Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 284
São Paulo, de 7 a 13 de agosto de 2008
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Fábio Pozzebom/ABr
Monsanto na USP. Halliburton na Agência Nacional do Petróleo ainda ficaria subordinada a uma lei dos EUA. Parcerias como essa não são novidade, mas afastam instituições públicas da sociedade e as instrumentalizam para atender interesses privados. Já a Halliburton, segundo denúncia de engenheiros da Petrobras, controla há 10 anos o Banco de Dados de Exploração e Produção da Agência Nacional de Petróleo (ANP). Págs. 4 e 5 Arquivo MST
CULTURA A saída de Gilberto Gil tardou demais, e o Ministério da Cultura está onde sempre esteve: na irrelevante periferia das políticas públicas.
Transnacionais estadunidenses avançam sobre setores estratégicos do Estado brasileiro. Reportagem do Brasil de Fato revela que, no início deste ano, a Monsanto firmou convênio de iniciação científica com a Universidade de São Paulo. Num primeiro contrato, revisto após pressão de professores, a USP se submeteria a sigilo absoluto e
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Rondônia é o Estado que mais desmata Pesquisa do Grupo de Trabalho Amazônico aponta Rondônia como o Estado que, proporcionalmente à sua área, mais desmata no Brasil. 38% da floresta original teriam sido derrubados. De acordo com o estudo, a responsabilidade é da iniciativa privada, facilitada pela omissão do Poder Público. Pág. 7 Ricardo Stuckert/ABr
Em jornada nacional, MST cobra reforma agrária e denuncia prioridade do governo Lula pelo agronegócio. Pág. 8
Transnacionais enviam lucros recordes às suas matrizes A remessa de lucros das transnacionais às suas matrizes somou 18,993 bilhões de dólares no primeiro semestre, um recorde. A marca gerou outro fato inédito: o deficit da conta corrente do balanço de pagamentos foi de 17,7 bilhões de dólares, pior resultado desde 1947, quando o índice começou a ser medido. Para economistas, esses resultados refletem a política de valorização do Real e a internacionalização de parte do setor produtivo. Pág. 3 Alejandro Azcuy/ABI
Militares torturadores devem ser punidos Crimes cometidos por funcionários públicos durante a ditadura civilmilitar são comuns, e não políticos; por isso, seus autores não podem ser
beneficiados pela anistia de 1979. Essa é a avaliação dos ministros da Justiça, Tarso Genro, e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, que
defendem a punição aos torturadores da ditadura. Vanucchi entende que o Brasil trata a anistia de modo diferente de todos os demais países do mundo.
Para ele, um dos motivos de não se ter ido a fundo na questão é o fato de muitos torturadores manterem cargos e muita influência no país. Págs. 2 e 6 Antonio Cruz/ABr
Tensão cerca referendo na Bolívia
Honduras vai se integrar à Alba O presidente de Honduras, Manuel Zelaya, afirmou que seu país se transformará em um membro pleno da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). Para ele, os planos de integração promovidos pela Venezuela são uma nova resposta a velhos problemas da América Latina. O anúncio foi feito durante a Primeira Cúpula de Ministros de Agricultura do mecanismo integrador Petrocaribe, realizado no dia 30 de julho, em Tegucigalpa, capital hondurenha. Pág. 10
Os ministros Paulo Vanucchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, e Tarso Genro, da Justiça WEF/CC
Brasil insiste no velho mantra do livre comércio O motivo central apontado pela mídia corporativa como a gota d’água para o fim das negociações da Rodada de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC), no dia 29 de julho, foi o antagonismo entre Estados Unidos e Índia com relação a um mecanismo de salvaguarda. Pouco se discutiu, entretanto, a forma agressiva
de liberalização comercial quase que imposta, tanto pelos Estados Unidos como pela União Européia, junto aos países em desenvolvimento. Mesmo assim, o Brasil insiste em seguir com a Rodada. Pág. 11
No dia 10, os bolivianos irão às urnas decidir se revogam ou não o mandato do presidente, do vice e dos governadores departamentais. Mobilizações à esquerda e à direita conturbam situação política do país, mas, segundo o enviado do Brasil de Fato a Cochabamba Igor Ojeda, o governo Evo Morales e os movimentos sociais vêem com otimismo a possibilidade de revogar o mandato do governador local, um dos principais nomes da direita, e alterar nacionalmente a correlação de forças em seu favor. Pág. 9
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editorial
“É que eles têm medo do dia de amanhã Eles aconselham o dia de amanhã Eles desde já querem ter guardado todo o seu passado no dia de amanhã” (“Em volta da mesa” – Caetano Veloso – 1967) QUEM É o ministro da Defesa, senhor Nelson Jobim, com seu histórico de fraudador do texto da Constituição, para puxar orelhas de seus pares de Ministério? Por que a pressa em servir a meia dúzia de chefes militares, coadjuvados por coronéis de pijama, saudosistas da ditadura, quando brilhavam como co/mandantes e/ou executores em seus quartéis de torturas contra opositores da ditadura? Quando uma Audiência Pública em torno do tema “Limites e Possibilidades para a Responsabilização Jurídica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceção no Brasil”, organizada pelo ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, e a defesa, pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, da punição de militares que praticaram a tortura durante a ditadura pós 64 são capazes de abrir uma crise institucional, é por que estamos à beira do caos. Sobretudo se lembrarmos que, apesar de revelar um poder supra-Estado, o escândalo Daniel Dantas foi in-
debate
Um fantasma ronda a caserna capaz de provocar qualquer crise desse tipo, ou qualquer arrufo patrioteiro desses atores fardados.
Quem quer sair bonito na foto? Quando o leitor estiver folheando esta edição, na quinta-feira (7 de agosto), esses coronéis de pijama e alguns oficiais da ativa estarão reunidos na sede do Clube Militar, no Rio. Prometem projetar em telão biografias (à sua moda), fotos e documentos dos anos 1960-1970 dos membros do atual Governo que se puseram em armas contra o regime que muitos dos ali reunidos implantaram, dirigiram e que ainda defendem, e cujo saldo – além de uma inaudita concentração da riqueza e ampliação da miséria – foi o de mais de 400 opositores assassinados. Certamente não exibirão as fotos dos arquivos policiais e militares em que vários desses antigos militantes aparecem com rostos desfigurados em virtude das torturas. Ou seja, sequer em conta que nenhum dos seus biografados faz questão de sair bonito na foto. Intimidações prosseguem Enquanto esses senhores que desonram nossas Forças Armadas (como se fossem estas, e não alguns dos seus membros, responsáveis pelas barbaridades cometidas contra milhares de opositores – muitos dos quais também militares) estive-
rem reunidos, certamente a nossa repórter Tatiana Merlino estará recebendo mais uma ameaça anônima por telefone: Tatiana é sobrinha do jornalista Luiz Merlino, assassinado sob torturas em 1971, nas dependências do Doi-Codi (SP), e cuja família move processo de responsabilização do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, pelo assassinato do jornalista.
Fichas dos “subversivos” Na verdade, aqueles militares já começaram a divulgar os dossiês de membros do Governo. Logo após a Audiência organizada pelo ministro Vanucchi e a declaração do ministro Genro, a ficha sobre o passado político deste último foi enviada à imprensa, que a publicou. Perguntado a respeito, o ministro respondeu: “A minha [ficha] me orgulha”. Orgulham-nos também a ficha do ministro Genro, a do ministro Vanucchi, e as fichas de todos atuais ou ex-membros do Governo que lutaram, não importa por que meios, contra a ditadura – mesmo aqueles com os quais possamos ter divergências políticas. Também nos orgulhamos do marechal Henrique Dufles Teixeira Lott, e do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon – apenas dois exemplos dos muitos militares que honraram as nossas Forças Armadas.
O mesmo não podemos dizer do passado do senhor Jobim.
Insustentáveis falácias Tão insustentável quanto achar que tortura é crime político e/ou prescritível, ou que a expressão “crimes conexos” (na Lei de Anistia de 1979) significa anistiar também os torturadores e seus mandantes, é qualificar de “revanchismo” a necessidade, para o aprofundamento da democracia, de apuração dos crimes cometidos contra os opositores do regime e, portanto, de responsabilizar, julgar e punir aqueles que os cometeram: não se tem notícia de qualquer entidade ou pessoa que tenha sugerido “seqüestrar”, manter em cárcere clandestino, torturar, assassinar ou “desaparecer” com qualquer dos criminosos que forem identificados. Isto, sim, seria “revanche”. O que se propõe é que sejam julgados, com todo o direito de defesa e demais direitos que lhes confira a lei. Maior falácia (cinismo) é pretender que, caso isto venha a acontecer, os opositores do regime sejam também julgados e punidos. A resposta a tanta ignomínia cabe em uma curta pergunta: Outra vez? Considerações finais Os reunidos no Clube Militar são os mesmos que lutam pela criminalização dos movimentos populares. Os mesmos que, juntamente com o
opinião
Denúncia da Comissão Pastoral da Terra/MG
responsabilidade do Dnocs. Desta forma a Supram, apesar de classificar a obra na mais alta categoria quanto ao impacto ambiental – na classe VI (grande impacto ambiental) –, declara que, por ser barragem de perenização, não necessita de EIA Rima, mas sim de um Relatório de Controle Ambiental (RCA), estudo simplificado usado para empreendimentos menores, originalmente criado para projetos de mineração. Assim facilita para o empreendedor e ainda burla a necessidade de realização de Audiências Públicas. Tudo isso com muito lobby do governo federal, mineiro, dos latifundiários da região e mais um grupo de reacionários. Atropela-se assim: o povo, a legislação e a ética. A Barragem de Berizal vai atingir uma área de 3.630 hectares, áreas de matas de cipó, as melhores terras da região. E vai expulsar quase 700 famílias. A região apresenta uma grande riqueza em termos de biodiversidade, considerada como de importância biológica alta no Atlas da Biodiversidade de Minas Gerais. Nesse novo processo, o Dnocs nem sequer teve a iniciativa de conversar com a comunidade atingida, desprezando todo o passado de negociações. O tempo passa, mas o Dnocs mantém a mesma postura da época da ditadura militar. Uma obra desse tamanho, com inúmeros impactos, ser autorizada, licenciada, sem EIA Rima? Sem audiência pública? O que significa isso para a já medíocre democracia brasileira? Num
Péricles de Oliveira
O capital financeiro e o oportunismo da classe média brasileira
A farsa do licenciamento ambiental em Minas Gerais É A CONTRADIÇÃO entre o Brasil Oficial e o real. Entre o que ocorre nos bastidores e o que é mostrado aos cidadãos. O Estado mineiro, com o atual governo Aécio Neves, investe numa imagem de eficiência e qualidade ambiental. Na verdade uma grande farsa. O caso do licenciamento ambiental da Barragem de Berizal, na bacia do Rio Pardo, norte de Minas, é exemplar, mas não é pontual, sim conjuntural. O Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs), órgão do Ministério da Integração, iniciou em 1999 a barragem de Berizal de forma criminosa. Sem nenhum tipo de licenciamento ambiental. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), foram construídos 40% da obra. Na tentativa de uma licença ambiental corretiva, fez Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (Rima), e encaminhou na época para a Fundação Estadual do Meio Ambiente. Foram sucessivos tropeços causados pela ineficiência e inconsistência da obra e dos estudos, o processo não deu prosseguimento pela nãoapresentação de complementação dos estudos (Plano de Controle Ambiental – PCA) e pela fragilidade dos que foram apresentados. Alguns pontos chamam a atenção: os estudos mostram que a barragem teria uma vida útil de 4 a 10 anos; no projeto, nunca ficou claro o objetivo do barramento – mas todos sabem que a água será usada pelos grandes irrigantes, e não pela população pobre (inclusive no Atlas de Abastecimento Urbano da Agência Nacional de Água (ANA), a Barragem não consta como alternativa). No mês de maio de 2008, o Dnocs inicia novo processo de licenciamento. Com uma velocidade espantosa, a licença prévia foi concedida. Dia 24 de julho de 2008, no município de Buritizeiro, a quase 500 km da obra, houve aprovação pelo Conselho de Política Ambiental Norte de Minas (NM). O porquê dessa velocidade? Certamente um acordo entre o governo federal e o mineiro para garantir a verba alocada no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ainda mais num período eleitoral. Como foi feita a artimanha? Para facilitar o processo de licenciamento, o Dnocs encaminhou pedido à Superintendência Regional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Supram-NM), alegando que o objetivo da barragem é a perenização do Rio Pardo, mas reconhecendo que a água poderá ser usada para vários fins, como a irrigação. Mas que os demais usos seriam objetivo de outros processos de licenciamento futuros e não eram
“alerta” que dão sobre a forte presença de “ex-terroristas” no atual Governo, e sobre supostos contatos destes com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), tentam criminalizar o próprio Governo. O objetivo é simples: pressioná-lo para barganhar novos cargos – como o fizeram (sempre com o apoio da grande mídia comercial) para emplacar o senhor Jobim na pasta da Defesa. Aliás, quem cunhou a expressão “terroristas” para designar os que combateram com armas a ditadura, foi essa mesma mídia – no caso, o Jornal do Brasil. Lamentavelmente os jornalistas do Observatório da Imprensa não poderão nos ajudar a investigar essa questão: não se deve falar de corda em casa de enforcado. Quanto às declarações apressadas e levianas dos deputados federais (PT-SP) Cândido Vacarezza e Jilmar Tato, de censura ao ministro Genro, atribuindo a atitude deste a uma suposta intenção de acúmulo político visando candidatura à Presidência em 2010, elas os deixam em situação delicada: não estariam os deputados alavancando, assim, a potencial candidatura do ministro Jobim, o Fraudador, para a substituição do atual presidente e, ao mesmo tempo, se cacifando para cargos futuros? Ora, os muitos movimentos do senhor Jobim demonstram claramente que se prepara para postular o cargo. Um tertius de última hora.
país em que o poder econômico nunca respeitou os direitos ambientais, sociais, políticos e econômicos das populações pobres. Certamente estamos andando para trás. Esse procedimento já está virando rotina. A barragem no Rio Calindó, também para irrigação, também do Dnocs e licenciada pela Supram-NM, não terá EIA Rima. A sociedade civil e os órgãos do Estado que ainda têm um mínimo de coerência estão frente a um momento em que a possibilidade de controle social dos licenciamentos ambientais está desmoronando. Onde o poder econômico tem total controle sobre as estruturas do Estado. Os maiores interessados nessa obra são os latifundiários e grandes empresas da região. Justamente quem degradou a bacia do Rio Pardo, que encontra-se em situação bastante grave. Monocultura de eucalipto, grandes irrigações e o Pró-Várzea são os principais causadores de uma enorme devastação ambiental na região. O rio necessita de revitalização sócio-ambiental. A comunidade local se mobiliza por essa campanha. Os atingidos pela barragem e seus irmãos de luta chamam a sociedade para fortalecer essa batalha, no caminho de uma terra sem males. E a barragem significa o fim do sonho de revitalização do Rio Pardo. Montes Claros, 25 de julho de 2008. Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais
O CAPITALISMO concentra sua acumulação agora, na esfera da circulação, no chamado capital financeiro. Os capitalistas banqueiros e os outros que possuem capital na forma de dinheiro são os que hoje acumulam ainda mais. Usam esse dinheiro para comprar ações das empresas que atuam na produção e comércio e, assim, se apropriam de parte do lucro deles. Usam esse dinheiro para emprestar ao governo e dele recebem polpudas taxas de juros. No caso brasileiro, o governo garante a taxa mínima (chamada de Selic) de 13% ao ano, enquanto esse mesmo capital ganha nos países desenvolvidos apenas 2% de juros ao ano. E esse capital é também aplicado no financiamento das vendas a prazo. Ou seja, ativa o comércio e a produção, mas se apropria de uma alta taxa de lucro, oriunda das taxas de juros cobradas dos incautos consumidores, que, para alimentar seu sonho de consumo, se sujeitam a pagar muito mais em prestações. No Brasil, a taxa média de juros cobrada dos consumidores que compram a prazo eletrodomésticos ou carros é de 47% ao ano. Um lucro fantástico!! Lembre-se de que a taxa de lucro médio das empresas industriais em todo mundo gira ao redor de 13% ao ano. Em função disso, entraram no Brasil nada menos que 330 bilhões de dólares para especular, nos últimos dois anos. Aplicaram na Bolsa de Valores, em ações, nos bancos privados para financiar vendas a prazo e emprestaram ao governo brasileiro. Na onda do lucro fácil, rápido e volumoso, a classe média brasileira ficou enciumada e resolveu também entrar na ciranda financeira. A Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) teve as ações valorizadas, entre 2003 e 2007, em nada menos que 467%. Ou seja, um investidor que comprou uma ação em 2003 por 1,00 pode revendê-la no final de 2007 por R$ 5,67. Mas esse dinheiro não tem nada a ver com a riqueza produzida. É apenas fruto da especulação entre os capitalistas que apostam ali seu dinheiro, para tentar auferir parte do lucro das empresas.
