Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 290
São Paulo, de 18 a 24 de setembro de 2008
R$ 2,00 www.brasildefato.com.br Reprodução
FSM
PM do RS tem cartilha contra movimentos Os policiais devem fazer a identificação dos integrantes dos movimentos, o monitoramento de suas sedes, evitar protestos e ocupações e, quando for preciso, usar a força. Esse é o teor do documento da Brigada Militar – de caráter sigiloso, que normatiza procedimentos da corporação. Pág. 6 Reprodução
Na Espanha, Fórum Mundial das Migrações
Uma mulher presidente dos EUA?
Encontro reuniu 2,7 mil delegados, representando mais de 2 mil movimentos de 90 países, para debater a situação dos 200 milhões de imigrantes no mundo. Págs. 8 e 9
A até então desconhecida governadora do Alasca, Sarah Palin, escolhida por McCain para ser vice em sua chapa, pode vir a tornar-se a primeira presidente mulher dos EUA. Pág. 12
Desesperadas, elites tentam golpes de Estado na Bolívia e na Venezuela Na semana em que se completavam 35 anos do golpe contra o governo do presidente chileno constitucionalmente eleito, Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, o nosso continente viveu um drama parecido. As ações levadas a cabo pela oposição boliviana nos últimos dias, cuja conseqüência mais grave foi o massacre de camponeses pró-governo no departamento de Pando, no dia 11, mostram sua debilidade diante da atual conjuntura política no país. Para analista, as violentas mobilizações desencadeadas pela
oposição naquele país revelam seu temor de perder o poder político-econômico e a ausência de um projeto nacional. Por outro lado, a Unasul (União das Nações Sul-Americanas), em reunião de emergência realizada em Santiago, no Chile, no dia 15, deu um forte respaldo a Evo Morales e descartou reconhecer um novo governo que seja resultado de um golpe. Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez desmascara um plano das elites que pretendiam tomar o poder no país e assassiná-lo. Págs. 2, 10 e 11 Antonio Cruz/ABr
Centenário de Josué de Castro Jovens estudantes dos movimentos sociais do campo celebram, em Veranópolis (RS), o legado e a atualidade do pensamento do médico e geógrafo pernambucano Josué de Castro – importante intelectual, combatente da fome e do latifúndio. Pág. 7
Eleição: espaço urbano financeirizado No contexto eleitoral, arquiteto e urbanista discutem os rumos das cidades brasileiras frente à nova onda de crédito imobiliário, às obras do PAC e à persistência das políticas públicoprivadas segregacionistas, numa economia financeirizada. Pág. 4
Manifestantes favoráveis ao governo de Evo Morales bloqueiam estrada em Santa Cruz de la Sierra
Sílvia Alvarez
Casa queimada e abandonada por ribeirinho
O drama dos atingidos pela hidrelétrica do rio Madeira
Famílias gastam mais com saúde do que o Estado
Casas desmontadas ou queimadas, caminhonetes com móveis na caçamba, rostos tristes. Esse é o drama dos ribeirinhos do rio Madeira, em Rondônia, onde será construída a hidrelétrica de Santo Antônio. Moradores denunciam as pressões do consórcio Madeira Energia, liderado por Odebrecht e Furnas. “Disseram pra gente não falar quanto vai ganhar de indenização, pro outro não querer roubar. E desde quando ribeirinho rouba ribeirinho?”, relata uma ribeirinha cuja família mora na região desde 1913. Pág. 3
Um estudo realizado pelo IBGE, denominado Economia da Saúde, aponta que, em 2005, o grosso com o gasto de saúde no país veio das famílias (60,2%), enquanto o investimento público foi de 38,8%. Para efeito comparativo, nos países desenvolvidos, o gasto público com saúde oscila entre 70% e 80%, de acordo com pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz. Pág. 3 ISSN 1978-5134
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de 18 a 24 de setembro de 2008
editorial
TUDO ACONTECEU e se agravou exatamente nos dias que antecederam e durante a semana em que se completavam 35 anos do golpe contra o governo do presidente chileno constitucionalmente eleito, Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. No Paraguai, alarmes soaram no 1º de setembro, quando o presidente Fernando Lugo reuniu a imprensa e denunciou movimentos de dois expresidentes do país, os senhores Nicanor Duarte e Lino Oviedo, no sentido de gerar uma desestabilização institucional que poderia culminar em golpe de Estado. Em seguida, os oligarcas separatistas (“autonomistas”) do Oriente da Bolívia lançaram-se a mais uma aventura para desestabilizar e derrubar o governo do presidente Evo Morales, que acabava de sair vitorioso do Referendo Revogatório de 10 de agosto, com 67,41% dos votos. Enquanto isso, o presidente venezuelano Hugo Chávez anunciava o desbaratamento de uma tentativa de golpe também contra o seu Governo, que incluía o seu assassinato. Se, nos casos do Paraguai e da Venezuela, a situação interna rapidamente se recompôs, na Bolívia a crise se estendeu por toda a semana e, embora ainda não esteja de todo debelada, a pronta ação da União das
debate
América do Sul em transe Nações Sul-americanas (Unasul) que se reuniu em Santiago (Chile), no dia 15, foi importante para estancar, pelo menos provisoriamente, a crise. Até o momento, os dados oficiais falam de 15 camponeses mortos, 25 feridos e 106 desaparecidos, em conseqüência da chacina promovida pelos capatazes (e pistoleiros contratados no Brasil e Peru) do governador “autonomista” de Pando, senhor Leopoldo Fernández, preso desde o dia 16. O governo Morales declarou o embaixador dos EUA na Bolívia, Philip Goldberg, persona non grata ao país, e o presidente Chávez expulsou de Caracas o embaixador estadunidense, senhor Patrick Duddy. Enquanto isso, o presidente de Honduras, Manuel Zelaya, suspendeu o recebimento das credenciais do novo embaixador de Washington em seu país, em solidariedade ao seu colega boliviano, Evo Morales. Na opinião do candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, senhor Barack Obama, a expulsão dos embaixadores é um “confronto fabricado” pelo governo Chávez. Para seu colega republicano, senhor John McCain, esta escalada das tensões diplomáticas é um alerta sobre “as ten-
dências perigosas” no continente. Ou seja, foi uma semana em que a América Latina ferveu, e quando se aproveitou para lançar ainda mais lenha na fogueira: Caracas recebeu em seu aeroporto militar dois bombardeiros estratégicos russos TU-160, e aproveitou para divulgar que, até o final deste ano, deverá receber o contratorpedeiro Pedro O Grande, o cruzador Almirante Chabanenko e outros vasos de guerra russos.
Da parte deles, o arroz com feijão de sempre
Enfim, crises geradas a partir de uma velha receita das elites do continente. Primeiro, a palavra de ordem é abortar qualquer experiência política que fuja aos interessses dos oligarcas e elites da região, e/ou que possa fugir ao controle e aos projetos de Washington. Para isso, inicia-se a conspiração, envolvendo diplomatas da Casa Branca e os representantes das elites locais. Passo seguinte, ganhar as forças armadas do país em questão. Apoio e presença indispensável, a grande mídia comercial é sempre indispensável. Assim, cria-se algum pretexto capaz de desqualificar o governo em questão
para que os grandes jornais, revistas, rádios, TVs comerciais possam fazer a campanha. Nesse meio tempo, um trabalho de articulação diplomática com os países vizinhos e algumas potências para garantir o apoio internacional. Daí, avalia-se se essas forças são suficientes. Caso positivo, desencadeia-se o golpe (sempre em nome da democracia), como foi regra nas Américas desde sempre, ainda que nossa memória se detenha mais nos exemplos dos anos de 1960 e 1970, no Cone Sul do continente, a começar pelo golpe de 1964, contra o governo do presidente João Goulart – o Jango –, em nosso país. E todos os seguintes, como o Chile, em 1973, Argentina, 1976 etc., fazendo descer uma espessa noite no continente. Caso a aliança dessas forças não dê conta da empreitada, bem, os mercenários podem sempre ser contratados. E num continente onde a maioria dos países fala a mesma língua, nada é tão difícil assim. Exemplar nesse sentido foi a inavasão da Guatemala, em 1954, por um exército de mercenários recrutados pelos EUA e pelas elites guatemaltecas entre a marginália e o lumpesinato da América Central e do Caribe.
crônica
Renata Reis
Argumentos que podem salvar vidas Haja hoje para tanto ontem! (Paulo Leminski) É INCONTESTÁVEL a importância dos medicamentos na vida das pessoas. As políticas e recursos dispensados em saúde, tanto por governos quanto pelos próprios consumidores, estão necessariamente ligados à sua aquisição. A necessidade do consumo de determinados medicamentos, por vezes, é essencial à manutenção da vida e ao bem estar, portanto o acesso a esses produtos deveria ser prioritário, sobretudo para os que mais precisam. Infelizmente, o acesso a bens essenciais, como, por exemplo, remédios para AIDS, não funcionam sob a lógica da saúde, mas sob a lógica do comércio. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), um terço da população mundial não tem acesso regular aos medicamentos essenciais. Dados da Intercontinental Marketing Services – Health (IMS) revelam que a América do Norte, a Europa e o Japão consomem 77% do que se produz no mercado farmacêutico mundial, enquanto a América Latina e o Caribe, a África e o Oriente Médio respondem por apenas 14% do mercado farmacêutico. O acesso aos medicamentos essenciais depende de uma série de fatores, tais como: a disponibilidade física dos mesmos, na qualidade e quantidade suficiente, acessibilidade geográfica etc. Porém, sem dúvida o fator que mais obstaculiza o acesso é o poder de compra. Em outras palavras, os preços dos medicamentos impactam as políticas de saúde, sobretudo dos países mais pobres, e também o bolso do consumidor, fazendo com que as pessoas não possam se tratar ou não consigam se tratar com regularidade. É no campo dos preços altos que nos deparamos com uma questão atual e cada dia mais presente na vida das pessoas, apesar da sua conveniente “invisibilidade”: as patentes. As regras de propriedade intelectual, entre elas as patentes, foram aprofundadas com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) e, a partir de então, toda e qualquer tecnologia se tornou obrigatoriamente patenteável – algo que não acontecia até o momento. A nova ordem tomou de assalto a saúde pública, já que os medicamentos se tornaram patenteáveis em todos os países signatários da OMC, exigindo, pois, os ajustes das leis de patentes nacionais a essa nova realidade. As patentes têm um efeito decisivo no caminho entre a fábrica e o consumidor final, pois através delas as empresas farmacêuticas obtêm exclusividade de exploração do medicamento por pelo menos 20 anos, afastando a possibilidade de geração de concorrência comercial. A perspectiva de maximizar lucros mediante monopólio acabou por tornar os medicamentos ainda mais distantes dos que deles necessitam. As patentes são títulos concedidos pelo Estado e constituem uma exceção ao princípio constitucional da livre concorrência. Para que determinado criador tenha direito de explorar exclusivamente uma tecnologia, seja ela um medicamento ou um processo industrial inovador, é necessário pedir ao Estado a expedição de uma carta que confere essa exclusividade. Para que a carta
O que pode ter mudado no continente?
seja expedida, é necessária a comprovação do cumprimento de uma série de requisitos legais. Portanto, uma tecnologia que merece uma carta patente, dentro do sistema atual, necessariamente deve ser nova (no sentido de inédita), possuir atividade inventiva (não pode ser óbvia) e ter aplicabilidade industrial (não pode ser apenas uma teoria, por exemplo). Não tardou para que outros organismos multilaterais, como a OMS e a sociedade civil de diversos países, inaugurassem e/ou seguissem com debates sobre o impacto das novas regras de propriedade intelectual na saúde. A 49ª Assembléia Mundial de Saúde de 1996 foi o primeiro evento de saúde onde foram discutidas as potenciais conseqüências das regras de comércio sobre o acesso das populações aos medicamentos. Organizações da sociedade civil, militantes da saúde, no Brasil e em diversos países, iniciaram a inclusão dos temas de comércio e propriedade intelectual em suas agendas, preocupados com a implementação e manutenção de políticas nacionais de acesso a tratamentos, com ênfase ao tratamento da AIDS. Uma das principais arenas de atuação da sociedade no árido tema das patentes farmacêuticas reside na tentativa de incidir no processo de concessão das mesmas, com objetivo de impedir patentes imerecidas. As patentes imerecidas, chamadas de frívolas por muitos especialistas, são patentes que não servem a ninguém, com exceção ao próprio titular da patente, pois não cumprem um ou mais dos requisitos básicos de patenteabilidade. Trata-se de um monopólio vazio, que tira ou impede o retorno ao domínio público, de tecnologias que poderiam estar sendo exploradas por outros fornecedores, gerando concorrência e ampliando a guerra dos preços, o que beneficiaria os consumidores. Diversas organizações de pacientes e outras organizações militantes da saúde pública têm incidido no processo de concessões de patentes farmacêuticas no Brasil e em outros países, como EUA, Índia e Tailândia. Essas organizações oferecem argumentos que demonstram o não cumprimento dos requisitos de patenteamento de determinados medicamentos essenciais, buscando influenciar de forma sustentada a decisão do escritório de patentes dos seus países. No Brasil, a possibilidade de apresentação desses argumentos chama-se “subsídios ao exame”, mas é conhecido em
diversos países como “oposições”. Em 2006 ONGs ligadas ao Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) ingressaram no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) com dois subsídios ao exame para pedidos de patentes de dois medicamentos – o fumarato de tenofovir disoproxil (Gilead) e a combinação lopinavir/ritonavir (Abbott). O medicamento da Gilead é um exemplo de pedido que, na perspectiva da Rebrip não merece uma patente. A empresa reivindica a proteção do composto para uso na infecção causada por HIV. Na realidade, as partes “tenofovir” e “disoproxil” já estão em domínio público no Brasil, e a obtenção de sais de fumarato de medicamentos é prática conhecida desde a década de 1960. Isso significa que o pedido não atende aos requisitos de patenteabilidade exigidos na lei de patentes brasileira, já que não aporta atividade inventiva que justifique a proteção. Finalmente em agosto de 2008, o Inpi negou o pedido da empresa e alegou o não cumprimento de requisitos legais. Não nos parece demais afirmar que a pressão e o controle social influenciaram essa decisão, não obstante a competência do Instituto para decidir. Acreditamos que muitos outros pedidos de patente de medicamentos essenciais seguem na conveniente invisibilidade dos “arquivos” do Inpi, e a incidência da sociedade civil é atualmente a forma mais eficaz de pressionar para que eles não sejam injustamente monopolizados. O indeferimento do pedido de patente do Tenofovir é um passo importante para a ampliação e manutenção do acesso a medicamentos essenciais no país e um precedente importante para os que lutam contra os abusos do atual sistema de propriedade intelectual. Novos desafios estão postos agora, tais como a necessidade urgente de viabilizar a importação de versões genéricas e avançar com a produção local a preços acessíveis. De toda maneira, o episódio do Tenofovir demonstra que a sociedade pode e deve resistir às investidas das empresas transnacionais de ampliação de monopólio e de que não devemos naturalizar a apropriação intelectual. Renata Reis é da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia), do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (Gtpi) e da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip)
Acontece, porém, que vivemos uma nova realidade na América Latina, especialmente na América do Sul, que certamente implicará mudanças na velha receita dos EUA e da extrema direita para manobrar o continente. Os atuais governos do continente, apesar de todas as nuances do espectro de centro-esquerda, e mesmo um e outro que fuja a esse campo, têm apostado numa diplomacia capaz de garantir a autodeterminação dos diversos países da região, e a busca de pontos de unidade que os defenda de ingerências externas e intervenções, mesmo considerando-se o Haiti um ponto negro dessa história. A criação da Unasul, há um mês, faz parte dessa nova concepção de política internacional dos países americanos. No documento resultante da reunião da Unasul, A Declaração do Palácio de La Moneda, aprovada por unanimidade, os chefes de Estado e governo presentes manifestam “seu mais pleno e decidido apoio ao governo constitucional do presidente Evo Morales”, e rejeitam qualquer situação que leve a um golpe, a ruptura da ordem institucional, ou comprometa a unidade territorial da Bolívia.
