Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 288
São Paulo, de 4 a 10 de setembro de 2008
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João Carlos Generoso
CULTURA Projeto cultural apresenta samba e histórias de antigos compositores na zona leste da capital de São Paulo. A entrada é franca. Pág. 8 O presidente paraguaio Fernando Lugo denuncia, em coletiva de imprensa, uma conspiração para promover um golpe de Estado no país Patton/CC
Lugo denuncia tentativa de golpe de Estado no Paraguai
Elite pode querer trocar Álvaro Uribe “O governo de Álvaro Uribe faz parte de um processo que começa antes dele e não terminará com ele”. Com essa afirmação, o jornalista italiano Simone Bruno inicia sua análise sobre o futuro da conjuntura colombiana. Para ele, as oligarquias estudam uma forma de mudar a cúpula do poder. Pág. 10
O presidente paraguaio Fernando Lugo foi à imprensa, no dia 1º, denunciar uma conspiração para tirá-lo do poder. A informação lhe foi transmitida por meio do general Máximo Díaz, que, na véspera, havia participado de uma reunião com os ex-presidentes Nicanor Duarte e Lino Oviedo. Este teria perguntado reservadamente ao oficial “o que parecia às Forças Armadas a crise no Congresso Nacional”.
Oviedo referia-se ao impasse gerado no Senado em torno da nomeação de Duarte para assumir uma cadeira na casa. Segundo o chefe de imprensa da campanha de Lugo, Ausberto Rodrigues, a pergunta foi “sugestiva. A intenção era ouvir a afirmação do militar de que há ‘mal-estar’ e, assim, se convinha promover uma sublevação militar para ‘salvar’ a crise parlamentar”. Pág. 9 Silvio Tanaka/CC
As cadeias e o Judiciário são criticados em seminário
O Estado brasileiro no banco dos réus
O Ministério da Justiça e o Instituto Carioca de Criminologia organizaram um debate que, em linhas gerais, rejeitou as punições dadas pelo Judiciário. Uma das propostas partiu do juiz Rubens Casara, que defende o não-encarceramento para crimes sem violência. Pág. 4
Diversas entidades estão conclamando a população para participar, entre 4 e 6 de dezembro, em São Paulo, do “Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no banco dos réus”. Na ocasião, serão julgados os agentes públicos que violam sistematicamente os direitos humanos dos pobres. Pág. 5
ESPORTE
Para
Juca Kfouri, medalha olímpica faz mal ao Brasil
Pág. 8
Função social da terra é esquecida nas eleições Equador e Bolívia: novas constituições Revigorada, ATTAC chega aos dez anos Ao completar dez anos, a Associação para a Taxação das Transações para a Ajuda aos Cidadãos (ATTAC) não se restringe apenas à defesa do imposto Tobin. Realiza na Alemanha e na França as chamadas “universidades” cidadãs – encontros de formação e análise de conjuntura. Pág. 12 ISSN 1978-5134
A questão da propriedade e do uso da terra em áreas rurais e urbanas talvez seja a única que possa ser debatida em todos os municípios brasileiros. No entanto, o assunto não tem sido abordado na campanha para as eleições de outubro. O tema
abrange, por exemplo, a legalização de ocupações irregulares, por meio do mecanismo jurídico da função social, e o combate à especulação imobiliária, que encarece os imóveis e afasta os pobres dos centros das cidades. Pág. 3
Governos propõem referendos para aprovar Carta Magna Após passarem por insurreições populares no início deste século e serem governados por presidentes progressistas, Equador, de Rafael Correa, e Bolívia, de
Nina Fidelis
Outro modelo para a energia e a alimentação Durante os dias 28 e 31 de agosto, cerca de 500 mulheres de 20 organizações do campo e da cidade se reuniram em Belo Horizonte para discutir dois atuais e importantes temas: alimentação e energia. Pag. 7
Evo Morales, vivem a expectativa de aprovar uma nova Constituição. Mas, enquanto no primeiro o referendo está confirmado para o dia 28, no segundo a Corte Nacio-
nal Eleitoral (CNE) emitiu, no dia 1º, uma resolução anulando o referendo constitucional convocado por decreto pelo presidente para 7 de dezembro. Pág. 11
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editorial SÓ ACREDITA que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) grampeou o telefonema entre o meritíssimo Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) quem é capaz de acreditar nas informações que a revista Veja veicula. E só são capazes de acreditar em Veja seus pares da grande mídia comercial e outros elementos defensores de interesses e métodos tão espúrios quanto os dessa corporação. A bem da verdade, nem uns nem outros acreditam. Apenas fazem o mesmo jogo: confundir o público para, turvada a água, realizar a pescaria. Esses pescadores não são amadores e costumam ter pedigree – o senhor Daniel Dantas descende do barão de Jeremoabo, o maior latifundiário que este país conheceu. Ninguém ignora a relação promíscua entre o Barão Dantas e Veja – nem mesmo o meritíssimo Mendes. Segundo as investigações do delegado Protógenes Queiroz, da Polícia Federal (PF), o meritíssimo Mendes e o poder que preside não seriam empecilho para que o nobre de Jeremoabo atingisse seus objetivos e saísse ileso de qualquer investigação ou processo que chegasse no STF... Bem, é isto que está gravado da tentativa de suborno (de 1 milhão de dólares) oferecido pelo senhor Hugo Chicaroni a um delegado, em nome do senhor de Jeremoabo. Na conversa, o senhor Chicaroni é muito claro: “Ele [o se-
debate
Quem tem medo d’antas? Veja chegou ao limite da pusilanimidade. Não obstante, prosseguiu nhor Dantas] se preocupa com hoje. Lá pra cima [instâncias superiores do Judiciário], o que vai acontecer, lá ele não tá nem aí. Por que ele resolve. STJ, STF... ele resolve”. Como age Veja Há um ano, a Editora Abril, dona de Veja, instalou lobistas na Câmara Federal para tentar barrar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigaria uma ilegalidade na venda da TVA – operadora de TV a cabo pertencente ao Grupo Abril – para a transnacional espanhola Telefônica. Na ocasião, deputados foram abordados por representantes da Abril, e pressionados para retirar suas assinaturas do documento que propunha a instalação da CPI. E, enquanto a Abril articula lobbys, a revista se capacita para realizar a sua parte: criar “fatos” e factóides. Sua redação (salvo honrosas exceções) abriga uma malta para ninguém botar defeito. Uma verdadeira equipe de criação: para que respeitar a objetividade factual, se podem criar uma realidade virtual que atenda melhor aos interesses do grande patrão Civita e permita, por isso mesmo, que algumas migalhas caiam em suas manjedouras?
Dessa arte da criação, faz parte saber escolher figuras capazes de legitimar e conferir foros de verdade aos jogos virtuais projetados pela equipe de “criação”. Lembra o jornalista Cláudio González, que o senador Demóstenes Torres “tem servido de fonte para a Veja, sempre que a revista precisa dar substância a matérias inventadas, como foi o caso da matéria sobre a ajuda das Farc ao PT e a matéria sobre as supostas contas secretas no exterior em nome do delegado Paulo Lacerda, diretor da Abin”. Conhecida como “viveiro de antas”, a redação de Veja tem como um dos destaques do seu plantel de tapirídeos ungulados o colunista Diogo Mainardi. Este acaba de ser condenado, pela 13ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 3 meses e 15 dias de detenção, ou a uma multa de três salários mínimos, e pagamento de 11 dias de multa. O motivo da condenação foi um processo movido contra o artiodáctilo pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, acusado pelo senhor Mainardi (na edição de 06.09.2006), de usar dinheiro oriundo de fundos de pensão e empresas públicas para manter
Fechando o círculo Despidos os personagens, desmontado o cenário, vai se consumando o enredo desse folhetim de quinta categoria. No entanto, sobra uma pergunta: e o delegado Paulo Lacerda, diretor da Abin e ex-PF? Foi durante a gestão do delegado Lacerda frente à PF que tiveram início as investigações das atividades ilícitas do Barão D’antas e de sua quadrilha – a operação Satiagraha, tendo à frente o delegado Protógenes Queiróz. Enquanto doutor Lacerda esteve frente à PF, não apenas essas investigações foram incentivadas, como, sobretudo, foram criadas as condições de infra-estrutura e de pessoal para o trabalho do delegado Protógenes. Em agosto de 2007, no entanto, o doutor Lacerda foi transferido para a Abin, e a partir desse momento a Satiagraha deixa de ser prioridade para o novo diretor, doutor Luiz Fernando Corrêa, que reduz drasticamente a estrutura da Operação. No entanto, nos limites da lei, o doutor Lacerda esteve sempre ao lado do delegado Protógenes.
crônica
Frei Betto
Neoliberalismo e cultura O NEOLIBERALISMO não visa a destruir apenas as instâncias comunitárias criadas pela modernidade, como família, sindicato, movimentos sociais e Estado democrático. Seu projeto de atomização da sociedade reduz a pessoa à condição de indivíduo desconectado da conjuntura sócio-política-econômica na qual se insere, e o considera como mero consumidor. Estende-se, portanto, também à esfera cultural. Um dos avanços da modernidade foi, com o advento da democracia, reconhecer a pessoa como sujeito político. Este passou a ter, além de deveres, direitos. Dotado de consciência crítica, livrou-se da condição de servo cego e dócil às ordens de seu senhor, consciente de que autoridade não é sinônimo de verdade, nem poder de razão. Agora, busca-se destituir a pessoa de sua condição de sujeito. O protótipo do cidadão neoliberal é o que se demite de qualquer pensamento crítico e, sobretudo, de participar de instâncias comunitárias. E para essa cultura da demissão voluntária contribui, de modo especial, a TV. Em si, a TV é poderoso instrumento de formação e informação. Mas pode facilmente ser convertido em mecanismo de deformação e desinformação, sobretudo se atrelada à máquina publicitária que rege o mercado. Assim, a própria TV tornase um produto a ser consumido e, portanto, centrado no aumento dos índices de audiência. Para isso, recorre-se a todo tipo de apelação, desde que os telespectadores sintam-se hipnotizados pelas imagens. O problema é que a janela eletrônica está aberta para dentro do núcleo familiar. É ali que ela despeja a profusão de imagens e atinge indistintamente adultos e crianças, sem o menor escrúpulo quanto ao universo de valores da família. Se a TV transmitisse cultura – tudo aquilo que aprimora a nossa consciência e o nosso espírito –, ela seria o mais poderoso veículo de educação. É verdade, não deixa de fazê-lo, mas a regra geral não são os programas de densidade cultural, e sim o mero entretenimento – distrai, diverte e, sobretudo, abre a caixa de Pandora de nossos desejos inconfessáveis. A imagem que “diz” o que não ousamos pronunciar. Ao superar o diálogo entre pais e filhos e impor-se como interlocutora hegemônica dentro do núcleo familiar, a TV altera as referências simbólicas fundamentais do psiquismo infantil. É pelo falar que uma geração transmite à outra crenças, valores, nomes próprios, mega-relatos, genealogias, ritos, relações sociais etc. Transmite a própria aptidão humana de uso da palavra, através do qual se tece a nossa subjetividade e a nossa identidade. É essa interação,
sua página no iG, em sua “batalha comercial do lulismo contra Daniel Dantas”.
propiciada pelo diálogo oral, cara a cara, que nos educa às relações de alteridade, faz-nos reconhecer o eu diante do Outro, bem como as múltiplas conexões que ligam um ao outro, como emoções, imagens provocadas por gestos, expressões faciais carregadas de sentimentos etc. A fala ou o diálogo demarcam referências fundamentais ao nosso equilíbrio psíquico, como a identificação do tempo (agora) e do espaço (aqui), e dos limites do meu ser em relação aos demais. Se a fala se reduz a uma enxurrada de imagens que visam a exacerbar os sentidos, as referências simbólicas da criança correm perigo. Ela tende à dificuldade de construir seu universo simbólico, não adquirindo sensos de temporalidade e historicidade. Tudo se reduz ao “aqui e agora”, à simultaneidade. A própria tecnologia que abrange distâncias em tempo real – internet, telefone celular etc. – favorece uma sensação de ubiqüidade: “eu não estou em nenhum lugar porque estou em todos”. Muitos professores se queixam de que os alunos não são tão atentos às aulas. Claro, o sonho deles seria poder mudar o professor de canal... Muitas crianças e jovens demonstram dificuldade de se expressar porque não sabem ouvir. Possuem raciocínio confuso, no qual a lógica derrapa freqüentemente no aluvião de sentimentos contraditórios. Acreditam, sobretudo, que são inventores da roda e, portanto, pouco interessa o patrimônio cultural das gerações anteriores (o financeiro sim, sem dúvida). Assim, a cultura perde refinamento e profundidade, confina-se aos simulacros de talk-show, em que cada um opina segundo sua reação imediata, sem reconhecimento da
competência do Outro. No caso da escola, este Outro é o professor, visto não só como destituído de autoridade, mas sobretudo como quem abusa de seu poder e não admite que os alunos o tratem de igual para igual... Ora, já que o professor não “escuta”, então só há um meio de fazê-lo ouvir: a violência. Pois foram educados pela TV, na qual não há o exercício da argumentação paciente, da construção elucidativa, do aprimoramento do senso crítico. É o perde ou ganha incessante, e quase sempre à base da coação. Assim, cai-se numa educação qualificada por Jean-Claude Michéa de “dissolução da lógica”. Deixa-se de distinguir o prioritário do secundário, de perceber o texto em seu contexto, de abranger o particular no pano de fundo do geral, para acatar passivamente as pressões de consumo que buscam transformar valores éticos em meros valores pecuniários, ou seja, tudo é mercadoria, e é o seu preço que imprime, a quem a possui, determinado valor social, ainda que destituído de caráter. Demite-se do ato de pensar, refletir, criticar e, sobretudo, participar do projeto de transformar a realidade. Tudo passa a uma questão de conveniência, gosto pessoal, simpatia. Também são considerados comercializáveis a biodiversidade, a defesa do meio ambiente, a responsabilidade social das empresas, o genoma, os órgãos arrancados de crianças etc. É o apogeu do capitalismo total, capaz de mercantilizar até mesmo o nosso imaginário. Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Luis Fernando Veríssimo e outros, de O desafio ético (Garamond), entre outros livros.
Chamado a esclarecer, perante a CPI das Escutas Telefônicas, fatos relacionados à Satiagraha, o doutor Lacerda, sem meias palavras, fez uma verdadeira radiografia da revista Veja, bem como dos negócios e modus operandi do senhor de Jeremoabo. Depois de derrubado o delegado Protógenes (afastado do cargo), a bola da vez desse poder supra-Estado capitaneado pelo Baronete baiano seria o doutor Paulo Lacerda. A pronta reação do Planalto Desta vez, porém, a uma primeira vista, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece ter acertado o alvo e quebrado as pernas dos seus adversários: DE IMEDIATO, afastou PROVISORIAMENTE o delegado Paulo Lacerda e toda a cúpula da Abin para que as investigações possam correr com transparência – para usar suas palavras. A RAPIDEZ da medida evita o desgaste de uma nova e arrastada crise institucional, como conseguiu Veja em outros momentos, sobretudo eleitorais. Ao mesmo tempo, preserva a direção da Abin do desgaste de um longo processo. Já sua PROVISORIEDADE, além de igualmente preservar a equipe da Abin, a prestigia e sinaliza com sua volta. Ou seja, há indicadores de que a tentativa golpista de “Veja-Jeremoabo”, desta vez, tende a dar com os burros (e antas, por que não?) n’água.
