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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 6 • Número 286

São Paulo, de 21 a 27 de agosto de 2008 Presidencia de la República del Ecuador

A Teologia da Libertação chega ao poder com Pág. 9

Reprodução

Lugo

Argentina e Chile punem torturadores

Marcello Casal Jr/ABr

Quando o assunto é prender torturadores da ditadura, o Brasil está muito aquém de seus vizinhos Argentina e Chile, onde os responsáveis estão sendo colocados na cadeia. Em visita ao país, o juiz espanhol Baltazar Garzón afirmou que a anistia não vale para crimes contra a humanidade. Pág. 10

Para CUT, momento não é de refluxo “Não brigamos mais para manter os direitos e garantir a reposição da inflação”. A análise é do presidente da CUT, Artur Henrique, que entende que, para os trabalhadores, momento é de ampliação de conquistas. Pág. 3

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br

EUA incentivam guerra e genocídio na Geórgia U.S.Defense Dept.

Ao contrário do que foi noticiado pela imprensa corporativa, a guerra na Geórgia teve início um mês antes das Olimpíadas, e não no dia da abertura dos Jogos de Pequim. Da mesma forma, o ataque à Ossétia do Sul partiu da própria Geórgia, e não da Rússia. Com respaldo total dos EUA – garantido pela sua secretária de Estado, Condoleezza Rice (na foto) –, e com a certeza de que a Rússia – do agora primeiro-ministro Putin (na foto) – não se atreveria a atacar um “aliado de Bush”, a Geórgia lançou um sangüinário ataque para reconquistar a capital da Ossétia do Sul, motivada por um desejo de limpeza étnica. Já os interesses dos EUA giram mais uma vez em torno do petróleo; mais especificamente em torno do “corredor energético BTC” (o oleoduto que liga os mares Cáspio e Mediterrâneo). Pág. 11 Daniela Oliveira

Pacto Nacional para enfrentar a violência contra mulheres

Veracel Celulose acuada pelo poder público da Bahia

A Lei Maria da Penha completa dois anos este mês. Mesmo sendo um avanço, os movimentos de mulheres defendem outros mecanismos para garantir a aplicação da legislação. “A lei é um instrumento que concedeu garantias para as mulheres defenderem-se em caso de violência doméstica, mas ela só vai se efetivar com o comprometimento da sociedade civil, órgãos governamentais e não-governamentais”, afirma Cláudia Luna, advogada da ONG Elas por Elas, que destaca a importância do Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra a Mulher, elaborado no início de 2007. Pág. 4

Uma semana após o Brasil de Fato tornar pública a investigação realizada pela promotoria de Eunápolis (BA) sobre ilegalidades que envolvem funcionários da Veracel Celulose, do Ibama e do Instituto de Meio Ambiente (IMA), a transnacional afirma que repudia qualquer ato ilícito. A empresa, condenada a pagar uma multa de R$ 20 milhões, foi penalizada por ter desmatado 96 mil hectares de Mata Atlântica – tamanho equivalente à cidade do Rio de Janeiro. O Ibama afirma que foi o primeiro órgão a denunciar a transnacional; já o IMA disse que só irá se pronunciar no âmbito judicial. Pág. 5

Ato na Candelária, durante o 1º Encontro Nacional da Juventude do Campo e da Cidade

TCE do RS Juventude enfrenta divisão da esquerda irá investigar Cerca de 1.200 jovens de 24 movimentos se reúnem no Rio compra de os dias 11 e 15, o país. Dois foram os focos escolaridade e a criminamansão de Yeda 1ºEntre Encontro Nacional da principais. Primeiro, a dilidade. Segundo, a organi-

Gilberto Gil não conseguiu tocar o cerne da questão cultural

Atendendo a uma representação feita pelo procurador-geral do Ministério Público de Contas, Geraldo Da Camino, o Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul irá aprofundar as investigações sobre a compra de uma casa pela governadora tucana Yeda Crusius em 2006. A mansão era do empresário Eduardo Laranja e, meses antes de ser adquirida por R$ 750 mil pela governadora, um casal havia ofertado R$ 1 milhão. Laranja considerou o valor baixo. Além de reduzir o preço, Yeda pagou apenas R$ 550 mil. Os R$ 200 mil seriam repassados quando o empresário pagasse dívidas com o Banrisul. Pág. 4

Em entrevista, o professor da USP Francisco Alambert faz uma análise da gestão Gilberto Gil frente o Ministério da Cultura, perpassando-a por uma crítica à cultura no mundo contemporâneo, que a teria transformado em simples “gestão de acontecimentos e balancetes”. Para ele, a cultura segue politicamente rebaixada, “na medida em que o governo Lula abriu mão da idéia de transformação pela de ‘adaPTação’ ao mundo contemporâneo tal qual ele se vende”. Pág. 12

Juventude do Campo e da Cidade proporcionou a integração, em Niterói (RJ), de jovens de 20 Estados do

minuição das perspectivas de vida dentro da sociedade capitalista provocadas pelo desemprego, a baixa

zação política da juventude para superar esse cenário por meio de uma luta antisistêmica. Pág. 8


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de 21 a 27 de agosto de 2008

editorial

FINDA A grande onda de faturamento das Olimpíadas, as eleições municipais passarão a ocupar as páginas, as telas, as ondas sonoras e monitores da grande mídia comercial. Duas tônicas certamente presidirão os debates: a questão da probidade com os dinheiros públicos e outros crimes conexos (mas sempre do adversário); e no que implicarão as diversas vitórias/derrotas das forças em disputa – especialmente nos grandes colégios eleitorais – na montagem das alianças (sempre pragmáticas e nunca programáticas) e candidaturas para 2010. No entanto, nada disto será abordado do ponto de vista da disputa de interesses de conjuntos, setores ou segmentos de classes etc. Ou seja, nada disso será abordado do ponto de vista político, mas apenas de um ponto de vista de um moralismo hipócrita, desprovido de qualquer princípio de isonomia: o crime cometido pelo adversário é sempre condenável; o mesmo crime cometido pelos correligionários é sempre uma calúnia, algo que sempre poderá ser discutido legalmente, de acordo com “acórdãos”, “jurisprudências” etc., com o meritíssimo senhor doutor Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ao alcance da mão para manipular todo o arsenal jurídico da República, contra os interesses maiores desta. Além disso, não deverá ser ensaiada qualquer iniciativa no sentido de punir os crimes cometidos, e menos ainda de criar

debate

Quem foi, quem foi, que falou do boi voador? (*) instrumentos democráticos que os inibam e coíba. Apenas discursos de palanque, criminalização do outro etc. Cansativo. Tedioso. Destituído de qualquer criatividade ou novidade e, certamente, qualquer iniciativa do ministro da Justiça, Tarso Genro, no sentido contrário, contará de imediato com repreensões públicas do ministro da Defesa, senhor Nelson Jobim, que, depois de ter sido expert em fraudar a Constituição, dedica-se hoje a ser o porta-voz das ordens de coronéis de pijama e meia dúzia de altos oficiais da ativa, saudosos da ditadura, que vêem bois voadores por toda parte. Ainda assim, as eleições (em qualquer nível), além de significarem (do ponto de vista histórico) uma importante conquista democrática para nossa classe trabalhadora e nosso povo, sendo que, não há muito tempo, custou sangue e suor de muitos desses brasileiros, têm também representado mudanças concretas de condição de vida para os eleitores, sobretudo das camadas mais pobres e exploradas do país – independentemente de divergências ou concordâncias que tenhamos com as políticas em curso. Ou seja, se as eleições têm um significado histórico de construção democrática em nosso país e, no

concreto, são reconhecidas pelas camadas mais pobres da nossa população enquanto um fator de melhora de suas condições de vida, “basta que elas existam para que tenham razão de ser”. Isto implica, portanto, que constituam um dos elementos de disputa institucional da tática de resistência, acúmulo de forças e de transformações que abram caminho na direção das mudanças estruturais que exige a maioria da nossa sociedade. E quando afirmamos o que se lê acima, é porque estamos convencidos de que a nossa tática, para o atual momento, implica duas frentes de trabalho que, no entanto, devem permanentemente dialogar entre si e se desenvolvem de foma combinada/articulada: as lutas em torno e a partir das instituições do Estado, e as lutas de trabalhadores e do povo (pela construção, fortalecimento e) através de suas organizações e movimentos autônomos e independentes. “O boi ainda dá bode Qual é a do boi que revoa? Boi realmente não pode voar à toa” Em assim sendo, quais as questões centrais que deveriam animar o atual debate eleitoral?

Sem qualquer dúvida, de município para município (e são cerca de 5.560), a partir dos problemas mais sentidos pela maioria da população, e do nível de organização e reivindicação por parte do povo sobre este ou aquele aspecto das políticas públicas das áreas sociais (saúde, educação, transporte, moradia etc.), teremos uma variação de prioridades. Justo, legítimo. No entanto, é necessário que desde agora identifiquemos quais os fatores centrais capazes de amarrar todas essas questões que, por mais diversificadas que sejam, têm raizes comuns a serem combatidas no atacado. Ora, a tendência imediata de alguns companheiros seria a de debitar todos os problemas que enfrenta o nosso povo, no atacado, à questão da propriedade privada dos meios de produção, à exploração do homem pelo homem e à organização do Estado burguês. Em tese, no geral, até dá para concordar, como podemos estar de acordo que, no longo prazo, somente o socialismo redimirá a humanidade rumo ao esplendor da aurora socialista etc. etc. Podemos até mesmo citar (a mãcheias), mitos e ícones que jamais disputaram uma “eleição burguesa” ou sequer com elas se preo-

crônica

Rui Martins

Locarno premia filmes de crítica social UMA DAS melhores safras cinematográficas se revelou, este ano, no Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça, onde os principais prêmios foram para filmes de crítiica social. O Leopardo de Ouro para longa-metragem foi para o filme mexicano, Parque Via, que mostra uma sociedade de descendentes de índios marginalizados e excluídos, muito parecida com a nossa, com os descendentes dos escravos. O Leopardo de Ouro para Cineasta do Presente foi para o documentário suíço A Fortaleza, filmado num dos centros suíços de requerentes de asilo, onde se encontram homens e mulheres errantes, desgraçados, mal alimentados, em busca de uma terra prometida que, para a maioria, será negada. E, entre tantas imagens de desespero projetadas em telas, que logo se tornam brancas e frias, um nota poética brasileira, a do curta-metragem Dez Elefantes, premiado com o Leopardinho de Ouro, para curtas-metragens, mostrando duas crianças distraídas do mundo, num jogo de esconde-esconde. Parque Via, do diretor Enrique Rivero, poderia ser um documentário, porque seus personagens existem. O zelador Beto, isolado na manutenção de uma rica mansão vazia posta à venda, é vivido por um zelador da vida real, que trabalha na casa de um dos familiares do cineasta. E a proprietária da mansão que, toda quarta-feira, faz uma visita de inspeção à casa e ao zelador, é a própria mãe do diretor premiado, e que, por certo, está habituada a supervisonar os trabalhos dos empregados domésticos de sua casa. Como no filme, tudo bem marcado, dois mundos que se respeitam e com territórios que não se tocam. A Fortaleza, de Fernand Melger, é um documentário de um crítico da sociedade suíça, voltado para os temas da atualidade. Há dez anos, já havia feito um filme sobre a integração de jovens estrangeiros imigrantes na sociedade suíça – Classe de Acolha. Faz cinco anos, fimou “J” de judeu, para mostrar o antisemitismo existente na Suíça durante a época da mobilização face à Segunda Guerra Mundial. Se a família de Amos Gitai pôde ser salva se refugiando na Suíça, a história revela ter havido uma rejeição maciça do governo suíço da época aos judeus que fugiam do nazismo. Um dos últimos documentários de Fernand Melger é Saída – o Direito de Morrer, sobre a associação suíça Exit, que oferece a auto-eutanásia às pessoas idosas ou com doenças graves. Dez Elefantes, da jovem carioca Eva Randolph, é o momento de pausa, no qual se pode respirar diante de crianças, porque onde há crianças, há ainda a esperança, diante do verde e da água de um pequeno lago em Miguel Pereira, no Rio de Janeiro. E diante da coragem de uma menina que deixa uma lagarta andar na palma de sua mão para provar não ser medrosa.

cuparam (!) – começando pelo Che e chegando a Marx, sem esquecer Lênin, Stalin ou Trotsky. Ou “assim é se lhe parece”. O problema é que nos mantemos nesse grau de generalização (que pode servir para qualquer sociedade não-socialista, em qualquer tempo e/ou espaço), explicamos tudo e não fazemos nada, já que não levamos em conta a situação concreta da realidade que pretendemos transformar, o contexto internacional em que ela se insere, a correlação de forças internas – enfim, seu hoje, aqui e agora. “É fora da lei, é fora do ar É fora, é fora, é fora Segura esse boi, proibido voar” Assim, do nosso ponto de vista, entendemos que existem hoje dois fatores estruturantes das diversas reivindicações setoriais e específicas que se colocam em jogo nestas eleições municipais: um desses fatores diz respeito à questão da propriedade, e outro, à natureza do Estado. Falamos da propriedade do solo (urbano e rural) e da ampliação dos instrumentos de controle social do Estado. Por tudo isso, a partir da nossa próxima edição, passaremos a discutir a questão das eleições municipais tendo como fio condutor esses dois eixos, estimulando o debate do assunto.

(*) “Boi voador não pode” – Chico Buarque/Rui Guerra – 1972

Elaine Tavares

Mahmud: imortal! “Venham companheiros de correntes e tristezas Caminhemos para a mais bela margem Nós não nos submeteremos Só podemos perder O ataúde”.

Cena do filme mexicano Parque Via, do diretor Enrique Rivero

Como nas Olimpíadas, ganhar ouro ou prata no Festival de Cinema de Locarno não é suficiente, tudo pode ser esquecido muito depressa Mas, fora desses prêmios principais, algumas películas transmitiram sua mensagem social – Deuses, do peruano Josué Méndez, mostra a juventude desorientada de uma elite econômica peruana e os esforços de integração de uma jovem vinda dos bairros pobres e de origem índia, na sua nova família abastada. Para o diretor, o título Deuses é para denunciar uma classe dominante peruana que se crê tudo permitido, como deuses do Olimpo, sem tomar consciência da miséria reinante à sua volta. Festa de Canalhas, com menção honrosa e filmado em Pequim, mostra um fenômeno novo surgido na China: o do tráfico de órgãos, agravado pela decisão do governo de permitir um recurso judicial às penas de morte, parte das exigências em termos de direitos humanos à organização das Olimpíadas. A falta dos órgãos dos condenados à morte criou um mercado negro que, à margem da lei, alicia doadores, principalmente de rins. Sem dinheiro para pagar a hospitalização do pai, numa China que privatiza serviços de saúde, Fu-gui, personagem central, decide ingenuamente vender um rim, sem perceber cair nas mãos de canalhas impiedosos que não lhe pagarão o prometido e o deixarão na rua sem tratamento pós-operatório. O filme não poderá ser exibido na China, mas seu diretor Pan Jianlin já tem outro projeto provocador – Quem matou nossas crianças? – sobre as consequências do recente terremoto na China, derrubando numerosas escolas e matando os alunos, em grande parte filhos únicos. As escolas tinham sido construídas com material inadequado para garantir maior lucro às empresas construtoras e caíram como castelos de cartas com os primeiros tremores de terra. Uma das primeiras con-

seqüências da política econômica neo-liberal permitida pelo governo chinês, detonadora do processo de corrupção generalizado.