Memélia Moreira
No tempo das diligências NAQUELE TEMPO, o das diligências, cowboys, chapéus com flores nas cabeças das donzelas de longos e armados vestidos, havia poucos bancos. E poucas as pessoas que confiavam naqueles estabelecimentos sempre vulneráveis aos bandoleiros que chegavam usando máscaras, atirando para cima, invadindo os saloons onde um pianista estava sempre disposto a tocar um can-can para abafar o som das brigas entre gangues rivais. Naquele tempo, as pessoas preferiam guardar seu dinheiro debaixo dos colchões recheados de feno ou capim. E bancarrota era apenas uma palavra de origem italiana de pouco uso daqueles homens que começavam a colonizar os Estados Unidos. Pois bem, o velho hábito de guardar dinheiro sob os colchões é agora a maneira mais segura de salvar a poupança dos estadunidenses. E, se existe uma tradição neste país, esta tradição é poupar. A classe média dos EUA tem verdadeiro pânico de chegar à velhice e ser obrigada a viver em asilos públicos tomando sopão. Por isso poupa. E agora que a anunciada catástrofe econômica se materializou, os olhos azuis dos gringos piscam e se perguntam: onde poupar? Taí uma resposta difícil. Não há mais nenhuma instituição financeira a salvo da crise que se transformou no bichopapão maior que os militantes do Al-Qaeda. E não é para menos. Enquanto escrevo essas linhas, o mais direitista dos canais de televisão, Fox news, anuncia mais falências e mais pedidos de socorro ao Federal Reserve, o banco central americano. Dessa vez, a circunspecta American Internacional Group (AIG) entrou na tarde de terça-feira na fila para pedido de socorro do Federal Reserve. Isso sem contar o choque do dia 15, quando os estadunidenses assistiam os jornais do início da noite e foram informados que a Merryl Linch, para não perder os dedos, entregou seu anéis ao Bank of America. No começo, os otimistas achavam que a crise era localizada. Ou seja, só os bancos que praticam o subprime (taxas de juros abaixo do valor de mercado) corriam perigo. Por via das dúvidas, George W. Bush concedeu 29 bilhões de dólares para o resgate do banco Bear Sterns, que jamais praticou as taxas demagógicas. Os gringos respiraram aliviados. Mas aí, outro susto. Chegou a vez do banco Washington Mutual, a maior instituição de poupança dos Estados Unidos. Aí o pânico começou a tomar corpo. No dia 14, o pânico se instalou de forma quase definitiva. Uma das mais antigas e sólidas instituições financeiras do país, a Lehman Brothers, que conta com 118 anos de idade, se diluíu também. E George W. já não pode mais socorrer ninguém. O Tesouro Nacional dos Estados Unidos, localizado nas proximidades da Casa Branca, em Washington, decidiu não intervir. Os otimistas se entreolham perplexos. Os pessimistas – no caso, os economistas que há mais de dois anos alertam para essa nova quebra geral da economia estadunidense, repetindo a crise de 1929 – apenas repetem o que já vinham dizendo e acrescentam, “é o caos”. E é o caos mesmo, porque a crise não está circunsrita aos bancos. Ela se alastra por outros setores da economia. A primeira delas, e símbolo de status do povo deste país, a indústria automobilística, entrou na ciranda. Três das principais montadoras já anunciaram que correm o risco de falência: General Motors, Chrysler e a Ford, cujo nome se confunde com a própria história do automóvel. A se confirmar a falência dessas três fábricas, o índice de desemprego que já atinge a casa dos 12% vai, no mínimo, duplicar, segundo os analistas. E aí, é o salve-se quem puder. Salve-se quem puder mesmo, porque há muitos anos a sociedade dos Estados Unidos desconhece altos índices de desemprego. Por essas e outras, o presidente de um país que fica abaixo da linha do Equador, numa bem-humorada resposta aos jornalistas que insistem em lhe perguntar sobre as crises devolveu a pergunta: “Crise? Que crise? perguntem ao Bush”, foi a resposta do presidente Lula. Memélia Moreira é correspondente do Brasil de Fato nos Estados Unidos
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil
Elza Fiúza/ABr
Gasto das famílias brasileiras com saúde privada é maior que o público SAÚDE O gasto das famílias representa 60% do total do setor; em países desenvolvidos, em média, gasto público é de 80%
Negativa de cobertura e reajustes abusivos são principais queixas
Renato Godoy de Toledo da Redação UMA PESQUISA do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no período entre 2000 e 2005, revelou que a situação da saúde pública brasileira está em um nível muito abaixo do razoável. Isso porque o estudo denominado Economia da Saúde: uma perspectiva macroeconômica 2000-2005 mostra que, na contramão do que ocorre em países desenvolvidos, as famílias brasileiras são as principais responsáveis pelos gastos com saúde. O IBGE realizou a pesquisa em parceria com o Ministério da Saúde, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Agência Nacional de Saúde Suplementar e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Segundo o levantamento, em 2005, as atividades ligadas à saúde geraram R$ 97 bilhões, o que representou 5,3% da economia brasileira, e criou 3,9 milhões de postos de trabalho. Desse montante, a saúde pública representou 33,4%. Também tiveram importantes contribuições para esse valor os itens outras atividades relacionadas com a atenção à saúde (20,4%) e a fabricação de produtos farmacêuticos (13,3%). Outro dado preocupante do estudo é a diminuição percentual do valor gerado pela saúde com relação ao total da economia. De 5,7% em 2000, passou para 5,3% em 2005. A média ao longo da série foi de 5,5%. Essas porcentagens referemse ao chamado valor adicionado, referente à quantia que o setor de saúde acrescentou à economia brasileira. Nesse cálculo, exclui-se as despesas com a manutenção de hospitais, por exemplo, e o pagamento de impostos que sobre eles incidem.
“Um sistema de saúde em que predomina o gasto privado tende a ser mais desigual do que um sistema com financiamento predominantemente público”, diz pesquisador da Fiocruz Saúde e PIB
Já a despesa de consumo final com bens e serviços de saúde revela qual foi o gasto bruto no setor. Em 2005, chegou a R$ 171,6 bilhões, representando 8% do Produto Interno Bruto (PIB). Esse valor foi dividido entre as famílias (60,2%), as administrações públicas (38,8%) e as instituições sem fins lucrativos a serviço das famílias (ISFL, 1%). O gasto público com saúde foi equivalente a 3,1% do PIB em 2005, e, na média da série histórica do estudo, foi de 3,2%. O gasto familiar foi de 4,8% em 2005, e 4,9% do PIB, em média, entre 2000 e 2005. Em relação ao gasto das famílias, a compra de medicamentos aparece como o principal gasto (35%), seguido pelas despesas com laboratórios, consultas e outros serviços não-hospitalares (34%), servi-
Planos de saúde são recordistas de reclamações
da Redação
Pacientes esperam atendimento em hospital público
ços hospitalares (19%) e planos ou seguros de saúde (8%). Com base nesses números, não é de se estranhar o bom desempenho econômico da indústria farmacêutica ao longo da série analisada pelo estudo. Mesmo apresentando uma retração entre 2001 e 2003, o setor voltou a crescer em 2004 (3,5%), e teve um incremento vertiginoso em 2005 (12,5%).
Sistema injusto
Para a pesquisadora da Fiocruz Maria Angélica Borges dos Santos, que participou da análise do estudo Economia da Saúde, o modelo de saúde brasileiro privilegia os pacientes com maior poder aquisitivo, pela falta de um sistema público realmente universal. “Um sistema de saúde em que predomina o gasto privado tende a ser mais desigual do que um sistema com financiamento predominantemente público. Ou seja, nesse tipo de sistema, as pessoas têm acessos a bens e serviços de saúde ligados a seu poder de compra desses bens e serviços. Em países desenvolvidos, como os que compõem a OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico], que são também os mais ricos do mundo, os governos são responsáveis, em média, por 70 a 80% dos gastos em saúde”, compara a pesquisadora. Questionada se o aumento da compra de remédios, pelo poder público, seria uma medida eficaz para reverter esse quadro, a pesquisadora afirma que ela não seria suficiente, mesmo que, hoje, o gasto com medicamentos comprometa a maior parte do orçamento familiar com saúde. “Não adianta muito aumentar as compras públicas de medicamentos sem garantir distribuição eficiente e o uso racional, vinculados a um diagnóstico correto. Por isso, não faz sentido aumentar o gasto público em medicamentos e, simultaneamente, reduzir o gasto em serviços de saúde. No Brasil, embora a participação do governo no fornecimento de medicamentos à população venha aumentando percentualmente a cada ano – em 2005 girava em torno de algo da ordem de 10% ao ano, no máximo, 15% do total dos gastos com medicamentos –, uma boa parte desses gastos é concentrado nos medicamentos de maior custo, como os para Aids e os chamados de dispensação excepcional (remédios de uso contínuo para doenças crônicas e raras)”, explica.
Pressão social
Para Maria Angélica, a consolidação de um sistema público universal de saúde depende da conscientização da população sobre a importância dessa estrutura pública. A pesquisadora cita exemplos de países em que as investidas contra o caráter público da saúde são repudiados pelos cidadãos, por a considerarem como imprescindíveis para o país. “Em paí-
ses desenvolvidos, há menor desigualdade no acesso à saúde e isso tem relação com um sistema público de saúde forte. A defesa do sistema público de saúde não é prerrogativa apenas do governo. Os ingleses e canadenses, com todas as eventuais dificuldades de seus sistemas públicos, tendem a considerá-los patrimônios nacionais, nos quais é necessário investir sempre”, afirma. A pesquisadora acredita que o nível de investimento público na saúde é determinado pe-
lo grau de pressão exercida pela sociedade civil para a consolidação de um sistema público, como o Sistema Único de Saúde, no caso brasileiro. “A pressão social pela preservação do sistema público nos países [da OCDE] é muito forte. Isso acaba forçando os governos a priorizarem no orçamento os recursos para a saúde. Ou seja, a prioridade orçamentária e os recursos destinados à saúde são definidos pelos níveis de pressão social em defesa do sistema público”, conclui.
Além de investir pouco em saúde pública, o Brasil apresenta um setor privado repleto de deficiências. Essa constatação pode ser feita a partir do ranking de reclamações do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), no qual os planos de saúde aparecem em primeiro lugar há oito anos. Das 20 mil reclamações recebidas pelo Idec em 2007, os planos de saúde foram responsáveis por 17,1%, seguido pelo setor financeiro (14%) e telecomunicações (13,8%). Segundo Juliana Ferreira, advogada do Idec, as principais reclamações dos consumidores são referentes aos reajustes dos planos e à negativa de cobertura de serviços, mesmo quando os pacientes se encontram internados. Os que mais sofrem com os reajustes são os idosos, segundo a advogada do Idec. Com
o Estatuto do Idoso, de 2003, proibiu-se que os planos fossem reajustados para os maiores de 60 anos. “Com isso, os planos de saúde começaram a criar mais faixas etárias e aumentaram muito o preço nas últimas duas faixas. A maioria desses aumentos é legal, mas eles obrigam os idosos a saírem do plano de saúde”, revela. Segundo Juliana, a Justiça tem concedido ganho de causa aos clientes que conseguem provar que o aumento do plano de saúde foi muito acima da inflação. A advogada também afirma ser ilegal a negativa de cobertura de procedimentos novos. “Os planos de saúde, muitas vezes, negam a cobertura de procedimentos novos e caros, como diagnósticos de câncer e transplantes. É até contraditório, porque o plano nega o procedimento, mas o paciente fica muito mais tempo internado em função disso. E essa negativa é ilegal”, explica. (RGT)
ATINGIDOS POR BARRAGENS
Ribeirinhos do rio Madeira são despejados Consórcio liderado pela Odebrecht e Furnas “negocia” saída da comunidade para dar lugar ao lago da usina hidrelétrica de Santo Antônio Sílvia Alvarez
Sílvia Alvarez de Porto Velho (RO) Muito antes de ser emitida a licença de instalação da hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, o consórcio Madeira Energia, responsável pela obra, já “negociava” a saída dos ribeirinhos que terão suas casas, terras e meio de sustento alagados. Apesar da pressão dos povos que serão prejudicados pela barragem, a licença saiu em 11 de agosto, como queriam as principais acionistas do consórcio, Furnas e Odebrecht. Quem passa pela margem esquerda do rio Madeira, local onde será instalado o canteiro de obras, vê casas desmontadas ou queimadas, caminhonetes com móveis na caçamba, rostos tristes. É o povo ribeirinho que durante muitos anos viveu na beira do maior afluente do rio Amazonas, e agora é obrigado a sair para dar lugar ao lago da barragem de Santo Antônio. Seu Neudir saiu há mais de 70 dias da casa onde morava, ou seja, antes da emissão da licença de instalação. Por enquanto está na casa de parentes, mas tem esperança de que ainda esse mês terá uma casa nova, segundo ele, prometida pelo consórcio. “Do final de setembro não passa, eles prometeram”. A casa nova a que se refere ficará em uma agrovila, que ainda não está pronta, e dificilmente estará até o prazo dado pela empresa. Dona Lúcia também está desmontando sua casa, local em que viveu durante 50 anos com seus filhos e marido. “Ouvi falar que arrumaram um lugar pra eu ficar na cidade até aprontarem minha casa nova (na agrovila)”, disse sem muita segurança. Mesmo sem ter certeza de onde vai ficar, já começou a desmontar a casa, pois “eles mandaram a gente sair no domingo (7/9). Nós não queremos, mas não
José Machado, um dos ribeirinhos despejados pelo consórcio
tem jeito, né? Tem que sair”, lamentou. Para que esses despejos fossem feitos, foi preciso muita “conversa” do consórcio com os moradores. Neudete, ribeirinha cuja família mora na região desde 1913, participou de algumas reuniões e denuncia que o clima era de intimidação. “Eles tentaram fazer com que um ribeirinho não conversasse com o outro. Disseram pra gente não falar quanto vai ganhar de indenização, pro outro não querer roubar. E desde quando ribeirinho rouba ribeirinho? A gente se conhece desde que nasceu”.
