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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 6 • Número 292

São Paulo, de 2 a 8 de outubro de 2008

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br

João Zinclar

Nova Constituição do Equador abre caminho para mudanças

Dia da Criança celebra convite ao mercado

Com um vitória ampla de 64% dos votos, o povo equatoriano disse “sim” à nova Constituição, elaborada durante todo o primeiro semestre deste ano pela Assembléia Constituinte. Agora, o próximo passo é convocar novas eleições no país, que devem ocorrer em fevereiro de 2009 – inclusive para presidente – quando cerca de 3 mil cargos públicos devem ser renovados.

Embora Rafael Correa não tenha ainda declarado publicamente sua candidatura, é improvável que outro político passe a ocupar a cadeira presidencial no ano que vem. Movimentos sociais – ainda que com ressalvas – apoiaram a aprovação do novo texto. Um dos pontos positivos, apontam, é colocar o Estado como controlador e ator econômico no país. Págs. 2 e 10 Presidência da República do Equador

Idealizado como um dia para homenagear a criança e discutir medidas relativas à sua saúde, educação e lazer, o 12 de outubro transformou-se em uma data voltada aos interesses do mercado. Por meio da publicidade direcionada ao público infantil, as empresas estimulam o consumismo precoce e a inversão de valores. Pág. 3 World Economic Forum/CC

O presidente do Equador, Rafael Correa, comemora a nova Constituição aprovada em referendo

Na Bolívia, a luta é pela posse da terra Para salvar honra sionista, sai Olmert, entra Livni

A oposição radical da direita contra o governo de Evo Morales tem sua origem na questão fundiária. Em entrevista, o diretor-geral

do Vice-Ministério de Terras da Bolívia, Cliver Rocha Rojo, afirma que “a luta pela terra, pelo território e pelos recursos naturais é o centro

da luta de classes e do próprio poder” no país. Em Santa Cruz, por exemplo, apenas 15 famílias controlam 512 mil hectares. Pág. 9 José Luís Quintana/ABI

A renúncia do primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert, acusado de corrupção, foi a solução encontrada para a classe média e sobretudo os setores ortodoxos acreditarem que a moral e a honra do Estado sionista foram salvas. Assim que consiga formar uma nova coalizão de governo, a chanceler Tzipi Livni assumirá o cargo. Pág. 12

Crise dos EUA deixa claro como o capitalismo funciona “Eu estou achando a crise maravilhosa”, declara, em entrevista, Nildo Ouriques, economista da Universidade Federal de Santa Catarina. Para ele, os abalos no mercado financeiro dos EUA desorganizam os interesses

da classe dominante e esclarecem como funciona o sistema. “Fica claro que o Estado está aí para favorecer os ricos”, afirma, referindo-se aos pacotes apresentados pelos governos para enfrentar a crise. Págs. 2 e 11

Manifestação em Chuquisaca: luta para mudar estrutura agrária desigual

Antônio Milena/ABr

“Segundo as autoridades usamericanas, o objetivo da Quarta Frota é ‘realizar ações humanitáriasʼ. Então, para que tantos mísseis?”, indaga Frei Betto, referindose à esquadra dos Estados Unidos para a América Latina reativada em 12 de julho, composta por 22 navios: quatro cruzadores com mísseis, quatro destróieres com mísseis, 13 fragatas com mísseis e um navio hospital.

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AFOGANDO EM NÚMEROS

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de dólares é o valor do pacote do governo dos Estados Unidos.

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O mesmo que: • 26 vezes o valor do Proer brasileiro, dinheiro dado por Fernando Henrique aos banqueiros, que foi de 24 bilhões de dólares •

6% do PIB dos EUA, que é de13,8 trilhões de dólares.

• 14 mil “Robinhos”, vendido ao Manchester City por 55 milhões de dólares. • 70 vezes a fortuna de Antônio Ermírio de Moraes, o 77º homem mais rico do mundo.

Despolitizada, eleição é marcada pela apatia No dia 5, os brasileiros vão às urnas para escolher seus representantes municipais. Para a esquerda, o processo eleitoral sempre foi um espaço para se debater os problemas do povo e fazer a disputa de projetos. No entanto, essa campanha se caracterizou como a mais despolitizada dos últimos tempos. Essa é a impressão da maioria de 17 entrevistados. Fruto do descenso do movimento de massas, da crise ideológica dos partidos de esquerda e da manipulação financeira. Págs. 2, 4 e 5

Mostra de filmes discute direitos humanos A 3ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul percorre 12 capitais brasileiras exibindo produções latino-americanas que discutem maneiras de construir um mundo mais justo e solidário. Realizada no ano em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 60 anos, a mostra busca dialogar com o continente, transformando o cinema em um espaço de crítica e reflexão da região. Pág. 8 ISSN 1978-5134


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editorial A ÚLTIMA semana de setembro esteve cheia de surpresas. E nos próximos dias, ainda poderemos ter outros elementos inesperados. Por enquanto, três fatos muito importantes estão marcando a conjuntura política no mundo, na América Latina e no Brasil.

A crise do capital financeiro

O capitalismo deu mais uma vez razão às teorias do velho Marx. Depois de duas décadas de neoliberalismo, em que os grandes proprietários ganharam muito dinheiro, dilapidaram as empresas públicas, tomaram de assalto os Estados, controlaram os governos, pregaram todo poder ao mercado, aumentaram suas taxas de lucro com especulação, aumentaram o desemprego, geraram mais fome e pobreza e estavam felizes com o final da história da humanidade, eis que surge a pior crise financeira dos últimos tempos. Oriunda do mercado imobiliário estadunidense – e que segue para o mercado acionário e para o mercado de crédito –, essa grave crise financeira internacional dá agora sinais concretos de esgotamento desse modelo. Bancos começam a quebrar, e com eles, milhares de correntistas, acionistas e especuladores. Estimase que mais de 10 trilhões de dólares perderam seu valor. Muitos estão

debate

A crise mundial, o referendo no Equador e as eleições no Brasil correndo para as chamadas economias periféricas e aplicando seu dinheiro em terras, etanol, recursos naturais, bens fixos. O fato é que a crise está instalada. O que se discute agora é qual a sua profundidade, qual o seu tempo de duração e quais serão as suas conseqüências para a economia mundial, para a economia de países dependentes como o Brasil e sobretudo para a classe trabalhadora. Tradicionalmente, o capitalismo sai das crises sempre com guerras e/ou cobrando da classe trabalhadora seus empregos e salários, levando mais miséria e desemprego a milhões de pessoas. Porém, esperamos que, agora, os povos, estando mais informados, melhor preparados, mais organizados, possam fazer frente para se defender e exigir que o capital assuma sua conta. E que, no mínimo, saiamos dessa crise com o dólar deixando de ser a moeda internacional. Os Estados Unidos vêm financiando, desde a Segunda Guerra Mundial, seu padrão de consumo, seu deficit comercial, seu deficit público, suas lou-

curas militares e sua corrida espacial com uma maquininha que pinta papel de verde e obriga a todos que acreditem nessa moeda, ou seja, o dólar. Esperamos que os movimentos sociais, as forças populares e os partidos de esquerda tenham capacidade para rapidamente se articularem em nível internacional para debater como devem defender os interesses da classe trabalhadora e dos pobres em todo mundo. E, assim, impor derrotas aos especuladores e detentores do capital. Nesse sentido, eventos já programados da cúpula dos governos e dos povos latino-americanos, em dezembro, em Salvador (Bahia), e o Fórum Social Mundial, em janeiro de 2009, em Belém (PA), podem cumprir um papel importantíssimo diante desse novo cenário mundial.

O povo equatoriano avança

Na América Latina, o principal acontecimento foi a aprovação pelo povo equatoriano da nova Carta Magna, ou seja, a Constituição do país, por mais de 70% da população. Porém, mais do que culminar um

processo legislativo democrático, de consulta popular e de debate político, a aprovação da nova Constituição representa um passo importante do povo equatoriano que selou um acordo social de novo tipo. A constituição do Equador incorporou na lei avanços sociais e políticos pelos quais o povo vinha lutando há décadas. Os equatorianos derrotaram e passaram recibo ao neoliberalismo. O país recuperou a soberania sobre suas riquezas naturais, sobre o petróleo, sobre a base militar de Manta, determinando o fim da concessão aos estadunidenses. Abriu assim espaço para a construção de um novo regime político, mais democrático, que estimula as lutas sociais e a participação popular na solução de seus problemas. Com certeza, a nova Constituição do Equador terá repercussões nos demais países do continente.

Já no Brasil... teremos as eleições municipais

Aqui no Brasil, no dia 5, acontece o primeiro turno das eleições mu-

crônica

Memélia Moreira

A internet no réquiem de Wall Street

Movimento silencioso

Quem viu as manifestações de rua chegou a acreditar que, realmente, o povo desse país é apático, pouco politizado, alienado, enfim. Até porque nenhum sindicato, nem a poderosa AFL-CIO, parecia disposto a convocar grandes protestos. Equívocos de quem

não conhece uma sociedade nas suas profundezas. O movimento foi silencioso, invisível a olho nu. Durante o fim de semana, quando líderes democratas e republicanos tentavam chegar a um acordo, obrigando assessores do Congresso a trabalhar inclusive no domingo, teclas de computadores ligados à internet entoavam o réquiem de Wall Street. Não se sabe o número exato da correspondência chegada aos gabinetes dos deputados, mas uma estimativa aproximada fala em mais de 1 milhão de e-mails despejados nas caixas postais dos deputados e senadores republicanos durante o fim de semana, todos eles manifestando repúdio à tentativa do governo dos Estados Unidos em resgatar a quebradeira dos bancos do país. Sem contar as mensagens exigindo o fim das guerras do Iraque e Afeganistão, que consomem bem mais do que o pacote de resgate dos bancos. E deu-se a rebelião. O instinto de sobrevivência política falou mais alto. Há eleições dentro de pouco mais de 40 dias, e os republicanos, que são minoria no Congresso, querem recuperar o terreno perdido. Além disso, mesmo que os pequenos partidos sejam quase inexistentes, nenhum democrata ou republicano quer dividir o voto com os demais 11 partidos que concorrem à Casa Branca. Tanto pior para Wall Street. Foi este o raciocínio que derrubou o pacote, surpreendendo o secretário do Tesouro, Henry Paulsen, que tinha certeza da aprovação das medidas, e “desapontando” Bush, que fez um breve pronunciamento aos jornais demonstrando todo o cansaço das 72 horas de vigília enquanto duraram as negociações. Pronto, o pacote foi derrubado. Bush precisava de 218 votos para aprovar os 700 bilhões de dólares. Faltaram exatamente 13 votos. E foi seu partido o principal responsável pela derrota. Afinal de contas, 133 deputados do partido do presidinte votaram contra. Nos democratas, foram apenas 94.

