, dentro de um processo legal e de diálogo com a comunidade”, completa.

Violência Se as terras permanecessem nas mãos dos rizicultores, essa soberania não estaria garantida. A julgar pela forma como esses grupos e suas milícias armadas têm recebido as forças do Estado brasileiro, pode-se dizer que não há quase nenhum respeito às normas do país. “Eles têm ignorado a existência do Estado, receberam a PF a balas, colocaram minas nas estradas”, denuncia. Em abril, o arrozeiro Paulo César Quartiero – prefeito da cidade de Pacaraima pelo DEM – foi preso junto com seu filho e outros oito capangas por atirarem contra um grupo de 10 indígenas que ocupavam a Fazenda Depósito, que está nas mãos de Quartiero. Na ocasião, a PF achou 143 bombas caseiras na Fazenda e declarou que os fazendeiros estariam recebendo apoio de ex-agentes da Agência Brasileira de Informação (Abin) e de setores das Forças Armadas. Maldos acredita que, se o STF reverter a homologação, irá mostrar-se conivente com essas irregularidades. Para ele, essa possível decisão seria um “escândalo”. “Acreditamos que o STF manterá a demarcação. Do contrário, criará uma insegurança jurídica enorme no país”, finaliza.

A longa luta pela demarcação 1917 – Primeiro reconhecimento, por parte do governo do Amazonas, das terras indígenas de Raposa Serra do Sol. 1919 – O então serviço de Proteção ao Índio (SPI) inicia a demarcação da área. O trabalho, entretanto, não é finalizado. 1977 – Presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) institui um Grupo de Trabalho (GT) para identificar os limites da terra. O trabalho não é finalizado. 1979 – Novo GT é formado e sugere-se uma demarcação provisória de 1,34 milhão de hectares. 1984 – Mais um GT é instituído para identificar e demarcar a área. 1988 – Outro GT realiza levantamento fundiário e cartorial sem chegar a qualquer conclusão. 1992 – Funai decide reestudar a área, formando pela última vez novos Grupos de Trabalho. 1993 – Parecer dos GTs, em caráter conclusivo, propõe ao Ministério da Justiça o reconhecimento da extensão contínua de 1,67 milhão de hectares. 1996 – Fernando Henrique Cardoso assina Decreto nº 1.775, que introduz o princípio do contraditório, permitindo a contestação por parte dos atingidos. Todas são rebatidas e rejeitadas pelo governo, que aceita, porém, reduzir 300 mil hectares da área inicial. 1998 – Ministro da Justiça Renan Calheiros assina a Portaria 820/98, que declara a Raposa Serra do Sol posse permanente dos povos indígenas, em área contínua. 1999 – Governo de Roraima impetra mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ), com pedido de anulação da Portaria nº 820/98. Concedida liminar parcial ao mandado de segurança do governo de Roraima. 2002 – STJ nega pedido do Mandado de Segurança 6.210/99, impetrado pelo governador de Roraima e que solicitava a anulação da Portaria 820/98. 2005 – Presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologa, em abril, a demarcação e determina que “o Parque Nacional do Monte Roraima é bem público da União submetido a regime jurídico de dupla afetação, destinado à preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios”. A Polícia Federal inicia em 17 de abril a primeira Operação Upatakon, para garantir a efetivação da homologação. 2006 – Conflitos se intensificam na região. Após seguidas contestações do Estado de Roraima, STF segue negando os pedidos de liminar de suspensão. Encerra-se o prazo para saída de não-índios da Raposa Serra do Sol. A PF faz a Operação Upatakon II. 2007 – Em setembro, o Estado de Roraima ajuíza no STF Ação Cautelar contra a União e a Funai, pedindo a suspensão, em parte, da Portaria nº 534/2005 do Ministério da Justiça e do Decreto Presidencial de 18 de abril de 2005, que tratam da ampliação e demarcação da Raposa Serra do Sol. Forças Armadas resistem em dar apoio à PF para a retirada dos brasileiros não-índios da Raposa Serra do Sol. 2008 – Em março, a Polícia Federal chega à Raposa Serra do Sol e inicia a Operação Upatakon III para tirar não-índios da reserva. STF determina suspensão da Upatakon III. Em agosto, o órgão deve se reunir para discutir sobre a constitucionalidade da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Fonte: Instituto Sócio-Ambiental – www.socioambiental.org

O governo Lula anunciou novo projeto de concessão de 200 mil hectares da Floresta Amazônica que serão entregues para a exploração da iniciativa privada por 40 anos. A área fica nos municípios de Faro e Oriximiná, ambos localizados no Estado do Pará. Até 2010, Planalto quer licitar ao menos 25 milhões de hectares.

Entrevista - Petróleo

Em entrevista, Fernando Siqueira, da Associação de Engenheiros da Petrobras (Aepet), afirma que a descoberta do megacampo de petróleo na Bacia de Santos mostrou as incoerências da Lei do Petróleo, aprovada em 1997, durante o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso. Siqueira critica ainda a presença de um diretor da empresa estadunidense Halliburton nos quadros da Agência Nacional do Petróleo (ANP).

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Arrocho salarial Os trabalhadores brasileiros sabem, de longa data, que a única forma de recompor o poder aquisitivo dos salários diante da inflação é com a conquista de reajustes freqüentes. O arrocho salarial favorece sempre o empresariado, que tem sua margem de lucro ampliada em cima do sacrifício do trabalhador. Querer conciliar interesses antagônicos é muita ingenuidade. Só o caminho da luta protege os trabalhadores. Inflação classista Enquanto analistas econômicos e autoridades federais falam em previsão de inflação dentro da meta de 6% neste ano, os índices de preços revelam grandes disparidades. Alguns, como o IPCA do IBGE e o ICV do Dieese, que são mais utilizados para reajustes de salários, fecharam 12 meses em junho com 6,06% e 5,82%; outros, como o INPC e o IGP-M, que são mais utilizados para o reajuste dos aluguéis, estão em 7,28% e 13,44%, respectivamente. Mobilização já Se não firmarem acordo com a direção da Petrobras nos próximos dias, os 17 sindicatos da Frente Nacional dos Petroleiros devem entrar em greve no dia 5 de agosto. Eles lutam por melhorias salariais, nas condições de trabalho e especialmente participação nos lucros da empresa – que teve grande crescimento nos últimos anos. Mais uma categoria que foi atuante no passado e que saiu da hibernação. Puro entreguismo A Associação de Engenheiros da Petrobrás denunciou que a empresa Halliburton, dos Estados Unidos, por meio de sua subsidiária no Brasil, está administrando o banco de dados de exploração e produção da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. E ainda por cima sem ter passado por licitação. Isso explica porque o capital estrangeiro é bem informado sobre as reservas estratégicas do Brasil. Avanço judicial Enquanto o Ministério das Comunicações congela a liberação de alvarás de funcionamento das rádios comunitárias, consolida na Justiça a jurisprudência de não se condenar quem é pego na atividade de radiodifusão. No dia 24 de julho, o juiz federal Leonardo Aguiar, de Belém (PA), absolveu o comunicador comunitário Marcos Paulo Sousa por “manusear rádio de baixa potência”.

Concessão ilegal A Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximirá, no Pará, acusa o Serviço Florestal Brasileiro de dar concessões de terra para empresas privadas dentro da Floresta Nacional Saracá-Taquera, em áreas reconhecidas oficialmente como sendo das comunidades quilombolas. Se não houver uma intervenção imediata das autoridades, essas áreas de florestas serão destruídas em pouco tempo. Luta ideológica Antigamente a grande imprensa liberal-burguesa costumava fazer um discurso retórico e mentiroso para esconder suas posições de classe: dizia que aplaude o que é bom e critica o que é ruim. Agora, o fundamentalismo neoliberal nem disfarça mais o seu ódio de classe, como demonstrou o jornal O Estado de S. Paulo no editorial de 29 de julho, com violento ataque aos convênios educacionais do MST, que têm hoje 3.649 estudantes em 49 cursos superiores. Nem educação a burguesia perdoa... Carreira ingrata Reportagem da Revista Adusp (Associação dos Docentes da USP), edição de julho, mostra que o crescimento acelerado da titulação de doutores pelas universidades brasileiras tem provocado inclusive a demissão deles nas escolas privadas, que promovem alta rotatividade para rebaixar os salários. Ou seja, o ensino de qualidade é combatido pelos próprios donos das faculdades e universidades comerciais. Paraíso legal No primeiro semestre, as empresas estrangeiras que operam no Brasil enviaram para o exterior 18,99 bilhões de dólares de lucros, 94% a mais que no mesmo período de 2007. As maiores remessas foram feitas pelos bancos e pelas montadoras de veículos. Esses dados revelam o tipo de modelo de “desenvolvimento” que temos por aqui.