Não basta ganhar ouro Como nas Olimpíadas, ganhar ouro ou prata no Festival de Cinema de Locarno não é suficiente, tudo pode ser esquecido muito depressa. Houve um filme português, O Bobo, do cineasta José Álvaro Morais, premiado em 1987 com o Leopardo de Ouro, praticamente nunca exibido nem em Portugal e nem em outro país. Foi exibido só há alguns anos numa retrospectiva do cinema português, em Lisboa, como um verdadeiro inédito. A realidade é essa: a maioria dos filmes exibidos em Locarno, vindos de países pobres ou emergentes, e mesmo do cinema independente de países ricos, nunca serão exibidos no circuito comercial de cinemas. Alguns talvez terão a chance de ser programados na Mostra de São Paulo, do Leon Cakoff, outros ficarão confinados nas cinematecas para sempre. Mas isso não é motivo para se desesperar, pois este ano houve mais de 180 mil entradas no Festival de Locarno e algumas milhares de pessoas voltaram para suas casas com a mensagem bem recebida. Essa é a força desse festival, absurdamente suíço, pois é financiado em grande parte por um país enriquecido por ser a Caverna de Ali Babá do mundo e por ter, entre os maiores patrocinadores privados, o banco UBS, o maior banco suíço antes de se meter nas especulações com o mercado imobiliário estadunidense, no qual perdeu cerca de 50 bilhões de dólares e boa parte de sua credibilidade. Rui Martins é jornalista brasileiro que vive em Berna, na Suíça

Ele era assim. Essa voz poderosa chamando para a revolução. Queria ver seu povo livre, soberano, feliz. Queria de volta a sua Palestina, não como concessão de algum político bonzinho, mas porque esse é o direito do povo, usurpado em 1948 pela criação do Estado de Israel. Mahmud Darwish, poeta, guerreiro, anjo, criança, renitente, insistente. Encantou no dia 9, quando seu coração, pesado de tanta dor, deixou de bater. Mas enganam-se aqueles que pensam que Mahmud vivia por conta de seu coração. Não. Ele vivia pelas palavras que criava, pelas construções poéticas que erguia, e estas nunca haverão de morrer. Ninguém disse nada, mas quando os olhos de Mahmud apagaram para este mundo, abriram-se para a velha aldeia onde nasceu, Al Barwua, de onde sua família foi expulsa pelas armas de Israel. Um lugar que não existe mais, a não ser nos sonhos do menino que nunca a esqueceu. Encravado no coração da Galiléia, o povoado é hoje um acampamento judeu. Mas, para Mahmud, sempre foi seu torrão natal, seu ninho. E é possivelmente lá que agora ele passeia, entre as oliveiras. “Registra-me Sou árabe O número de minha identidade é cinqüenta mil Tenho oito filhos E o nono... virá logo depois do verão Vais te irritar por acaso?” Mahmud foi o poeta palestino que de forma mais radical imortalizou a dor e a luta de seu povo. Até porque nunca se limitou a ser apenas um escrevinhador. Era um animal político, absolutamente conectado com as ações e com a vida real. Seu canto poético brotava das vísceras à mostra, do homem pé-no-chão, do palestino encarcerado, do humano grávido de esperanças. Suas palavras nunca foram criações estéticas. Eram o gume cortante de uma vida real, expressa em sangue e lágrimas. Seu poema nos arranca da apatia e nos convida a lutar, concretamente. “Ainda verte a fonte do crime. Obstruam-na! E permaneçam vigilantes Prontos para o combate” Pois agora a mão que rasgava em fogo o papel com o grito da Palestina ocupada já não escreverá mais. Mas precisa? Seu canto de liberdade está cravado na terra fértil dos corações que sonham com o “ainda não”, e dali nunca fugirão. Mahmud passeia em Al Barwa. Mahmud passeia nas terras antigas, onde vivia uma gente livre. Mahmud passeia nas cabeças das gentes e grita com elas. Mahmud imortal, imenso, menino, homem, pura vontade de ser aquilo que sempre foi: palestino, livre, soberano. Porque a liberdade, afinal, vive lá dentro, no profundo do humano. Mahmud! Presente! Sua alma imortal dançará no dia da vitória! “selvagens... árabes” sim! Árabes e estamos orgulhosos e sabemos como empunhar a foice como resistir inclusive sem armas e sabemos como construir a fábrica moderna a casa o hospital a escola a bomba” Elaine Tavares é jornalista

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

Aos 25 anos, CUT é a maior central sindical do país, mas não a “Única” SINDICALISMO Para presidente da central, momento deixou de ser de refluxo e os trabalhadores conseguem ampliação de direitos Valter Campanato/ABr

Renato Godoy de Toledo da Redação CONSTRUÍDA COM esforços angariados pelo surgimento do sindicalismo combativo do final dos anos de 1970 e início dos 1980, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) completa 25 anos neste mês, ainda comemorando recentes conquistas, como a legalização das centrais sindicais – bandeira histórica do movimento operário. Em entrevista, o presidente da central, Artur Henrique da Silva Santos, realiza um balanço de alguns momentos históricos que a CUT presenciou, como a luta pela redemocratização do país, o surgimento do neoliberalismo – com conseqüência nefastas para a atividade sindical – e o atual momento do governo Lula. Artur também comenta sobre as cisões que a central sofreu, com a saída de correntes políticas como o PCdoB, PSTU e Psol. Veja entrevista abaixo. Brasil de Fato – A CUT nasce em 1983, ainda durante o regime autoritário. A fundação da central se deu num momento de ascenso do movimento operário. Desde então, houve a chamada redemocratização e a eleição de um presidente operário. Por que, na história da central, nunca mais houve um momento com tantas lutas de trabalhadores como aquele? Artur Henrique – São conjunturas diferentes que resultaram em pautas e mobilizações diferentes. Não que naquela época as coisas fossem mais fáceis, mas havia um foco muito claro: construir uma unidade popular, social e sindical pela luta contra a ditadura e pelas liberdades democráticas. Isso era um chamamento à unidade que conseguia mobilizar um conjunto de atores para atingir um objetivo, que era a luta pela redemocratização. Na nossa opinião, foi um movimento bastante positivo, com resultados concretos. Naquele momento, o que levava as pessoas a construírem entidades como a CUT e o PT era o foco nas bandeiras contra a ditadura. Se virmos a pauta da época do primeiro Congresso da Classe Trabalhadora (Conclat, realizado em 1981) e comparar com a pauta de hoje, ainda há muitas pautas que continuam fazendo parte das nossas reivindicações, como a reforma agrária e a redução da jornada de trabalho. Então, naquele momento, acho que havia muito mais condições de unificar a luta, pois havia um foco específico, que era a luta pela redemocratização do país e, nisso, se incluía a luta pela democratização das relações de trabalho. É um momento diferente do de hoje. Houve avanços do ponto de vista da democratização do país. Mas atualmente a pauta é mais abrangente e acaba diversificando as reivindicações de diferentes movimentos, como o sindical, de moradia e sem-terra.

O governo Lula abriu a possibilidade das centrais participarem do processo político e de diálogos com os empresários A central presenciou o florescimento do neoliberalismo, no final dos anos de 1980. Vocês já têm a dimensão de qual foi o impacto dele sobre o movimento sindical? A década de 1990 foi um período de ataques aos trabalhadores e de resistência do movimento sindical. A gente lutava para não perder, diferentemente de hoje. Aquele processo de abertura indiscriminada do mercado externo, iniciado por Fernando Collor, e as privatizações e a implementação do Estado mínimo, conduzidas pelo neoliberalismo, criaram uma situação de enorme desemprego. Para se ter uma idéia, no setor eletricitário, de onde eu venho, houve uma redução de 51% do número de trabalhadores. Ou seja, metade dos trabalhadores que atuavam antes, quando o setor era estatal, foi embora, seja por demissão ou programas de demissão voluntária. No setor de telefonia foi ainda maior. Há um aumento da terceirização. Mas o setor produtivo como um todo sentiu a aplicação dessas políticas neoliberais, com a falta de crescimento econômico e de um projeto industrial. Soma-se a isso um processo de automatização na produção. Na época, em todas as mesas de negociação, a pauta era para recompor os salários pela inflação e, normalmente, o reajuste era abaixo da inflação e sempre havia uma tentativa dos empresários de retirar direitos estabelecidos nas negociações. Com a reorganização do setor produtivo e a automatização, houve

Manifestação da CUT em Brasília: 25 anos de história

uma diminuição do número de trabalhadores na principal base da CUT, o setor fabril. A central teve que buscar mais apoio em setores como o de serviços? A CUT nasceu com uma característica de diversidade, com trabalhadores urbanos e rurais, do setor público e privado. Isso é raro no mundo sindical, há centrais que organizam trabalhadores por setores. Quando se tem uma mudança no padrão de industrialização e um aumento do mercado de trabalho na área de comércio e serviços, isso reflete na central, que tem que se preparar mais e melhor para organizá-los dentro da CUT. Estive na posse do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e eles disseram que cerca de 500 mil empregos foram perdidos na década de 1990, mas que com o crescimento econômico no governo Lula já foram recuperados cerca de 400 mil. Não que haja uma diminuição do comércio e serviço e um aumento da indústria, mas há uma retomada no setor, com a questão das plataformas de petróleo e a retomada da indústria naval. Isso demonstra que a idéia do Estado mínimo era equivocada, pois o Estado deve ser o indutor do desenvolvimento. Tudo isso que acontece no Brasil mostra a importância do papel do Estado, que atrai investimentos privados e públicos para aumentar a produção e o crescimento econômico, e isso se reflete no emprego e nas campanhas salariais. Não brigamos mais para manter os direitos e para garantir a reposição da inflação. Hoje nós temos 97% dos acordos sendo fechado com aumento real de salário, segundo o Dieese. Há uma pauta com cada vez mais itens, como o 14º salário, o aumento da participação nos lucros e resultados (PLR) e as pautas sociais, como a questão da saúde e segurança no trabalho. Inicialmente, praticamente todas as forças de esquerda brasileiras estavam na fundação da CUT. Aos poucos, as correntes políticas saíram da central e formaram as suas próprias organizações. Isso caracteriza a CUT como uma central estritamente “petista” ou “governista”, conforme as críticas dos seus adversários? A decisão de algumas correntes de sair da CUT, principalmente a do PSTU e a do PCdoB, tem uma característica não do ponto de vista sindical, mas partidário. A decisão do PSTU de sair da CUT não envolvia a questão sindical, a principal questão era formar uma corrente de seu partido no movimento sindical, e formou a Conlutas. A própria história do PCdoB também demonstra isso. O PCdoB só veio para CUT em 1991, após uma aliança com o PT em torno da campanha do Lula, em 1989. A direção do PCdoB enxergou que era preciso dar sustentação social para essa aliança, então orientou sua militância sindical a ingressar na CUT. Eles entraram na CUT com uma concepção diferente da fundação da CUT, defendendo a unicidade sindical, o imposto sindical e a defesa do poder normativo da Justiça do Trabalho. A CUT nasceu contra esses três pilares existentes até hoje. O fato de chamarmos a central de “Única” era para que houvesse apenas uma central. Queríamos, e ainda queremos, que a CUT tenha todas as correntes políticas dentro dela e que possa ter democracia para que suas idéias sejam debatidas. Consideramos que as saídas do PCdoB e do PSTU foram um erro, e esperamos que eles possam rever essa decisão. Isso tem mais a ver com as disputas eleitorais em 2010 do que com a concepção sindical.

Consideramos que as saídas do PCdoB e do PSTU foram um erro e esperamos que eles possam rever essa decisão. Isso tem mais a ver com as disputas eleitorais em 2010 do que com a concepção sindical Quando dizem que saíram da CUT porque somos “chapa-branca” ou governista, não estão certos. O PCdoB esteve em todos os governos, não só no nosso, fica difícil chamar a gente de governista. Existem vários sindicatos controlados pelo PSTU e PCdoB em que a base defende a CUT, como o sindicato dos bancários do Maranhão, no qual a direção composta pelos dois partidos colocou para votação a desfiliação da CUT, e perdeu. Tem muitos exemplos que mostram que está havendo uma reorganização do movimento sindical e que, com o pós-2010, haverá uma diminuição do número de sindicatos no Brasil. Foi assim em outros países do mundo e aqui também deverá ser assim. Do ponto de vista quantitativo, ainda somos a maior central do país, com três vezes mais sindicatos do que a Força Sindical (36% e 12% do total registrado no Ministério do Trabalho, respectivamente). Então, continuamos defendendo a concepção de que a central seja uma frente com diversas correntes de opinião. Mesmo com a saída dessas correntes, continua tendo muitas correntes na CUT, como O Trabalho, Articulação de Esquerda, CUT Socialista e Democrática e Articulação Sindical. Além disso, ainda há muita gente dentro da CUT ligada a outros partidos, como PCdoB e Psol. Continua existindo uma diversidade importante dentro da central. Por outro lado, nesses anos houve uma aproximação da CUT com centrais que nasceram para combatê-la, em torno de questões como a redução da jornada de trabalho. Como se deu essa aproximação? As diferenças de concepção e prática sindical continuam existindo, e vão continuar por longo tempo. Nós somos do chamado sindicalismo autêntico, da porta de fábrica, que defende a organização no local de trabalho. Como se deu essa unificação em torno de bandeiras comuns? Acho que, inicialmente, isso foi propiciado por uma postura do governo Lula, de dizer que o movimento sindical teria que ter um comportamento mais ativo e que trouxe para o debate nacional a questão do trabalho. Na década de 1990, as centrais não se conversavam; não é que não fazíamos lutas juntos, nós sequer nos olhávamos ou cumprimentávamos, não havia diálogo. Era uma disputa ferrenha. O governo Lula abriu a possibilidade das centrais participarem do processo político e de diálogos com os empresários. É claro que isso não resolveu todos os nossos problemas, mas o fato de o governo convocar esse diálogo nos obrigou a prepararmo-nos antes de uma reunião. Então, o movimento sindical amadureceu. Se formos para uma reunião tripartite, como a do Fórum Nacional do Trabalho, com trabalhadores, empresários e governo, não podemos ficar nos xingando. Os empresá-

rios têm muita diferença entre si, mas não vão ficar expondo isso publicamente. Se ficarmos falando “você não é combativo”, “você não é isso”, “não é aquilo”, os empresários e o governo olharão e dirão: “depois que vocês se resolverem, nós conversamos”. Ou então vão se unir e aprovar um monte de coisa enquanto nós brigamos. Então, resolvemos manter nossas diferenças, mas nos unimos em torno da defesa do salário mínimo, da redução da jornada de trabalho, da democratização das relações de trabalho. São coisas que temos que nos preparar antes para unificar a posição e ir a essas reuniões. Isso foi o que garantiu essa mudança. Nós e a Força Sindical não deixamos de ter nossas diferenças, todos sabem como a Força Sindical foi constituída, mas quando há um interesse geral da classe trabalhadora, temos a clareza de que devemos lutar conjuntamente. Essa unidade entre as centrais fica ameaçada com a posição da CUT em relação ao fim do imposto sindical? Qual é a disposição da CUT para pôr fim ao tributo? A posição da CUT é a mesma desde o nosso nascimento, defendemos o fim do imposto. Mas não vamos acabar com o imposto e deixar o movimento sindical sem condições de sobrevivência, como muitos empresários querem. Também não dá para manter o sistema S e retirar o imposto dos trabalhadores. Na prática, precisamos ter o fim do imposto e a introdução de uma contribuição da negociação coletiva a ser aprovada em assembléia. Hoje temos o imposto sindical, taxa confederativa, taxa assistencial e mensalidade sindical. Essa última tem que continuar, ela é paga pelo sócio que acredita que o sindicato faz um bom trabalho, e não é compulsória. É preciso acabar com todas as demais taxas, como a assistencial, que não tem regra alguma, assim como a federativa. A nossa proposta implica no fim de todas as taxas compulsórias, e que o financiamento do sindicato deva ser decidido em assembléia. A única coisa que acrescentamos à proposta original da CUT é o teto da contribuição. Mas espero que a divergência, que certamente teremos, em relação ao imposto sindical, não interfira na unidade das centrais em outros assuntos. Fabio Pozzebom/ABr

Quem é Artur Henrique da Silva Santos tem 46 anos. É técnico eletrotécnico e sociólogo. Nascido na capital paulista, iniciou atividade sindical em 1983, quando foi eleito conselheiro representante dos trabalhadores da Companhia Paulista de Força e Luz. Em 1987, assumiu a direção do Sindicato dos Eletricitários de Campinas. Em 1999, foi eleito secretário de Formação da CUT São Paulo. Foi secretário de Organização da CUT (2003 - 2005), participando dos debates do Fórum Nacional do Trabalho. Elegeu-se presidente da central em 2006.


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A Lei Maria da Penha só sairá do papel com um Pacto Nacional MULHERES Acordo objetiva criar políticas públicas que possibilitem a efetivação da legislação que combate a violência de gênero Antonio Cruz/ABr

Dafne Melo da Redação NESTE MÊS, completa-se dois anos que entrou em vigor a Lei Maria da Penha, promulgada com o objetivo de conter a violência de gênero. Embora seja inquestionável que a legislação foi uma grande conquista dos movimentos de mulheres, por outro lado, ainda há um caminho longo para que a legislação se efetive. “A Lei Maria da Penha ainda está no papel”, observa Sônia Coelho, da Marcha Mundial de Mulheres. “A lei é um instrumento que concedeu maiores garantias para as mulheres defenderem-se em caso de violência doméstica, mas ela só vai se efetivar com o comprometimento da sociedade civil, incluindo os órgãos governamentais e não-governamentais”, afirma Cláudia Luna, advogada da ONG Elas por Elas, que destaca, nesse contexto, a importância do Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra a Mulher, elaborado no início de 2007. Entretanto, nem todos os Estados brasileiros ratificaram o Pacto. Entre eles, São Paulo. Sônia Coelho conta que há muito tempo que tentam marcar uma audiência com o governo estadual de José Serra (PSDB), sem sucesso. São Paulo é um dos Estados prioritários do Pacto. Cláudia Luna explica que, embora esteja previsto que todos assinem, alguns foram selecionados pela federação como emergen-

Números da violência contra a mulher

A farmacêutica Maria da Penha, que dá nome à lei contra a violência doméstica

ciais. “São aqueles que têm maior incidência de casos de violência contra a mulher e nos quais a implementação se deve dar de forma mais urgencial”. De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, até agora, 12 Estados já assinaram o Pacto.

Pressão Luna conta que o Conselho Estadual da Condição Feminina, em São Paulo, fez uma primeira reunião com representantes de entidades feministas

e que, ao que tudo indica, o Pacto será finalmente assinado. Sônia Coelho avalia que, mesmo depois de ratificado o Pacto, é necessário pensar em mecanismos de controle social que garantam a implantação e avaliação contínua dos projetos. Luna reitera que a assinatura do acordo é apenas a etapa inicial do processo. “O Pacto deve ser uma política de Estado e não de governo, logo, o compromisso deve ser contínuo para que os resultados se tornem concretos”, aponta.

Segundo Sônia Coelho, há muito ainda que se conquistar no Estado mais rico da nação. “A capital, por exemplo, é uma das cidades com maior número de denúncias, mas o que existe para ser oferecido a essas mulheres, em termos de serviço público, é muito pouco ou inexistente”, comenta. Caso o governo paulista não ratifique o acordo, a militante conta que uma série de medidas será tomada pelos movimentos feministas a fim de pressionar a atual gestão. “Estamos fazendo um abaixo-as-

No Brasil, cerca de 43% das mulheres já sofreram algum tipo de violência física ou sexual, a cada 15 segundos uma é espancada (2,1 milhões ao ano, no mínimo) e ainda há aquelas que são vítimas de abusos por mais de 10 anos, ou mesmo por toda a vida . A Central Nacional de Atendimento à Mulher (número 180) recebe 20 mil denúncias válidas ao mês, sendo 60% casos de violência doméstica. (DM) sinado e vamos encaminhar uma denúncia ao Ministério Público Estadual”.