O dia que a terra tremeu

Mal o painel de votação do plenário do Capitólio acendera as luzes com o resultado final da votação, a terra tremeu de Nova York a Tóquio, passando por São Paulo, Paris, Munique e onde quer que exista Bolsa de valores. No Brasil, a Bolsa de Valores de São Paulo radicalizou e suspendeu o pregão, depois de uma baixa que chegou a atingir 10%. O índice Dow Jones recuou 5%. No final do dia, as perdas da Bolsa de Nova York chegaram a 1 trilhão e 200 bilhões de dólares. Na Alemanha, os investidores da Bolsa viram uma queda de 4,23%; na França, 5,04%; na Argentina, 6,98%. Quem menos sofreu foi o mercado do Japão, com uma perda de 1,26%. Ainda perplexo com o resultado, Henry Paulsen deu uma rápida declaração dizendo que continuaria a “trabalhar com os líderes do Congresso para encontrar um caminho de consenso para que se aprove o plano de estabilização financeira e assim proteger o povo estadunidense da deterioração econômica”. As negociações continuam, mas o pacote será totalmente mudado, a começar pela escolha dos bancos a serem beneficiados. Henry Paulsen foi extremamente ambicioso ao propor medidas que o tornariam o homem mais poderoso dos Estados Unidos (de acordo com a mensagem mandada ao Congresso, nem mesmo a Corte Suprema poderia questionar Paulsen na aplicação das medidas) porque caberiam exclusivamente os critérios de uso dos 700 bilhões. Além disso, mais do que negociar com os líderes do Congresso, Paulsen terá que usar toda sua habilidade para convencer Wall Street de que esse pacote vai realmente evitar a quebradeira geral. P.S. Ao terminar de escrever este texto, a maior concessionária de vendas da Chevrolet, com 15 lojas em sete Estados, acabava de fechar suas portas. Memélia Moreira é correspondente do Brasil de Fato nos EUA

Leonardo Boff

Os engodos do mercado Gama

DIZ O DITADO que em casa que falta pão, todo mundo briga e ninguém tem razão. Foi exatamenmte isso que aconteceu no Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos, na segunda-feira, 29 de setembro. De repente, democratas acusavam republicanos pela rejeição do pacote de socorro de 700 bilhões de dólares aos banqueiros e especuladores de Wall Street, enquanto republicanos atacavam a líder da maioria na casa, senadora Nancy Pelosi (Partido Democrata do Estado da Califórnia), dizendo que ela não soube comandar a votação. Mas a verdade estava bem longe dali e espalhada ao longo do território dos EUA. Para encontrar culpados pela maior derrota legislativa sofrida pelo presidente George W. Bush nos seus quase oito anos de mandato, será preciso periciar cada um dos computadores do povo estadunidense. Este sim, o subversivo equipamento responsável pelo resultado da votação e ao alcance de qualquer estadunidense de classe média, ao preço que pode variar de 200 a 400 dólares. Partiu dos computadores a palavra de ordem que determinou a rejeição do pacote. Tudo começou com as primeiras manifestações de protesto ocorridas em várias cidades dos Estados Unidos, incluindo Nova York, dois dias depois de anunciado o Proer de Bush. Naquele mesmo dia, o governo, para iniciar as negociações com os democratas para a aprovação do pacote, avisou que o FBI (Polícia Federal dos Estados Unidos) iria investigar, a seqüência de falências bancárias. O aviso, que passou quase despercebido pelos jornais, provocou as suspeitas da sociedade. Ora, se o FBI vai investigar, significa que algumas falências podem ter sido criminosas. E os estadunidenses prestaram mais atenção às denúncias sobre altos salários e indenizações milionárias recebidas pelos diretores dos bancos em bancarrota. Foi o suficiente para que os eleitores, principalmente os eleitores republicanos, se indagassem a respeito da ajuda de 700 bilhões de dólares que será paga pelo contribuinte, com aumento de impostos. E se tem uma coisa que irrita os gringos é imposto. Os agentes do FBI terão muito muito trabalho pela frente. E podem escolher por onde começar. Se quiserem começar pelo Fanny Mae, este é um bom lugar. Lá, um diretor recebeu 90 milhões de dólares por seis anos de trabalho. Mas, se quiserem, podem ir direto ao Washington Mutual, onde um diretor que trabalhou por 17 dias e se afastou recebeu 20 milhões de dólares em bônus. Os dois bancos foram à falência e esperam o resgate bilionário de Bush.

nicipais, nas quais os eleitores irão escolher os novos mandatários da maioria dos quase 6 mil municípios brasileiros. As cidades com mais de 200 mil eleitores terão a decisão final apenas no dia 26. Essa é, sem dúvida, a campanha eleitoral mais despolitizada das últimas décadas. É claro, fruto do descenso do movimento de massas, da crise ideológica dos partidos de esquerda e da manipulação financeira e de campanhas cada vez mais caras dos candidatos dos ricos. Nessas eleições não se debateram projetos para nossas cidades, nem soluções para os graves problemas sociais, como o desemprego, a moradia, o transporte público, o caos do trânsito e a poluição. Na maioria dos casos, foram disputas de falsas promessas e vaidades pessoais. Em muitos lugares, chegou-se ao ridículo dos candidatos disputarem entre si quem era mais amigo do Lula, tentando surfar na alta popularidade do presidente. Nesse cenário, o quadro que se tem, com os favoritos nas grandes cidades, não é nada alentador. Infelizmente, é de muita apatia e desânimo. Oxalá a população brasileira consiga escolher os candidatos mais comprometidos com mudanças reais e as verdadeiras soluções para os problemas da imensa maioria do povo.

PODEMOS IMAGINAR a profunda perplexidade que a crise dos mercados mundiais abateu sobre os ideólogos do neoliberalismo, do Estado mínimo e dos vendedores das ilusões do mercado. A queda do muro do Berlim em, 1989, e a implosão da União Soviética provocou a euforia do capitalismo. Reagan e Tatcher, agora sem o contraponto socialista, aproveitaram a ocasião para radicalizar os “valores” do capitalismo, especialmente das excelências do mercado que tudo resolveria. Para facilitar a obra, começaram por desmoralizar o Estado como péssimo gestor e difamar a política como o mundo da corrupção. Naturalmente havia e ainda há problemas nestas instâncias. Mas não se pode abrir mão do Estado e da política se não quisermos regredir à barbárie social. Em seu lugar, dizia-se, devem entrar as ordenações excogitadas no seio dos organismos nascidos em Bretton Woods e dos grandes conglomerados multiraterais. Entre nós, chegou-se a ridicularizar quem falasse em projeto nacional. Agora, sob a globalização, insistiam, vigora o projetomundo. E o Brasil deve inserir-se nele, mesmo de forma subalterna. O Estado deve ser reduzido ao mínimo e deixar campo livre para o mercado fazer os seus negócios.

Na nova fase planetária da humanidade, mais e mais se notam as limitações dos Estados e cresce a urgência de um centro de ordenação política Nós que viemos, como tantos outros, do compromisso com os direitos humanos, especialmente, dos mais vulneráveis, demo-nos logo conta de que agora o principal violador desses direitos era o Estado mercantil e neoliberal. Pois os direitos deixavam de ser inalienáveis. Eram transformados em necessidades humanas cuja satisfação deve ser buscada no mercado. Só tem direitos quem pode pagar e for consumidor. Não é mais o Estado que vai garantir os mínimos para a vida. Como a grande maioria da população não participa do mercado, via negado seu direito. Podemos e devemos discutir o estatuto do Estado-nação. Na nova fase planetária da humanidade, mais e mais se notam as limitações dos Estados e cresce a urgência de um centro de ordenação política que atenda às demandas coletivas da humanidade por alimento, água, saúde, moradia, saúde e segurança. Mas enquanto não chegarmos à implantação desse organismo, cabe ao Estado ter a gestão do bem-comum, impor limites à voracidade das multinacionais e implementar um projeto nacional. A crise econômica atual desmascarou como falsas as teses neoliberais e o combate ao Estado. Com espanto, um jornal empresarial escreveu em letras garrafais, em sua secção de economia, “Mercado Irracional”, como se um dia o mercado fosse racional, mercado que deixa de fora 2/3 da humanidade. Uma conhecida comentarista de assuntos econômicos, verdadeira sacerdotiza do mercado e do Estado mínimo, inflada de arrogância, escreveu: “As autoridades americanas erraram na regulação e na fiscalização, erraram na avaliação da dimensão da crise, erraram na dose do remédio; e erram quando têm comportamento contraditório e errático”. E, por minha conta, acrescentaria: erraram em não convocá-la como a grande pitonsa que teria a solução adivinhatória para a atual crise dos mercados. A lição é clara: deixada por conta do mercado e da voracidade do sistema financeiro especulativo, a crise ter-se-ia transformado numa tragédia de proporções planetárias pondo em grave risco o sistema econômico mundial. Logicamente, as grandes vítimas seriam os de sempre: os chamados zeros econômicos, os pobres e excluídos. Foi o difamado Estado que teve que entrar com quase dois trilhões de dólares para, no último momento, evitar o pior. São fatos que nos convidam a revisões profundas ou, pelo menos, alguns a serem menos arrogantes. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