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No Rio, o bondinho de Santa Teresa: crônica de uma privatização à vista RIO DE JANEIRO Governo prepara terreno para entregar à iniciativa privada a concessão deste sistema de transporte Joel Coelho

Débora Franco Lerrer do Rio de Janeiro (RJ)

Esquema PPP Na verdade, o centenário serviço de transportes é um dos alvos do projeto de “reestruturação” de 14 empresas públicas e de economia mista do Estado do Rio de Janeiro, elaborado pelo sub-secretário de Planejamento, Francisco Caldas Andrade Pinto, com o objetivo de extinguir empresas e cargos. Em seu plano, o futuro da Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística (Central), empresa que administra o bonde e o resto da malha ferroviária que sobrou das privatizações, é ser absorvida pela Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Já o destino do bonde será uma “concessão PPP”, ou seja, passar a ser explorado por uma iniciativa “público-privada”. Exigência De fato, no contrato de empréstimo do Banco Mundial ao Estado do Rio de Janeiro – dos quais R$ 24 milhões teriam que ser usados na reforma dos bondinhos e de sua via permanente – está explícito que o financiamento prevê uma futura privatização, “reduzindo subsídios operacionais e aumentando a participação do setor privado na operação e no gerenciamento dos serviços”. Em suma, o Banco Mundial dá empréstimo para governos melhorarem uma infra-estrutura que depois dará lucros para a iniciativa privada, embora os custos do empréstimo fiquem com o Estado. Embora não tenha sido eleito com essa plataforma, Cabral parece querer terminar o serviço de privatização que o Governo Marcelo Allencar, com popularidade despencando ladeira abaixo, deixou inacabado. Só da Central já foram demitidos 425 funcionários, de janeiro a março de 2008, dos quais 32 eram funcionários antigos do bonde, alguns deles meses antes de sua aposentadoria.

Mais do que um típico passeio para turistas pelas curvas e ladeiras de Santa tereza, o bondinho atende aos moradores do bairro

Sucateamento O fato é que só existem dois bondes funcionando em Santa Teresa, porque o Estado simplesmente parou de investir em sua manutenção. Segundo uma estimativa feita a partir da última grande reforma do sistema, para recuperar os que estão parados, bastaria gastar no máximo R$ 300 mil com cada um, bem menos do custo de R$ 900 mil gastos no protótipo de um bonde moderno, bancado com o dinheiro do Banco Mundial. Além de ferir os termos do tombamento, esta modernização tem se revelado um estrondoso vexame. Embora preserve a carcaça e a fachada tradicional dos bondes, essa iniciativa teve lances ora cômicos, ora trágicos. Levados, em 2005, para a oficina da T-Trans em Três Rios, aguarda-se desde abril de 2006 o retorno dos bondes reformados. O prazo agora foi jogado para o final de 2008. Modernidade Mas já houve uma estréia do “bonde moderno”, em novembro de 2007, marcada por mico inesquecível. O protótipo empacou diante das autoridades presentes, causando um enorme engarrafamento no bairro. Não andou porque os engenheiros responsáveis pelo projeto não observaram a altura do truck, a estrutura inferior que se encaixa nos trilhos. A do protótipo era mais baixa do que a dos bondes originais. Com oito deles na sede da empresa, bastava que copiassem suas medidas. Algum tempo depois, o bondinho começou a ser visto em algumas ruas do bairro. Dava solavancos na hora de fazer as curvas sinuosas de Santa Teresa e seu freio parecia não agüentar o tranco. Tepedino, no entanto, insistiu que a motivação da reforma era “segurança”, pois não era mais possível andar com os tais bondes antigos. Se havia algum problema, era a dificuldade de se fazer testes no dia-a-dia do bairro. Seu outro argumento era de que não havia mais como repor as peças. Sabe-se, entretanto, que existem vários fornecedores delas na ativa. Segundo um deles, que adoraria ser o único, basta ter uma fundição. Trata-se de mecânica básica, sem mistério técnico. Mas a trapalhada acabou assumindo um tom mais trágico. No dia 1º de junho, manobrado por um engenheiro na oficina, que perdeu seu controle, o tal protótipo causou um acidente, ferindo gravemente

um funcionário, que teve fratura exposta na perna. O freio simplesmente não funcionou. Tudo indica que, para o bonde andar seguramente em Santa Teresa, só com seu mecanismo tradicional adaptado, por décadas de uso, aos caprichos de suas curvas e ladeiras.

Mais lucro A privatização do bonde tende a favorecer apenas uma minoria, pois ela significará uma maior destinação turística, pois isso dá mais lucro. É só assim que a iniciativa privada vai assumir esse serviço, o que pode significar viagens ao preço dos trens do Corcovado, R$ 35,00. Aí é claro que vai haver vários bondes com a pintura tinindo, sem maiores problemas de manutenção. Mesmo se os moradores receberem desconto, a exemplo da barca que vai para Paquetá, os turistas vão perder oportunidades preciosas de ver como se vive nesse país. Vão ficar encapsulados em mais um oásis turísticos asséptico, que só serve para tirar fotografia. Se o projeto do governo estadual vingar, os turistas não vão mais ver a vida que povoa o bonde. Mas, pior do que isso: ao se sentir no direito de alienar um patrimônio público tombado e útil para sua população, o Governo Cabral passa por cima de uma luta empreendida, desde a década de 1960, por moradores e funcionários do bonde para que ele continuasse a existir. Sim, porque, se fosse depender de políticos e suas receitas modernizantes, implantadas de cima para baixo, sem dar ouvidos à população, esse bonde não existiria mais, e o pitoresco passeio turístico, que este governo quer privilegiar, não existiria mais.

A alma de um bairro A alma de Santa Teresa é cotidianamente processada no sacolejo de seus bondinhos do Rio de Janeiro Aparentemente, a singularidade de Santa Teresa reside em suas ladeiras, rica vegetação, vista deslumbrante e casarios antigos preservados, outro resultado da mobilização de seus moradores que, em 1984, conseguiram que ele fosse declarado uma Área de Proteção Ambiental (APA). A verdade é que a alma de Santa Teresa é cotidianamente processada no sacolejo de seus bondinhos.

Mas, de fato, para chegarmos perto de uma maior “justiça social”, temos que buscar formas de administrar nosso jeito de viver Andar de bonde transporta seu usuário para um tempo mais lento, no qual a vizinhança e a cordialidade suplantam a pressa e a impessoalidade vigentes nos grandes aglomerados urbanos. Basta tomar o bonde com disposição para compreender isso. Em uma manhã ensolarada, resolvi fa-

zer esse exercício. Logo depois de me aboletar no canto esquerdo para tomar todo o vento que tinha direito, chegou um grupo de turistas alemães de terceira idade. O motorneiro assumiu seu posto na hora de partir e, justamente naquele momento, chegavam alguns retardatários. Entre eles, apareceu uma morena esguia, com saias longas, cabelos compridos, uma verdadeira “moura”, do tipo das que na Alemanha, por conta de sua religião, geralmente vivem com lenços escondendo os cabelos e sua beleza. Um dos senhores alemães não conteve o espanto com aquela visão e virou-se para trás no banco, para melhor contemplá-la. Seu movimento foi quase um reflexo. Fiquei admirada em como ele, já corcunda pela idade, mantinha-se vivo. Desnecessário dizer que todos os turistas alemães eram brancos. Mas me dei conta disso, comparandoos com os brasileiros, com suas morenices variadas. Quando o bonde deu a partida, andou poucos metros e parou novamente. Estavam chegando duas mulheres negras. Uma delas com um bebê no colo. O motorneiro deu marcha-ré para que elas subisJoel Coelho

DE MODO sorrateiro e passando por cima de protestos dos moradores do bairro, o governo de Sérgio Cabral Filho acaba de dar um pontapé inicial na privatização de um dos mais queridos e pitorescos programas turísticos do Rio de Janeiro: o bondinho de Santa Teresa. A empresa francesa Sistran Engenharia ganhou a licitação para preparar, até o final do ano, um estudo para concessão deste serviço de transportes para a iniciativa privada. No jornal O Globo, o governador enfim assumiu seus propósitos. Argumentou que a privatização é necessária porque o serviço não atende bem os moradores. Já o seu secretário dos Transportes, Julio Lopes, alega que a tarifa de R$ 0,60 gera um faturamento insuficiente para a manutenção do bondinho. Ele só não explica porque só a iniciativa privada é que poderá aumentar a tarifa. A Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa (Amast), que tem sido uma pedra no sapato de todas as iniciativas predatórias que ameaçam a pacata vida do bairro, vai entrar com uma ação civil pública contra o governo Cabral. A Amast tem legitimidade, pois foi fundada, nos anos de 1980, justamente para garantir a permanência dos bondinhos no bairro e obteve seu tombamento como patrimônio histórico e cultural em 1988. Alegando o custo alto de manutenção e as inúmeras pendências judiciais, Lopes argumenta que a privatização é uma saída por causa do alto custo do bondinho para os cofres do Estado e da dificuldade que este tem de administrá-lo.