Aplicadores na Bovespa perderam R$ 438 bilhões em dois meses; mas quem ganhou? Diante disso, em 2002, havia 82 mil pessoas que aplicavam dinheiro em ações da bolsa. A vontade de ganhar dinheiro fácil elevou o número de aplicadores para 516 mil pessoas físicas. A maior parte da classe média brasileira, pelo menos da região Sudeste. Mas o capital financeiro e o capitalismo, como dizia algum técnico de futebol, é para profissionais, e eles não perdoam os incautos. Nesse jogo de especulação, alguns ganham: os bancos, os mais fortes, os que podem especular a longo prazo... E muitos perdem para manter essa taxa de lucro resultante da especulação, já que o dinheiro investido em bolsa não representa aplicação em investimento, patrimônio físico e produção real. Resultado: os jornais estão noticiando que, em junho e julho de 2008, os aplicadores na Bovespa perderam R$ 438 bilhões, em conseqüência da conjugação das várias crises no capital financeiro. A classe média oportunista, que sonhava ficar mais rica em um rompante, aplicou e perdeu. E alguém ganhou. Certamente os bancos, os fundos de investimento estrangeiros que coordenavam esses recursos e as grandes empresas. A classe média perdeu R$ 438 bilhões em dois meses. E a verdadeira burguesia financeira, brasileira e internacional, apropriou-se disso. E viva a concentração. E viva o capitalismo! Péricles de Oliveira é economista
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil
Recorde das remessas de lucros das transnacionais afeta contas externas ECONOMIA Internacionalização do setor produtivo e política cambial levam a deficit da conta corrente do balanço de pagamentos Gervásio Baptista/Abr
Renato Godoy de Toledo da Redação AS REMESSAS de lucros e dividendos das empresas transnacionais para suas matrizes nunca foram tão altas no Brasil e são as principais responsáveis pelo desequilíbrio nas contas externas do país. Tal constatação não partiu de nenhum crítico do modelo econômico brasileiro, mas sim do próprio chefe do Departamento Econômico do Banco Central (BC), Altamir Lopes. Entre janeiro e junho de 2008, as transnacionais com atividade em território brasileiro enviaram 18,993 bilhões de dólares às suas matrizes. Essa transferência recorde impulsionou outra marca inédita. A conta corrente do balanço de pagamentos apresentou um deficit de 17,7 bilhões de dólares no primeiro semestre, pior resultado desde o início da série histórica do BC, em 1947. A conta corrente é composta por três itens: a balança comercial, aferida pela relação entre exportações e importações; as transações unilaterais, compostas por pagamentos ou recebimentos realizados por agentes privados ou públicos; e a conta de serviços, calculada pelo gasto com transportes, viagens internacionais e outros itens. Historicamente, esse último item tem apresentado deficit, devido à maneira como o Brasil se insere no mercado internacional e também pela internacionalização de serviços como a telefonia, antes nacionais ou estatais. Já a balança comercial tem apresentado superavit, ainda que essa margem esteja reduzindo.
“Com a valorização da moeda nacional, enviar lucros está mais barato, já que com muito menos reais se mandam ‘caminhões’ de dólares para o exterior”, afirma Leda Paulani Para exemplificar numericamente como se obtém o resultado da conta corrente, no mês de junho, a balança comercial registrou um saldo positivo de 2,718 bilhões de dólares, a conta de serviços apresentou deficit de 5,632 bilhões de dólares e, por meio das transferências unilaterais, ingressaram 320 milhões de dólares no país. Essas transações representaram um saldo negativo de 2,596 bilhões de dólares. O número se torna mais alarmante ao ser comparado com o resultado do mesmo período do ano passado, quando foi registrado um superavit de 539 milhões de dólares.
Estrutura e conjuntura Na visão de economistas consultados pelo Brasil de Fato, o recorde negativo da economia brasileira tem fatores estruturais e conjunturais. Os primeiros estariam relacionados à inserção do país na economia mundial como exportador de matéria-prima e importador de serviços, que garante uma balança comercial favorável, mas nem sempre capaz de suprir o deficit ocasionado pelas importações. O aspecto conjuntural refere-se à atual política cambial de valorização da moeda nacional, que favorece o investimento de curto prazo no país, mais conhecido como especulação financeira. À estrutura da economia nacional consolidada historicamente, soma-se um fator que a tornou ainda mais suscetível à saída de capitais do país: a venda de estatais para agentes privados internacionais no início dos anos de 1990. “Com as privatizações, boa parte do capi-
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Quanto
18,993 bilhões
de dólares é o montante que as transnacionais com atividade no Brasil enviaram às suas matrizes tal produtivo foi internacionalizada. Essas empresas na área de serviços, como os setores de telecomunicações e transportes, tinham que gerar lucro em moeda nacional e, depois desse processo, passaram a fazêlo em dólar, pois os proprietários do capital estão fora do país”, explica Leda Paulani, professora de economia da Universidade de São Paulo. Questionada se o envio de dólares ao exterior deve recrudescer no próximo período, a economista afirma que o momento é propício para as transnacionais se aproveitarem da política cambial brasileira. “A tendência é que a remessa de lucros seja alta. Agora, combinado com isso, há um elemento conjuntural que é a continuidade da política de valorização da moeda nacional. Com isso, enviar lucros está mais barato, já que com muito menos Reais se mandam ‘caminhões’ de dólares para o exterior”, analisa. Outro aspecto a alavancar a saída de capitais do país são os chamados investimentos de portifólio, segundo Paulani. Esse tipo de capital inclui os títulos da dívida pública brasileira, indexados pela taxa básica de juros, a Selic, atualmente fixada em 13% ao ano, patamar mais alto do mundo. Somente no primeiro semestre, o país pagou R$ 88,026 bilhões em juros aos credores, maior número registrado desde o início da série histórica do BC, em 1991. Ao mesmo tempo em que os juros altos rendem lucros para os credores externos da dívida, a Selic alta assegura que não haja uma fuga ainda maior de dólares do país, já que o rendimento de 13% ao ano é atraente para o especulador. “A situação (da saída de dólares) só não é mais grave porque os juros altos ajudam a conter a fuga de capitais”, afirma Reinaldo Gonçalves, economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Opção pelo agronegócio A saída e entrada de capitais no Brasil é mediada pelo BC. As transnacionais, para enviar os seus lucros às matrizes, trocam os reais obtidos aqui por dólares do BC. A moeda estadunidense concedida pela instituição é fruto da operação inversa: quando os exportadores brasileiros recebem em dólar, repassam este para o BC, que lhe devolve em reais. Para não desequilibrar suas contas e ficar sem dólares, o Brasil fez uma opção para equacionar essa balança, conforme explica Guilherme Delgado, economista aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “No final dos anos de 1990, o Brasil entrou numa posição negativa de falta de recursos para financiar o seu deficit. A partir daí, o governo recorreu aos empréstimos do FMI para sair da crise – e entrar em outra. Posteriormente, passou a apostar todas as suas fichas nas exportações primárias, fortalecendo o agronegócio”, aponta. Delgado afirma que o deficit da conta corrente pode servir como um freio à economia brasileira. “Quando se promove o crescimento, cresce o volume de exportações, e o pagamento de serviços é muito elevado. O deficit na conta de serviços e na balança comercial gera um passivo externo que não dá para financiar. Isso coloca o crescimento em xeque. Se as exportações não crescerem, tem que se compensar o rombo com mais entrada de capital estrangeiro, ou consumir reserva. Ou as duas coisas, mas as reservas são limitadas. Se a conta corrente não for equacionada de forma dura, pode haver problemas”, prevê.
Guilherme Delgado, economista aposentado do Ipea, e Leda Paulani, professora de economia da USP
Economia do governo tem maior resultado da história da Redação Tal como o deficit da conta corrente do balanço de pagamentos e a remessa de lucros das transnacionais, o superavit primário também apresentou recorde no primeiro semestre. A economia que o governo faz para pagar juros e amortizações da dívida atingiu o valor de R$ 86,116 bilhões, entre janeiro e junho. O montante equivale a 6,32% do Produto Interno Bruto (PIB), o que configura o maior superavit desde o início da série histórica do Banco Central, em 1991.
Para economizar esse dinheiro, o governo corta investimentos em serviços públicos e nas áreas sociais, entre outras medidas. O valor, em termos percentuais, representa quase o dobro da meta estabelecida para o ano (3,8%). Nos últimos 12 meses, o superavit somou R$ 116,048 bilhões (4,27%). Com essa economia inédita, o governo ficou mais próximo de atingir o deficit nominal zero, que é uma obsessão da equipe econômica do governo. Essa marca se dá quando as receitas se equiparam às despesas, incluindo o gasto com juros. No primeiro semestre, o deficit nominal foi de R$ 1,910 bilhão, equivalente a 0,14% do PIB, menor percentual aferido pelo BC. (RGT)
Desnacionalização da economia explica saída recorde de capital, afirma economista Para Reinaldo Gonçalves, controle do fluxo de capital solucionaria o problema da Redação A liberalização da economia e a falta de competitividade dos produtos manufaturados brasileiros no mercado mundial são determinantes para um aumento das importações no país. Essa é a análise do economista da UFRJ Reinaldo Gonçalves. Para ele, esses fatores são fundamentais para compreender o deficit da conta corrente do balanço de pagamentos, sem deixar de considerar a liberalização da economia e a desnacionalização do setor produtivo. Veja entrevista abaixo. Brasil de Fato – O BC apresentou o maior deficit da conta corrente do balanço de pagamentos desde o início da série histórica, em 1947. Quais são as características da economia brasileira determinantes para esse resultado? Reinaldo Gonçalves - A ineficiên-
cia sistêmica da economia brasileira é o principal fator desse deficit. No passado recente, a elasticidade-renda da demanda por importações tem estado muito elevada. Ou seja, com a baixa competitividade internacional dos produtos manufaturados brasileiros, os “buracos” na oferta doméstica implicam em elevado crescimento das importações, mesmo para pequenos aumentos de renda. O grau de liberalização comercial também estimula as importações. Na área de serviços, a situação é ainda pior, pois o país tem deficit nesta conta. De que forma a política cambial e a valorização do real influenciaram o aumento do deficit? Não resta dúvida de que a taxa de câmbio é um dos principais determinantes da forte deterioração das contas externas do país. O governo está usando o dólar barato para conter a pressão inflacionária. Entretanto, o próprio dólar barato provoca o cres-
cimento extraordinário dos fluxos de saída de divisas do país. A situação só não é mais grave porque os juros altos ajudam a conter a fuga de capitais. Mesmo assim, o investimento brasileiro no exterior tem crescido. Os dados do Banco Central revelaram que as remessas de lucros e dividendos das transnacionais para as matrizes, tal como o deficit da conta corrente, nunca foram tão altas. Seria possível criar obstáculos para a saída desse dinheiro do país? Há uma saída extraordinária de divisas por conta dos pagamentos de serviços de fatores, principalmente, remessas de lucros e dividendos. O elevado grau de desnacionalização brasileiro explica esse fenômeno. O controle de entrada e saída de capitais é um instrumento aplicável em situações como a brasileira. Ocorre que a política do governo Lula é de maior liberalização financeira e cambial. (RGT)
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Empresa dos EUA controla petróleo do Brasil, garantem engenheiros da Petrobras ENERGIA Halliburton administraria banco de dados da Agência Nacional do Petróleo; assessoria de imprensa do órgão nega Patrick
Luís Brasilino da Redação A TRANSNACIONAL estadunidense Halliburton controla o Banco de Dados de Exploração e Produção (BDEP) e os leilões realizados pela Agência Nacional de Petróleo (ANP). A denúncia vem sendo sustentada, desde o final de julho, pela Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet). Segundo seu diretor de comunicação, Fernando Siqueira, a Landmark Digital and Consulting Solutions – subsidiária da megaempresa estadunidense que já foi presidida pelo vice de George W. Bush, Dick Cheney, e é apontada como uma das principais responsáveis pela invasão do Iraque – administra há 10 anos o BDEP, sem ter passado por licitação. O fato foi questionado, em 2004, por parecer da Procuradoria Geral da República que exigiu que os serviços prestados ao banco de dados passassem por concorrência. Tais informações foram transmitidas a Siqueira por fontes que ele prefere não revelar. Mas a denúncia da Aepet contra a ANP se completa em torno de um fato que é público. De acordo com currículo publicado no site da Agência, o diretor Nelson Narciso possui experiência de “24 anos em cargos de direção e gerência na Indústria de Petróleo”, sendo que o último ano antes de assumir seu atual cargo foi na Halliburton, entre maio de 2005 e junho de 2006. Narciso é o responsável pelas superintendências de Gestão e Obtenção de Dados Técnicos, de Promoção de Licitações, de Comercialização e Movimentação de Petróleo, seus Derivados e Gás Natural e de Definição de Blocos. Segundo nota emitida pela Aepet, “a raposa está no galinheiro”, uma vez que as informações do BDEP podem ser acessadas pela Halliburton que, além disso, está ligada ao diretor responsável pela definição dos blocos que vão a leilão.
A transnacional Halliburton controla banco de dados com informações sobre levantamentos sísmicos, análises e resultados de perfurações
Para Paulo Metri, a novidade na denúncia da Aepet “é que a transferência de informações está ocorrendo, se tudo se confirmar, mais cedo do que iria ocorrer e só para uma empresa, a Halliburton” A assessoria de imprensa da ANP contesta as acusações. Ela lembra que Narciso foi nomeado pelo presidente da República, sabatinado e aprovado pelo Senado. Com relação ao banco de dados, a assessoria garante que ele é administrado pela própria Agência. De acordo com ela, a Petrobras transferiu as informações e o software do BDEP para a ANP por determinação da
Lei do Petróleo (9.478/1997). Anos depois, a Halliburton adquiriu a fabricante do programa de computador que hospeda os dados e, desde então, presta serviços de assistência. A assessoria garante que a transnacional não acessa as informações.
Privatização Paulo Metri, engenheiro mecânico e conselheiro do
Clube de Engenharia, informa que o BDEP contém dados sobre levantamentos sísmicos, análises e resultados de perfurações realizadas em diversas áreas do território brasileiro. “Essas informações são estratégicas, pois, a partir delas, é possível estimar, com maior chance de sucesso, a possibilidade de ocorrência de petróleo”, completa. Mas, para analistas, na prática, não faz muita diferença se os dados são controlados pela Halliburton ou pela ANP. O sociólogo Ivan Pinheiro, secretáriogeral do Partido Comunista Brasileiro (PCB), acredita que a idéia central das agências reguladoras, como
a ANP, é permitir que “o mercado regulamente atividades estatais, acima do Estado”. Ou seja, como foram criadas para aprofundar a privatização, já defendem interesses particulares.
Dois modelos Sendo assim, de que modo os dados a que teria acesso a Halliburton podem ser utilizados em prejuízo do país? Para Metri, não se pode responder a essa pergunta sem analisar os modelos de produção e exploração de petróleo. Ele avalia que, desde o governo Fernando Henrique Cardoso, o sistema brasileiro se baseia na competição entre petrolíferas estrangeiras e a Petrobras – “para
campos pequenos e de menor importância, entram os empresários privados nacionais”, acrescenta. Nesse modelo, áreas são leiloadas, o petróleo que for descoberto é produzido rapidamente e, se o descobridor, portanto seu proprietário, for estrangeiro, irá exportá-lo, “pouco restando para a sociedade brasileira”. Além disso, o país não tem petróleo para desempenhar um papel geopolítico e recebe impostos e taxas mínimos.
Soberania “Contudo, se existisse um outro modelo, o inverso do atual, a informação sobre onde há exatamente petróleo no Brasil deveria ser preservada”, avisa Metri. O engenheiro lembra o campo de Júpiter, na Bacia de Santos, que está a mais de 200 milhas (350 quilômetros) da costa, além da zona econômica exclusiva nacional. “Apesar de o Brasil já ter requerido à ONU a expansão da zona de exploração econômica, teoricamente os Estados Unidos, por exemplo, poderiam começar a furar nessa região sem conflitar nenhum acordo internacional. Será que a Quarta Frota não foi recriada exatamente para dar o respaldo militar necessário para essa ação? Com o nosso subsolo sendo divulgado para todo mundo, a usurpação fica até mais fácil de ser realizada”, alerta. Metri lembra que, nos seus dez anos de existência, a ANP aplicou “de forma impecável” o modelo inaugurado por Fernando Henrique. “O conjunto de dados mais recentes de uma área é vendido pela ANP a todas as empresas que se inscrevem no leilão do respectivo bloco”, ressalta. Sendo assim, mais cedo ou mais tarde, todos os dados são divulgados. Para o engenheiro, a novidade na denúncia da Aepet “é que a transferência de informações está ocorrendo, se tudo se confirmar, mais cedo do que iria ocorrer e só para uma empresa, a Halliburton”.
Antonio Cruz/ABr
A ética Halliburton pelo mundo
Reservas do país somam mais de 10 trilhões de dólares
Transnacional está envolvida em diversas ações militares dos EUA
Novos campos e elevação internacional do preço do barril aumentam interesse em torno dos recursos brasileiros da Redação A descoberta de uma nova reserva no campo de Tupi, na Bacia de Santos, anunciada em novembro de 2007, alçou o Brasil a uma posição de destaque dentro da geopolítica do petróleo. Em março, Haroldo Lima, presidente da ANP, veio a público comemorar que o potencial era maior do que se esperava e que o país poderia ter até a 3ª maior reserva do mundo. Fato é que, segundo estudos técnicos da Petrobras, a estimativa para as descobertas do pré-sal são de 90 bilhões de barris que, somados aos 14 bilhões já conhecidos, deixam o Brasil com a quarta maior reserva do mundo, 104 bilhões, logo atrás do Iraque (115 bilhões). À frente estariam apenas a líder Arábia Saudita (264 bilhões) e o Irã (137 bilhões). Após chegar a custar 147 dólares no dia 11 de julho, as previsões de desaquecimento das economias estadunidense e européia fizeram o preço do barril de petróleo cair, atingindo 119 dólares no dia 5. Porém, o valor dos barris vive
uma tendência de alta provocada pelo que muitos analistas consideram um terceiro choque mundial. As descobertas, mais os preços elevados, atraem as transnacionais para as reservas brasileiras. As cifras giram em torno de dezenas de trilhões de dólares. O governo federal se movimenta e anuncia a disposição de criar uma estatal para administrar os leilões. Porém, Fernando Siqueira, diretor de comunicação da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet), entende que essa medida procura tirar o foco da discussão: o marco regulatório. De acordo com ele, a Lei do Petróleo (9.478/1997), que o estabeleceu, é intrinsecamente ilegal. “O artigo 3 diz que as jazidas são da União, o 21 que o produto da lavra também. Mas o 26 estabelece que quem extrair o petróleo é o seu dono”, destaca. Assim, o Brasil não pode regular as exportações, mesmo em momentos de escassez interna. Siqueira acrescenta que, logo depois da Lei do Petróleo, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o Decreto 2.705/1998, determi-
da Redação
O presidente da ANP, Haroldo Lima
nando que o governo teria uma participação especial de 0 a 40% sobre o produto da venda. “É um crime de lesapátria. No mundo, a média é 84%”, critica.