de 2 a 8 de outubro de 2008

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brasil Leonardo Melgarejo

Dia das Crianças: nada a pensar, só a consumir SOCIEDADE Estrela e Johnson & Johnson “privatizaram” a data que, hoje, é o clímax da cultura do “ter para ser” Márcio Zonta de São Paulo (SP) ÀS VÉSPERAS do Dia das Crianças, 12 de outubro, a publicidade e, conseqüentemente, o consumo aumentam. Mas, ao contrário do que muitos podem pensar, nem sempre a data foi uma simples ocasião para presentear filhos, sobrinhos ou netos. O decreto lei nº 4.867, de 5 de novembro de 1924, apresentado pelo deputado federal Galdino do Valle Filho, e sancionado pelo presidente Arthur Bernardes, estabeleceu o 12 de outubro como um dia para se homenagear a criança brasileira e suscitar medidas de proteção que visavam a saúde, a educação, a cultura e o lazer. Porém, na década de 1960, esse intuito original foi quebrado. Houve uma espécie de privatização do Dia das Crianças patrocinado pela fabricante de brinquedos, Estrela, em parceria com a empresa Johnson & Johnson. Era criada a “Semana do Bebê Robusto”. Segundo a coordenadora de Educação e Pesquisa do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana, Lais Fontenelle Pereira, a partir dessa ação conjunta, ocorreu um convite ao consumismo precoce, pois, “as crianças passaram desde cedo a serem incitadas a participar da lógica de mercado”. Pereira, que é mestre em Psicologia Clínica pela Pon-

tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), acrescenta que, nessa época, a publicidade foi estimulada com toda a força. “Quando vemos que, em 2007, o valor gasto no Brasil em publicidade dirigida ao público infantil foi de, aproximadamente, R$ 210 milhões (Ibope) e que o valor do investimento no Programa Federal de Desenvolvimento da Educação Infantil (FNDE) foi de R$ 28 milhões, ficamos pasmados”, comenta. Mas não é só no Brasil que a publicidade visa esse público. No 2º Fórum Internacional Criança e Consumo, realizado entre os dias 23 e 25 de setembro em São Paulo (SP), a psicóloga e ativista estadunidense Susan Linn apresentou um dado apontando que os investimentos em marketing e publicidade voltados às crianças aumentou 170 vezes, nos últimos 30 anos, nos EUA. Na Inglaterra, o público preferencial da publicidade são crianças de apenas três anos. Educação na publicidade Para Pereira, hoje em dia, a publicidade participa da formação de nossas crianças tanto quanto a escola. “O que é mais importante, esses objetos que prometem a felicidade ou a educação?”, questiona. Ela observa que os pais foram desautorizados do papel de educar, do saber da criança, papel que os meios de comunicação passaram a desem-

42%

das peças publicitárias são destinadas ao público infantil. Destas, 89,7% são de produtos ricos em gordura e açúcar. Os dados são de pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) que, desde 2006, já monitorou 2.560 horas de comerciais penhar. Mas, logicamente, de acordo com Pereira, com outros propósitos. “A mídia se ocupou do papel de transmitir os caminhos da infância, porém, o mercado – mídia ou anunciantes – assumiu isso pensando no lucro imediato, e não nas crianças ou no futuro da nação”, diz. Isso ganha em importância quando se verifica que as crianças são totalmente vulneráveis às peças publicitárias veiculadas na televisão, principalmente considerando que as brasileiras passam em média, segundo dados do Ibope de 2005, cinco horas por dia em frente à TV. Pereira, além disso, enfatiza que esse fato afasta as crianças das brincadeiras, principalmente daquelas de cunho educativo e cultural. “A infância não pode ser aprisionada pela falsa felicidade que a sociedade de consumo nos vende. Criança precisa de olhar, de palavras e de escuta, precisa ter infância para ser criança”, conclui.

Conseqüências do consumismo

A publicidade infantil e o ECA

Publicidade não apenas para produtos infantis: crianças se sentem envergonhadas com o carro dos pais

Estatuto tem regulação frágil para propagandas destinadas às crianças de São Paulo (SP) O Instituto Alana alerta para o fato de que hoje, no Brasil, 83% das crianças são influenciadas pela publicidade; 72%, por produtos associados a personagens famosos; 42%, por influência de amigos; 38%, por produtos que oferecem brindes e jogos; e 35%, por embalagens coloridas e atrativas. No entanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 18 anos em julho, não possui nenhum parágrafo que iniba ou proíba peças publicitárias que possam ser nocivas ao público infantil. Para o participante da mobilização pela aprovação do ECA no Congresso Nacional e hoje consultor da Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Anced), Wanderlino Nogueira Neto, falar sobre essa questão é muito complicado, pois debate a liberdade de expressão. Ele acredita ser difícil conciliar dois princípios constitucionais importantes, “a liberdade de expressão, que é a imprensa, livros, publicidade, internet, e a proteção da infância e adolescência sobre o que pode ser veiculado nesses meios”. Mas Nogueira Neto é a favor da implantação de uma lei que vá além das proibições atuais contidas no ECA, como pornografia e bebidas alcoólicas. “Deve-se ampliar esse controle do Estado para além das questões já existentes, de modo a atingir também o controle da publicidade”, diz. Já Lais Fontenelle Pereira, do Instituto Alana, compreende ser importante uma regulação mais rígida, porque, “se todos nós passarmos a consumir de maneira desenfreada, certamente vamos assistir ao avanço de um desequilíbrio generalizado, em que viveremos numa sociedade cada vez mais violenta, desigual e carente”, relata. (MZ)

de São Paulo (SP)

João Zinclar

No Brasil, publicidade influencia 83% das crianças

Quanto

Lais Fontenelle Pereira, do Instituto Alana, acredita que as conseqüências do modelo de vida propagandeado para as crianças são: “conflito familiar, obesidade infantil, erotização precoce, dependência de tabaco e álcool, individualismo, predominância de valores materialistas e estresse familiar”. De acordo com ela, a comunicação mercadológica perpetua nas crianças a cultura do “ter para ser”. “A publicidade diz a crianças e adolescentes que eles serão mais felizes se possuírem ou usarem determinado produto ou serviço”, identifica. A criança passa também a participar da decisão de compra da família, não só na de um chocolate ou um biscoito, mas do carro também. “Hoje, qualquer produto pode ter uma estratégia de divulgação que envolva o público infantil. Quantas histórias não ouvimos por aí de filhos pequenos que se sentem envergonhados com o carro dos pais ou por não terem um tênis de marca? O problema do consumismo é muito grave porque extrapola a questão familiar e gera problemas em outras esferas sociais”, observa. Pereira complementa: “Nesse Dia das Crianças, troquemos o shopping pelo parque. Façamos brinquedos, em vez de comprálos prontos. Troquemos as guloseimas pelo bolo feito no calor da cozinha”. (MZ)

Sem-terrinhas participam de atividade no 5º Congresso do MST

Penalização precoce pode comprometer futuro dos jovens de São Paulo (SP) Por mais que a criança e o adolescente sejam inimputáveis penalmente, segundo rege o artigo 228 da Constituição federal brasileira, eles podem ser cobrados ou responsabilizados por outras esferas que não a estritamente penal, podendo sofrer sanções geralmente parecidas com as dos adultos infratores, com medidas socioeducativas que passam pela privação da liberdade, até serviços prestados à comunidade. Esse é um ponto do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que chama atenção. Se está tratando de assuntos voltados à criança e ao adolescente e é uma lei estatutária, deve assim ser constituída apenas de direitos. Não poderia destinar outra parte para deveres como as medidas socioeducativas, em caso de infrações cometidas por essa faixa etária. O consultor da Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Anced), Wanderlino Nogueira Neto, que participou da implantação do ECA no Congresso, concorda e diz que realmente não deveria conter deveres da criança e do adolescente. “As normas estatutárias existem no

Brasil exatamente para tratar de assuntos que sejam favoráveis a deficientes, idosos, indígenas”, diz. Além do mais, sem poder de fiscalização, por parte de Estados e municípios, sobre as medidas socioeducativas contidas no ECA, o modo como os jovens são confinados, nas chamadas casas de proteção, muitas vezes em situações análogas às de presídios, pode causar um estigma de delinqüente precoce e penalizante nos jovens infratores. Como já estudado pelo filósofo francês Michael Foucault, as conseqüências podem ser drásticas ao futuro deles, principalmente no que diz respeito à sociabilidade, ao mercado de trabalho e aos estudos. Contextualizar a violência Para a pesquisadora da Universidade de Campinas que estuda os meios de controle social e a criminalização da miséria no neoliberalismo, Isabella Jinkings, a adoção de medidas alternativas de controle, como a obrigatoriedade de acompanhamento psicológico, escola e envolvimento do grupo familiar na discussão do problema são muito mais eficazes. “A saída para combater a violência urbana é muito mais complexa, pois, para além das soluções tópi-

cas, contudo, deve-se pensar o problema da violência urbana no contexto social que vivemos”, complementa. Neto diz que a aprovação de tais medidas foi uma escolha de todos que brigavam pela implantação do estatuto. “Foi uma opção política conjuntural de época, do movimento de luta pelos direitos da criança e do adolescente e dos parlamentares brasileiros”, relata. Para Jinkings, no entanto, a solução penalizante é a máxima buscada por aqueles que não pensam a violência como um fenômeno social, e, sim, como um fenômeno individualizado. “Precisamos pensar a sociedade capitalista como um todo, compreendemos como os fenômenos sociais estão interligados e como a violência pode ser considerada um resultado de diversos outros processos sociais”, comenta. (MZ)

Para entender Michael Foucault – Filósofo francês que desenvolveu estudos científicos sobre a legislação penal e os métodos adotados pelos poderes públicos para punir os que praticam alguma modalidade de crime, desde os séculos passados até os tempos modernos.