A Associação de Moradores tem organizado a luta contra a inicativa privada predatória

sem e se instalassem, no caso, entre os alemães, até então folgados no banco. Afinal, cada banco é para quatro pessoas. Na hora me dei conta de como isso deve ter espantado os alemães. Lá, se deu o horário; se o ônibus parou no ponto e fechou a porta, mesmo que o motorista ainda não tenha arrancado, não vai abrir a porta para o esbaforido passageiro que vê correndo em sua direção. Mas aqui isso acontece. Não somos dados à frieza das regras e dos contratos. Somos “personalistas”. Abrimos sempre exceção para uma pessoa conhecida, ou para o que consideramos mais justo, para uma brecha possível. Há muitos desvios nesse nosso comportamento. Afinal, a modernidade européia é contratualista e se caracteriza por regulamentos e leis que valem para todos. Mesmo que eles também tenham seus “jeitinhos”, criaram mecanismos eficazes para que isso se cumpra. É admirável. No entanto, são muito impessoais. Quase isolados em torno de si mesmos. Já nós, com todos os tipos de exceção que inventamos, freqüentemente nos vemos aprisionados por interesses obscuros, de alguns poucos que se aproveitam das brechas para se “darem bem”. Mas a maioria vive esse tipo de flexibilidade adotando uma espécie de bom senso. Senão, viveríamos em um inferno. A vida social no Rio de Janeiro se caracteriza por regras tácitas de convívio que muitas vezes giram em torno dessas brechas. E isso se repete em maior ou menor grau em todo o Brasil. Por outro lado, perseguimos essa receita européia, por a considerarmos mais justa. Mas invariavelmente adoramos abrir exceções. De fato, para chegarmos perto de uma maior “justiça social”, temos que buscar formas de administrar nosso jeito de viver com mecanismos que justamente favoreçam a maioria, e não a minoria de espertalhões. (DFL)


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cultura Arquivo do Teatro Popular Solano Trindade

Canto dos Palmares Solano Trindade (1961)

Eu canto aos Palmares sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões porque o meu canto é o grito de uma raça em plena luta pela liberdade! Há batidos fortes de bombos e atabaques em pleno sol Há gemidos nas palmeiras soprados pelos ventos Há gritos nas selvas invadidas pelos fugitivos... Eu canto aos Palmares odiando opressores de todos os povos de todas as raças de mão fechada contra todas as tiranias! Fecham minha boca mas deixam abertos os meus olhos Maltratam meu corpo minha consciência se purifica Eu fujo das mãos do maldito senhor! Meu poema libertador é cantado por todos, até pelo rio. Meus irmãos que morreram muitos filhos deixaram e todos sabem plantar e manejar arcos Muitas amadas morreram mas muitas ficaram vivas, dispostas a amar seus ventres crescem e nascem novos seres. Apresentação do Teatro Popular Solano Trindade em Embu das Artes (SP)

Solano Trindade, vento forte da África

Danilo Dara da Redação “CANTO DE negro dói, canto de negro mata / canto de negro faz bem e faz mal / negro é como couro de tambor / quanto mais quente, mais toca / quanto mais velho, mais zuada faz!” O palco era Recife (PE), 1908. No dia 24 de julho nascia Solano Trindade. No bairro de São José, o sapateiro Manuel Abílio, seu pai, dançava pastoril e bumba-meu-boi com vizinhos. Solano os acompanhava e “aprendia na fonte”. Sua mãe, Emerenciana (ou dona Merença), quituteira e operária, pedia que seu filho lesse para ela novelas, literatura de cordel e poesia romântica. Ali o menino pegava gosto tanto pela palavra cantada quanto pela leitura e escrita, bagagens para o seu futuro caminhar mundo adentro. Segundo sua filha e herdeira artística, Raquel Kambinda Trindade, a vida retirante de Solano foi marcada por três cidades fortes: Recife, na infância; Duque de Caxias (RJ), na mocidade; e Embu das Artes (SP), na maturidade. Pois é justamente esta que tem sido palco, nas últimas semanas, das maiores celebrações do centenário de Solano, numa série de eventos iniciada há um ano [e noticiada pelo Brasil de Fato]. Chegando enfim o aniversário, agora é momento de falar um pouco mais da biografia do grande poeta negro.

Vento forte Solano – cujo nome, segundo outro poeta, Sérgio Vaz, “vem do latim e significa ‘vento do levante’, mas há quem interprete como ‘vento forte da África’”–, estudou na escola até o equivalente ao 2º grau e cursou um ano de desenho no Liceu de Artes do Recife. Sua formação desenvolveu-se mais e melhor fora das instituições, nas andanças (coletivas) pelo país, sempre acompanhado por muitos irmãos-artistas. Além da paixão pela poesia cantada e escrita, foi pintor, teatrólogo, cineasta, ator e folclorista. Sua trajetória como poetamilitante iniciou-se, de fato, a partir de 1930, quando começou a compor poemas e ajudou a organizar, em 1934, os 1º e 2º Congressos Afro-brasileiro, respectivamente no Recife e em Salvador (BA). Em 1936, participou

da fundação da Frente Negra Pernambucana e do Centro de Cultura Afro-brasileiro, com o objetivo de divulgar os intelectuais e artistas negros. Nunca deixaria o movimento negro, o qual foi fundamental na sua formação como artista e ativista, e pelo qual é até hoje reverenciado.

Persistente Em 1940, transferiu-se para Belo Horizonte (MG), onde ficou pouco tempo, pois logo depois iria para o Rio Grande do Sul, fixando-se por um curto período na cidade de Pelotas, onde fundou – ao lado do poeta Balduíno de Oliveira – um grupo de arte popular. Essa foi sua primeira tentativa de criar um “teatro do povo”, o que não se consolidou devido a uma enchente em 1941 que carregaria todo seu material. Incansável, voltou então para Recife, indo logo depois para Duque de Caxias, cidade na qual passaria a organizar festas populares intermináveis e onde estaria sempre próximo da então capital federal, Rio de Janeiro. Lá conheceu e passou a freqüentar o Café Vermelhinho, onde articulava ações com jovens poetas, intelectuais, artistas de teatro, militantes e jornalistas. Sempre com sua pasta de poemas e outros textos debaixo do braço... No Rio, também filiou-se ao Partido Comunista (movido por palavras bíblicas!), sendo que as reuniões da célula Tiradentes ocorriam na sua casa de fundos. Repressão e resistência Casado durante muitos anos com Margarida Trindade, Solano teve com ela quatro filhos de sangue: a primogênita Raquel, Godiva, Liberto e Francisco Solano, formando uma família marcada pela arte, o amor e a persistência libertadora. Exemplo disso foi o episódio de sua prisão, em dezembro de 1944, logo após assinar o “manifesto Mangabeira” e publicar Poemas de uma vida simples – onde se encontra seu conhecido poema “Trem sujo da Leopoldina”. Durante a perseguição aos comunistas, a polícia entrou na sua casa e, apesar de Liberto estar doente e de cama, reviraram o barraco e os colchões à procura de armas. Exemplares de seus livros foram apreendidos. Então, Raquel e a mãe, Margarida, percorreram inúmeras cadeias da cidade até encontrá-lo. “Quando sai, Solano parece fortalecido. Embora tenha olhos tristonhos, seu otimismo é contagiante”, remonta o historiador Márcio Barbosa. Saiu da prisão mais determinado a dar continuidade à luta em todos os cantos de sua andança. Viagens Com Abdias do Nascimento (idealizador do Teatro Experimental do Negro), entre outros,

criou, em 1945, o Comitê Democrático Afro-brasileiro, importante experiência para a história do movimento negro, que resgatava criticamente a diáspora africana e valorizava a cultura afro. No Rio de Janeiro, também deu início, junto à esposa Margarida e ao sociólogo Edson Carneiro, ao Teatro Popular Brasileiro (TPB), sempre buscando conciliar uma pesquisa histórica e cultural bastante séria com a tradução para uma arte verdadeiramente acessível a todos. Dizia Solano: “apesar de tudo que tenho ouvido e lido sobre poesia, resultado das teses e debates nos congressos de poetas e críticos, não me sinto disposto a mudar de linha, de sair do caminho popular de minha poética. Sem querer discutir o valor dos herméticos ‘concretistas’, ‘dadaístas’ etc. (eruditos donos da cultura ocidental), prefiro levar ao meu povo uma mensagem, em linguagem simples, em vez de uma mensagem cifrada para um grupo de intelectuais”. Reprodução

LITERATURA Homenagens e publicações celebram o centenário de nascimento de um dos maiores poetas negros do Brasil

“Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte” O TPB passou a viajar pelo Brasil divulgando seu trabalho, e seguiu desenvolvendo uma intensa atividade cultural voltada ao resgate das historicamente renegadas raízes afro-nordestinas, além da denúncia do racismo e de outras formas de opressão. Em 1955, chegou a viajar com o TPB para a Polônia e a Tchecoslováquia – então comunistas –, onde se apresentaram para multidões. No fim daquela década, Solano publicou Seis tempos de poesia (1958) e Cantares ao meu povo (1961; reunião de poemas anteriores). Em Praga, o poeta ainda realizara o documentário Brasil Dança. E, como ator, trabalhou nos filmes Agulha no Palheiro, Mistérios da Ilha de Vênus, Santo Milagroso, além de, como co-produtor, em Magia Verde.