Rede de serviços O Pacto possui diversas frentes de atuação, englobando desde medidas preventivas, de formação a profissionais, além de delegacias, atendimentos médico e psicológico e casas-abrigo para mulheres que, diante das agressões, precisam sair de casa. Cláudia Luna aponta que somente com ações de Estado se resolve o problema da violência

contra as mulheres. “A questão da violência doméstica é de direitos humanos, de saúde pública e, portanto, só pode ser resolvida com políticas públicas”, opina. Sônia comenta que concretizar o acordo dependerá muito – como toda política de Estado – dos recursos. O governo federal, até 2011, irá destinar R$ 1 bilhão, que serão distribuídos pelos Estados que assinarem o acordo. Luna alerta que, entretanto, os Estados e municípios também devem oferecer suas contrapartidas orçamentárias. “Ao fazer o acordo, cada unidade da federação que assina passa a ter uma destinação orçamentária e também uma série de deveres e prazos para executá-los”, aponta. Em tempos de sucateamento dos serviços públicos, entretanto, sabe-se que efetivar esses programas é uma tarefa árdua. Comentando a situação de São Paulo, Sônia afirma que os sucessivos governos estaduais (o PSDB o governa há 16 anos) nunca deram um centavo para políticas públicas voltadas às mulheres. “Para um governo que tem precarizado todos os serviços, fazer política pública vai na contra-mão da forma de governar deles; se é para mulheres, pior ainda. Para resolver essa questão, o papel do Estado deve ser ampliado em diversos setores: moradia, educação, saúde, geração de emprego e, num contexto de redução do papel do Estado, é uma luta grande efetivar a Lei e o Pacto”, finaliza.

JUSTIÇA

RIO GRANDE DO SUL

Seminário discute injustiças contra trabalhadores

MP investiga mansão de Yeda

“A polícia mata, mas quem enterra é o Judiciário”, denuncia delegado Marcelo Salles do Rio de Janeiro (RJ) A Justiça brasileira é lenta, seu acesso é desigual e suas decisões favorecem, via de regra, quem tem mais poder. Eis a conclusão do seminário “A Justiça que nós queremos”, organizado pela Associação Juízes para a Democracia, no dia 15, na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro. Em depoimento emocionado sobre o assassinato de seu filho, Márcia Jacintho criticou o novo adiamento do julgamento dos policiais acusados. “Meu filho foi morto por aqueles que deveriam preservar sua vida. O julgamento dos PMs [marcado para o dia 12] foi adiado por uma manobra dos advogados”, explica. Os assassinos de Henry estão impunes há seis anos. O delegado de polícia Orlando Zaccone, titular da 52ª DP, reconheceu a responsabilidade da polícia, que muitas vezes mascara as mortes com os chamados autos de resistência (morte em confronto). Mas lembrou que existe todo um sistema que garante o funcionamento dessa política de extermínio: “A polícia mata, mas quem enterra é o Judiciário”, disse, numa referência ao papel do juiz, único com poder para encerrar um inquérito (e os autos de resistência são inquéritos). Zaccone lembrou ainda que os meios de comunicação participam ativamente desse processo. “Como assinala o jurista argentino Raúl Zaffaroni, a mídia é uma das agências executivas do sistema penal”, disse durante sua intervenção. Em entrevista ao Brasil de Fato, exemplificou: “Quando você pega uma matéria que diz assim: ‘polícia sobe o morro e mata não sei quantos bandidos’. Como sabe que é bandido? A mídia começa todo um trabalho para que aquela letalidade seja legitimada”. No campo Em sua intervenção, João Pedro Stedile radicalizou a crítica aos meios de comunicação: “A imprensa no Brasil é mera zeladora dos interesses do capital. A Globo só faz defender os interesses do capital. Não é democrática. Não é imparcial.”, disse. O integrante da direção nacional do MST afirmou que, além da imprensa, o latifúndio e o capital interna-

cional, através de suas empresas transnacionais, são os responsáveis pelo atraso secular da reforma agrária no Brasil. E, nesse quadro, a Justiça tem favorecido os grandes proprietários de terras e prejudicado os trabalhadores rurais. “Por que está emperrada a reforma agrária no Brasil se temos necessidade, temos terra, temos lei, temos programa?”, perguntou Stedile, para em seguida dar uma pista: “O presidente do Incra disse que a ordem da Casa Civil é só desapropriar terra se o fazendeiro quiser”. Como o que eles querem é ampliar suas propriedades e seu poder, além de não ceder as terras, os fazendeiros fizeram uma aliança com as empresas transnacionais. Isso é o agronegócio. É a “aliança do capital financeiro internacional com os grandes proprietários de terras. Não mais que 40 empresas transnacionais passaram a controlar toda produção de grãos, o comércio agrícola e as agroindústrias no Brasil. Apenas três corporações, por exemplo, controlam todas as fábricas de fertilizantes químicos agrícolas”. Stedile também criticou o enquadramento de oito militantes na Lei de Segurança Nacional por um juiz federal do Rio Grande do Sul. O coordenador do MST concluiu sua palestra com duras críticas ao banqueiro Daniel Dantas, recentemente preso pela Polícia Federal. E afirmou que os semterra não se calarão diante das injustiças no campo: “Dantas é o maior testa de ferro do capital internacional. O banco Opportunity comprou 600 mil hectares no Estado do Pará. Por isso nós ocupamos. Não importa que seja legal, o que importa é que é injusto!”.

Para entender O banqueiro Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity, foi preso pela Polícia Federal no dia 8 de julho, durante a operação Satiagraha. Segundo o relatório da PF, Dantas chefiava duas quadrilhas que criavam empresas de fachada, utilizadas para desviar recursos públicos, e criaram um mega esquema para lavar dinheiro e cometer crimes financeiros internacionais. A operação da PF também levou à prisão o ex-prefeito paulistano, Celso Pitta, e o especulador Naji Nahas, além da alta cúpula do banco Opportunity, incluindo a irmã do banqueiro, Verônica Dantas.

Antigo proprietário da casa adquirida pela governadora tucana teria sido beneficiado com perdão de dívidas no banco estatal Comunicação PT

Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS) O Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Rio Grande do Sul irá aprofundar as investigações sobre a compra de uma casa pela governadora Yeda Crusius em 2006, logo após as eleições daquele ano. A decisão atende a uma representação feita no dia 14 pelo procurador-geral do Ministério Público de Contas (MPC), Geraldo Da Camino. De acordo com ele, alguns aspectos da defesa da governadora precisam ser esclarecidos. Da Camino não pode dar detalhes sobre a investigação, porque o tema envolve a quebra de sigilo de dados bancários e fiscais de pessoas terceiras envolvidas no caso. No entanto, adianta que questões envolvendo o antigo proprietário da mansão, o empresário Eduardo Laranja da Fonseca, ainda precisariam ser investigadas. “É importante frisar: não se está contando a transação ou qualquer aspecto da transação como irregular. O que se está, na obrigação de Ministério Público, é formando uma posição, entendendo que ainda há elementos, alguns aspectos da defesa que carecem de esclarecimentos”, diz. A venda da casa pelo empresário Eduardo Laranja é cercada de suspeitas. Meses antes de ser adquirida por R$ 750 mil pela governadora, um casal havia ofertado R$ 1 milhão pela mansão, valor que foi considerado baixo pelo empresário. Além de reduzir o preço, a defesa de Yeda Crusius informou que foram pagos apenas R$ 550 mil a Laranja. Os demais R$ 200 mil seriam repassados quando o empresário pagasse as dívidas que possui com os bancos, mais precisamente com o banco estatal Banrisul. O advogado do Psol e do PV, Pedro Ruas, espera que o TCE investigue a ação. “A ação com que nós entramos tem efetivamente vários dados e informações que demonstram as irregularidades ocorridas na transação comercial. Portan-

Fachada da casa da governadora Yeda Crusius

to, o agente público tem que fazer sim o julgamento e, do nosso ponto de vista, a condenação de quem o praticou”, argumenta.

A casa de Laranja As dúvidas sobre essa transação são um dos principais pontos questionados pela oposição. Além das denúncias do PSOL e PV, a bancada do PT encaminhou informações ao Ministério Público de que Laranja teria sido beneficiado com o perdão das dívidas que possui junto ao Banrisul. Se for confirmada, a questão explicaria por que o empresário reduziu, em três meses, o valor da mansão de R$ 1 milhão para R$ 750 mil. Pouco antes da manifestação do MPC, o jornal Folha de S.Paulo publicou matéria afirmando que o Banrisul só moveu ação de cobrança de dívida contra Eduardo Laranja, que vendeu o imóvel à governadora, após a transação virar foco da crise política. Entre novembro de 2003 e 2004, a Self Engenharia e Empreendimentos Imobiliários, que tem Laranja como principal sócio, obteve dois empréstimos do Banrisul – no valor de R$ 3,7 milhões – para construir condomínios residenciais em Porto Alegre (RS). Só parte das prestações foi paga. Segundo as denúncias, no dia 23 de janeiro, o Banrisul incluiu a dívida restante (R$ 2,2 milhões) na conta “créditos em liquidação”, etapa anterior à cobrança judicial. Esta só ocorreu no dia 6 de junho,

quase 40 dias depois que a transação imobiliária entre Yeda e Laranja foi questionada na CPI do Detran. O PT pediu ao Tribunal de Contas que se realize uma inspeção especial no Banrisul. “Todos já perceberam que o negócio está mal explicado. Como a governadora não explica nunca, é preciso que as instituições públicas façam uma investigação séria e ampla sobre o fato”, defende o deputado estadual Raul Pont (PT).

Trapalhadas da defesa A decisão do procurador-geral Da Camino para que a investigação prosseguisse decepcionou a defesa da governadora Yeda Crusius. Para tentar amenizar a decisão e evitar mais polêmicas, o secretário-geral de governo Erik Camarano lançou nota ignorando a posição do MPC. O secretário afirmou, surpreendentemente, que a manifestação do procurador-geral deixou claro que não há mais dúvidas sobre a compra da casa da governadora. Também afirmou que o pedido de mais investigação se deve à falta de regulamentação da Lei 12.980/08, aprovada recentemente pelo próprio governo gaúcho. A nova legislação permite que o TCE controle e investigue a variação patrimonial e de sinais de enriquecimento ilícito de qualquer agente público. No entanto, o procurador afirmou que pediu mais explicações justamente porque a nova legislação permite.


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Condenada, Veracel diz respeitar a lei TERRA ARRASADA Ibama afirma que foi o primeiro órgão a denunciar transnacional; IMA só se pronuncia no âmbito judicial Arquivo Cepedes

Eduardo Sales de Lima da Redação

A Justiça Federal da cidade de Eunápolis (BA) condenou a Veracel Celulose a pagar uma multa de R$ 20 milhões e a reflorestar uma área que corresponde à quase totalidade do território da cidade do Rio de Janeiro (96 mil hectares). O crime: desmatamento da Mata Atlântica no sul da Bahia. O Centro de Recursos Ambientais (CRA) – hoje denominado Instituto do Meio Ambiente (IMA) –, órgão responsável pela fiscalização e licenciamento de terras no Estado, e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) também foram punidos no caso. A área a ser reflorestada se refere a todas as suas áreas compreendidas nas licenças de plantio de eucalipto liberadas entre 1993 e 1996. A multa de R$ 20 milhões devese ao desmatamento da Mata Atlântica, com a utilização de tratores e correntões, entre 1991 e 1993. O juiz federal Márcio Flávio Mafra Leal, da Vara Única da Subseção Judiciária de Eunápolis (BA), também condenou o Ibama e o IMA por concederem, indevidamente, autorizações para a Veracruz (antiga denominação da Veracel Celulose e que pertencia à Odebrecht) implantar os plantios de eucalipto. A sentença obrigará o Ibama a apresentar o Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para licenciamento da Veracel na área de reflorestamento e o IMA a pagar 10% do total da multa (R$ 2 milhões). Publicada no Diário Oficial

ser confundidas com áreas de mata densa.

Batalha atual Mais uma luta nos tribunais será travada. Como noticiado na edição 285 do Brasil de Fato, o Ministério Público Estadual da Bahia (MPE), na figura do promotor de Eunápolis, João Alves da Silva, instaurou um inquérito civil a fim de investigar a ação conjunta de funcionários de órgãos públicos no favorecimento da Veracel. Estão sendo apuradas denúncias sobre a omissão do Estado da Bahia e de órgãos ambientais estaduais na realização de estudos para a implantação de projetos como o da monocultura de eucalipto na região, a fim de favorecer a empresa Veracel Celulose na execução de seu projeto. A assessoria de imprensa do IMA afirmou, por telefone, que o órgão estadual só se pronunciará na Justiça.

Tratores e correntões da Veracel derrubam a Mata Atlântica no começo dos anos de 1990

da União em julho de 2008, a sentença é resultado de uma Ação Civil Pública acionada pelo Greenpeace, SOS Mata Atlântica e Ibase, encaminhada pela Procuradoria Geral da República, em outubro de 1993.

Contradição Após esses 15 anos, o Ibama apresenta um argumento curioso e que expõe a contradição existente dentro do órgão. A gerente executiva regional do Ibama em Eunápo-

lis, Cleide Maria Guirro, afirma que foi o escritório de Eunápolis, na pessoa de Heraldo Machado Pereira, então responsável regional do órgão federal, quem denunciou o desmatamento promovido pela então chamada Veracruz. Segundo a gerente, a Ação Civil Pública teve impulso inicial do próprio Ibama e depois contou com a participação de organizações não-governamentais, como o Greenpeace. Cleide explica que, na verdade, era o IMA que tinha a

prerrogativa principal de licenciar as áreas para as plantações de eucaliptais. “O Ibama só licencia grandes empreendimentos, como usinas”, completa. Isso se confirma com o comunicado divulgado pela Veracel. A transnacional da celulose declara que foi apresentado ao IMA um Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) que possibilitou a emissão, em 1995, das licenças de localização industrial e florestal. A gerente executiva do Iba-

ma em Eunápolis reforça, no entanto, que o Ibama concedeu algumas autorizações de áreas “conflitantes” por falta de instrumentos modernos para o mapeamento técnico, como um aparelho de GPS (sistema de posição global). “Não havia instrumentos nem fotos de satélites para que os licenciamentos fossem feitos de forma detalhada e correta”, lembra. Como exemplo, cita que algumas áreas liberadas compunham regiões de “pasto sujo”, que poderiam

Já a direção da transnacional afirmou à reportagem que está disposta a prestar esclarecimentos à Justiça. “Com relação às questões citadas pela reportagem, a Veracel informa que repudia todo e qualquer tipo de ato ilícito. Suas condutas sempre foram pautadas na ética, na transparência e no desenvolvimento econômico, social e ambiental. Nos colocamos à disposição para prestar todo e qualquer esclarecimento, caso sejamos notificados a respeito.” A Veracel afirma também que é uma empresa que tem como meta ser referência mundial em sustentabilidade, e “sempre pautou suas ações dentro do mais rigoroso respeito e cumprimento a todas as legislações vigentes”.

A Veracel Celulose e o BNDES Banco de fomento liberou R$ 1,43 bi à transnacional de celulose Luciana Silvestre enviada a Eunápolis (BA) O SETOR de produção de celulose necessita extremamente de capital. A construção da fábrica da Veracel Celulose teria sido impossível sem a ajuda maciça do Estado brasileiro. Em dezembro de 2003, o BNDES liberou um empréstimo de R$ 1,43 bilhão, na época o maior investimento numa empresa privada do governo Lula. Jaques Wagner, exministro do Trabalho e Emprego e atual governador da Bahia, afirmou à época que “a Veracel é a cara do Lula”, sublinhando a importância desta indústria agroexportadora para o modelo econômico apoiado pelo governo. Introduzindo mais critérios, o BNDES tenta responder às críticas da sociedade civil. A Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais defende que “o BNDES atue como um banco de desenvolvimento voltado para o combate às desigualdades de renda, territoriais e regionais, de gênero, raça e etnia no Brasil. Ou seja, além da transparência, o BNDES deve promover um novo projeto de desenvolvimento para o país, e não viabilizar um modelo que provoca mais exclusão e destruição ambiental.” Em 2007, criouse a Plataforma BNDES, uma ampla articulação de ONGs e movimentos sociais que defende a transparência e mudança de prioridades nas ações do banco.

Insumos

O economista e integrante da Rede Alerta Contra o Deserto Verde, Helder Gomes, não acredita em mudanças expressivas a curto prazo no BNDES. “O momento é da adesão

do Brasil à nova divisão internacional do trabalho. Isso significa a interrupção do processo de diversificação produtiva no país, que dirige os esforços de política econômica para fomentar a produção de insumos industriais para exportação (minérios, produtos siderúrgicos, celulose, alimentos, etanol etc.) e para construir a infra-estrutura (transporte multimodal, energia e telecomunicações) dentro dos acordos da Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional da América do Sul (IIRSA)”. Gomes explicou que o BNDES cumpre uma função fundamental nesse processo, se constituindo na maior agência no financiamento da produção privada em nível regional. Trata-se de um banco público que financia projetos transnacionais de graves impactos socioambientais, cujo monitoramento não faz parte dos instrumentos da política de crédito do BNDES. Essa é a orientação geral e não há qualquer perspectiva de reorientação dessa política nos próximos anos. A reportagem tentou ouvir o posicionamento do BNDES em relação à Veracel, mas até fechamento desta edição não obteve resposta.