Indenizações injustas
Para o consórcio, a posse do título de propriedade da terra é essencial para garantir a indenização. No entanto, segundo pesquisa da ONG Ada Açaí ainda não divulgada, apenas um quarto da população local possui o título, o que significa que a maioria não receberá nada. Ainda há casos daqueles que têm o título, mas estão com parcelas atrasadas. Leonel Pereira, por exemplo, foi ao banco tentar regularizá-lo, preocupado com a indenização. Porém, o banco re-
cusou-se a aceitar o dinheiro. Além disso, ribeirinhos que procuram algum tipo de crédito para agricultura, também não conseguem. Ou seja, a hidrelétrica, antes mesmo de ser construída, está prejudicando a atividade econômica de quem vive às margens do rio Madeira. Enquanto a agrovila não fica pronta, um plano de compensação foi prometido aos ribeirinhos. Vejamos o exemplo de seu José Machado, que mora na comunidade de Engenho Velho. Como piloto de voadeira (um pequeno barco com motor), ele consegue uma renda de R$ 550 por mês. Além disso, utiliza a pesca para alimentar seus 7 filhos e a esposa. Quando sair de sua comunidade, José Machado, através do plano de compensação, terá uma renda de 415 reais (um salário mínimo) durante 18 meses, renda essa menor do que possui atualmente. Além disso, não terá mais o peixe como fonte de alimento gratuito e saudável. “Quando acabar esses 18 meses, eu vou fazer o quê?”, questiona. Na primeira visita do consórcio à casa do sogro de José, a indenização pelo terre-
no foi avaliada em R$ 227 mil. Porém, se ele quiser uma casa na agrovila, será descontada do valor da indenização. Como irá precisar de duas casas, uma para ele e outra para o filho mais velho, a indenização diminuiu para R$ 198 mil. Caso o sogro de seu José queira ainda uma terra para plantar e tirar seu sustento, também será descontado da indenização: três hectares de terra custam R$ 10 mil. “Então, quem vai pagar pela casa dele é ele mesmo, e não o consórcio”, concluiu. Não é a primeira vez que os ribeirinhos de Rondônia sofrem o processo traumático de mudança. Na ocasião da construção da hidrelétrica de Samuel, no início dos anos de 1980, no rio Jamari, cerca de 3 mil pessoas foram despejadas sem nenhum tipo de indenização. Segundo Tânia Vieira, da coordenação do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) em Rondônia, os direitos dos atingidos pela barragem foram totalmente desrespeitados. “A hidrelétrica de Samuel ajudou a aumentar os bolsões de pobreza de Porto Velho. O Complexo Madeira aumentará ainda mais”, disse.
Resistência
Mesmo com a licença de instalação emitida e com o início dos despejos, movimentos sociais do campo e entidades urbanas preparam um encontro de ribeirinhos, entre os dias 16 e 18, no local onde será o canteiro de obras da UHE Santo Antonio. “Será um seminário de estudo para que os ribeirinhos se conscientizem sobre os seus direitos”, afirmou Tânia Vieira. Os organizadores do encontro esperam cerca de 200 ribeirinhos e convidados como o Professor Doutor Dorival Jr., da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), e o sociólogo Luis Fernando Novoa Garzon, professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
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brasil
Eleições municipais: a velha república das empreiteiras e o novo capital imobiliário ENTREVISTA No contexto eleitoral, arquiteto e urbanista discutem os rumos das cidades brasileiras frente à nova onda de crédito imobiliário, às obras do PAC e à persistência das políticas público-privadas segregacionistas, agora numa economia financeirizada Mariana Fix
Danilo Dara da Redação CONFORME NOTICIADO nas edições anteriores do Brasil de Fato, embora seja uma questão central para quase todos os municípios do país, as eleições municipais não têm abordado com profundidade a questão do uso e da propriedade do solo, seja ele urbano ou rural. Muito pelo contrário, as campanhas eleitorais geralmente restringem o debate à disputa personalista entre os “melhores gestores” e seus “projetos mirabolantes” que significariam soluções espetaculares a uma série de distintas questões históricas, enfrentadas por cada cidade brasileira. Em entrevista, o arquiteto Pedro Fiori Arantes e a urbanista Mariana Fix, ambos mestres pela Universidade de São Paulo (USP), procuram delinear as perversas relações recentes entre propriedade do solo, capital imobiliário e especulação financeira, de um lado; e de outro, as conseqüências (desastrosas) de suas políticas, traduzidas em mais concentração de propriedade e renda, em relações de trabalho semi-escravas nos canteiros de obra e em cidades cada vez mais segregadas. Caso os entrevistados estejam certos, o “Consenso de Washington” teria entrado numa nova e distinta fase no Brasil: tendo seu ideário neocolonial migrado definitivamente para cá e sido internalizado por completo. Como ressalta Arantes: “Somos hoje a melhor vitrine do que defende o Banco Mundial, sem que este tenha que se dar ao trabalho de vir aqui dizer o que fazer”. Em resumo: os técnicos das metrópoles globais, alinhados à ideologia neoliberal, não precisam mais prestar assessorias de marketing administrativo aos nossos candidatos-gestores. Brasil de Fato – Como as campanhas eleitorais têm tratado os temas da propriedade e do uso da terra urbana? Pedro Arantes – Não vejo nos partidos políticos a defesa programática de políticas de reforma urbana. Creio que vivemos uma espécie de descompasso histórico: nos anos de 1980, havia força política e disposição popular, mas não existiam instrumentos legais; quase 20 anos depois, conquistamos uma legislação relativamente progressista, mas num momento histórico em que não há mais força política sequer para aplicar a lei, o Estatuto da Cidade. Alguns dados são estarrecedores, mas mesmo assim não conseguimos reagir: a quantidade de imóveis vazios no Brasil corresponde a mais de 2/3 do deficit habitacional. Isso quer dizer que a propriedade privada segue intocada e paira acima dos direitos sociais. No Brasil, não conseguimos separar jurídica e ideologicamente o direito de uso do direito de propriedade, como se fez na Europa. Lá a política urbana e habitacional, antes da onda neoliberal, foi baseada no direito de uso, na provisão habitacional sob a modalidade de aluguel subsidiado, taxação pesada de imóveis vazios, mistura de classes nos centros urbanos, tudo isso como parte da política de bem-estar social. Aqui, a classe dominante conseguiu convencer os pobres de que o bom é ser proprietário, desde que longe dela, na periferia, numa casa insalubre.
O Banco Mundial, o BID e FMI estão apitando cada vez menos no Brasil. O problema é que internalizamos o que antes era uma forma de dominação externa. O “consenso” está em Brasília ou em São Paulo, não só em Washington Mariana Fix – Essa expulsão dos trabalhadores para periferias cada vez mais distantes foi questionada pelos movimentos populares. As ocupações de edifícios vazios em áreas centrais são um exemplo disso. Como esses imóveis não cumprem a sua “função social” – nos termos definidos na Constituição e no Estatuto da Cidade – deveriam estar sujeitos a uma série de ações do poder público, como o IPTU progressivo no tempo e utilização compulsória. A disputa pelo acesso à terra urbana nas áreas centrais, beneficiadas por infra-estrutura, empregos e serviços, deveria estar em pauta nas campanhas. Mas o discurso que prevalece é aquele do senso comum: os centros urbanos precisam ser “revitalizados”, embelezados. Poucos se arriscam a mostrar o caráter ideológico desse discurso, que associa uso popular à deterioração, como se a única maneira de “recuperar” o centro fosse trazer de volta as elites.
Ponte Estaiada e Jardim Edith: ofensiva contra moradores de favelas
Como a crise estadunidense do setor imobiliário e a busca por novos mercados influenciam as próximas eleições municipais? Arantes – Enquanto o setor imobiliário estadunidense está em crise, o nosso vive o maior boom dos últimos 50 anos – o mesmo na China, lá em proporções monumentais. Quem imaginaria que iria quase faltar pedreiro e cimento no Brasil? Não por acaso, a Tenda e a MVR, empresas que mais crescem no setor da construção, até patrocinam time de futebol, como Cruzeiro e Vasco... Fix – Cidades dobram o tamanho, bairros inteiramente novos são produzidos. O preço da terra sobe e explode em cidades e regiões que o mercado imobiliário elegeu como bola da vez. Com a abertura de capital na bolsa, as incorporadoras receberam uma injeção de capital e estão comprando terra como nunca. Esse processo ocorre num verdadeiro clima de laissez-faire [livre-comércio], longe da regulação social do Estatuto da Cidade. Preocupadas em dar satisfações aos acionistas, muitas empresas empurram seus produtos para o comprador, sem necessariamente avaliar a capacidade de pagamento. Guardadas as diferenças – visto que as conexões entre o imobiliário e o financeiro são muito mais profundas nos EUA – o caso lembra a atual crise de crédito subprime, onde estima-se que cerca de um milhão de famílias de trabalhadores foram postas na rua. Qual a presente influência do FMI e, sobretudo, do Banco Mundial e do BID nas eleições municipais e nas políticas públicas em disputa para os municípios? Vivemos uma nova rodada do Consenso de Washington? Arantes – O Banco Mundial, o BID e FMI estão apitando cada vez menos no Brasil. O problema é que internalizamos o que antes era uma forma de dominação externa. O “consenso” está em Brasília ou em São Paulo, não só em Washington. No caso das políticas urbanas, o problema não é mais a influência atual do Banco Mundial, mas a que ficou como herança e como consenso para a maioria dos gestores públicos. Hoje a tecnocracia brasileira aprendeu de tal forma a lição que já se antecipa ao que o Banco pediria – numa espécie de internalização do consenso, ou da dominação. Somos hoje a melhor vitrine do que defende o Banco Mundial, sem que este tenha que se dar ao trabalho de vir aqui dizer o que fazer. Fix – Talvez, pudéssemos dizer que, nessa mistura de coerção e consentimento, a proporção varia, na definição das políticas urbanas. Um exemplo de como esses organismos internacionais atuam no varejo foi a vinda de uma missão do BID, na gestão Marta [PT, 2001-2004]. Os técnicos do BID foram contra a produção de habitação social no centro e tentaram vender aos técnicos locais o modelo de Puerto Madero, omitindo as conseqüências sociais negativas geradas pela remodelação da área portuária em Buenos Aires, bem como seu caráter imobiliário e privatista. Como vocês avaliam o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)? Quais as principais conseqüências para a cidade? Arantes – O PAC não inverte a lógica, ele põe mais água no moinho das empreiteiras e da política convencional de grandes obras. Também está injetando recursos no mercado imobiliário, num quadro de laissez-faire [livre-comércio]. Enquanto as incorporadoras privadas compram terras sem parar (as cinco maiores já possuem um estoque de quase R$ 100 bilhões), o poder
Qual o padrão urbano que queremos para o Brasil: vamos aceitar a dualização da cidade? De um lado, a cidade das elites e classes médias, urbanizada no modelo europeu-ocidental, e de outro, as cidades-favela dos pobres, urbanizadas sob um padrão rebaixado? público se absteve de manter um banco de terras para regulação imobiliária e para implementar programas urbanos e habitacionais que sigam critérios sociais, e não apenas de mercado. Os projetos do PAC-favela, por sua vez, não são feitos em diálogo com as comunidades ou com os movimentos de luta por moradia, mas segundo estudos de engenharia que interessam às construtoras e que rendam marketing político. Sobre o recente crescimento exponencial da favelização nas cidades, quais as principais perspectivas que vocês diagnosticam – para o mal, ou para o bem? Arantes – Será que a saída é urbanizar favelas? Qual o padrão urbano que queremos para o Brasil: vamos aceitar a dualização da cidade? De um lado, a cidade das elites e classes médias, urbanizada no modelo europeu-ocidental, e de outro, as cidades-favela dos pobres, urbanizadas sob um padrão rebaixado, “terceiro-mundista”, de infra-estrutura urbana? Toda a legislação de produção da cidade é excepcionalizada quando se urbaniza uma favela: o tamanho dos lotes é reduzido, o das vias também; além de mais íngremes do que o permitido, as calçadas podem ser suprimidas, as redes de abastecimento seguem outro padrão, a drenagem é precária, acesso para ambulâncias, bombeiros e recolhimento de lixo é limitado, escadarias infindáveis são projetadas, habitações insalubres são mantidas, não há espaço para praças ou equipamentos públicos, como prevê a legislação federal, os passivos ambientais não têm como ser revertidos etc. Ao invés de remendos de urbanização, não é hora de, de fato, cidade no lugar das favelas e cortiços – aliás, é o que os chineses estão realizando. De um lado, pôr abaixo as situações críticas e reconstruir, com projetos de nova qualidade, com participação popular, pesquisa universitária, sustentabilidade ambiental, misturas de usos, pólos de geração de renda etc. De outro, desabsolutizar a propriedade privada e aplicar os instrumentos do Estatuto da Cidade para forçar o uso social dos imóveis vacantes nas áreas centrais, muitos deles inadimplentes de impostos há anos. Se não fizermos isso, estaremos confirmando tanto a “forma-favela” quanto a propriedade imobiliária anti-social como regras na cidade brasileira, e com isso aceitando que existem cidades e cidadãos de duas categorias. Fix – Há muitos exemplos de que as ocupações ilegais são largamente toleradas quando não interferem nos circuitos centrais de realização do lucro imobiliário. É só nas áreas rejeitadas pelo mercado que a população trabalhadora consegue se instalar, como mostra Ermínia Maricato. Ao mesmo tempo, a política de limpeza social em áreas de interesse do mercado continua forte
como nunca. Neste contexto, como vocês avaliam especificamente as políticas públicas para a habitação? Arantes – Nos Estados mais pobres, é quase inexistente ou adota sistemas de lotes urbanizados ou de trabalho compulsório dos moradores para executar casinhas de baixa qualidade. Nos mais ricos, a política habitacional ainda segue um modelo produtivista similar ao do regime militar, com grandes conjuntos habitacionais nas periferias urbanas, apartamentos ou casinhas sempre iguais, sem formar cidade. Esse modelo, ao gosto das empreiteiras, já foi condenado mundialmente ao menos desde o início da década de 1970, quando, nos Estados Unidos, começaram a implodir conjuntos desse tipo. Você olha um conjunto desses e só distingue de um presídio porque não tem grades nas janelas e porque a fachada é pintada de cores alegrinhas. Esse tipo de projeto é apresentado como “o sonho de todo favelado”. Existe aí um rebaixamento evidente das expectativas da população em relação ao que deve ser um patamar digno de moradia. Em ambos os casos, na política de habitação pobre ou na rica, o que se está produzindo é o deslocamento constante dos trabalhadores das áreas mais centrais e com infra-estrutura para as periferias distantes e desprovidas. A política habitacional no Brasil é uma política de segregação das classes sociais, uma política de apartheid. Projetando o futuro, como vocês avaliam a provável avalanche especulativa-imobiliária e a proliferação de novos megaprojetos no país (Copa do Mundo, IIRSA, PPPs e PACs à frente)? E em quais condições de trabalho têm se dado tais canteiros de obra? Arantes – Os canteiros de obra convencionais são espaços de exploração dos mais selvagens, mas isso nem sempre aparece, porque as obras prontas, ao serem inauguradas, apagam essa história, como no fetiche da mercadoria, descrito por Marx. Durante as obras do Pan, a menos de seis meses do início dos jogos, houve uma greve dos operários que estavam construindo mais um elefante branco – o estádio João Havelange. As reivindicações eram modestas, mas revelam o grau de opressão a que estavam submetidos: os trabalhadores queriam comida melhor, equipamentos de proteção contra acidentes, pois já haviam ocorrido mortes, e que a água na obra fosse potável e fria, ao invés de quente, como estava sendo servida, sob os 40 graus do sol carioca. Canteiros de obra são espaços em que ainda é muito visível a luta de classes, mas os sindicatos estão cada vez mais fracos e apadrinhados pelas organizações patronais. Uma injeção maciça de recursos em grandes obras, como está começando a ocorrer, vai seguir reproduzindo esse modelo de exploração. Fix – É sintomático (e preocupante) que os olhares do setor da construção civil estejam voltados para Dubai ou Pequim. Não é à toa que os gigantescos canteiros de obras produzem encantamento justamente ao atingir o mais alto grau de precarização das relações trabalhistas. Arantes – Os canteiros de obras públicas, noutro contexto, poderiam ser justamente a negação disso tudo, poderiam ser experimentais em várias dimensões, da técnica à organização do trabalho. As universidades poderiam estar envolvidas, associadas a cooperativas de trabalhadores e fábricas públicas. Isso parece inimaginável, mas não é. O arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, conseguiu, por meio de diversas fábricas públicas em todo Brasil, produzir escolas, hospitais, equipamentos urbanos de uma forma totalmente diferente das empreiteiras convencionais. (A íntegra da entrevista pode ser lida na Agência Brasil de Fato www.brasildefato.com.br).