MOBILIZAÇÃO

Preço da energia gera indignação na Paraíba Sávia Cássia Ribeiro

Sávia Cássia de João Pessoa (PB) Para barrar o aumento de 15,77% nas tarifas de energia e pela instituição da “tarifa social”, no dia 25 de setembro, cerca de 300 pessoas realizaram manifestação contra a Energisa, companhia que fornece energia elétrica a 216 municípios da Paraíba, incluindo João Pessoa. O protesto foi realizado no centro da capital, em frente à agência da empresa, pelo Comitê contra o Aumento da Energia, formado pela Assembléia Popular, CUT, OAB, entre outras entidades. A manifestação teve início com ato público no Parque Sólon de Lucena, animado por um “exército de palhaços” que denunciaram a Energisa e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) pelo aumento. Em seguida, os manifestantes foram em caminhada até o posto de atendimento ao consumidor da Energisa para entregar autodeclarações de famílias com direito a tarifa social. Mas, ao perceber a chegada dos manifestantes, a empresa fechou as portas e, mesmo com a presença de um representante do Ministério Público Federal, se negou a receber os documentos, alegando final de expediente. Os manifestantes permaneceram em frente da Energisa denunciando à população o fato da empresa não rece-

Manifestação reuniu mais de 300 em João Pessoa

ber as autodeclarações, os altos preços da energia e os lucros exorbitantes que a empresa tem gerado. O ato foi finalizado com a queima de um grande cartaz simbolizando uma conta de energia e diversas outras contas reais. A Energisa não tem cumprido a Lei nº 10.438/2002, que determina a cobrança diferenciada para os consumidores que utilizam até 220 KW/mês, a tarifa social. Além de não divulgar para a população o direito garantido em lei, a empresa, ao receber, em março, autodeclarações de famílias com essa faixa de consumo, comunicou aos solicitantes, por meio de carta, que a documentação não tinha validade, alegando a necessidade dos beneficiários estarem vinculados a programas sociais do governo federal.

Segundo Gleyson Ricardo, representante da Assembléia Popular (PB), esses critérios foram instituídos pela Aneel em 2002, quando foi criada a lei, mas foram desvinculados da legislação por meio de parecer da Justiça Federal de março de 2007. Atualmente, é necessária apenas a entrega da autodeclaração acompanhada de cópia do RG e do CPF. As intransigências da Energisa vão além dos altos preços da tarifa e da negação da tarifa social: “desde a privatização da antiga Saelpa, em 2000, a empresa vem demitindo funcionários sem reconhecer os direitos trabalhistas, o que faz com que a luta seja também pela revisão da concessão pública que beneficia a empresa”, afirmou a liderança (confira a matéria na íntegra na Agência Brasil de Fato).




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Reprodução

saiu na agência Governadora legitima impunidade

A governadora do Pará, Ana Júlia Carepa (PT), promoveu a cabo cerca de 80 soldados que participaram do massacre de trabalhadores rurais sem-terra em Eldorado dos Carajás, em 1996. O jurista Dalmo Dallari, ao comentar o fato com exclusividade ao Brasil de Fato, afirmou que ela “quis fazer média política” e que a situação é reflexo do forte apoio que os criminosos têm das tradicionais oligarquias paraenses. Ulisses Manaças, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), aponta que a atitude de Ana Júlia reforça a impunidade e lembra que, dos três julgamentos sobre o massacre de Carajás, somente dois policiais foram condenados, mas recorrem da decisão em liberdade. Reprodução das páginas eletrônicas dos candidatos Maria Mendonça (PSB) e Luciano Bispo (PMDB)

Uma festa da política ELEIÇÕES Em Itabaiana (SE), milhares de eleitores se envolvem na campanha como torcedores de futebol Amanda Rossi de Itabaiana (SE) “UM CLÁSSICO de futebol”. Essa é a metáfora mais usada pela população de Itabaiana, município sergipano de 83 mil habitantes, 57 km de Aracaju, para definir a disputa pela prefeitura em 2008. Os dois únicos candidatos são representantes diretos de grupos rivais da velha política do município. A paixão pelos dois candidatos é forte. Os itabaianeses também gostam de dizer que muita gente é “fanática, doente” por política. De um lado, Maria Mendonça (PSB), atual prefeita, filha de Francisco Teles de Mendonça, o coronel Chico de Miguel, que dominou a política da cidade por mais de três décadas e faleceu em dezembro de 2007. De outro, Luciano Bispo (PMDB), três vezes prefeito, uma vez deputado estadual e o primeiro a abalar o domínio do Chico de Miguel. A manifestação política que mais chama a atenção é a “caminhada”, na qual os candidatos são acompanhados por partidários e simpatizantes enquanto fazem visitas de casa em casa, em busca de votos. Elas são realizadas todos os dias, exceto aos sábados. “É muito fanatismo. Você dá seu voto e ainda vai a todas caminhadas. Pode ser a distância que for, a pessoa vai”, diz José Augusto Baldock, escritor e contador de causos.

“Isso aqui nos domingos vira um pandemônio. Pode se preparar que ainda vai ter muito mais”, alerta o soldado Thiago Moraes, da Polícia Militar, ainda no local da ocorrência

Somente neste ano foram realizadas mais de 120 caminhadas em Itabaiana. Elas atraem cerca de dez mil pessoas aos domingos e duas mil nos dias de semana, em cada um dos dois grupos políticos. Proporcionalmente, é como se, em São Paulo (SP), 550 mil pessoas fossem às ruas todos os dias para participar da campanha política. “As caminhadas itabaianenses são atípicas e acontecem só na nossa cidade. É uma tradição as pessoas irem às ruas todas as noites, com carro de som, com buzinaço para fazer a festa”, exalta a prefeita. As caminhadas são tradicionais na cidade desde 1988. “As pes-

soas se emocionam com a política e aí querem mostrar a força do seu candidato indo às caminhadas”, explica Bispo.

A festa

Além dos adeptos mais fervorosos, as caminhadas recebem muita gente que quer apenas aproveitar a festa. “É divertido. O pessoal tocando música, fazendo aquela zoada, brincalhando, pulando. É o divertimento da cidade”, conta Marcos Augusto, vendedor de bolsas na Feira de Itabaiana, conhecida entre os comerciantes do Nordeste. “Eu acho as caminhadas boas para torcer, para festejar. É como tempo de São João. Mas eu só vou de dia, porque tenho dificuldades para andar por causa da idade”, diz seu Zé Luiz, afiador de lâminas na feira. Diversos carros de som e minitrios elétricos estão sempre presentes nas duas caminhadas. Nas de Maria Mendonça há uma inovação: uma “boate”, carro de som preparado especialmente para os jovens. Alguns dos jingles de campanha dos dois candidatos são paródias de funks e axés de sucesso, como “O Créu do 40” e “Mai Bê Dandá”. É preciso evitar a todo custo que as caminhadas se cruzem, assim como é essencial manter distantes torcedores de Palmeiras e Corinthians. Os trajetos são encaminhados com antecedência à Justiça Eleitoral. “Se houver confronto entre as duas caminhadas, quem controla a multidão? Aí vem a paixão, vem o coração. Se as duas se encontrarem, só deus sabe o que vai acontecer!”, diz Bispo. A “doença da política” torna comuns brigas entre adeptos dos dois grupos. Na ansiedade que antecedeu as grandes caminhadas do dia 21 de setembro, a duas semanas das eleições, às 10h30, senhores com mais de sessenta anos e ligados a candidatos diferentes trocaram golpes de guardachuva na Praça da Prefeitura, no centro da cidade. Os três saíram bastante feridos e um deles foi conduzido ao hospital. “Isso aqui nos domingos vira um pandemônio. Pode se preparar que ainda vai ter muito mais”, alerta o soldado Thiago Moraes, da Polícia Militar, ainda no local da ocorrência. Em “tempo de política”, como as pessoas se referem ao período eleitoral, as casas e comércios da cidade são tomados por bandeiras vermelhas e amarelas, estampadas com o 40 de Maria Mendonça, e vermelhas, estampadas com o 15 de Luciano. Dá a impressão de haver tantos carros plotados e com adesivos dos candidatos quanto carros anônimos na política. Pelo contrário, muita gente não diz em quem vota de jeito nenhum, como os vendedores do Ceasa de Itabaiana. Eles temem sofrer repressão – como a transferência de suas bancas para um local onde a venda é menor – caso o candidato vencedor não seja o seu. A paixão política em Itabaiana já fez muita gente apostar até caminhão. “As apostas tiveram origem nas disputas políticas. Nós só temos uma condição de discutir: é apostando, porque aí alguém tem algo a perder quando faz uma afirmação sobre seu candidato. Antigamente, tinha gente que apostava caminhão. Eu mesmo já perdi um Kadete ze-

ro nas eleições de 1996”, explica Airton Neguinho. Os apostadores de Maria Mendonça ficam na Praça da Prefeitura e os de Luciano Bispo, na Praça João Pessoa. “A gente aposta mais defendendo nosso lado político. Daí entra a paixão política que em Itabaiana se sobressai ao restante do país”, diz Airton.

A população começa a circular na cidade com as cores indicadas já depois do almoço. Fogos de artifício são lançados com pressa. Jingles dos dois candidatos começam a se embaralhar, tocados ao mesmo tempo em todos os cantos da cidade. A ansiedade vai tomando conta de Itabaiana

Caminhada de domingo

Já no início da manhã de 21 de setembro, os carros, motos, bicicletas e caminhões de som dos dois candidatos disputavam os ouvidos da cidade, convocando a população para as caminhadas. A de Maria Mendonça sai às 15h da residência de Chico de Miguel, no Centro, e os participantes são chamados a vestirem vermelho e amarelo. A de Luciano Bispo sai de outra região da cidade, o bairro Mutirão, com o tema “Paz com Progresso e Liberdade”, e todos devem comparecer de branco. A população começa a circular na cidade com as cores indicadas já depois do almoço. Fogos de artifício são lançados com pressa. Jingles dos dois candidatos começam a se embaralhar, tocados ao mesmo tempo em todos os cantos da cidade. A ansiedade vai tomando conta de Itabaiana. É hora da saída. Muita gente dos dois lados. Um pouco mais na caminhada de Luciano. Em duas regiões da cidade, os itabaianenses dançam política. Deputados federais acompanham a festa. Do lado de Maria Mendonça, o deputado federal Eduardo Amorim (PSC-SE). Do lado de Luciano Bispo, Albano Franco (PSDB-SE). O temido quase acontece: resquícios das duas caminhadas se aproximam por volta das 20h na Praça da Prefeitura. Algumas pessoas trocam ofensas, mas não há confrontos. No final do dia, o que cada um quer saber é qual candidato atraiu mais gente. As caminhadas de Itabaiana funcionam também como pesquisa eleitoral informal.