Leandro Konder
Os clássicos como régua e compasso NÃO BASTA dizer que o mundo está errado. É preciso dizer quais são os maiores erros e tentar indicar em que direção eles podem ser superados. Há injustiças, desrespeito, miséria, opressão. Nossos inimigos cometem (ou mandam seus capangas cometerem), quase todos os dias, atos de intimidação contra nós. Somos ameaçados, agredidos. E, para nos defendermos, lutamos. Gostaríamos de evitar a violência. Sabemos, porém, que ela nos é imposta. A vida nos ensina que o nosso maior problema só poderá vir a ser resolvido num combate prolongado. Os capitalistas, os grandes proprietários de terras, os empresários rurais, criam freqüentemente situações de provocação contra nós. Às vezes, como pessoas, eles gostariam de fazer acordos conosco, mas o sistema a que eles pertencem dificulta o entendimento. O sistema atual é cínico e perverso. Sua base – o capitalismo – tem de ser modificada. O capitalismo cria para a humanidade uma terrível insegurança. Os seres humanos não podem viver sem valores. Para viver, eles precisam fazer escolhas, precisam ter uma escala de valores. Marx chamou a atenção para a diferença que existe entre o valor de uso e o valor de troca. O valor de uso é o valor verdadeiro: é a qualidade dele que conta para nós. O valor de troca é aquele que se traduz em dinheiro. No capitalismo, como tudo gira em torno do mercado, tudo tende a virar mercadoria, o valor de troca tende a absorver o valor de uso. Podemos esclarecer essa situação com um exemplo. Quando recebo meu pagamento, posso comprar um presente de aniversário para minha mulher ou para meu filho, posso chamar um casal de amigos para jantar, posso alugar um DVD para ver junto com colegas de trabalho, e em todos esses momentos meu dinheiro estará funcionando como valor de uso. Agora vamos passar a um outro sujeito, a um banqueiro, a um industrial milionário, a um gigante da importação/exportação. Ele se senta no salão de diretor-presidente da sua mega-empresa, dá uma olhada nos relatórios de seus vice-diretores de confiança, manda fazer algumas modificações nos investimentos programados para o mês que vem. Aparentemente, o dinheiro que no nosso exemplo está nas mãos do mega-empresário é idêntico àquele que está nas mãos do trabalhador. Olhando de repente, a gente tem a impressão de que é só a quantidade que os diferencia. Mas não é bem assim. A diferença (brutal) na quantidade de dinheiro não é causa, é conseqüência. O empresário (riquíssimo) transforma seu dinheiro em capital, quer dizer, arranja um modo de multiplicá-lo. O dinheiro rende. Nas mãos do trabalhador, entretanto, para atender às simpáticas demandas do valor de uso, os salários mínguam, derretem, somem. Por isso, mesmo quando o trabalhador melhora um pouquinho seu nível de renda, ele continua sendo vítima da exploração inerente ao sistema. As qualidades do valor de uso vão se tornando abstratas. Os valores éticos (qualitativos) vão se tornando fracos, vão se apagando. O dinheiro se encarrega de quantificar tudo, de reduzir tudo (ou quase tudo) a preços. O dinheiro seria, então, o valor que está prevalecendo no nosso mundo. E, como o dinheiro, de fato, não é um valor, precisamos lhe impor limites, lhe retirar privilégios para voltarmos a ter valores genuínos, autênticos, verdadeiros Nossos teóricos mais lúcidos – nossos “clássicos”, como costumamos dizer – nos ensinam muitas coisas e coisas muito importantes. Eles despertam em nós a vontade de conhecer melhor os aspectos da realidade que queremos transformar, nos levam a estudá-los. E, aproveitando as categorias, os conceitos e os métodos, estaremos nos compreendendo mais profundamente e poderemos agir com maior eficiência política. Nossos “clássicos” podem nos dar “a régua e o compasso” – como diz o ex-ministro Gilberto Gil – para podermos avaliar as nossas forças e as de nossos inimigos de classe, e o melhor momento de infligirmos nossos golpes de maneira mais eficiente e arrasadora. Leandro Konder é graduado em Direito e doutor em Filosofia. É professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Atuante pensador, é autor de inúmeras obras em diversas áreas do conhecimento, como Filosofia, Sociologia, História e Educação. É autor de 21 livros, entre os quais, A derrota da dialética; Flora Tristan – Uma vida de mulher, uma paixão socialista; Walter Benjamin – O marxismo da melancolia.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil Albari Rosa/Folha Imagem
Candidatos à Prefeitura de Curitiba (PR) durante debate promovido nesta quinta-feira pela emissora de televisão Bandeirantes
Eleições municipais não discutem propriedade e uso da terra urbana ELEIÇÕES 2008 Estatuto da Cidade não chega aos municípios, o que mantém a concentração de terra e a estrutura desigual da malha urbana Renato Godoy de Toledo da Redação NO PROCESSO eleitoral municipal, o tema da posse e do uso da terra nos municípios está longe de ser o mais debatido nas campanhas; no entanto, talvez este seja o único assunto presente na realidade de todos os 5.556 municípios brasileiros. Essa questão abrange problemas como a apropriação ilegal de terrenos públicos para fins privados, a especulação imobiliária e as áreas de ocupação irregular em terrenos públicos e frágeis ambientalmente. A reportagem ouviu especialistas que participaram de gestões municipais com políticas que, de certa forma, contrariaram o senso comum propagado pelas administrações conservadoras.
a Constituição Federal no aspecto da função da terra. Porém, a aplicação do Estatuto é mediada pelo Executivo muncipal e pelas Câmaras de vereadores que, por meio do Plano Diretor, devem implementar a lei. Com isso, as medidas de acesso à terra e à moradia previstas no Estatuto são levadas à apreciação do poder municipal, espaço em que há uma arena de interesses políticos diversos, mas no qual, via de regra, construtoras e grandes proprietários de terra têm sua maior força.
Lei às avessas Para Ermínia Maricato, urbanista da Universidade de São Paulo (USP), o direito à moradia e o acesso à cidade pelos mais pobres nunca esteve tão garantido pela legislação brasileira; no entanto, a aplicação desses direitos e a interpretação das leis não coincidem com o que está previsto na Constituição. “As restrições da ação do município contra a especulação imobiliária não são legais, pois, do ponto de vista legal, a legislação brasileira, não poucas vezes, vem avançando. Desde a Lei de Terras, de 1850, toda a legislação pretende cadastrar as terras devolutas para fins de distribuição. Acontece que a lógica da apli-
cação da lei vira de ponta-cabeça, o que se faz é o contrário. Muitas vezes, a legislação é aplicada no sentido inverso ao seu espírito. Eu pude constatar isso na prefeitura”, afirma Ermínia, referindo-se ao período em que foi secretária de Habitação de São Paulo, durante a gestão da então petista Luiza Erundina (1989-1992). A urbanista afirma que a aplicação da lei depende da vontade do prefeito e da Câmara, um espaço em que os proprietários de terra gozam de poder. Além disso, Ermínia relata a morosidade para que a lei seja efetivamente aplicada. “Quanto mais a legislação avança, mais é dificultado o acesso à população mais pobre, que não tem acesso à propriedade legal ruralurbana. É difícil aplicar o Estatuto da Cidade, pois ele remete ao Plano Diretor e aos conflitos municipais. Quando o Estatuto chega ao município tem uma protelação da aplicação da lei, pois é no município que os proprietários de terra são muito fortes. Nas cidades, a renda fundiária urbana está muito presente nas relações de poder.” Maricato considera a Constituição de 1988 avançada em relação à terra, mas queixa-se de que, depois dela, “demoraram 13 anos para regulamen-
Moradias no centro O ex-prefeito de Porto Alegre, Raul Pont (PT), relata que em sua gestão (19972001), bem como no período de 16 anos em que seus correligionários administraram o município (1989-2005), houve uma tentativa de inverter
Para Ermínia Maricato, urbanista da Universidade de São Paulo (USP), o direito à moradia e o acesso à cidade pelos mais pobres nunca esteve tão garantido pela legislação brasileira; no entanto, a aplicação desses direitos e a interpretação das leis não coincidem com o que está previsto na Constituição padas. “Naquela época, existia uma grande quantidade de áreas ocupadas, sobretudo pelo movimento de moradia do final dos anos de 1980. Montamos um projeto para regularizar a posse da terra, mas não foi aprovado pela Câmara. Posteriormente, quando fui vereadora (pelo PT, de 2001-2004), redigi um projeto parecido com aquele e foi aprovado por unanimidade na Câmara”, lembra.
Luiz Henrique Gurgel
Como regra, as gestões mais à direita constroem moradias para as populações pobres apenas na periferia e promovem reintegração de posse em áreas ocupadas, como favelas, nas regiões centrais Como regra, as gestões mais à direita constroem moradias para as populações pobres apenas na periferia e promovem reintegração de posse em áreas ocupadas, como favelas, nas regiões centrais. Na avaliação dos especialistas, atualmente o Brasil tem uma legislação forte que garante a moradia para quem nela mora e coíbe a especulação imobiliária, fazendo valer a função social da propriedade. Parte dessas garantias jurídicas são fruto da aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, que complementou
tar a função social da propriedade [no Estatuto da Cidade, de 2001]”. Nabil Bonduki, ex-superintendente de Habitação Popular na gestão Erundina, afirma que hoje a legislação dá muito mais respaldo ao gestor para legalizar áreas ocu-
a lógica de empurrar os pobres para a periferia da cidade, com a legalização de moradias populares em regiões centrais, por meio da utilização do mecanismo jurídico que declara a área como de interesse social. “Em casos de favelas em áreas públicas das regiões mais centrais, havia uma pressão do senso comum e da opinião pública que diziam que as pessoas tinham
IISD
Reprodução
A partir da esquerda, Nabil Bonduki, Ermínia Maricato e Raul Pont
Imposto progressivo poderia conter especulação imobiliária da Redação Os grandes proprietários de terra que deixam suas propriedades ociosas à espera de uma valorização teriam muito mais problemas se a taxação sobre terrenos vazios fosse maior. A aprovação de tributos progressivos, como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), coíbem essa prática, que é uma das responsáveis por afastar os mais pobres do centro da cidade.
Raul Pont, ex-prefeito de Porto Alegre, relata que, nas gestões de seu partido, foram implementadas medidas a fim de combater a especulação. Mesmo com as leis aprovadas, a prefeitura encontrava dificuldades para cobrar taxas mais altas dos especuladores. “Implantamos uma política de progressividade, para que os que tinham mais pagassem mais. Também criamos uma lei específica de combate à especulação imobiliária, que cobrava impostos progressivamente nas áre-
as de vazio urbano que os proprietários utilizavam como reserva de valor. Foi uma lei duríssima, que forçava o proprietário a construir ou vender a terra. Aí choveram ações na Justiça contra a lei. E esses proprietários têm um batalhão de especialistas para ir à Justiça”, comenta. Os proprietários alegavam na Justiça que o IPTU já era progressivo, apesar de existir apenas uma alíquota. Após muitas ações judiciais, a progressividade do imposto sobre áreas ociosas deixou de ser válida. (RGT)
que sair de lá e que o município deveria vender a área e construir conjuntos habitacionais na periferia. Mas nós concedíamos as áreas para os moradores, alegando função social da propriedade, e realizávamos a urbanização da favela”, explica o ex-prefeito. Em contraposição aos setores conservadores que reivindicam que os pobres sejam afastados das regiões centrais, Raul Pont explica que, mesmo em termos financeiros, é melhor para o município que se construa conjuntos habitacionais em áreas já urbanizadas. “Em vez de construir um grande loteamento, distante do centro, é melhor fazer pequenos conjuntos verticalizados em áreas já urbanizadas. Muitas vezes ficava até mais barato, pois não precisávamos gastar com escola, pavimentação, água e esgoto. Em um bairro urbanizado, o custo de uma casa pode ser mais caro, mas no fim se tem menos gastos com a infra-estrutura.” Pont se diz “favorável à construção de pequenos módulos, com pequenos prédios, em regiões urbanizadas, com área de lazer, salas de reunião e área de serviços. Assim, as pessoas ficam mais integradas ao tecido urbano, têm melhores condições para conseguir emprego e mais acesso aos serviços que a cidade oferece”. Ermínia Maricato afirma que, na gestão Luiza Erundina, a secretaria de Habitação dirigida por ela realizou um mapeamento para constatar onde havia terrenos vazios em bairros urbanizados. “Nos recusávamos a construir moradias distantes da malha urbana, apenas terminamos os conjuntos iniciados em outras gestões, como em Santa Etelvina”, relata.
Justiça Além dos problemas relacionados à correlação de forças no Executivo e no Legislativo, outro fator que emperra a concessão de moradia é o parecer desfavorável da Justiça. Para ilustrar esse problema, Ermínia Maricato cita o exemplo do Edifício Prestes Maia, no centro da capital paulista. Ocioso, o edifício foi ocupado por movimentos de semteto em 2002. Cinco anos depois, 450 famílias tiveram que desocupar o prédio atendendo à determinação da Justiça que acatou um pedido de reintegração de posse solicitado pelos proprietários do edifício. “Se o Judiciário fizesse uma leitura da Constituição sobre os prédios vazios, não daria ordem de despejo. Mas fez uma leitura burocrática, dizendo que a utilização do prédio não constava no Plano Diretor e que os proprietários não foram notificados”, esclarece.
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brasil
Especialistas debatem sistema carcerário Marcello Casal Jr./ABr
DEBATE Encontro internacional no Rio de Janeiro critica o Estado policial brasileiro Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ) O QUE pode ser mudado nas prisões do Brasil foi, em outras palavras, o assunto do seminário “Depois do grande encarceramento”, realizado no Hotel Glória, no Rio de Janeiro (RJ), nos dias 28 e 29 de agosto. “Vivemos hoje como no tempo da Inquisição: a cura pela tortura e a prisão de hereges e bruxas, a pena como punição terapêutica”, disse Nilo Batista, criminologista e presidente do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), que, em parceria com o Ministério da Justiça, organizou o evento. O seminário se propôs a recuperar horizontes para além da prisão, denunciando as modalidades de cárcere e discutindo o sistema penitenciário brasileiro. Participaram dos debates especialistas nacionais e internacionais de áreas como Direito, Psicologia, Psicanálise e Ciências Sociais. Isso porque, segundo o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Pedro Abramovay, “o direito não é a única resposta, temos de procurar também na Sociologia, na Psicologia, em outras disciplinas”. Os promotores do encontro denunciaram os efeitos perversos do capitalismo. “A expansão do sistema penal, a constituição das periferias em campos, o aumento da vigilância, a proliferação dos conflitos sociais e, principalmente, a inculcação do dogma da pena. A cultura da pena tem articulado soluções para todos os dilemas nacionais: da reforma agrária à saúde pública. O resultado foi o fortalecimento do Estado policial, o filicídio brasileiro com o extermínio de milhares de jovens e o encarceramento de quase 500 mil compatriotas”, apresentava a convocatória do encontro. O Brasil tem 444 mil presos. O índice de pessoas que deixam a cadeia e reincidem no crime chega a 80%. Esse número cai para aproximadamente 5% no caso de condenados que cumprem penas alternativas. Tais dados, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), apontam para a necessidade de buscar um novo modelo.
Os debatedores Muito citado pelos palestrantes, o filósofo italiano Giorgio Agamben entende que o Estado usa de dispositivos legais justamente para suprimir os limites da sua atuação, a própria legalidade e os direitos dos cidadãos. O Estado de exceção apresentase como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal. Um poder além de regulamentações e controle que, para Agamben, hoje não é mais excepcional, mas o padrão de atuação dos Estados. Nilo Batista, que intitulou sua fala “A lei como o pai”, demonstrando a relação saber jurídico e médico, disse que no país se tem “a pena como cura e a cura como pena, a punição terapêutica. A medicina da maldade, segundo Platão, a penalidade”. Vive-se na equação em que pobreza é igual à periculosidade, e o crime, manifestação da personalidade. Enquanto isso, da Psicanálise pouco ou nada se fala: “Errou Freud, o denegridor da espécie humana, já disse um jurista do passado. Saberes distantes, a Psicanálise e a Jurisprudência. Na Psicanálise, culpa é sofrimento, no Direito Penal é juízo e acarreta sofrimento punitivo. Não sofra com a culpa, diz o psicanalista; sofra com a culpa, diz o juiz. Sofrimento punitivo como imperativo ético. O valor do pai simbólico como
Presos se apóiam em grade de cela de cadeia pública em Planaltina (GO)
representante da lei é mais problema do que solução, como a criminalização dos pobres com pais ausentes. E pôr o Estado no lugar do pai, com seu poder ilimitado, é fascismo. Mas há lugar para Psicologia Forense e Medicina Legal”, articulou Batista.
Castigo Para Regina Néri, doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a interlocução entre Direito e Psicanálise existe na relação simbólica entre lei e pai como formadora de subjetividade e invasiva na personalidade. “A Psicanálise é contra os manicômios, mas não contra as prisões. [O psicanalista francês Jacques] Lacan lamenta o declínio do papel do pai em detrimento da mãe. Mas o mal estar da modernidade abalou a figura paterna, e ele lamenta também a perda do paradigma do pai na crise do simbólico, que tem como efeito a fragmentação social. Mas o resgate da figura do pai é algo conservador. A Psicanálise deve se desvencilhar da Lei do Pai, causa do mal estar contemporâneo; a solução paterna não é a única relação com que se pode ter a lei”, observou. Acácio Augusto, mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisador do Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), estudando o anarco-abolicionismo penal, viu que as periferias são como campos de concentração em céu aberto. Enquanto Cecília Coimbra, professora da Universidade Fe-
deral Fluminense (UFF), psicóloga e uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais, aponta a ilusão da paz e da segurança como outra forma de aprisionamento, “o encarceramento de si mesmo. Dos 450 mil prisioneiros do Brasil, 95% são pobres e 53%, menores de 30 anos. Os indesejáveis, segundo Lacan, as prisões são seus depósitos. Na produção da subjetividade moralista capitalista surge o policial em nós”, analisou. Cristina Rauter, doutora em Psicologia pela PUC-SP e autora do livro Criminologia e Subjetividade no Brasil, afirmou que “as contribuições da área ‘Psi’ para o direito vão desde o discurso punitivo com o diagnóstico da incurabilidade, passando pela vertente psiquiátrica do geneticamente determinado, até o contexto globalitário atual, da estigmatização e separação. A ausência do pai como causadora da criminalidade: o que mata não é a polícia, mas a ausência do pai. Jovens não humanos, já que o pai está ausente. E há saída? É preciso, como já falou um filósofo, preservar a inocência do futuro”.