O pólo de cultura Depois de visitas constantes, em 1961, já estava morando em São Paulo (SP) quando, numa apresentação, teve a oportunidade de conhecer o escultor Assis, antigo morador de Embu, que o convidou para conhecer sua cidade, na periferia da região metropolitana. Solano se encantou pelo lugar e o adotou, junto à família e à boa parte do elenco do TPB. Somaram-se a outros guerreiros (como Assis, Sakai, Azteca e Cássio M’boi), transformando a cidade num pólo de cultura e resistência. Poucos anos depois, no entanto, a morte violenta de seu filho Francisco – ao que tudo indica, assassinado pela ditadura entre 1964 e 1965 – abalou demais a família, levandoa inclusive a “não querer remexer a história”. É nesse período também que Solano chateia-se com o que chamava de “picaretas” e a crescente comercialização na cidade recém-adotada, passando um tempo fora por outros bairros da periferia de São Paulo. Voltaria ao Embu apenas dois anos depois. Vida que segue Porém, no final da década, em 1969, quando os rumos do país também iam de mal a pior, Solano adoeceu mais gravemente. Depois de passar por várias clínicas e muitas dificuldades (dentre elas um grande assalto, quando perdeu boa parte de suas posses; além da tristeza em razão da morte de sua amada baiana, Lycia, em 1970), acabou sendo cuidado pela filha Raquel e o amigo escultor Vicente de Paulo. Com parte da família no Rio, Solano também foi para lá, onde faleceu numa clínica em Santa Tereza, no dia 19 de fevereiro de 1974. Sua história segue: em 1975, Raquel Trindade lidera a formação do Teatro Popular Solano Trindade, dando continuidade ao núcleo cultural criado e enraizado no Embu pelo pai. Junto com sua família, de sangue e coração, que continua criando e lutando por lá, são exemplos como que escritos por brasas na pele escura de todo negro, de todo oprimido, independente de sua cor. Ao completar seu primeiro centenário de vida, familiares, amigos e outros inspirados no poeta seguem a prestar homenagens e a celebrar o mestre pelo Embu e a periferia do mundo afora. Solano hoje dá nome a muitas bibliotecas populares no Brasil, e acaba de ser presenteado com uma nova antologia (Poemas antológicos de Solano Trindade – apresentação de Zenir Campos Reis e ilustrações de Raquel Trindade, Ed. Nova Alexandria). As mulheres e os “homens simples”, como gostava de se autodenominar, agradecem!

O opressor convoca novas forças vem de novo ao meu acampamento... Nova luta. As palmeiras ficam cheias de flechas, os rios cheios de sangue, matam meus irmãos, matam minhas amadas, devastam os meus campos, roubam as nossas reservas; tudo isto para salvar a civilização e a fé... Nosso sono é tranqüilo mas o opressor não dorme, seu sadismo se multiplica, o escravagismo é o seu sonho os inconscientes entram para seu exército... Nossas plantações estão floridas, Nossas crianças brincam à luz da lua, nossos homens batem tambores, canções pacíficas, e as mulheres dançam essa música... O opressor se dirige aos nossos campos, seus soldados cantam marchas de sangue. O opressor prepara outra investida, confabula com ricos e senhores, e marcha mais forte, para o meu acampamento! Mas eu os faço correr... Ainda sou poeta meu poema levanta os meus irmãos. Minhas amadas se preparam para a luta, os tambores não são mais pacíficos, até as palmeiras têm amor à liberdade... Os civilizados têm armas e dinheiro, mas eu os faço correr... Meu poema é para os meus irmãos mortos. Minhas amadas cantam comigo, enquanto os homens vigiam a terra. O tempo passa sem número e calendário, o opressor volta com outros inconscientes, com armas e dinheiro, mas eu os faço correr... Meu poema libertador é cantado por todos até pelas crianças e pelo rio. Meu poema é simples, como a própria vida. Nascem flores nas covas de meus mortos e as mulheres se enfeitam com elas e fazem perfume com sua essência... Meus canaviais ficam bonitos, meus irmãos fazem mel, minhas amadas fazem doce, e as crianças lambuzam os seus rostos e seus vestidos feitos de tecidos de algodão tirados dos algodoais que nós plantamos. Não queremos o ouro porque temos a vida! E o tempo passa, sem número e calendário... O opressor quer o corpo liberto, mente ao mundo e parte para prender-me novamente... - É preciso salvar a civilização, Diz o sádico opressor... Eu ainda sou poeta e canto nas selvas a grandeza da civilização - a Liberdade! Minhas amadas cantam comigo, meus irmãos batem com as mãos, acompanhando o ritmo da minha voz.... - É preciso salvar a fé, Diz o tratante opressor... Eu ainda sou poeta e canto nas matas a grandeza da fé - a Liberdade... Minhas amadas cantam comigo, meus irmãos batem com as mãos, acompanhando o ritmo da minha voz.... Saravá! Saravá! repete-se o canto do livramento, já ninguém segura os meus braços... Agora sou poeta, meus irmãos vêm comigo, eu trabalho, eu planto, eu construo meus irmãos vêm ter comigo... Minhas amadas me cercam, sinto o cheiro do seu corpo, e cantos místicos sublimam meu espírito! Minhas amadas dançam, despertando o desejo em meus irmãos, somos todos libertos, podemos amar! Entre as palmeiras nascem os frutos do amor dos meus irmãos, nos alimentamos do fruto da terra, nenhum homem explora outro homem... E agora ouvimos um grito de guerra, ao longe divisamos as tochas acesas, é a civilização sanguinária que se aproxima. Mas não mataram meu poema. Mais forte que todas as forças é a Liberdade... O opressor não pôde fechar minha boca, nem maltratar meu corpo, meu poema é cantado através dos séculos, minha musa esclarece as consciências, Zumbi foi redimido...


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Novo fracasso questiona a OMC LIBERALIZAÇÃO Para o consultor em Relações Internacionais Kjeld Jacobsen, sistema multinacional do comércio está sob suspeita Wilson Dias/Abr

Eduardo Sales de Lima da Redação O BRASIL tomou decisões divergentes do G-20. Os Estados Unidos, a Índia e a China se acusaram mutuamente de bloquear a realização da liberalização do comércio mundial. E a Rodada de Doha entrou em colapso. Para Kjeld Jacobsen, consultor de Relações Internacionais e ex-secretário da Central Única dos Trabalhadores, as negociações travadas em Genebra no final de julho evidenciaram um conflito já presente no G-20, o grupo dos países subdesenvolvidos que travaram a Rodada de Doha em Cancún. Segundo ele, os diálogos travados no âmbito da Rodada de Doha são uma negociação exclusiva do capital. Kjeld diz também ser favorável a uma maior participação popular em acordos deste tipo, negociados exclusivamente pelo Poder Executivo. Brasil de Fato – O que o fracasso da Rodada de Doha significa para o futuro das negociações dentro do âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC)? Kjeld Jacobsen – No sentido de aumentar o comércio mundial, o fracasso não tem muito significado, porque o que eles estavam concluindo nesses últimos dias era um acordo com poucas ambições, de pouco impacto no comércio geral. Obviamente, esse fracasso coloca em questionamento a própria OMC e o sistema multinacional de comércio. Ou seja, sua capacidade de resolver esses problemas. O que significa que deverão prevalecer, pelo menos em alguns países, as tentativas de trabalhar bilateralmente. Quais as diferenças entre esse atual processo que envolve a Rodada de Doha, desde 2001, com o encontro em voga em Genebra, em relação aos

Para Jacobsen, o apoio manifestado por Celso Amorim (foto) é possível pois o país “está adaptado para isso”

O Brasil teve a iniciativa de propor o G-20, mas evidentemente era um grupo que tinha alguns problemas para manter essa unidade processos passados? As outras rodadas, como a do Uruguai, foram desvantajosas para os países em desenvolvimento. Foram fracassos do ponto de vista institucional. Esse resultado beneficiou principalmente as empresas transnacionais dos países desenvolvidos. Parece que nada mudou até agora. O meu problema com a Rodada vem de um ano atrás, quando começaram a trabalhar essas propostas de redução de tarifas dos produtos industriais. Foi uma troca desvantajosa. O comércio de agri-

cultura é variável, depende do preço do momento, depende se choveu, se produziu, se não produziu, se ocorreu excesso de oferta ou não. Já a indústria, se abriu, não fecha mais. Se concedeu, não tem como voltar atrás. São dois itens incompatíveis para se negociar. Uma coisa é negociar produto agrícola por produto agrícola, ou produto industrial por produto industrial. Aí tem como avaliar se foi equilibrado, se ganhou ou se perdeu. Agora, quando se mistura as coisas, indústria por agricultura, é mais provável que se perca, ainda mais no nosso caso.