Retomada Por isso, o dirigente da Aepet defende uma correção do marco regulatório, devolvendo ao país a propriedade do petróleo extraído e elevando a participação especial, ao menos, para 84%. Contrariando a expectativa de alta do petróleo e considerando que o barril se mantenha nos atuais 119 dólares – algo extremamente improvável –, as reservas do pré-sal valeriam um total de 10,710 trilhões de dólares. Com uma participação especial de 40%, o Brasil ficaria
com 4,284 trilhões de dólares; já com 84%, seriam 8,996 trilhões de dólares, uma diferença de 4,712 trilhões de dólares – o equivalente a 3,6 vezes o produto interno bruto (PIB) do país em 2007. Ivan Pinheiro, secretáriogeral do Partido Comunista Brasileiro (PCB), reforça que os recursos não-renováveis, como o petróleo e a água, são, hoje em dia, os principais motivos das guerras imperialistas. “A importância de controlar o petróleo, do ponto de vista dos países produtores periféricos ou emergentes, é poder aplicar suas gigantescas margens de lucro em favor da resolução de problemas sociais, em detrimento dos fabulosos lucros fáceis do capital internacional”, conclui. (LB)
A Halliburton é uma das maiores empresas do mundo em serviços para campos petrolíferos. Espalhada por todo o globo, a transnacional tem a fama de agir irregularmente (e faz por onde) ao pagar propinas para governos, infiltrar funcionários nos Estados e instrumentalizar os interesses militaristas estadunidenses. Como exemplo, destacamse suas ações no Iraque, na ex-Iugoslávia e na Nigéria. Com a invasão do Iraque, em março de 2003, a receita da empresa passou de 1 para 16 bilhões de dólares em cinco anos. A KBR, uma de suas subsidiárias, foi investigada por ter conquistado um contrato do Pentágono sem concorrência para combater incêndios nos poços de petróleo no Iraque. O contrato estava avaliado em cerca de 7 bilhões de dólares. Mas o Iraque não é a única região na qual a Halliburton mantém sua atenção. Em 1995, quando sua subsidiária Brown & Root, a pedido do Pentágono, fez um estudo sobre as alternativas energéticas ao petróleo iraquiano, foi constatada a possibilidade de
exploração massiva e barata das reservas petrolíferas do mar Cáspio. O único inconveniente desse projeto era que o oleoduto, a ser construído pela Halliburton, teria que passar pelo Kosovo que, em 1995, era ainda uma província da Federação Socialista da Iugoslávia. Em 1999, os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) atacaram a Iugoslávia e “libertaram”o Kosovo. Logo, o Pentágono encarregou a empresa Brown & Root para construir no Kosovo as bases militares de Camp Bondsteel e Camp Monteih, e para controlar e tornar seguras as estações de bombeamento do oleoduto em Kosovo. Com propinas pagas entre 2001 e 2002, o continente africano não ficou de fora da “ética” Halliburton. Na Nigéria, a mesma KBR, acusada de cometer irregularidades no Iraque, pagou a uma autoridade do país 2,4 milhões de dólares em propinas para receber um tratamento fiscal favorável, de acordo com comunicado encaminhado à Securities & Exchange Commission (SEC, órgão regulador do mercado acionário estadunidense).
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brasil
Em parceria com Monsanto, USP quase se submete à lei estadunidense Fernando Henrique/CC
EDUCAÇÃO Questionado dentro do Conselho de Pesquisa, projeto foi reformulado e cláusula, suprimida Dafne Melo da Redação NO INÍCIO deste ano, uma minuta que firmava um convênio entre a Universidade de São Paulo e a transnacional estadunidense Monsanto chamou a atenção de alguns integrantes do Conselho de Pesquisa da USP. A nona cláusula submetia a Universidade e a Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp) – intermediária do convênio – a uma lei anticorrupção dos Estados Unidos. Outra cláusula, de número cinco, atribuía à Monsanto o dever de “supervisionar o bom andamento deste Convênio, inclusive a educação e o acompanhamento científico que estão sendo oferecidos”. Christy Ganzert Pato, professor do Departamento de Economia da PUC-SP, doutorando da USP e um dos representantes discentes do Conselho de Pesquisa, conta que alguns conselheiros “argumentaram que o contrato era lesivo à instituição” e sugeriram alterações que foram então acatadas. Fato raro dentro do Conselho, esclarece. “Todos os projetos que estão na pauta são normalmente referendados. Há um pragmatismo no sentido de garantir a verba, seja ela de onde for. Não se costuma ver reflexões sobre a relação capital-ciência”, resume Pato. Ermínia Maricato, repre-
sentante docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo no Conselho, acredita que a atitude do órgão nesse caso foi positiva. “Debatemos cada linha do convênio e se decidiu por não referendá-lo”, avalia.
O projeto A parceria entre a USP e a transnacional estadunidense se insere dentro de um projeto de pré-iniciação científica para estudantes do ensino médio da rede estadual, feito também em parceria com a Secretaria de Educação do Estado. A USP disponibilizará seus laboratórios e alguns docentes que aceitem receber esses estudantes. A Monsanto financiará parte do projeto, num valor de R$ 220 mil, destinado a garantir bolsas a professores da rede estadual que acompanharão os alunos participantes. Ao todo, o projeto atingirá 500 estudantes e 60 docentes. As bolsas estudantis serão, por sua vez, financiadas pelo banco Santander, com uma verba bastante superior àquela fornecida pela Monsanto. Mayana Zatz, coordenadora da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, no discurso de lançamento do projeto, afirmou que ele possibilita aos estudantes do ensino público entrar em contato direto com a universidade pública e com a pesquisa. Um dos principais objetivos é, justamente, incentivar, já nesse estágio, o gosto pelas ciências e pela pesquisa.
Campus da Universidade de São Paulo
Pato conta que, quando a primeira versão do contrato foi questionada, foram ouvidas acusações de tentativa de obstruir um projeto de natureza inclusiva. “O discurso dos que achavam que nada havia para mudar era de que estávamos atrapalhando um projeto de aproximação de estudantes com a universidade. Mas ninguém estava questionando o mérito do projeto, mas a forma como ele poderia acontecer se passasse aquela minuta absurda”, argumenta.
Novas regras Além da exclusão da cláusula de submissão à lei estadunidense e de tirar da Monsanto o papel de supervisora do projeto, outras mudan-
ças foram sugeridas. Uma das preocupações foi a de que a empresa se utilizasse da imagem da USP em divulgações e peças publicitárias. Para uma empresa controversa como a Monsanto (ver box), unir sua imagem à mais prestigiada universidade do país seria uma excelente estratégia de legitimação perante a sociedade. “O gasto com publicidade não poderá exceder 5% do total do financiamento que ela fornecer. Todas as peças de promoção também devem ser aprovadas pela USP, que terá 10 dias para fazer essa avaliação. Antes eram apenas dois dias. Não resolve, mas limita o uso que a Monsanto pode fazer da imagem da USP. Tivemos que ado-
tar uma estratégia de redução de danos”, afirma Pato, que complementa que em nenhum momento a maioria do Conselho se mostrou sensível ao argumento de que a Monsanto não é uma empresa ética e por isso a universidade não deveria aliar-se a ela. Ermínia Maricato afirma que o convênio pode até mesmo prejudicar a imagem da USP. “Não concordo que a USP assine convênio com essa empresa, contra a qual existem fatos graves”, finaliza.
Sigilo Outra cláusula polêmica, alterada, porém não suprimida, é a oitava. Na primeira versão, a USP e a Fusp, seus diretores, funcionários ou pes-
Manipulação nas escolas
Transnacional tem um currículo sujo
Em 2005, a Monsanto, em parceria com secretarias de educação de diversos Estados brasileiros e com a revista Horizonte Geográfico, elaborou cinco revistas sobre meio ambiente, agricultura e transgenia, que tinham como alvo estudantes da rede estadual, os quais usariam os materiais em sala de aula. O Brasil de Fato pautou em duas edições (113 e 119) esse assunto, mostrando diversas irregularidades. Todos os especialistas então consultados apontaram para a parcialidade das informações, no sentido Reprodução de construir uma imagem positiva do agronegócio e do uso de transgênicos, mostrando, ao mesmo tempo, a agricultura familiar como algo arcaico. Por meio de um infográfico (imagem ao lado), exemplificava a modificação genética de uma soja enriquecida com Ômega 3, benéfica à saúde. À época, o agrônomo do Greenpeace, Ventura Barbeiro, apontou que essa soja simplesmente não existia no mercado, tampouco tinha conhecimento de que existia em laboratório. O projeto teve apoio do Ministério da Cultura (MinC), via Lei Rouanet, que o financiou em 30%. Posteriormente, o MinC detectou que no material final haviam matérias que foram incluídas indevidamente e pediu o recolhimento de uma edição e a devolução de parte da verba. Entretanto, a revista “proibida” já havia sido entregue em algumas escolas, ou seja, o estrago já estava feito. Todos os outros números foram entregues nas escolas. (DM)
- Calcula-se que seja responsável por cerca de 90% das plantações transgênicas em todo mundo. - Fabricava o “agente laranja”, usado na Guerra do Vietnã. O herbicida era pulverizado nas plantações. Além de destruí-las, provocava intoxicação e queimaduras nas pessoas. - Produz o hormônio geneticamente modificado BST ou rBGH, usado para aumentar a produção do gado leiteiro. Muitas pesquisas apontam que, além de deixar as vacas mais propensas a infecções mamárias, o hormônio pode causar câncer em seres humanos que consomem o leite. A Europa baniu o uso desse hormônio; já nos EUA, segue sendo utilizado. Em 1997, dois jornalistas estadunidenses, Steve Wilson e Jane Akre, que fizeram uma longa reportagem sobre o assunto, foram demitidos da Fox TV ao não aceitarem refazer a matéria, por conta de pressões da Monsanto. O caso é contado no documentário canadense A Corporação. - A empresa enfrenta diversos processos por con-
soal contratado teriam que se comprometer “a manter o mais completo e absoluto sigilo em relação a toda e qualquer informação relacionada às atividades da Monsanto e/ou de suas subsidiárias ou coligadas, das quais venha a ter conhecimento ou acesso em razão do cumprimento do presente Acordo”. Na versão aprovada, a transnacional também se submeteu ao sigilo. Helene vê essa cláusula com desconfiança, uma vez que “abre uma brecha para que as pesquisas e o conteúdo do projeto não seja divulgado de forma transparente”. O Brasil de Fato, para obter mais informações, entrevistou o assessor da PróReitoria de Pesquisa, Pedro Bombonato, um dos coordenadores do projeto. Durante a conversa, o docente sugeriu três vezes que a USP entraria com medidas judiciais cabíveis caso o conteúdo de suas declarações fosse desvirtuado. Por fim, pediu que a matéria passasse pela sua aprovação antes de publicada, o que foi negado pela reportagem, uma vez que tal prática fere a ética e a autonomia jornalísticas. Diante da recusa, Bombonato não permitiu que suas declarações fossem usadas, alegando que a USP sempre pede para que matérias sobre a instituição sejam aprovadas. A assessoria de imprensa da USP afirmou que essa não é uma política da instituição; esse pedido fica a critério do entrevistado. “Costuma ser mais comum em matérias de caráter científico, com vocabulário e temas específicos, mas no caso da sua matéria, não é comum”, afirmou a assessoria.
taminação transgênica de plantações crioulas, localizadas próximas a plantações, a partir de sementes geneticamente modificadas. - Não há consenso na comunidade científica a respeito dos efeitos, em humanos, do consumo de alimentos transgênicos. No meio ambiente, seus prejuízos já são palpáveis. Em áreas onde o herbicida casado com a soja transgênica é usado, foi verificada a morte de algumas espécies de insetos. - A tecnologia “terminator” é duramente criticada por cientistas e entidades ambientalistas. É uma “semente estéril” que gera um vegetal que é incapaz de se reproduzir novamente. Assim, em toda a safra, o agricultor deve comprar novas sementes. - O documentário e o livro O Mundo segundo a Monsanto, ambos realizados pela francesa MarieMonique Robin, mostram as diversas polêmicas e controvérsias ao redor da Monsanto. Inclusive sua estratégia de perseguir e desmoralizar cientistas, em todo o mundo, que produzem pesquisas contrárias a seus interesses comerciais. (DM)
Universidade pública, interesses privados Instituição recebe cada vez mais financiamentos privados para projetos da Redação Obter dinheiro de grupos privados para viabilizar projetos de pesquisa e similares já é algo cotidiano dentro da Universidade de São Paulo. Nos últimos anos, intensificam-se as parcerias tanto com empresas nacionais como estrangeiras. Christy Ganzert Pato, doutorando da USP e representante discente no Conselho de Pesquisa, explica que, nas reuniões desse colegiado, há sempre um convênio ou projeto de complementação de verba dessa natureza para se aprovar. “Há muito tempo, abundam convênios com a iniciativa privada ou com estatais”, afirma. A maioria deles se inserem dentro de uma perspectiva mais ampla de uma política industrial. Um desses convênios é com a Vale do Rio Doce, assinado em junho de 2006. Hoje, cerca de 11 alunos de pós-graduação e 10 de graduação realizam pesquisas por esse convênio. Dentre elas, um plano de desenvolvimento portuário para a Vale. Para Ermínia Maricato, representante docente da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo no Conselho de Pesquisa, a USP necessita ter uma política de pesquisa mais clara, com regras melhor estabelecidas. “E não podemos ignorar jamais que essa universidade é pública, mantida com verba pública e sua produção deve estar voltada aos interesses da sociedade”, lembra. Maricato ainda reforça a necessidade da universidade recuperar seu sentido mais crítico. “Ainda há alguns exemplos, mas, no geral, a USP perdeu isso”, completa. Pato também questiona se as pesquisas hoje feitas pela universidade vão ao encontro, de fato, com as necessidades do país. “Será que queremos realmente produzir mais carros, mais celulares, extrair mais minérios, mais petróleo?”, pergunta.
Capital privado Maricato afirma que o capital privado não é um mal por si só. “Não sou contra a empresa privada doar recursos, mas o compromisso público da universidade não pode ser ignorado”, salienta. Como exemplo, a professo-
ra cita a recente doação de cerca de 18 mil livros por parte do bibliófilo José Mindlin, em 2006, que deu origem à Biblioteca Brasiliana, dentro da USP, projeto ainda em andamento e que tem apoio da iniciativa privada. Já em relação a Vale, Maricato tem uma avaliação diferente. “A produção desse conhecimento certamente beneficia à Vale, pode beneficiar a USP, mas me pergunto: essa riqueza gerada a partir dessas pesquisas serão socializadas?”, questiona. Otaviano Helene, diretor da Associação dos Docentes da USP também não rejeita a priori convênios com “o setor produtivo”, mas reforça que “a universidade é de propriedade da sociedade e o conhecimento que ela produz tem que chegar a ela”. Ao seu ver, as fundações privadas hoje presentes na USP (cerca de 30) são um entrave, pois acabam colocando interesses privados na pauta da instituição. “Naturalmente que a atuação delas acaba direcionando, em muitos casos, que a atividade de docentes, funcionários e pesquisadores realizem projetos de seu interesse”, critica. (DM)
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brasil
Anistia não protege torturadores
fatos em foco
JUSTIÇA Tarso e Vanucchi defendem julgamento de agentes que praticaram tortura durante o regime militar
Coerência zero
Antonio Cruz/ABr
Hamilton Octavio de Souza
Maurício Seixas de São Paulo (SP) A DEFESA da punição dos agentes do Estado que torturaram, seqüestraram e mataram durante a ditadura militar (19641985) – antes reivindicação apenas de familiares de mortos e desaparecidos e de organizações de direitos humanos – ganhou novo fôlego após uma audiência pública promovida pelo Ministério da Justiça e pela Comissão de Anistia para discutir o assunto, no dia 31 de julho. Na ocasião, os ministros da Justiça, Tarso Genro, e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, classificaram os crimes cometidos por funcionários públicos durante o regime militar como comuns, e não políticos, e assim, devem ser julgados. Genro disse que os agentes da repressão política agiram dentro da legalidade da própria ditadura ao prender militantes, mas que os crimes começaram no momento em que os prisioneiros foram torturados. No entanto, destacou, “durante todo o período do regime militar, não havia nenhuma norma legal que permitisse atos de tortura”. Para ele, essa “é uma análise que deve ser baseada em uma visão universal, que é a do extravasamento do mandato dado pelo Estado e a responsabilização do agente que extravasa esse mandato e comete tortura”.
os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. Ou seja, do ponto de vista jurídico, um crime só pode ser considerado conexo quando está relacionado com um crime principal.
Anistia para quem? Organizações de direitos humanos e juristas como Fábio Konder Comparato e Hélio Bicudo questionam a validade da aplicação dessa lei a militares responsáveis por mortes e desaparecimentos de militantes políticos. De acordo com Elizabeth Silveira e Silva, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM-RJ), “não há nada nessa lei que diga que torturador deve ser anistiado. As torturas que fizeram não foram crimes políticos, tampouco conexos”, pontua. Segundo ela, “não há a menor conexidade em prender pessoas arbitrariamente, mas, à época [da promulgação da Lei de Anistia], foi feita uma interpretação equivocada para beneficiar os torturadores”.