Exclusão De seu lado, o professor Paulo Arantes, titular de direito ambiental da Universidade Estácio de Sá, lembrou que um terço da população brasileira é excluída. “O horizonte de expectativa já é o próprio presente, nós vivemos a emergência. Estamos aqui hoje para que as coisas não piorem”, afirmou. Para a professora Vera Malaguti Batista, doutora em Saúde Coletiva e secretária-
O contexto internacional Participante do seminário “Depois do grande encarceramento”, realizado no Rio de Janeiro (RJ), nos dias 28 e 29 de agosto, Massimo Pavarini, professor italiano de Direito Penal e Penitenciário da Universidade de Bolonha, relatou que os Estados Unidos têm 750 prisioneiros por cada 100 mil habitantes. O ideal, segundo estudos, é 100 (no Brasil, em 2007, eram 228). Já na Inglaterra, país com o maior índice da Europa, são 130. Na Índia, são 70. “Na sociedade de controle – esclareceu Pavarini –, há pessoas totalmente controladas: presas. Está estatisticamente provado que a taxa de criminalidade não se relaciona com o número de prisioneiros. Os EUA, por exemplo, com a mesma taxa da Europa, têm sete vezes mais presos. Outra relação: quanto mais o país é neoliberal, mais presos. Não é um problema econômico, mas ideológico e pedagógico. De uma nova ordem social que é fundada na exclusão social”. Maurício Martinez, professor de Direito Penal da Universidade Nacional da Colômbia, certamente referindose ao que vive em seu país, falou sobre o populismo punitivo: “Monstros construídos artificialmente pela legislação antidroga e antiterrorista. Justiça penal seletiva com a vitimização dos excluídos”. (NC)
geral do Instituto Carioca de Criminologia, “a democracia que construímos tortura e mata mais que a ditadura militar. Em cinco séculos, temos em nossa história apenas um sem escravidão. Somos seguidores da cultura punitiva estadunidense e convivemos com adesão subjetiva a isso. A esquerda quer moralizar o capitalismo, usar o castigo como ordenador do conflito de
classes? Devemos procurar alternativas às penas, procurar e produzir um novo mundo depois do grande encarceramento”. Finalizando, o juiz de direito Rubens Casara, integrante do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD) do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, indicou que a função do Ministério da Justiça é funda-
mental como “órgão que deve fomentar a pesquisa e saídas. Os crimes cometidos pela classe média não são punidos com prisão”. Ele sugeriu o não-encarceramento para os crimes sem violência contra o patrimônio. “É uma luta política, não acredito no sistema penal, estou com os abolicionistas penais, pois é a população pobre que sofre com a penalização”, disparou.
HOMENAGEM
Medalha Abreu e Lima é entregue a cinco internacionalistas Jorge Nunes
Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ)
Ao comemorar o primeiro aniversário de sua criação, a Casa da América Latina condecorou cinco personalidades com a medalha Abreu e Lima, por promoverem a solidariedade internacionalista entre os povos latinoamericanos. Foram agraciados Fidel Castro, João Pedro Stedile, Modesto da Silveira, Neiva Moreira e Zuleide Faria de Melo. A primeira condecoração foi entregue por Raimundo de Oliveira, presidente da Casa da América Latina ao cônsul de Cuba, Vladimir Martinez, representando o líder revolucionário cubano, Fidel Castro. Martinez agradeceu a homenagem e leu trechos de reflexões de Fidel Castro sobre solidariedade internacionalista.
Abreu e Lima foi um brasileiro que se incorporou ao Exército Libertador de Simon Bolívar. Escreveu o livro O Socialismo, o primeiro do gênero editado no Brasil e na América Latina. João Pedro Stedile, da coordenação do Movimento dos Sem Terra (MST) e da direção da Via Campesina, assinalou que recebia a medalha em nome dos movimentos que representa, e fez
Raimundo de Oliveira e o cônsul Vladimir Martinez
um relato sobre as atividades das duas entidades na América Latina, destacando o fato de que neste momento, na Escola Latino-americana em Cuba, estão estudando 180 integrantes dos MST. O jornalista José Guimarães Neiva Moreira, representado por sua filha Micaela Neiva Moreira e pela primeira-dama do Maranhão, Clay Lago, recebeu a medalha por seu importante trabalho como fundador dos Cadernos do Terceiro Mundo, uma importante publicação que durante mais de 30 anos informou aos brasileiros e latinoamericanos, a partir de uma perspectiva anti-hegemônica, os acontecimentos políticos internacionais. Zuleide Faria de Melo, dirigente histórica do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e presidente da Associação Cultural José Marti, e Modesto da Silveira, advogado de presos políticos no período da ditadura militar, destacaram a importância da luta dos povos latino-americanos e da integração. A medalha Abreu e Lima será concedida anualmente a cinco personalidades que tenham contribuído para a
solidariedade internacionalista e integração dos povos latino-americanos.
Abreu e Lima Vale lembrar que José Inácio de Abreu e Lima (17941869) foi um brasileiro que se incorporou ao Exército Libertador de Simon Bolívar, tendo se tornado chefe do Estado-Maior e participado da luta de libertação colonial na Venezuela, Colômbia, Equador e Peru, tornando-se general de brigada. Depois da morte de Bolívar, Abreu e Lima retornou ao Brasil, tendo escrito vários livros, entre os quais O Socialismo, o primeiro do gênero editado no Brasil e na América Latina. Ele é conhecido também como o “general das massas” e foi reapresentado aos brasileiros pelo presidente Hugo Chávez, além de ser hoje também o nome de uma refinaria que está sendo construída em Pernambuco, com base em um acordo entre a Petrobras e a PDVSA, a empresa estatal venezuelana de petróleo. Ou seja, Abreu e Lima é atualmente também símbolo da integração latino-americana.
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brasil
Ministério Público processa União e Estado da Paraíba ATINGIDOS POR BARRAGEM Ação do MPF contesta falta de ajuda aos desalojados por barragem e pede que sejam construídas estruturas de produção que assegurem trabalho e renda à comunidade Roosewelt Pinheiro/ABr
Ana Luiza Zenker de Brasília UMA NOVA ação civil pública foi ajuizada pelo Ministério Público Federal na Paraíba (MPF-PB), com pedido de liminar, contra o Estado da Paraíba e a União, por não terem assistido de forma adequada as pessoas desalojadas com a construção da Barragem de Acauã. A primeira ação foi apresentada à Justiça Federal em 2005, para assegurar a devida proteção às comunidades Cajá, Melancia, Costa, Pedro Velho, Água Paba e Riachão. O MPF na Paraíba pede, por liminar, que a Justiça Federal mande o Estado pagar uma remuneração mensal de um salário mínimo às famílias atingidas pela barragem até que seja constatado que estejam construídas estruturas de produção que assegurem trabalho e renda à comunidade. Além disso, o Ministério Público também solicita que o Estado da Paraíba faça, em 60 dias, o cadastramento social de todos os moradores das agrovilas e assentados das barragens, para avaliar a situação de emprego e renda dessas pessoas e inseri-las nos programas sociais do governo, bem como regularize a propriedade dos que receberam casa nas agrovilas. A Barragem de Acauã foi concluída em 2002 e está localizada no Rio Paraíba, entre os municí-
O ministro Paulo Vannuchi durante a divulgação de relatório sobre impactos da Barragem Acauã (PB)
pios de Aroeiras, Itatuba e Natuba. Ela ocupa uma área de 1.725 hectares e causou o deslocamento de 4,5 mil pessoas, cerca de 800 famílias que tiravam seu sustento do rio. Os povoados foram completamente inundados. Para o MPF, a remoção das comunidades desestruturou a economia das famílias, que ficaram sem uma atividade produtiva, além de terem sido encaminhadas para conjuntos habitacionais sem serviços e atividades essenciais. A situação precária foi constatada pelo Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CNDDPH), vinculado ao Mi-
nistério da Justiça, durante visita aos assentamentos no ano passado. O conselho considerou a situação dessas pessoas como uma das mais graves entre os atingidos por barragens. Na ação assinada pelo procurador da República Duciran Van Marsen Farena, o MPF-PB também pede que a União, por meio do Ministério do Desenvolvimento Social, fiscalize os municípios de Aroeiras, Itatuba e Natuba, para descobrir as causas da baixa inserção dos assentados no Programa Fome Zero. Com isso, o governo federal deve sanar os problemas que inviabilizam esse cadastro, to-
mando as medidas legais cabíveis, inclusive o descredenciamento dos municípios, se for o caso. O Ministério Público ainda quer que seja elaborado, em até 60 dias, um plano de desenvolvimento sustentável para atender as necessidades da comunidade. O plano deve incluir programa de reassentamento produtivo da população e assegurar às famílias o acompanhamento da execução das medidas. A obra do reservatório, orçada em aproximadamente R$ 55 milhões, foi 90% financiada pelo governo federal e 10% pelo governo estadual. (Agência Brasil - www. agenciabrasil.gov.br)
MANIFESTO
Agentes dos três poderes violam cotidianamente os direitos humanos das populações pobres medidas verdadeiramente fascistas. Um Estado também célere em praticar prisões preventivas e manter presas sem julgamento pessoas que, na maior parte das vezes, cometeram (ou supostamente cometeram) pequenos delitos contra o patrimônio dos ricos ou contra a chamada “ordem social”. Enquanto isso, assistimos o tratamento absolutamente diferenciado e privilegiado, em todos os níveis, àqueles poucos ricos e famosos cujos altos crimes vêm à tona, e que ainda assim seguem desfrutando da garantia de imunidade legal no Brasil e no exterior. Por outro lado, esse mesmo Estado penal aplica somente para os pequenos crimes praticados (ou supostamente praticados) por pessoas pobres da periferia (como furtos e o comércio miúdo de drogas) uma punição desproporcional, com penas elevadíssimas. E ainda, depois de questionável julgamento, é esse mesmo Estado penal que não respeita as garantias previstas em sua própria Lei de Execuções Penais, em grande medida pela omissão e inoperância do Poder Judiciário, muitas vezes agindo de maneira deliberada. Como se não bastasse, a ação violenta das polícias contra movimentos sociais e comunidades pobres não só é constante (geralmente garantidas pelas históricas “ordens de despejo” e pelas rotineiras “operações militares”, ou por essa nova esdrúxula criatura jurídica batizada de “mandado de busca e apreensão coletivo”), como é comum acabar em execuções sumárias concentradas ou difusas. Tal Estado, portanto, tem também seu lado exterminador. Conforme texto preliminar de Philip Alston, relator da ONU para execuções sumárias e extrajudiciais, apresentado em maio: os policiais matam em serviço e fora de serviço. Porém, nenhuma investigação é feita em relação ao pretexto para a execução, isto é, a “suspeita” e o suposto confronto. Todo caso é classificado de “Resistência seguida de morte” ou “Auto de resistência”, e a investigação se concentra na vida do morto. Sabe-se, no entanto, que os policiais são preparados ideológica e praticamente para matar.
Péricles de Oliveira
ADM será sócia de duas usinas A empresa estadunidense Archer Daniels Midland (ADM), uma das grandes na produção de grãos, anunciou parceria com um grupo do fazendeiro da família Cabrera, da região de São José do Rio Preto, interior de São Paulo. E por esse acordo estão investindo em duas usinas de etanol. Uma no município de Jataí e a outra em Itarumã, ambas em Goiás. Os dois projetos prevêem a moagem de mais de 3 milhões de toneladas de cana para etanol. Coreanos investirão em biodiesel no Paraná Um grupo de vinte empresas da Coréia do Sul anunciou que está investindo 30 milhões de dólares para parcerias na produção de óleo combustível, a partir da soja, no Paraná. Segundo Hong Soon, presidente da Câmara de Comércio com o Brasil, há uma tendência a aumentar esses negócios, já que a legislação coreana vai obrigar a colocar 3% de óleos vegetais no diesel. Por conta disso, por exemplo, a empresa Samsung já investiu 1,6 bilhão de dólares na Indonésia, para produzir óleo combustível a partir do dendê. Bioclean Energy investe no Mato Grosso e Bahia A empresa Bioclean, braço financeiro do grupo estrangeiro Emdurance Capital Partners, anunciou que vai investir 300 milhões de dólares em duas unidades de beneficiamento de óleo de soja e de caroço de algodão para óleo combustível. As instalações serão no Mato Grosso e na Bahia. A unidade baiana está sendo construída no município de Luís Eduardo Magalhães, e a do Mato Grosso, em Rondonópolis. BNDES financia nova unidade da Brasil Bioenergia O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou liberação de empréstimo de R$ 160 milhões para a empresa Brasil Bioernergia construir uma unidade de óleo vegetal a partir da soja, no município de Nova Andradina (MS). O empreendimento gerará apenas 140 empregos na fábrica, mas, segundo seus diretores, vai comprar 10% da matéria-prima de pequenos agricultores. Por conta disso, sairá com selo de combustível social, a ser fornecido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
O Estado Brasileiro no banco dos réus Desde o final dos anos de 1980, com a promulgação da Constituição Federal em 1988 e a realização de eleições diretas para todas as esferas de governo do país, o Brasil vem sendo considerado um Estado Democrático de Direito, sendo inclusive signatário dos principais tratados e convenções internacionais que regulam os direitos fundamentais da pessoa humana. Neste ano, no qual será comemorado o 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, aprovada pela ONU, no Brasil celebram-se também outras datas históricas que seriam marcos da construção de uma ordem democrática, como a abolição formal da escravatura em 1888 e a já citada Carta Magna. Entretanto, essas comemorações enaltecem ordenamentos jurídicos cujas garantias aos cidadãos, como se sabe, não estão sendo colocadas em prática. Muito ao contrário: no caso brasileiro, o que vemos é o Estado, por meio de agentes dos seus três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e ao nível da União e dos Estados da Federação, violar sistematicamente os direitos humanos das populações pobres do campo, das favelas e periferias urbanas (com ainda mais violência contra jovens negros, quilombolas, indígenas e seus descendentes). A cada dia fica mais evidente que o Estado brasileiro é um dos principais agentes violadores dos direitos humanos, sendo ele justamente a instituição que, nos seus próprios termos, deveria garantir os direitos e a segurança e promover a justiça social. Na verdade, o que sentimos cotidianamente é que se trata de um Estado penal habituado a julgar, condenar e punir uma ampla parcela de seus cidadãos, sobretudo a maioria mais pobre (indígena e negra, em especial). Um Estado que tem procurado criminalizar cada vez mais os trabalhadores desempregados ou empregados, criminalizar exatamente as organizações, sindicatos e movimentos sociais populares que lutam pelo cumprimento dos direitos básicos renegados por ele próprio, reivindicando uma justiça social mais ampla e por esta razão sendo reprimidos com
Ofensivas do capital na agricultura brasileira
Por último, é também na qualidade de Estado Democrático de Direito que o Brasil tem sido convidado a participar com destaque de missões militares e “humanitárias” da ONU. Como, por emblemático exemplo, a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), a respeito da qual a cada dia chegam mais denúncias de mortes, abusos e violências de vários tipos contra a população negra e pobre daquele país. Denúncias que se somam aos crescentes indícios de que tais experiências internacionais seriam, na verdade, laboratórios militares para intercâmbio de operações repressivas desdobradas, sobretudo, contra comunidades pobres e movimentos populares nos territórios nacionais. Diante dessa realidade, por iniciativa de uma série de organizações e movimentos sociais do Brasil, está sendo proposta a realização de um Tribunal Popular que julgue o Estado brasileiro. Um tribunal que mostre a responsabilidade do Estado por todas essas violações cotidianas, que proponha uma reflexão profunda sobre sua atuação. Nossa iniciativa pretende inverter radicalmente essa lógica unilateral que está naturalizada e acobertada pela suposta “lógica democrática”, explicitando as inúmeras contradições e barbaridades da atual ordem social capitalista, a qual tem, exatamente neste Estado, um instrumento privilegiado para a reprodução ampliada de suas injustiças e violências. Por isso, propomos um tribunal que coloque o próprio Estado no banco dos réus, nos moldes de várias outras iniciativas populares semelhantes, com um caráter crítico, didático e conscientizador. Vamos colocar o Estado brasileiro diante das leis internacionais e nacionais
que ele mesmo reconhece formalmente, mas não cumpre. O Tribunal Popular, assim, se estenderá por quatro grandes áreas emblemáticas: - Violência estatal, sob pretexto de segurança pública, em comunidades urbanas pobres: dentre outros, o caso do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro; - Violência estatal no sistema prisional: a situação do sistema carcerário e as execuções sumárias da juventude negra e pobre na Bahia; - Violência estatal contra a juventude pobre, em sua maioria negra: os crimes de maio de 2006, em São Paulo, e o histórico genocida de execuções sumárias sistemáticas; - Violência estatal contra movimentos sociais e a criminalização da luta sindical, pela terra e pelo meio ambiente. Num momento em que vem à tona a discussão sobre “a memória e a verdade” acerca das torturas e assassinatos cometidos pela ditadura civil-miltar, pretendemos deixar muito claro que toda violência contínua do Estado e de seus agentes, lesiva à humanidade ontem e hoje, não prescreverá jamais no juízo histórico de sua população. Nesse sentido, conclamamos todos a estarem presentes, contribuírem e participarem desse processo já iniciado que culminará, nos dias 4 a 6 de dezembro, com a realização do “Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus”, na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito (USP), no Largo São Francisco, em São Paulo (SP). Até lá, uma série de iniciativas relacionadas serão realizadas, para as quais todos estão convidados. Mais informações podem ser conferidas em www.tribu nalpopular2008.blogspot.com. Coletivo Nacional do Tribunal Popular
Nova usina do grupo LDC bioenergia no MS A empresa LDC Bioenergia, do grupo francês Louis Dreyfus, um dos grandes conglomerados mundiais de grãos, anunciou a inaguração de uma nova usina de álcool, no município de Rio Brilhante (MS). A unidade esmagará 4,5 milhões toneladas por ano. BNDES financiará grupo Brenco Há alguns meses, um grupo de empresas de pesos-pesados da economia internacional, como o ex-presidente Bill Clinton, Steve Case (ex-AOL),ß Time Wanere (dono da CNN) e James Wolfenshonson, ex-presidente do Banco Mundial, organizaram o fundo de investimentos Brenco para atuar no etanol brasileiro. Agora, o BNDES anuncia que vai liberar R$ 1,23 bilhão para o grupo implantar quatro usinas de etanol. As usinas estarão nos municípios de Alto Taquari (MT), onde sairá um alcooduto para o porto de Paranaguá (PR), em Costa Rica (MS), e no município de Mineros (GO), que terá duas usinas. A novidade na operação é de que o BNDES anunciou que parte será como empréstimo e outra parte o banco manterá como 15% a 20% das ações do grupo. O que chama atenção é que o BNDES anunciou também que, desde 2004, quando começou a se expandir o etanol, o banco já liberou nada menos que R$ 10 bilhões para financiar a instalação de usinas de etanol em todo Brasil. Este ano, o banco já liberou R$ 2,7 bilhões.