O Brasil apoiou o pacote agrícola e industrial do diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, para fechar o acordo da Rodada de Doha, no rumo oposto ao de aliados como Índia, Argentina e China. Ele sai dessa Rodada enfraquecido dentro do G-20? O Brasil teve a iniciativa de propor o G-20, mas evidentemente era um grupo que tinha alguns problemas para manter essa unidade. Embora o que unisse esses países fosse o interesse em acessar mercados agrícolas, principalmente dos países desenvolvidos, alguns têm dificuldade em conceder abertura nessa área, particularmente China e Índia. Em algum momento, surgiriam diferenças de interesses entre Bra-

sil e Índia. Fosse pela via da OMC, fosse por outros meios. O Brasil pode abrir seu mercado agrícola porque ele está adaptado para isso. A Índia, não; ela teria que continuar protegendo seu mercado agrícola e é aí que surge uma diferença de interesses. Seja um país do Norte ou do Sul, por mais desejável que seja ter a unidade, os países acabam defendendo seus interesses. E foi o que aconteceu. O fato de o Brasil ter aceito o acordo revelou uma diplomacia influenciada por transnacionais do agronegócio e, por outro lado, uma organização mais forte dos pequenos agricultores da China e da Índia? Isso é bobagem. Quando se fala em negociação de comér-

cio, é uma negociação no âmbito do capitalismo. Ou seja, toma lá, dá cá. É negócio, é dinheiro, é vender produto, seja de pequenos agricultores, seja de grandes agricultores, produtores nacionais ou transnacionais. No fundo, é negociação de capital. Então, não compartilho dessa visão de atribuir uma posição ou outra em função de organizações populares. Existem claras diferenças entre esses países. O Estado chinês é um Estado muito forte, com um partido único. A Índia também tem um Estado muito forte, muito nacionalista, e possui uma população de 1 bilhão de pessoas, as quais quase 70% vivem no campo. O governo indiano não pode ignorar isso. No Brasil, vivem no campo cerca de 18% da população, o que é uma realidade totalmente distinta. Tendo em conta a relevância dessas negociações para o futuro do país, não existe participação popular em outras instâncias até que se chegue à Doha, pelo menos no Brasil. É possível considerar legítimas e representativas as negociações em Genebra? Eu sou favorável, no caso da política externa brasileira ou de qualquer outro país, que haja uma abertura maior, maiores consultas [populares], um processo mais aberto. Isso é importante para que todos os interesses e todas as necessidades sejam contempladas. Deveria haver mecanismos que pudessem envolver mais a sociedade, o próprio Congresso Nacional, de alguma maneira. Até nos Estados Unidos existe isso. Dependendo do que tiver em discussão, é limitado o poder do [Poder] Executivo. Aqui, não temos isso. Para falar a verdade, o Itamaraty segue o que a Constituição lhe atribui de poder. Gostemos nós ou não. Inconstitucional não é. Agora, poderia ser mais aberto e participativo.

Reprodução

Movimentos sociais comemoram o impasse Termina sem acordo negociação com representantes de 30 países em Genebra; Brasil se afasta dos países em desenvolvimento Fátima Mello e Clarisse Castro ORGANIZAÇÕES e movimentos sociais do Brasil e do mundo inteiro comemoram mais um colapso das negociações para a conclusão da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Essas entidades questionam a validade das premissas da instituição desde o seu nascimento, no auge do neoliberalismo dos anos de 1990. Denunciam também as graves conseqüências que o fechamento desta rodada poderia causar para os povos em diversas partes do mundo. Essas conseqüências dizem respeito, principalmente, à liberalização do comércio de bens industriais e serviços por parte dos países do Sul, em troca da abertura de mercados no Norte para exportações agrícolas. Isto significaria a cristalização de um modelo em que os países em desenvolvimento continuariam como exportadores de commodities agrícolas – com uso intensivo de água e outros recursos naturais na sua produção, concentração fundiária e utilização de insumos químicos que resultam em um agravamento da crise sócio-ambiental. Enquanto isso, os países desen-

volvidos se manteriam como fornecedores de tecnologia e bens e serviços de alto valor agregado. Significaria também o aprofundamento da abertura comercial e financeira proposta pelo modelo neoliberal. E seria um golpe contra os direitos dos povos e a soberania dos países em relação à capacidade de formularem suas políticas públicas.

Mais uma vez, o formato restrito e antidemocrático de tomada de decisões na OMC se revelou esgotado Ao longo da semana, cerca de trinta países tentaram sem sucesso chegar a uma fórmula que fosse capaz de acomodar os interesses em temas tão complexos como as políticas de agricultura, indústria e serviços. Mais uma vez, o formato restrito e antidemocrático de tomada de decisões na OMC se revelou esgotado: dos 153 países-membro da OMC, apenas cerca de trinta estavam presentes nas reuniões de Genebra. Na verdade, en-

tre estes, apenas sete – Estados Unidos, União Européia, Brasil, Japão, Austrália, China e Índia – conduziram de fato o processo decisório, enquanto os demais aguardavam em protesto as decisões na ante-sala.

Posição brasileira

O Brasil manteve a sua já conhecida posição, que prioriza a abertura dos mercados dos países do Norte para as exportações do agronegócio, concordando em fazer importantes concessões nas áreas de redução de tarifas industriais e no setor de serviços. A insistência do país em manter esta posição acabou tendo graves conseqüências políticas. Uma delas foi o esgarçamento do G20, importante coalizão de países em desenvolvimento criada em 2003 durante uma reunião ministerial da OMC realizada em Cancun, quando o Brasil liderou uma posição de resistência destes países e, com isso, alterou a balança de poder e a correlação de forças na OMC. Desta vez, no entanto, o país acabou esvaziando a sua liderança por ter se distanciado de preocupações e interesses de parceiros estratégicos da coalizão. Esse foi o caso da Argentina, que vinha liderando uma importante posição de re-

O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy

A falta de compromisso do Brasil com os nossos vizinhos poderá ter repercussões políticas negativas nos processos de integração regional em curso na América do Sul sistência nas negociações de Nama – a sigla em inglês para as tentativas de acordo sobre reduções nas tarifas de importação de produtos industriais que tanto interessam aos Estados Unidos e União Européia. A falta de compromisso do Brasil com os nossos vizinhos poderá ter repercussões políticas negativas nos processos de integração regional em curso na América do Sul. O Mercosul, por exemplo, possui uma Tarifa Externa Comum (TEC) que seria bastante prejudicada caso as propostas em curso nas negociações de Doha fossem aprovadas, tornando

ainda mais difícil que nossa região pudesse estabelecer preferências comerciais internas ao bloco. A estratégia negociadora brasileira também abalou as alianças do Brasil com Índia e China. Refletindo o peso econômico que o agronegócio exportador tem na balança comercial brasileira, o Brasil não deu a devida importância a temas importantes para estes países parceiros e para a agricultura familiar e camponesa. O tema das salvaguardas e outros mecanismos de defesa e promoção da agricultura que garante a segurança e soberania

alimentar não foi priorizado pelos negociadores brasileiros, ao passo que se mostrou um aspecto central para estes parceiros-chave do país. Nesse momento, os movimentos sociais do mundo todo estão comemorando. Mais uma vez, está provado que o modelo promovido pela OMC caducou. Agora é hora de pensar alternativas a este sistema de comércio global. Esse debate deve se orientar pelos processos de integração regional e por novas instâncias globais voltadas para os interesses dos povos. Chegou o momento de construirmos um sistema de comércio verdadeiramente voltado para a justiça econômica, social e ambiental, e não para os interesses das corporações transnacionais. Fátima Mello e Clarisse Castro são assessoras da Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (Rebrip).


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Na França, o novo Estado de direita e a desistência das centrais sindicais ANÁLISE Sem maiores resistências, Sarkozy monta instituição próxima das leis de mercado e forte no combate aos movimentos sociais Natacha Salomon

Achille Lollo A traição do líder do Partido Socialista (PS) francês, Jack Lang (ex-ministro de cultura do ex-presidente François Mitterrand, 19811995), e dos radicais de esquerda foi o elemento decisivo para a aprovação, no dia 21 de julho, da 24ª reforma constitucional formulada pelo presidente Nicolas Sarkozy para aumentar seus poderes, retirando do primeiro-ministro a capacidade de decidir sobre questões estratégicas do Estado. Com isso, os assuntos militares e diplomáticos ficam inteiramente nas mãos do presidente que, agora, pode controlar os deputados da maioria e também interferir na disciplina partidária da oposição.

Concentração de poder O primeiro-ministro, que, no sistema presidencialista francês, mantinha o equilíbrio entre o presidente e o Legislativo, perdeu essa função e não vai mais debater no Parlamento os projetos de lei do governo. Agora, estes são, automaticamente, repassados para as comissões parlamentares que debatem apenas as emendas que melhoram os projetos de lei do governo. Assim, nenhuma legislação apresentada pelo governo (cujo líder é o presidente) correrá o risco de ser derrubada pelo primeiro-ministro ou pelo debate no Parlamento. Dessa vez, os partidos que ainda se dizem de “esquerda” (PS, Partido Comunista Francês–PCF e os Verdes) votaram unidos contra a reforma constitucional, mas foi uma oposição formal. Nada mais que isso, deixando a população completamente alheia a esse perigoso processo de concentração de poderes que afunila, ainda mais, o sistema político francês. Sarkozy, diante da posição “light” do PS e do PCF, logo ofereceu aos partidos da oposição a criação de uma comissão mista para definir as novas circunscrições eleitorais, a participação na agenda parlamentar e o direito de ocupar espaço na mídia todas as vezes que o presidente se manifesta sobre a política da França. O secretário do PS francês, François Hollande, contrariando o companheiro de partido Jack Lang, admitiu que, “com esta reforma constitucional, Sarkozy não fez nenhuma concessão, apenas deu alguma esmola democrática!”.