A procuradora de Justiça Federal, Eugênia Fávero, que também esteve presente na audiência pública, esclareceu como os torturadores não estão protegidos pela Lei de Anistia ou qualquer outro instrumento legal do país ou internacional. Ela, junto com outros procuradores, entre eles Marlon Weichert, abriu processo contra os torturadores chefes militares do DOI-CODI, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, por prática de torturas e pela morte de quase uma centena de militantes em longas sessões de torturas. Segundo Eugênia, “os crimes dos torturadores são de lesa-humanidade, portanto, não são merecedores de anistias políticas, pois não são crimes cometidos por motivação política, mas sim cometidos por um regime que praticava a perseguição política sistemática e generalizada”. Além disso, a procuradora explicou que a legislação internacional proíbe o Brasil de tratar torturadores como se fossem criminosos políticos.
Invasão bárbara Se alguém acha que o Brasil já está bem servido de banqueiros e especuladores, é bom ficar sabendo que o Banco Central estuda a autorização de funcionamento de mais 53 empresas bancárias e financeiras, a maioria de capital estrangeiro e vinculada a grandes grupos econômicos. Todo mundo quer uma boquinha aqui neste paraíso dos juros e da especulação.
Reprodução
Consolidação democrática Vanucchi apontou que a discussão envolvendo a punição dos torturadores é um marco para preparar avanços no caminho da conso-
Juro subsidiado A política de juros praticada pelo Banco Central não apenas favorece quem especula com papéis do governo, ajuda o comércio e os bancos a faturarem altíssimo com as vendas a crédito, como também transfere renda para as empresas que pegam dinheiro subsidiado no BNDES. A taxa Selic está em 13% ao ano, mas o BNDES tem R$174 bilhões emprestados a taxas que variam de 4,5% a 9,25% ao ano. Quem são os privilegiados?
Os ministros Paulo Vanucchi e Tarso Genro
lidação da democracia. “É o estabelecimento de um sólido sistema de garantias que impede qualquer tipo de tentação de retomarmos um passado que o Brasil inteiro repele”, disse. Genro destacou que, atualmente, qualquer agente público que cumpra um mandato precisa obedecer os limites jurídicos, e que caso não o faça, será responsabilizado. “Esse raciocínio serve para o regime democrático, mas não para um regime ditatorial?”, questionou. De acordo com Vanucchi, o Brasil tratou a anistia de modo diferente de todos os demais países do mundo, e que um dos motivos de não se ter ido a fundo na questão é o fato de muitos torturadores ainda manterem cargos e influência no país. A Lei de Anistia 6.883, aprovada em 28 de agosto de 1979, durante o governo do presidente João Baptista Figueiredo, garantiu anistia a todos os que cometeram crimes políticos ou conexos entre setembro de 1961 e agosto de 1979. Consideram-se conexos
A diplomacia brasileira tem defendido, há anos, o fortalecimento do Mercosul e o alinhamento com África do Sul, Índia, China e outros países considerados “emergentes” e não-subordinados automaticamente ao G-7. Nas negociações da Rodada de Doha, o Brasil roeu a corda, aderiu ao jogo dos países ricos e abandonou seus aliados. A sociedade merece esclarecimento se houve mudança de diretriz política ou se o discurso anterior não passava de retórica vazia.
Obra ilegal A Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais denuncia que os governos estadual e federal estão tocando a todo vapor a obra da Barragem de Berizal, na bacia do Rio Pardo, norte do Estado, sem respeitar os procedimentos legais para o licenciamento ambiental, inclusive sem realizar audiência pública com aproximadamente 700 famílias expulsas pela obra. A barragem vai inundar 3.630 hectares de terras férteis e áreas de matas. Energia parada Os eletricitários de São Paulo ameaçam entrar em greve nos próximos dias caso a Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae) não assine a renovação do acordo coletivo de trabalho, vencido há dois meses. A empresa estatal não está nem aí com a recomposição dos salários dos trabalhadores. Trabalho precário Depois da ocorrência de dois acidentes seguidos, no mês de julho, com feridos graves, os metalúrgicos da Rassini, em São Bernardo do Campo (SP), paralisaram a produção e protestaram contra as péssimas condições de trabalho na indústria. A empresa, que se recusava a adotar um programa de segurança, foi obrigada a acatar a proposta dos trabalhadores. A paralisação deu resultado.
Monumento Tortura Nunca Mais, localizado em Recife (PE)
Militares rebatem com tese de “revanchismo” de São Paulo (SP) Poucos dias após a audiência, militares vieram a público criticar o fato de não terem sido convidados para o encontro e acusaram o ministro Tarso Genro de adotar uma “conduta revanchista”. Em resposta à audiência, os oficiais da reserva, com o apoio de comandantes da ativa, organizaram uma espécie de “anti-seminário” no Clube Militar do Rio de Janeiro, sob o argumento de que “eles também mataram e seqüestraram, e agora querem provocar os militares que engolem calados”. Para o seminário, estava prevista a exibição de uma série de slides com fotos e uma biografia resumida da “atividade terrorista” de ministros de Estado e petistas ilustres. Segundo Elizabeth Silveira e Silva, presidente do Tortura Nunca Mais, “os militares vão tentar de tudo para que esse debate não venha a público, além de que não há veracidade alguma nessa discussão sobre os crimes da esquerda”. De acordo com ela, o discurso do revanchismo é sempre utilizado quando se quer saber o que aconteceu nesse período. “É uma
desculpa para acobertar crimes e uma forma de desqualificar nossa luta. Não sou revanchista por querer saber o que aconteceu com meu irmão”, diz. Elizabeth é irmã do desaparecido Luiz René Silveira e Silva, que foi lutar na Guerrilha do Araguaia em 1971. “Seríamos revanchistas se pedíssemos que eles passassem pelas mesmas coisas que os torturados e assassinados passaram”, observa.
Responsabilização Na avaliação de Paulo Vanucchi, a discussão também não significa revanchismo, tampouco desrespeito às Forças Armadas. “É fundamental evitar falácias muitas vezes presentes de que, ao fazer a responsabilização judicial (a punição de torturadores) ou política dos criminosos, estamos atacando as Forças Armadas. Estamos é defendendo as Forças Armadas, porque elas não pertencem ao general-chefe, mas a todos nós, a cada cidadão e cidadã brasileira, que dela se orgulha”, disse. Na opinião de Elizabeth, na medida em que nenhum governo pós-ditadura enfrentou o assunto, cada vez os militares “têm mais certeza de que nada vai lhes
acontecer”, disse, referindo-se ao seminário organizado para discutir os crimes cometidos pela esquerda. “Se não fosse assim, não teriam a audácia de organizar esse encontro”, protesta. Na sua avaliação, um dos maiores “absurdos” são os livros que já foram publicados pelos militares, “nos quais inventam o que querem. Como os arquivos da ditadura ainda não foram abertos, não tem nem como contradizermos certas coisas”. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, também contestou a posição de Tarso Genro, ao afirmar que “a Lei da Anistia já esgotou os seus efeitos. Já foram anistiados, não existe hipótese de você rever uma situação passada”, afirmou. Para ele, “mudar essa legislação seria a mesma coisa que revogar aquilo que já foi decidido anteriormente, que foi uma pacificação nacional”. Jobim disse que a discussão deveria ficar restrita ao Poder Judiciário, em vez de ser debatida pelo Executivo. “Não há qualquer responsabilidade histórica do Exército com relação a isso. O Exército continua com o seu prestígio nacional intocável. E nós estamos discutindo o futuro,
não o passado. A gente acaba discutindo o passado e não se preocupa com o futuro”, criticou.
No banco dos réus Enquanto, no Brasil ,trazer à tona o debate sobre a responsabilização dos crimes da ditadura causa divergências entre ministros do governo e reações ousadas dos militares, na Argentina inúmeros torturadores da ditadura sentaram no banco dos réus. Recentemente a Justiça condenou o general Luciano Benjamin Menéndez, ex-comandante do 3º Corpo de Exército, à prisão perpétua pelas torturas e mortes de quatro pessoas no campo de extermínio La Perla. Na avaliação da presidente do Tortura Nunca Mais, o Brasil, que nos anos de 1970 exportou knowhow de tortura para várias ditaduras latino-americanas, é o mais atrasado dos países latino-americanos no que se refere ao esclarecimento e responsabilização dos repressores da ditadura. Para ela, o governo atual tem sido uma “catástrofe” no que se refere à abertura dos arquivos da ditadura. “O que foi aberto é pouco significativo, e o que tem importância continua sob sigilo”, critica. (MS)
Eterna militância Não apenas a construção da democracia depende da eterna vigilância e militância; a defesa dos recursos naturais do Brasil também. Ainda hoje, mais de 50 anos após a conquista do monopólio do petróleo e da criação da Petrobras, as reservas de petróleo e gás estão ameaçadas de privatização e desnacionalização. O Fórum Nacional Contra a Privatização continua mobilizando para defender o patrimônio nacional. Passado sujo A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e dezenas de entidades que integram o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral pediram ao Supremo Tribunal Federal que proíba as candidaturas de políticos com “ficha suja”. Se isso acontecer, Gilberto Kassab (DEM), Paulo Maluf (PP) e Marta Suplicy (PT) ficam fora da disputa para a Prefeitura de São Paulo, a maior cidade brasileira. Estado policial A vereadora Silvana Donatti, do PT de São Carlos, interior paulista, pegou em flagrante, no dia 24 de julho, um grupo de policiais militares com três prisioneiros no matagal de uma estrada vicinal. Os policiais estavam drogados e aparentemente se preparavam para castigar ou executar os prisioneiros. O caso foi parar na delegacia. Depois disso, vítimas e testemunhas vivem sob ameaça direta da Polícia Militar.
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Rondônia, campeão do desmatamento AMAZÔNIA Pesquisa aponta Estado como o líder em devastação no país; omissão do poder público tem contribuído Leonardo F. Freitas/CC
AO CONTRÁRIO do que pode levar a crer o noticiário sobre o agronegócio, Mato Grosso e Goiás não são os Estados brasileiros que mais desmataram através da história. Essa é a principal conclusão do dossiê O Fim da Floresta? A devastação das Unidades de Conservação e Terras Indígenas no Estado de Rondônia, elaborado pelo Grupo de Trabalho Amazônico (GTA). De acordo com o estudo, Rondônia teve cerca de 38% de sua área de florestas desmatada (9 milhões de hectares), sendo o Estado em que, proporcionalmente, o desmatamento foi mais acentuado. Esse quadro é protagonizado pelo Estado e pela iniciativa privada. O primeiro legitima ações do outro, em detrimento da floresta e das comunidades tradicionais que dependem dela para sobreviver. Assim, a expansão da fronteira agrícola, a grilagem e as invasões tornam-se apenas o extremo de um sistema de institucionalização do desmatamento, conforme análise do sociólogo Luis Fernando Novoa, professor da Universidade Federal de Rondônia.
Dados Segundo o Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre agosto de 2007 e abril deste ano foram desmatados 557 km² (mais de um terço da área da cidade de São Paulo) somente em Rondônia. A devastação concentrou-se, nas últimas décadas, ao longo das rodovias BR-364, BR-429 e BR-421, eixo de expansão das atividades agropecuárias e madeireiras. Mas o que tem chamado a atenção é o deslocamento desse fenômeno em direção a áreas de preservação. Até julho de 2007, o desmatamento em Unidades de Conservação (UCs) atingiu 2.485 km², o equivalente a 3% do território do Estado. Tais espaços são um meio de conservar áreas contíguas de floresta, indispensáveis para a manutenção de ecossistemas, equilíbrio climático, regimes hidrológicos e conservação da biodiversidade com eficiência. Além disso, são essenciais para assegurar os direitos dos povos indígenas e de outras populações tradicionais que dependem da conservação das florestas e dos rios da Amazônia para o seu sustento. Porém não tem sido dada a atenção necessária a isso, de modo que as UCs de uso sustentável – como Florestas Nacionais (Flona), Florestas Estaduais de Rendimento Sustentado (Fers) e Reservas Extrativistas (Resex) – foram as mais atingidas entre 2002 e 2007. Segundo Novoa, paralelamente à devastação, as populações estão sendo suprimidas. É o caso das populações extrativistas, que não recebem suporte (logística, crédito, tecnologias); das comunidades indígenas que são descaracterizadas ao se inserirem na cadeia predatória de exploração dos recursos naturais como última alternativa de sobrevivência; ou das comunidades quilombolas do Vale Guaporé, pressionadas por sojeiros e pecuaristas. Omissão e conivência O estudo do GTA expõe que o Estado tem sido omisso diante de questões essenciais, como a elaboração de planos de manejo, desenvolvimento de cadeias produtivas sustentáveis que gerem emprego e renda para as comunidades tradicionais, a prevenção e o combate a invasões e a depredação da floresta. Tal processo seria a execução de um plano criminoso de formação territorial de Rondônia, denuncia Novoa. De acordo com ele, as UCs deixadas pelo Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia (Planoforo), iniciado pelo governo estadual em meados de 1980, são apenas “fachadas ambientais que servem para ocultar a continuidade do mais intensivo processo de devastação da região amazônica,
Queimada: Estado e iniciativa privada juntos no desmatamento
Ameaças às terras indígenas Lentidão da Funai permite ação de invasores em áreas destinadas aos índios de São Paulo (SP) Em Rondônia, a população indígena soma 11 mil indivíduos, de 29 etnias, e conta com 23 terras indígenas (TIs) demarcadas e homologadas, além de uma em processo de regularização. Tais TIs deveriam garantir o reconhecimento da organização social, costumes, língua, crenças, bem como os seus direitos humanos, como determinam os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988. No entanto, a realidade é outra. Exemplo disso é o caso de dois dos oito grupos isolados existentes no Estado. Ambos estão sob ameaça devido ao projeto de construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira. Além dessas, de acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), foram localizadas comunidades indígenas isoladas na região do Parque Estadual Corumbiara. Tais povos podem ser prejudicados por
Violência Em Rondônia, também tem havido um aumento da violência e é comum o relato de seringueiros sobre famílias no interior das Resex que sofreram ameaças de grupos armados e tiveram de abandonar o local por falta de providências do Poder Público. Em 2007, dois seringueiros foram assassinados na cidade de Machadinho D’Oeste (RO). Em dezembro de 2005, o presidente da Associação dos Seringueiros do Vale do Anari, João Suntak, foi assassinado em sua própria residência, na Resex Aquariquara. Os episódios têm causado medo na população, a qual foge da região. Após 15 anos de criação das Resex, de acordo com a OSR, mais de 50% da população original migrou para centros urbanos. Não apenas as comunidades têm sido alvo. Depois que o Ministério Público Estadual moveu, em 2004, Ação Civil Pública pedindo a saída dos invasores da Flona Bom Futuro, agentes do Ibama e de outros órgãos de fiscalização foram ameaçados com armas de fogo. Para intimidar, os invasores também fecharam a rodovia BR-364. De acordo com o dossiê do GTA, tais ações têm apoio de políticos do Estado, bem como do governador, Ivo Cassol (sem partido) que, além disso, “transformou órgãos de fiscalização em centros de legalização das atividades predatórias ilegais, como o ‘esquentamento’ de madeira e regularização de latifúndios em áreas de proteção e conservação ambiental”, acrescenta Novoa. Além das perdas biológicas e conseqüências ambientais, essa questão traz em seu cerne problemas relativos a conflitos sociais, desrespeito aos direitos humanos, saúde pública e posturas do Poder Público associadas aos interesses privados. (O dossiê completo pode ser acessado em http: //www.fase.org.br/noar/anexos/ acervo/10_o_fim_da_floresta.pdf)
Fonte: Grupo de Trabalho Amazônico
invasores devido a suas práticas predatórias de exploração dos recursos naturais. A terra indígena Uru-eu-wauwau tem sofrido com a depredação da floresta, queimadas e venda de madeira. A área é conflituosa há anos, pois houve retardo no processo de demarcação e erros cometidos pelo Poder Público. O Incra, em 1974, loteou e titulou parte do território para cerca de 140 famílias. Apesar dos conflitos que surgiram, apenas em 1994 a Funai reivindicou a posse da área na Justiça Federal, que ficou sob litígio. Enquanto isso, a depredação, a venda de madeira e a transformação de floresta em pastagens e plantações continuam nesse local. Mesmo com a Justiça Federal tendo concedido liminar de reintegração de posse aos indígenas, em agosto de 2005, a Funai ainda não fez a determinação ser cumprida. Devido a essa lentidão, 854 hectares foram desmatados pelo grupo proprietário das Lojas Coimbra, o qual adquiriu 1.251 ha na área de
litígio. O grupo tem vendido ilegalmente a madeira retirada desta e colocou um rebanho de cerca de 1.500 cabeças de gado no local.
Saúde das comunidades Outro fato alarmante está relacionado à comunidade indígena da TI Sete de Setembro. Segundo pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz - RJ), o mero contato de madeireiros e grileiros com as comunidades é prejudicial, tendo efeito nocivo sobre elas. Atualmente, ela apresenta uma das mais altas taxas de tuberculose, ficando atrás apenas da população carcerária. Tais conseqüências à saúde da população indígena estão relacionadas às mudanças de hábito alimentar desencadeadas pela escassez da pesca e da caça ocasionada pela ação dos invasores, pelo consumo de alimentos industrializados e pelo contato com microoganismos aos quais as populações indígenas não possuem imunidade. (JC) ABr
Riscos à biodiversidade de São Paulo (SP)
SAD/Imazon
Jonathan Constantino de São Paulo (SP)
de desapossamento e violência contra as populações tradicionais”. Ainda, há casos em que o Poder Público deixa a cargo das comunidades das Resex a responsabilidade pela elaboração do plano de manejo. Não possuindo condições de efetuá-lo, apelam para empresas de consultoria, o que tem ocasionado o endividamento de muitas dessas comunidades. Segundo o WWFBrasil, em 2005, a dívida totalizava R$ 2 milhões. A negligência governamental segue diante das invasões por parte de grileiros, intensificadas desde de 2000. Os invasores das Fers Rio Madeira “B” e Rio Vermelho “C”, por exemplo, receberam documentos de posse expedidos pelo Incra e pela Secretaria de Agricultura de Porto Velho (RO). Em junho de 2003, durante operação conjunta da Secretaria do Estado do Meio Ambiente (SedamRO), Ibama e Polícia Ambiental, foram presos equipamentos e onze infratores flagrados invadindo, desmatando e roubando madeiras na Resex Jaci-Paraná. Sob ordens do chefe da Sedam, Agostinho Pastore, os presos foram libertados. A partir disso, intensificou-se na região o roubo de madeiras, segundo denúncia da Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR). Novoa entende que o Estado mostra de que lado está quando se verificam os objetivos de grandes projetos como o Complexo Rio Madeira, a pavimentação da BR-319, a construção do Gasoduto Urucu-Porto Velho e a Rodovia inter-oceânica, que partirá da fronteira do Acre e terá impactos sobre toda macro-região. Para o sociólogo, essas obras são impostas pelos conglomerados e instituições financeiras com o objetivo nítido de viabilizar novos corredores de exportação especializados em recursos naturais. “Não fazem parte da lista de prioridades da população do Estado ou da região, que quer antes de tudo infra-estrutura social, expansão e qualificação de serviços públicos essenciais”, diz.