ADM vence leilão da Petrobras Combustível Apesar da promessa do governo Lula, de que o programa de biodiesel da Petrobras não concorreria com alimentos e que priorizaria a pequena agricultura para distribuir renda, não é isso que acontece na prática. A Agência Nacional de Petróleo anunciou que o último leilão realizado para venda de óleo vegetal foi ganho pela transnacional ADM, que vendeu 33,9 milhões de litros de óleo de soja. Assim, o óleo a ser misturado no diesel é de soja, alimento, e o fornecedor, uma empresa tranasnacional estadunidense. Péricles de Oliveira é economista
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brasil Paulo A. Magalhães Fº
fatos em foco Hamilton Octavio de Souza
Ação genocida Missão da ONU no Afeganistão comprovou que, no dia 22 de agosto, tropas da OTAN, lideradas pelos Estados Unidos, bombardearam uma vila na região oeste daquele país e mataram 90 civis, sendo 60 crianças, 15 homens e 15 mulheres. Se isso não é genocídio, o que é? Somente em 2008, as tropas de ocupação mataram mais de 900 civis afegãos. O mundo se cala. Destruição inócula Os Estados Unidos invadiram o Afeganistão em 2001 sob o pretexto de derrubar o governo Taleban e capturar o “terrorista” Osama Bin Laden. Impuseram um novo governo fantoche e mantêm 34 mil, dos 50 mil soldados da Otan, naquele país. Após sete anos de destruição, Bin Laden não foi capturado, e o Taleban ressurge com força em várias regiões. O belicismo estadunidense não é solução para o mundo. Os Tupinambá de Olivença ainda não tiveram suas terras demarcadas
Na Bahia, Tupinambá de Olivença retomam terras ancestrais INDÍGENAS Há três anos,“os primeiros moradores da terra” – como sugere uma possível tradução de seu nome – promovem ocupações de latifúndios improdutivos na região Paulo A. Magalhães Fº de Salvador (Bahia) “SOU TUPINAMBÁ, tenho orgulho de dizer. Sou índio, sou guerreiro, eu sou forte pra valer!” Com este e outros cantos do Poranci – dança ritual circular ritmada ao som de maracás – os índios Tupinambá de Olivença celebraram mais uma retomada de terras no sul da Bahia. Conhecidos como “os mais antigos” ou “os primeiros” (segundo uma possível tradução de seu nome), os Tupinambá estavam presentes em toda a costa brasileira, quando da chegada dos portugueses. Atualmente, há cerca de 5 mil, espalhados em 23 comunidades, nos municípios de Ilhéus, Buerarema, Belmonte e Una, sendo o maior núcleo em Ilhéus, no distrito de Olivença. Apesar de serem os primeiros moradores da terra, os Tupinambá de Olivença até hoje não tiveram suas terras demarcadas, e vêm há cerca de 3 anos promovendo ocupações de latifúndios improdutivos na região, em um processo conhecido como “retomada”.
Atualmente, há cerca de 5 mil Tupinambá espalhados em 23 comunidades, nos municípios de Ilhéus, Buerarema, Belmonte e Una, sendo o maior núcleo em Ilhéus, no distrito de Olivença
Desde o dia 24 de julho, cerca de 10 famílias estão na “Retomada Abaeté”, no povoado de Santana, região de Sapucaieira, em Ilhéus. “Abaeté, em nosso idioma, significa homem honrado, e estamos readquirindo nossa honra através da conquista da nossa terra”, explica Crispiniano Pacheco, membro da Associação Beneficente Cultural dos Índios Tupinambá de Olivença. Uma associação que vem construindo projetos de pesquisa e prática dos saberes indígenas tradicionais, absorvendo o conhecimento dos mais velhos e produzindo remédios com ervas medicinais.
Raiz na terra “Antigamente, a gente não podia dizer que era índio. Quem não fugiu pra dentro do mato, foi forçado ao trabalho escravo e teve que aceitar a língua do branco”, conta Ivonete Souza, a “Indiara”. Com o acentuado processo de massacre e colonização a que foram submetidos, os indígenas tiveram que se integrar como tática de sobrevivência, vivendo um intenso processo de descaracterização, perda de identidade e desagregação familiar. Desde a década de 1990, entretanto, os Tupinambá vêm se reorganizando em um processo de fortalecimento da identidade e articulação política. “Nós éramos chamados de ‘caboclos’ de Olivença, mas hoje fazemos questão de afirmar que somos índios e queremos viver em paz em nossa aldeia”, afirma Ivonete. Tradições indígenas ancestrais como a língua Tupinambá, o Poranci e pinturas rituais vêm sendo cultivados com o intuito de preservar e fortalecer a tribo. Dentre as festas, uma já se tornou quase patrimônio ilheense, a “Puxada do Mastro de São Sebastião”, realizada no segundo domingo do ano. “Um dia caiu uma praga sobre a tribo, e muitos ficaram doentes. Então fizemos uma promessa: que se a árvore mais alta da mata fosse derrubada e carregada até o alto do morro, a tribo ficaria curada, e aconteceu assim. Todo ano, a gente derruba e planta outra no lugar, pra praga não voltar. Mas os jesuítas mudaram a festa depois, e hoje a prefeitura tomou conta de tudo” explica Admilson Amaral, o “Catu”. Catu é professor da Escola Estadual Indígena Tupinambá de Olivença, que funciona até a 4ª série e traz em seu currículo elementos da cultura e tradição do seu povo. Há cerca de 112 professores cursando o Magistério Indígena atualmente, oriundos de diversas etnias de todo o Estado da Bahia. Em suas retomadas, os Tupinambá trazem uma antiga consciência ecológica, ensinos ancestrais de harmonia e equilíbrio com a mãe-terra. “Muitos vinham escondidos e derrubavam madeira nestas terras, antes da nossa chegada. Os animais já são pouco encontrados, e paramos até de caçar para preservar a natureza, porque dependemos dela pra viver”, explica Pacheco. Com efeito, muitas árvores vem rareando cada vez mais na região, antes rica de jacarandá, braúna, sucupira, vinhático, jequitibá, juerana,
pau-óleo, jatobá, copaíba e aroeira, dentre outras.
Rio de sangue Todo segundo domingo de setembro, o povo Tupinambá realiza a “Caminhada em Memória dos Mártires do Rio Cururupe”. Em 26 de setembro de 1937, houve um brutal massacre dos indígenas que se encontravam em mobilização para retomada de suas terras desde 1929, em um processo chamado pelos mais velhos de “a última revolta do Caboclo Marcelino”. A revolta, inicialmente motivada pela resistência à construção da ponte sobre o rio Cururupe, ligando Ilhéus a Olivença, foi reprimida com ajuda dos “coronéis do cacau” que controlavam a região na época. Entre 1558 e 1559, houve no mesmo local a célebre “Batalha dos Nadadores”, quando o então
governador geral Mem de Sá promoveu um massacre que quase exterminou a população indígena local. Relatos históricos afirmam que os cadáveres dos indígenas foram estendidos ao longo de uma légua (aproximadamente 7 km) e o mar ficou vermelho de sangue. Vem daí o nome do Rio Cururupe (em tupi, “rio de sangue”). Apesar dessa reorganização política efetuada pelos Tupinambá, eles ainda se encontram divididos, contando atualmente com seis caciques com diferentes opiniões. Em seus escassos trechos de terra, os Tupinambá produzem farinha de mandioca, mamão, banana, coco e seringa, além de artesanatos tradicionais. A luta pela terra continua, e os cânticos fortalecem sua identidade guerreira: “Vamos pisar, dançar o catimbó. Pega o inimigo e amarra com cipó!”.
SOBERANIA
Brasil importa agrotóxicos proibidos na União Européia Anvisa afirma que a decisão foi adotada sob pressão de interesses econômicos Juliano Domingues de São Paulo (SP) O agronegócio brasileiro pode ser responsável por alguns casos de câncer adquiridos pela população. Até julho, o país importou mais de 6 mil toneladas de substâncias que foram proibidas nos países onde são produzidas. Trata-se de componentes utilizados para fabricar agrotóxicos utilizados em culturas de 24 tipos de alimentos brasileiros, como frutas, verduras e grãos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta que, além de câncer, esses produtos podem causar problemas no sistema nervoso e reprodutivo. As substâncias foram importadas da União Européia (UE). A assessoria de imprensa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que o processo de avaliação de periculosidade dessas substâncias começou em 2006, época em que várias delas já haviam sido importadas da UE. No en-
Quanto
6 mil toneladas de venenos proibidos nos países que os produzem foram importados até julho
tanto, o trabalho de avaliação foi interrompido por ordem de uma liminar expedida pela Justiça Federal de Brasília, em favor do Sindicato das Indústrias de Defensivos Agrícolas (Sindag). A Anvisa afirma que a decisão foi adotada sob pressão de interesses econômicos. A Agência também informou que essa venda de substâncias da UE é uma tática dos europeus de desovar em outros países, como o Brasil, os estoques de produtos que foram proibidos dentro do bloco. Diante da atual pressão do governo e dos alertas dados pela OMS, a Anvisa afirma que adotará atitudes para reavaliar o registro de nove substâncias. Elas fazem parte da composição de 99 agrotóxicos. (Radioagência NP)
Gasolina cara A propaganda oficial garante que o Brasil é auto-suficiente na produção de petróleo e tem grandes reservas para explorar. No entanto, o preço da gasolina cobrado do consumidor está muito acima do preço praticado em outros países, produtores de petróleo ou não. No Brasil, o preço médio do litro é de R$ 2,60; na Argentina, R$ 1,50; Venezuela, R$ 0,05; Estados Unidos, R$ 1,57; China, R$ 1,43. Por que será? Olho gordo Setores da direita estão mais interessados na prospecção de petróleo no pré-sal do que as esquerdas e as entidades de classe dos trabalhadores. A prova disso está na primeira audiência pública convocada pelo Senado para tratar do assunto, em setembro, que deverá reunir a fina flor do conservadorismo no Congresso Nacional, empresários e especialistas de linha neoliberal. Boa coisa não deve sair daí. Somente fachada Se for verdade que a bolha inflacionária ocorrida de abril a julho foi estimulada por pressão das commodities no mercado internacional, e não pelo excesso de demanda no mercado interno, então por que o Banco Central correu para aumentar as taxas de juros? E já que a bolha aparentemente esvaziou, por que os juros não baixam rapidamente? Está claro que os juros altos são sustentados por outros interesses – supostamente intocáveis. Pura exploração Continua a polêmica sobre a cobrança ou não de ponto extra para assinantes da TV acabo. A questão não está apenas no rateio desse serviço entre todos os assinantes, de maior e menor renda. A questão central é que o sistema brasileiro, fortemente monopolizado, cobra muito mais caro do que em outros países: o ponto extra custa R$ 8,00 nos Estados Unidos, R$ 4,00 na Argentina, R$ 7,5 no Canadá e R$ 25,00, por mês, no Brasil. Cartel danoso As principais indústrias de sucos do Estado de São Paulo – Cutrale, Citrovita, Louis Dreyfus e Citrosuco – estão jogando pesado para impor o preço que querem pagar aos produtores pela caixa da laranja e, por tabela, aos trabalhadores safristas. As empresas atuam como cartel: chegaram inclusive a interromper a compra da laranja em plena safra como forma de pressão. E ainda tem gente que acredita na humanização do capital. Rumos imperiais Na convenção do Partido Democrata que oficializou sua candidatura para a presidência dos Estados Unidos, Barack Obama dedicou mais de 80% de seu discurso para criticar o modelo econômico de seu país, a situação dos pobres, dos trabalhadores e dos desempregados. Deu a impressão de que ele estava se dirigindo aos povos da América Latina, com um discurso à esquerda de muitos presidentes latino-americanos. Deve ter surpreendido muita gente. Reserva nacional O candidato Barack Obama tem enfatizado bastante em sua campanha para a presidência dos Estados Unidos que vai parar de “exportar trabalho”. Isso quer dizer investimento interno, geração de empregos, substituição de importações e medidas protecionistas para a indústria nacional. A vitória dos democratas, lá, pode ser um banho de água fria nas exportações brasileiras. Atenção.
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brasil
Mulheres, papel chave na conquista da soberania alimentar e energética ENCONTRO Integrantes de organizações do campo e cidade do país se reuniram para debater alternativas aos atuais modelos Nina Fidelis
da Redação “QUEREMOS que as mulheres se apropriem do tema da energia. Precisamos construir uma visão crítica do modelo que temos e buscar uma alternativa a ele, a partir das nossas experiências, da nossa voz”. A fala de Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres, descreve um dos maiores objetivos do Encontro Nacional de Mulheres em Luta por Soberania Alimentar e Energética, que aconteceu em Belo Horizonte (MG), entre os dias 28 e 31 de agosto. Junto com a marcha, organizaram a atividade as mulheres da Via Campesina. De acordo com a organização, cerca de 500 mulheres do campo e da cidade participaram dos debates que abordaram desde temas mais gerais, como as formas de luta das mulheres no sistema capitalista patriarcal, os modelos energético, agrícola e alimentar, até questões mais específicas, como a privatização da água, os monocultivos e a produção de agroenergia. “Estamos aqui dentro do contexto da luta popular pela transformação. Queremos germinar aqui o projeto popular para o Brasil, com o olhar feminista”, resume Sarai Brixner, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Para Soniamara Maranho, da coordenação pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o encontro contribuiu para unificar a estratégia dos movimentos, o conceito de feminismo e avançar na qualificação das lutas. “Avançamos para a constru-
Quanto
79,8%
das mulheres que trabalham para o agronegócio não possuem renda fixa ção de um projeto popular, a partir da organização das mulheres da classe trabalhadora”, opina.