A política

A influência de Chico de Miguel na política de Itabaiana começou no final da década

Quanto

10 mil

pessoas participam das caminhadas aos domingos

de 1960. Nessa época, ele foi preso, acusado do assassinato de um líder político e, posteriormente, inocentado. “Preso, incomunicável, ele enviava bilhete para a gente, orientando como proceder na política. Desse modo, elegeu dois prefeitos, deputado federal, deputado estadual. Depois ele foi solto e, ao longo da história, nunca quis ser prefeito. Teve três mandatos de deputado estadual e depois se aposentou”, lembra Maria Mendonça. Chico de Miguel também ingressou os filhos na política. Zé Teles foi deputado estadual três vezes – a primeira delas aos 21 anos – e federal outras três. Antônio foi eleito prefeito sem fazer campanha um dia sequer, segundo o irmão Zé Teles. Maria Mendonça diz ter relutado em entrar na política. Foi eleita deputada estadual duas vezes e prefeita de Itabaiana em 2004. “60% dos meus votos são por causa do meu pai. Quarenta por cento vêm dos jovens e de pessoas que acompanharam meu trabalho”, disse a candidata à reeleição, apoiada pelo PT de Lula e de Marcelo Déda, governador de Sergipe. O comando de Chico de Miguel não encontrou um forte rival até o surgimento de Luciano Bispo. Com apoio da rádio Princesa da Serra, criada na tentativa de romper a hegemonia do coronel, ele foi eleito prefeito pela primeira vez em 1988, quando derrotou o candidato de Chico de Miguel – seu filho – nas urnas.

A única pesquisa eleitoral aponta Luciano Bispo na frente com 51% das intenções de voto. Maria Mendonça tem 41%

No total, Luciano Bispo governou a cidade por 12 anos, elegeu um sucessor e agora está tentando voltar ao cargo. “Aqui, todas as vezes que eu participo das eleições consigo os primeiros lugares. Lula só ganhou em Itabaiana quando esteve do meu lado. Quando está contra mim, ele perde. Geraldo Alckmin ganhou as eleições [em 2006]. Eu recebi um telegrama de Serra porque fui o único prefeito que virou as eleições no segundo turno para Serra [em 2002]: Lula perdeu com seis mil votos de diferença”, conta Luciano, exaltando sua força na cidade. A única pesquisa eleitoral sobre as eleições 2008 em Itabaiana foi encomendada pelo Jornal da Cidade, de Aracaju. Segundo ela, Luciano Bispo está na frente com 51% das intenções de voto. Maria Mendonça tem 41%, mas seus adeptos dizem que a enquete foi comprada.

Conspiração permanente

Na Bolívia, o ex-deputado pelo Partido Socialista 1 (PS-1), Walter Vásquez Michel, assegura que ainda está em marcha a Operação “Meia Lua”, que tem o objetivo de derrubar o governo de Evo Morales. A denúncia do ex-parlamentar é embasada por fontes das Forças Armadas, as quais, como nos golpes dos generais Alberto Natusch Busch (1979) e Luis García Meza (1980), advertiram-no sobre a manobra golpista que em poucos dias se fazia realidade. Segundo ele, o conluio está sendo tramado pela elite do oriente boliviano e por oficiais licenciados das Forças Armadas. Cerca de 500 armas de grosso calibre estariam prontas para serem usadas.

Mobilização sindical

Bancários paralisaram as atividades em 17 Estados e no Distrito Federal, no dia 30 de setembro, para pressionar a Federação Nacional dos Bancos a negociar com a categoria. A proposta de reajuste de 7,5%, apresentada pela Fenaban, foi rejeitada. A greve é por tempo indeterminado em alguns Estados e de 24 horas em outros, como Rio Grande do Sul e São Paulo. De acordo com a categoria, o valor é insuficiente, já que a inflação do período (setembro de 2007 a agosto de 2008) ficou em 7,15%, de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Além de aumento real de 5% sobre os salários, os trabalhadores reivindicam elevação do valor da Participação nos Lucros e Resultados (PLR) e Plano de Cargos e Salários para todos os bancários, entre outros pontos. Elza Fiúza/ABr

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Estágio legal Finalmente foi publicada no Diário Oficial da União, no dia 26 de setembro, a nova lei que regulamenta o estágio no mercado de trabalho, estabelece jornada máxima de seis horas por dia e trinta horas por semana, prazo máximo de dois anos e assegura o direito de férias remuneradas e auxílio transporte. Agora só falta o Ministério do Trabalho realizar uma fiscalização efetiva nas empresas para exigir o que está na lei.

Território perdido Apesar da precariedade das informações disponíveis, inclusive porque existe muita maquiagem para esconder a realidade, dados do Incra apontam o aumento das propriedades rurais nas mãos de grupos estrangeiros. O órgão federal estima que existam 5,5 milhões de hectares de terras controladas por estrangeiros. É uma área maior que os Estados de Sergipe, Alagoas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Espírito Santo.

Irresponsabilidade O jornal O Estado de S. Paulo deu com destaque a “notícia” de que o governo da Índia havia acusado o governo brasileiro de ter “vendido” sua posição na OMC em troca da exportação de etanol para os Estados Unidos. Dois dias depois, o governo brasileiro esclareceu que o teor da suposta carta de acusação não tinha nada a ver com a “notícia”. Ao invés de admitir o grave erro, o jornal emendou que o governo brasileiro havia “minimizado” o episódio.

Confraria eletrônica Reportagem da jornalista Elvira Lobato, na Folha de S. Paulo, revelou que existem 184 emissoras comerciais de rádio e TV com a concessão vencida, algumas há mais de 20 anos, e a maioria controlada por políticos das oligarquias regionais, como José Sarney, Collor de Mello, Jader Barbalho etc. O governo sentou em cima dos processos de renovação dessas emissoras enquanto reprime as rádios comunitárias.

Prática neoliberal Além de continuar com a privatização da educação, portos e aeroportos, o governo federal avança também na entrega das rodovias para exploração de empresas privadas: agora serão licitados os trechos baianos da BR-116 (Rio-Bahia) e BR-324. Ou seja, nem a crise no centro do capitalismo nem as mudanças em curso na América Latina abalaram a aplicação do programa neoliberal no Brasil.

Equador aprova Referendada por 64% dos eleitores equatorianos, a nova Constituição daquele país introduz vários avanços sociais no papel do Estado, entre os quais o controle dos recursos naturais e a proibição de monopólio e oligopólio nos meios de comunicação. O resultado do referendo é uma vitória do presidente Rafael Correa, que segue os mesmos passos dados por Venezuela e Bolívia na defesa dos interesses nacionais.

Discurso vazio O discurso das autoridades brasileiras, de que o país estava blindado e imune à crise financeira que sacode os Estados, não resistiu muito tempo: o Banco Central do Brasil teve de queimar 500 milhões de dólares no final de setembro para segurar o valor da moeda estadunidense. E algumas empresas brasileiras vieram a público para anunciar grandes prejuízos. O cenário é de muita instabilidade.

Leilão furado De acordo com Paulo Metri, da Federação Brasileira de Associações de Engenheiros, a realização de novo leilão de áreas de exploração de petróleo, marcado para dezembro, não tem a menor justificativa depois que o governo anunciou a descoberta das reservas do pré-sal. Nos leilões anteriores, a desculpa era a manutenção da auto-suficiência e a redução da dependência externa de gás. Faz sentido?


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brasil

O efeito dominó da crise financeira Rogério Cassimiro/Folha Imagem

ENTREVISTA Para Marcio Pochmann, presidente do IPEA, não se sabe ainda o desfecho dessa crise. Mas ela decorre da profunda instabilidade do atual sistema monetário internacional “NÃO TEMOS uma indicação que nos permita dizer que há uma redução na desigualdade do ponto de vista da distribuição funcional da renda, e sim no que diz respeito à distribuição da renda pessoal do trabalho”. A afirmação é do presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Marcio Pochmann, em entrevista ao IHU On-Line. Para ele, “a questão da tributação assume relevância muito grande do ponto de vista da justiça e do papel na questão da redistribuição dos ganhos de produtividade, fazendo com que o país pudesse ter menos pobres e menor desigualdade”.

IHU On-Line - Podemos identificar realmente uma nova classe média no Brasil? O que poderia ser caracterizado como essa nova classe social?

Marcio Pochmann – Nós, do IPEA, estamos fazendo uma série de investigações sob o ponto de vista da mensuração das mudanças sociais que estão em curso no Brasil. Achamos temerário usar o termo “classe média”, porque a definição de classe social implica uma avaliação bem mais ampla, não apenas do ponto de vista da renda das pessoas, mas certamente considera também a sua forma de inserção no mercado de trabalho, sua participação em termos de propriedade e até mesmo seus hábitos de consumo e status social. As informações que temos até o momento permitem fundamentalmente avaliar melhores níveis de renda. Justamente por conta disso que nós terminamos, então, fazendo um estudo que apurou basicamente as mudanças sociais em função da renda. Nesse sentido, ao se considerar três níveis de renda no Brasil (rendas muito baixas, intermediárias e superiores), percebemos, sim, uma mudança social importante no que diz respeito ao envolvimento de cerca de 14 milhões de pessoas entre o período de 2001 e 2007. E esse movimento maior se deu, basicamente, na passagem do primeiro para o segundo terço da população, se a dividirmos em três partes (baixa, intermediária e superior). Vimos também que um contingente de quatro milhões de pessoas conseguiu sair do nível de renda intermediário para o superior. Isso, em síntese, indica que estamos vivendo um quadro de mudança social, mas nos parece ainda cedo para estabelecer que, de fato, se trata de uma classe média na tradição da literatura de ciências sociais, que define com uma maior complexidade o que seriam as classes em uma economia capitalista.