De acordo com o professor e pesquisador Douglas Mascara, biólogo especialista em genética de populações da Universidade de Mogi das Cruzes, as ameaças à biodiversidade devido ao desmatamento podem ser analisadas por inúmeros enfoques. Do ponto de vista genético, a grande ameaça é a perda de variabilidade, ou seja, os indivíduos passam a ser muito semelhantes geneticamente. Isso porque mesmo espécies bastante espalhadas por diversas regiões podem apresentar padrões de variação genética que constroem populações endêmicas (só existem naquele local). Mascara acrescenta que “o desmatamento em geral resulta na fragmentação de habitats e é possível verificar se houve isolamento de subpopulações”. Tais subpopulações são prejudiciais à sobrevi-
vência dos indivíduos e, das ameaças relacionadas a isto, “para dizer o mínimo, resulta a redução do potencial adaptativo da população ou espécie frente ao potencial seletivo do ambiente”. O professor diz que, para a criação de uma área de conservação, deve-se pensar na “preservação da variabilidade genética, monitorando-se essa diversidade e propondo ajustes quando o nível, a distribuição e o equilíbrio das freqüências gênicas apresentar sinais claros de diminuição, fragmentação e desequilíbrio, respectivamente”. Assim, as áreas devem ser contíguas, pois as fragmentadas favorecem o enfraquecimento genético das populações. Ele defende a necessidade de profissionais especializados e trabalhos sérios para criação e efetivação das áreas de conservação, pois há detalhes a serem observados e acompanhados. “Algumas áreas de conservação de pássaros não se
prestam à conservação de mamíferos”, diz, referindo-se às inúmeras diferenças que essas espécies possuem quanto à territorialidade, distribuição e deslocamentos. Assim, o melhor é rever os parâmetros de constituição da área de conservação, caso contrário se terá que “assumir que a área de conservação é específica para pássaros e não para mamíferos, o que seria muito esquisito”. Diz que há estudos propondo a utilização de espécies marcadoras ou referenciais, sendo que cada uma delas deve ser representativa de diferentes padrões de biologia adaptativa, para verificar se a área de conservação está atingindo os seus objetivos preservacionistas. Por fim, Mascara ressalta que muitas áreas de conservação são ameaçadas pelo desmatamento, queimadas, entre outras ações, devido à fiscalização ser deficiente ou por possuírem um acervo de fauna e flora que se deseja explorar, denunciando que, em alguns casos, a destruição da vegetação ocorre porque isso dificulta justificar determinada área como de conservação. (JC)
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Jornada do MST denuncia prioridade do governo Lula pelo agronegócio QUESTÃO AGRÁRIA “A política agrária do governo não consegue resolver conflitos sociais causados pelo aumento da pobreza no campo”, protesta dirigente Michelle Amaral da Redação INTEGRANTES do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) promoveram em todo o país uma nova Jornada de Lutas pela Reforma Agrária no final de julho. Em torno do dia do trabalhador rural, comemorado em 25 de julho, o movimento coordenou a ocupação de superintendências do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 12 Estados, como também esteve à frente de marchas e ocupações de fazendas em posse privada ilegal. Segundo o MST, o objetivo das manifestações foi “chamar a atenção da sociedade para a recusa do governo federal em tratar da reforma agrária”. O movimento aponta que as políticas do Planalto favorecem o agronegócio, destinando as terras que deveriam ser para os trabalhadores rurais aos grandes produtores. As ações condenaram também a criminalização dos movimentos sociais, especialmente no Rio Grande do Sul e no Pará, onde o Poder Judiciário tomou decisões de caráter conservador. “A reforma agrária está parada em todo o país e, com isso, as famílias sem-terra se mobilizam para pressionar o governo”, explica José Batista de Oliveira, membro da coordenação nacional do MST. Segundo ele, este ano o movimento intensificou as mobilizações para cobrar ações do governo. Para o sem-terra, não há em curso um programa amplo e consistente para a democratização da terra, nem existe uma política de apoio aos assentamentos. “A política agrária do governo Lula não está conseguindo resolver conflitos sociais causados pelo aumento da pobreza no campo”, protesta. O dirigente avalia que a promessa de campanha do governo de uma reforma agrária de qualidade não foi cumprida. Em contrapartida, “o governo Lula fez uma opção política e econômica pelo agronegócio, apoiando as grandes empresas nacionais e, especialmente, as estrangeiras, que produzem matéria-prima em latifúndio para exportação, como soja, eucalipto e, especialmente, canade-açúcar, para o programa de agrocombustíveis”, observa. Dentre os entraves à realização da reforma agrária no país, José Batista destaca o Judiciário. “Há setores extremamente conservadores que ignoram que a propriedade rural deve ser desapropriada quando não cumpre a função social, como determina a nossa sociedade”,
diz. O dirigente acrescenta que “os processos para a execução da reforma agrária são muito burocráticos, o que abre espaço para que latifundiários prorroguem a efetivação da desapropriação e o assentamento das famílias sem-terra”.
Balanço Sobre os resultados da Jornada de Lutas, José Batista conta que houve acordos pontuais, de acordo com a demanda de cada Estado. Ele ressalta que as famílias estão acampadas durante anos e que os assentados não recebem investimentos para infra-estrutura e um programa de agroindústrias para o armazenamento e processamento dos alimentos produzidos. Um dos pontos reivindicados pelos trabalhadores rurais é a ampliação de programas de créditos como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que cria condições para que os trabalhadores do campo tenham acesso ao ensino superior. “Os trabalhadores rurais, historicamente excluídos, nunca tiveram acesso à educação. Por isso, a valorização do Pronera é extremamente importante para combater a desigualdade social e criar condições para o desenvolvimento das áreas de assentamentos”, enfatiza José Batista. Criminalização A crescente onda de criminalização dos movimentos sociais, encabeçada pelo Ministério Público e o governo do Rio Grande do Sul, é também pautada pela Jornada de Luta. José Batista relata que o movimento conseguiu apoio de “diversos setores da sociedade, da igreja, das universidades, dos sindicatos, dos estudantes, parlamentares e partidos, que defendem a democracia e a efetivação dos direitos previstos na Constituição”. O dirigente do movimento revela que foram apresentadas denúncias à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos sobre o processo de criminalização. Ele explica que isto foi feito para que organismos internacionais tenham conhecimento da ameaça aos direitos civis no país. Batista ainda chama a atenção para o fato de que a “imprensa não trata a questão agrária e a agricultura com a profundidade necessária para que a população e a sociedade compreendam a luta dos trabalhadores sem-terra”. E enfatiza que os movimentos sociais não vão se calar diante das ameaças. “Não vamos deixar essa articulação de setores conservadores avançar sem o conhecimento do povo”, conclui.
Mais benefícios para ruralistas endividados Pacote de ajuda atinge valor de R$ 75 bilhões; perdão chega a 80% das dívidas Juliano Domingues de São Paulo O governo Lula cedeu à pressão da bancada ruralista no Congresso Nacional e vai oferecer mais subsídios para o setor. As vantagens vêm por meio da mudança do texto da Medida Provisória 432/08 – que já previa benefícios. Com as novas alterações, os prazos para o pagamento das dívidas passam de cinco para dez anos. Com a MP, o governo havia concedido um desconto de até 75% para as dívidas dos ruralistas. Agora, o perdão atinge 80%.
As discussões relativas às mudanças do texto da MP são guiadas pelo deputado e produtor rural Luís Carlos Heinze (PP-RS). Ele ainda pede que a taxa de juros para as parcelas das dívidas fique pouco abaixo dos 7% ao ano. Já de acordo com a proposta do governo, seriam reguladas pela taxa Selic, que hoje está em 13% ao ano. O governo alega que a medida serve para fortalecer a produção doméstica. No entanto, as mudanças devem privilegiar os grandes produtores, mais voltados para exportação, do que para a produção interna de alimentos. (Radioagência NP)
Veja como foram as ações nos Estados Alagoas Em conjunto com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o MST reivindicou posição do governo federal em relação à criminalização dos movimentos sociais. No dia 21 de julho, cerca de 800 pessoas ocuparam a sede do Incra em Maceió. Eles exigem a imediata desapropriação e aquisição de terras para as famílias acampadas no Estado. O MST também coordenou a ocupação da Fazenda Carolina, em Teotônio Vilela. A área pertence ao complexo de terras que faz parte da dívida da Produban e que deveria ser destinada à Reforma Agrária. No dia 25 de julho, trabalhadores sem-terra do MST e do MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra), acompanhados da CPT, ocuparam o Cartório de Murici, em Alagoas. Os trabalhadores denunciam a posse ilegal de terras, com a conivência do cartório. O movimento aponta que o 1º Ofício de Murici oficializa as fraudes de Renan e Olavo Calheiros, denunciados ao Ministério Público por desmatamento ilegal e invasões de terras na área da Estação Ecológica do município. Bahia No dia 21 de julho, cerca de 450 integrantes do MST
ocuparam o Incra, em Salvador. Os trabalhadores exigem o cumprimento de um acordo realizado em abril do ano passado. Na ocasião, o MST realizou uma marcha com 5 mil pessoas, de Feira de Santana a Salvador, e foi recebido pelo Governador Jaques Wagner. O acordo prevê o assentamento de 25 mil famílias acampadas, em 240 áreas, e a desapropriação imediata das áreas em processo de desapropriação. Também são exigidas a reforma de 5 mil casas e a construção de 3 mil moradias em assentamentos, a pavimentação de mil quilômetros de estradas e a inclusão de aproximadamente 50 assentamentos das regiões Sul, Baixo Sul e Extremo-Sul em programa de apoio à produção de cacau.
Ceará Em Fortaleza, a ocupação da sede do órgão ocorreu no dia 21 de julho, por cerca de mil tralhadores rurais. Eles reivindicam celeridade nos processos de vistoria, desapropriação e imissão de posses para as terras ocupadas pelos acampamentos, além de infraestrutura hídrica e social para os assentamentos de Reforma Agrária. No dia 25 de julho, os trabalhadores realizaram um ato contra a criminalização dos movimentos sociais. Uma marcha, rumo ao Ministério Público Estadual, saiu em duas colunas: uma da sede do Incra e outra da Universidade Federal do Ceará. Distrito Federal
O prédio do Incra, em Brasília, foi ocupado em 28 de julho por cerca de 600 trabalhadores do MST, do MTD (Movimento dos Trabalhadores Desempregados) e do MATR (Movimento de Apoio ao Trabalhador Rural). Os sem-terra reivindicam a reestruturação da autarquia, com o assentamento de 1.800 famílias acampadas na região e a liberação de créditos, convênios e recursos para os assentamentos, além de denunciar que a reforma agrária está parada no Distrito Federal.
e formação de quadrilha. No dia 1º de agosto, foi emitida pela juíza Maria Aldecy de Souza Pissolati, da Comarca de Marabá, liminar determinando a reintegração de posse da fazenda.
Paraná Uma média de 400 trabalhadores rurais marcharam, desde o dia 14 de julho, das cidades de Capanema e São Jorge do Oeste em direção à Francisco Beltrão, no Sudoeste do Estado, em reivindicação à libertação de quatro sem-terra presos por perseguição política na região. Os trabalhadores também exigem o fim da criminalização dos movimentos sociais e à urgência no processo de Reforma Agrária. Em Cascavel, entre os dias 23 e 26 de julho, no campus da Unioeste, foi realizada a 7ª Jornada de Agroecologia, com o lema “Cuidando da Terra, Cultivando Biodiversidade, Colhendo Soberania Alimentar”. Paraíba Em João Pessoa, a reivindicação é o assentamento das mais de 2,6 mil famílias acampadas no Estado, além de investimento público para crédito rural e infra-estrutura nas áreas de assentamentos. A ocupação da sede do Incra ocorreu dia 21, com de 800 pessoas. De acordo com o movimento, existem 52 acampamentos no Estado, com famílias que vivem nas beiras das estradas, muitas delas há mais de 7 anos, como no caso dos acampamentos Nova Conquista e Ouro Verde. Após vários dias de negociação, o Incra se comprometeu a assentar, até o final do ano, em torno de mil famílias – 300 seriam assentadas até o final do mês de agosto –, e realizar 50 vistorias de terras no semestre. O trabalhadores desocuparam o órgão no dia 25 de julho.
Pernambuco No Estado, o MST promoveu duas ocupações, integrando a Jornada de Lutas pela Reforma Agrária, no último dia 23 de julho. Em Recife, cerca de 400 famílias ocuparam a SuperintenArquivo MST dência do Incra. Já em Sertão do São Francisco, mais de 600 famílias acamparam na sede da autarquia em Petrolina. Os sem-terra deixaram a sede do Incra no dia 25 de julho, dirigindo-se até a sede da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco), onde participaram de uma audiência pública. Os trabalhadores protestam contra o Projeto Pontal Sul, que visa a irrigação voltada para empresas do agronegócio. Protesto realizado em Florianópolis (SC) Somente em Pernambuco existem cerca de 14 mil famílias vivendo debaixo de lonas pretas, em 132 acampamentos. O movimento denuncia que, em 2007, não houve nenhuma desapropriação de terras e nenhuma família foi assentada no Estado.
Goiás Em Goiânia, a ocupação da sede do In-
cra foi feita por 500 camponeses de acampamentos e assentamentos, que reivindicam o assentamento das 4 mil famílias acampadas no Estado, além de negociar com o órgão a liberação de crédito e infra-estrutura para os trabalhadores.
Maranhão Com a ocupação da sede do Incra em São Luís, no dia 21 de julho, os integrantes do MST exigiram melhorias e agilidade no assentamento dos acampados. O MST aponta que no Estado existem 2,5 mil famílias acampadas e cerca de 7 mil assentadas, e denuncia que faltam estruturas básicas para sobrevivência dos assentamentos. Como resultado das ações desenvolvidas pelo MST, foi assinado, pelo Incra e outros órgãos federais e estaduais, um Termo de Ajustamento de Conduta, que disciplinará o órgão quanto ao Licenciamento Ambiental nas áreas de assentamento. Para o MST, “com este termo, o Instituto poderá aplicar os créditos necessários para os assentamentos como fomento, habitação e reforma da moradia”.
Mato Grosso Cerca de 250 famílias sem-terra ocuparam, no dia 21 de julho, a sede do Incra em Cuiabá, capital do Estado. Há mais de um mês, as famílias já se encontravam acampadas em frente ao órgão, reivindicando mais agilidade no andamento dos processos de reforma agrária e o cumprimento dos acordos feitos nas últimas audiências com o Incra. O movimento cobra o assentamento de duas mil famílias, parcelamento de lotes de terras, construção e reforma de casas, liberação de crédito de fomento, cestas básicas e a liberação de R$20 milhões para a infra-estrutura e assistência básica para 3.950 famílias. Pará Cerca de mil trabalhadores rurais ocuparam, no dia
25 de julho, a Fazenda Maria Bonita, no município de Xinguara. O movimento denuncia que a compra da fazenda foi ilegal, pois a mesma encontra-se em área pública, segundo o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), sendo sua venda proibida. A compra foi realizada em 2005 pela empresa Agropecuária Santa Bárbara Xinguara, que pertence ao grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, investigado por fraudes
Rio Grande do Sul Os trabalhadores rurais organizaram uma marcha que percorreu o Estado. Eles protestaram contra a criminalização do MST promovida pelo Ministério Público gaúcho e o governo do Estado. Em Porto Alegre, os sem-terra ocuparam o Incra e realizaram reunião com o superintendente Mozar Dietrich, porém sem acordo. O órgão sustenta que assentará duas mil famílias até dezembro deste ano, conforme o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assinado no final de 2007, pelo Incra e o Ministério Público do Estado. Contudo, o MST denuncia que não foi cumprida a primeira parte do acordo – mil famílias assentadas até abril deste ano. A demora em resolver problemas com a documentação legal, como certidões e escrituras de áreas, é apontada pelo superintendente do Incra como empecilho para o assentamento imediato das famílias. Ele aponta que o Incra dispõe de R$180 mi para compra de áreas e que existem dez propriedades em processo de desapropriação por interesse social genérico, totalizando 30 mil hectares. O MST também denuncia o avanço da concentração de terras no Estado. Aracruz, Votorantim Celulose e Stora Enso possuem hoje, juntas, mais de 150 mil hectares de terras para plantio de pinus e eucalipto. Há previsões de que as três controlarão 1 milhão de hectares em 2015, com o amplo apoio do governo estadual. São Paulo Cerca de 400 trabalhadores ocuparam a sede
do Incra na capital paulista, em 21 de julho. Em audiência, o superintendente do órgão alegou falta de recursos para atender as necessidades das famílias e o cumprimento dos três pontos levantados pelo MST: melhoria das condições de vida nos assentamentos, que carecem de investimentos em infra-estrutura – água, luz e estradas –, o assentamento imediato das famílias acampadas no Estado e assistência técnica e fomento à cooperação, agroindústria e agroecologia para garantir condições básicas na produção de alimentos. O MST rebateu as alegações afirmando que, “se o governo federal destina bilhões para financiar projetos e beneficiar grandes empresas nacionais e transacionais ligadas ao agronegócio, com certeza tem condições de destinar mais recursos para o atendimento das necessidades dos acampamentos e assentamentos”. No Estado, cerca de “1,6 mil famílias permanecem acampadas e 700 não tiveram acesso a crédito e infra-estrutura.