Para entender BNDES – O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é um banco estatal, criado por lei federal em 1952, para impulsionar o desenvolvimento econômico e social do Brasil. O BNDES investe prioritariamente em grandes empresas (por exemplo, é acionista em 12,5% da Aracruz Celulose) e também concede a muitas delas empréstimos a juros baixos, como é o caso das empresas de papel e celulose. Em 2006, o BNDES emprestou R$ 52,3 bilhões, sendo que cerca de 75% vem do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), ou seja, é dinheiro público. A previsão é investir R$ 20 bilhões no setor de papel e celulose no período 2007-2010.


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brasil Arquivo Cepedes

fatos em foco Hamilton Octavio de Souza

Ouro negro O anúncio de reservas de petróleo na camada pré-sal da costa brasileira está estimulando uma euforia parecida com a corrida do ouro em Serra Pelada, nos anos de 1970, ou, anteriormente, às minas de pedras preciosas em Minas Gerais e na Bahia. A diferença está no olho cada vez mais gordo do empresariado nacional e do capital internacional. O destino dessa riqueza poderá contribuir ou não para a construção de um país mais justo. Todo cuidado é pouco! Ouro verde Na corrida dos agrocombustíveis, cuja febre continua atraindo aventureiros de todo tipo para a monocultura da cana, o predadormor de Mato Grosso, Blairo Maggi, anunciou a construção de mais quatro usinas de álcool na região de Rondonópolis. O empreendimento prevê a ocupação de 180 mil hectares com o cultivo da cana – não se sabe se em substituição das áreas de milho e soja ou se demandará mais destruição das reservas florestais.

Desmatamento: sustentabilidade das florestas não pode estar atrelada a interesses econômicos

Ação do capital internacional e o rumo das florestas no país ANÁLISE A Amazônia representa hoje o que pode existir de mais interessante à expansão do capital Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal (ABEEF)

“Ou os estudantes se identificam com o destino de seu povo, com ele sofrendo a mesma luta, ou se dissociam de seu povo e, nesse caso, serão aliados daqueles que exploram o povo.” Florestan Fernandes A AMAZÔNIA representa hoje o que pode existir de mais interessante à expansão do capital: possui grande parte da biodiversidade, da fauna e da flora nacional e mundial; um dos maiores reservatórios de água doce do planeta; e um subsolo riquíssimo em minerais. Tais características – diante do estágio de esgotamento de outras florestas tropicais – possibilitam hoje a perpetuação de uma política cada vez mais agressiva do neoliberalismo, a política de mercantilização da natureza e da vida. O Programa Nacional de Florestas (PNF), lançado no governo de Fernando Henrique Cardoso e reformulado em 2003 no governo Lula, trouxe duas principais metas a serem cumpridas até 2007: a expansão da área manejada e a expansão da base plantada em 2 milhões de hectares de plantios de árvores. Para a efetivação da primeira meta, a proposta era a consolidação do então projeto de lei de Gestão de Florestas Públicas; para a segunda meta, entraram em ação os incentivos fiscais, linhas de créditos, assistência técnica e capacitação, informação e pesquisa, monitoramento e controle – medidas semelhantes àquelas implementadas durante a Revolução Verde. Novamente, assistimos aos interesses das grandes empresas prevalecerem sobre as políticas nacionais, projetando o Brasil para o papel de celeiro do mundo, fonte infindável de matériaprima e mão-de-obra barata. A Lei de Gestão de Florestas Públicas nº 11.284/2006 apresenta como um de seus princípios “garantir condições estáveis e seguras que estimulem investimentos de longo prazo”. São várias as perguntas que tal afirmação gera: Investimentos por parte de quem? Este dispositivo prevê a concessão de florestas públicas para comunidades tradicionais e empresas brasileiras, mas na verdade abre pressupostos para a atuação de empresas transnacionais, uma vez que estas são consi-

deradas brasileiras ao possuírem sede no país – em última instância, temos aqui o sinônimo da privatização de nossas florestas. Investimentos de longo prazo? É estabelecido também por esta lei que o tempo de concessão é de 5 a 40 anos, justificado com o ciclo de colheita ou exploração. Segundo artigo publicado na Revista Ciência Hoje (vol. 36, 2005) pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON), numa população de Jatobá, é preciso 90 anos para que haja a reposição de 61% de indivíduos com o mesmo porte daqueles retirados; e 120 anos para repor 18% da população de Ipê-Roxo. Esses dados partem do pressuposto que uma Exploração de Impacto Reduzido (EIR) seja realizada – a mesma que é defendida pela Lei de Gestão de Florestas Públicas por ser esta uma das mais sustentáveis formas de manejo. Porém, com os dados apresentados, fica claro que a sustentabilidade de uma floresta não pode estar vinculada a interesses econômicos.

36% da madeira retirada da Amazônia são exportados principalmente para a Europa, onde serão processados e utilizados para a construção de móveis finos, portas, janelas e pisos para a elite européia Proteção incerta Esse tempo de concessão releva um outro aspecto que não pode ser deixado de lado, que é o cenário político que estará apresentado após 40 anos de licenciamento; a instabilidade política que tal tempo representa não encontra na presente lei mecanismos dignos de manutenção de uma política de proteção das florestas e soberania de seus povos. Na Comissão Coordenadora do Programa Nacional de Florestas (CONAFLOR) – criada para propor medidas para o cumprimento das políticas públicas florestais, apesar de ser composta por representantes de diferentes setores, sendo que a própria ABEEF possui uma cadeira –, quem realmente deliberava para a construção da Lei de Gestão de Florestas Públicas eram as empresas do setor, representadas massivamente na comissão. Não é à toa que a lei foi aprovada em 2005 sob regime de urgência. É incoerente pensar a efetivação da Lei nº 11.284/06 antes

de pautarmos uma solução para o profundo problema agrário da região Norte do país, exigindo propostas do governo que proporcionem a regularização fundiária, um dos principais empecilhos para ordenar a ocupação e o manejo na região. A falácia da necessidade de expansão da base plantada das áreas de produção de eucalipto, medida prevista no PNF e sustentada na necessidade de se diminuir o impacto nas florestas nativas, vem à tona ao perceber que o objetivo das empresas, que atualmente ditam as Políticas Públicas Florestais do Brasil, é o de atender uma demanda mercadológica sem se preocupar, por exemplo, para onde vai a madeira extraída da Amazônia. Segundo a Sociedade Brasileira de Silvicultura, no seu documento Fatos e Números do Brasil Florestal, de novembro de 2006, mais de 75% da produção da madeira de eucalipto é destinada à produção de celulose e papel, sendo que metade destes produtos são exportados. Ainda na mesma fonte, 36% da madeira retirada da Amazônia são exportados principalmente para a Europa, onde serão processados e utilizados para a construção de móveis finos, portas, janelas e pisos para a elite européia.

Grilagem legal Um outro exemplo de como as atuais políticas públicas não representam os interesses do povo, e sim do grande capital, é a Medida Provisória 422, aprovada em julho pelo presidente da República, que modifica a área mínima de isenção do processo de licitação de 5 para 15 módulos fiscais (aproximadamente 1.500 hectares). Esta medida, além de legalizar a grilagem em mais de 30 milhões de hectares em terras públicas, vai contra a própria Constituição Brasileira. Como afirma o geógrafo Ariovaldo Umbelino em um de seus recentes artigos (“Lula é o presidente companheiro dos grileiros”, publicado na Agência Brasil de Fato no dia 8): “Nem o governo Lula e muito menos o Congresso Nacional estão respeitando a Carta Magna, pois está claramente colocado no artigo 188 que a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária”. Tal medida se configura, portanto, como mais um mecanismo irresponsável a serviço da destruição da biodiversidade e mais um passo declarado para a abertura de nossas florestas ao capital internacional. Projeto imperialista A soberania de um povo é construída quando este decide sobre a administração de seus recursos e a forma dos seus sistemas de produção. Porém, não é interesse do

governo a construção de uma nova forma de nos relacionarmos com a terra, a água e as florestas, mas sim a adesão a um projeto imperialista de expansão do capital no Brasil. Neste sentido, podemos considerar que as atitudes do governo pouco fazem para assegurar os direitos territoriais de quilombolas, indígenas e posseiros; não implementam e não ampliam as metas de reforma agrária; não combatem a grilagem; não atualizam os índices de produtividade da terra; não se esforçam para que seja aprovada a emenda constitucional que permite o confisco das terras onde há trabalho escravo. Diante deste cenário desastroso, os movimentos sociais populares se levantam na busca e defesa de um povo soberano, se colocando contra a entrega da Companhia Vale do Rio Doce ao capital estrangeiro, por entender que a riqueza contida no subsolo brasileiro é um bem inalienável do povo (conforme a Constituição); se levantam contra a construção da hidrelétrica do Rio Madeira, uma vez que os rios e a água não são elementos passíveis de privatização e que a realização de tal obra deslocará mais de 10 mil pessoas, atingindo inúmeras comunidades da região; contra o PAC Amazônia, por entender que tal medida contribui para a implementação da Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA), um programa do capital financeiro internacional que tem a intenção de aplicar, em 12 países da América Latina, a atual política neoliberal de mercantilização, aprofundando cada vez mais a pobreza nesses países.

Estudantes A Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal – ABEEF também compartilha das mesmas lutas e, em seu último Congresso Brasileiro dos Estudantes de Engenharia Florestal, realizado em julho deste ano em Belém-PA, pautou o tema “Amazônia Livre: fortalecendo a proteção da biodiversidade e soberania dos povos”. O Congresso contou com a participação de cerca de 600 estudantes de todo o país que, em um dos momentos do encontro, saíram às ruas da capital do Pará para denunciar a internacionalização da Amazônia e se colocar contra as medidas do atual governo que sustentam essa realidade. A ABEEF entende que as atuais políticas públicas estão a serviço dos interesses da classe dominante, que hoje tem como aliados o governo, a universidade e a mídia hegemônica. Nós, estudantes compromissados com a construção de um projeto de sociedade justa e soberana, nos colocamos ao lado, e enquanto povo oprimido, na luta pela transformação dessa condição.

Soberania nacional O governo da Venezuela iniciou o processo de nacionalização da indústria do cimento e deu prazo, até o final do ano, para que 60% das ações das principais empresas privadas – mexicana Cemex, francesa Lafarge e suíça Holcim – sejam transferidas para o Estado. O objetivo é impulsionar a construção de moradias. Aqui no Brasil, o oligopólio do cimento é dominado pelo Grupo Votorantim, que fixa o preço de mercado como bem entende. Crime internacional Responsável pela prisão e condenação internacional do ditador chileno Augusto Pinochet, o juiz espanhol Baltasar Garzón aportou no Brasil no dia 18. Para ele, “as leis de anistia devem sempre ser interpretadas de forma subordinada ao caráter e ao tipo de crime. Quando se trata de crimes contra a humanidade, entendo que não é possível anistia”. Só falta convencer o Poder Judiciário brasileiro a cumprir o seu papel. Justiça católica Mais de 300 estudantes ocuparam a reitoria da PUC-SP, em novembro de 2007, para defender o debate democrático sobre o novo estatuto da universidade; 132 estudantes foram fichados pela Tropa de Choque da Polícia Militar na reintegração de posse; a Reitoria abriu processo judicial contra nove estudantes considerados, arbitrariamente, líderes da ocupação; três estudantes continuam com processos criminais. Assim funcionam a democracia e a Justiça no Brasil! Injustiça estatal Não é coincidência não: nos países mais ricos, como Estados Unidos, Canadá, Japão e Inglaterra, a taxação de impostos é sempre superior a 48% da renda e a 10% do patrimônio das pessoas. Aqui no Brasil, a taxação da renda não passa dos 31,5% e a do patrimônio é inferior a 3,5%. Em contrapartida, o Brasil recolhe a taxação mais alta do mundo sobre o consumo (65%), que atinge indistintamente todos os brasileiros, ricos e pobres. Violência impune Completou, no dia 19, quatro anos do massacre do centro de São Paulo, quando sete pessoas em situação de rua foram covardemente assassinadas. A polícia, o Ministério Público e o Judiciário pouco se empenharam em desvendar os crimes – embora as suspeitas mais concretas tivessem indicado a participação de vigilantes e policiais militares. Ninguém foi levado a julgamento e condenado. Pé-frio Ao invés de fazer uma cobertura jornalística equilibrada dos jogos olímpicos, a TV Globo preferiu dar destaque especial a determinados esportes e atletas – e desprezar muita gente boa da delegação brasileira. Na primeira semana dos jogos, a maior parte dos “protegidos” da emissora ficou com desempenho aquém do propagado; em compensação, os primeiros medalhistas não tinham sido lembrados pela Globo. Haja paciência O problema maior do horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão é que os candidatos não contribuem nem um pouco para elevar o nível de politização da população. Ao contrário, as promessas vazias estão cada vez mais impossíveis. Tem candidato a prefeito e a vereador dizendo que “dá” trabalho, educação, casa e saúde para todos. Já!


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Carajás, sul e sudeste do Pará, hoje SUBDESENVOLVIMENTO Riquezas minerais elevam preço da terra e provocam tensões em região de enormes fluxos migratórios Divulgação/Vale

Rogério Almeida de Marabá (PA)

A propaganda é o calço que justifica o controle de extensas áreas sob a alegação de uma tal de responsabilidade social. O saldo social e ambiental das experiências dos grandes projetos não são animadores para os que ficam nos rincões

Nova dinâmica A região de Carajás, dona de uma dinâmica ímpar, na derradeira década, padece de outras modificações em seus ares econômicos, políticos, sociais e sobre o território. A Vale se consolidou como o principal agente de indução na definição dos territórios. Não menos importante é a presença do campesinato, que controla cerca de 52% do território sudeste paraense, a partir da efetivação de projetos de assentamento da reforma agrária, que ainda pulsa em tensão de grandes áreas dedicadas à pecuária. A gula da Vale, privatizada em 1997 numa operação nebulosa, se expande para além das fronteiras do município de Parauapebas (PA). A dinâmica atual registra ainda a implantação de grandes frigoríficos, como o do grupo Bertin, e a “compra” massiva de várias fazendas pela Agropecuária Santa Bárbara, integrada pelo banqueiro Daniel Dantas, suspeito de um mundo de crimes no sistema financeiro. No entanto, a efetivação de projetos de assentamentos não fez com que a atividade pecuária sofresse refluxo significativo. Multidões Ao mesmo tempo em que o pólo de ferro-gusa se amplia em Marabá, imensas obras

Polícia cerca acampamento de garimpeiros que bloquearam a Estrada de Ferro Carajás, em Parauapebas (PA), em maio deste ano

de infra-estrutura do governo federal ativam a migração e inchaço das cidades pólos e pequenos municípios onde os projetos de mineração proliferam, como no caso de Ourilândia do Norte, Tucumã, Canaã de Carajás, Floresta do Araguaia e São Félix do Xingu. Puteiros, favelas, criminalidade florescem nas quebradas das cidades. O deslocamento na região em ônibus, vãs ou carros próprios é marcado pelo medo de assaltos. As rodovias esburacadas facilitam a ação dos gatunos. A cidade de Marabá, cortada pela Transamazônica, já padece de engarrafamentos. Não são raros os carros das grandes empresas circulando pela cidade: carretas de gado, carvão, camionetes de luxo. E como tem camionete de luxo na escaldante cidade, com praças enfeitadas por árvores ressecadas! A poeira inunda a cidade durante o dia, enquanto a fumaça das queimadas faz as honras durante a noite. A viagem em vãs é uma oportunidade de acessar informações. Muito se fala sobre a especulação de terras. Especulação promovida por grandes fazendeiros e mesmo gente simples, que encontra nessas ocupações uma possibilidade de ganhar um dinheirinho. Fala-se ainda da elevação do preço do alqueire da terra, que tem sofrido alta por conta do avanço da frente mineradora. Alguns notam os projetos como possibilidade de emprego. Mas, a opinião não é unanimidade. Alguns percebem com desconfiança. A fronteira agro-mineral do sul e sudeste do Pará passa por dias agitados.

Justiceiros Se, na década de 1980, o fazendeiro aplacava a diferença sobre o domínio da terra contra o camponês a partir do 38, vivencia-se hoje um processo de criminalização a partir de condenações de dirigentes e advogados por conta das ações de ocupações e acampamentos. A exemplo do que ocorreu no caso de Batista Afonso, advoga-

do e coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no município pólo da região, Marabá. A condenação de Afonso foi seguida por mais três, de dirigentes do MST e garimpeiros, a pagarem multas em favor da Vale no valor de R$ 5 milhões. O capital se alastra sobre as terras amazônicas, advoga sua perspectiva de desenvolvimento da região em editoriais de grandes jornais, notas de primeira página em edições dominicais, em reportagens que indicam que fora de tal diapasão não há saída, como matéria publicada na revista Exame sobre os louros do projeto que explora bauxita no pequeno município de Juruti, da transnacional do setor de alumínio, Alcoa. Isso sem falar na presença constante do presidente Lula nos projetos de expansão de mineração da Vale.