Soberania A temática geral do encontro – alimentação e energia – pautou dois debates extremamente importantes e atuais, em tempos de alta dos preços dos alimentos e do petróleo. Esses assuntos têm ganhado cada vez mais destaque entre movimentos populares não só do Brasil, mas de todo continente latino-americano, por permitir apontar a insustentabilidade do sistema capitalista. Nalu Faria entende que o interesse das mulheres pelo tema debatido foi um dos pontos positivos. “A questão energética e alimentar é estratégica e está ligada ao trabalho cotidiano das companheiras. O encontro mostrou que existem alternativas, que as coisas não estão dadas e que as mulheres podem se envolver e se fortalecer cada vez mais com as lutas concretas”, avalia. Para Lourdes Vicente, da coordenação do encontro pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), “aqui, nós percebemos que os problemas vivenciados pelas mulheres da cidade são os mesmos vivenciados pelas camponesas. A questão energética e alimentar é comum às nossas companheiras. Para tanto, nada melhor que ban-
Cerca de 500 mulheres participaram dos debates em Belo Horizonte
“Hoje eu sou referência quando o assunto é cisterna, mas no começo ninguém acreditava que eu seria capaz. Também precisei enfrentar meu marido. Hoje é tudo diferente. Fazemos tudo junto”, conta a agricultora Francisca das Chagas deiras unificadas. Nesse sentido, foram apontadas algumas lutas para o próximo período, a partir da necessidade de as mulheres se organizarem para enfrentar a realidade”, aponta.
Opressão Duplamente oprimidas dentro de uma sociedade capitalista e patriarcal, as mulheres também são as que mais sofrem com a falta de soberania alimentar e energética. Nalu Faria afirma que as mulheres sentem no cotidiano que, além de serem exploradas pela condição de trabalhadoras, também o são pela questão de
gênero: a base do sistema capitalista está posto sobre a exploração de classe, de raça e de gênero. “Portanto, não basta lutarmos contra o sistema, se não lutarmos contra a exploração de gênero, e isso só vai acontecer se nos organizarmos enquanto mulheres, avançando sobre a desigualdade a que somos expostas”, conclui. Ivonete Tonin, representando a Via Campesina, exemplifica como essa questão se revela no campo, na luta entre o agronegócio e a agricultura camponesa. De um lado, a luta para que o meio rural seja um espaço de produção de
alimento e vida digna e, de outro, o campo como espaço de geração de lucro pela exploração da terra, no qual o monocultivo de eucaliptos, por exemplo, gera um único emprego numa área de 185 hectares plantados. De acordo com ela, no Rio Grande do Sul, o monocultivo de soja expulsou do campo cerca de 127 mil pessoas. A maioria delas são mulheres, que acabam sendo domésticas nas cidades e arredores. O agronegócio é o responsável para que, cada vez mais, a pobreza no campo tenha o rosto das mulheres, com 79,8% delas não tendo renda fixa, segundo dados do Dieese/Nead.
Oficinas Durante o evento, as mulheres – representando cerca de 20 organizações – dividiramse em nove grupos temáticos, com objetivo de trocar experiências de alternativas que já estão sendo implementadas
na prática. Técnicas de convivência com o Semi-árido, criação de sementes criolas, agroecologia e agricultura urbana, ocupações urbanas e resistência à ação das transnacionais foram alguns dos temas. Com relação ao Semi-árido, um dos depoimentos foi o de Francisca das Chagas, mais conhecida como Chaguinha. A mudança na vida dela começou com a chegada de 30 cisternas ao assentamento Independência, no Rio Grande do Norte, onde vive. Para conquistar a cisterna, ela precisava participar de um curso de cisterneira (também conhecido como curso para mulheres pedreiras). No curso, ela não só aprendeu a construir cisternas, como também a vencer preconceitos. “Hoje eu sou referência quando o assunto é cisterna, mas no começo ninguém acreditava que eu seria capaz. Também precisei enfrentar meu marido, que não permitia que eu viajasse e não queria que eu trabalhasse fora. Hoje é tudo diferente. Fazemos tudo junto”, relata. Chaguinha ainda complementa, dizendo que, além da autonomia, conquistou o direito de ter água de qualidade em casa. “Hoje, quando acordo, vejo minha cisterna bem linda no quintal, e não preciso mais buscar água distante de casa”, conta. (Com informações da Equipe de Comunicação do Encontro Nacional por Soberania Alimentar e Energética, Alexania Rossato, Fernanda Cruz, Joana Tavares, Patrícia Prezotto, Lívia Bacelete, Nina Fideles e Viviane Brochardt – http:// www.sof.org.br/encontro).
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brasil Cesar Greco/Folha Imagem
A seleção brasileira de volei feminino exibe, em coletiva na chegada ao país, as medalhas de ouro conquistadas
Qual o valor de uma medalha olímpica? ENTREVISTA Juca Kfouri acredita que cada medalha ganha afasta o Brasil do ideal de um projeto cidadão de desenvolvimento do esporte Juliano Domingues de São Paulo O BRASIL carece de um projeto para o desenvolvimento do esporte no país. A conclusão aparece após a análise da atuação do país nas Olimpíadas de Pequim e do desempenho brasileiro nas várias modalidades esportivas em que disputou medalhas. O jornalista Juca Kfouri compartilha da idéia de que é preciso um projeto de desenvolvimento do esporte. No entanto, ele cita a necessidade de se vincular este projeto à visão de bem-estar, saúde pública e educação. Em entrevista, ele critica a atuação do país em Pequim, mas não por causa do
número de medalhas conquistadas. Muito pelo contrário, Juca acredita que cada medalha ganha afasta o país deste ideal de estabelecimento de um projeto cidadão de desenvolvimento do esporte. Pergunta – As Olimpíadas podem servir como ferramenta para medir o desempenho do esporte no Brasil? Juca Kfouri – Depende do que você valoriza. Eu tenho a teoria de que cada medalha do Brasil apenas torna mais distante a meta de que o país tenha uma verdadeira política esportiva, porque [com cada medalha] fica todo mundo eufórico e isso esconde todas as nossas carências. O Brasil é um país que, pelas suas carências em saúde pública, lazer e educação, não tem o direito de almejar ser uma potência olímpica. O Brasil tem que pensar em esporte como fator de inclusão social, como fator de educação e saúde pública. Segundo a Organização Mundial de Saúde, cada dólar investido em esporte economiza três em saúde. Feito isso, você estabelece uma política esportiva. O que nós temos que fazer primeiro é cumprir o que está na Constituição. Ou
seja, é dever do Estado prover esporte para o cidadão. Existe essa confusão em analisar o que existe por trás de uma medalha na Olimpíada. Um exemplo foi a vitória do nadador César Cielo. Ele viveu uma realidade diferente da maioria dos esportistas brasileiros, ou não? Ele na verdade é um nadador dos EUA [que nasceu no Brasil]. Tanto é verdade que você pega o caso do Thiago Pereira, que foi o grande nadador dos Jogos Panamericanos, e ele não tem a menor condição de lutar por uma medalha [nas Olimpíadas], mas ele treinou aqui esse tempo todo. Ao passo que o Cielo nadava todo final de semana ao lado do Michael Phelps. Então ele [Cielo] não tem nada a ver com o esporte brasileiro, assim como o Guga [tenista]. O que era o Guga? Por acaso ele é fruto de uma política para o esporte brasileiro? Não, o Guga é fruto de si mesmo. É um fenômeno da natureza. Eu acho que a visão cidadã da prática esportiva no Brasil é antes de tudo ver as nossas crianças se exercitando nas suas comunidades. Os dados do IBGE [Instituto Brasilei-
ro de Geografia e Estatística] mostram que apenas 12% das escolas municipais possuem quadras esportivas, e isso não significa que elas tenham professor de Educação Física. Então, veja você se faz sentido a gente ficar discutindo número de medalhas.
Orlando Silva, tornou a falar em leis de incentivo para esporte. Mas isso é complicado porque delega para empresas privadas a tarefa de investir, fato que gera a concentração de recursos nas instituições que têm mais visibilidade. Fale um pouco sobre isso. Isso é oficial. Pegue aí quem mais se beneficiou da lei de incentivo ao esporte até hoje. Pela ordem, São Paulo Futebol Clube, para terminar o seu segundo centro de treinamento em Cotia (SP), depois o Minas Tênis Clube, também para obras do seu alojamento e afins. Veja que eu não tenho nada contra o fato de que quem esteja trabalhando direito seja devidamente incentivado. Mas o que eu quero dizer é que não pode ser prioritariamente o São Paulo a receber dinheiro de incentivo, e não o grupo escolar de um lugar qualquer. É essa a inversão de valores que faz com que tenha recursos aquele que conhece o “caminho das pedras”, que tem o melhor despachante e que também tem o cara que o ministro do Esporte ou presidente da República recebe.
Logo após as Olimpíadas, o ministro dos esportes,
No Brasil, há uma visão do esporte como
“Ele [César Cielo], na verdade, é um nadador dos EUA [que nasceu no Brasil]. O Thiago Pereira, que foi o grande nadador dos Jogos Panamericanos, não teve a menor condição de lutar por uma medalha [nas Olimpíadas] porque treinou aqui esse tempo todo”
ferramenta para afastar a infância da criminalidade. Isso não é meio incompleto? Pois foca a atividade apenas numa época da vida da pessoa, como uma ferramenta paliativa para solução de problemas e sem perspectivas de profissionalização futura. Tem uma grande demagogia aí, que é você dizer que, dando esporte, as pessoas se afastam das drogas. Seria desejável que realmente fosse assim. É evidente que quem se preocupa mais com o corpo tende menos a se drogar, mas, ao mesmo tempo, a gente não pode se negar em dizer que o esporte de competição e de alto rendimento não só não faz bem pra saúde, porque exige demais do corpo, como são inúmeros os casos de grandes campeões que, exatamente por terem sido grandes campeões, acabam se drogando para sustentar suas cabeças que não foram preparadas para isso. Isso sem falar no dopping, que é uma maneira de se drogar. Então, esse discurso tem uma certa falsidade. (da Radiogência NP. Para ouvir a entrevista, acesse www.radio agencianp.com.br).
cultura
A velha guarda do samba ressurge TRADIÇÃO RESGATADA Projeto cultural apresenta samba e histórias de antigos compositores na zona leste da capital de São Paulo Márcio Zonta de São Paulo (SP) “Devolver ao povo o que é do povo”. Assim, o metalúrgico Marcio da Cruz Rosa define o objetivo do Projeto Comunitário de Resgate à Velha Guarda do Samba Terra Brasileira. O projeto, fundado por quatro amigos em janeiro de 2005 e atualmente formado por 24 componentes, vai contra a ideologia mercantil-cultural do circuito paulistano de cultura, bancado e dominado por grandes empresas. O grupo tampouco se interessa pelas leis burocratas da cultura governamental. Rosa afirma não tocar por cachê. Todos os músicos bancam suas próprias despesas. “Nossa ideologia é fazer o samba acontecer como ele deveria ser feito.” Para outro co-fundador do projeto, o marmorista José Francisco Paulo,“o gigantismo dos projetos culturais custeados por grandes empresas destruiu tudo o que se construiu no país”, formando artistas sem artes. “Não queremos ser vistos como artistas, mas como sambistas, nunca queremos ser mais que o samba, mas sim instrumentos para que ele aconteça”, diz.
Politização operária O espaço, cedido pela Escola Nova Cultura, já foi palco de aulas para operários das fábricas da década de 1970, instaladas na região do Belenzinho, zona leste da capital de São Paulo. A socióloga e educadora popular Ângela Maria Melito, co-administradora do Centro de Educação e Cultura Arte Escola, responsável pelo local, diz ter agido por muito tempo na clandestinidade na época da ditadura, “pois as aulas de política influenciavam no movimento operário e no comportamento dos empregados perante a imposição de seus patrões”. Hoje, o clima é dos barracões rústicos das antigas escolas de samba. Com aproximadamente 20 metros de comprimento, em suas paredes estão penduradas duas bandeiras do Brasil e fotos de Cartola, Mano Décio da Viola, Silas de Oliveira, Elton Medeiros e Candeias. Para dar tom e batidas necessárias aos sambas dos antigos compositores, os instrumentos completam o cenário. Uma das marcas do projeto é permitir que seus músicos só utilizem instrumentos musicais genuinamente brasileiros ou afro-brasileiros.
João Carlos Generoso
Roda de samba do Terra Brasileira
Paulo explica que os instrumentos são de características do samba da Velha Guarda, além da religiosidade da qual eles descendem: “O bandolim é herança do choro, o atabaque é porque esse samba nasceu dentro das rodas de candomblé”.
Samba crítico Todas as características da roda de samba remetem ao passado da música popular brasileira, criativa em suas poesias para dizer sobre as alegrias das comunidades e crítica diante das mazelas vividas pelo povo – diferentemente do pagode pasteurizado atual viabilizado pela indústria cultural.
O repertório tocado inclui Zé Kéti, com sambas que falavam das dificuldades da vida dos morros cariocas, como “Acender as Velas” e “Opinião”. Esta última fazia parte do espetáculo Opinião, dirigido por Augusto Boal e interpretado pelo próprio Zé Kéti, ao lado de Nara Leão, no ano de 1964. Ano que marcou o início de espetáculos com musicais de protestos. Monarco, Candeias, Pixinguinha, entre tantos outros, completam o quadro. A cada música tocada desses compositores, uma integrante do grupo levanta e fala brevemente sobre a história de vida e da carreira des-
ses músicos, contextualizando historicamente suas composições. Rosa afirma faltar referências culturais para as crianças e jovens, deixando um mundo vazio de idéias. Na sua opinião, “o atual estado de violência da população é pura falta de poesia”. Paulo acrescenta que “o importante é deixar para os nossos filhos e netos uma referência cultural a ser seguida, pois se não existir um trabalho como esse, os grandes compositores serão esquecidos de vez e o verdadeiro samba desaparecerá”.
A mensagem Entre os presentes, encontram-se estudantes de diversas áreas, professores, familiares dos integrantes dos grupos e defensores da cultura brasileira. O jornalista André Carvalho, estudioso do samba de roda e freqüentador assíduo, afirma que vários outros projetos de resgate nascem na periferia de São Paulo. “São sambas de terreiro que a mídia não mostra, e no berço de tudo isso, no Rio de Janeiro, sequer existe o resgate.” Carvalho diz que a influência da música estrangeira do final de década de 1950 ti-
rou de cena o samba de terreiro. “As músicas de fora invadiram as rádios e se perdeu a raiz, obscurecendo a cultura brasileira”. A estudante de arquitetura Júlia Zaragosa diz freqüentar o local há uns seis meses pelo ambiente familiar, pela música que representa a cultura brasileira e, sobretudo, por não se sentir um número de comanda. “Venho aqui por ter música de qualidade, o samba é o centro do acontecimento, não pela cerveja barata ou outro atrativo”. Já o professor de Geografia Diogo Marcondes, presente pela segunda vez no projeto, diz ter voltado pois “o caráter do âmbito do samba tocado é cultural, não é um produto da indústria, um modismo, nem uma balada em que as pessoas não interagem entre si. Aqui, todos participam da roda de samba e desse resgate da Velha Guarda”.
Serviço Escola Nova Cultura Rua Valdemar Dória,163 Belenzinho – zona leste São Paulo Sábados, com intervalo de quinze dias, a partir das 15h. Entrada franca.
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américa latina
Direita articula golpe de Estado no Paraguai contra Fernando Lugo APC/CC
DENÚNCIA General Máximo Díaz delata complô contra presidente; oposição nega Eduardo Sales de Lima da Redação O PRESIDENTE do Paraguai, Fernando Lugo, denunciou no dia 1º uma conspiração, liderada pelo ex-mandatário Nicanor Duarte Frutos e por Lino Oviedo Silva, para dar um golpe de Estado no país. Em coletiva de imprensa, ele relatou que, no dia 31 de agosto, ocorreu uma reunião na residência de Oviedo na qual estavam presentes o presidente do Senado, Enrique González Quintana, o advogado Lelis Olmedo, o ministro da Justiça Eleitoral, Juan Manuel Morales, e o fiscal geral do Estado, Rubén Candia Amarilla. O general Máximo Díaz, que tem como função fazer um elo entre o parlamento e os militares, também estava presente. Foi o oficial que fez a denúncia ao governo. De acordo com ele, Oviedo lhe perguntou sobre “o que parecia às Forças Armadas a crise no Congresso Nacional”. O general respondeu que era um tema que devia ser resolvido pelos legisladores, informou Lugo na coletiva. Desde o final de agosto, o Senado está dividido em torno da aceitação ou não do nome de Nicanor Duarte para uma cadeira. Segundo o chefe de imprensa da campanha de Lugo, Ausberto Rodrigues, a pergunta foi “sugestiva”. “A intenção deles era ouvir a afirmação do militar de que há ‘mal-estar’ e, assim, se convinha promover uma sublevação militar para ‘salvar’ a crise parlamentar”, explica ao Brasil de Fato. “O golpe de Estado obrigaria o presidente e o vice [Julio Cesar Franco] a renunciar e a Presidência da República seria ocupada pelo ‘oviedista’ Gonzáles Quintana. Somado a isso, Nicanor Duarte teria o caminho aberto para retomar o controle do país”, relata Rodrigues.