Quem são Mariana Fix é urbanista e mestre em sociologia pela USP. É autora dos livros Parceiros da Exclusão e São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem, ambos pela Boitempo (2001 e 2007). Participou da formação do Fórum Centro Vivo e é membro do Labhab da FAU-USP. Atualmente faz doutorado no Instituto de Economia da UNICAMP. Pedro Arantes é arquiteto e mestre pela FAU-USP. É autor do livro Arquitetura Nova (Ed. 34, 2002) e organizador da coletânea de textos de Sérgio Ferro, Arquitetura e trabalho livre (CosacNaify, 2006). É coordenador da assessoria técnica USINA, que apóia movimentos urbanos e rurais na produção de moradias e equipamentos coletivos. É assessor do curso Realidade Brasileira em Curitiba, Porto Alegre e Chapecó, no tema “Questão urbana”.
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brasil Gama
Será que votar muda a vida de alguém? ELEIÇÕES A duas semanas do primeiro turno, o Brasil de Fato vai às ruas de São Paulo perguntar para que, afinal, vamos votar Dafne Melo da Redação Geralda Oliveira Silva, faxineira de um espaço comercial. – Você trabalha aqui há muito tempo? – Três anos já. – E a senhora mora onde? Tem filhos? – Tenho dois rapazes, moro no Jardim Marilda, sabe onde é? – É zona sul? – É, ali no Grajaú. Você trabalha para que candidato? – Nenhum, sou jornalista... [Dona Geralda faz cara de desconfiada. Pega a vassoura e começa a varrer o chão]. – A senhora acha que a prefeitura tem feito algo pelo povo do seu bairro? Acha que votar é importante para mudar as condições de vida? – A minha não muda nada... teve um que foi lá me dar um saco de feijão. – Sério? – Não, tô brincando. [Última tentativa]. – Mas a senhora acha que não muda nada, então, o que faz mudar a nossa vida? – Não, olha, muda sim, quando a Marta [Suplicy] entrou eu notei diferença, sabe? Olha, eu não sou politiqueira, mas eu reparo, eu vejo. O renda mínima foi importante para as mulheres lá, sabe? Ter uma coisa assim. E depois teve o cartão [bilhete único, que permite que o passageiro pegue até quatro ônibus em duas horas, pagando apenas uma tarifa] que foi bom também. E aquele imposto que a gente deixou de pagar [IPTU]. É certo, né? Eu acho que é. Outra coisa foi os perueiros, sabe? Eles eram tudo ilegal, mas a gente precisa ganhar a vida, eles faziam aquilo pra ganhar o pão de cada dia como eu faço aqui, não era nada de errado. – E agora você acha que piorou ou melhorou? – Ficou na mesma, igual, eu acho. Mas tem é que ser melhor. Eu voto nela de novo, mas vamo vê se ela agora num vai deixar cair a bola, não dá pra confiar, né?
Juliano Cardoso, gari. – Posso falar com você rapidinho? – [Sem deixar de varrer, rosto para baixo]: – Rapidinho? Vai... – É sobre as eleições...
– Vixe, rapáiz. – Porque ‘vixe’? – Ah, para ser sincero, tanto faz, assim, tem uns que valem mais a pena que outros, mas sozinhos vão fazer o quê? A maioria não presta não, ué. – Então o que pode fazer a vida do povo mudar? Juliano se debruça na vassoura e olha pro horizonte. – Eita [silêncio]. Agora você me pegou. Pera aí. Ôôô Chico! Ô Chico, corre aqui, vem aqui responder as perguntas da menina! Olha, ele gosta de falar disso... – Chico, você gosta de política? Acha que votar pode iniciar mudanças? – Vixe, acho não, pra mim não muda nada, deixa quieto isso aí.
Américo Poppi, expositor de antigüidades na praça Benedito Calixto (zona oeste). – Vocês expõem aqui sempre? – Há 30 anos, desde que começou. – E a senhora, como chama? – Eu, é... eu estou com ele, com meu marido. Américo, fala aí. – É rapidinho... vocês acham importante ir votar? – Com essa cambada que está aí? Entra um e sai outro, mas é tudo igual... Não é que não muda nada, nada, mas... outro dia vi uma notícia de um deputado que quer fazer uma lei de imunidade parlamentar, sabe, tinha que ser o contrário, fazer uma lei para que só entrasse quem tem a ficha limpa. E ninguém tem estudo, estudo de verdade, eu digo, porque é lógico que eles querem que o povo fique ignorante e é isso. Salva um, salva outro, mas é sempre assim. Fica sempre aquela elite e só... – E como a gente sai dessa? – Ah... sei lá, tem que jogar uma bomba atômica aqui! – Meu Deus, não pode pôr isso no jornal, fala sério com a menina [diz a esposa]. – Ué, mas é minha opinião, oras. Ou faz que nem fez o Mao-Tse Tung. Põe tudo no paredão, sabe? [A mulher o corta]: – Uma coisa que achei boa é não poder pôr parente, sabe? Aquela coisa de você não dar emprego para seus parentes, isso é um começo, é por aí. – Olha, voto há tantos anos, nunca mudou em nada, sabe? – Nunca? O que pode...
– Acho que o [Paulo] Maluf fez por São Paulo, sabe? Podem falar mal dele, mas ele fez coisas para São Paulo. Como falam por aí, ‘ele é o cara’...
Amadeo Jacinto Sobrinho, 66, outdoor humano. – O senhor sempre trabalhou aqui? – Não, sou aposentado. – Fazia o quê? – Fui encarregado de obra por 30 anos, mas tô fazendo esse trabalho há uns sete meses. – A aposentadoria não dá conta? – Dá nada. Minha aposentadoria diminuiu quando entrou o Lula. – Mesmo? – E agora nas eleições, o senhor vai votar? Acha importante? – Vou, vou sim. Mas não espero nada, viu? Eu acho que aqui em São Paulo tinham que dar um jeito na poluição, no trânsito. É muito carro e ônibus soltando fumaça no povo. – Mas o senhor não espera nada, não acha que muda nada? – Muda nada não. Nunca mudou, né? O que muda a vida é trabalhar, aí a gente vai melhorando, progredindo pro país. – O senhor sempre morou em São Paulo? – Não, vim de Alagoas com 17 anos. – E gosta daqui? – Ah, se acostuma, né? Aqui tem trabalho...
Célia Benjamin, artista plástica, expositora em Pinheiros. – A senhora expõe aqui sempre? Faz chapéus? – Senhora, não. Célia. E sim, faço chapéu, restauro obras, pinto... agora eu tenho vindo aqui. É assim, né? Aperta ali a gente faz outra coisa aqui. Agora eu tenho uns restauros, mas venho aqui também. – Esses são seus netos? – Sim, os dois, mas tenho
mais um ainda. – E sempre trabalhou com arte? – Sempre, e sempre como autônoma assim. – E as eleições? Muda alguma coisa votar, trocar a Câmara, o prefeito... – Olha, minha vida não depende disso. Nós, autônomos, temos que batalhar, não contamos com ninguém, não temos salário fixo, entende? Mas se vem alguém e ferra com o país... – Ferrar como? – Uma ditadura, por exemplo. Eu vivi o militarismo, mas você sabe que para nós, que trabalhamos com o comércio, esse tempo até que foi bom? – É, mas politicamente foi um período complicado, não acha? – É, foi. Se vir outra eu mudo de país. [Interrompe a conversa para atender uma cliente]. – Então, dona Célia... – Célia, Célia, dona, não. – Então, para você tanto faz como tanto fez? – Veja bem, quem faz as condições somo nós, entende? Eu crio minhas condições de trabalho e corro atrás do meu. É isso, né?
Silvana Maia, funcionária de empresa de pesquisas de consumo. – Você vem pra cá fazer as pesquisas? – É. – Mora onde? – Itaim Paulista. – Vou ser direta porque você está trabalhando e não quero te atrapalhar. Você acha importante as eleições, ir votar, acha que pode trazer boas mudanças? – Depende, quer dizer, acho que sim. – Mas muda como? No seu bairro mudou alguma coisa? – Olha, mudou sim, viu? Construíram praças, ampliaram o saneamento básico, né? E tem mais rua asfaltada agora. Mas em termos de trabalho tá ruim, eu acho. As pessoas demoram para conseguir e mesmo quando conseguem ganham pouco. O custo de vida tá muito alto. – Você acha que há outras formas de garantir mudanças positivas para o povo? – Fora as eleições... [silêncio]. Eu acho que as pessoas tinham que ter mais informação, sabe? Tinham que correr mais atrás dos seus direitos. Mas olha só, lá no meu bairro, eu não entendo essas coisas, a associação de bairro cobra para entregar o leite do Leve Leite. Se você quer se inscrever na Cohab
[Companhia Metropolitana de Habitação], tem que pagar R$ 15. Sabe, eu acho um absurdo... – Mas vocês lá não se mobilizam, não questionam? – Tem gente que faz, né, tem gente que tenta... mas olha, é complicado, as pessoas também se acomodam, né? Olha, não sei como resolver isso não [risos].
Bruna Moreira, estudante universitária. – Posso interromper suas compras um minutinho? É uma entrevista pequena sobre eleições... – Ih, amiga, voto no Rio... sou daqui não. – Não tem importância, não é pesquisa de opinião. – Tá, beleza, manda. – Você acha importante votar? As eleições são importantes para mudar a vida? – Calma [silêncio]. Hummm. É importante, né? É um direito e acho que pode ser uma arma, é uma forma de se expressar politicamente. Mas o problema é que é tudo muito despolitizado, parece uma feira, as pessoas escolhem sem refletir. É triste. – E tem como reverter isso? – Educação, sem dúvida, eu sei que essa resposta é clichê, mas é a real. E Educação que eu digo não é essa coisa de só aprender o seu trabalho, sabe? É pensar as coisas, pensar o mundo. Sem isso, vai continuar tudo como está, as pessoas alienadas votando em qualquer um e esse qualquer um governando para poucos. – Mas adquirir essa consciência é só com educação? – Não, acho que... acho que quando as pessoas debatem, questionam, quando elas... elas vão atrás. Lutam!, isso, quando elas lutam. Mas no Brasil, quem luta? Ninguém, é um marasmo, parece até que aqui tá tudo bom, tudo certo. Enfim... tenho que ir!
Luana Iversen e Rafael Barufaldi, estudantes secundaristas. – Vocês já votam? [Se entreolham, ainda com vergonha de falar]. – Teoricamente, sim, mas não tirei título, nessa não vou votar ainda. – Por quê? – Eu fiz 16 só em agosto... – Ah, eu, quando eu vi, tinha passado o prazo, mas também
não teria ninguém para votar. – Mas vocês acham importante votar? Acham que, por meio de eleições, a situação pode mudar? – Sim, se um grande número de pessoas expressam pelo voto uma mesma opinião... – Acho que se o político cumpre o que promete, a população percebe, compreende isso e vota nele, acho que pode mudar, sim. – É, mas olha a mentalidade do povo. Tava conversando com uma moça que disse que, nas eleições pra presidente, queria votar no Alckmin, mas votou no Lula... ‘ah, o Alckmin vai perder mesmo’. Sabe? Olha que @#$%! Vota num, vota no outro... – Vocês acham que nessas eleições, com as opções que existem, a cidade pode mudar para melhor? – Nenhum candidato vai mudar São Paulo. Vão fazer uma coisa ou outra, tem que fazer alguma coisa, né? – É, até porque têm que garantir as próximas eleições... – Mas sabe o que eu acho também? As pessoas são muito acomodadas, falta consciência. Tem que ter maior consciência dos direitos e deveres. – Também acho, tem que ter noção maior do que é ser cidadão, ir atrás dos direitos, mas também cumprir os deveres, porque as pessoas só sabem reclamar, mas não fazem nada também. – Esses dias um cara no metrô tava dizendo que não tem nada pra fazer em São Paulo, pô, aqui dá para ver ópera por R$ 10 [aponta o Teatro Municipal]. Mas as pessoas querem tudo na mão, estão acostumadas a ver tudo o que a Globo mostra, e só!
Raquel Gomes, Lilian Silva, trabalhadoras de uma cooperativa de telemarketing e cobranças. – Vocês acham que as eleições podem trazer mudanças? – Pode, claro. Você escolhe o candidato e se ele faz mudanças benéficas, muda. – Acho isso também, mas as pessoas não sabem votar, né? – É, mas a gente não pode depender de político, temos que batalhar, ir à luta. – Ô Lilian, e se não tem trabalho? Vai fazer o quê? Olha, para mim candidato bom é o que dá trabalho. – Ué, sempre tem trabalho, tem é que ir à luta. – Imagina! Às vezes não tem trabalho, a pessoa está desempregada e procura emprego por anos e nada. – Mas não é político que resolve isso! – Ah, não? Resolve, sim. Só que eles não querem, não é prioridade. Mas se eles não conseguissem gerar emprego, porque prometem isso na campanha? Como vão prometer o que não podem fazer? – Ai, mas é isso, né, eles prometem o que não podem, mesmo, ué. – Ai, não, não acredito nisso... moça, olha só, você semeou a discórdia aqui!
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Documento da PM gaúcha traz “instruções” para lidar com movimentos sociais
saiu na agência Falência do Lehman Brothers Depois de anunciar perdas de 60 bilhões de dólares, na seqüência da crise do crédito imobiliário estadunidense, o Lehman Brothers buscou um comprador. Não houve. Assim, o quarto maior banco de investimentos dos Estados Unidos pediu falência. Outra instituição financeira do porte da Lehman Brothers também se encontra em perigo, em meio à atual crise do capitalismo: o Merrill Lynch, terceiro maior banco de investimentos de Wall Street, que perdeu 52 bilhões de dólares desde o início da crise dos subprimes.