Contraponto ao modelo de subdesenvolvimento Na ação mais recente da região, MST ocupa fazenda Maria Bonita, repassada pela família Mutran a Daniel Dantas Beatriz Pasqualino

de Marabá (PA) A disputa pelo controle do território em Carajás desnuda um mosaico de sujeitos: grandes corporações de mineração, pecuária, camponeses enfileirados em instituições socialmente organizadas ou não, grileiros, especuladores, pequenos comerciantes, indígenas, fazendeiros, criminosos do mercado financeiro e garimpeiros. Nessa peleja pela terra em Carajás, o MST tem orientado suas ações contra as representações do poder tradicional do lugar e ao modelo de desenvolvimento local. O movimento ocupou ou incentivou a ocupação de inúmeras fazendas da família Mutran, o clã de maior poder no tempo das primeiras décadas do século passado, quando a região era tratada como polígono dos castanhais. Os dias eram regidos pelo extrativismo vegetal da castanha do Pará. E foi sob essa alegação, que vastas extensões de terras foram transferidas da esfera pública para a privada através de títulos de aforamento.

Momento de tensão Os grandes projetos encabeçados por empresas de grande porte trombeteiam a promessa de emprego sobre os grotões, a luz da civilização a partir da logomarca de empresas de robusto capital, com promessa de desenvolvimento. Para tanto, a propaganda é o calço que justifica o controle de extensas áreas sob a alegação de uma tal de responsabilidade social. O saldo social e ambiental das experiências dos grandes projetos não são animadores para os que ficam nos rincões. Os dias de hoje registram um outro momento de tensão no sul e sudeste do Pará e em outras áreas da Amazônia, com um radical avanço do interesse do capital sobre a terra e os recursos nela existentes. A cortina de tal teatro de destruição já foi erguida em anos distantes. A história de mortes, destruição da natureza, apropriação irregular de terra, corrupção pública, hegemonia do poder da grana deixam isso evidente.

“Acampamento é uma escola sobre a luta pela terra. Mas nem todos resistem. O processo até se alcançar a desapropriação demora. A gente vive muitas privações”

Rogério Almeida é colaborador da rede www.forumcarajas.org.br, articulista do Ibase e do Ecodebate Beatriz Pasqualino

A DESCOBERTA da grande reserva de minério na serra de Carajás, na década de 1960, reorientou todo o cenário econômico, político, social e territorial nas regiões sul e sudeste do Pará. Novos municípios germinaram, os fazendeiros tradicionais foram, em certa medida, postos de lado. Coube ao Estado o papel indutor na economia. As obras de infra-estrutura baseadas em rodovias, ferrovias e hidrelétricas trouxeram uma multidão de migrantes. Sem falar no garimpo de Serra Pelada. Anos depois, na década de 1980, a região de Carajás experimentou agudas disputas pela terra, o que redundou num dos capítulos mais violentos na Amazônia contra as ações dos camponeses. Repressão similar à sofrida pelas insurreições de séculos idos, como as chacinas que se precipitaram sobre os movimentos da Cabanagem (1835-1840), no Pará, e Canudos (1896), na Bahia. Até a consolidação de um conjunto de instituições de representação do campesinato no sul e sudeste paraense, isso nos anos de 1990, inúmeras mediações foram necessárias: Igreja Católica, partidos políticos, universidades e ONGs estão entre os agentes. Até há muito pouco tempo, as diferenças entre fazendeiros e camponeses eram resolvidas na base do calibre do “tresoitão”, num cenário marcado pela militarização.

Barracos construídos nos acampamentos da região

Foi nesse sentido que o MST dirigiu suas ações de ocupações sobre as fazendas em nome da família Mutran. Assim, ocupou a Peruano e a Baguá, no município de Eldorado dos Carajás, e as fazendas Cabaceiras e Mutamba, em Marabá. Em todas as fazendas, foram registradas ocorrências de trabalho escravo, crimes ambientais e títulos da terra sob suspeita.

Mutran e Dantas A derradeira ocupação do MST foi a fazenda Maria Bo-

Monumento criado na Curva do S, local do massacre de 1996

nita, localizada às margens da rodovia PA-150, repassada pelo pecuarista Benedito Mutran ao grupo Agropecuária Santa Bárbara, que integra o portfólio do banqueiro Daniel Dantas. A ocupação ocorreu no dia 25 de julho, quando se celebra o Dia do Trabalhador Rural. Cerca de 100 quilômetros separam Eldorado dos Carajás do município pólo da região, Marabá. Onde antes de encontrava uma frondosa floresta de castanha e mogno, tem-se cerca, pasto e gado. Quem vai de Marabá para Eldorado dos Carajás, antes de chegar à fazenda Maria Bonita, passa pela Curva do S, local do massacre de 1996. Eidê Oliveira, uma das coordenadoras do acampamento dos sem-terra, ao recordar da madrugada da ocupação da Maria Bonita, conta que a ação da empresa de segurança da fazenda e dos vizinhos foi rápida. “Aqui na porteira, encheu de carro da empresa Atalaia Serviços de Segurança, com licença da polícia federal para operar no Estado do Tocantins. Os homens estavam encapuzados”, informa Oliveira, uma jovem avó de pouco mais de 40 anos, mãe de cinco filhos e quatro netos, que há seis anos milita no MST. Ela lembra que o clima ficou tão tenso que o gerente da fazenda deixou cair a arma.

Resistência Entrar no acampamento foi fácil. O dia era ensolarado e o local parecia bem calmo. Os homens estão caçando numa mata vizinha, onde também pescam, no rio Vermelho. O local serve ainda para a

retirada de palhas e madeiras para a construção dos barracos. Oliveira conta que, no rio Vermelho, é possível encontrar muitos peixes, entre eles o saboroso pintado. “Acampamento é uma escola sobre a luta pela terra. Mas nem todos resistem. O processo até se alcançar a desapropriação demora. A gente vive muitas privações”, explica a avó militante. Ela revela que, desde o dia 12, as carretas – pelo menos 100 – com o gado da fazenda não param de sair. Para a militante, isso é um bom sinal. O acampamento está organizado em 23 núcleos de base, cada um com média de dez famílias. Durante a prosa com a militante, fomos interrompidos em vários momentos com a chegada de representantes de família para a inscrição no cadastro. Pergunto como fazem para identificar possíveis infiltrados e ela informa que alguns já são conhecidos. E sempre que chagam não são bem-vindos.

Briga na Justiça Desde o dia 1º, uma liminar de reintegração de posse foi expedida pela justiça de Marabá. Terminou em impasse a audiência realizada no dia 7, no Incra de Marabá, entre a assessoria jurídica do Grupo Santa Bárbara e a representação dos movimentos sociais locais, mediada pelo ouvidor nacional Gercindo Filho. Enquanto a equipe jurídica da Santa Bárbara exige a saída imediata dos ocupantes, a representação do MST enfatizou a permanência na área até a conclusão do levantamento sobre a cadeia dominial da fazenda. (RA)


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Juventude de 24 movimentos procura enfrentar a fragmentação da esquerda UNIDADE Transformação social e ações políticas marcam encontro entre campo e cidade realizado em Niterói com 1.200 jovens Jonathan Constantino de Niterói (RJ) ESTAVAM TODOS ali. Uma grande roda no gramado. Ao centro, varas em tripé com uma bandeira hasteada. Punho esquerdo levantado, envolvido por uma faixa vermelha. Bandeiras vermelhas e sem estampa tremulavam erguidas. O coração batendo forte, pele arrepiada. Um abraço fraterno após cantarem “A Internacional”, de Eugène Pottier e Pierre Degeyter. Com essa mística, encerrou-se, na tarde do dia 15, o 1º Encontro Nacional da Juventude do Campo e da Cidade (ENJCC), que contou com um ato público no centro do Rio de Janeiro (RJ). Esse encontro faz parte de um programa de formação da juventude da classe trabalhadora encabeçado pelo Coletivo Nacional da Juventude da Via Campesina. O curso vem ocorrendo em nove Estados desde 2006 e tem como objetivo formar, mobilizar e organizar os jovens trabalhadores. Entre os dias 11 e 15, o ENJCC reuniu, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ), mais de 1.200 jovens, de 20 Estados.

Comunicação MST

Eles eram militantes de 24 movimentos sociais de trabalhadores, negros, desempregados, mulheres, sem-teto, estudantes e camponeses.

Esperança de mudança O encontro propiciou que os jovens ali reunidos vivenciassem a fusão entre teoria, prática, cultura e intercâmbio para aprofundar a reflexão sobre a situação da juventude. Nesse sentido, dois focos principais foram levantados: a diminuição das perspectivas dos jovens dentro da sociedade capitalista (ver texto “Capitalismo castiga jovens brasileiros”) e a organização dessa juventude para ações políticas conjuntas. Neste segundo aspecto, de acordo com a coordenação do Coletivo Nacional da Juventude da Via Campesina, o ENJCC não foi um evento isolado nem somente um meio de reunir militantes. Ele é parte da construção do próprio Coletivo e através do qual se pensou na formação de uma agenda política que integre organicidade, formação política e luta de massa. Segundo Antônio Neto, da coordenação do Coletivo, o ENJCC trabalho com quatro eixos: agitação e propagan-

Cerca de 1.200 jovens participaram do encontro realizado em Niterói (RJ)

da; formação; articulação; e simbologia e mística. “O caráter é de formação política, de estudo, de muita simbologia, muita mística, de luta e de dar unidade nacional às nossas ações”, disse. Além disso, o encontro teve o objetivo de unificar o entendimento e a ação política da juventude e verificar que atividades estão sendo desenvolvidas com o mesmo intuito em todo país.

Juliana Queiroz

Baixa escolaridade, desemprego e violência empurram juventude para uma existência vazia, marcada pela mercantilização de Niterói (RJ)

Encontro discutiu perspectivas dos jovens na sociedade capitalista

Violência No que diz respeito à criminalidade, nas atividades do ENJCC chamou-se a atenção para o fato de que a juventude tem sido a principal vítima da violência. “A ONU declara que um país está em guerra civil quando 15 mil jovens por ano morrem violentamente. No Brasil, morrem cerca de 60 mil”, disse Tatiana Oliveira, da Escola Nacional Florestan Fernandes. As maiores vítimas são os pobres e negros. As intervenções feitas durante o encontro revelaram tratar-se de um processo de criminalização da pobreza, que pode ser ilustrado com o trágico episódio que vitimou três jovens do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, em junho. A violência atinge em média 50% mais os jovens negros e estes são, ainda mais que os brancos, vitimizados por um contexto social que gera profundos impactos em seu cotidiano, visão de mundo e possibilidades concretas de construção de futuro, denuncia o Ipea. Rafael Vilas-Boas, do setor de cultura do MST, lembra que o Brasil possui a segunda maior população negra do mundo, atrás apenas da Nigéria, e acrescentou que “a teoria de esquerda no Brasil precisa rever certas pau-

União da luta Dentre as inúmeras conquistas, a primeira foi a unidade da luta. De acordo com a coordenação do Coletivo, o

Pauta de reivindicações, bexigas com tinta e cartazes colados de Niterói (RJ)

é de 46%, segundo o Ipea. A pesquisa ainda aponta que 31% dos jovens são pobres e, destes, 70% são negros.

Segundo Luciano Carvalho, do coletivo Dolores Boca Aberta, de São Paulo, “essa unificação permite romper barreiras que impedem ouvir o outro. Cria-se uma argamassa que nos une, nos torna mais fraternos e humanizados”.

Participantes realizam marcha pelo centro do Rio de Janeiro

Capitalismo castiga jovens brasileiros

Ao lado da organização política, o outro eixo principal do 1º Encontro Nacional da Juventude do Campo e da Cidade (ENJCC) foi analisar a diminuição das perspectivas dos jovens dentro da sociedade capitalista. Segundo as discussões realizadas, isso pode ser verificado através de dados referentes à educação, emprego e criminalidade, além de uma compreensão de mercantilização da vida. De acordo com estudo publicado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) em abril, o Brasil possui cerca de 51 milhões de pessoas entre 15 e 29 anos. Dos jovens entre 15 e 17, apenas 48% estão cursando o ensino médio e 18% estão fora da escola. Dentre aqueles com 18 a 24 anos, a situação é ainda mais alarmante, pois apenas 13% estão no ensino superior e 66% não estudam. Porém, no encontro, foi salientado que tais fatos não podem ser analisados de modo isolado. A renda familiar, a etnia e o local em que habita interferem no acesso do jovem à educação e na maneira como adquire informação. Este acesso, por sua vez, influencia no modo como esses indivíduos serão inseridos no mercado de trabalho e atuarão no seu contexto social. Com relação ao emprego, o Datafolha publicou, em julho, uma pesquisa apontando que 33% dos jovens entre 16 e 25 anos possuem anseios de realização profissional. No entanto, o número contrasta com a realidade do desemprego, que, entre os jovens,

Durante os dias de encontro, percebeu-se grande diálogo entre os diversos movimentos dos diferentes Estados. Houve discussão nas delegações estaduais, nas macrorregiões (Nordeste, Amazônica, Centro-Oeste, Sudeste e Sul) e em grupos mistos formados após algumas intervenções de assessores. Além disso, durantes os intervalos, aconteceu grande intercâmbio.

sentido de se pensar o programa de formação da juventude da classe trabalhadora da Via Campesina, bem como o ENJCC, era que cada movimento assumisse como sua a bandeira do outro. Além disso, questionar o próprio termo juventude, pois “é um termo sem nome, sem sexo, sem raça, sem classe”, nas palavras de Elisa Guaraná, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Apontou-se que, para ocorrer uma ação efetiva, é preciso perceber a complexidade que envolve a questão da juventude no Brasil e na América Latina. Segundo Tatiana Oliveira, da Escola Nacional Florestan Fernandes, “é necessário enxergar a juventude como classe para se pensar ações futuras. É preciso resgatar a política como espaço de ação coletiva para a emancipação humana”. “Um grande passo que tem sido dado é a quebra da dicotomia entre campo e cidade”, destacou João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST. Ele acrescentou ainda que, “para se avançar nesse processo, é necessário reproduzir encontros cujo caráter seja a união campo-cidade, estudo e luta”.

tas, como a questão racial. Se os movimentos sociais e partidos não atentarem para a questão do negro, perderão a sua legitimidade”.

Mercantilização da vida Por fim, Gilmar Mauro, da coordenação nacional do MST, observa que a juventude, massificada por um conglomerado midiático que reproduz um pensamento autocrático burguês e consumista, tem sido atingida por um fenômeno de mercantilização da vida. “As nossas relações têm sido intermediadas por coisas”, completa. Nesse sentido, não só o modo como as pessoas se relacionam, mas seus próprios anseios estão relacionados a coisas. Ao menos é o que aponta a pesquisa do Datafolha, na qual grande parte dos jovens anseia possuir um veículo próprio (40%), casa (36%), investe principalmente em vestuário e calçado (61%) e consideram-se muito consumistas (26%). São dados importantes a serem analisados, porém Vilas-Boas alerta que “o gosto é uma construção ideológica”. Dessa forma, não há como transformar a situação da juventude sem modificar a estrutura social, enfrentar o neoliberalismo e modificar o modelo de desenvolvimento econômico. “Nossa luta tem de ser antisistêmica. Ou superamos o capital ou a humanidade não sobreviverá por muito tempo”, acrescentou Gilmar Mauro. (JC)

Com o objetivo de protestar contra a criminalização dos movimentos sociais e a violência do Estado, um ato público foi organizado e planejado coletivamente pelos participantes do 1º Encontro Nacional da Juventude do Campo e da Cidade (ENJCC). Todos os que estiveram no evento se reuniram em frente à igreja da Candelária, relembrando as vítimas da chacina ocorrida no dia 23 de julho de 1993. Ali foi realizada uma mística denunciando a violência do Estado contra a juventude. Questionou-se também o fato do poder público investir no “caveirão” e alegar não ter verba para investir em educação. Relembrouse o assassinato dos jovens negros Wellington Gonzaga Ferreira, de 19 anos, David Wilson da Silva, de 24 anos, e Marcos Paulo Campos, de 17 anos, do Morro da Providência. Em junho, eles foram entregues pelo Exérci-

to a um grupo de traficantes do Morro da Mineira para serem executados. Os jovens marcharam em direção ao prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, exigindo a erradicação do analfabetismo e o acesso da classe trabalhadora à escola pública gratuita de qualidade. Além disso, defenderam a extinção do vestibular, a implementação de ações afirmativas e a assistência estudantil. Em frente ao prédio da Vale, denunciaram os crimes que a empresa comete contra as comunidades próximas às áreas de suas instalações e o descumprimento de direitos trabalhistas de seus empregados no Pará, Maranhão, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Também defenderam a reestatização da empresa. De lá, seguiram para a Embaixada dos Estados Unidos, onde protestaram contra as invasões do Iraque e do Haiti, defenderam o fechamento da Base de Guantánamo, em Cuba, e a libertação dos cinco patriotas cubanos presos

ilegalmente nos EUA. Além disso, repudiaram as intervenções militares na América Latina, a 4ª Frota e as bases militares. Por fim, rumaram até o prédio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Lá, criticaram o processo de criminalização dos pobres do campo e da cidade e dos movimentos sociais. Exigiram a revogação da Lei de Segurança Nacional, criada durante o regime militar e utilizada no Rio Grande do Sul para enquadrar oito trabalhadores rurais que lutam por reforma agrária. Denunciaram também a desigualdade no acesso à Justiça, havendo diferença na forma como são conduzidos os processos de ricos e pobres. Durante a marcha, foram colados cartazes e atirou-se tinta na fachada dos prédios onde ocorreram as paradas. A marcha foi encerrada diante das portas do Tribunal de Justiça. Os jovens sentaramse no chão e, coletivamente, leram a pauta de reivindicações que os mobilizou. (JC)

Homenagens a Josué de Castro e Olga Benário Filhas dos lutadores estiveram presentes no encontro de Niterói (RJ) Durante o ENJCC, jovens militantes celebraram a memória de dois importantes lutadores da causa trabalhadora, Olga Benário e Josué de Castro. Na figura de sua filha, Anita Leocádia Prestes, a alemã comunista e internacionalista que lutou em Berlim e na União Soviética, casada com Luiz Carlos Prestes, foi homenageada através de uma mística. Durante a manifestação, os militantes carregaram um cartaz com a fotografia de Olga

Benário e entregaram um cesto a Anita com diversos produtos. Segundo Anita, “é importante educar a juventude numa perspectiva socialista. É necessário estudar o marxismo e o Brasil”. Ela acrescentou ainda que a juventude precisa se engajar de forma verdadeira e autêntica. “Apenas empolgação não resolve, é necessário adquirir consciência”, apontou. Josué de Castro foi homenageado na pessoa de sua filha, Ana Maria Castro, exprofessora da UFF. O pernambucano publicou, entre outras obras, Geografia da

Fome, na qual desnaturaliza a fome e classifica a pobreza como um subproduto do desenvolvimento. Para Ana Maria, a maior homenagem a seu pai foi o próprio encontro, pois permitiu que, em pleno século 21, as pessoas se reencontrassem com as idéias dele. “No século passado, as idéias dele não foram aceitas e, hoje, vocês estão se reencontrando com elas”, observou. Ela disse ainda que uma das grandes vitórias do ENJCC foi a união entre campo e cidade e encerrou: “Ele acreditava na juventude”. (JC)


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Lugo assume compromisso e o poder com os pobres “Renuncio a vivir en un país ‘donde unos no duermen porque tienen miedo y otros no duermen porque tienen hambre’” (disse Lugo em seu discurso de posse, em referência à frase do geográfo brasileiro Josué de Castro: “Metade da humanidade não come, e a outra metade não dorme, com medo da que não come”)

Egon Heck de Assunção (Paraguai) NÃO FORAM apenas as palavras emocionadas, por vezes duras, mas também envoltas em carinho e memória histórica heróica e perigosa, que marcaram a fala de Fernando Lugo em sua posse, no dia 15. Foram também seu “sim juro” com toda a vibração de suas cordas vocais, ao contrário dos “sim” meio silenciosos de juramentos dos presidentes precedentes. E seu discurso de austeridade acompanhado pelo testemunho de suas sandálias nos pés e a camisa branca da paz, sem a habitual gravata e paletó. No dia anterior, aliás, já havia anunciado a renúncia a seu salário de presidente. Lugo e Chávez, em momento de descontração, no show da posse, cantaram juntos a canção “Todo cambia”, para celebrar o início de mais um momento de mudanças no continente, na busca de transformações que dêem prevalência ao social, na construção de um socialismo com os jeitos plurais de cada país.