Santa Catarina No estado, os sem-terra iniciaram seus protestos no dia 29 de julho com um acampamento na Assembléia Legislativa, em Florianópolis. A sede do Incra foi ocupada por 250 agricultores no dia 30.
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américa latina
Na Bolívia, a aposta por Cochabamba REFERENDO REVOGATÓRIO Governo Evo e movimentos sociais vêem com grande otimismo a possibilidade de revogar o mandato do governador local, um dos principais nomes da direita boliviana, e alterar nacionalmente a correlação de forças Igor Ojeda de Cochabamba (Bolívia) “MANFRED, SÓ faltam 6 dias para você ir embora”, escreve, numa cartolina, uma jovem envergonhada pela letra ruim. O dia 4 de agosto está agitado na praça 14 de Septiembre, a principal da cidade de Cochabamba, na região central da Bolívia. A poucos metros do cartaz que estava sendo elaborado, um grupo de entre 20 e 30 pessoas ouve um senhor de pele morena, cavanhaque e usando um boné de um time de La Paz, que explica os benefícios que o governo do presidente Evo Morales está proporcionando com o dinheiro proveniente da nacionalização dos hidrocarbonetos, de maio de 2006. Logo ao lado, de chapéu preto e óculos escuros, outro homem moreno mostra uma cópia de um jornal, com a notícia de que os seis governadores da oposição – o líder local, Manfred Reyes Villa, entre eles – possuem uma fortuna, juntos, de 50 milhões de bolivianos (a moeda local, o equivalente a cerca de R$ 12 milhões). E começa a listar os motivos pelos quais a população deveria votar pela saída das autoridades oposicionistas no referendo revogatório que será realizado no dia 10. Um senhor de barba o ajuda no “discurso”, fazendo campanha pela ratificação do presidente Evo e pela revogação do mandato de Manfred. “As políticas desses cavalheiros sempre foram as mesmas. Embolsar o dinheiro do povo e não fazer nada por ele. Além disso, apoiamos as mudanças que está pretendendo fazer o governo, com a finalidade de beneficiar todos os bolivianos, não só nos departamentos, mas com caráter
Gonzalo Jallasi/ABI
nacional”, esclarece Juan Torrico, que diz não fazer parte de nenhum partido.
Racismo
Campanha
Desempregado, já que, “por ser velho, não querem me dar trabalho”, Juan é um dos tantos que fazem campanha espontânea – que dura o dia todo – a favor de Evo na principal praça da cidade. “Aqui, nos reunimos todos os cidadãos para darmos nossos pareceres em relação ao que acontece no país politicamente. E eu noto que as pessoas estão se conscientizando à medida que os dias passam”, garante. Outro instrumento de conscientização espontânea, mas mais organizado, é a Red Tinku, uma entidade intercultural que apóia os movimentos populares da Bolívia. Como ferramenta de comunicação popular, a organização instala na praça de Cochabamba, diariamente, painéis informativos sobre a situação política, econômica, social e cultural do país. Para a campanha de revogação de Manfred, não foi diferente. Além dos painéis, seus integrantes colocaram faixas, cartazes e uma mesa com material de propaganda, de panfletos a livros e DVDs. Durante o dia inteiro, inúmeras pessoas param para ler as notícias selecionadas e observar os itens de campanha à disposição. “Queremos revogá-lo porque ele é a expressão mais negra da direita desta parte do país. E se subalternizou à doutrina direitista do oriente”, explica Edgar Ballón, da Red Tinku. A saída de Manfred do governo departamental de Cochabamba é uma das principais apostas do governo do Movimiento Al Socialismo (MAS, partido de Evo) para o referendo revogatório, através do qual a população boliviana decidirá se o presidente, o vi-
Carreata de simpatizantes de Evo Morales em La Paz
“Um dos representantes da embaixada estadunidense para se candidatar a presidente é precisamente [o governador de Cochabamba] Manfred Reyes Villa. Agora, a direita não terá candidato, porque estão divididos” ce-presidente e os governadores regionais permanecem ou não no cargo.
Instrumento de divisão
Embora não faça parte organicamente da chamada meia-lua (oposição formada pelas autoridades e comitês cívicos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando, que impulsionam suas autonomias), Manfred, desde que assumiu, em 2006, vem sendo um de seus mais ferrenhos aliados, e é um dos principais nomes da direita em nível nacional. “[Queremos sua revogação] por ele apoiar a independên-
José Lirauze/ABI
Governo Evo enfrenta uma conjuntura difícil Mobilizações da esquerda e da direita conturbam situação política do país
cia de Santa Cruz. Nosso departamento votou pelo “não” à autonomia, e isso tem que ser respeitado. Nenhuma pessoa pode atribuir-se a representação de toda uma região”, protesta Juan. Em 2006, foi realizado um referendo oficial sobre as autonomias. O “não” ganhou nacionalmente, mas o “sim” triunfou na meia-lua. No entanto, desde que tomou posse, Manfred vem afirmando que iniciará o processo autonômico também em Cochabamba. “Foi um claro desacato ao mandato do povo cochabambino [como é chamada a po-
Apesar dos conflitos, Evo ainda conta com apoio popular
delas fora vítima de arma de fogo. O governo se defendeu afirmando que a polícia não usou armamento letal. Em coletiva de imprensa, Evo pediu que a COB não entre no jogo da direita e afirmou estar convencido de que as medidas de pressão visam frear o referendo revogatório.
Greve de fome
Outro problema enfrentado pelo presidente é o início, no dia 3, de uma greve de fome por parte de autoridades e cívicos da chamada meia-lua (formada por Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando), com o objetivo de fazer com que o governo devolva 450 milhões de bolivianos (cerca de R$ 110 milhões) referentes ao montante cortado do Imposto Direto sobre os Hidrocarbonetos (IDH) que seria destinado aos departamentos. O governo vem utilizando essa verba para pagar uma bolsa para os idosos do país (chamada de Renda Dig-
nidade) e afirma, reiteradamente, que o aumento do preço do gás e do petróleo – e o conseqüente incremento na arrecadação – fazem com que as regiões recebam, hoje, muito mais do que perderam. Para piorar a situação, no dia 5, Evo e os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Argentina, Cristina Kirchner, suspenderam o encontro que aconteceria na cidade de Tarija (onde assinariam acordos energéticos), devido às mobilizações dos cívicos locais, que cercaram o aeroporto para evitar a chegada dos mandatários. Mesmo assim, em pesquisa divulgada no dia 4 pelo jornal El Deber, de Santa Cruz, Evo apareceu com 54% de apoio no referendo revogatório, mesma proporção que o elegeu em 2005. Entre os governadores, a pesquisa indica que correm risco de sair as autoridades oposicionistas de Cochabamba, Pando e La Paz e a governista de Oruro. (IO)
pulação local]. Ele se alinhou com a meia-lua, especialmente com o comitê cívico pró-Santa Cruz, e começou a pregar a autonomia”, lembra o advogado e ativista Edilberto Vargas, assessor jurídico da direção departamental do MAS. Na opinião dele, a nova forma de atuar do império estadunidense é a de agir de maneira mais sutil para desestabilizar os países não-alinhados a suas políticas, como o fomento à desagregação nacional. Manfred seria “um dos instrumentos dessa divisão e também da negação da participação de outros setores da população nos benefícios do país”. Segundo o ativista do MAS, caso o governador de Cochabamba seja revogado, a correlação de forças nacionalmente poderá tornar-se mais favorável ao governo Evo, já que
Carmen Peredo, assessora da Federação Departamental Cochabambina de Irrigadores (Fedecor, na sigla em espanhol), uma das entidades participantes da Guerra da Água, em 2000, concorda. Para ela, a partir do dia 11, o governo Evo e seus apoiadores irão trabalhar mais fortalecidos no processo de transformações, inclusive com maior legitimidade para impulsionar o referendo sobre o novo texto constitucional, aprovado no fim de 2007. E a queda de Manfred seria fundamental para isso. “Um dos representantes da embaixada estadunidense para se candidatar a presidente é precisamente Manfred Reyes Villa. Agora, a direita não terá candidato, porque estão divididos. Há um problema de liderança, porque Costas [Rubén Costas, governador de Santa Cruz] tampouco significa um novo líder para o ocidente. Pode ter alguma aceitação na meia-lua, mas não no resto do país”, diz. Carmen, assim como Edilberto, Juan e Edgar, estão seguros de que Manfred cairá. Mesmo assim, os que desejam revogá-lo precisam enfrentar um importante desafio: convencer a população da zona urbana do departamento. Ao contrário do campo, onde o rechaço ao governador e o apoio a Evo é praticamente unânime, na cidade a situação está mais polarizada. “Esse é um problema racial, sem dúvida. Nos impuseram uma espécie de paradigma, segundo o qual os únicos ´pensantes` são os que somos um pouco mais branquinhos, os que falamos mais refinadamente o espanhol. Por isso, Mandred representa um referente dessa imagem”, opina o integrante da Red Tinku.
Um homem da ditadura e do neoliberalismo Entre fevereiro e abril de 1976, governador de Cochabamba teria freqüentado a Escola das Américas de Cochabamba (Bolívia)
de Cochabamba (Bolívia) Às vésperas da realização do referendo revogatório dos mandatos do presidente, vice-presidente e governadores departamentais, marcado para o dia 10, o governo de Evo Morales vê crescer os conflitos políticos e sociais no país. O mais grave deles, no entanto, vem de um dos principais movimentos sociais do país, a Central Operária Boliviana (COB), entidade histórica de trabalhadores. Há dias, a organização realiza bloqueios de estradas e manifestações nas principais cidades com o objetivo de pressionar o governo e o Congresso Nacional para aprovarem sua proposta de uma nova Lei de Pensões. Quase que simultaneamente, o Executivo apresentou a sua própria proposta, criticando o fato de que a da COB não garante a universalidade do serviço. As duas versões estão sendo debatidas na Câmara dos Deputados. No dia 5, o enfrentamento entre a polícia e mineradores afiliados à central, que realizavam um bloqueio a uma estrada que liga La Paz a Cochabamba, causou a morte de duas pessoas – até o fechamento desta edição, havia se confirmado que uma
Manfred representa a oligarquia boliviana.
As organizações sociais que fazem campanha para a revogação do mandato do governador Manfred Reyes Villa fazem questão de frisar que ele não representa apenas uma simples oposição às medidas do governo do presidente Evo Morales. Um dos principais nomes da direita boliviana, Manfred é associado fortemente aos regimes militares pelos quais passou o país e ao neoliberalismo implantado radicalmente a partir da década de 1980. “Ele é um militar aposentado muito ligado à ditadura de Luis García Mesa [1980-1981, considerada uma das mais sangrentas da história da Bolívia]. E foi parte de todo esse processo de privatização. Seu empenho sempre foi cui-
dar da segurança jurídica das transnacionais, das petroleiras... apoiava de uma forma muito firme o modelo neoliberal”, resume Carmen Peredo, assessora da Federação Departamental Cochabambina de Irrigadores (Fedecor, na sigla em espanhol).
Escola das Américas
O atual governador cochabambino esteve ligado, ainda, aos governos constitucionais do ex-ditador Hugo Bánzer (1997-2001) e de Gonzalo Sánchez de Lozada (20022003), que se destacou pela dura repressão (mais de 60 mortos) aos defensores da nacionalização do gás, em outubro de 2003. Além disso, os movimentos populares de Cochabamba denunciam que, entre fevereiro e abril de 1976, Manfred freqüentou a Escola das Américas (hoje, denominada
WHINSEC), centro militar estadunidense famoso por formar repressores para as ditaduras latino-americanas. “Isso nos dá uma clara idéia de que esse senhor está contra a população”, alerta o desempregado Juan Torrico. O ativista e advogado Edilberto Vargas, assessor jurídico da direção departamental do MAS, chama a atenção, também, para a vinculação de Manfred com os EUA. “Os grandes projetos que a USAID [agência estadunidense de apoio ao desenvolvimento] realizava na região foram absorvidos pelo governo departamental de Cochabamba. De acordo com serviços de inteligência, ele sempre viaja às custas da Embaixada dos EUA. Isso nos faz ver que o governador está manejando interesses obscuros daquele país na Bolívia”, observa. (IO)
Interpretação de resultados pode ser confusa de Cochabamba (Bolívia) De acordo com a lei que convocou o referendo revogatório, aprovada no Senado em maio, para se revogar uma autoridade, a votação contrária a ela deveria superar a porcentagem de votos que a elegeu em 2005. Dessa forma, os governadores da oposição se sen-
tiram em desvantagem em relação ao presidente Evo Morales, já que este venceu com 53,7%, enquanto nenhum líder regional alcançou os 50%. Por isso, no dia 31 de julho, a Corte Nacional Eleitoral (CNE), juntamente com sete cortes departamentais, emitiu uma resolução determinando que, para revogar o mandato dos governadores,
o “não” deve alcançar 50% mais um, enquanto para o presidente, a porcentagem de 53,7% se manteria. No entanto, o Congresso não aceitou a decisão e afirmou ser o único facultado a alterar a lei de convocatória da consulta. Por essa razão, analistas temem que, após o dia 10, cada ator político possa interpretar os resultados a sua maneira. (IO)
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américa latina
Honduras vai se incorporar à Alba Reprodução
INTEGRAÇÃO Para o presidente Manuel Zelaya, planos de integração promovidos pela Venezuela são uma nova resposta a velhos problemas da América Latina da Redação O PRESIDENTE de Honduras, Manuel Zelaya, assegurou que seu país se transformará em um membro pleno da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). “Com a Alba se abrem novas oportunidades para o país, para os pobres da região”, expressou na Primeira Cúpula de Ministros de Agricultura do mecanismo integrador Petrocaribe. O encontro foi realizado na quartafeira (30), em Tegucigalpa, capital hondurenha. Zelaya recordou que seu país faz parte do acordo petroleiro e esteve como observador da iniciativa impulsionada pelo governo do presidente Hugo Chávez, surgida em resposta à proposta estadunidense de criar sob sua hegemonia a Área de Livre Comércio para as Américas (Alca), informou hoje o jornal El Heraldo. Os Estados Unidos também mantêm um Tratado de Livre Comércio (TLC) com países da América Central –
acordo conhecido como Cafta, por sua sigla em inglês. “Mantendo os esquemas tradicionais, não iremos adiante. Essa é uma boa opção, estes são os projetos. É o futuro da América Central e do Caribe”, assinalou o governante a respeito dos benefícios do programa Petroalimentos. De acordo com Zelaya, os planos de integração promovidos pela Venezuela são uma nova resposta a velhos problemas em quase todos os países da América Latina e, especialmente, da África que não foram solucionados com as estruturas atuais.
Integração solidária Hoje, a Alba reúne quatro nações – Venezuela, Cuba, Bolívia e Nicarágua. Seu princípio é de uma proposta de integração para o continente sedimentada na complementariedade das nações. Idealizada como um contraponto aos Tratados de Livre Comércio (como a Alca), a Alba prioriza acordos nas áreas sociais, como em educação e saúde.
Para o presidente Manuel Zelaya, a Alba abre oportunidades para países pobres da região
Um dos principais acordos entre os países da Alba é a Operação Milagre, que leva assistência oftalmológica às populações sem acesso ao serviço de saúde pública. Es-
tima-se que cerca de 1,2 milhão de latino-americanos e caribenhos já recuperaram a visão por conta da iniciativa. Venezuela, Nicarágua e Bolívia também recebem apoio
Novo quadro geopolítico na América Central ANÁLISE Duas reuniões ilustram que o subcontinente deve decidir entre manter os EUA como referência ou integrar um processo de alinhamento com o Sul Frida Modak A CRISE econômica estadunidense, transmitida ao resto do mundo, está gerando mudanças importantes na América Latina. Não nos basta apenas observar, mas atuar para que desemboquem no que convém à região. Duas reuniões recentes ilustram essa mudança. Uma delas foi a Décima Reunião de Chefes de Estado e de Governo do Mecanismo de Diálogo e Concerto de Tuxtla, que acabou em 28 de junho em Villahermosa, México. Nela se reafirmaram os objetivos do Plano Puebla Panamá, que mudou de nome e foi rebatizado de Projeto Mesoamérica. Participaram os presidentes e Chefes de governo dos países membros: Belice, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua e Panamá, assim como República Dominicana, em sua qualidade de Estado Associado do Sistema de Integração Centro-americana (SICA) e o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe.
Honduras e Guatemala ingressaram ao mecanismo Petrocaribe e, com isso, em um projeto de desenvolvimento regional que contempla também investimentos e geração de empregos O documento final do encontro deu especial importância ao combate da delinqüência organizada e a adesão à Iniciativa Mérida financiada pelos Estados Unidos (projeto em parceria com o México para o combate ao narcotráfico). Houve 9 referências a este tema entre os 60 pontos da declaração final. O outro encontro foi a Quinta Reunião Extraordinária de Petrocaribe, efetuada em 13 de julho em Ma-
racaibo, Venezuela. Participaram os presidentes e chefes de governo de Antígua e Barbuda, Bahamas, Belice, Cuba, Dominica, Granada, Haiti, Honduras, Jamaica, Nicarágua, República Dominicana, São Cristóvão e Nevis, Santa Lucia, São Vicente e as Granadinas, Suriname e Venezuela. Costa Rica assistiu como observadora. Nesta ocasião se estabeleceram os novos termos em que a Venezuela proporcionará petróleo aos membros do mecanismo integrador Petrocaribe. Enquanto o barril estiver custando mais de 100 dólares, esses países terão um desconto e pagarão 40% após 90 dias do recebimento. O resto será quitado em 25 anos. Se o preço superar os 200 dólares, pagarão 30% em 90 dias e o resto a um prazo maior. Até agora se pagava 50% a 90 dias e o resto em 25 anos, com dois anos de graça e juros de um por cento.