POLÍTICA DE GOVERNO Instrução Operacional nº 6 da Brigada Militar (a polícia militar gaúcha) – de caráter sigiloso – normatiza procedimentos da corporação Mayrá Lima e Raquel Casiragui de Porto Alegre (RS)
O documento é bastante claro. Traz a finalidade da instrução e justifica com o Título 2 – “Base Legal”, em quais leis e constituições as medidas encontrariam apoio legal. Neste item, aparecem as constituições Federal e a do RS, o Código Penal Brasileiro, o Código de Trânsito Brasileiro (para os casos de acampamentos em beiras de estrada e manifestações de rua) e leis como o Estatuto da Terra e o Direito Agrário. No entanto, é o Título 3 – “Execução” (ver grifo no documento acima), destacado
como inconstitucional pela comissão especial de direitos humanos, que trata da postura que os comandos regionais da BM devem ter. Em situação considerada de normalidade, os comandos devem ter um cadastro de áreas rurais (no caso dos movimentos sociais do campo) e prédios públicos (engloba as organizações urbanas) que possam ser ocupados. Também aponta a identificação e o cadastro das lideranças. Ainda determina ações para casos de “iminentes ocupações” e para casos de “ocupações já concretizadas”.
A resposta da Secretaria de Direitos Humanos Comissão foi a Porto Alegre conferir abusos da Brigada Militar gaúcha Uma representação para a proposição de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) da nota de Instrução Operacional n° 6, de outubro de 2007, endereçada ao Procurador-geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Mauro Renner. Essa foi a principal ação concreta que marcou o fim da visita ao Rio Grande do Sul de uma comissão do Conselho de Defesa à Pessoa Humana, órgão ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República durante os dias 9 e 12. De acordo com Renner, que recebeu a representação pessoalmente, a solução de todo o problema “não passa sem o acolhimento de uma proposta de aquisição de terras. O MP, sem dúvida, é a favor da Reforma Agrária”, afirmou o Procurador-geral de Justiça. No entanto, a comitiva fez algumas reclamações. Segundo Ivana Farina, representante do Conselho Nacional de Procuradores-gerais do Ministério Público dos Estados e da União, é preciso ter em mente que “procedimentos armados e abusos foram colocados no papel” como normatizações. Farina ainda chamou atenção pelo fato de o procurador Gilberto Thums, o mesmo que sustenta a ata do Conselho Superior do MP gaúcho que pede a dissolução do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), estar falando para a sociedade em nome do Ministério Público, quando o mesmo afirma não reiterar seu pensamento. “Quem fala em nome do Ministério Público é o seu chefe”, respondeu.
O objetivo da comissão era verificar as “tentativas de criminalização de movimentos sociais, a partir de iniciativas do Ministério Público Estadual, decisões do Poder Judiciário gaúcho e ações da Brigada Militar do Rio Grande do Sul”. Criada e aprovada no dia 12 de agosto deste ano, a Comissão já deve apresentar relatório preliminar, no próximo dia 23 de setembro, com as primeiras impressões do que foi relatado no Rio Grande do Sul. As atividades foram centradas em Porto Alegre, Passo Fundo e Sarandi. Audiências públicas, reuniões com o setor ruralista, na figura da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Ministério Público Estadual, Tribunal de Justiça, Incra, sindicatos e movimentos camponeses fizeram parte de toda a agenda da comitiva. Os relatos, dos mais diversos, e com exceção da Farsul, tinham em comum uma única reclamação: o estado de acirramento institucional e “policialesco” por parte do Estado gaúcho contra aqueles que querem a Reforma Agrária ou mesmo os insatisfeitos com o governo tucano.
A face do preconceito
A reunião com o presidente da Farsul, Carlos Rivaci Speroto, foi considerada uma das mais impressionantes. Quando o ouvidor agrário nacional Gercino José da Silva questionou o porquê de a Farsul não contribuir com o Incra no sistema de busca de terras para a Reforma Agrária. A resposta foi clara. “Nós não acreditamos na Reforma Agrária”. (ML) (RC)
Unasul apóia Evo Morales
A União de Nações Sul-americanas (Unasul) decidiu dia 15, no Chile, apoiar integralmente o governo boliviano em relação ao confronto que setores direitistas promovem no país. O documento destaca que os países sul-americanos rejeitam qualquer situação de golpe civil, de ruptura da ordem institucional ou que comprometa a unidade territorial da República da Bolívia. A Declaração do Palácio de La Moneda prevê, ainda, a criação de uma comissão aberta a todos os países da Unasul, coordenada pela presidência chilena, para acompanhar o processo de negociação atualmente em curso em La Paz. O presidente boliviano, Evo Morales, agradeceu o apoio unânime e destacou que, pela primeira vez, os países da América Latina resolvem seus problemas por conta própria.
Livres do analfabetismo
A porcentagem de analfabetos no Estado do Maranhão é de 23%. Só na área rural, o índice chega a 43% da população. Mas o MST, em parceria com o governo do Estado, pretende mudar essa realidade paulatinamente, transformando os acampamentos e assentamentos maranhenses em territórios livres do analfabetismo. Após oito meses de aulas, utilizando o método cubano “Sim, eu posso”, 1.236 trabalhadores rurais, entre acampados e assentados, foram os primeiros formandos desse programa de alfabetização. A experiência foi utilizada pelo governo do Estado como o símbolo da luta pela erradicação do analfabetismo no Maranhão.
fatos em foco
Mayrá Lima
A PROVA é a Instrução Operacional nº 6 da Brigada Militar (a polícia militar gaúcha) divulgada pelo advogado Leandro Scalabrin durante a visita da comissão especial do Conselho de Defesa à Pessoa Humana (CDPH). O documento, entregue a todos os comandos do interior gaúcho e da capital, normatiza os procedimentos da corporação em relação aos movimentos sociais. Os policiais devem fazer a identificação dos integrantes dos movimentos, o monitoramento de suas sedes, evitar protestos e ocupações e, quando for preciso, usar a força. Para Scalabrin, o documento é a prova oficial de que a criminalização dos movimentos sociais é uma política do governo de Yeda Crusius (PSDB). “A normativa de ‘se manter um cadastro atualizado dos movimentos sociais’ já resultou, somente no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e entre as mulheres camponesas, em uma lista de mais de 500 pessoas fichadas, com suas supostas lideranças identificadas, com fotos, tal como fazia o DOPS na ditadura militar”, conta.
Documento “surrupiado” O ouvidor da Segurança Pública Adão Paiani, que participou das reuniões com a comissão, negou que exista uma política de Estado para coibir protestos. No entanto, afirmou que existem posições isoladas no governo que defendem o uso da força durante as manifestações. “Já sugeri incansavelmente ao governo do Estado e à Brigada Militar que temos alternativas a isso [violência]. Na semana passada, me reuni com o secretário de Segurança Pública e sugeri a criação da polícia agrária. Infelizmente, essa voz não tem encontrado eco no governo”, disse. Em entrevistas à imprensa local, o comandante-geral da Brigada Militar, coronel Paulo Mendes, criticou o vazamento do documento, que afirmou ser sigiloso. Durante um programa de TV, o militar chegou a acusar uma deputada estadual de “ter surrupiado” o documento impresso que ela mostrava na ocasião. O Estado do Rio Grande do Sul não adere ao Manual de Diretrizes Nacionais para Execução de Mandatos Judiciais e Reintegração de Posse Coletiva, produzido pela Ouvidoria Agrária Nacional e pactuado pelas secretarias de segurança estaduais. O manual direciona o trabalho da polícia em casos de ocupações por reivindicação da Reforma Agrária.
Comissão do CDDPH visita acampamento em Sarandi (RS)
Silêncio do governo estadual Governadora Yeda Crusius volta atrás e não recebe Comissão de Direitos Humanos Nunca, na história do CDDPH, um governo de Estado tinha deixado de receber uma comissão de averiguação das liberdades sociais e dos direitos humanos. O Rio Grande do Sul foi o primeiro. Yeda Crusius pautou toda a agenda da comitiva, que só marcou as demais reuniões sob a disponibilidade da governadora, e, ao não recebêlos no último dia 11 de setembro, deixou uma péssima impressão entre os conselheiros da comitiva, que demonstraram bastante incômodo diante da “deselegância”. “A agenda dessa comissão foi marcada primeiro com a governadora. Depois que ela confirmou o dia e a hora, foram marcadas as ou-
tras agendas, já que a comissão não poderia vir até o RS sem falar com a governadora”, disse o deputado Adão Pretto (PT/RS), integrante da comitiva, e depois reiterado pelo vice-presidente do CDDPH, Percílio de Souza, que durante a reunião deixou bem claro o “clima de profunda insatisfação com a ausência da governadora”. A comissão, apesar da frustração, já esperava o não acolhimento por parte da governadora Yeda Crusius. A voz institucional do Estado gaúcho se calou diante dos relatos e denúncias levados pelo Conselho. O chefe da Casa Civil, José Alberto Wenzel, nada considerou, apenas recebeu cópias de propostas da Ouvidoria Agrária Nacional em que se pede a criação de promotorias agrárias estaduais e delegacias agrárias, inclusive com o patrocínio financeiro da própria Ouvidoria Nacional. Já o secretário de Segurança Edson Goularte também não fez nenhuma consideração à atuação da Brigada Militar, fazendo do encontro uma mera entrega de documentos e de cumprimentos. A ausência de uma representação do comando da Brigada Militar foi sentida pelos presentes. (ML) (RC)
Imprensa golpista Desde que Evo Morales foi eleito presidente da Bolívia, os principais veículos da imprensa empresarial brasileira têm realizado uma cobertura parcial e partidarizada dos conflitos políticos no país vizinho, com simpatia para os governos dos departamentos (Estados) de oposição. Nos últimos dias, deram muito mais espaço aos autonomistas, separatistas e golpistas do que ao governo federal recentemente referendado por 67% dos bolivianos. Primeira vítima A imprensa empresarial brasileira demorou pelo menos cinco dias para noticiar que as 15 mortes ocorridas dia 11 de setembro no departamento de Pando, na Bolívia, foram causadas por policiais e pistoleiros partidários do governo Estadual e que todas as vítimas eram camponeses apoiadores do presidente Evo Morales. Durante alguns dias, o banho de sangue foi atribuído – erradamente – ao governo boliviano. Soberania haitiana Várias entidades sindicais e lideranças dos trabalhadores do Haiti organizam manifestações e greves para o dia 10 de outubro “pela soberania do Haiti e retirada imediata do país das tropas de ocupação da Minustah”. Em documento dirigido aos “irmãos e irmãs” do Brasil, Equador, Chile, Bolívia, Uruguai e outros países, pedem que seus governos sejam questionados sobre a ocupação. Que vergonha! Injustiça lenta Se não for adiado mais uma vez, deverá ser concluído até 19 de setembro o julgamento de cinco policiais militares acusados do assassinato de José Nunes da Silva (Dedeco) e Ednaldo Gomes Nascimento, ocorrido em 31 de março de 1999, no Jardim Elba, em São Paulo. As vítimas não tinham histórico ligado à criminalidade. A Justiça levou nove anos para colocar os policiais no banco dos réus. Filhote eufórico Durante Conferência Parlamentar em Genebra, na Suíça, o senador Edson Lobão Filho, do PMDB do Maranhão, filho do ministro pianista das Minas e Energia, soltou o verbo para a imprensa: segundo ele, as reservas de petróleo recém-descober-
Hamilton Octavio de Souza tas colocam o Brasil “em poucos anos entre as três maiores potências mundiais”. Agora é só escolher quais países do G-8 serão desbancados!
Brasil potência Relatório da ONU sobre as políticas de segurança no Brasil, divulgado dia 15 de setembro, destaca as “execuções extrajudiciais” realizadas por policiais e milícias privadas com a conivência das autoridades. Diz que o país tem um dos mais altos índices de homicídios do mundo, mas só 10% dos casos chegam à Justiça, no Rio de Janeiro e São Paulo. Em Pernambuco, a situação é pior: só 3% dos homicídios vão a julgamento. Protesto direto Logo após a oposição contra Evo Morales desencadear ações de sabotagem e espalhar a violência em várias partes da Bolívia, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, manifestou irrestrito apoio ao governo boliviano e atacou o governo dos Estados Unidos: “Váyanse al carajo, yanquis de mierda”, disse Chávez (leia mais nas págs. 10 e 11). Cidadão exemplar Depois de mandar soltar o criminoso banqueiro Daniel Dantas, exigir o fim de algemas para bandidos ricos e poderosos, reprimir a ação da Polícia Federal contra os delinqüentes do sistema (fraudadores, estelionatários, sonegadores de impostos etc.) e de dar lições de moral no governo e no Congresso Nacional, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, se recusou a prestar depoimento na CPI dos grampos telefônicos. Um exemplo de cidadão! Crime impune Documento do Movimento Quem Matou Toninho, prefeito de Campinas e militante do PT assassinado há sete anos, no dia 10 de setembro, diz o seguinte: “Ocorre que o processo de instauração de inquérito na Polícia Federal foi remetido à Procuradoria Geral da República, onde aguarda parecer do Procurador Geral de Justiça, Dr. Antônio Fernando Barros e Silva de Souza, quanto à legalidade ou não da investigação ser federalizada. Ou seja, aguardamos a decisão do Estado que por sete anos vêm sendo omisso, cúmplice da impunidade.”
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brasil
Movimentos sociais celebram 100 anos de Josué de Castro LEGADO Seminário traz a atualidade do pensamento do médico e geógrafo, combatente da fome e do latifúndio Miguel Enrique Stédile de Veranópolis (RS) O LEGADO do médico e geógrafo pernambucano Josué de Castro – importante intelectual, combatente da fome e do latifúndio – foi celebrado por jovens estudantes dos movimentos sociais do campo na Casa de Cultura de Veranópolis (RS), no dia 13. Um seminário sobre sua obra e atualidade da soberania alimentar reuniu a socióloga e filha de Josué, Anna Maria Castro, e o dirigente nacional do MST João Pedro Stedile. O evento foi organizado pelo Instituto de Educação Josué de Castro, que promove a escolarização e a formação profissional de jovens e adultos do meio rural. Antes do seminário, um coral formado por estudantes do Instituto apresentou uma composição em homenagem ao geógrafo. Para Pedro Munhoz, autor da música, “o mapa da fome que Josué de Castro nos aponta é o próprio mapa dos conflitos sociais”. Para o músico, o resgate do legado de seu pensamento vai além do combate à fome, ampliando para todas as desigualdades sociais. “A partir do pensamento dele, a gente pode dizer que quer comida, quer democratização da comunicação e da cultura, quer espaços para debate e participação”, afirma. Para Anna Maria, o mérito da obra de Josué está em “desnaturalizar a fome”. Para a socióloga, “antes, a fome era vista como algo natural, como obra da natureza, ele apontou as causas sociais deste fenômeno”. Apoiador das Ligas Camponesas em
Pernambuco, Castro era um entusiasta da reforma agrária. Anna Maria explica que “toda a sua batalha passa pela reforma agrária” e que “não há desenvolvimento no mundo sem reforma agrária”. A atualidade do pensamento de Josué de Castro percebese também nas causas do subdesenvolvimento apontadas pelo geógrafo: o colonialismo político e econômico dos grandes países sobre o Terceiro Mundo. “A origem do subdesenvolvimento estava na apropriação injusta e ilegal dos recursos naturais”, conclui Anna Maria.