Política indigenista Nas últimas décadas, dominadas pelo Partido Colorado, os povos indígenas foram relegados à sua própria sorte, sem nenhuma política séria e conseqüente por parte do Estado paraguaio. O clientelismo, o assistencialismo e a corrupção marcaram os órgãos responsáveis pela proteção dos direitos dos 20 povos indígenas deste país, que atingem uma população um pouco superior a 100 mil pessoas. O Instituto Nacional do Índio (INDI) está totalmente sucateado e marcado pela corrupção, especialmente no que diz respeito às terras indígenas, cujos processos de compra estão marcados por falcatruas envolvendo uma espécie de máfia interna que se beneficiava desses processos. A difícil missão de construir uma nova política indigenista, a partir da posse do presidente Lugo, está em curso. A liderança de etnia Aché, Margarita Mbywangui, que foi candidata a senadora pelo movimento Tekojoja, é quem deverá assumir essa árdua missão. Já se realizaram inúmeros encontros para definir a política e as estratégias de ação. Já no domingo, dia 17, aconteceu mais um debate para a definição das orientações, especialmente o funcionamento do INDI – que terá que passar por profundas mudanças, desde seu quadro de funcionários, que não passam de uma centena de pessoas, até a descentralização e a articulação com outros ministérios e organizações da sociedade civil. Além dos desafios internos do INDI, será necessário construir uma unidade no movimento indígena entre suas principais organizações, pois ali também

APC

existem divisões e disputas, marcadas principalmente entre os indígenas da parte oriental (majoritariamente os Guarani) e os da parte ocidental, os povos indígenas da região do Chaco.

Novo Paraguai Há quem avalie que dificilmente terá êxito quem assumir essas estruturas tão viciadas e comprometidas com a corrupção. O recém-empossado presidente Fernando Lugo não apenas tem uma grande sensibilidade e carinho com a questão indígena, como já sinalizou sua decidida atuação para garantir os direitos desses povos. Entende que a diversidade e a contribuição dos povos indígenas será sumamente importante na construção do novo Paraguai. Para tanto, duas questões serão prioritárias, destacadas no seu discurso de posse: a garantia das terras indígenas e a punição de todos os crimes cometidos contra esses povos. Para Raquel Peralta, coordenadora da Conapi (Coordenação Nacional de Pastoral Indígena), este é um momento oportuno para fazer as mudanças e definir uma política indigenista do governo Lugo. Talvez, isso exija uma mudança estrutural mais profunda, com a criação de um conselho ou mesmo um ministério indígena. Entende que é o momento de unir as forças de todos os aliados dos povos indígenas para essa difícil, porém possível e necessária, missão. Certamente, concorrerão para isso iniciativas como a elaboração de ações alémfronteiras que procuram articular e definir políticas públicas para os povos presentes em vários países, como é o caso dos Guarani. Iniciativa nesse sentido está em curso, por meio do Ministério Público do Brasil. Feliz dia da criança Lugo iniciou inaugurando um novo estilo de governo, ao abrir os reservados espaços do poder aos pequenos. A Mburuvicha Roga, um espaço nobre dos governantes, teve a alegre e barulhenta presença de centenas de crianças, dentre elas indígenas, incapacitados, e crianças do Brasil e Argentina, para mostrar na prática a intenção de construir um novo Paraguai, aprendendo com a história e a memória, mas procurando superar os traumas e os genocídios. Dia 16 de agosto se celebra o dia da criança no Paraguai. Num texto alusivo à data , Osvaldo Zayas, no artigo “Feliz dia da criança”, diz: “Mais além do heroísmo das 3.500 crianças mortas pelas mãos do genocida Exército brasileiro, na batalha de Acosta Ñu, é importante recordar as causas da guerra e suas conseqüências posteriores (...). A vida dos pequenos grandes mártires foi a oferenda de um país que se negou a morrer”. Zayas relata que a verdadeira causa da guerra foi o interesse dos ingleses em abrir o mercado paraguaio ao “mundo civilizado”. E nesta intenção, a tríplice aliança assassinou 75% da população paraguaia. Conclui o artigo dizendo: “Heróis como os de Acosta Ñu não morrem. Enquanto os sonhos de liberdade, a decisão de alcançar a justiça social e terminar com a opressão seguirem vivos, seguirão nascendo crianças em Acosta Ñu”.

Lugo planta uma muda de árvore, símbolo da construção de um novo paraguai no dia da criança

Carta aos que não foram à posse Marcelo Barros Assunção, domingo 17 de agosto de 2008. Escrevo-lhes do aeroporto de Assunção, voltando das cerimônias de posse de Fernando Lugo. Junto com Dom Tomás, fui convidado pelo governo, através da Via Campesina. Conheci o novo presidente, há alguns anos, em uma reunião de teólogos. Nunca pensei que agora fosse me convidar para isso. É difícil contar as impressões que penso serem minhas e dos companheiros e companheiras que participamos desta festa aqui em Assunção. Talvez o modo mais correto seja simplesmente descrever o que vimos e vocês tirem as conclusões.

1. Na véspera da festa No aeroporto, havia um carro do governo nos esperando. Ele nos levou diretamente a um imenso parque esportivo, onde o presidente eleito se encontrava com os movimentos populares e muitas delegações de outros países do continente. Dizem que havia lá mais de 10 mil pessoas. O presidente nos tomou pela mão e nos apresentou à multidão como irmãos e companheiros da Teologia da Libertação e do compromisso com os mais pobres. Ao vê-lo falar tão diretamente com a multidão, me lembrei que, há dois anos, em um encontro internacional em Cuba, já decidido a deixar o ministério episcopal para se candidatar, ele declarou: “A partir de agora, minha grande catedral será meu país”. Naquele momento, uma jornalista lhe perguntou se não era ambicioso demais querer transformar um país inteiro em uma catedral. Ele explicou que não

se tratava de nenhum projeto de sacralização do mundo: “Com esta metáfora, eu quis dizer que, durante anos, como bispo, partilhei a vida dos mais pobres e procurei ajudar as pessoas, ensinando e trabalhando em uma catedral. Agora, me coloco à disposição de todos os cidadãos do meu país para, a partir da política, construir uma nação justa e fraterna para todos os cidadãos do Paraguai”.

O Lula do Paraguai é filósofo e teólogo. Lá, a imprensa terá de disfarçar mais o seu racismo e o seu ódio a qualquer pessoa que queira transformar as velhas instituições do país, para que não sirvam apenas aos privilegiados de sempre

Agora, ele começa esta missão como presidente da República. Algumas coisas me impressionaram. Um de seus primeiros atos como presidente foi renunciar ao salário presidencial. Dizem também que não vai morar no palácio. Continuará tendo um apartamento em um colégio de irmãs e usará o palácio como lugar de encontros e de despacho para atividades nãooficiais da presidência. Do seu discurso de posse, quase a metade em língua Gua-

rani, compreendi que os indígenas e as crianças pobres terão a prioridade fundamental. No final do ato, depois de despedida a multidão (o que foi significativo, para não parecer populista), ele ficou só com um grupo de caciques indígenas do país que o abençoaram e invocaram em suas religiões as bênçãos divinas para o seu novo presidente.

2. A cerimônia de posse A cerimônia de posse foi feita em uma grande tenda, na praça central da cidade. Ali chegaram os presidentes de todos os países vizinhos, além do vice-presidente da China, do príncipe Filipe de Astúrias e delegações diplomáticas de muitos países. Fez uma homenagem especial ao presidente Allende (assassinado no Chile) e disse aos paraguaios que vivem fora do país que ele fará tudo para que eles possam voltar a seu país. Certamente, ele enfrentará muita oposição. O jornal ABC deste domingo já trazia uma entrevista com um governador de oposição que conclamava os colorados a pegar em “armas” para derrubar os que ousaram tirá-los do poder, depois de 60 anos de domínio no país. Entretanto, tive a impressão que o povo todo, em geral, queria esta mudança. Depois daquela cerimônia, o presidente e os convidados participaram de um Te Deum na Catedral. Foi uma cerimônia, ao meu ver, negativa e vergonhosa, por causa da postura triunfalista e mesquinha do arcebispo de Assunção. Ele agiu como se o Paraguai fosse um país católico romano e esta igreja devesse ter todos os privilégios de religião oficial. O discurso do arcebispo foi uma série de citações de arcebispos do

Paraguai que, segundo ele, se dedicaram ao povo. Nenhuma palavra sobre a realidade atual. Nenhuma referência concreta ao novo momento que o país inicia. Nenhuma palavra sobre o novo presidente. Nem o nome dele foi pronunciado. Tanto Dom Tomás, como Leonardo Boff, como eu, saímos dessa cerimônia decididos a denunciar esta atitude do arcebispo e propor ao governo um apoio mais ecumênico e mais laical.

3. O encontro em São Pedro Icuyamandu Para mim, a festa estava encerrada. Voltávamos ao Brasil no sábado pela madrugada. Aí recebemos um convite do presidente para irmos com ele a uma celebração em São Pedro Icuyamandu, onde ele foi bispo e onde um primeiro ato de seu governo seria encontrar-se com a massa de lavradores acampados ali perto, exigindo reforma agrária. Dom Tomás não pôde ficar porque tinha Romaria da Terra em Minas Gerais. São Pedro é uma cidade pequena – 10 mil habitantes – ao norte do país. Construções velhas e desgastadas e quase nenhuma estrada asfaltada. Poeira e pobreza. Tudo começou por um café da manhã, no qual fiquei ao lado do presidente Hugo Chávez, que me reconheceu (estive em Caracas duas vezes) e me pediu que escrevesse um livro sobre Teologia e Espiritualidade Bolivariana. Promete até fazer o prefácio do livro, se eu o escrever. E falamos de um possível encontro de teologia que ele quer convocar em Caracas. A missa lá em San Pedro foi melhor do que a cerimônia de Assunção ontem. Depois da missa, houve um comício na praça. Ali os presidentes assinaram uma série de convênios e protocolos entre Venezuela e Paraguai. Para mim, os mais importantes foram o convênio que se propõe a acabar com o analfabetismo no Paraguai (em dois anos), como foi feito na Venezuela. Também gostei dos acordos para assistência à agricultura familiar e à agroecologia. Alem disso, um acordo sobre a implantação no Paraguai da Telesur, para nos dar notícias mais verdadeiras e a partir do que está acontecendo com os mais pobres da América Latina. 4. Conclusões Agora, volto ao Brasil e mando ao presidente Lugo minha crítica à relação quase exclusiva do seu governo com a Igreja Católica. Volto muito confiante no futuro deste novo processo político no Paraguai. Esperamos que o poder não lhe suba à cabeça e ele não se torne apenas mais um dócil gerente das transnacionais no país e do interesse dos bancos internacionais. Certamente, dentro de poucos dias, a imprensa nacional e internacional vai desencadear uma guerra sem trégua a Fernando Lugo, como faz com todos os presidentes progressistas e populares do continente. Quem não governa para os ricos é chamado de ditador e caudilho, mesmo se se submete a eleições democráticas e respeita as oposições do país. No Paraguai, esta imprensa não poderá ridicularizar o presidente porque ele fala errado ou porque usa imagens no estilo dos peões da indústria. O Lula do Paraguai é filósofo e teólogo. Lá, a imprensa terá de disfarçar mais o seu racismo e o seu ódio a qualquer pessoa que queira transformar as velhas instituições do país, para que não sirvam apenas aos privilegiados de sempre. No Paraguai ainda não existe a revista Veja, nem a revista “QuantoÉ”. Também, naquele país, parece que governo e grupos econômicos dos Estados Unidos ainda não acharam necessário pagar reportagens mentirosas para destruir governantes locais. Mas, quem sabe, em breve começarão. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais: Dom Helder Câmara, Profeta para o nosso Tempo. Ed. Rede da Paz, 2006.


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O exemplo dos vizinhos DITADURA MILITAR Em relação à punição de torturadores, o Brasil está muito aquém de países latinoamericanos que passaram por ditaduras

ENQUANTO NO Brasil a reabertura da discussão sobre a possível punição de torturadores responsáveis por crimes durante a ditadura militar causa divergências dentro do governo federal e reações violentas dos militares, alguns dos países vizinhos vem dando o exemplo de que crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis e devem ser punidos. Argentina, Chile e Uruguai estão colocando na cadeia agentes do Estado responsáveis por mortes, seqüestros e tortura. O Brasil, que foi responsável por exportar técnicas de tortura para demais ditaduras latino-americanas, não conseguiu responsabilizar agentes do Estado nem na área cível, quanto mais penalmente. De acordo com o juiz espanhol Garzón, conhecido por ordenar a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet, em 1998, em Londres – Inglaterra, crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes públicos durante a ditadura são de “impossível prescrição” e nesses casos a anistia não é passível de aplicação. Garzón disse estar de acordo com a doutrina da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que prevê que as leis de anistia não podem impedir a investigação de crimes contra a humanidade.

Anulação de leis

Um dos exemplos dados pelo juiz espanhol é o da Argentina. Garzón, que esteve no Brasil para participar de eventos da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), elogiou a revogação das leis Obediência Devida e Ponto Final, em 2001, que impediam a punição dos crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado argentino. Com a anulação dessas leis, ratificada em 2005 pela Corte Suprema, cerca de 2,5 mil militares tornaram-se passíveis de serem julgados por violações aos direitos humanos e assassinatos de aproximadamente 30 mil civis.

“Eu me incluo entre os que consideram que uma lei de anistia local não pode impedir a investigação de crimes contra a humanidade”, diz o juiz espanhol Baltasar Garzón Uma comissão independente comprovou 11 mil casos, revelando os métodos usados na tortura. A lei de Obediência Devida perdoava os militares que cumpriam ordens ao participar da repressão e a lei do Ponto Final proibia a Justiça de aceitar novas denúncias de violações. Tais leis foram aprovadas sob pressão durante o governo do presidente Raúl Alfonsin. Desde a revogação, torturadores e comandantes militares têm sido julgados e condenados. Durante o mandato do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-07), a Justiça reabriu vários processos. Até o fim do ano passado, 263 militares e policiais foram presos ou processados pelos crimes cometidos durante a ditadura. Em outubro do ano passado, um tribunal argentino condenou à prisão perpétua o ex-capelão da igreja católica, Christian Von Wernich, acusado de “crimes de lesa-humanidade, por genocídio” durante a dita-

dura. Entre os julgados, também estão incluídos os ex-ditadores Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone, ambos em prisão domiciliar.