O filósofo Alain Badiou explica que a afirmação de Sarkozy representa, antes de tudo, a tendência de reduzir a democracia em específicos currais eleitorais controlados pelos aparelhos ideológicos do Estado (partidos, mídia, corporações) Novo Estado de direita Em dezembro de 1995, a França viveu a experiência das greves operárias e das grandes assembléias populares que subverteram a cultura crepuscular do poder gaulista. Além disso, as paralisações daquele ano rejeitaram a mediação reformis-

A reforma constitucional idealizada pelo presidente francês Nicolas Sarkozy retira poderes do primeiro-ministro

O secretário do PS francês, François Hollande, contrariando o companheiro de partido Jack Lang, admitiu que, “com esta reforma constitucional, Sarkozy não fez nenhuma concessão, apenas deu alguma esmola democrática!” ta das centrais sindicais da Confederação Geral do Trabalho (CGT) e da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), nomeadamente ligadas aos PCF e ao PS. Como, de fato, aconteceu em 1968, aquele momento de intensas lutas sociais provocou, por um lado, a debandada da esquerda reformista em direção às instituições e ao poder. Por outro, na própria direita surgiu uma reação em direção da superação do modelo institucional desenhado pelo ex-presidente Charles de Gaulle (1959-1969), logo após 1968. De fato, a ascensão política de Sarkozy, no partido conservador União por um Movimento Popular (UMP), começou com a implementação da proposta de criar um novo Estado mais ligado às leis de mercado e bastante forte para enfrentar os movimentos sociais. Esse projeto começou após a derrota do governo socialista do ex-primeiro-ministro Lionel Jospin, em 2002, motivo pelo qual Sarkozy foi nomeado ministro do Interior. Sua primeira medida foi substituir a “Polícia de Bairros” pelas Brigadas Anticriminalidade, conhecidas pela sua violência e práticas racistas contra os imigrados sans papiers (sem papéis, clandestinos) e os moradores dos subúrbios de origem árabe ou africana. Os resultados foram imediatos: em 2005, após a morte dos adolescentes Zeyd Benna e Bouna Traoré, provocadas pelos policiais das Brigadas Anticriminalidade, houve revoltas populares que duraram três semanas, em 200 cidades francesas. Mesmo assim, Sarkozy foi confirmado no Ministério do Interior, multiplicando sua esfera de influência em toda a direita.

Candidato do mercado A verdade é que Sarkozy alcançou, em pouco tempo, o sucesso não por ser um brilhante teórico político da direita, mas sim por aceitar ser o homem que se predis-

pusera em manipular o Parlamento em favor do mercado e, em particular, da Areva, o conglomerado eletro-nuclear que, só na França, possui 19 centrais que operam com 60 reatores de segunda geração. O filósofo Alain Badiou explica em seu último livro que a afirmação de Sarkozy representa, antes de tudo, a tendência de reduzir a democracia em específicos currais eleitorais controlados pelos aparelhos ideológicos do Estado (partidos, mídia, corporações). Em segundo lugar, essa tendência se fortaleceu com a proposta do neoliberalismo europeu de acabar, em termos históricos, políticos e culturais, com 68 e com tudo o que ele representou: a reinvenção do comunismo como hipótese justa. Não é somente a obsessão pelo retorno do comunismo. É, sim, o medo pela maneira de como o Mouvement consegue criar novas das formas de lutas que, de fato, socializem os setores da sociedade “não ligados ao mercado e contra as políticas do mercado”. De fato, Sarkozy, em suas campanhas políticas e midiáticas, soube muito bem acentuar o medo e o ódio contra o “novo comunismo social do Movimento”. É nesse âmbito que Sarkozy e o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, – também graças ao pragmatismo dos partidos de centro-esquerda – conseguiram subverter o mito da soberania popular para colocar em seu lugar o conceito de democracia alinhado ao consenso do capitalismo. É evidente que a igualdade e o conceito de justiça social desaparecem nesta nova democracia, que é praticamente o que a direita européia queria desde os tempos de Margareth Thatcher. Achille Lollo é jornalista italiano e diretor do documentário América Latina: Desenvolvimento ou Mercado?, disponível em DVD no www.portalpopular.org.br.

Economia em crise, Estado antioperário e traições sindicais Desistência das direções ajudou presidente a derrotar mobilização dos ferroviários contra mudanças na Previdência Nos últimos anos, o produto interno bruto (PIB) francês, apesar das privatizações e das medidas de flexibilização, caiu de 4% para 2,5%, em 2007. O presidente Nicolas Sarkozy exigiu mais poderes para fazer milagres. Mesmo assim, as previsões apontam outra queda do PIB, dessa vez para 2%. Em 2007, Sarkozy, tal como Margareth Thatcher fez com os mineradores, provocou o enfrentamento com os trabalhadores dos caminhos de ferro da SNFC. O objetivo era derrotá-los não só para retirar-lhes os benefícios previdenciários, mas, também, para enjaular, em termos políticos, todo o movimento social que considerava os ferroviários a vanguarda histórica das lutas de 1995. Sarkozy conseguiu derrotar os ferroviários somente graças à desistência das diretorias sindicais. Em particular, a de Bernard Thibault, secretário da CGT (ligada ao PCF), que, no momento em que os 300 mil ferroviários manifestavam pelas ruas de Paris, fe-

chava a negociação com o governo, visto que em princípio a CGT aceitava a proposta do governo em aumentar o teto do trabalho para 40 anos para ter direito à reforma, porém queria negociar os efeitos sociais dessa medida. Também o secretário da central CFDT (ligada ao PS), François Cherèque, contribuiu para o sucesso de Sarkozy. Em 2003, Cherèque quebrou o movimento grevista ao assinar – sem consultar as direções sindicais — o acordo sobre a “reforma das pensões” do ministro François Fillon, que foi uma traição espetacular. A seguir, também o secretário da CGT Thibault assinou, deixando os trabalhadores cada vez mais desiludidos e revoltados com os dirigentes das centrais sindicais.

Ofensiva Mas esse governo ainda não está satisfeito. Agora, o objetivo é acabar com a lei das 35 horas semanais. Por isso, Patrick Devedjian, secretário do partido majoritário, UMP, no

dia 19 de maio, declarava no Parlamento que “estava na hora do governo desativar o instituto das 35 horas, que foi o maior erro econômico cometido na França”. O ministro do Trabalho, Xavier Bertrand – pupilo de Sarkozy –, diante da manifestação em Paris de 700 mil pessoas, logo tentava uma mediação, chamando as centrais a negociar a introdução – fábrica por fábrica – da livre execução das horas extras sem taxação fiscal. A verdade é que, agora, os empresários, no lugar de empregar força jovem, negociam até 6 horas extras por dia, e o absurdo é que muitos sindicalistas apóiam o lema do governo “Trabalhar mais para ganhar mais”. Mas o paradoxo disso tudo é que, na central CFDT, bem como no PS, são muito poucos os que ainda defendem as 35 horas, de forma que, nos próximos meses, os trabalhadores franceses vão sofrer outra traição, sempre em nome do “acordo comum com o governo”. (AL)

O caso Marina Petrella Militante das Brigadas Vermelhas, da Itália, está em greve de fome e já pesa somente 39 quilos No dia 10 de julho, Nicolas Sarkozy oferecia o status de refugiado aos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) que abandonassem a clandestinidade, querendo reconstruir uma vida na França. Logo, a Liga dos Direitos do Homem, em Paris, assinava um comunicado questionando: “se o presidente pretende receber os guerrilheiros que seqüestram Ingrid Betancourt,

por que não renuncia a extraditar Marina Petrella, ex-guerrilheira das Brigadas Vermelhas, que corre o risco de morrer na prisão?”. De fato, o caso de Marina Petrella, de 54 anos, além de dividir os franceses, evidencia as manipulações midiáticas de Sarkozy em querer destruir a imagem do expresidente François Mitterrand que, em 1985, ofereceu o direito de asilo aos guerrilheiros italianos das Brigadas Vermelhas, Primeira Linha, PAC e de outros grupos menores que abandonassem a luta armada, reinserindo-se na sociedade civil francesa. Marina Petrella, membro da então direção estratégica das Brigadas Vermelhas de Roma, após oito anos de prisão, optou por exilar-se na França com a

filha. Depois, foi condenada à prisão perpétua por “concurso moral em assassinatos”. Em 2003, Sarkozy e Berlusconi fizeram um acordo para enterrar a “doutrina Mitterrand” e assim extraditar os ex-guerrilheiros italianos refugiados na França. Primeiro, foi Paolo Perchetti, depois Cesare Batisti – hoje preso no Brasil esperando o julgamento para a extradição. Agora, é a vez de Marina Petrella. Para protestar contra a atitude de Sarkozy, Marina Petrella iniciou uma greve de fome total ao ponto de, hoje, pesar somente 39 quilos e com o risco permanente de parada cardíaca. Mesmo assim, Sarkozy, que tem o poder de evitar a extradição por motivos humanitários, ainda não se manifestou. (AL)


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américa latina Juan Felipe Barriga/SP

Libertação de Ingrid começa a ser esclarecida COLÔMBIA Segundo militante do PC colombiano, utilização de emblema da Cruz Vermelha no resgate configura crime contra a humanidade Nestor Cozetti e Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ)

Brasil de Fato – Senhor Lozano, até que ponto é verdadeiro o noticiário da libertação de Ingrid Betancourt?