Influências
Para a socióloga, a influência da obra de Josué de Castro é visível nos trabalhos do geógrafo Milton Santos e na Campanha contra a fome idealizada por Herbert de Souza, Betinho. Castro influenciou também a cultura pernambucana, inspirando o movimento mangue beat. O músico Chico Science homenageou o geógrafo em uma de suas músicas e incorporou a temática do livro Homens e Caranguejos – No mangue, tudo é, foi ou será caranguejo,
inclusive o homem e a lama – como pilar do movimento. O ciclo de sobrevivência e dependência entre homens e caranguejos nos mangues se tornou símbolo e síntese da obra de Castro, que definia os mangues de sua infância no Recife como sua “Sorbonne”. “A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capiberibe, nos bairros miseráveis do Recife”, dizia. “A lama dos mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo”, escreveu. Para os movimentos camponeses, o conceito de soberania alimentar aproxima as bandeiras de luta da Via Campesina com o pensamento de Josué de Castro, explica João Pedro Stedile. Para o dirigente, a soberania alimentar é muito mais ampla do que as políticas compensatórias de segurança alimentar, como o bolsa-família. “Estas políticas são emergenciais, e o que defendemos é que o povo tenha condições para produzir, para que todos se alimentem”, declarou.
Quem foi Josué de Castro (1908 –1973) Médico e geógrafo pernambucano, Josué de Castro escreveu mais de 30 livros, traduzidos em diversos idiomas, entre eles Geografia da Fome e O ciclo do Caranguejo. Reconhecido internacionalmente como uma autoridade no combate à fome, foi presidente e fundador do Órgão das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Foi indicado ainda duas vezes ao Prêmio Nobel da Paz. Com o golpe militar de 1964, teve seus direitos políticos cassados. Impedido de retornar ao Brasil, faleceu no exílio, na Suíça.
cultura Reprodução
Che, o revolucionário RESENHA Esta biografia que a Expressão Popular reedita, do mexicano Paco Ignacio Taibo II, é, nas palavras do seu autor, “uma provocação que vem do passado”, que deve ser lida assim, como uma provocação, um convite ao conhecimento e à análise, um convite à militância revolucionária Emir Sader Quando se cumpriram três décadas da morte do Che, apareceram várias biografias – pelo menos quatro. Diante de um personagem tão significativo quanto ele, nenhuma delas é neutra. Algumas tentam dar um ar trágico à vida do Che, como se fosse alguém que buscava a morte, sem captar o sentido que tem, para um militante revolucionário, “dar a vida por uma causa”, que significa até morrer por ela, mas sobretudo significa entregar o que de melhor se tem, em toda a vida. A melhor biografia é esta, que a Expressão Popular reedita, do mexicano Paco Ignacio Taibo II. Antes de tudo porque é alguém que se identifica com o sentido da vida e da luta do Che, condição indispensável para compreender as opções dele, não ter visão mistificada do personagem e nem se deixar levar pelos clichês que foram sendo fabricados e difundidos ao longo do tempo. Por exemplo, logo no início, ao falar da infância do Che, Taibo II destaca “sua idéia de que a chave da vida era a vontade e a alavanca que colocava em movimento a tenacidade” – uma afirmação fundamental para entender a trajetória do
Che e para captar o que move um militante revolucionário. Ou a constatação de que, para o Che, “um pecado imperdoável” era as “afrontas à dignidade”. É um livro de quase 900 páginas, mas a vida densa do Che – apesar de ter morrido relativamente jovem, aos 39 anos – requer relatos e análises à altura do que viveu. Tal qual a biografia de Trotsky, escrita por Isaac Deutscher, trata-se da trajetória de um personagem que esteve no olho do furacão de uma época revolucionária, fazendo com que sua biografia reflita as grandes possibilidades e dilemas de uma época. Um primeiro período da sua vida vai da infância na Argentina, passando pelas viagens pela América do Sul, chegando à primeira grande experiência política – ainda como médico, mas já com um compromisso social – na Guatemala. Nascido em 1928, o Che saiu daquele país centro-americano com o golpe de 1954, que encerrava dez anos de dois governos que tentava implementar reformas – especialmente a agrária – tocando nos interesses da United Fruits, empresa norte-americana exportadora de produtos agrícolas. O segundo, que representaria uma virada definitiva
na sua vida, começa com o encontro com Fidel na Cidade do México, quando os revolucionários cubanos treinavam para retornar ao país e levar a cabo a luta armada contra a ditadura de Batista. Nele, nas palavras do Che, ele se diploma como revolucionário, substituindo a maleta de médico pela mochila de guerrilheiro. Conclui vitoriosamente esse período, quando as colunas do Che e de Camilo Cienfuegos entram em Havana em 1º de janeiro, há 50 anos. A partir dali, mesmo arrancando o compromisso do Fidel, de que voltaria a sair de Cuba para seguir lutando pela independência de outros povos, o Che assume cargos de direção – a responsabilidade pela reforma agrária, depois o Ministério da Economia – na fase inicial da construção do socialismo em Cuba. Mesmo estando poucos anos nessas funções, o Che conseguiu desenvolver teorias sobre os critérios de construção do socialismo, em polêmica com economistas europeus – entre eles, Charles Bettelheim –, propondo o fortalecimento do caráter unificado da economia e o papel dos incentivos morais, em clara oposição aos critérios soviéticos. O terceiro é o do retorno do
Che às lutas revolucionárias em outros lugares do mundo – o Congo e a Bolívia. Paco Ignacio Taibo II reconstrói, detalhadamente, o percurso do Che na Bolívia, onde pretendia organizar não apenas um movimento guerrilheiro nesse país, mas uma coordenação que articulasse os movimentos guerrilheiros existentes naquele momento – no Peru, na Venezuela, na Guatemala – e os que se preparavam para surgir – Uruguai, Brasil, Argentina. Como diz o Taibo II, “a biografia não é a história de um morto que se explica”, até porque essa história segue aberta. Ela não termina com a morte do Che, mas as sementes que ele plantou seguem se renovando, antes de tudo na Bolívia, mas em tantos outros países, da América Latina e dos outros continentes do Sul do mundo. Esta biografia é, nas palavras do seu autor, “uma provocação que vem do passado”, que deve ser lida assim, como uma provocação, um convite ao conhecimento e à analise, um convite à militância revolucionária. Emir Sader é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de A vingança da História.
Serviço Ernesto Guevara, também conhecido como Che Paco Ignacio Taibo II ISBN: 978-85-7743-074-1 Número de páginas: 728 Preço: R$ 30,00 Editora Expressão Popular www.expressaopopular.com.br Pedidos: telefone (11) 3105 9500 vendas@expressaopopular.com.br
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internacional
Fotos: FSNM
Na Espanha, 3º Fórum Social Mundial das Migrações debate modo capitalista de agir LÓGICA MAIS QUE PERVERSA Sistema provoca migração de trabalhadores dos países do Sul para depois explorá-los nos países do Norte
Juan Torres/CC
Luís Brasilino enviado a Rivas Vaciamadrid (Espanha) A QUESTÃO das migrações vem recrudescendo em todo o mundo nos últimos anos. O crescimento do número de pessoas que decidem trocar de país é acompanhado pela criação de barreiras cada vez mais rígidas nos países de destino. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o planeta tem 200 milhões de imigrantes, número que deve chegar a 280 milhões em 2080. De seu lado, Estados Unidos e União Européia implantam mecanismos cada vez mais fortes para afastar, perseguir e punir estrangeiros que atravessem suas fronteiras de forma irregular. Para os participantes do 3º Fórum Social Mundial das Migrações (FSMM), o que torna essa contradição mais aguda é o avanço do neoliberalismo, sendo que o caminho para superá-la deve passar por transformações estruturais. O encontro reuniu 500 voluntários e 2,7 mil delegados, representando mais de 2 mil movimentos de 90 países, entre os dias 11 e 14, na cidade de Rivas Vaciamadrid, na Espanha (país este que, na última década, viu multiplicar por 10 o número de pessoas que pedem asilo, segundo informações do próprio governo). Membro do Comitê Internacional do Fórum e secretáriogeral da Comissão Espanhola de Ajuda ao Refugiado (Cear), Alfredo Abad Heras identifica que o recrudescimento da questão das migrações tem muita relação com o sistema econômico, ao apontar que os países desenvolvidos seguem fechando suas fronteiras para preservar um estilo de vida que é insustentável. O fato é que os migrantes já são vítimas desse modelo antes mesmo de migrar. El Khamlichi Aboubakr, da Chabaka (Rede de Associações do Norte do Marrocos para o Desenvolvimento e a Solidariedade), acrescenta que enquanto espoliam as riquezas do terceiro mundo e criam
guerras nesses países, os Estados Unidos e a União Européia desenvolvem uma política de guerra aberta contra a migração, “porque sabem que ela é a única solução que sobra aos povos empobrecidos, saqueados”.
“É o mesmo capitalismo global que precariza as condições de trabalho nos países do Sul e, depois, emprega os imigrantes nos países do Norte, aproveitando-se da condição de mão-deobra mais barata”, diz coordenador do Grito dos Excluídos Trabalho desvalorizado
As políticas de livre-comércio, por exemplo, são pródigas em promover migrações. Ao quebrar barreiras alfandegárias, estimula-se, nos países do Sul, um modelo agrícola voltado para a exportação, o agronegócio. Este é baseado na produção em grandes propriedades, com altas taxas de exploração dos trabalhadores, pouca geração de empregos e grande uso de químicos. Assim, provoca-se a destruição da natureza, da qual resulta na formação dos refugiados ambientais, e no êxodo rural. Só na Colômbia, estima-se que 6 milhões de pessoas foram expulsas à força de suas terras. Simultaneamente a esse processo, a entrada de produtos industrializados, estimulada pela liberalização comercial, enfraquece as fábricas, eliminando postos de trabalho nas cidades. “O capitalismo reproduz em todos os níveis a mesma matriz de exploração”, conclui o costarriquenho Gerardo Cerdas Vega,
Países do Sul reproduzem xenofobia Ausência do Estado e a imigração faz população culpar estrangeiros pelos problemas
Cinco mil nas ruas de Madri do enviado a Rivas Vaciamadrid (Espanha) O 3º Fórum Social Mundial das Migrações (FSMM) foi encerrado no dia 14 com uma manifestação pelas ruas da capital espanhola, Madri. O ato contou com a participação de aproximadamente 5 mil pessoas e teve como tônicas a luta contra a discriminação do imigrante (“no Sul, somos explorados e no Norte, expulsos”, gritavam) e em defesa da integração entre os povos (“nenhum ser humano é ilegal, cidadania universal”). Ao final da mobilização, na praça Rainha Sofia, foi lida a declaração final do fórum. Dentre as principais reivindicações, está o cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos que, em seu artigo 13, afirma que “1. Toda pessoa tem direito a circular livremente e a escolher sua residência no território de um Estado e 2. Toda pessoa tem o direito de sair de qualquer país, inclusive o seu próprio, e regressar”.
Equador
Após passar por Porto Alegre (2005) e, novamente, por Rivas Vaciamadrid (2006), o próximo FSMM será realizado em Quito (Equador), em outubro de 2010. Segundo Alfredo Abad Heras, do Comitê Internacional do Fórum, o país foi escolhido pela grande quantidade de imigrantes que tem espalhada pelo mundo (1 milhão somente na Espanha), pelo contingente de refugiados colombianos (quase 250 mil) que vivem em seu território e pelo caráter progressista do governo do presidente Rafael Correa. (LB)
do enviado a Rivas Vaciamadrid (Espanha) O desrespeito aos direitos humanos dos imigrantes não é uma exclusividade dos países desenvolvidos. Os mesmos padrões podem ser observados quando o fenômeno ocorre entre nações periféricas. De acordo com o costarriquenho Gerardo Cerdas Vega, coordenador do Grito dos Excluídos na América Central, esse tipo de migração corresponde a 22% do total. Dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) dão conta de que, dos 30 milhões de imigrantes da região, 3 milhões se mudaram para países do próprio continente. Gerardo explica que a Costa Rica é a nação mais rica da América Central porque nos últimos 60 anos conseguiu desenvolver uma dinâmica capitalista muito superior à dos demais países da região. Entretanto, nos anos de 1980, teve início a aplicação dos programas de ajuste estrutural neoliberais impostos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), e a capacidade do Estado de manter os serviços públicos foi se esgotando. Ao mesmo tempo, a contra-revolução na
coordenador do Grito dos Excluídos na América Central. Ele lembra que as pessoas trabalham para o mesmo capital internacional, seja nos países de origem, seja nos de destino. “É o mesmo capitalismo global que precariza as condições de trabalho nos países do sul e, depois, emprega os imigrantes nos países do norte, aproveitando-se da condição de mão-de-obra mais barata, mais dócil talvez por sua condição irregular”, destaca.
Poder imperial
Assim, encurralados pela falta de oportunidades em seus países de origem e pela política repressiva dos Estados mais desenvolvidos, os migrantes sofrem com toda sorte de violações dos direitos humanos. São humilhações, discriminação, perseguição, exploração, violência. Nos Estados Unidos, a repressão é compreendida como uma ferramenta de dissuasão. Os migrantes são encarcerados em grandes tendas, sem divisão entre o alojamento e os banheiros, e deportados sumariamente. Na Europa, o parlamento aprovou, no dia 18 de julho, a Diretiva de Retorno, resolução que permite aos países membros da comunidade única prender estrangeiros em situação irregular por até um ano e meio. O encarceramento de imigrantes em situação irregular já é vista como natural pelos europeus. Mas os participantes do Fórum lembraram que eles não cometeram nenhum delito e lançaram uma campanha pelo direito de fiscalizar os centros de internamento, dos quais sobram denúncias de maus-tratos. Edda Pando, da organização italiana Arci Milano, explica que a intenção não é humanizar as prisões, “algo impossível”, mas sim entrar nelas para fazer a sociedade saber que as pessoas são privadas de sua liberdade somente porque querem uma vida melhor.
Países de trânsito
Porém, a perseguição aos migrantes não fica restrita ao território europeu. De acordo com a
Quanto
22% das imigrações ocorrem entre nações periféricas
Nicarágua agravou uma crise que acabou forçando a migração de milhares de pessoas. Atualmente, cerca de 700 mil nicaragüenses vivem na Costa Rica, constituindo 16% da população total do país, que é de 4,5 milhões. “Isso é muito para qualquer país, e as pessoas começaram a culpar os migrantes pelo retrocesso na qualidade dos serviços públicos”, afirma Gerardo. De acordo com ele, os costarriquenhos acreditam que a saúde e a educação são ruins por culpa dos nicaragüenses. “Eles roubam nossos salários, utilizam os serviços públicos; estão roubando nossa qualidade de vida”, pensa a população.