Novas presenças O contraste entre ambas reuniões tem dado origem a interessantes análises. Até o início dos anos 90, as áreas de influência ou presença dos maiores países da América Latina estava bastante clara. México exercia uma liderança na América Central, mas tinha escassa presença no Caribe, excetuando o alto nível de suas relações com Cuba. Por sua vez, a Venezuela tinha presença, mais que influência, no Caribe e na América Central, de onde se aproximou mais quando integrou o Grupo de Contadora. O Brasil, por sua vez, esteve sob um regime ditatorial até o final dos anos de 1980, assim como os países do Cone Sul. Restabelecida a democracia na América Central e do Sul, o quadro se modificou. Analistas falam do deslocamento do México da América Central e a presença da Venezuela e do Brasil nessa área, como também no Caribe e na América do Sul. Ainda que se tente apresentar aos presidentes Lula e Chávez como antagonistas, os acontecimentos se encarregam de mostrar suas coincidências. Sobre a América Central, cabe recordar que, em 2005, participaram da
criação do Petrocaribe só países do Caribe. Os projetos diziam respeito tanto a preços preferenciais do petróleo como também à construção e remodelação de refinarias. Os países centro-americanos receberam, então, do governo do México, a oferta de instalação de novos postos de gasolina da Pemex (estatal mexicana), de modernização das velhas refinarias que já não funcionavam e cotas rebaixadas de petróleo. Esta foi a origem da controvérsia entre os presidentes Hugo Chávez e Vicente Fox, pela forma que este último se referiu ao projeto venezuelano.
A Amazônia e a Antártica escondem enormes recursos, e os países chamados desenvolvidos já estão formulando reivindicações sobre esses territórios Passados os anos, a oferta mexicana não se concretizou. Comenta-se no meio diplomático que o atual presidente, Felipe Calderón, disse ao colega guatemalteco Oscar Berger que seu país não estava em condições de vender-lhe a quantidade de petróleo oferecida pelo seu antecessor. As refinarias tampouco se remodelaram nem se instalaram postos de gasolina. A alta dos preços do petróleo custou às nações centro-americanas centenas de milhões de dólares e, finalmente, apesar das pressões estadunidenses, Honduras e Guatemala ingressaram ao Petrocaribe e, com isso, em um projeto de desenvolvimento regional que contempla também investimentos e geração de empregos.
Um novo perfil Neste contexto, e em meio à crise econômica que já se admite como tal, a América Latina enfrenta uma nova realidade. Nossos recursos sempre têm sido cobiçados.
Até há alguns anos, os Estados Unidos se proclamavam detentores de direitos que ninguém lhes havia concedido. Consideravam a região sua área de influência. Mas, nos anos de 1970, passaram a enfrentar problemas econômicos e, para evitá-los, abriu a região para outro tipo de colaboração com a Europa Ocidental. Hoje os europeus disputam a hegemonia e ambos enfrentam o desafio russo-asiático. Resulta, então, que a América Latina está diante de dois caminhos: seguir como os que mantêm os Estados Unidos como potência em um mundo que já não será unipolar ou integrar um novo alinhamento do Sul. Enquanto se definem os futuros centros de poder, vamos ser objeto de inumeráveis pressões. A Amazônia e a Antártica escondem enormes recursos, e os países chamados desenvolvidos já estão formulando reivindicações sobre esses territórios. Se os Estados Unidos não conseguem o acesso à Amazônia através da Colômbia, América Central e Caribe são outra via. A Grã-Bretanha quer a Antártica, e as jazidas petrolíferas descobertas pelo Brasil são uma tentação, assim como as do Golfo do México. Este novo perfil do subcontinente não tem sido demostrado adequadamente. Mas Brasil e Venezuela o têm claro. Os brasileiros vão guardar seu petróleo com submarinos nucleares e estão comprando novos aviões. A Venezuela já faz tempo que mudou seus provedores de armamento, seu presidente acaba de estar na Rússia e busca uma aliança estratégica ante a crise. A iniciativa de Lula, da União das Nações Sulamericanas (Unasul), criou um Conselho de Segurança cuja importância é óbvia, tanto como a necessidade de abandonar esquemas que já colapsaram. Está se desenhando um novo mapa geopolítico, e nos cabe decidir se seremos sujeito ou objeto. Artigo publicado originalmente na Alai – www.alainet.org. Frida Modak é jornalista, foi secretária de imprensa do presidente Salvador Allende.
de Cuba no combate ao analfabetismo. O método cubano Yo, si puedo já foi utilizado por Hugo Chávez. A Venezuela, em 1995, foi declarada país livre do analfabetismo
pela Unesco. Agora a Bolívia também persegue esse mesmo objetivo e, em dois anos, o governo Evo Morales reduziu pela metade o número de analfabetos no país. A solidariedade entre esses países também é um diferencial na proposta de integração. A Venezuela, que detém a quarta maior reserva mundial de petróleo, vende barris às nações que integram a Alba em condições mais favoráveis: prazo de 90 dias para o pagamento de 50%. Dos 50% restantes, 25% teriam um prazo de 25 anos para pagar (com dois anos de carência, a uma taxa de 2%) e 25% seriam colocados num fundo da Alba para créditos a pequenos projetos. Venezuela, Cuba, Nicarágua e Bolívia negociam, agora, a constituição do Banco da Alba, uma instituição financeira supranacional que terá o objetivo de financiar projetos de desenvolvimento para os integrantes do bloco. A Primeira Cúpula de Ministros de Agricultura da Petrocaribe definiu, por sua vez, a criação de um conselho encarregado de definir a distribuição de 460 milhões de dólares contribuídos pela Venezuela para reativar os setores agrícolas dos países-membros do fórum. (Prensa Latina)
MÉXICO
Senado decidirá rumos da estatal Pemex Consulta popular organizada pelos partidos de esquerda rechaça abertura de capital da empresa da Redação O Senado vai dar a última palavra sobre o futuro da petroleira estatal mexicana Pemex. Partidos de esquerda impulsionaram, em 27 de julho, uma consulta popular em todo o país sobre o polêmico projeto do presidente Felipe Calderón de abertura do capital da empresa e também de áreas do setor petroleiro para atuação de grupos privados, como o petroquímico. Mais de 80% dos mexicanos se manifestaram contra a iniciativa, na consulta. Os resultados foram entregues ao presidente do Senado, Santiago Creel, em 31 de julho. “Tenho a mais ampla confiança de que os legisladores vão levar em conta a vontade popular”, discursou o chefe de Governo do Distrito Federal mexicano, Marcelo Ebrard, na entrega do documento. Por sua vez, Creel, que integra o Partido Ação Nacional (PAN), respondeu que os dados recebidos serão entregues às comissões examinadoras e que a decisão final caberá aos se-
nadores. A expectativa é de que os congressistas analisem o projeto de Calderón em setembro, quando regressarem do recesso.
Consulta A consulta popular do dia 27 de julho foi a primeira etapa de uma série de votações que continuarão em outros Estados do país nos dias 10 e 24 de agosto. Nesta primeira série, opinaram os habitantes da Cidade do México e de nove outros Estados. Como resposta à entrega dos resultados da consulta popular ao Senado, Calderón exigiu dos legisladores do PAN que fechem o cerco e consigam as maiorias necessárias para aprovar a reforma (Pemex). No dia 31 de julho, Calderón participou de uma reunião com os senadores do seu partido para reorganizar a base aliada. Enquanto isso, o também conservador Partido Revolucionário Institucional (PRI) apresentou sua proposta alternativa de reforma da Pemex. Já a Frente Ampla Progressista (FAP) anunciou que fará o mesmo em breve.
Polêmica reabre fissura política da Redação Sete décadas após o então presidente Lázaro Cárdenas nacionalizar a indústria petroleira, a paraestatal Petróleos Mexicanos (Pemex) está submergida em uma forte crise financeira, após sucessivas gestões de governos identificados com políticas neoliberais. A tentativa de alterar a legislação do setor de petróleo, favorecendo as empresas privadas, reabriu uma fissura na sociedade mexicana. Calderón chegou ao poder no pleito de 2006, em meio a fortes denúncias de fraudes eleitorais. O resultado final foi submetido a dois meses de análises pelos magistrados eleitorais, que o nomearam presidente por uma estreita margem de vantagem sobre seu opositor, Andrés Manuel López Obrador. A esquerda institucional mexicana – capitaneada pelo PRD – lançou então uma campanha declarando o governo de Calderón ilegítimo e instituindo um governo paralelo e popular. Uma mobilização chegou a reunir um milhão de pessoas na praça do Zócalo, em frente à sede do governo mexicano, em protesto contra o resultado declarado pelas autoridades eleitorais. Mesmo em um cenário de divisão no país, Calderón lançou em março sua polêmica proposta de reforma petroleira ao Congresso. Com isso, abre uma nova disputa entre os partidos políticos que rechaçam a participação privada na Pemex. Mexe também com o imaginário do povo mexicano, já que a estatização do petróleo ocorreu, em 1938, em meio a um processo popular liderado por Cárdenas. Para muitos, abrir esse setor significa “entregar o país” ao capital estrangeiro (com La Jornada).
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internacional
Após fracasso de Doha, OMC na UTI LIVRE COMÉRCIO Posição destoante do Brasil é um dos fatores que impedem o esgotamento das negociações de livre comércio WEF/CC
Augustine Parani
Elza Fiúza/ABr
Eduardo Sales de Lima da Redação OS PAÍSES ricos pouco se queixaram. Alguns subdesenvolvidos viram suas elites agrárias frustradas. A maior parte das nações pobres ficou aliviada. E a imprensa brasileira lamentou, em coro, o fracasso das negociações da Rodada de Doha, no dia 29 de julho, em Genebra. O resultado questiona a legitimidade e a representatividade da própria Organização Mundial do Comércio (OMC), com seus 153 Estados membros, mas que selecionou somente sete potências comerciais (Estados Unidos, União Européia, Japão, Austrália, China, Índia e Brasil) para decidir sobre a liberalização do comércio mundial e o futuro de bilhões de pessoas. O motivo central do fim das negociações foi apontado como sendo o antagonismo entre Estados Unidos e Índia em relação a um mecanismo de salvaguarda, que permitiria aos países em desenvolvimento subir tarifas aduaneiras para se protegerem de um surto de importações que pudesse prejudicar sua segurança alimentar. Apesar de os Estados Unidos e a União Européia empurrarem de forma agressiva a liberalização comercial, baseados em um modelo que tem provocado a crise alimentar, para Fátima Mello, secretária executiva da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), os exemplos da Índia demonstram a resistência de outros países que “não estão mais dispostos a abrir mão do papel que podem ter para garantir a segurança alimentar, os serviços essenciais para a população e até o papel regulador”. Para ela, a Rodada de Doha já se esgotou. “Insistir nela é apostar numa agenda que se mostrou completamente ultrapassada”, avalia.
“No Brasil, processa-se essa fé, o evangelho do livre-comércio, por uma razão simples: a elite brasileira quer vender a pátria”, diz economista O fracasso significou, além de uma vitória da luta pela soberania alimentar, o fortalecimento da própria economia do país. “A defesa do protecionismo da Índia é um ato de lucidez dos indianos. Não estão fazendo nada mais do que aplicar no seu país aquilo que os Estados Unidos sempre fizeram e fazem na atualidade”, pondera Nildo Ouriques, professor de economia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O economista cita o teórico do liberalismo econômico Adam Smith: “Ele já dizia, no século 18, que os tratados comerciais são mecanismos que servem para arruinar os outros países e conquistar aquilo que, pela concorrência, não se consegue”. O chamado “fracasso” da Rodada de Doha, segun-
A representante comercial dos Estados Unidos, Susan Schwab, o ministro de Comércio indiano, Kamal Nath, e o ministro Celso Amorim
Etiqueta de preço escondida de Doha
O Brasil que serve aos ricos
Benefícios de Doha x Perdas Tarifárias do NAMA x Termos de perdas comerciais (em bilhões de dólares de 2001) Cenário provável do Banco Mundial
Perdas tarifárias do NAMA
Termos comerciais (em %)
Países desenvolvidos
79.9
-38.0
-0.12%
Países em desenvolvimento
16.1
-63.4
-0.74%
Fonte: Research and Information System for Developing Countries (RIS)
do Ouriques, não trará conseqüências para o comércio mundial. “Não existe nenhum colapso em nível da economia mundial porque a lógica da economia mundial é uma só, ela funciona na base do protecionismo. Aliás, a China e a Índia crescem de maneira espetacular porque atuam na base do protecionismo. Vai permanecer um mundo tão desigual quanto era. A única vantagem é que a gente se livra da ideologia do livre-comércio por alguns meses”, destaca o economista.
Evangelho
O Brasil se destacou negativamente nas negociações em Genebra. Posicionou-se contra os interesses dos países que formam o G20 e o Mercado Comum do Sul (Mercosul) ao aceitar a proposta do diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, para destravar as negociações. Concordou em baixar tarifas para exportações e abrir mais ainda o setor de serviços. Paralelamente, os países como a Argentina, China e Índia se mostraram contrários a essas concessões e defenderam o direito de manter e criar novas salvaguardas para o setor agrícola. Já o Brasil aceitou o lobby do agronegócio – favorável ao livre comércio – e ignorou os efeitos que tal posição poderia ter para a agricultura familiar e camponesa, responsável por cerca de 70% do abastecimento de alimentos do mercado interno. Segundo Fátima Mello, o Brasil estava concordando em fazer concessões “inaceitáveis” por querer ter mais acesso aos mercados da Europa e dos Estados Unidos para exportar commodities agrícolas. O país aceitou ceder principalmente em dois setores. O primeiro foi o de tarifas para importação de produtos in-
dustriais. “Esses países [ricos] têm todo o interesse em ampliar suas exportações de alto valor agregado para os países do sul”, explica Fátima. O outro era o de serviços, que, “no Brasil, já é bastante liberado e privatizado”. “Com o fim das negociações em Genebra, o prejuízo para o Brasil será de US$ 5 bilhões. Que cifra é essa? É uma migalha. Equivale a um recorde de arrecadação fiscal do mesmo Brasil. Para que tanto barulho por nada? Sem falar que isso significa a renúncia de setores industriais inteiros”, comenta Nildo Ouriques. Ele conclui: “no Brasil, processase essa fé, o evangelho do livre-comércio, por uma razão simples: a elite brasileira quer vender a pátria.”
Kevin Gallagher, professor de Relações Internacionais na Universidade de Boston, e Timothy Wise, do Instituto Global de Desenvolvimento e Meio Ambiente, organizaram os dados de uma projeção do cenário econômico mundial após um sucesso nas negociação da Rodada de Doha, que por sua vez, foram levantados pelo Banco Mundial. Nesse cenário, os ganhos globais projetados para 2015 são de somente 96 bilhões de dólares. Os países em desenvolvimento ficariam com somente 16 bilhões de dólares
Salvaguardas – As salvaguardas em agricultura são o direito que os países têm de proteger e promover a sua agricultura interna, aquela que abastece com alimentos a população dos países. Em geral, trata-se de uma tarifa incidente sobre importações como forma de prevenir prejuízo à produção doméstica. G-20 – Ou Grupo dos 20, é um grupo de países emergentes criado em 20 de agosto de 2003, em Cancún, México, com atuação mais concentrada na agricultura. Entre os países, fazem parte Índia, China, Brasil, Egito, África do Sul e Venezuela.
Subserviência
O integrante da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que faz parte da Via Campesina, João Pedro Stédile, criticou a posição do governo brasileiro em aceitar a redução de tarifas para exportações e importações. “É uma posição de subserviência total aos interesses do agronegócio e das empresas transnacionais que controlam os produtos agrícolas”, disse. O presidente Lula, por sua vez, tem apostado nas negociações de livre comércio. No dia 2 de agosto, telefonou aos Estados Unidos para falar com George W. Bush. O assunto: a retomada das negociações da Rodada de Doha. Ele ponderou que vai falar também com o presidente da China, Hu Jintao, e com o primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ministério das Relações Exteriores, mas o chanceler Celso Amorim estava viajando.