A partir do resultado das pesquisas, que tendências se apresentam? Podemos vislumbrar uma maior igualdade entre as classes, do ponto de vista da renda? Podemos falar aqui em segmentos de renda, e não podemos nos esquecer que a pesquisa do IBGE, a PNAD, que é uma das melhores pesquisas que temos no Brasil, mensura o rendimento do trabalho. Estamos tratando da renda que advém do trabalho, adicionada a rendimentos de programas públicos de aposentadoria, e mesmo de transferência de renda, com o Bolsa Família, e isso diz respeito apenas a uma parte da renda do país. Se somarmos a renda advinda da propriedade, como o lucro, juros, aluguéis e a renda da terra, temos que lembrar que essas formas de renda não fazem parte de forma ampla da pesquisa do IBGE, a PNAD. Portanto, quando tratamos dos dados do IBGE, falamos em torno de 40% do PIB, que é a participação da renda do trabalho na renda nacional. Nesse

segmento de 40% da renda nacional, verificamos uma melhor redistribuição inter-salarial, na medida em que se reduz a diferença, que ainda é muito grande, mas está se reduzindo a desigualdade no que diz respeito ao rendimento do trabalho. Isso é muito positivo, pois o Brasil tem uma desigualdade enorme. É bem verdade que melhorou a renda do trabalho por conta do aumento do salário mínimo, das ofertas de emprego e pelas próprias políticas públicas, mas, por outro lado, também se percebem ganhos significativos de parte da renda da propriedade. Os faturamentos e lucros das empresas têm aumentado no Brasil. De maneira geral, portanto, não temos uma indicação que nos permita dizer que há uma redução na desigualdade do ponto de vista da distribuição funcional da renda, e sim no que diz respeito à distribuição da renda pessoal do trabalho.

Como entender a demonstração da pesquisa do Ipea que aponta que os ganhos de produtividade do trabalho estão crescentemente acima dos ganhos propriamente salariais? Como obter mais renda pelo trabalho e não pelos programas de transferência de renda?

De fato esse é um gargalo histórico desde que o Brasil avançou na sua industrialização: de que maneira melhor repartir os ganhos de produtividade física e também cada vez mais os ganhos de produtividade imaterial, no que diz respeito à participação dos trabalhadores em termos de jornada de trabalho fora do local de trabalho (jornadas feitas para além do local de trabalho, o trabalho em casa e mesmo em outro qualquer lugar, através da utilização dos novos mecanismos de comunicação e informação, como o telefone celular, a internet, que permite trabalhar não apenas no local de trabalho)?

“Os faturamentos e lucros das empresas têm aumentado no Brasil. De maneira geral, portanto, não temos uma indicação que nos permita dizer que há uma redução na desigualdade do ponto de vista da distribuição funcional da renda, e sim no que diz respeito à distribuição da renda pessoal do trabalho”

Essa é uma questão chave porque, de um lado, no nosso modo de ver, há que avançar na relação capital-trabalho, porque essa é uma parte de redistribuição da produtividade que está relacionada à negociação coletiva de trabalho. Tivemos importantes avanços no Brasil recentemente, no que diz respeito ao reconhecimento das centrais sindicais, mas, infelizmente, temos uma estrutura sindical em nosso país de forte fragmentação, e ainda há uma parcela sig-

Operador da Bolsa Mercantil & de Futuros (BM&F)

nificativa de trabalhadores não sindicalizados. Isso, de certa maneira, reduz o potencial da negociação coletiva de repartir os ganhos de produtividade. Em segundo lugar, há ainda que avançar muito em termos de uma reforma tributária que permita justamente capturar parte dos ganhos de produtividade através de um sistema tributário progressivo, que onerasse justamente os que têm maior parcela nessa economia. O Brasil não tem tributação sobre herança, por exemplo. Mesmo os chamados impostos diretos, que teriam que ser, em tese, muito progressivos, aqui no Brasil não o são. Podemos falar do Imposto de Renda, que ainda pesa muito sob rendimentos menores, atingindo pouco o topo da pirâmide; ou do IPTU, que infelizmente, dada a sua forma de operacionalização pelas prefeituras municipais, faz com que, na média, por exemplo, o morador de favela pague (proporcionalmente a sua renda) mais IPTU do que aquele que mora em uma mansão. Então, a questão da tributação assume relevância muito grande do ponto de vista da justiça e do papel na questão da redistribuição dos ganhos de produtividade, fazendo com que o país pudesse ter menos pobres e menor desigualdade.

Quais as principais conseqüências para a economia do país dessa camada da população em ascensão?

Como temos uma pirâmide distributiva com sua base muito alargada, toda vez que terminamos ampliando a produção e a economia e gerando mais empregos, temos a possibilidade de incorporar no mercado de consumo um número bastante significativo de pessoas. Então, temos um impacto inegável disso na dinâmica do mercado interno. E é isso que talvez hoje nos ajude a entender como o Brasil, frente a uma grave crise internacional, consegue não ser afetado de forma tão decisiva. Porque parte significativa da nossa expansão depende do mercado interno e relativamente pouco do mercado externo. No entanto, isso não significa que não seremos afetados pela situação internacional. Aliás, outras medidas que foram tomadas anteriormente, como termos uma reserva em moeda forte considerável, e simultaneamente não estarmos mais endividados em moeda estrangeira, também contribuíram nesse sentido. Então, temos o problema da dívida interna, é claro, mas não estamos endividados em moeda estrangeira, o que nos amplia o grau de liberdade para a condução da política econômica e social.

A impressão que tenho é que o resultado da crise norte-americana aprofundará ainda mais o grau de decadência daquele país, em termos de capacidade de exercício da hegemonia mundial

Como essa camada emergente da população pode crescer e se manter na política econômica e na política de juros do governo Lula?

Em relação a essa emergência de segmentos sociais mais dinâmicos que conseguimos perceber na pesquisa do IPEA, por ser justamente aqueles que ampliaram seu nível de renda mais rapidamente do que a média do país, analisando de forma precisa, percebemos ainda sinais do passado no seguinte sentido: aqueles dez milhões de indivíduos que saíram do um terço da sociedade com rendimento mais baixo para um segundo terço no qual a renda é intermediária, é fortemente concentrado na região Norte, Nordeste e Centro-oeste do país. São justamente as regiões menos dinâmicas ou, por ora, aquelas que possuem menos base industrial, por exemplo. Aí crescem em importância os programas derivados de políticas públicas, que apóiam esses segmentos que, de certa maneira, têm dificuldade de acesso ao mercado de trabalho. Por outro lado, esse segmento que passou para a renda intermediária é um segmento cuja maior expressão é dada pela população negra, parda, indígena. De maneira geral, não são os brancos os beneficiados na base da pirâmide no Brasil atual. No que diz respeito aos quatro milhões que passaram do nível de renda intermediário para o superior, percebemos que os mais beneficiados são aqueles que residem no Sul e Sudeste brasileiro, que são, de maneira geral, os mais escolarizados e brancos. Há dois movimentos, do ponto de vista da estrutura social brasileira, e que indicam a carência que temos ainda hoje de políticas públicas em termos de educação, de preparação da base produti-

va para um maior alargamento da atividade econômica, especialmente fora da região Sul e Sudeste, e isso está diretamente relacionado à capacidade de apoiar, em termos de política econômica e social, uma melhor infra-estrutura para o país. Isso tudo depende de um ambiente econômico confortável em termos de taxa de juros, não tão atrativas como temos hoje, que terminam desviando parte dos recursos que poderiam ser aplicados no setor produtivo para o setor financeiro. Não há dúvidas de que temos hoje, no PAC, no plano de desenvolvimento produtivo, e mesmo em outros planos na área da educação, e da ciência e tecnologia, para citar alguns, um certo conforto na medida em que olham o horizonte mais longo que o curto prazo dos juros. Precisamos ter uma visão ainda mais ampliada de dez, vinte anos, como, por exemplo, têm os países asiáticos, que são aqueles que até o momento conseguem ter melhores resultados do ponto de vista da sua inserção na economia global. Isso é ainda algo que o Brasil precisa avançar: ter um planejamento de médio a longo prazo que supere barreiras que hoje ainda obstaculizam uma ampliação mais considerável para o desenvolvimento nacional.

Como o senhor vê a crise financeira internacional? Acredita que a crise em efeito dominó pode provocar mudanças no capitalismo?

Não sabemos o desfecho ainda, nem muito bem a natureza dessa crise que hoje estamos vivendo, pois ela está tendo um certo efeito dominó. Ela começa no mercado imobiliário, vai para o mercado acionário, está no mercado de crédito. Não sabemos se ela se estabiliza por aí ou se ainda ganhará maior dimensão. De todo modo, o que sabemos é que ela decorre de algo que vem de mais tempo, que é a profunda instabilidade do atual sistema monetário internacional. Precisamos recordar que, desde o imediato segundo pósguerra, com a instalação das instituições de Bretton Woods, Banco Mundial, FMI e o próprio sistema ONU, tivemos por quase três décadas uma estabilidade monetária internacional que deu condições para a expansão do mundo de forma significativa. No entanto, a crise no sistema financeiro de Bretton Woods, em 1973, quando o dólar deixou de ter a conversibilidade em ouro e as taxas de juros deixaram de ser fixas, entramos em outro ambiente monetário internacional de forte instabilidade. Se compararmos o período de 1973 a 2008, teremos uma regularidade em média, de a cada dois anos, uma crise significativa, ora em países desenvolvidos, ora em países não desenvolvidos. A manifestação dessas crises é uma característica de uma situação mais ampla que diz respeito ao sistema monetário internacional. A impressão que tenho é que o resultado da crise norte-americana aprofundará ainda mais o grau de decadência daquele país, em termos de capacidade de exercício da hegemonia mundial. De um lado, possivelmente estamos transitando de um país que tem uma moeda de uso recorrente em termos internacionais, para uma realidade em que haverá mais moedas em circulação no mundo, num ambiente de pluralidade monetária. Um outro aspecto a ser ressaltado diz respeito à maior rapidez na transição do centro dinâmico do mundo dos Estados Unidos para a Ásia. Certamente o que está se verificando nos Estados Unidos não terá uma resolução simples, possivelmente teremos um impacto de médio prazo na economia americana, que terá dificuldades de reagir, afetando seu sistema produtivo e com isso, possivelmente, a Ásia terminará ganhando mais alguns pontos, ampliando seu papel de importância no mundo.