Tratamento desumano
Segundo Gerardo, isso despertou muito preconceito e violência num povo que, antes, era caloroso. Enquanto isso, os nicaragüenses moram em favelas, executam os piores trabalhos, são mal pagos e vivem sob constante ameaça de deportação. O coordenador do Grito dos Excluídos lamenta um fato emblemático. “Há dois anos, um migrante nicaragüense foi atacado por três rottweilers quando tentava roubar uma loja. O alarme foi ativado, chegaram 20 policiais e a imprensa com as câmeras. [Estas] filmaram como os cães mataram um nicaragüense sem que ninguém fizesse nada. Durou uma hora e meia, foi a grande notícia. E tudo foi tratado como se não fosse um ser humano. Ele gritava por ajuda. Agora, os policiais estão sendo julgados, mas ninguém fala da imoralidade da imprensa, da polícia e da sociedade, que justificou isso e desfrutou do espetáculo”. (LB)
Quanto
200 milhões
é o número de imigrantes no mundo. É como se toda a população brasileira – de cerca de 190 milhões – estivesse espalhada pelo mundo Associação Pró-Direitos Humanos da Andaluzia (Espanha), a UE concedeu 60 milhões de euros em financiamento para que o Marrocos investisse em políticas para impedir pessoas de usar o país como uma transição antes de atravessar o mar Mediterrâneo em direção à Europa. Emmanuel Abolela foi um dos alvos desse modelo. Ele é do Congo e passou pelo Marrocos antes de conseguir chegar à Holanda, país no qual vive hoje. Emmanuel é membro da Associação de Refugiados Congoleses no Marrocos (Arcom) e participou de seminário, durante o Fórum, no qual relatou a situação dos imigrantes que vivem em território marroquino. De acordo com ele, a ausência de direitos é absoluta. “Não podem trabalhar, colocar seus filhos na escola, não têm acesso aos serviços básicos. Quando sofrem violência, não podem ir à Justiça. A UE financia países de trânsito para maltratar os solicitantes de asilo”, completa. Emmanuel contou que, desde 2005, 80 imigrantes morreram no Marrocos. A seguir, fez um relato detalhado de cada uma delas, das quais pode-se citar o caso de oito pessoas que solicitavam asilo e morreram, em 29 de novembro de 2005, no hospital, pois, como não tinham documentos, não puderam ser atendidos; o caso de uma mulher que, em janeiro de 2007, havia sido estuprada e faleceu durante o parto, ao não receber os cuidados necessários; e o caso de um homem que, no dia 28 de fevereiro deste ano, foi impedido de atravessar a fronteira com a Argélia e que, como não tinha dinheiro para a passagem de volta, foi obrigado a retornar a pé e acabou sendo assassinado por um assaltante.
A organização dos imigrantes é dificultada pela marginalização do enviado a Rivas Vaciamadrid (Espanha) O alemão Tom Kucharz, da rede bi-regional Europa-América Latina Enlaçando Alternativas, que procura articular resistências contra tratados de livre comércio (TLCs) entre a União Européia (UE) e países ou blocos latino-americanos, enxerga que a participação dos imigrantes nesse movimento pode gerar um poder de contestação muito forte. Mas ele entende que existem muitos obstáculos a serem superados. Tom, que vive há dez anos na Espanha e integra a organização Ecologistas em Ação, reconhece que os imigrantes já estão muito ocupados em encontrar alojamento, conseguir documentos, comida e emprego, que fica difícil convencê-los a participar de reuniões de organizações.
Cultura da opressão
Gerardo Cerdas Vega, coordenador do Grito dos Excluídos na América Central, vai mais além. De acordo com ele, como os imigrantes normalmente já são excluídos, “explorados históricos”, em seus países de origem, eles carregam consigo uma cultura da opressão. “Como falava [o educador brasileiro] Paulo Freire, mesmo o oprimido justifica sua condição em termos de uma hierarquia natural”, observa. Ao migrar, continua Gerardo, a pessoa carrega essa carga ideológica. “No novo país, ele é constantemente ameaçado pela polícia migratória, vive com medo e circula nos espaços marginais da sociedade, muito disperso”, afirma. Para ele, o caminho é começar a organizar em torno da garantia de necessidades básicas e, ao mesmo tempo, dar formação política no sentido de conformar um projeto transformador. (LB)
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internacional Dana Duncan/CC
Fórum das Migrações defende direitos de refugiados palestinos POVO COM PÁTRIA Propaganda de que não existia um povo palestino serviu de base ao mito da “terra sem povo, para um povo sem terra”, que seriam os judeus Maria Luisa Mendonça de Rivas Vaciamadrid (Espanha) “Tenho esperança de voltar ao meu país. Fomos colonizados com massacres e despejos forçados de milhares de pessoas. Temos direito de resistir e lutar. Não somos um povo sem pátria”, afirma Rajaa Derbashi, presidente do campo de refugiados de Baqa, na Jordânia. Derbashi expôs um histórico de violações de direitos, na abertura do Fórum Mundial das Migrações, no qual a solidariedade à causa palestina teve destaque.
Sionistas cristãos utilizaram crenças religiosas para deformar a história e criar a lenda da “terra prometida”. Na verdade, os palestinos são descendentes do antigo povo hebreu. O racismo foi estimulado para servir ao projeto imperialista britânico e francês Em uma série de outros seminários, a discussão sobre o tema resgatou as causas da ocupação da Palestina, que foi consolidada em 1948 através da resolução 181 da Organização das Nações Unidas (ONU), quando se constituiu o Estado de Israel.
Este processo tem raízes colonialistas históricas. Um dos mecanismos que permitiu a ocupação foi a propaganda de que não existia um povo palestino. Para isso, a história foi manipulada e se criou o mito da “terra sem povo, para um povo sem terra”, que seriam os judeus. A lenda sobre o povo hebreu foi utilizada no sentido de se reconhecer todos os judeus da atualidade como seus descendentes.
Manipulação religiosa
“Essa idéia foi criada inicialmente por sionistas cristãos, que utilizaram crenças religiosas para deformar a história e criar a lenda da ‘terra prometida’. Na verdade, os palestinos são descendentes do antigo povo hebreu. Porém, manipularam crenças religiosas e estimularam o racismo para servir ao projeto imperialista britânico e francês, e construir uma estratégia geopolítica de controle de recursos estratégicos no Oriente Médio, principalmente para assegurar acesso ao petróleo”, explica Armad Mufalah, um dos representantes dos refugiados palestinos no Fórum. Mufalah argumenta que não há base jurídica no direito internacional para justificar a expulsão do povo palestino e a criação do Estado de Israel. Antes de 1948, os palestinos ocupavam 97% daquele território. Naquele período, ocorreram 89 massacres, que resultaram em 13 mil palestinos mortos e milhares de refugiados. Ao mesmo tempo, essa estratégia servia para expulsar os judeus da Europa, enquanto os palestinos eram expulsos de seu país. Atualmente, o número de refugiados externos é estimado em 7 milhões, e internos, em 450 mil.
Nakba
Nidal Alazza, professor da Universidade de Jerusalém, vi-
ve em um campo de refugiados na região de Belém. Ele descreve os acontecimentos de 1948 como o período chamado Nakba. “Houve massacres e despejos forçados de milhares de pessoas. Este é um processo continuado, genocida, que visa eliminar o povo palestino. Nosso território se converteu em uma base militar no Oriente Médio, que inicialmente serviu à monarquia britânica e hoje serve aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, com a cumplicidade dos países europeus. Além do controle de fontes de petróleo, essa estratégia serve para conter movimentos de libertação nacional na região”, afirma Alazza. A resolução 181 da ONU, que visava a construção de dois Estados, estabeleceu que Israel controlaria 56% das terras. Porém, nem mesmo essa resolução foi cumprida e atualmente Israel controla 78% da Palestina. Alazza conta que, quando ocorreu a Nakba, sua mãe tinha 13 anos e foi obrigada a sair de sua cidade da noite para o dia. Naquele período, mais de 750 mil palestinos foram expulsos de seu país, quando 532 comunidades foram destruídas. Com a guerra de 1967, Israel ocupou o Sinai, Golan e toda a Palestina, inclusive Jerusalém. “Por isso, dizemos que a Nakba não terminou; é um processo contínuo e serve para controlar todas as fontes de riquezas da região”, denuncia Alazza. Entre 1967 e 2007, Israel demoliu mais de 18 mil casas de palestinos e aumentou o número de assentamentos, estimulando a migração de judeus europeus. A ocupação israelense assumiu diversas formas de repressão. Cerca de 25% da população palestina já esteve ou está nas prisões de Israel, sendo que grande parte nunca recebeu uma acusação jurídica for-
Palestinos em mercado de rua do campo de refugiados de Baqa, na Jordânia
Quanto Antes de 1948, quando se constitui o Estado de Israel, os palestinos ocupavam 97% daquele território. Atualmente, o número de refugiados palestinos externos é estimado em 7 milhões, e internos, em 450 mil. mal. O número de presos políticos atualmente chega a 11 mil.
Muro ilegal
Em 2004, o governo de Israel iniciou a construção de um muro com 700 quilômetros de extensão, que isolou 160 mil famílias palestinas, além de ter deslocado 115 mil pessoas e impedido que cerca de 200 mil camponeses cultivassem suas terras. Com isso, o governo israelense assumiu o controle de 85% dos recursos hídricos do país. Apesar do muro ser considerado ilegal, sua construção foi implementada através da hegemonia dos Estados Unidos na ONU, que tem funciona-
Na Colômbia, comunidades resistem Trevor Schwellnus/CC
de Rivas Vaciamadrid (Espanha) O Fórum Mundial das Migrações denunciou o governo de Álvaro Uribe por implementar a chamada “para política”, que fortalece grupos paramilitares e fere o direito internacional. As organizações presentes denunciaram também o apoio de países europeus, que se beneficiam economicamente com a exportação de armas para a Colômbia. Segundo o representante da Anistina Internacional Jesus Abderraman, “o resultado dessa política é a repressão aos movimentos camponeses, indígenas, sindicais e de outros setores. Uribe acusa lideranças sociais de envolvimento com as guerrilhas para justificar os assassinatos”. Em 2008, foram registrados 42 assassinatos de sindicalistas na Colômbia. Outra conseqüência dramática da guerra na Colômbia é a incidência crescente de despejos forçados, que obrigam a população do campo a migrar dentro de seu próprio país. De acordo com a pesquisadora Zully La Verde, houve um aumento drástico de despejos nos últimos anos. Em 2007, 305.966 pessoas foram despejadas, o que representa um aumento de 38% em relação a 2006. Em 2008, 270.190 pessoas sofreram despejos, número equivalente a um aumento de 41%, em comparação com o mesmo período em 2007.
Quanto
42
sindicalistas já foram assassinados no país este ano. Estima-se que os refugiados colombianos em outros países cheguem a 500 mil. Dados oficiais indicam que, entre 1997 e 2007, cerca de 2,2 milhões de pessoas foram despejadas. Porém, organizações de direitos humanos estimam que este número seja bem maior, pois os dados do governo são incompletos e muitas comunidades têm medo de fazer denúncias a autoridades locais.
Violência
As causas mais freqüentes dos despejos são ameaças de morte, violência e recrutamento forçado de jovens (principalmente entre 8 e 12 anos de idade) por grupos paramilitares, guerrilheiros ou pelo Exército colombiano. Outra razão é a fumigação de cultivos de alimentos com glifosato, que também afeta a criação de animais e tira das comunidades camponesas seus meios de subsistência. Esta prática tem sido comum, inclusive na região de fronteira com o Equador. A militarização gera um risco adicional de violência sexual contra mulheres e crianças. Um destes casos foi registrado pelo jornalista José Abad, que fotografou o braço de uma jovem camponesa tatuado com
Família de camponeses desplazados (removidos) em Bogotá
as iniciais AUC, em referência à violação sofrida por paramilitares das Autodefesas da Colômbia. “Comunidades camponesas vivem sob risco constante e têm medo de denunciar estes casos, por desconfiar das autoridades locais. A impunidade se constitui em causa adicional da violência. Há também comunidades confinadas em meio a conflitos armados ou cercadas por minas terrestres”, explica Zully La Verde. Ela lembra que há um número crescente de refugiados transfronteiriços, principalmente no Equador, Venezuela e Panamá. Porém, somente uma minoria dessa população recebe refúgio oficial nestes países. Estima-se que os refugiados colombianos em outros países cheguem a 500 mil.
Um dos seminários do Fórum Mundial das Migrações destacou a resistência das Comunidades de Paz, que optaram por uma estratégia não-violenta de retomada de suas terras. Estas comunidades se organizam de forma autônoma, para manter a cultura camponesa e criar espaços de refúgio para vítimas de repressão. Wilson David, representante da Comunidade de Paz de São José do Apartado, conta como foi este processo de luta. “Em 1996, nossa comunidade sofreu o primeiro despejo violento por paramilitares, com participação do Exército colombiano. Conseguimos reocupar outra área, mas este processo custou a vida de 180 companheiros. Vivemos em constante perigo. Em 2003, houve outro massacre, e
do com dois pesos e duas medidas, quando se trata de ferir os direitos do povo palestino e servir aos interesses de Israel. Outra medida repressiva foi o estabelecimento de mais de 600 pontos de controle (check points) dentro das cidades palestinas. “Não é verdade que os check points servem para o controle de fronteiras. Para chegar à Universidade de Jerusalém, onde leciono, tenho que passar por três postos de controle, em um percurso de 15 quilômetros, dentro do território palestino”, explica Nidal Alazza. Em 2007, outras leis aprovadas em Israel agravaram ainda mais a situação de humilhação dos palestinos. A reunificação das famílias que vivem em cidades diferentes foi proibida. Segundo Alazza, “é uma situação insuportável. Qualquer pessoa judia que chega a Israel recebe cidadania automaticamente e os assentamentos continuam avançando, com o objetivo de inviabilizar definitivamente a criação do Estado palestino. Há hoje 87 assentamentos. É uma situação sem precedentes
em 2005 assassinaram um de nossos líderes, Luiz Eduardo Guierra, com toda a sua família, inclusive crianças e um bebê de poucos meses de vida”, denuncia David. A resistência das Comunidades de Paz só é possível através de um alto nível de organização, como explica Berta Tuberquia, uma de suas lideranças. “Nos organizamos de forma autônoma. Inclusive temos nossas próprias escolas, para que as crianças sejam educadas de acordo com a cultura camponesa. As escolas tradicionais não servem para nós, pois estimulam a saída dos jovens do campo. Não aceitamos postos policiais em nossa área e fazemos a nossa própria segurança. Temos um centro de saúde, pois o serviço que o governo oferece é péssimo. Estimulamos a agricultura orgânica e fazemos um trabalho de formação constante na comunidade. Não queremos ser refugiados, por isso lutamos na nossa terra”, afirma Berta.
Registro
O processo de resistência dessas comunidades tem sido documentado pelo fotógrafo José Abad, que dedica seu trabalho para que esses crimes não sejam esquecidos. “É uma honra ter a oportunidade de registrar esses processos, apesar da grande dor que sinto ao presenciar famílias inteiras sendo despejadas, assassinadas. Essas comunidades são atacadas por paramilitares, pelo Exército e também pelas guerrilhas. Dos 180 assassinatos em São José Apartado, 20 foram cometidos pelas FARC. Porém, sabemos que o centro do problema
na história, pois vivemos uma ocupação militar, aliada a uma política de apartheid”.
Direitos
Os participantes do Fórum Mundial das Migrações defenderam o direito de retorno dos refugiados palestinos. “Nesse suposto processo de paz, os direitos dos refugiados são esquecidos. Mas para nós este é um tema central. A comunidade internacional não pode ser cúmplice dessa injustiça”, afirma Rajaa Derbashi. Nidal Alazza reforçou esta posição. “Defendemos o direito de retorno de todos os refugiados, a recuperação de seus bens, além de indenização pelos graves danos causados em suas vidas. É isso que determina a legislação internacional. É preciso pôr fim à ocupação militar e à discriminação do povo palestino. Por isso, defendemos a unificação de toda a população em um único Estado, sem diferenças raciais, religiosas, com direitos iguais para todos”, conclui Alazza (do Grito dos Excluídos, e da Minga Informativa).
não são as FARC, e sim as elites que têm governado nosso país. Os latifundiários e paramilitares, ligados ao governo, já se apossaram de 4 milhões de hectares de terras camponesas, através de despejos forçados”, denuncia Abad.