“As portas das Forças Armadas estão abertas aos mandatos constitucionais da República e fechadas para golpes de Estado”, assegurou o general Soto Estigarribia
Mas a seqüência do roteiro não agradou nem a Nicanor, nem a Oviedo. O general Máximo Díaz saiu da reunião e foi informar o sucedido diretamente ao Comandante das Forças Militares do país, general Bernardino Soto Estigarribia, quem, por sua vez, informou imediatamente ao presidente. Lugo afirmou na coletiva que não permitirá que as Forças Militares sejam utilizadas por interesses sectários. E pediu para que os paraguaios ficassem alerta ante possíveis golpes. “Não permitiremos que se atente contra a liberdade de nosso povo”, disse o presidente, que agradeceu à lealdade das Forças Armadas. “Os projetos conspiratórios serão enfrentados com todos os recursos da lei”, expressou Lugo, ao anunciar que censura “a atitude dos concorrentes e muito particularmente dos altos magistrados Juan Manuel Morales e Candia
Amarilla”. Por sua parte, o senador liberal Miguel Abdón Saguier determinou o início urgente de análises sobre medidas internas dentro do Legislativo, para decidir as correspondentes medidas sobre Gonzáles Quintana.
Lealdade O general Bernardino Soto Estigarribia assegurou que “as portas das Forças Armadas estão abertas aos mandatos constitucionais da República e fechadas para golpes de Estado”. Já o ministro do Interior, Rafael Filizzola, reforçou que os militares e as polícias estão subordinados à Constituição, às leis e não vão se prestar a uma aventura golpista. “Estamos em condições de assegurar a estabilidade no Paraguai”, insistiu. Outro lado Nicanor Duarte afirmou que “há grupos cercando o presidente Lugo que, no velho estilo das ditaduras latino-americanas, inventam uma história de conspiração para preparar o caminho da repressão e o aniquilamento do adversário”. Oviedo, ex-chefe do Exército, disse que se encontrou com Duarte em sua residência para discutir acordos políticos parlamentares. “O (Lino) Oviedo está sendo muito atacado agora, e é muito difícil que ele e o Nicanor assumam o teor da reunião neste momento”, reconhece ao Brasil de Fato Victor Barone, da direção nacional do Partido da Covergência Popular Socialista. Ele ratifica que, logicamente, não é um bom momento para se pensar em golpe de Estado, “Lugo acabou de ser eleito. De fato, não pensavam em fazer um golpe agora, mas é um processo mais demorado. Estão buscando espaços. O Oviedo e o Nicanor estão em um processo de formar alianças. Mas trata-se de uma aliança difícil, porque os dois são líderes de seus setores políticos. Por isso, também é mais difícil pensar em golpe. Na verdade, essa foi mais uma de outras reuniões que eles fizeram”, conclui Barone. Eleito legítimo Desde seus escritórios no Paraguai, embaixadores representantes de diferentes países da América Latina manifestaram apoios solidários ao governo de Lugo e em favor da autonomia e da democracia. Os Estados-Membros do Mercosul e Associados declararam que o processo de integração regional é “inseparável do respeito pleno à democracia e às suas instituições”. Já o governo brasileiro afirmou, por meio do Ministério de Relações Exteriores, confiar “em que a institucionalidade democrática será plenamente mantida no país e reafirma seu apoio ao Presidente Lugo, legitimamente eleito pelo povo paraguaio”. Por seu lado, a Associação das Organizações Não-Governamentais do Paraguai e a Mesa Coordenadora Nacional de Organizações Camponesas também manifestaram apoio a Lugo. Luis Aguaio, dirigente da mesa, declarou apoio ao governo recém-eleito. “Expressamos nosso pleno respaldo democrático porque isso é precisamente o capital de todo nosso povo e todos temos responsabilidade de velar por esse processo”, declarou à emissora Radio Mil. Segundo o chefe de imprensa da campanha Ausberto Rodrigues, devido ao peso da indignação popular, está se preparando uma grande mobilização de apoio ao presidente e às instituições paraguaias para o dia 4.
O presidente Fernando Lugo deixa o Palácio de López após denunciar à imprensa uma tentativa de golpe
ANÁLISE
Um país em disputa Ivan Pinheiro Na abertura da cerimônia de posse de Fernando Lugo, ouviu-se duas vezes seguidas o hino nacional. Na primeira, cantada em espanhol, os comandantes militares encheram o peito, perfilaram-se e colocaram a mão direita em continência. Na segunda, em guarani, eles se descontraíram e arriaram os braços. Em seguida, ouviram inertes o novo presidente anunciar, entre outras intenções, que acabará com a corrupção e que as Forças Armadas terão que passar ao povo segurança e respeito, ao invés de medo. A posse foi marcada pela esperança popular, após 60 anos do mesmo partido conservador no poder – 96% dos paraguaios confiam que haverá mudanças positivas. Houve simbolismo até no tratamento aos chefes de Estado da América do Sul. Foram marcantes as ausências de Alan García, do Peru, e Álvaro Uribe, da Colômbia. Foi impressionante o recado do povo paraguaio, ao aplaudir os presentes exatamente na proporção das mudanças que promovem em seus países, na seguinte ordem crescente: Tabaré Vasquez, Bachelet, Lula, Cristina Kirchner, Rafael Correa, Evo Morales e Hugo Chávez. Uma semana depois da posse, a primeira providência de Lugo foi substituir os comandantes militares. A segunda foi decretar o início da reforma agrária, exatamente em terras onde o ditador Strossner expulsou os Guarani para doá-las ilegalmente a aliados, incluindo alguns colegas de farda. Mas, apesar da manifesta vontade política do novo presidente e de seus compromissos com os movimentos sociais, sobretudo indígenas e camponeses, serão enormes as dificuldades para levar adiante seu programa de mudanças democráticas, populares e nacionais. O Paraguai se ressente até hoje do massacre levado a efeito pela chamada Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) – lá chamada de “Tríplice Infâmia” – que dizimou quase toda a população, especialmente a masculina. As tropas brasileiras, ao se retirarem, saquearam o país, inclusive o Arquivo Nacional paraguaio, absurdamente ainda não devolvido pelo nosso governo. O país conta com menos de 6 milhões de habitantes, cuja maioria vive na pobre-
za e no analfabetismo. A população é submetida a uma alienação profunda. O país é satélite econômico e cultural dos Estados Unidos e “sócio de luxo” de Taiwan: à falta de indústrias, exporta matérias-primas e importa quase tudo, inclusive bugigangas para intermediar. A frente que elegeu Lugo é heterogênea: APC (Alianza Patriótica para el Cambio) – Partido Liberal e Tekojoja; APS (Alianza Patriótica Socialista) – Partido Comunista Paraguaio, Partido Convergência Popular Socialista, Partido da Unidade Popular, Plenária Política Campesina e Indígena etc.; PMAS (Partido do Movimento ao Socialismo).
Uma semana depois da posse, a primeira providência de Lugo foi substituir os comandantes militares. A segunda foi decretar o início da reforma agrária, exatamente em terras onde o ditador Strossner expulsou os Guarani para doálas ilegalmente a aliados, incluindo alguns colegas de farda
O vice-presidente é do Partido Liberal, um partido social-liberal. É o partido mais forte dos que apoiaram Lugo e o único deles que elegeu representantes: quase um terço dos deputados e senadores, além de alguns governadores e prefeitos. Os Colorados (há 60 anos no poder) têm as maiores bancadas no Congresso Nacional (Câmara e Senado), além do maior número de governadores e prefeitos; em aliança com o partido de Lino Oviedo, a oposição de direita tem dois terços das duas casas legislativas. O outro terço é de liberais. Os partidos de esquerda
estão em reconstrução. Nenhum deles elegeu parlamentares ao Congresso Nacional, nem governadores e prefeitos. Só o Tekejoja elegeu um deputado, mas específico para o Parlatino. O novo presidente é filiado a esse partido, criado por movimentos sociais antes das eleições. Fernando Lugo terá que conviver com uma cúpula burocrática corrupta e reacionária: colorados ocupam os principais cargos na Justiça, no corpo diplomático, nas Forças Armadas, nos Ministérios, no Congresso Nacional e até na Presidência da República e no Palácio de Governo. Uma das maiores fontes de corrupção é a Itaipu Binacional. A classe operária e os sindicatos têm pouco peso político. Com o avanço avassalador do agronegócio (o país é o 4º produtor mundial de soja), o papel do campesinato também diminuiu. Os jornais diários e canais de televisão são todos burgueses.
Velha fórmula A fronteira e a identidade cultural com a Bolívia podem ajudar na consolidação do processo de mudança, ainda que os povos originários no Paraguai não tenham o peso quantitativo e qualitativo que têm naquele país vizinho. No entanto, a necessidade de saída para o mar e de renegociação dos acordos energéticos com Brasil e Argentina podem levar Lugo a gravitar em torno dos governos desses dois países, exatamente dos mais moderados, do ponto de vista de mudanças. Lula e a nossa esperta diplomacia podem se valer da situação para fortalecer no Paraguai os interesses da burguesia brasileira, integrada ao capital internacional. Ao invés de territórios, como no passado, agora conquistamos mercados. O presidente está sendo obrigado a compor o governo com a velha fórmula de destinar os ministérios econômicos para conservadores (como o Ministério da Fazenda, entregue a um exministro de Nicanor Duarte, afinado com as políticas do FMI) e os ministérios políticos e sociais para progressistas. Se resolver ser fiel às promessas de mudanças, Lugo terá que adotar no curto prazo ações emergenciais destinadas a mitigar alguns problemas sociais, para não perder a credibilidade popular, criando condições para uma governabilidade social, já que não disporá de governabilidade institucional, salvo se trair seu programa.
Essas ações servem também para evitar um golpe da direita, que começou a ser costurado 15 dias após a posse, conforme Lugo denunciou publicamente. Afinal, a direita paraguaia é articulada com o imperialismo estadunidense, que mantém, perto do aeroporto de Assunção, uma base de espionagem para todo o Cone Sul. O Paraguai tem parte em uma das maiores reservas de água potável do mundo, o Aqüífero Guarani.
Consulta popular A convocação de uma Assembléia Constituinte específica, com composição distinta do Congresso Nacional e aberta a candidaturas de partidos e movimentos sociais, pode ser uma alternativa para mudar a correlação de forças, desde que precedida de medidas sociais efetivas e de grandes mobilizações populares. Talvez o melhor modelo ainda seja o que está dando certo na Venezuela, no Equador e na Bolívia, cujos presidentes se elegeram sem maioria no parlamento ou sem nenhum parlamentar, como foi também o caso de Rafael Correa. O presidente convoca uma consulta popular, através de plebiscito, para o povo decidir se quer convocar uma Constituinte específica. Mas, para começar a enfrentar alguns problemas sociais, o presidente só dispõe de uma fonte: a água, que pode representar para ele o que o petróleo representa para Hugo Chávez e o gás para Evo Morales. Mas isso dependerá de uma melhor remuneração do excedente de energia elétrica que o país vende, sobretudo para o Brasil, pois não consome mais do que 5% da produção. Daí a necessidade de renegociar com o Brasil o acordo de Itaipu Binacional, assinado por ditaduras nos dois países, em 1973, pelo prazo de 50 anos. Temos com o Paraguai uma dívida humanitária. O Brasil é co-responsável pela situação de miséria em que vive a maioria do povo paraguaio. Portanto, cabe-nos pressionar o governo brasileiro a renegociar os termos do acordo de Itaipu, como uma reparação histórica, não como uma oportunidade de negócios. Não há um país na América do Sul em que nossa solidariedade pode ajudar tão concretamente um povo irmão e vizinho a viver melhor. Ivan Pinheiro é Secretário Geral do PCB (Partido Comunista Brasileiro)
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américa latina
Na Colômbia, é tempo de trocar as fichas de um jogo macabro? ANÁLISE Uribe entra em crise com as elites que lhe sustentam. Mudar, para deixar tudo como está, pode ser o caminho da oligarquia Antonio Cruz/ABr
Simone Bruno O GOVERNO de Álvaro Uribe faz parte de um processo que começa antes dele e não terminará com ele. A presidência atual não existiria sem três fatores: Estado paramilitarizado, um conflito e uma guerrilha. E todos não são mais que instrumentos de um projeto que os inclui e tenta controlálos e manipulá-los.
O conflito Os conflitos armados geram refugiados, mas essa interpretação deve ser invertida no caso colombiano, no qual os deslocamentos forçados são a origem do processo. A terra dos indígenas, afrodescendentes e camponeses é a razão da guerra. As oligarquias rurais – uma das mais reacionárias do continente – e as empresas nacionais e transnacionais, com seus aliados paramilitares e narcotraficantes, sonham em apropriar-se do generoso solo e subsolo. Para que isso aconteça, são necessários Estado ausente e existência de um conflito. Ambas as condições sempre existiram na Colômbia. A guerra justifica a violência, confunde agressões e resistência em uma nuvem cinzenta, transforma sindicalistas, movimentos e ativistas em subversivos e converte a repressão por meio da força em algo aceitável por uma sociedade acostumada com ela, como um mal endêmico que não se pode curar nunca. O conflito é permanente, o inimigo, necessário: aos paramilitares, seguem os “grupos emergentes”; ao cartel de Medellín, o “escritório” de “Don Berna”; as próprias Farc podem se dissolver em uma série de pequenos exércitos regionais a serviço de narcotraficantes. Acabam-se os grupos, mas não as condições em que eles foram gerados. Assim, perpetua-se o conflito para que sempre exista um inimigo. Todos são fichas em um jogo de guerra que legitima os abusos, a expulsão, a repressão e a reprodução da classe dominante.
Os “paras” nada mais foram do que fichas nas mãos das elites, uma criação dela, um ator endógeno ao Estado, um instrumento de repressão aos protestos
Isso vem sendo denunciado por muitos dos movimentos sociais colombianos que viveram a guerra na própria carne, pagaram com mortos sua resistência ou simplesmente sua existência. Mas, agora, pela primeira vez, uma engrenagem se rompeu e as relações entre as elites rurais, os paramilitares e a esfera empresarial saíram à luz do sol.