Carlos Lozano – O governo colombiano, em sua versão cinematográfica, não falou da participação de três agentes estadunidenses. Apresentou de uma maneira sensacional, desviando-se da verdade do que realmente ocorreu na operação. [Fatos] Que pouco a pouco, no país e no exterior, vêm-se revelando através das investigações dos jornalistas. Inclusive pelo que têm contado os guerrilheiros presos e os reféns libertados.

Essa política não tem nada de segurança, nem de democrática, porque o que a sustenta é a violência, a guerra O que dizem os guerrilheiros?

Lozano – Que viram pessoas com uniformes da Cruz Vermelha saltando de helicópteros pintados de forma quase igual ao utilizado pelo governo venezuelano e a Cruz Vermelha, quando da anterior entrega de reféns para Hugo Chávez. Isso significa que a operação foi arbitrária e ilegal, pois usar os emblemas da Cruz Vermelha é proibido pelos tratados internacionais da ONU e pelos estatutos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Ou seja, o governo colombiano não podia usar esses símbolos. O governo disse, primeiramente, que havia feito tudo sozinho, sem ajuda de ninguém, mas, no dia seguinte [ao resgate], o subsecretário de Estado dos Estados Unidos para assuntos do hemisfério disse que seu país participou da operação. Só não disse como. Por sua vez, o governo de Israel anunciou que eles também participaram no treinamento dos colombianos envolvidos. E o governo da Colômbia, o presidente [Álvaro] Uribe, já reconheceu que utilizou os emblemas do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e devem por isso uma explicação às Nações Unidas. E a Cruz Vermelha pode impetrar uma ação contra esse procedimento militar ilegal, que é qualificado como crime de lesa-humanidade, um crime muito grave. Mas o Comitê Internacional da Cruz Vermelha já disse que não vai mover nenhuma ação contra a Colômbia. Ou seja, protestou, recebeu umas explicações e vai deixar a coisa por isso mesmo. E por que isso não lhes convêm? O país já cometeu várias violações ao direito internacional. Ao menos três muito graves: a in-

Espetáculo midiático: o presidente Álvaro Uribe segura as mãos de Ingrid Betancourt

Há realmente um caldeirão revolucionário na América Latina, com uma ebulição enorme, como nunca antes, com países tomando posições soberanas muito importantes vasão do Equador, quando mataram Raúl Reyes, talvez a mais grave; e, em 2004, o governo Uribe enviou policiais colombianos a [capital venezuelana] Caracas, que subornaram policiais e seqüestraram [o porta-voz das Farc] Rodrigo Granda, tirando-o de lá clandestinamente, numa violação da soberania nacional. E agora é a terceira vez, com a utilização das insígnias da Cruz Vermelha. O que acontece é que em todos esses casos há vozes, protestos etc., e não passa disso. No caso do Equador, a OEA [Organização dos Estados Americanos] reconheceu a violação territorial. Mas este último parece que vai ficar por isso mesmo.

Como o senhor vê o fato de o governador do Rio de Janeiro dizer-se inspirado no modelo da capital colombiana para o que ele chama de confronto direto com a criminalidade?

Lozano – Certamente em Bogotá, capital da Colômbia, nos últimos anos diminuiu estatisticamente a violência urbana. Essa sim. Não estou falando dos conflitos sociais e políticos, já que a violência é um efeito do tecido social que não funciona na Colômbia. Mas a taxa de homicídio diminuiu, assim como os seqüestros. O governo nacional colombiano diz que isso se deve à política de segurança democrática. Mas é justamente essa a essência do problema de Uribe. Essa política não tem nada de segurança, nem de democrática, porque o que a sustenta é a violência, a guerra. A filosofia da segurança democrática é a guerra, o confronto militar com a guerrilha. Então, Uribe diz que o êxito da sua política é golpear a guerrilha e diminuir a taxa de homicídio. Porém, quero lembrar a vocês que os dois últimos prefeitos de Bogotá foram de esquerda. O atual também. Então, qual é o êxito dessa política de Uribe, quando os prefeitos de Bogotá são de esquerda e têm uma prática diferente da política nacional de guerra, da segurança democrática? Assim é muito difícil acreditar que esse comportamento urbano, que existe em Bogotá, possa ser creditado ao governo Uribe, que é de guerra, que é de matar Raúl Reyes, no Equador, a seqüestros em Caracas, com o Plano Colômbia do governo

a submissão ou a rendição da guerrilha, e sim uma negociação entre a guerrilha, o governo e a sociedade colombiana. Para avançar no terreno social, ou seja, nas causas que originaram o conflito. O que dizemos é que hoje devemos buscar a paz com justiça social.

dos Estados Unidos para atacar a guerrilha. Essa é a segurança democrática. Que foi a que se praticou em Medellín, onde existem favelas como as daqui [do Rio de Janeiro], que são cinturões de miséria. E qual a solução de Uribe em quatro anos? Mandou bombardear com helicópteros a cidade. É como se aqui mandassem bombardear todas as favelas. Essa é a solução de Uribe ao problema da violência, da miséria e da falta de condições. E tudo isso foi incorporado aos grupos irregulares, paramilitares e milícias.

O que Venezuela e Colômbia pensam sobre a criação do Conselho de Defesa da América do Sul?

Carolus Wimmer – Estamos [na Venezuela] num processo que chamamos de segunda libertação da América Latina. E não começamos com a parte militar; começamos com a política, com as estruturas econômicas, com esses encontros entre nossos povos [referindo-se ao encontro de Florianópolis]. Mas, sem dúvida, esse passo revolucionário não somente nos defende contra possíveis ataques do imperialismo, como também nos capacita a ir mais além do sistema capitalista.

Isso significa que a tática do confronto direto se resume a uma política de guerra?

Lozano – Sim, essa é a fórmula de Uribe, até exportada para o Equador com total desprezo pela pacificação. Ele crê que essa segurança seja extraterritorial, está além das fronteiras colombianas. E que os fins justificam os meios, que, para derrotar os terroristas, ele pode fazer o que quiser. Mas, sobre isso, o mais grave é a ONU e a OEA não dizerem nada. Assim como todos os dias estão contra Chávez, Cuba, Irã, China. Mas, sobre Uribe, não dizem nada, guardam absoluto silêncio. Parece uma espécie de cumplicidade da comunidade internacional com essa conduta.

Queremos uma paz que não signifique a submissão ou a rendição da guerrilha, e sim uma negociação entre a guerrilha, o governo e a sociedade colombiana

Aqui no Brasil, o Partido Comunista nunca apoiou a luta armada. E na Colômbia?

Lozano – Nosso partido esteve muito próximo das Farc. Compartilhou não só da luta armada, mas também do que chamávamos de convergência de todas as formas de luta de massas. A luta armada, mas junto com a de massas, popular. E isso durou muito tempo. Agora o governo Uribe quer nos cobrar essas coisas dizendo que quem realmente decretou a luta armada na Colômbia, os responsáveis pela violência terrorista, é o Partido Comunista. Mas nós, desde os anos de 1980, elaboramos uma proposta para a guerrilha, para o país, que foi a de buscar uma solução política para o conflito colombiano. Porque concluímos que a luta armada, sendo parte da história do país, não teria mais a possibilidade de vitória da maneira como se estabelecera. Já que uma guerrilha que se organiza como tal é para a tomada do poder por via das armas. A única que conheço que não almeja isso são os zapatistas mexicanos. Assim, nós, nos anos de 1980, dissemos que não, que isso não estava em nossas possibilidades. E a guerrilha converteu-se num pretexto para a oligarquia incrementar a guerra suja, o terrorismo de Estado. Desse modo, pensamos que temos que buscar uma saída política e que seja aceita pela guerrilha. E tanto as Farc quanto o ERP (Exército Revolucionário do Povo) aceitaram nossa proposta. Queremos uma paz que não signifique Nestor Cozetti

A GUERRILHA colombiana e a recente libertação de Ingrid Betancourt e outras 14 pessoas que estavam em poder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc); a importância da proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de criação do Conselho de Defesa da América do Sul, inicialmente apresentada pelo presidente venezuelano Hugo Chávez; bem como uma análise do “método colombiano” de combate à violência, defendido em várias oportunidades pelo governador Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro, foram alguns dos temas abordados pelos militantes comunistas colombiano Carlos Lozano e venezuelano Carolus Wimmer nesta entrevista ao Brasil de Fato. Eles passaram pelo Rio de Janeiro (RJ), a caminho de Florianópolis (SC), onde participaram do 4º Encontro de Comunistas da América Latina. Lozano explica também a ilegalidade cometida pelo governo colombiano, que utilizou emblemas da Cruz Vermelha Internacional no resgate realizado com a ajuda dos serviços secretos dos Estados Unidos e de Israel. Já Wimmer mostra também o que entende por “segundo processo de libertação da América Latina”. Além disso, Lozano lembra do posicionamento inicial de apoio do Partido Comunista Colombiano às Farc e a posterior mudança de posição na década de 1980.