“Nova Geração”
Ao contrário do que afirma o governo colombiano, os grupos paramilitares não foram desativados. Segundo David, “há um reagrupamento dessas organizações que se autodenominam ‘Nova Geração’ e seguem fortes em todo o país, atacando comunidades camponesas e indígenas, com o apoio do Exército. A nova lei de terras de Uribe legaliza os despejos forçados e transfere as terras dos camponeses para grupos paramilitares”. Estes grupos também são apoiados por empresas agrícolas estrangeiras. David lembra que, em 2003, houve uma denúncia contra a Chiquita Banana, que praticava tráfico de armas em benefício de paramilitares colombianos. A violência na Colômbia tem sido estimulada pelas políticas de Álvaro Uribe e ocultada pela mídia internacional. Por isso, a imagem de resistência apresentada no Fórum das Migrações priorizou a luta cotidiana das comunidades camponesas, em gestos aparentemente simples, como semear a terra, educar crianças e lutar por autonomia. A mensagem central dos movimentos colombianos presentes em Rivas foi: “não queremos viver exilados. É como arrancar uma árvore com sua raiz” (MLM, do Grito dos Excluídos e da Minga Informativa).
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John McCain e a coelhinha da cartola ELEIÇÕES NOS EUA Sarah Palin, governadora do Alasca escolhida por republicano para ser vice em sua chapa, reascende campanha Reprodução
Memélia Moreira de Orlando (EUA) QUANDO, ÀS vésperas da convenção do Partido Republicano, o candidato John McCain anunciou o nome da governadora do Alasca, Sarah Palin, para compor sua chapa, mais parecia um mágico tirando um coelhinho da cartola. E Palin, mesmo em trajes displicentemente sóbrios, vem se comportando exatamente como uma das famosas coelhinhas da Playboy. Faz pose, abre enormes sorrisos para fotos, faz biquinho e exibe um guarda-roupa de fazer inveja tanto a Laura Bush quanto a Hillary Clinton e, para completar, arrebata multidões a cada aparição pública. Mas tanto os coelhos das cartolas quanto coelhinhas da Playboy devem observar, por uma questão óbvia, códigos, entre eles, o de manter a boca fechada. E não é isso exatamente o que vem acontecendo. A companheira de chapa de John McCain ainda não assimilou seu papel, que deveria ser, como convém a quem aceita ser vice, de mero figurante. E aí está o principal problema. O papel de figurante não é exatamente o sonho da governadora do Alasca, que, até agosto, era uma ilustre desconhecida e agora estampa capas de revistas e jornais, cumprindo a profecia do artista plástico nova-iorquino Andy Warhol, autor da frase “um dia todos terão direito a 15 minutos de fama”. Sarah Palin, nascida no remoto Estado de Idaho, noroeste dos Estados Unidos, está desfrutando com volúpia esse seu instante de celebridade e quer mais. Muito mais.
A companheira de chapa de John McCain ainda não assimilou seu papel, que deveria ser, como convém a quem aceita ser vice, de mero figurante. E aí está o principal problema. O papel de figurante não é exatamente o sonho da governadora do Alasca Em 15 dias de fama, desde 29 de agosto, seus arrabatamentos verbais e sua estratégia de parecer displicente, a princípio encantaram republicanos e até democratas que rejeitam votar em negros. Mas, desde sexta-feira, 12 de setembro, quando concedeu sua primeira entrevista exclusiva, Palin, ao se manifestar sobre política externa e mais especificamente se referir à crise entre Rússia e Geórgia, criou os primeiros constrangimentos ao candidato republicano. De natureza arrebatada, chegando às raias do fanatismo, Sarah Palin defendeu a entrada da Geórgia e da Ucrânia no Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e quando o âncora do canal ABC, Charles Gibson, lembrou da resistência do presidente russo, Vladimir Putin, à inclusão desses dois países no tratado, Palin não titubeou e, num só fôlego, voltou aos velhos tempos da Guerra Fria dizendo: “Talvez tenhamos que ir à guerra contra a Rússia porque este é o acordo que protege os membros da OTAN: quando um país é atacado, os outros se levantam em sua defesa”.
À sombra da outra
Foi o suficiente para os analistas políticos dos principais jornais do país, incluindo-se aí o New York Times, descobrirem que a “caipirinha do Alas-
se no diretor-geral do Centro de Investigações Criminais do Estado. Não, ele não é advogado, sequer detetive. Seu emprego anterior foi na empresa Alasca Airlines.
Muito prazer
À esquerda, Sarah Palin de biquíni e armada; ao lado, a foto original: manipulação digital ajudou a popularizar candidata
ca”, como já está sendo chamada, está muito longe de ser uma ingênua e inofensiva fundamentalista religiosa. Ela carrega também todos os ódios típicos de um grande segmento da população dos Estados Unidos que causa vergonha à elite intelectual do país e, principalmente, é um risco para a segurança mundial. Além disso, Sarah Palin, que em outros tempos foi apresentadora de televisão, vem ofuscando a presença de John McCain nos comícios porque se transformou num símbolo sexual de adolescentes mal resolvidos. E, pior do que isso, está criando, cada dia mais, situações políticas incômodas para o candidato republicano que, desde a campanha das primárias, estabeleceu um diferenciador com seu correligionário George W. Bush, considerado, até agora, o pior presidente dos Estados Unidos. E declarações do tipo “guerra com a Rússia” mostram que esse diferencial é tênue e inconvincente. Para completar as declarações alopradas, a governadora do Alasca retomou a tese de Bush para justificar a invasão do Iraque. Em março de 2004, quando mandou suas tropas ocupar Bagdá, o presidente dos Estados Unidos disse que o então presidente iraquiano, Saddam Hussein, deveria ser eliminado porque financiava a organização Al-Qaeda, responsável pelos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Nas celebrações do 11 de setembro desse ano, Palin repetiu esse argumento, do qual Bush já se desfez há um certo tempo.
Porto Alegre – Juneau
Para quem pretende ter uma noção mais aproximada do papel político da governadora Sarah Palin, uma dica: pensem na governadora Yeda Crusius (PSDB). Há muito mais semelhanças entre Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, e Juneau, capital do Alasca, do que supõe um ingênuo eleitor. A começar pelo estilo de governar. Crusius e Palin confundem a divisão do trabalho doméstico com a administração pública. Por isso, ambas se escoram nos respectivos maridos. A crise gaúcha do início do ano começou quando o vice-governador do Rio Grande do Sul, Paulo Feijó, escancarou os desmandos acontecidos no Palácio Piratini, onde o economista Carlos Crusius, marido de Yeda, tem “total ingerência no governo, inclusive na decisão de aumentar impostos”. E deixou no ar a suspeita de que o “primeiro marido” não é exatamente confiável. Denúncias semelhantes são feitas contra Todd Palin. Com um agravante, Todd se intromete muito mais nas questões de governo do que Carlos Crusius e
por isso mesmo está sob investigação, por ter demitido o comissário de segurança pública do Estado e pelo fato de que os assessores diretos da governadora não se permitem dar um passo sem perguntar a Todd o que deve ser feito. O maridão, um tipo atlético, também se dá o direito de fazer cobranças até mesmo aos deputados que representam o Alasca no Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos. No verão passado, Todd Palin telefonou para o deputado John Harris, porta-voz dos republicanos, reclamando contra a contratação de John Bitney para ser chefe de gabinete do deputado. O marido da governadora estava insatisfeito porque Bitney tinha sido demitido pela governadora e agora estava num alto posto dentro do Congresso. E por que Sarah Palin demitiu esse seu antigo colega de universidade? Simplesmente porque John Bitney havia se apaixonado por uma outra colega de escola, e o casal, que oferece o que há de pior no puritanismo estadunidense, não aceitou a paixão porque Bitney é casado e agora fora “promovido” a Washington.
Corrupção
Essas denúncias jamais chegariam ao grande público do país se Sarah Palin não fosse escolhida para ser companheira de chapa de John McCain, mas, agora, sua vida está sendo devassada, numa superexposição tão ao gosto da classe média dos EUA. Com isso, os eleitores e telespectadores amanhe-
Em sua primeira entrevista exclusiva, Palin voltou aos velhos tempos da Guerra Fria dizendo: “Talvez tenhamos que ir à guerra contra a Rússia”
cem cada dia com novas surpresas. As mais chocantes são aquelas sobre práticas de corrupção da antes desconhecida governadora. A primeira delas foi sobre o recebimento ilegal de diárias de viagem durante um ano inteiro porque Palin continuou vivendo na sua casa em Wasilla. Não se mudou para a capital do Estado, onde funciona a sede do governo. E, por estar “de viagem”, cobrou diárias. Obviamente, a questão está nos tribunais e a governadora ainda corre o risco de ser condenada. Mas, por enquanto, todos os processos estão suspensos porque cinco procuradores do Alasca decidiram paralisar o andamento do processo por “estar servindo a questões políticas” (leia-se, usadas pelo concorrente Barack Obama). Uma das acusações mais graves contra Sarah Palin, que foi eleita governadora em 2006, refere-se à construção de uma ponte que não vai a lugar nenhum (a ponte já foi batizada de “Bridge to Nowhere”, num bom português, “Ponte para lugar algum”). Há pouco mais de uma semana, quando Palin voltou ao Estado onde governa pela primeira vez, depois que foi escolhida para ser vice de McCain, ela foi obrigada a enfrentar uma manifestação em Anchorage, cidade do Alasca que mais oferece resistência à governadora. Mais de 2 mil pessoas foram às ruas protestar contra sua indicação porque, disse um dos manifestantes, “nós corremos o risco de vê-la na Casa Branca e isso será a nossa ruína”. O protesto foi convocado pela bióloga Angie Droff que, além de querer explicações sobre a tal ponte, está preocupada com a ascensão de Sarah Palin, uma pessoa que, na sua opinião, “não tem nenhuma sensibilidade com as questões ambientais”. Na passeata, os participantes cantavam “Obama, Obama”, carregando cartazes alusivos à “infame ponte”, além de críticas a seu esporte preferido, a caça ao “moose” (espécie de veado galheiro) – feita de helicóptero –, suas declarações condenando o aborto e, principalmente, “as fraudes da senhora Palin”. Celeste Van Kirk
McCain abraça Palin em evento de campanha
Se acontecer o pior, Sarah Palin, e não Hillary Clinton, será a primeira presidente mulher dos Estados Unidos. E então, aquela coelhinha tirada da cartola de McCain no dia 29 de agosto, que parecia tão inofensiva, com suas práticas belicosas, tão ao gosto de George W. Bush, será a ruína do planeta Terra Ação entre amigos
Imagine-se uma situação na qual a apresentadora de TV Luciana Gimenez ou Ana Maria Braga (ou qualquer outra do mesmo quilate) fosse eleita governadora de um Estado brasileiro distante do centro de decisões. Amapá, por exemplo. Agora imagine se uma delas resolvesse levar para seu secretariado as coleguinhas de escola. É difícil imaginar esse quadro? Nem tanto. Foi exatamente isso que aconteceu com Sarah Palin quando eleita governadora do Alasca. Suas coleguinhas de escola, algumas do Elementary School (ensino fundamental) hoje estão posicionadas em importantes pastas, entre elas a de Agricultura, que maneja um orçamento de 2 milhões de dólares. A escolhida, Franci Havemeister, jamais teve qualquer intimidade com o assunto. É uma agente imobiliária aposentada e foi escolhida, segundo Palin, porque “na infância gostava muito de vacas, bois, pasto”. Parece piada, mas não é. Havemeister é apenas um dos cinco exemplos de amigos de infância que chegaram ao poder no Alasca. Todos eles, segundo denúncias feitas pelo jornal daquele Estado, “recebem salários e vantagens que excedem aos do setor privado”. A denúncia soa como sacrilégio num país onde viceja o mito do “trabalho árduo” dos empregados das empresas privadas, enquanto os servidores públicos – tal qual no Brasil – são considerados parasitas. Além de John Bitney, o coleguinha que ousou se apaixonar, embora seja casado, e por causa disso caiu em desgraça, Sarah Palin chamou Joe Astermann para a secretaria da Fazenda e Frank Bailey, que foi colega da governadora durante o ensino médio, e transformou-
Todas estas denúncias contra Sarah Palin já eram conhecidas pela população do Alasca há pelo menos dois anos. Mas ninguém em Washington teve curiosidade de saber o que estava acontecendo lá nas beiradas do Pólo Norte. O próprio John McCain jamais se encontrara com Sarah Palin antes de anunciar o nome da governadora para compor sua chapa. Aceitou a sugestão sem titubear. O que contou na escolha foi a empatia de Palin com o público. E McCain, apesar das denúncias, está satisfeito. Afinal de contas, Palin levantou o astral da campanha de McCain, que estava a cada dia se desmanchando por falta de dinheiro. Comparado com o cofrinho de Barack Obama, que ostenta uma arrecadação de 66 milhões de dólares, recorde na história das eleições dos Estados Unidos, McCain parece um mendigo, mas espera ver o caixa de campanha crescer graças ao charme e veneno da “caipirinha do Alasca”. Insatisfeitos estão os assessores do candidato republicano que, a cada dia, várias vezes ao dia, são obrigados a responder às perguntas feitas pelos jornalistas sobre mais uma denúncia ou gafe política cometida pela candidata. Sarah Palin quer ser levada à sério. Mas está difícil! Sua idéia fixa é ser uma mistura de Madeleine Albright, ex-secretária de Estado dos EUA, e Carla Bruni, mulher do presidente francês, Nicolas Sarkozy. Por enquanto ainda não chegou perto de nenhum dos dois modelos. E, quando começa a falar de política, tenta imitar trejeitos de Hillary Clinton. A governadora quer herdar os eleitores democratas órfãos da senadora Clinton. Já conquistou muitos deles, mas virou piada de todos os programas de humor da TV dos Estados Unidos. Piadas pesadas, inclusive mostrando a governadora com um rifle (arma que ela maneja com a precisão de atiradores de elite) na mão apontando para jornalistas. E já há cartazes espalhados nas grandes cidades com a foto de um “moose” sangrando, que dizem “salvem-me, por favor”. A imagem é forte. Mas por que tanta preocupação com uma pessoa que será “apenas” vice? Aí as bruxas da política estadunidense, democratas e até republicanas, respondem: John McCain está com 72 anos e seu histórico de saúde é dos mais delicados, pois o candidato vem lutando contra o câncer há alguns anos.
Palin carrega todos os ódios típicos de um grande segmento da população dos Estados Unidos que causa vergonha à elite intelectual do país e, principalmente, é um risco para a segurança mundial Se acontecer o pior, Sarah Palin, e não Hillary Clinton, será a primeira presidente mulher dos Estados Unidos, e então, não apenas os manifestantes de Anchorage vão dizer que, se ela chegar à Casa Branca, “será nossa ruína”. Aquela coelhinha tirada da cartola de McCain no dia 29 de agosto, que parecia tão inofensiva, com suas práticas belicosas, tão ao gosto de George W. Bush, será a ruína do planeta Terra.