O paramilitarismo Em maio de 2006, a Corte Constitucional transformou a Lei de Justiça e Paz, legislação que regulamenta o processo de paz dos paramilitares das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) com o governo Uribe. A sentença tornou abrigatória a confissão total dos crimes por parte dos paramilitares que quiserem ter penas máximas de oito anos. Antes, na versão presidencial da lei, a confissão era facultativa. Por isso, os chefes se viram obrigados a contar ao mundo a história da paramilitariza-
O presidente colombiano Álvaro Uribe procura uma maneira de garantir seu futuro político
ção colombiana. Nada novo, só que dessa vez são as bocas dos carrascos, e não os gritos das vítimas, que contam as mesmas histórias, as mesmas relações com políticos e empresários, os mesmos massacres. Paradoxalmente, os carrascos têm sido mais escutados que os massacrados; e a justiça parece acreditar mais neles. Dessas versões livres, desencadeou o escândalo da parapolítica: 70 políticos, entre parlamentares e senadores investigados pela Corte Suprema de Justiça por compra e venda de votos e pela criação, financiamento e apoio aos paramilitares da AUC (provavelmente o grupo mais sangrento da América Latina). Quase a metade desses representantes está presa e 10 confessaram seus crimes. A maioria dos investigados pertence a partidos que apóiam o presidente, dentre eles, o seu primo, Mario Uribe, companheiro político desde o início da sua carreira. Das versões livres, pode-se desvelar o segredo fundador dos grupos paramilitares, sua função e, de forma geral, as dinâmicas do conflito colombiano. Os “paras” nada mais foram do que fichas nas mãos das elites, uma criação dela, um ator endógeno ao Estado, um instrumento de repressão aos protestos, principalmente sindicais, para poder expulsar os camponeses e seguir uma nunca acabada contra-reforma agrária. Éver Veloza, o chefe paramilitar conhecido como H.H., diferentemente dos outros líderes, ainda não foi extraditado para os Estados Unidos. Suas versões livres e suas entrevistas para os diários Espectador e Washington Post são fundamentais para entender o papel dos “paras”. Ele afirma, assim como muitas organizações de vítimas e defensoras dos direitos humanos, que a extradição dos outros chefes paramilitares é uma estratégia para enterrar verdades incômodas. H.H. fala também sobre o papel dos paramilitares no conflito colombiano, a razão do conflito e quem se beneficia com ele. “Veja como estamos. Na prisão, outros extraditados e outros estão se rearmando por falta de oportunidades. A maioria de nós não está na guerra por vontade própria, mas sim porque não há o que fazer. A guerra virou uma bolsa de emprego. Faltaram mais compromis-
As Farc assumiram um papel político fundamental nos últimos anos, entretanto este foi o oposto àquele que provavelmente proporiam
sos do governo para oferecer condições aos rapazes que se desmobilizaram. Nas cidades, não encontraram nenhuma condição. [...] É preciso falar a verdade: dessa guerra, só se beneficiaram os ricos. Nessa guerra, perderam os pobres e nós, que estamos presos. Nós fizemos mortos e fizemos morto ao povo. Mas os ricos se beneficiaram. É preciso contar a verdade para que essas pessoas não continuem usando a guerra para se beneficiar economicamente”. Se a parapolítica está levando à luz a rede de relações entre paramilitares e políticos, o capítulo das relações deles com o mundo empresarial está apenas começando. A única exceção é a transnacional Chiquita Brands, que aceitou acusação de ter financiado a AUC em um tribunal federal dos Estados Unidos. H.H. conta como se gastava esse dinheiro e por qual razão uma empresa estrangeira pagava um grupo terrorista internacional: “Chegamos para recuperar o controle em Urabá, já que paralisações prejudiciais às empresas vinham acontecendo. Quando chegamos a Urabá, em fevereiro de 1995, não houve mais nenhuma paralisação. Isso porque eu, pessoalmente, obrigava as pessoas a trabalhar. Em benefício de quem? Dessas empresas exportadoras”. H.H. declarou-se culpado de, pelo menos, 3 mil homicídios, mas será extraditado aos Estados Unidos, que o acusam por ter exportado e distribuído “5 ou mais quilos de cocaína”.
A guerrilha As Farc assumiram um papel político fundamental nos últimos anos, entretanto este foi o oposto àquele que provavelmente proporiam. Os atentados que precederam as eleições de 2002 e a ruptura das negociações com o governo de Andrés Pastrana empurraram à vitória
o candidato da opção militar, Uribe. Rapidamente, cada uma das numerosas derrotas da guerrilha contribuiu para tirar o governo das suas piores crises. Além disso, reforçaram na opinião pública a concepção de que o governo ia por um bom caminho, e da necessidade da perpetuação de Uribe no poder. Essa mesma série de derrotas é a que mantém os índices de popularidade do presidente em níveis inverossímeis. Se as Farc não existissem, o governo teria que lidar com os problemas reais do país, como as altas taxas de pobreza e desemprego. As Farc, também, atravessam um momento de incrível dificuldade, depois de ter recebido os golpes mais duros de sua história. Desacreditada frente à população, isolada internacionalmente, inclusive no campo militar, ela tem sofrido importantes derrotas. Em março, morreram três integrantes do secretariado: Raúl Reyes, Iván Ríos e o histórico chefe Turofijo, que faleceu provavelmente de causas naturais. Além destes, caíram alguns membros médios fundamentais. Com relação à inteligência, o Estado colombiano tem demonstrado uma superioridade abismal graças à cooperação e ao treinamento de exmilitares israelenses e estadunidenses. Histórias, como o anúncio da morte de Tirofijo pela boca do ministro da defesa, Juan Manuel Santos, demonstram o que já se sabia: as diferentes frentes estão isoladas e atualmente as comunicações estão restritas aos correios humanos.
O risco para o presidente é que, cedo ou tarde, os colombianos relacionem o fato da sua vida estar piorando com quem nada faz para que melhore Mas é preciso considerar que, nos últimos 40 anos, as manchetes de jornais que dão as Farc por acabadas são capazes de cobrir toda a Plaza Bolívar, no centro de Bogotá. O grupo guerrilheiro con-
Quanto
3 mil homídios,
confessa chefe paramilitar
ta ainda com uma estrutura burocrática praticamente intacta, hierarquia de comando – nova, mas em pé e reconhecida – e milhares de homens armados. Se o Estado continuar dando fortes golpes militares, existe a possibilidade de divisão do grupo guerrilheiro em frentes separadas de alcances regionais, sob o comando de pessoas sem ideologia, guiadas somente pelos enormes lucros do narcotráfico e dispostas a fazer alianças com paramilitares ou cartéis de droga. Do ponto de vista de resolução do conflito, seria evidentemente melhor negociar com uma guerrilha unida e ideológica do que com uma dezena de bandos armados. O novo comandante das Farc é Alfonso Cano, que é símbolo de uma mudança fundamental: o novo secretariado, com a exceção de “Mono Jojoy”, já não é composto por velhos camponeses que pegaram em armas para se defender na época da La Violencia, mas sim por um grupo de ex-estudantes universitários que preferem o aspecto político, uma geração urbana, com mais formação política, acadêmica e cultural. De imediato, por essa imagem que o acompanha, é possível que os primeiros atos das novas Farc sejam de tipo militar, para convencer as tendências mais militaristas da legitimidade dos novos líderes. Com efeito, uma série de atentados recentes, aparentemente imputados às Farc, parecem comprovar essa teoria. O início de uma nova temporada de negociações a curto prazo não será automático. É mais fácil que a guerrilha se retire para as áreas onde ainda mantém maior controle territorial, metabolize as derrotas e estude novas táticas, mais efetivas, para o cenário atual. Na organização, provavelmente debate-se se é necessária uma negociação em curto prazo para se reorganizar – o que seria útil também para o Estado aproveitar as vatagens acumuladas e provavelmente não sustentáveis a longo prazo – ou se prepara-se para um projeto de longo prazo para as próximas décadas, tendo em conta que a atual ofensiva militar fundase em dois pilares que não
podem durar para sempre: o dinheiro do Plano Colômbia e um gasto militar de 8% do produto interno bruto (PIB).
Uribe e o pós-Uribe O futuro político de Uribe depende da resitência da coalizão que o apóia. Enquanto por esses dias foram apresentadas 5 milhões de assinaturas para chamar um referendo que permitiria um terceiro mandato presidencial, Uribe ainda não se pronunciou sobre essa possibilidade. Em meio a escândalos, o mandato de Uribe sobrevive somente graças aos altos índices de popularidade, algo que parece cada vez mais com uma bolha de popularidade. Nos últimos meses, a aprovação que os cidadãos têm do país e do governo diverge da do presidente. Os primeiros começam a mostrar uma falta de confiança no futuro e no Executivo, enquanto a provação do presidente segue subindo. Na última pesquisa trimestral do Gallup Colombia, evidencia-se como o país pede, em sua maioria, uma negociação com as Farc e se mostra preocupado por sua situação econômica mais do que com segurança. O risco para o presidente é que, cedo ou tarde, os colombianos relacionem o fato da sua vida estar piorando com quem nada faz para que melhore. Alguns setores do uribismo, sobretudo os industriais, estão procurando um cenário pós-Uribe; ou um uribismo como uma cara apresentável frente a uma possível presidência de Barack Obama nos Estados Unidos e frente aos vizinhos latino-americanos. Os empresários não se esquecem dos custos econômicos das crises com os países vizinhos, principalmente com a Venezuela, único país que compra manufatura colombiana. O comércio entre os dois países cresceu 40% no último ano, e uma crise teria efeitos ainda mais graves sobre a economia colombiana, a qual está entrando em uma fase de recessão. Outro tema é o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos, cuja aprovação está suspensa em um Congresso de maioria democrata, por temas relacionados ao atropelo dos direitos humanos por parte do Estado colombiano. Parece difícil uma aprovação do TLC enquanto Uribe for presidente. Existe então um aparente contra-senso: o presidente experimenta índices de popularidade tão altos que aqueles que o levaram ao poder procuram alternativas. De um lado, as elites rechaçam as aspirações plebiscitárias do presidente, que se aproxima demais do modelo de Alberto Fujimori no Peru, um mandatário tão forte que tira a capacidade da própria elite de negociar. Quando precisa negociar acordos, as associações preferem fazê-lo com um partido, e não apenas com um só homem, ainda menos se este é tão popular quanto Uribe. Por outro lado, essas entidades são historicamente institucionalistas e respeitosas da forma da democracia colombiana, modelo que deve parecer perfeito, se não quiserem que o conteúdo o seja. Os seguidos escândalos e as crescentes brigas do presidente com outros poderes institucionais fazem tremer essa forma da democracia colombiana. Uribe e os paramilitares eram, então, parte de um mesmo projeto oligarca. Ambos já não são mais úteis. É tempo de mudar as fichas para manter o mesmo jogo, o jogo de uma oligarquia necrófila que vive agachada sobre os sepulcros dos camponeses e que se alimenta de seus cadáveres, dor e massacre. Grupos emergentes e Juan Manuel Santos à presidência? Simone Bruno é jornalista italiano.
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Nova Constituição do Equador expressa aspiração dos movimentos ENTREVISTA Para a economista Magdalena León, diferentemente da Constituição de 1998, que “protegia, antes de tudo, o capital”, o novo texto “coloca o povo e a vida em todas as suas expressões como razão de ser do Estado, da sociedade e da economia” Tatiana Merlino da Redação A MENOS de um mês do referendo que irá aprovar a nova Constituição do país, no dia 28 de setembro, o apoio ao presidente do Equador, Rafael Correa, vem crescendo. De acordo com pesquisa divulgada no final de agosto, o eleitorado a favor da aprovação da nova Carta Magna é de 44%. Recentemente, mais de 100 entidades lançaram um manifesto em apoio ao “sim” na consulta popular. O documento enfatiza que grupos de poder econômico e seus representantes políticos querem voltar a dirigir o país por meio do “não”. A nova Constituição é parte da proposta de campanha de Correa, que defende a aprovação do documento como a “última oportunidade para uma mudança pacífica” no país. Para que a nova Carta seja ratificada, o “sim” precisa ter mais de 50% dos votos. Os brancos e nulos serão contados como “não”. Mais de 9 milhões de equatorianos estão convocados às urnas. Em entrevista ao Brasil de Fato, Magdalena León, integrante da Rede Latino-americana de Mulheres Transformando a Economia (Remte), acredita que a nova Constituição “expressa uma aspiração de longa data dos movimentos sociais, especialmente do movimento indígena, que desde a década de 1990 propõe a ‘refundação’ do Estado com uma constituição que a impulsione”. De acordo com ela, diferentemente da Constituição de 1998, que “protegia, antes de tudo, o capital”, o novo texto “coloca o povo e a vida em todas as suas expressões como
Presidencia de la República del Ecuador
razão de ser do Estado, da sociedade e da economia”. Brasil de Fato – No que esta Constituição difere da Constituição de 1998? Magdalena León – As diferenças são de fundo. No texto de 1998, predominava uma visão neoliberal, que define o sistema econômico como “economia social de mercado”, com a minimização do público e a consagração da hegemonia do mercado e do interesse privado. O texto protege, antes de tudo, o capital. E, em 1998, o texto constitucional não foi submetido a referendo. Já a Constituição de 2008 coloca o povo e a vida, em todas as suas expressões, como razão de ser do Estado, da sociedade e da economia. Também caracteriza o sistema econômico como “social e solidário”, e o situa como parte integrante de um regime de desenvolvimento que compreende aspectos sociais e culturais. Ela afirma e amplia a soberania e os direitos humanos. Define o Estado como democrático de direitos e plurinacional, e integra avanços qualitativos em igualdade e diversidade. Recupera o público, com eixo na planificação participativa e na definição de setores estratégicos do Estado. Como foi a participação dos movimentos sociais no processo de elaboração do projeto? Este processo constituinte expressa uma aspiração de longa data dos movimentos sociais, especialmente do movimento indígena, que desde a década de 1990 propõe a “refundação” do Estado com uma constituição que a impulsione. Nesta conjuntura, a participação dos movimentos teve várias vias: a proposta de
O presidente equatoriano Rafael Correa fala no encerramento da Assembléia Constituinte
textos constitucionais completos – tais os casos da CONAIE e o Movimento de Mulheres – ou de propostas temáticas e setoriais; o diálogo com a Assembléia – que recebeu mais de 1.500 delegações. Além disso, entre as/os assembleístas eleitos, havia dirigentes ou representantes de organizações camponesas, indígenas, mulheres, sindicais, de jovens, de moradores urbanos, de migrantes.
Quais foram os avanços conquistados com a elaboração da nova Constituição? Os avanços vão além das propostas encaminhadas pelos movimentos, que nem sempre se basearam em uma visão ampla do país. Incorporou-se a soberania alimentar como objetivo estratégico do Estado, o direito à água e sua não-privatização, a propriedade e controle público dos setores estratégicos. Enunciase um “regime do bem-viver”
que inclui saúde e educação universais e gratuitas (gratuidade até o nível universitário), entre outros aspectos. Em sua opinião, quais são os pontos mais importantes do texto? A adoção do paradigma do “bem-viver”, que se origina na cosmovisão e prática dos povos indígenas, e que tem pontos coincidentes com as visões feminista e da ecologia. Esta concepção deixa para trás as noções de progresso, crescimento e desenvolvimento que chegaram já a seu esgotamento sem trazer mudanças, servindo bem mais de amparo à exploração e à depredação. A ênfase nos princípios de igualdade e diversidade. A confirmação e ampliação de soberanias: nacional, alimentar, energética, financeira. A adoção de novos direitos e ampliação de outros: direitos da natureza, água, direitos reprodutivos, diversidade de fa-
mílias. Tornam-se visíveis a reprodução e a economia do cuidado. Quais são os aspectos da nova Carta Magna que a comunidade indígena avalia como positivos? Para os povos indígenas, é fundamental o reconhecimento da plurinacionalidade e a interculturalidade, a ampliação dos direitos coletivos, o reconhecimento de direitos da natureza (é a primeira Constituição no mundo que o faz). O reconhecimento do quéchua e outras línguas ancestrais como idiomas de relação intercultural, assim como de seus próprios sistemas de justiça indígena, de educação e de saúde. A proteção de seus territórios e saberes. Qual é a importância do princípio incluso na Constituição que prevê que o Equador é “território de paz e que não permitirá o
estabelecimento de bases militares estrangeiras, nem de instalações militares com propósitos militares” (art. 5º)? Esta é uma aspiração histórica que ganhou força frente à imposição da Base de Manta – uma das conseqüências da instalação da base foi a invasão militar que o país sofreu da Colômbia, em março último. Esta declaração abre uma etapa nova e distinta, com outra perspectiva geopolítica e humana. Quais são os aspectos do texto constitucional que você acredita que são falhos ou incompletos? Eles estão ligados principalmente aos temas tidos como “polêmicos” pela oposição e que fazem parte dos temores culturais: a propriedade e o “direito à vida”. Está em curso uma campanha do perfil “anticomunista”, que temos visto em outros países e em outras épocas (assustando o povo com falsas expropiações de seus poucos bens, ou com imagens terroristas sobre o aborto), e na qual a hierarquia da Igreja Católica tem tomado a liderança. A isso, combina-se uma ofensiva midiática com a pressão política direta, sobre a Assembléia e sobre o governo. Na versão final, tiveram que ser anuladas as definições ou implicações das funções social e ambiental e se voltou a colocar o reconhecimento constitucional à “propriedade intelectual” – ainda que com exceções. Em relação ao “direito à vida”, tem-se dito manter o termo “da concepção”, expressão que já foi utilizada em 2007, em uma tentativa de eliminar o aborto terapêutico, que é reconhecido no país há 40 anos.