Como entender que essas instituições hoje falidas são aquelas que

comandam o mercado financeiro internacional, a bolsa de valores, a taxa de câmbio etc.?

Várias avaliações já mostram que a instabilidade e a própria crise resultam da colheita de sementes que foram plantadas há mais tempo. Não há dúvidas de que a crise nos Estados Unidos está diretamente relacionada ao movimento de desregulamentação do sistema bancário americano. A baixa capacidade de acompanhamento de uma série de decisões que foram sendo tomadas é que levaram à inadimplência dos tomadores de crédito. E o movimento especulativo praticamente anestesiou a intervenção necessária. O governo norte-americano e o próprio Banco Central tomaram decisões importantes diante da crise manifestada, e se perdeu justamente a capacidade de regulação. Agora possivelmente estamos vivendo num movimento do pêndulo, o pêndulo da regulação, que teve importância por quase três décadas durante o período pós-guerra. Estamos colhendo o resultado da própria desregulamentação. Se criou uma falsa imagem de que mais Estado seria menos mercado. Então houve a opção de redução do papel do Estado na regulação, na expectativa de que o mercado ganharia importância e ele, por si próprio, seria auto-regulável. Hoje percebemos que é uma falsa questão, ou seja, é necessário o Estado, com o objetivo de garantir maior regulação e maior condição saudável de existência da economia. Então, acredito que estamos agora diante de um novo movimento do pêndulo cada vez mais para a ampliação da regulação sobre a economia capitalista.

Qual sua opinião sobre o uso do FGTS para a compra de ações da Petrobras?

Não há dúvidas de que a Petrobras é uma empresa consolidada e que tem oferecido aos acionistas, ao longo do tempo, benefícios em termos de rentabilidade superior a aplicações em outros mercados de renda variável. No que diz respeito ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, é preciso ser lembrado que ele, ao ser constituído, na segunda metade dos anos de 1960, tinha por objetivo permitir uma maior facilidade na demissão e contratação de trabalhadores, e de outro lado constituir um fundo, uma “poupança forçada” para contribuir no financiamento de toda a parte relativa a saneamento e habitação. Com base nesses recursos, nessa “poupança”, o Brasil avançou relativamente bem, no que diz respeito a saneamento e habitação. Sabemos que estamos longe do ideal, especialmente na parcela mais pobre da população que não tem acesso suficientemente ao crédito habitacional. Por conta disso, eu penso que a possibilidade de transitar os recursos do FTGS para o mercado acionário, mesmo para uma empresa consolidada e tão importante como a Petrobras, dará maior instabilidade no que diz respeito ao financiamento desse segmento habitacional e de saneamento. Como temos enormes carências nessa área, não imagino ser adequada uma decisão dessa natureza. Elza Fiúza/ABr

Quem é Marcio Pochmann é doutor em Economia, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Atualmente é o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).


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cultura

Em sua 3ª edição, Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul se renova SÉTIMA ARTE Mostra leva produções históricas e nova safra de cineastas do continente a capitais com programação gratuita Brunna Rosa de São Paulo (SP) NO PERÍODO de 6 de outubro a 6 de novembro, a 3ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul leva a 12 capitais brasileiras a produção de cineastas latinoamericanos sobre temas, valores e dilemas que dizem respeito aos diversos direitos que não raro são negados à população mundial e, em especial, à latino-americana. A mostra, inteiramente gratuita, acontece no ano em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completará 60 anos, e se dispõe a refletir as formas como organizadamente pode-se construir um mundo mais justo, igual e solidário. A linguagem do audiovisual já há longa data é um dos canais para dialogarmos com nosso continente. A procura por criar uma linguagem própria e libertadora, de maneira que o cinema se tornasse um espaço de crítica e reflexão das peculiaridades da região – como o subdesenvolvimento – deu origem ao Nuevo Cine Latinoamericano e a seus representantes, como o cubano Tomás Gutiérrez Alea, o argentino Fernando Birri e o brasileiro Glauber Rocha, entre outros.

Cinema político-militante Como exemplo desse tipo de produção, podemos falar de Glauber se apropriando da epígrafe de Che: “Crear dos, tres...muchos Vietnans” para o roteiro de América Nuestra – nunca filmado; e de Fernando Solanas e o seu A hora dos fornos (La hora de los hornos), produção referencial do Grupo Cine Liberación, cujo título é emprestado de uma frase de José Martí, citada por Che em “Mensaje a los pueblos del mundo através de la Tricontinental”. Dizia a frase: “Es la hora de los hornos y no se ha de ver más que luz”. Com a globalização e a explosão tecnológica, o mosaico de olhares sul-americanos está muito mais diversificado. E justamente para dialogar com essa nova produção que a 3º Mostra se renova e apresenta 50 produções audiovisuais, que formam um conjunto de olhares que transpõe a diversi-

Divulgação

dade da cultura em procura de seus próprios caminhos de expressão e de diálogo.

Novas seções

A curadoria da mostra – que esteve a cargo de Amir Labaki em 2006 e de Giba Assis Brasil em 2007 – tem agora à sua frente o cineasta e produtor cultural Francisco Cesar Filho, o Chiquinho. A outra novidade são as novas seções da Mostra. A seção Retrospectiva Histórica, na qual serão exibidos clássicos como o Tire Dié (1960), de Fernando Birri – primeira produção da Escola LatinoAmericana de documentário de Santa Fé, tida como a primeira revisão latino-americana de crítica social. E a seção Homenagem, que será inaugurada com obras do grupo argentino Cine Ojo, que há 22 anos produz premiados documentários alternativos. Do grupo, serão exibidos cinco títulos na mostra. Entre eles, o Eu, madre Alice (2001), que percorre a história de Alice Domon, uma religiosa francesa pertencente à congregação Hermanas de las Misiones Extranjeras, que viveu na Argentina desde 1967 e foi seqüestrada pela última ditadura militar. E Jaime de Nevares, a última viagem, de 1995, que narra a viagem de despedida do bispo Jaime, conhecido por atuar em defesa dos direitos dos indígenas, operários, camponeses e dirigentes políticos.

Destaques

Quanto às produções contemporâneas, os títulos também são variados, mas ficam os destaques para: O brasileiro Café com Leite, de Danilo Ribeiro, que aborda a diversidade sexual e foi premiado com o Urso de Cristal de melhor curta-metragem no último festival de Berlim; América Minada, de Vinicius Souza e Maria Eugênia de Souza, que problematiza as minas terrestres, presentes em 11 países da América Latina; Cidade de Papel, de Claudia Sepúlveda Luque, sobre a descoberta de centenas de cisnes mortos no Santuário do Rio Cruces, em Valdivia, no Chile, devido à contaminação de uma indústria de papel – um desastre ecológico que detonou um

Cena do curta Café com Leite, de Danilo Ribeiro, que aborda a diversidade sexual

Confira a agenda da Mostra São Paulo (6 a 12/10) no Cinesesc e na Cinemateca Brasileira Curitiba (7 a 15/10) na Cinemateca de Curitiba Salvador (10 a 16/10) na Sala Walter da Silveira Fortaleza (13 a 19/10) no Cine Benjamin Abrahão Brasília (13 a 19/10) no CCBB-DF Teresina (14 a 19/10) na Sala Torquato Neto – Clube dos Diários

movimento popular que levou a uma ruptura histórica nas instituições e leis ambientais do Chile; Vítimas da Democracia, de Stella Jacobs, que apresenta uma Venezuela sob o governo de Rómulo Betancourt, Raúl Leoni e Rafael Caldera, em que se instalou uma campanha de terror e repressão com campos de concentração, desaparecidos e todas as práticas para

Rio de Janeiro (13 a 19/10) no CCBB-RJ Recife (20 a 26/10) no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco Porto Alegre (21 a 27/10) no Cine Santander Cultural Belém (22/10 a 2/11) no Cine Líbero Luxardo Belo Horizonte (27/10 a 2/11) no Cine Humberto Mauro Goiânia (31/10 a 6/11) no Cine Goiânia Ouro

aniquilar qualquer movimento de esquerda; Vestígios de um sonho, de Erich Fischer, que contribui para a reconstrução da memória coletiva de uma época tenebrosa do Paraguai, durante a ditadura de Alfredo Strossner; O Aborto dos Outros, de Carla Gallo, sobre a necessidade de debater o aborto como questão de saúde pública.

Projeto Marco Universal tem sua primeira série de documentários Direitos Humanos é o tema escolhido para o primeiro projeto de São Paulo (SP) Lançado em setembro 2007, o projeto Marco Universal se propõe a formar, a cada dois anos, um acervo de produções sobre temas de interesse universal. O primeiro projeto teve como tema escolhido “Direitos humanos: A exceção e a regra”. Nomes conhecidos nas telinhas foram convidados para integrar o projeto. São eles: Sandra Kogut, Tetê Moraes, Eduardo Escorel, João Jardim, Jeferson De, Kiko Goifman, Alexandre Stockler e Victor Lopes, selecionados através de uma curadoria assinada por Carla Esmeralda. Além dos diretores, um coletivo audiovisual assina um episódio, o Spectaculu – Escola de Arte e Tecnologia. A série de ações realizadas a partir do projeto buscam mobilizar, através da linguagem audio-

visual, o debate e a participação ativa dos indivíduos, movimentos e coletivos nas mudanças da realidade. Todos os documentários serão exibidos através de um circuito cultural e educacional, como escolas, universidades e espaços públicos.

Saiba mais sobre os documentários

Em Fruto da Terra, de Tetê Moraes, a cineasta recupera a história de Marcos Tiarajú, o primeiro bebê nascido em um acampamento sem-terra. Marcos nasceu na Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, e seus pais fizeram parte das 1.500 famílias que participaram da primeira ocupação de terra improdutiva no Brasil conduzida pelo MST, em 1985. Sua mãe, Rose, foi atropelada por um caminhão, acidente que depois foi apurado como criminoso. A história dessa ocupação foi contada em dois documentários de Tetê Moraes, Terra para Rose e O Sonho de Rose. Hoje, 10 anos após o último documentário, Marcos Tiarajú, com 22 anos, faz medicina em Cuba.