Quem são Carolus Wimmer, secretário de Relações Internacionais do Comitê Central do Partido Comunista da Venezuela (PCV) e deputado venezuelano no Parlatino, é diretor da revista Debate Aberto e do jornal Tribuna Popular.

Carlos Lozano, membro do Birô Político do Comitê Central do Partido Comunista Colombiano (PCCol) e da Junta Nacional do Pólo Democrático Alternativo (PDA), é diretor do semanário Voz.

Agora, estamos interessados na proposta do presidente Lula, de criação do Conselho de Defesa da América do Sul. Essa, se deve lembrar, é a continuação de uma proposta do próprio Hugo Chávez, há alguns anos, quando falou de criar-se uma articulação para fazer frente à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em que teríamos que fazer um Tratado do Sul. Na América Latina, devemos estar preparados para o caso de qualquer ameaça exterior. Que no futuro possamos lidar com as ameaças, não somente por parte dos EUA, nosso inimigo histórico e tradicional. Também por parte da Europa, porque o que está em discussão neste momento no Tratado de Lisboa, que substitui a famosa e rechaçada Constituição Européia, é que seus governos também têm o direito de decidir quando querem, onde e como vão fazer a guerra. Então, nessa nova Constituição, se vocês lerem, a Europa também reivindica o direito de defender seus interesses em quaisquer partes do globo [a guerra preventiva dos EUA]. Hoje, com esse novo poder do capitalismo mundial, a Europa tem enormes necessidades energéticas e de água e estará, no futuro, competindo cada vez mais com os Estados Unidos, pois seus mercados precisam tirar nossos recursos e vender-nos suas mercadorias. E, com a presença da 4ª Frota [estadunidense], oficialmente instalada em 11 de julho, é isso que vemos. Uma ameaça política, uma espécie de lembrança das invasões anteriores. E há realmente um caldeirão revolucionário na América Latina, com uma ebulição enorme, como nunca antes, com países tomando posições soberanas muito importantes. Lozano – Para nós, a criação desse Conselho de Defesa da América do Sul é importante inclusive para fazer frente ao Tiar [Tratado Interamericano de Assistência Recíproca], que, na verdade, é de interferência e há anos se transformou num instrumento de garrote para submeter os povos da América Latina. Recorrendo ao Tiar, os EUA intervieram na República Dominicana, no Panamá e em Granada. Houve toda uma política de instrumentalização desse organismo para agredir países soberanos que o imperialismo crê deva estar sob seu controle.


12 de 31 de julho a 6 de agosto de 2008

américa latina Jean-Louis Gonterre

A batata: dos Andes para o mundo ALIMENTAÇÃO Bolívia comemora o Ano Internacional da Batata; tubérculo teve origem nas margens do Lago Titicaca Igor Ojeda correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia) ALGUNS POUCOS dias na Bolívia são suficientes para qualquer um notar uma de suas principais peculiaridades gastronômicas: a importância da batata na alimentação local. São raros os almoços em que esse tubérculo não seja um dos componentes do prato principal no dia-a-dia dos bolivianos. Claro que, em tempos de globalização neoliberal e cultura fast food, sua versão frita já é a dominante nas refeições. Mesmo assim, talvez como em poucos lugares do mundo, é na Bolívia onde se pode deparar com uma imensa variedade – de tamanho, consistência e cor – do alimento. No país andino, existem cerca de mil espécies. Nas feiras, mercados de rua, ou até mesmo nas redes de supermercados, é possível perceber isso rapidamente. Chuño e tunta, por exemplo, não são outra coisa que denominações para a batata que conhecemos no Brasil, só que cultivada de uma maneira diferente e/ou em ecorregiões distintas. Por isso, quando, em outubro de 2007, o Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) declarou 2008 como o Ano Internacional da Batata, diversas organizações e instituições do governo boliviano passaram a pensar e organizar diversas atividades para celebrar o alimento.

Origens Feiras de produção, exposições de fotos, pinturas, lançamentos de selos comemorativos, iniciativas com vistas a melhorar a produção, investigações... Eventos que buscam ressaltar a importância da batata (ou papa, como ela é chamada na América de língua espanhola) como produto alimentício e a necessidade de valorizar a sua biodiversidade genética. Além de ela formar a base alimentícia da população da Bolívia, pesa decisivamente o fato de muitos arqueólogos atribuírem sua origem, há oito mil anos, nas margens do místico Lago Titicaca (a 3.800 metros de altitude), que o país compartilha com o Peru. “A informação que temos é que seu cultivo teve início na região do lago, mais ou menos entre Santiago de Huata e Puno. Mas é um pouco equivocado dizer que surgiu aqui ou ali porque, quando se planta, depois de cinco anos é preciso renovar as sementes, e isso imediatamente cria relações

sociais, a troca de sementes com outras comunidades. Então, depois que uma comunidade começa, todas as outras em volta passam a fazer esses intercâmbios”, explica a antropóloga inglesa Denise Arnold, do Instituto de Língua e Cultura Aymara (Ilca).

Difusão Ela conta que há registros iconográficos na região sobre a batata em culturas pré-incas, como a de Chiripa, e que o tubérculo possuía muita importância durante a civilização de Tiwanaku (1500 a.C. – 1200 d.C.), cuja capital estava localizada nas margens do Titicaca. “Antes da queda de Tiwanaku, houve uma crise ecológica e, nesse momento, eles tentaram desenvolver uma produção estatal de batata para manter o controle do Estado

“O império Incaico estendeu seu cultivo em várias regiões do continente sulamericano, e depois os espanhóis tiveram um papel fundamental na disseminação desse tubérculo na Europa e de lá para outros continentes”, conta Jorge Blajos, gerente de investimentos e finanças da Fundação Proinpa sobre o império e para sustentar suas cerimônias, mantendo todos trabalhando com eles”, elucida Denise, que lembra ainda que, para os incas, a produção de batata, e especialmente de chuño, também era vital. “Era uma obrigação de todos os súditos proverem o exército”, reforça. Do Lago Titicaca, o cultivo da batata se difundiu para outras partes da América. “O império Incaico estendeu seu cultivo em várias regiões do continente sulamericano, e depois os espanhóis tiveram um papel fundamental na disseminação desse tubérculo na Europa e de lá para outros continentes. Atualmente, o cultivo de batata é o terceiro do mundo”, explica Jorge Blajos, gerente de investimentos e finanças da Fundação Proinpa (Promoção e Investigação de Produtos Andinos). Hoje, os principais produtores do tubérculo são a Chi-

na, a Rússia, a Índia e os Estados Unidos. Segundo Blajos, a constatação de que ele é a base alimentar dos povos andinos fica facilmente evidenciada pela média de consumo. Anualmente, cada habitante da região ingere 60 kg do alimento. Na zona rural, tal número se eleva até os 100 kg. “A batata não deve ser entendida como um alimento mais, uma vez que a grande biodiversidade que ela alberga representa, também, cultura, segurança e soberania alimentares”, diz.

Rituais de cultivo Tamanho significado inclui os rituais cerimoniosos no seu cultivo, relacionados, especialmente, com a fecundidade da terra. De acordo com Denise, a batata, nesse aspecto, possuía, entre os povos pré-invasão espanhola, o mesmo prestígio que o milho, tido por alguns estudiosos como o alimento mais importante, por exemplo, entre os incas. Até hoje, lembra, tais ritos ainda são seguidos. Estima-se que, apenas em solo boliviano, mais de 280 mil famílias estão envolvidas diretamente na produção do tubérculo – indiretamente, supera as 350 mil. Um número bem significativo se comparado com o total da população do país (cerca de 9 milhões de pessoas). “Na Bolívia, a batata é o principal produto agrícola da zona andina, com uma área cultivada de 130 mil hectares. Sua produção e comercialização é a principal fonte de ingressos para milhares de pequenos agricultores”, salienta Bajos, do Proinpa. A existência de uma enorme variedade do tubérculo explicase, segundo Denise, por fatores como a combinação do esforço do ser humano – que, com o cruzamento de espécies, prevenia-se de perdas das produções – e cultivos em diferentes microclimas. Jean-Louis Gonterre (jlg@pommedeterre.org), fotógrafo francês, cedeu gentilmente as fotos que ilustram esta página. Ele realizou duas exposições em La Paz (denominadas “Papa Madre” – batata mãe) por ocasião das comemorações do Ano Internacional da Batata. Uma sobre os homens e mulheres da Bolívia, do Peru e do Equador envolvidos na produção e comercialização do alimento. A segunda, com fotografias da própria batata, considerada pelo artista verdadeiras esculturas naturais. Seu trabalho pode ser conferido na página www.pommedeterre.org.

Do campo ao mercado, a batata é o principal produto agrícola andino


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