Prisão perpétua Recentemente, a Justiça também condenou o general Luciano Benjamin Menéndez, ex-comandante do 3º Corpo de Exército, à prisão perpétua pelas torturas e mortes de quatro pessoas no campo de extermínio La Perla, durante o regime militar de 1976-83. Outros sete repressores também foram condenados a penas de 18 anos até prisão perpétua, por delitos similares aos de Menéndez. Eles também irão para prisões comuns. No Peru, a lei de anistia também foi abolida por sen-

De acordo com estudo, em países que passaram pela transição democrática sem que houvesse punição aos crimes praticados durante a ditadura, a sensação de impunidade e o desrespeito aos direitos humanos é maior tença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Barrios Altos, referente à morte de 15 pessoas por um esquadrão da morte ligado ao Exército peruano, em 1991, crime pelo qual o ex-ditador Alberto Fujimori (1990-2000) está sendo investigado. A sentença da corte considerou o Estado peruano responsável pela violação do direito à vida e à integridade pessoal derivada do massacre, assim como por haver anistiado tais delitos. De acordo com Garzón, o caso é um exemplo no âmbito internacional. “O Tribunal Europeu de Direitos Humanos diz que esses crimes não são prescritivos. Portanto, nesse sentido, eu me incluo entre os que consideram que uma lei de anistia local não pode impedir a investigação de crimes contra a humanidade”, disse.

Ocultação de cadáveres O juiz espanhol lembrou que um dos argumentos utilizados para não se mexer nas leis de anistia é a possível fragilidade do sistema democrático. “[Mas] uma autêntica democracia tem que se arriscar para construir o futuro.” Garzon disse também que a ocultação de cadáveres de exmilitantes de esquerda é um crime continuado, que deve ser punido. Além disso, Garzón defendeu a universalização dos direitos humanos, e afirmou que os crimes contra esses são universais. Assim, todos os Estados têm direito de investigá-los, e, se for o caso, pren-

der seus autores. “As vítimas do Brasil não são só brasileiras. Assim, o Estado espanhol tem tanto direito de punir os seus autores quanto o Estado brasileiro”, disse. O atraso do Brasil em rever sua lei de anistia foi apontado por Kathryn Sikkink, pesquisadora de Ciências Políticas da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. Em recente visita ao Brasil, disse:“Esse processo vem se acelerando nos últimos dez anos”, referindo-se a países como Uruguai, Chile e Argentina, que revisaram a lei de anistia e puniram alguns responsáveis por violações aos direitos humanos. Kathryn explicou que, apesar de também haver lei de anistia em outros países da América Latina, eles encontraram formas de driblar a lei. “A lei de anistia não é intocável, como se mostra aqui”. De acordo com um estudo feito por ela, no qual analisou 100 países que passaram pela transição democrática, naqueles onde houve punição para os atos cometidos contra os direitos humanos, o grau de violência policial é menor. Já nos que não houve punição dos crimes praticados durante a ditadura, a sensação de impunidade e o desrespeito aos direitos humanos é maior.

Comissões de verdade Um outro aspecto importante, em relação às ditaduras latino-americanas, e que não aconteceu no Brasil, é que durante o período de transição para a democracia, países como Uruguai, Peru, Argentina e Chile criaram comissões oficiais de verdade. Para emitir a ordem de prisão ao ex-presidente Augusto Pinochet, pela morte e tortura de cidadãos espanhóis, Garzón utilizou o relatório da Comissão Chilena da Verdade, que funcionou de 1990 a 1991. A ditadura militar no Chile durou 17 anos, de 11 de setembro de 1973 a 1990. Oficialmente deixou 3.197 mortos, entre eles, 1.192 desaparecidos, de acordo com Relatório Rettig, divulgado em 1991 pela Comissão de Verdade, Justiça e Reconciliação. Apesar de inúmeras tentativas de processar o ditador Augusto Pinochet, o general só foi preso quando o juiz espanhol Baltasar Garzón abriu um processo contra ele pelos crimes de genocídio, terrorismo e tortura. Pinochet foi preso em Londres, onde permaneceu 503 dias em prisão domiciliar. Morreu em 2006 e foi sepultado sem honras de Estado. Em março deste ano, 24 oficiais e suboficiais da polícia política da ditadura de Augusto Pinochet foram condenados por crimes de seqüestro, homicídio e tortura de 31 militantes de esquerda, opositores à ditadura de Pinochet. Em maio, 98 ex-agentes da ditadura de Pinochet foram presos por violações aos direitos humanos.

Na Bolívia, ditador está preso, mas arquivos permanecem fechados Igor Ojeda Correspondente do Brasil de Fato em La Paz, Bolívia Em abril de 1993, Luis García Mesa foi sentenciado a 30 anos de prisão sem direito a indulto. Entre 1980 e 1981, durante 13 meses, ele comandou uma das ditaduras mais sangrentas da história da Bolívia. Por isso, foi condenado por, entre outras coisas, genocídio, massacre sangrento, formação de quadrilha, alçamento armado, organização de grupos irregulares, resoluções contrárias à Constituição e às leis, privação de liberdades, atentados contra a liberdade de imprensa, obtenção de vantagens para a importação de veículos e violação à autonomia universitária. Atualmente, García Mesa

Para Garzón, leis de anistia não podem impedir investigações

Atualmente, García Mesa está na prisão de segurança máxima de Chonchocoro, a 38 km de La Paz. Seu então ministro do Interior, Luis Arce Gómez, acaba de cumprir pena nos EUA por narcotráfico está na prisão de segurança máxima de Chonchocoro, a 38 km de La Paz. Seu então ministro do Interior, Luis Arce Gómez, acaba de cum-

Só falta o Brasil da Redação

Fabio Pozzebom/ABr

Tatiana Merlino da Redação

“Por que nossos vizinhos conseguem mover execuções penais contra os crimes de Estado e nós não?” A pergunta foi feita pelo procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, durante o painel “Crimes da Ditadura: ainda é jurídico punir?”, realizado em São Paulo. Weichert defende a tese de que os crimes praticados durante a ditadura militar são de lesa-humanidade, e por isso devem ser punidos. Marlon acredita que, se o Brasil não punir os torturadores, pode ser punido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois, para a convenção, não há prazo para punir crimes contra lesa-humanidade. “Se o Brasil não fizer sua lição de casa, poderá passar pela situação vexaminosa de ser punido pela corte”. Weichert acredita que logo, logo mais juízes irão decretar a prisão de brasileiros, em referência à juíza italiana Luisanna Figliolia, do tribunal de Roma, que decretou a prisão de 13 brasileiros por cri-

prir pena nos EUA por narcotráfico – a gestão do exditador é conhecida como o governo do narcotráfico –, e os trâmites para que ele seja enviado à Bolívia, onde ficará na mesma prisão, já foram iniciados. No entanto, os fantasmas das ditaduras bolivianas (1964-1982) permanecem. Um dos motivos é que os arquivos da época ainda não foram abertos, uma demanda das famílias de desaparecidos e das organizações de direitos humanos do país. Em junho, a justiça de La Paz emitiu uma ordem judicial obrigando as Forças Armadas a realizar tal procedimento. No entanto, seus advogados solicitaram a correção da sentença, já que o documento deveria ser dirigido ao Comando Geral do Exército, e não ao comandante-chefe da instituição.

mes contra cidadãos italianos mortos na Operação Condor. “Será uma desmoralização para um país que almeja ser identificado como líder regional”, criticou. Weichert é autor, juntamente com a também procuradora da República de São Paulo Eugênia Fávero, de uma civil pública contra os comandantes do DOI-Codi coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel. A opinião de Weichert é compartilhada pelo perito da ONU, Jean Ziegler, que acredita que é hora do Brasil “lidar com seu passado”. “Está mais do que na hora de o Brasil enfrentar esse assunto de anistia. Não por vingança contra os militares, mas porque o Brasil é praticamente o único grande país latino-americano que não tratou do assunto”, disse. Tais declarações, no entanto, parecem ser ignoradas pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, que disse que a abertura dos arquivos da ditadura em países da América Latina “não é a melhor [solução], tanto é que eles não produziram estabilidade institucional. Ao contrário, têm produzido ao longo dos tempos bastante instabilidade”. (TM)


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internacional

Com a derrota da Geórgia, cai o controle dos EUA no Cáucaso GUERRA Ao contrário da impressão que ficou, o ataque partiu da Geórgia e não da Rússia, e teve início a um mês das Olimpíadas U.S.Defense Dept.

Achille Lollo Entre os dias 6 e 12 de agosto, TV Globo, SBT, Record e Bandeirantes prestaram um valioso serviço ao Departamento de Estado dos Estados Unidos, ao veicular em seus noticiários as manipulações da CNN e da Fox, que falsearam a realidade ao dizer que a Geórgia – colônia estadunidense no Cáucaso – havia sido atacada pela Rússia. Na verdade, foi o presidente georgiano, Mikhail Saakashvili, que lançou um sangüinário ataque para reconquistar Tskhinvali, capital da região rebelde Ossétia do Sul.

Sabotagens A guerra relâmpago entre Geórgia e Rússia não eclodiu por acaso. A Geórgia, a mando dos EUA, pretendia, por um lado, esgotar a Rússia em uma guerra de fronteira e, por outro, reconquistar as duas províncias rebeldes, Ossétia do Sul e Abkhazia – que desde 1992 se autoproclamaram independentes mantendo estreitas relações com a Rússia. O ataque da Geórgia teve início na última semana de junho, quando o presidente da Ossétia do Sul, Eduard Kokoity, denunciou aos peace keepers russos, encarregados da manutenção da paz pela ONU, as infiltrações de tropas especiais georgianas nos arredores da capital rebelde Tskhinvali – operação igual a que se realizava também ao longo da fronteira da Abkhazia. No dia 14 de julho, em várias províncias da Ossétia do Sul, houve sabotagens e mortíferas explosões. No dia 15, o Exército da Geórgia e seus assessores estadunidenses realizaram, ao longo da fronteira da Ossétia do Sul, (que fica a 100 km da fronteira com a Rússia), as manobras militares “Immediate Response 2008” (algo como resposta imediata 2008). As mesmas que o embaixador estadunidense na Geórgia, Matthew Bryza, enfatizou nos canais da CNN e da Reuters, revelando a participação de mil soldados estadunidenses – entre pára-quedistas, marines e unidades da Guarda Nacional – além de destacamentos de tropas especiais da Ucrânia, Azerbaijão e Armênia, cujos governos são monitorados política, econômica e militarmente pelos EUA desde os tempos de Clinton.

A certeza de que a Rússia não se atreveria a atacar um “aliado de Bush” generalizou a sanha assassina dos soldados georgianos, que priorizaram as operações de saque e de limpeza étnica Homens do Pentágono No dia 16 de julho, o governo georgiano aprovou o aumento de 26,8% do orçamento das Forças Armadas e a criação de mais uma divisão de tropas especiais, com 5 mil homens treinados pelos homens do Pentágono. No dia 30 de julho, foram mobilizados 100 mil reservistas que ficaram de prontidão à espera de um “ataque surpresa da Rússia”. No dia 4 de agosto, os “comandos” georgianos iniciaram a limpeza étnica em vá-

O primeiro ministro russo, Wladimir Putin, e a secretária do Departamento de Estado dos EUA: disputa geopolítica no Cáucaso

rias aldeias da Ossétia do Sul, alvejando, sobretudo, homens e crianças. Milhares de camponeses fugiram em direção à capital Tskhinvali, o que fez com que o Comitê de Crise da Comissão Européia logo informasse as chancelarias da União Européia afirmando que:“Na prática, temos a plena certeza de que os serviços secretos da Geórgia estão por trás das provocações contra habitantes da Abkhazia e da Ossétia do Sul”. No dia 5 de agosto, o presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili, passou toda a tarde em videoconferências com a secretária do Departamento de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, e com Jaap de Hoop Scheffer, secretário-geral da OTAN.

O ataque Na madrugada do dia 6 de agosto, oito caças-bombardeiros da Geórgia começaram a bombardear a capital rebelde Tskhinvali. A seguir, as unidades de artilharias, com 70 canhões de 130 mm e 30 lança-foguetes, martelaram bairro após bairro de Tskhinvali, enquanto 20 mil soldados da infantaria, com o apoio de 50 helicópteros, operavam um cerco mortal, fechando nos escombros da capital metade de seus moradores. Segundo as primeiras estimativas dos observadores da ONU, cerca de 2 mil moradores de Tskhinvali morreram vítimas dos bombardeios ou foram executados durante a limpeza étnica. Diante desse massacre, o presidente da Rússia, Dmitrij Medvedev, já pediu que o Tribunal Internacional de Haia investigue e processe o presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili, por genocídio e limpeza étnica em Tskhinvali. Capacetes azuis Os correspondentes da TV Aljazira contam que os primeiros alvos dos caças georgianos foram os quartéis dos capacetes azuis da ONU, onde residiam 1.600 peace keepers russos e o Centro de Imprensa. Conseqüentemente, 10 oficias russos morreram e outros 150 ficaram gravemente feridos. Entre os jornalistas, 10 ficaram feridos e quatro foram atingidos mortalmente, entre eles o operador de TV da RTL holandesa, Stan Storimans. A certeza de que a Rússia não se atreveria a atacar um “aliado de Bush” generalizou a sanha assassina dos soldados georgianos, que priorizaram as operações de saque e de limpeza étnica em Tskhinvali, Kutaysi e Sakeni. Por isso, a missão de criar uma linha de defesa anti-tanques em todo o corredor rodoviário de Rokir – onde passa a única auto-estrada que vai até a fronteira russa – não foi cumprida. Um erro pelo qualo Exército da Geórgia pagou um preço caro.

A Rússia contra-ataca Quando o primeiro-ministro russo, Vladimir Putin – que estava em Pequim, assistindo aos Jogos Olímpicos – e o presidente Dmitrij Medvedev – que gozava férias de verão – receberam o informe do ataque traiçoeiro da Geórgia, não tiveram nenhuma dúvida em mobilizar o Exército para dar uma lição em Mikhail Saakashvili e ao próprio George W. Bush.

Os correspondentes da TV Aljazira contam que os primeiros alvos dos caças georgianos foram os quartéis dos capacetes azuis da ONU, onde residiam 1.600 peace keepers russos e o Centro de Imprensa Em 24 horas, a 58ª divisão de infantaria motorizada, com a devida cobertura aérea, penetrava na Ossétia do Sul, reduzindo a cinzas os poucos destacamentos georgianos que patrulhavam o corredor de Rokir. Em seguida, os tanques russos atacaram os destacamentos georgianos que haviam ocupado Tskhinvali. Ao mesmo tempo em que a Marinha russa atacava o porto de Poti, no Mar Negro, outra divisão ocupava as regiões de Bas Kvaptchara e Kodori, empurrando o que sobrava do Exército georgiano para fora das regiões da Abkhazia. Libertada Tskhinvali, a ofensiva russa parou a 1 km da cidade de Gori e a 30 km da capital Tbilisi, sem deixar de bombardear várias vezes a grande base militar de Vazani. No dia 10 de agosto, o Exército da Geórgia entrou em colapso. Soldados e oficiais desertaram as posições, abandonaram os equipamentos e fugiram em direção à capital Tbilisi. Diante desse desastre, o presidente Mikhail Saakashvili pediu desesperadamente aos países europeus da OTAN e, sobretudo, aos EUA para que interviessem militarmente contra a Rússia, para que lançassem uma contra-ofensiva. Ninguém, no Ocidente, acreditou mais no falastrão Saakashvili. Achille Lollo é jornalista italiano. Diretor do filme América Latina: Desenvolvimento ou Mercado?, também em DVD, em www.portalpopular.org.br.

O fracasso dos Estados Unidos Bush e os falcões do Pentágono pensaram duas vezes em atender ao pedido do presidente Saakashvili, visto que CNN e FOX não conseguiram impedir que as imagens e os relatos dos massacres praticados pelas tropas georgianas em Tskhinvali chegassem às televisões e aos computadores dos eleitores estadunidenses e europeus. Por outro lado, os russos não cometeram o erro de atacar a capital Tbilisi e a cidade de Gori, por onde passa o “corredor energético BTC” (o oleoduto BakuTbilisi-Ceyhan, que liga o Cáspio ao Mediterrâneo) . Neste contexto, o presidente dos EUA tentou levantar a voz, ameaçando a Rússia com retaliações nas relações bilaterais, tentando, assim, ganhar com a diplomacia do Departamento de Estado o que o Pentágono, a CIA e a OTAN haviam perdido com a guerra. Os resultados foram miseráveis, e Condoleezza Rice teve que sair de cena para que

entrasse em campo o presidente francês Sarkozy, que, em nome da União Européia, definiu um cessar-fogo com o primeiro-ministro da Rússia, Vladimir Putin. O documento, além de oficializar uma maior presença dissuasória do Exército russo para proteger as populações da Abkhazia e da Ossétia do Sul, legitimava o status quo das duas províncias separatistas. Diante da iniciativa de Sarkozy e do posicionamento da maioria dos países europeus, o presidente georgiano teve que assinar o cessar-fogo que, na realidade, minimiza os sonhos de grandeza da Geórgia, bem como as projeções geoestratégicas de seu “aliado estadunidense”.