BOLÍVIA
“Governo Evo está cometendo um erro político” Para analista, fim do diálogo com a oposição pode significar um forte bloqueio ao processo de transformações por parte da direita José Luis Quintana/ABI
Igor Ojeda correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia) “O 7 de dezembro não é uma data na qual as pessoas podem confiar 100% que ocorrerá”. Tal afirmação, do analista político Carlos Cordero, foi feita apenas algumas horas antes que a Corte Nacional Eleitoral (CNE) da Bolívia emitisse, no dia 1º, uma resolução anulando o referendo constitucional convocado pelo presidente Evo Morales em 28 de agosto, por meio de um decreto supremo. Para Cordero, a forma como a consulta foi marcada – exatamente para o dia 7 de dezembro – fará com que a direita questione sua legalidade. Para ele, antes de tomar tal medida, o governo deveria ter negociado com a oposição. Como não o fez, a resistência será bastante dura. A CNE justificou a decisão pelo fato do referendo não ter sido convocado pelo Congresso. No entanto, o governo afirma que o decreto está amparado em lei aprovada pela casa em fevereiro. Veja, a seguir, os principais trechos de entrevista com Cordero. Brasil de Fato – Qual foi o cálculo do governo ao emitir os decretos de 28 de agosto? Carlos Cordero – O governo fez uma leitura legítima do resultado do referendo revogatório [realizado em 10 de agosto], no sentido de que o presidente recebeu um notável apoio. Tomaram a deci-
Evo sanciona decreto que convoca referendo da nova Constituição
são mais ou menos assim: “esse é um processo de transformações que vem sendo bloqueado. E somos um governo com um apoio importante de 54% [nas eleições de 2005], e que em dois anos e meio teve fracassos políticos e não pôde materializar a Revolução Democrática e Cultural”. Então, uma vez conhecidos os resultados do referendo revogatório, se abriu um horizonte distinto, e tomaram a decisão de ir adiante. O senhor acredita que os resultados do referendo revogatório e, agora, esses decretos, podem significar um debilitamento da direita boliviana, especialmente da meialua (oposição formada pelos governadores e comitês cívicos dos departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando)? Não. Acho que esses decretos vão é fortalecê-los. Por-
que o que se produziu no país é uma confirmação da distância entre os dois pólos. Os governadores seguirão fortalecidos pela forma como o referendo constitucional foi convocado. Em segundo lugar, o governo, com esse decreto, está evitando entrar na discussão do projeto de Constituição. Esse projeto tem observações feitas desde distintos segmentos da cidadania. Se não levar em conta essas observações, o projeto vai receber o rechaço de muitos setores. Aí, não somente se fortalecem as visões da direita, como também o governo pode, inesperadamente, obter um fracasso. Embora eu diga que o que fazem é legítimo, eles cometem um erro político. Sim, na democracia existe o governo das maiorias, os dois terços são importantes... sim, mas deve-se entrar em um acordo com as minorias, porque estas podem ser um obstáculo e podem terminar bloqueando a política.
Mas o senhor acredita que, no atual estado de coisas, é possível um acordo com a minoria? Sim. As regiões querem a restituição dos recursos do IDH [Imposto Direto sobre os Hidrocarbonetos, cujo montante destinado aos governos departamentais foi cortado em parte pelo Executivo, para financiar uma bolsa aos idosos]. Ou seja, restituílos o IDH, tirar deles essa bandeira, é muito fácil. Mas o governo não quer fazer. Se fizesse isso, as regiões não teriam mais nada em sua agenda. O senhor acha que eles não vão escolher outra bandeira? Claro, mas isso é um processo de negociação. O Estado, quando assume posições inflexíveis diante de minorias recalcitrantes, tem a opção de impor sua vontade pela força, e a única coisa que resta às minorias é resistir. As minorias daqui vão resistir, porque está indo embora seu projeto de vida. Ou seja, o que se tem que fazer é tirar delas suas bandeiras políticas. As posições estão absolutamente fechadas, e radicalizadas. Aí que vejo o erro. Estão lendo mal os resultados do referendo revogatório. Essas minorias recalcitrantes representam um milhão de bolivianos. Os que apoiaram o presidente são dois milhões. Um milhão, em política, não é nada desprezível. Então, se o Conalde [Conselho Nacional Democrático, entidade que aglutina a oposição da meia-lua e de Chuquisaca], que é essa organização que articula cinco
departamentos, tem uma bandeira comum, vai ganhar credibilidade para fazer resistência ao governo. E aqui o ponto é chave: as cortes departamentais eleitorais estão no dilema mais grave de sua gestão. Ou ouvem suas regiões, ou ao governo. Ou seja, que tipo de garantia o governo lhes dá para levarem adiante os processos eleitorais? Porque, nos departamentos, esses grupos recalcitrantes que não querem o processo de transformações vêm utilizando o terrorismo de Estado, mas regionalmente. Vão queimar suas casas, vão declará-los personas non gratas, não os vão deixar viver. Decretarão suas mortes civis. Então, eles preferirão se colocar ao lado de sua região ou renunciar. Por isso, te digo que o 7 de dezembro não é uma data na qual as pessoas podem confiar 100% que ocorrerá. No dia do referendo, vai ter violência, esse milhão contrário ao governo vai se incrementar... e, apoiados no discurso da ilegalidade, ninguém vai reconhecer a nova Constituição. Então, o governo pode entrar em um processo muito grande de deterioração. A estratégia da oposição é mostrar que esse não é um governo democrático, e sim autoritário. Por isso foi um erro convocar esse referendo via decreto. Em termos de política pragmática, era o momento de negociar com as minorias, e não mostrar-se inflexível, porque o bem maior é o processo de transformações. A decisão de emitir esses decretos demonstrou
que os movimentos sociais têm muita força. O que isso significa dentro do contexto atual da complexa política boliviana? Isso ratifica algo que está acontecendo nos últimos dez anos, que é a incidência política dos movimentos sociais. As instituições tradicionais da democracia recuperaram certo peso no governo Evo. Mas o que se nota com essa decisão é uma espécie de revitalização da influência dos movimentos sociais e um deslocamento do cenário político de um centro no qual sempre estão os partidos políticos: o Parlamento. Não saiu do cenário porque nunca ninguém disse para eliminar o Congresso. Isso não aconteceu. Mas os partidos políticos perderam uma notória influência, e os movimentos sociais voltaram a tomar conta do centro do cenário político. Igor Ojeda
Quem é O boliviano Carlos Cordero Carraffa é analista político e professor universitário em Ciência Política na Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), de La Paz
12 de 4 a 10 de setembro de 2008
internacional Tom Roberts/CC
ATTAC completa dez anos contra o neoliberalismo ALTERMUNDIALISMO Organização amplia campo de intervenção e realiza “universidades” cidadãs – encontros de formação e análise de conjuntura – na Alemanha e na França Douglas Estevam de Toulouse (França) CRISE FINANCEIRA internacional, como conseqüência dos problemas econômicos que afetam a economia estadunidense desde 2007; crise ecológica, decorrente de um modelo de produção e desenvolvimento insustentável, cujos impactos ambientais são sensivelmente percebidos pelo aquecimento global e desastres ambientais; e, complementando o quadro, uma terceira crise, a da explosão dos preços dos alimentos, que desencadeou mobilizações sociais em grande número de países pobres. Tendo este contexto como ponto de partida, a Associação para a Taxação das Transações para a Ajuda aos Cidadãos (ATTAC) realizou em Toulouse, entre os dias 22 e 26 de agosto, sua “universidade” cidadã – encontro de formação e análise de conjuntura –, com o tema “O altermundialismo hoje?”. O evento, que contou com a participação de 700 a 1.200 pessoas, também celebrou os 10 anos da organização. Nascida na França, a partir de uma convocatória assinada por Ignacio Ramonet no editorial do jornal Le Monde Diplomatique, atualmente a ATTAC está presente em vários países. Um passo importante para a articulação internacional da organização foi dado no início do mês de agosto, na Alemanha, quando foi realizada a primeira “universidade” européia da ATTAC, com representantes de 25 países.
Educação popular A ATTAC se define como um movimento de educação popular voltado para a ação. Centrando sua crítica ao modelo neoliberal imposto pelos Estados Unidos ao mundo – sustentado pelo controle de organismos internacionais como a Or-
ganização Mundial do Comércio (OMC), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, G-8 (grupo dos sete países mais ricos do mundo mais a Rússia) e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) –, a ATTAC França desenvolve um variado trabalho de ações e campanhas populares. Atuando no território francês a partir de seus comitês locais, o número de membros, que já foi de 30 mil, hoje totaliza aproximadamente 20 mil pessoas no país.
Altermundialismo A atualidade do altermundialismo, termo francês que significa uma outra globalização – por oposição ao modelo de integração mundial defendido pelas políticas neoliberais aplicadas de diferentes maneiras em escala planetária –, foi o tema transversal aos vários módulos abordados em 12 oficinas temáticas. A ênfase sobre este tema deve-se às preocupações com o avanço do movimento internacional contra a globalização. O movimento altermundialista é entendido como um novo movimento, de longo prazo. Gustave Massiah, membro do conselho científico da ATTAC e presidente do Centro de Pesquisa e Informação para o Desenvolvimento (CRID), apresentou o contexto no qual se insere a emergência do movimento. Ele destacou as lutas contra o colonialismo, marcante nos anos de 1960; as lutas civis por direitos democráticos e das minorias e a herança da luta operária. A dimensão ecológica da transformação produtiva e social requerida pelo movimento assumiria sua importância atual somente nos anos de 1990. Seattle Após a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, o discurso do fim da história e a hegemonia do li-
beralismo seriam duramente abalados em 1999, quando 50 mil manifestantes impediram a realização de um encontro da OMC em Seattle, nos Estados Unidos. Conhecido como o movimento dos movimentos, e assumindo a divisa de que o mundo não é uma mercadoria, o altermundialismo teve como sua expressão mais forte a realização do Fórum Social Mundial e os desdobramentos deste, como fóruns locais, regionais e nacionais, conseguindo constituir uma força de oposição, no debate político, ao projeto ideológico neoliberal. A necessidade de avaliar o altermundialismo hoje deve-se aos limites apresentados pelo desenvolvimento do movimento e as formas que ele assumiu, principalmente no que diz respeito ao Fórum Social Mundial. Busca-se o fortalecimento da participação popular, dos diversos e variados grupos sociais, principalmente dos setores sociais mais pobres. E a superação das contradições presentes nos processos de organização do Fórum, na ampliação da força política do movimento e na sua capacidade de transformação social.
Encontro da ATTAC realizado na Universidade de Toulouse
A ATTAC no futuro de Toulouse (França) Cientes da necessidade de enfrentamento, no plano teórico e no debate público, aos modelos e políticas de liberalização econômica e redução de direitos sociais, os membros da ATTAC França continuam com seu programa de ações para o próximo período. Na mira, estão as linhas centrais da União Européia, atualmente presidida pela França, que tem entre seus temas: a
O significado das lutas da América Latina de Toulouse (França) As experiências em curso na América Latina foram tema de reflexão em outras oficinas da “universidade”. As transformações sociais e políticas que se desenvolvem na Bolívia e Venezuela, caracterizadas por complexos e variados aspectos de enfrentamentos sociais em andamento, foram abordadas por Bernard Cassen, Christophe Ventura e Janette Habel. A influência da imprensa na análise desses processos e a necessidade de uma reinterpretação de um conceito clássico de populismo devem ser levadas em conta na análise da mundança histórica em curso no continente, fruto de uma forte correlação de forças sociais que resultaram em conquistas democráticas nunca vistas nas ex-colônias. De acordo com Habel, o que se desenvolve na América Latina hoje é um processo de democratização do Estado, baseado na refundação do na-
Para entender Originalmente a ATTAC tinha a finalidade de instituir um imposto sobre movimentações financeiras internacionais (o chamado “Imposto Tobin”), para restringir a especulação e financiar projetos de desenvolvimento ecológico e social. Posteriormente, a ATTAC ampliou seu campo de intervenção e interesse, incluindo todos os aspectos relacionados à globalização. Monitora as decisões da OMC, da OCDE, do FMI e acompanha as reuniões do G8 com o objetivo de influir sobre as decisões dos formuladores de políticas.Um dos seus slogans é “O mundo não está à venda”, denunciando a mercantilização da sociedade.
Tom Roberts/CC
Hegemonia estadunidense em crise de Toulouse (França)
O futuro humano pode estar ameaçado por um sistema de produção incompatível com os recursos naturais e o ecossistema do planeta. Essa é a preocupação de Geneviève Azam, membro do conselho científico e reponsável pelos temas ecológicos na organização, que apresentou os pressupostos das concepções de desenvolvimento que o
Faixa estendida pede “solidariedade” e “atuação conjunta”
hegemonia estadunidense. O sistema econômico seria obrigado, para evitar recessões ainda maiores, a adotar medidas completamente contrárias aos preceitos neoliberais, como a regulamentação do fluxo de capitais, sistemas de proteção e investimentos. A nacionalização de bancos e agências financeiras seria um outro aspecto que contrariaria os princípios de orientação neoliberal, que prega a ausência da regulação do Estado e a privatização. (DE)
Bolívia e Banco do Sul
A dura resistência imposta ao presidente boliviano Evo Morales foi exposta por Christophe Ventura, que lembrou que o resultado do referendo revogatório, que manteve o presidente aymará no seu cargo, garantiu também a continuidade dos governadores dos Estados separatistas do país. As possibilidades de enfrentamento aos organismos financeiros internacionais, com a criação do Banco do Sul, foram tema da exposição de Eric Toussaint. Segundo ele, um projeto que potencialmente pode proporcionar o desenvolvimento da região, numa perspectiva de enfrentamento dos desequilíbrios sociais, é ainda incerta em função de objetivos diferentes defendidos por países como Brasil e Venezuela, em oposição às propostas de Equador e Bolívia. Os setores de investimentos, como os de grande infra-estrutura, defendidos por Brasil e Venezuela, e o sistema de gerenciamento da instituição seriam os pontos centrais do impasse. (DE)
A concepção ecológica da transformação de Toulouse (França)
ram impor ao sistema econômico internacional desde os anos de 1970, primeiro com o fim do padrão dólar-ouro, em 1971, e depois, em 1979, com a decisão unilateral dos EUA de aumentar suas taxas de juros. Diferentemente das crises que atingiram outros países, como o México, em 1994, ou a Argentina, em 2001, a crise nos Estados Unidos, país tido como exemplo do desenvolvimento do modelo neoliberal, coloca em cheque toda a arquitetura econômica e a
cionalismo, do Estado e da nação. Segundo ela, os limites ainda são determinados pelas condições de socialização da economia e pelas dificuldades de direção política, num cenário caracterizado por um grande e variado número de organizações sociais. Cassen, por sua vez, destacou a diferença entre as políticas adotadas pelos países mais “radicais”, como Bolívia, Venezuela e Equador, das políticas mais “alinhadas” ao modelo econômico, que estão em desenvolvimento no Brasil, Chile, Uruguai e Argentina. Os intercâmbios praticados entre Venezuela e Cuba representam uma diferença radical no sistema de trocas consagrado pelo sistema de mercado. A saber, além de Cuba ter enviado milhares de médicos à Venezuela, dezenas de milhares de venezuelanos foram atendidos em Cuba. Em contrapartida, a Venezuela forneceu petróleo a Cuba, com preços e acertos diferenciados em relação ao mercado internacional.
mundo ocidental implementou e as suas contradições. Na sua interpretação, a luta contra o “determinismo natural” que, no plano econômico, assumiu a forma de crítica ao liberalismo – sistema que centra sua concepção na “regulação natural” do mercado –, sobrevalorizou a ciência como a independência da natureza. Essa centralidade da ciência e sua aplicação tecnológica no mundo ocidental subes-
timou o fato de que, em última instância, nós somos limitados pela natureza. Os desafios para os movimentos internacionalistas está em constituir um novo modelo de desenvolvimento, no qual o “limite” não seja visto como um sinal de conservadorismo. O estabelecimento das dimensões filosóficas e políticas do “limite natural” deve ser integrado como parte essencial de um projeto de transformação social, segundo Azam. (DE)
Reprodução
Gérard Duménil, Dominique Levy e Dominique Plihon, membros do conselho científico da ATTAC, foram alguns dos animadores da oficina que teve como tema “As novas fases do capitalismo e do neoliberalismo”. Em sua análise do capitalismo neoliberal, Duménil destacou que a hegemonia que os Estados Unidos exerceram na implementação deste modelo está sendo abalada pela crise que vem se desencadeando no país desde 2007 – época da primeira crise de subprimes e da recente crise do mercado imobiliário. De acordo com as exposições, o crescimento da economia estadunidense foi baseado no endividamento externo do país. Com a liberalização dos mercados, o país veio acumulando deficits em sua balança comercial, e para conter a recessão, a expansão do consumo foi baseada em créditos ao consumidor, garantidos pelos investimentos externos em títulos do tesouro estadunidense. Esse modelo só foi possível pelo controle que os Estado Unidos consegui-
revisão da política agrícola européia, plena de distorções, principalmente no que toca aos pequenos camponeses; as políticas européias contra os imigrantes, como a diretiva de retorno, que tem como objetivo aumentar o controle sobre fluxos de imigrações no continente; e as negociações em curso para a aprovação de um novo tratado europeu, que garantiria a ampliação do ciclo de reformas liberais na economia européia. A palavra de ordem da organização continua em dia, e seus membros sabem que somente as ações e mobilizações sociais podem nos assegurar de que “o mundo não é uma mercadoria” e que “outros mundos são possíveis”. (DE)
Marcha da ATTAC: “pelos direitos sociais e ambientais na Europa”