Doha não combateria a desigualdade da Redação
Para entender
A Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada em 1995. Desde então funciona como o foro dos interesses dos países ricos ávidos pela introdução dos acordos de livre comércio no mundo. O órgão decisório mais importante na OMC é a Conferência Ministerial, que se realiza, geralmente, uma vez a cada dois anos. Em 2005, na 6ª Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Hong Kong, houve concessões substanciais dos países subdesenvolvidos nas negociações. Tanto no que diz respeito aos serviços quanto ao Acesso aos Mercados para os Produtos Não-Agrícolas (da sigla em inglês NAMA) e à agricultura. Na época, em entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo filipino Walden Bello ressaltou que os países desenvolvidos saíram beneficiados das negociações. E o Brasil teve importante responsabilidade nisso. As duas principais lideranças do G-20, Brasil e Índia, pressionaram os países subdesenvolvidos para aceitar os termos das negociações. De acordo com Bello, o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) operacionalizou, juntamente com o ministro do Comércio e da Indústria da Índia, Kamal Nath, a sobrevida da OMC. Brasil e Índia neutralizaram grupos de insatisfeitos com os rumos das negociações, como o chamado Nama 11 (que, além dos dois países, contava com Filipinas, Indonésia e Argentina, entre outros) que exigia, em contrapartida de uma expansão da liberalização da indústria e da pesca, concessões em agricultura por parte dos países desenvolvidos. Segundo Bello, a partir desse encontro, começava a ganhar força o “Novo Quadrado”, formado por Estados Unidos, União Européia, Brasil e Índia. Foi em Hong Kong que, para Bello, ambos os países se tornaram decisivos dentro da OMC. (ESL)
desta fatia, o que representa apenas 0,16% do Produto Interno Bruto mundial (PIB). Para um trabalhador pobre ou um agricultor que ganha 100 dólares por mês, que representa um acréscimo de 16 centavos em 2015. Segundo Gallager e Wise, o sucesso da Rodada de Doha retiraria somente 2,5 milhões, das 622 milhões de pessoas mais pobres, do mundo da miséria. Os estudiosos ainda apontam que essas projeções não incluem custos da implementação da Rodada de Doha que, segundo cálculos da Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Comércio (Unctad, na sigla em inglês), poderiam chegar até quatro vezes mais que os benefícios projetados. (ESL)
Parlasul se opõe à posição brasileira Para o presidente do Parlamento do Mercosul, não há como um país negociar em separado se está dentro de um bloco Wilson Dias/ABr
da Redação “Como é difícil tirar um centavo de um país rico”, disse o presidente Lula, em encontro com a colega argentina Cristina Kirchner, no país vizinho, dia 4 de agosto. Logo após o fracasso das negociações na OMC, o brasileiro viajou à Argentina para acalmar o descontentamento gerado com a controversa posição do país defendida em Genebra. Mas as vozes de reprovação não vieram apenas da diplomacia argentina. O Parlamento do Mercosul (Parlasul) aprovou, no dia 28 de julho, uma declaração contrária à posição brasileira. “O parlamento enxergou o que o governo não estava enxergando. Não há possibilidade nenhuma de qualquer país no mundo negociar em separado quando ele está dentro de um bloco”, sintetizou ao Brasil de Fato o presidente do Parlasul, o deputado Dr. Rosinha. Ele reforçou a necessidade do Mercosul e do G-20 caminharem “lado a lado”. O argumento dado pelo governo Lula por ter aceito baixar tarifas de importação foi a conformação assimétrica das economias tanto do G20 quanto do Mercosul. “Mesmo com as assimetrias, ratifico a necessidade de integração, porque se eu negocio em separado, eu aprofundo algumas assimetrias.
Lula e Cristina Kirchner, presidente da Argentina
O nosso objetivo é que se faça a correção das assimetrias, não aprofundá-las”, completa Dr. Rosinha. “O chamado fracasso de Doha é fracasso de quem?”, questiona o presidente do Parlasul. “Os países avançados só querem aumentar os privilégios que eles têm, não abrem mão de nada. Não há um fracasso. Há uma teimosia dos países avançados. Eles acham que, não tendo mais diferenças nas tarifas, facilitaria a integração”, completa.
Alba
Se o Parlasul se mostrou independente ao governo brasileiro, para o economista Nildo Ouriques, a “metáfora do fracasso de Doha” significa mais uma oportunidade ao governo brasileiro. “Os Estados Unidos propuseram a Alternativa para o Livre Comércio das Américas (Alca), que foi recha-
çada, mas fizeram o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) e fazem muitos outros acordos bilaterais, como os TLCs. O Brasil tinha que entender o discurso e a proposta bolivariana na América Latina, que é a integração regional”, defende.(ESL)
Para entender Parlasul – O Parlamento do Mercosul (Parlasul) teve sua primeira sessão realizada em 7 de maio de 2007. Localiza-se em Montevidéu, no Uruguai. A Câmara Legislativa é integrada por 90 deputados, 18 de cada país-membro (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela). Em uma primeira etapa, seus membros foram escolhidos entre os integrantes dos parlamentos nacionais e, em sua etapa definitiva, a partir de 2010, os representantes serão eleitos por voto direto.
12 de 7 a 13 de agosto de 2008
cultura
Decadência bonita da cultura
José Cruz/ABr
MERCADO CULTURAL O cantor Gilberto Gil deixa o Ministério da Cultura após cinco anos e meio a sua frente. Ou não. Danilo Dara da Redação “AMANHECERÁ tomate, anoitecerá mamão”. Ao deixar o Ministério da Cultura, o cantor Gilberto Gil declarou que cederia a Lula este trecho da sua música “Refazenda”, como jingle-marca do governo. “Acho que ‘Refazenda’ tem tudo a ver com esse momento. Esse governo significa uma refazenda extraordinária para o país. O presidente me relatava há pouco o avanço da agricultura familiar com os biocombustíveis”. Sem mais explicações – e talvez sem se dar conta da ironia objetiva no agronegócio da comparação –, deixou a assertiva tropicalista no ar, e partiu para um fim de semana de shows da nova turnê “Banda Larga Cordel”. O artista vencera o político Gil, e ele estava de volta exclusivamente aos palcos, liberto! Ao fazermos um balanço da gestão de Gil frente o MinC (veja texto ao lado), sua derradeira oferenda a Lula realmente não passa em branco. Afinal, se remontarmos ao início do governo Lula e à “esperançosa” composição ministerial originária, lembraremos que o nome de Gil surgiu em meio a muita resistência, sobretudo pelos chamados “militantes históricos” do Partido dos Trabalhadores (PT), ligados à área da cultura, que não se sentiam bem representados pelo cantor-ministro. Até porque o Programa de Governo de Lula para aquele mandato sustentava, nos passos da Constituição de 1988, uma ampla concepção de cultura como direito, que incluía “os modos de vida, os direitos humanos, os costumes e as crenças; a interdependência das políticas nos campos da cultura, da educação, das ciências e da comunicação; e a necessidade de levar em consideração a dimensão cultural do desenvolvimento”.
Marketing cultural À época, apesar da popularidade, o “Lulinha paz e amor” mais do que se desdobrava para mostrar credibilidade a setores reacionários. E o nome de Gil, política e marqueteiramente, caía como uma luva. Servia ao mesmo tempo como cota do Partido Verde (PV); cota racial no Ministério (junto à Benedita da Silva, então frente a Secretaria de Igualdade Racial); cota ligada à alta indústria das artes; e eminência negra de grande apelo à opinião pública nacional e internacional. Uma síntese telúrica e harmonizadora, bem ao gosto neotropicalista.
Uma modernização econômica que sempre teve na cultura (ultramoderna) um palco privilegiado. Passados cinco anos e meio, no entanto, a saída do cantor se junta à recente queda de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente, num momento em que o super-homem Lula parece vir nos restituir a glória, e pairar sobre todas as forças, podendo prescindir do marketing simbólico representado por alguns nomes de sua equipe. Inclusive ao preço de uma nova guinada ainda mais conser-
vadora. Não só em relação a setores de enorme movimentação financeiro-comercial (como seu recente posicionamento sobre a rodada de Doha), mas também em áreas de orçamentos à primeira vista restritos, como a cultura e o meio ambiente. Áreas cujas gestões, até aqui, “tragironicamente”, não foram das piores, comparadas a setores coordenados pelos chamados “petistas históricos”.
Lei Rouanet Uma das questões centrais da gestão de Gil diz respeito à permanência da neoliberal Lei Rouanet e similares, que tocam o grosso do financiamento das produções culturais no país há alguns anos. Consequentemente, definindo as condições e a (falta de) autonomia dos profissionais das artes, diante dos financiadores privados, para realizarem suas pesquisas e trabalhos a curto e longo prazos. Se o MinC não conseguiu sequer atingir a irrisória meta de 1% do Orçamento da União na gestão de Gil, tampouco logrou tocar no cerne das isenções e facilidades de grandes empresas e fundos na definição do financiamento a produções culturais no Brasil (das quais o próprio artista Gil sempre foi beneficiário, inclusive durante sua gestão). Muito menos criar uma verdadeira Lei Federal de Fomento às Artes, como pleiteia há algum tempo movimentos de profissionais do ramo como o “Arte contra a Barbárie” – noticiado aqui no Brasil de Fato (edição 281). O que configura, na prática, um cenário de crescente privatização dos espaços, meios e obras artísticas do país. A Lei Rouanet – herança privatizante, formulada em 1992, durante o governo Collor – foi consolidada ao longo dos oito anos da gestão de Francisco Weffort (petista pré-histórico, convertido ao tucanato) frente o MinC, durante o governo de FHC. Porém, o governo Lula não ousou reverter; pelo contrário, a despeito das primeiras declarações como novo Ministro do antigo assessor de Gil, Juca Ferreira, que acaba de assumir a pasta (até segunda ordem). Uma lei privatizante, por sinal, que inflige o claro interesse público que o direito à cultura significa(ria), segundo a Constituição. Basta ir a qualquer esquina das regiões urbanas aparelhadas culturalmente para se certificar de que hoje praticamente não existe um cinema ou uma casa de espetáculos (sic) que não tenha sido apropriada por algum banco ou marca de cartão de crédito. Moderno colapso Isso tudo seriam ossos históricos do que o crítico de arte Roberto Schwarz chama de “modernização conservadora” do país, enraizada por aqui há pelo menos quarenta anos. Uma modernização econômica que sempre teve na cultura (ultramoderna) um palco privilegiado. Processo histórico (ou “a experiência da contra-revolução vitoriosa”) que o contemporâneo tropicalismo – para ficar no movimento artístico protagonizado por nosso ex-ministro – fixou esteticamente e fez considerar. Processos, porém, “que, em vez de dissolver o fundo arcaico do país, o reiterava(m) em meio a formas ultramodernas”, como completa o crítico. Em outras palavras, a decadência acelerada ou o colapso “bonito” do país e de sua cultura, os quais entretanto seguem sendo marcas absolutamente modernas e de sucesso.
O ex-ministro Gilberto Gil anuncia sua saída do Ministério da Cultura: “Acho que ‘Refazenda’ tem tudo a ver com esse momento”
ANÁLISE
O MinC está onde sempre esteve Felipe Lindoso A saída de Gilberto Gil do Ministério da Cultura tardou demais. Já se transformava em escândalo um ministro que passou quase a metade do semestre de férias ou de licença para fazer seus espetáculos pela Europa. E só não se transformou realmente em escândalo porque o verdadeiro “teflon” do governo Lula não é o próprio, e sim Gil, grande cantor e compositor, popular e querido da grande mídia. Isto é, querido enquanto não faz nada. Pois quando tentou, levou pau. Quando vacila, também leva pau. E não tem Xangô que agüente (uma das últimas gracinhas divulgadas antes de sua saída dizia que nos últimos meses ele era ministro da divindade afro-baiana, e não do governo. Faz sentido). Gilberto Gil entrou no ministério atropelando. Chamado pelo presidente Lula para uma conversa de sondagem, saiu da reunião dizendo para a imprensa que aceitava o cargo. O presidente já estava satisfeito em ter o personagem midiático no governo e aproveitou a deixa para dar um chega-pra-lá na multidão de petistas que ansiava pelo cargo. Agora, na saída, Gil tenta repetir a tática, anunciando que seu sucessor será seu secretário executivo, Juca Ferreira. Como Ferreira não canta nem dança, sua permanência ainda não está certa. Mas o Ministério da Cultura está onde sempre esteve: na irrelevante periferia das políticas públicas. Gilberto Gil assumiu o cargo prometendo um “do-in antropológico” na cultura brasileira. O tal “do-in”, pelo que se percebia do resto do discurso, tinha algumas metas concretas: fazer o orçamento do MinC chegar a 1% do total do orçamento federal, mudar a Lei de Incentivos Fiscais (Lei Rouanet) e ampliar as áreas de atuação do ministério. Depois de cinco anos e sete meses de gestão, qual o balanço? - Uma das primeiras iniciativas apresentadas foi a do “retorno social” dos projetos de incentivos culturais. O MinC usou um edital da Eletrobrás para exigir essa contrapartida. Mal formulada, mal explicada, a proposta foi logo vítima do bombardeio. Cacá Diegues imediatamente ressuscitou o fantasma da “patrulha ideológica” e enterrou as boas intenções; - Depois veio a proposta da ANCINAV. Era uma boa pro-
posta, mas desagradava principalmente o dr. Roberto Marinho e a TV Globo, que capitaneou a reação, enterrando o projeto. O Ministério da Cultura achava que o simples fato de ser proposto por Gilberto Gil era suficiente para fazer o projeto andar. Não articulou no Congresso, não conseguiu apoios na sociedade e veio o segundo naufrágio político do Ministério da Cultura.
O Ministério da Cultura, para além dos nomes de quem o dirige, continua sendo um aparelho periférico da ação do Estado. A cultura está onde sempre esteve, como penduricalho vistoso que ornamenta, mas não ilustra.
- TV Pública. Orlando Senna, secretário do audiovisual do MinC, começou as discussões. Organizou seminários, debates, fóruns etc. E o projeto sendo atacado pela televisão privada, embora com menos ênfase que a ANCINAV. A TV Pública abria uma brecha para a ação do Estado, mas não tinha o alcance regulatório da ANCINAV. Mais uma vez o Ministério não soube, ou não teve capacidade de articular uma proposta que pudesse sair do papel. Só quando Franklin Martins foi para a SECOM o projeto andou e conseguiu ser aprovado no Congresso, ainda que sob críticas da Globo e de todos os arautos do neoliberalismo que posam de sábios do bom senso na imprensa. - Orçamento. O Ministério conseguiu aumentar sua participação no Orçamento Federal. Não chegou ao 1% pretendido, mas avançou. Mas seria muita simplicidade constatar somente isso. O Ministério da Cultura não tem capacidade operacional para gerir um grande orçamento. Aliás, em alguns anos, não conseguiu gastar nem mesmo o que sobrou depois dos vários contingenciamentos, o que o Ministério do Planejamento sempre usa como argumento para bloquear o aumento
de verbas: “Vocês não conseguem gastar o que têm, para que querem mais?”. É certo – e não foi pouco o esforço para que isso acontecesse – que a infraestrutura operacional do ministério melhorou. Foram contratados funcionários. Ainda está, porém, muitíssimo longe do mínimo necessário. O MinC não tem representações em todos os Estados. De suas afiliadas (Biblioteca Nacional, Funarte, Casa Ruy Barbosa, IPHAN), somente o último tem uma estrutura mínima em todos os Estados. O ministério como tal não tem. - Articulação política e administrativa. A falta de estrutura e as idiossincrasias dos seus dirigentes fazem com que o MinC não consiga responder a duas demandas básicas: articulação no Congresso e cumprimento das tarefas burocráticas de aplicação da legislação. Dois exemplos. O primeiro foi a questão da desoneração fiscal do livro, com a alíquota zero para as operações do PIS/PASEP e COFINS. A articulação para que isso acontecesse passou completamente por fora do MinC. Foi feita pelo então ministro Palocci com a ajuda do senador Sarney. O resultado foi patético: no dia da sanção da lei, não havia nem mesmo a presença de um representante do MinC na cerimônia no Palácio do Planalto. Outro exemplo é a da Lei do Livro, sancionada em outubro de 2003. Cumprirá seu quinto aniversário sem ter sido regulamentada pelo ministério, apesar de já existirem estudos e minutas muito adiantadas. - Lei de Incentivos Fiscais. Já virou piada. Parece aquele cartaz que sempre aparece atrás do caixa dos botequins: “Fiado só amanhã”. Todos os meses alguém do MinC – geralmente Juca Ferreira – anuncia que “nos próximos dias” será divulgada a proposta de mudança na lei. Sempre “nos próximos dias”. A Lei Rouanet é ruim. Nisso todos concordam. Mas em que aspectos ela é ruim e como modificá-la, aí a coisa pega. Não pretendo resumir as discussões e os diferentes pontos de vista. Para mim, a lei é ruim principalmente porque privilegia a produção dos bens culturais e não as condições de circulação e usufruto desses bens culturais, por parte da maioria da população. Não se trata de dar dinheiro para os artistas “criarem”, e sim de criar condições para que, circulando e sendo apropriadas pela população, os produtos culturais gerem também retorno
financeiro para os artistas. E o ministério, incapaz de formular uma proposta que supere os impasses, optou por burocratizar ainda mais o funcionamento da lei, tentando controlar a aprovação dos projetos de uma maneira que, se não fosse tão tosca, poderia lembrar certas práticas stalinistas. Foram somente desacertos? Não, é claro. No entanto, mesmo os acertos são problemáticos. A proposta dos “Pontos de Cultura” é certamente o ponto alto da administração Gil/ Ferreira (e, no caso, Célio Turino, vinculado ao PCdoB). É um projeto de descentralização de ações culturais e repasse de recursos para entidades que atuam na base da produção cultural, e que também desenvolvem projetos de acesso à cultura. É uma iniciativa muito criativa, inovadora. Mas... a falta de estrutura do MinC já, de início, complica: a) não existem critérios claros para a aprovação dos projetos de “Pontos de Cultura”, o que abre a porta para vários contrabandos; b) não existe um sistema de avaliação dos resultados – o que se propôs e o que se fez – que permita, mais adiante, o aperfeiçoamento do projeto (além dos controles administrativos e financeiros da execução dos recursos públicos). Esses dois problemas abrem um enorme flanco para ataques da direita – direita raivosa e a direita dos moralistas de plantão – quando surgirem denúncias nos jornalões sobre atividades dos pontos de cultura. O pior é que se passaram cinco anos e a discussão política sobre a cultura não avançou efetivamente. O PT, derrotado na distribuição de cargos e progressivamente isolado dentro do ministério, não teve capacidade de retomar a discussão política e desenvolver propostas eficazes. De vez em quando, o que se vê é algum dos caciques da “área cultural” petista ensaiando tomar algum cargo e mesmo assumir o ministério. Mas propostas mesmo, nada. O que nos remete à observação inicial. O Ministério da Cultura, para além dos nomes de quem o dirige, continua sendo um aparelho periférico da ação do Estado. A cultura está onde sempre esteve, como penduricalho vistoso que ornamenta, mas não ilustra. Felipe Lindoso é editor, antropólogo e estudioso do mercado editorial e das políticas públicas para o livro no Brasil.