Rússia e China Outro elemento da derrota política dos EUA foi a incapacidade de inviabilizar com esta guerra o estreitamento das relações políticas, econômicas e estratégicas entre a Rús-

sia e a China. De fato, o regime chinês logo manifestou sua solidariedade ao primeiro-ministro russo Putin. No campo geoestratégico, a derrota foi mais profunda por evidenciar o cinismo dos EUA, que utilizaram a Geórgia em uma guerra-relâmpago mal planejada e pessimamente monitorada. Além disso, a derrota militar sofrida pela Geórgia demonstra a incapacidade do Departamento de Estado dos EUA de resolver os conflitos separatistas que afligem todos os países do Cáucaso aliados dos EUA, nomeadamente Uzbequistão, Armênia, Azerbaijão e Quirguistão. O único resultado positivo para os EUA foi a decisão da Polônia de aceitar a instalação do escudo antimísseis, aumentando, no seio da OTAN, o grupo de países profundamente anti-russos (Estados Unidos, Grã Bretanha, Ucrânia, Estônia, Letônia e Lituânia). (AL)

Geórgia e o corredor energético das transnacionais Em 2005, o presidente George W. Bush, ao visitar Tbilisi, capital da Geórgia, enalteceu seu homólogo georgiano ao dizer: “Hoje, a Geórgia é um farol da liberdade para toda a região do Cáucaso”. Na verdade, esse charme verbal foi utilizado por Bush para mascarar o contexto político-econômico da Geórgia, inteiramente norteado pelo Departamento de Estado e pelo Pentágono, enquanto uma centena de ONGs (controladas pela CIA) têm monitorado as instituições e os processos eleitorais daquele país. A presença massiva dos EUA na Geórgia começou logo após a queda do Muro de Berlim, quando as transnacionais compraram o direito de explorar os imensos reser-

vatórios off-shore de hidrocarbonetos no Mar Cáspio e no interior do Azerbaijão. Porém, em 1997, para escoar o petróleo e o gás em direção ao porto turco de Cayhan – considerado o único porto estrategicamente seguro para os EUA e os países da União Européia –, foi planejado construir o corredor energético-BTC, de 1.800 km. O BTC se inicia no porto petrolífero de Baku, no Azerbaijão, cruza 249 km da Geórgia e depois entra na Turquia até o porto de Ceyhan. Em 1999, o consórcio formado pelas transnacionais British Petroleum (30%); Chevron (8,90%); Staoil (8,71%); ENI (5,00%); Total (5,00%); TPAO (6,53%); Itochu (3,40%); INPEX (2,50%);

Conoco-Phillips (2,50%); Amerada Hess (2,36%) e AzBTC (2,50%) começaram a explorar o corredor com a implantação de oleodutos e gasodutos. O problema do BTC é que 55 km do corredor passam pela Ossétia do Sul, que reclama sua independência desde 1992, querendo se unificar à República da Ossétia do Norte, associada à Rússia. Para defender o corredor e os interesses das transnacionais, em 2002, os EUA criaram o “Georgia Train and Equio Program”, que na realidade foi um programa para militarizar a Geórgia e com o objetivo deste país ser o “guardião” do corredor energético do BTC e, sobretudo, do Cáucaso. (AL)


12 de 21 a 27 de agosto de 2008

cultura José Cruz-ABr

Fim de partida na cultura. Ou não? ENTREVISTA “Politicamente, os tropicalistas venceram o jogo. Sua posição política se casa perfeitamente com o desprezo pela política da cultura” Danilo Dara da Redação “POLITICAMENTE, OS tropicalistas venceram o jogo. Sua posição política se casa perfeitamente com o desprezo pela política da cultura contemporânea”. Eis uma das afirmações de Francisco Alambert, professor de História Social da Arte da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista ao Brasil de Fato. Ao fazer uma análise da gestão Gilberto Gil frente o Ministério da Cultura (MinC), a perpassa por uma crítica mais profunda à cultura no mundo contemporâneo, o qual a teria transformado em simples “gestão de acontecimentos e balancetes”. Ou seja: em meio ao colapso geral da modernização capitalista e das próprias tentativas de construção de projetos emancipatórios – projetos nacionais incluídos, que talvez nesse contexto não fizessem mais sentido –, uma série de questões políticas e culturais relevantes não seriam sequer tematizadas hoje pelas artes, totalmente impregnadas pela lógica financeira triunfal. Situada nesse cenário, a gestão do cantor-ministro é ainda sim elogiada por Alambert, devido a uma série de medidas positivas, mesmo que pontuais. Medidas até surpreendentes frente ao histórico recente do país e à expectativa inicial quanto aos rumos do Ministério comandado pelo tropicalista. Méritos, segundo ele, mais da equipe montada por Gil, dentre cujos acertos o crítico destaca: a coragem verificada na proposta inicial da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav); a crítica à propriedade intelectual e seu caráter concentrador; os discursos contra a Lei Rouanet de Incentivos Fiscais à Cultura; e a iniciativa dos Pontos de Cultura. Entretanto, ao não conseguir tocar no cerne da questão cultural – que é justamente o financiamento público terceirizado aos departamentos de marketing de grandes empresas privadas pelas chamadas “leis de incentivo” (como a Rouanet) –, o sentido profundo do governo e de sua gestão cultural é marcado mais pela continuidade do reinado da mercadoria do que pela prometida mudança. De modo que, se o governo tucano era o mundo ideal para tropicalistas como Gil, “na medida em que o governo Lula seguiu os passos do predecessor e abriu mão da idéia de transformação pela idéia de ‘adaPTação’ ao mundo contemporâneo tal qual ele se vende, [os tropicalistas] puderam migrar para ele também, sem precisar ir para a ‘esquerda’, que é a coisa que eles mais abominam”. E a cultura permanece, assim, politicamente rebaixada.

O poder da TV privada no Brasil é o fato cultural mais importante dos últimos 40 anos. A maneira com que ela determina o jogo do real (inclusive definindo o que seja a “realidade”), agindo na cultura, na política, no entretenimento, nos valores, na idéia de beleza etc., tomou uma dimensão “fantástica” Brasil de Fato – Antes de tratarmos mais especificamente da gestão Gilberto Gil, uma questão que precede. Nos últimos anos, observa-se a presença de administradores, em ministérios e secretarias de cultura, com ao menos uma característica em comum: o trânsito entre governos de diferentes partidos políticos. São exemplos atuais disso Carlos Augusto Calil (Secretaria da Cultura do Município de São Paulo), João Sayad (Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo) e o próprio Gil, antigo

apoiador de FHC, que ficou durante cinco anos e meio à frente do Ministério da Cultura no governo Lula. Antes já tivéramos o exemplo pioneiro de Francisco Weffort, expetista no MinC do governo tucano. A cultura converteuse definitivamente em questão supra-partidária para técnicosgestores ou são tais partidos políticos que cada vez se distinguem menos? Francisco Alambert – Essa questão é muito pertinente. Acho que a melhor resposta é dizer sim para as duas coisas: em tempos neoliberais, cultura é gestão de acontecimentos e balancetes, e os partidos se igualam de tal forma que, nessa área “menor”, suas semelhanças de projeto (que significa: não ter projeto de país nenhum) ficam mais claras. Isso dito, ressalto que Calil é um ótimo intelectual-gestor; Sayad não se coloca dentro de partido algum, e parece gostar de trabalhar em governos, além de também parecer gostar de gerir a área cultural. Weffort foi “usado” por FHC como propaganda antipetista. Ele ficava lá, sem fazer quase nada e sem dinheiro, só para dizer que todo mundo devia aderir. Foi um papel melancólico. Acho que Gil teria o mesmo destino, mas o MinC conseguiu definir um rosto dentro do Estado petista (preocupado em agradar bancos e dar esmolas a pobres) ao delegar a gestão a uma boa equipe. Ainda sobre esse pacto: já estaria sendo praticado, na esfera (financeirizada) da cultura – à semelhança da área econômica –, a sonhada grande aliança nacional entre tucanos e petistas? Ou há nuances significativas? A aliança ocorre por afinidade entre despreparo, covardia e oportunismo. Na área cultural, a financeirização se revela de modo muito peculiar no culto à Lei Rouanet e na sua capacidade de criar mais privilégios para os privilegiados, que descontam do tesouro público o dinheiro que investem em marketing. Creio que a idéia de que “não há nada a se fazer quando não se tem dinheiro” é também uma boa desculpa para a falta de um projeto nacional para a cultura (inclusive porque projeto nacional é tudo que a área econômica não quer também). A principal diferença acontece quando um projeto mais ou menos “popular”, como os Pontos de Cultura, da gestão Gil, aparecem. Mas eles também têm seu limite e sua ligação com a despolitização contemporânea, na medida em que esse projeto é, se não me engano, uma mimese [imitação] das ações de certas ONGs. Aproveitando a deixa: qual seu balanço da gestão Gil frente o MinC nesses últimos cinco anos e meio? Fui dos que acreditaram que o MinC dirigido por um cantor nãopetista só poderia dar em piada. No final, mesmo sendo muito crítico ao governo como um todo, sou obrigado a admitir que não aconteceu isso. Acho até que o MinC foi das melhores (ou menos piores) coisas do governo. Fiquei muito impressionado com a coragem do projeto da Ancinav, que, por ser certeiro contra o domínio de grupos poderosos do audiovisual, foi dinamitado. Mas foi uma derrota gloriosa. Teve a particularidade de trazer à tona a pusilanimidade de gente como Cacá Diegues e Arnaldo Jabor e fez com que ficasse claro, para os pós-modernos inclusive, que a força da Globo não é uma “ficção”. Vejo como pontos positivos a crítica à Lei Rouanet, vinda do próprio Ministério, as posições progressistas de Gil e sua equipe quanto a questões referentes à “propriedade intelectual” e o projeto e a atuação dos Pontos de Cultura. Entre os pontos negativos, o mais grave me pareceu o que resultou na aprovação da TV Digital da maneira como aconteceu. Até onde sei, o Ministério levou jovens ativos e inteligentes a uma área dominada pelos feudos locais, por madames, “empresários da cultura” etc. Como a recém-finada gestão de Gil e a perspectiva políticocultural do governo Lula se situam em relação ao recente histórico do Ministério e às últimas gestões presidenciais?

Também nisso foi um avanço. Se vários outros ministros foram, como Gil, apenas rainhas da Inglaterra, no caso presente, a equipe reunida e bem escolhida permitiu vários avanços. É claro que, perto da tragédia dos oito anos do reinado de Weffort, qualquer coisa seria louvável. Mas acho que os motivos ditos acima mostram as diferenças. Eu mesmo participei de uma reunião convocada pelo Ministério com vários artistas e intelectuais de São Paulo e do Sul (o mesmo foi feito no Rio, em Brasília, em Salvador); eles ouviram críticas e sugestões. Parece bobagem, mas é algo que nunca tinha sido feito, abertamente, desse jeito. Falando do crucial: há alguma chance da Lei Rouanet ser revertida na nova gestão de Juca Ferreira, como pleiteiam coletivos como o “Arte contra a Barbárie” e o próprio ministro voltou a prometer quando assumiu? Como todos dizem, eu também acho que o Juca Ferreira sempre foi o ministro de verdade. Por isso, também, é difícil imaginar que os interesses que cercam a permanência desse tipo de “incentivo” mudem só porque mudou o ministro. Acho que eles têm uma clareza surpreendente do que essa lei representa em termos de concentração de recursos para os poderosos, de elemento para a alegria dos departamentos de marketing das empresas etc. Mas, cada vez mais, o governo é sócio desses mesmos interesses, daí que não será o desimportante MinC que irá mudar isso. A Lei só mudaria se houvesse, em nível nacional, o que ocorreu em São Paulo com o “Arte contra a Barbárie”: uma movimentação de “classe” muito forte, que desse sustentação às mudanças. Talvez o problema mais grave desse Ministério seja justamente sua incapacidade de organizar publicamente os agentes de cultura.

Enquanto se acreditar que a história acabou, os tropicalistas irão, de alegria em alegria, se tornando a cereja do bolo do Brasil “moderno” e luxuosamente conservador E no que tange à TV brasileira, duas medidas importantes foram tomadas nos últimos anos pelo governo: a opção pelo “padrão japonês” de transmissão digital e a recente criação da TV Pública (TV Brasil). Como você analisa esses dois processos? O poder da TV privada no Brasil é o fato cultural mais importante dos últimos 40 anos. A maneira com que ela determina o jogo do real (inclusive definindo o que seja a “realidade”), agindo na cultura, na política, no entretenimento, nos valores, na idéia de beleza etc., tomou uma dimensão “fantástica”. Um governo de conciliação não mudará isso de modo nenhum. Os otimistas achavam que a TV digital iria ajudar a distribuir esse poder soberano. Já vimos que não. Perdeu-se uma chance fabulosa de se fazer um projeto tecnológico de patente nacional (e havia condições para isso). Adotou-se o tal “padrão” japonês e os tais “conversores” são o que são, ou seja, nada além de caríssimos. Ao invés de se criar novos canais, abriu-se a possibilidade de se leiloar ainda mais espaço para as empresas tradicionais. E juram que o fato de que podemos “interagir” com o comércio eletrônico ou com o payper-view é uma revolução! Do lado do governo, se criou uma coletânea de TVs educativas que é só um ponto a mais no oceano (e na verdade ninguém sabe ao certo a que veio). O que é realmente relevante, e revelador, é o fato consumado de que o assunto se discute no Ministério das Comunicações, de Hélio Costa (a cara da Globo) e não nos Ministérios da Cultura e da Educação.

Alambert vê medidas positivas na gestão do ministro-cantor Gilberto Gil

Dito isso, acho importantíssimo trazer à luz a discussão sobre termos uma TV Pública forte. Mas os ministérios da economia deixam? Por outro lado, a TV no Brasil já é pública, é uma concessão pública. Nesse caso, como em outros tantos, o ato revolucionário seria fazer valer a Lei e agir contra as empresas de comunicação que não se orientam em sentido público, cultural e democrático. Ainda sobre esse tema, como você tem observado o impressionante crescimento da TV Record e do grupo políticoreligioso que a dirige, em todas as esferas por onde penetram: das igrejas nas periferias aos altos cargos no governo federal? A pragmática neopentecostal é uma das faces mais expressivas da cultura do mundo neoliberal e ultraconservador que vivemos. Eu não me empolgo com o fato de que a TV Record tira audiência da Globo ou coisa assim. Para quem está à esquerda, isso é indiferente. O que é importante é o quanto eles são desmobilizadores, além de exploradores, dos pobres. E nisso não se diferenciam muito do resto da política “real” tal como é praticada agora. Por isso, os neopentecostais são tão “plásticos” e maleáveis em suas associações com bancos, com os governos etc. Ao sair do Ministério, Gil ofereceu a Lula, como jinglemarca para todo governo, sua música Refazenda (1975). “Esse governo significa uma refazenda extraordinária para o país. O presidente me relatava há pouco o avanço da agricultura familiar com os biocombustíveis”, dizia o cantor-ex-ministro. Já em Refavela (1977), composta por ele depois de uma viagem à África, o cantor propunha outra imagem para nosso afro-país: “A refavela / Revela o choque / Entre a favela-inferno e o céu / (...) A refavela / Alegoria / Elegia, alegria e dor / Rico brinquedo / De samba-enredo / Sobre medo, segredo e amor”. Qual das duas imagens você acha mais sugestiva para o atual momento do Brasil? Evidentemente, o artista está muito acima do político (o que não é raro). Acho que a declaração do ex-ministro e a bela e utópica letra da canção demonstram apenas uma grande verdade: é mesmo melhor que ele saia cantando do que falando. Em breves linhas, de que maneira você acha que o tropicalismo de Gil se manifestou, para o bem ou para o mal, durante a sua gestão? Para o bem, através da incapacidade de se colocar na frente do jogo político. O tropicalismo sempre foi politicamente centrista. Gil ficou do centro para fora e delegou as tarefas administrativas e criativas a uma boa equipe. Como marketing para o governo Lula, caiu como uma luva também. Acho que foi essa ‘mistura’ que acabou funcionando. Os tropicalistas e seu “eterno presente”, alçados ao centro do poder político-cultural nas últimas décadas, “saem do poder para sair da História”?

Politicamente, os tropicalistas venceram o jogo. Sua posição política se casa perfeitamente com o desprezo pela política da cultura contemporânea. O governo do PSDB era ideal para eles. Na medida em que o governo Lula seguiu os passos do predecessor e abriu mão da idéia de transformação pela idéia de “adaPTação” ao mundo contemporâneo tal qual ele se vende, os tropicalistas puderam migrar para ele também, sem precisar ir para a “esquerda”, que é a coisa que eles mais abominam. Assim, enquanto se acreditar que a história acabou e que o Brasil irá se tornar uma enorme nação sem que se mexa em quase nada do que até hoje fez dele uma nação grotesca, os tropicalistas irão, de alegria em alegria, se tornando a cereja do bolo do Brasil “moderno” e luxuosamente conservador. Para concluir, num texto da edição 184 do Brasil de Fato (setembro de 2006), você dizia que, contra a indústria cultural, “precisamos esquecer as fantasias tropicalistas e politizar as ações de grupo”, pensando em iniciativas semelhantes ao “Arte contra a barbárie” e aos coletivos de cultura como os existentes no MST. Houve avanços dessas iniciativas de lá para cá? Há outras iniciativas politizadoras em cena? É preciso olhar, com radicalidade e sem paternalismo, para coisas como o hip-hop, os movimentos de “renascimento” do samba nas periferias, para a ação de alguns (poucos) coletivos de artistas visuais etc. Creio que os movimentos culturais mais ricos e radicais nascerão da união dos grupos com os movimentos sociais organizados. Seja como for, essas iniciativas ainda estão em período de formação. Seus frutos estão amadurecendo. Para ser bem objetivo, hoje eu acho que seria um avanço enorme se o pessoal do teatro de grupos conseguisse, como estão tentando, levar para a esfera federal um projeto de fomento parecido com o que eles criaram na cidade de São Paulo. Seria ótimo. Seria uma lição para mostrar que há vida fora da Lei Rouanet. Também seria divertido ver Caetano Veloso, Fernanda Montenegro e Cacá Diegues gritando contra, em nome da “cultura brasileira” que eles juram defender, garantindo para si as verbas dos departamentos de marketing. Danilo Dara

Quem é Francisco Alambert formou-se historiador em 1987 pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e fez mestrado (1991) e doutorado (1998) em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), instituição da qual é professor titular desde 2003.


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