Em Escola Eldorado, o cineasta Victor Lopes retrata a vida de Alcione Silva, migrante do Maranhão para o sul do Pará, nos anos de 1960, em busca de terra e trabalho, época em que presenciou a repressão do Exército no embate com a guerrilha do Araguaia e a derrota do movimento, comandada por Sebastião Curió, atual prefeito de Curionópolis (PA). Depois de tentar a sorte no garimpo de Serra Pelada, Alcione voltou a trabalhar como agricultor e juntou-se ao MST. Acabou baleado na curva do S, durante o massacre de Eldorado dos Carajás, em 1997. Flor na Lama, o filme coletivo do Spectaculu, aborda a visão dos jovens de 16 a 22 anos residentes na periferia do Rio de Janeiro, que convivem diariamente com a falta dos direitos humanos. Jonas, só mais um, de Jeferson De, conta a história do assassinato do jornaleiro Jonas Eduardo Santos de Souza, executado, ao ser barrado indevidamente na porta do banco Itaú, com um tiro no peito pelo segurança da agência.

Em O Pequeno e o Grande, de João Jardim, Markão Oliveira e Fábio Gavião, os cineastas acompanham o grupo que fazia o “morrinho” – uma maquete feita de pedaços de tijolos – que viajou o mundo mostrando a arte da periferia. Em J., Eduardo Escorel retrata a vida de um líder comunitário no Rio de Janeiro denunciando as ações das milícias. Amapô, de Kiko Goifman, retrata a diversidade e a necessidade de combate à homofobia, através da história de uma travesti. Cavalão, de Sandra Kogut, retrata a história do Capitão Romeu, integrante do Grupamento de Policiamento para Áreas Especiais, em Niterói. O documentário aborda o policiamento preventivo como saída para a repressão e as ações violentas nos morros cariocas. Vidas no lixo, de Alexandre Stockler, retrata as crianças e adolescentes que vivem de reciclar o lixo. (BR)

“O grande objetivo é agregar militantes, ativistas e produtores”, afirma curador de São Paulo (SP) Francisco César Filho é cineasta e produtor cultural. Criou e organiza a Mostra do Audiovisual Paulista, e é programador associado do Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo, além de programador-adjunto do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários. Realizou curtas-metragens como o Rota ABC (1991), sobre os anseios e perspectivas da juventude moradora do ABC paulista, ao som da banda punk Garotos Podres e Zona Leste Alerta (1992), sobre os movimentos populares na periferia leste da cidade de São Paulo, destacando a atuação das rádios comunitárias. Ambos estão disponíveis no site Curtas. Atualmente, Francisco, também conhecido como Chiquinho, está finalizando o longametragem Augustas, e o documentário et Circensis – Tropicália 40 anos. Confira a entrevista ao Brasil de Fato.

Brasil de Fato – A Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul chega à sua 3ª edição no ano em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 60 anos. Como foi pensada e construída a programação desta mostra?

Francisco César Filho – Sempre tive uma grande admiração pelo evento, mas sentia muita falta de poder resgatar algumas coisas. A programação tem o foco principal na produção recente dos países sul-americanos, reunindo títulos de diferentes autores, temáticas, estéticas e formatos, porém houve modificações. Uma delas é a retrospectiva histórica da produção cinematográfica latino-americana nas últimas seis décadas, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nessa seção, escolhemos filmes que tratam de uma questão muito cara ao nosso continente, a infância e a adolescência. Outra novidade foi a seleção dos filmes contemporâneos por meio de uma convocatória pública, que ampliou bastante a participação dos realizadores. O resultado foi positivo, tivemos quase 200 obras

inscritas de 11 países diferentes, e a grande maioria inédita até nos festivais. A maior prova desta diversidade é o filme que será exibido na estréia da mostra em São Paulo e no Rio de Janeiro, Deserto Feliz, de Paulo Caldas, inédito em festivais, que aborda o tráfico de animais e exploração sexual de meninas. E por último, vamos inaugurar a seção Homenagem.

Os meios audiovisuais são uma poderosa arma para retratar a situação dos direitos humanos, em especial na América Latina?

A linguagem audiovisual está muito presente no mundo contemporâneo, principalmente devido aos meios de comunicação, e acredito que é através de imagens em movimento que podemos alcançar a maneira mais adequada de refletir e expressar o mundo atual. Não é à toa que quase todos os continentes têm suas mostras de cinema e direitos humanos. Com os eventos audiovisuais se multiplicando, o alcance, o diálogo são maiores. O grande objetivo da mostra é agregar militantes, ativistas e produtores. Fazer com que esse povo que está produzindo imagens tenha contato com o pessoal dos direitos humanos. Acredito ser importante salientar o trabalho que a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República está realizando. Criando e consolidando a mostra no calendário cultural do país, fazendo-a crescer junto à sua programação cada vez mais diversificada, justamente por acreditar que o cinema é a estrada para difundir os direitos humanos.

Dia 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 60 anos. Qual a sua opinião acerca desse documento?

Muitas pessoas acham que falta de direitos humanos é a falta de liberdade de expressão. Na realidade, os direitos humanos são um conjunto de coisas que muitas vezes nem temos noção. Esse documento é um marco na história da humanidade, e precisamos sim debatê-lo e discuti-lo. É a luta pela igualdade de direitos. (BR)


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américa latina

“A luta pela terra na Bolívia é o centro da luta de classes”, defende governo CRISE POLÍTICA Em entrevista, diretor-geral do Vice-Ministério de Terras da Bolívia afirma que os últimos acontecimentos no país refletem a forte vinculação da desigual estrutura agrária boliviana com a resistência da oligarquia às políticas de Evo Morales João Zinclar

Quem é

Igor Ojeda correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia) EM UM país onde 90% das terras estão nas mãos de 10% de latifundiários, não fica difícil entender as causas principais da dura oposição da oligarquia boliviana às políticas de governo do presidente Evo Morales. Resistência que culminou, em setembro, em violentas mobilizações, com ocupações de instituições públicas, danificações a gasodutos e o massacre de camponeses em Pando, no dia 11. O caráter regional de tal oposição também se explica com base nos dados agrários. Em Santa Cruz, por exemplo, centro da luta anti-Evo, números do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Inra) revelam que 15 famílias controlam 512.085 hectares de terra, uma superfície 25 vezes maior que a capital do departamento (Estado), de Santa Cruz de la Sierra. Tal realidade é bastante semelhante nas demais regiões controladas pela oposição. “Os anos de neoliberalismo, de ajustes estruturais, acumularam um conjunto de contradições em que a luta pela terra, pelo território e pelos recursos naturais é o centro da luta de classes e do próprio poder”, analisa Cliver Rocha, diretorgeral de Terras do Vice-Ministério de Terras da Bolívia. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele analisa a estrutura desigual no campo boliviano, explica como esta se expressa na consolidação das relações de poder político e econômico no país e conclui que a questão da terra é o pano de fundo das demandas autonômicas da oposição. Brasil de Fato – Como se relacionam os últimos acontecimentos na Bolívia com a questão agrária do país? Cliver Rocha – Estão intimamente vinculados. O que acontece é que o governo faz do Estado o mecanismo principal para gerar transformações profundas. Os anos de neoliberalismo, de ajustes estruturais, acumularam um conjunto de contradições em que a luta pela terra, pelo território e pelos recursos naturais é o centro da luta de classes e do próprio poder. Hoje, com um mandato majoritário, expressado para gerar essas transformações por via democrática, o governo encontra uma resistência armada, racista, violenta de parte dos setores empresários, latifundiários que estão ligados à economia do poder da terra, à hegemonia desse Estado, fundamentalmente dos últimos 30 anos, que não termina de morrer.

O Estado tem uma personificação de poder reproduzida no poder da terra. Todo o sistema político, nos anos de democracia, para não irmos mais atrás, expressa essa relação

Como a propriedade da terra está refletida na estrutura de poder da Bolívia e mesmo na estrutura do Estado nacional? Noventa por cento da terra estão nas mãos de 10% de proprietários. Por outro lado, 90%

O advogado Cliver Rocha Rojo, diretor-geral de Terras do Vice-Ministério de Terras (órgão subordinado ao Ministério de Desenvolvimento Rural, Agropecuário e Meio Ambiente), é militante antigo na área da reforma agrária. Foi assessor do Movimento Sem Terra (MST) da Bolívia e vem trabalhando em instituições defensoras dos direitos dos camponeses e dos indígenas, como o Centro de Estudos Jurídicos e Investigação Social (CEJIS). Como funcionário dessa entidade, chegou a ser responsável pelo escritório em Riberalta, no Beni, assessorando os indígenas da Amazônia boliviana.

Bolivianos no Plan 3000, periferia de Santa Cruz: 15 famílias controlam mais de 500 mil hectares

A maioria dos proprietários de terra é dona dos meios de comunicação. E, nessa conjuntura difícil, os instrumentalizam para influenciar na opinião pública, satanizando, por exemplo, o processo agrário

das pessoas pobres, de camponeses, indígenas, a maioria da população, não consegue ter acesso a mais do que 8% da propriedade agrária. Essa propriedade agrária latifundiária representa e expressa as relações de poder dominante. Na velha República, na etapa depois de 1970, no processo neoliberal, a mudança interna do Estado foi feita pela classe proprietária de terras. O Estado tem uma personificação de poder reproduzida no poder da terra. Todo o sistema político, nos anos de democracia, para não irmos mais atrás, expressa essa relação. Atualmente, no Senado, não há um só parlamentar da oposição, do Podemos [Poder Democrático Social], que não seja proprietário de terra. E como se conformou essa estrutura desigual no campo? Por várias vias. A reforma agrária de 1953 sai da própria base organizativa de camponeses e operários que confluem numa revolução. Mas, em pouco tempo, a direção dessa reforma agrária radical passa para as mãos da oligarquia proprietária de terras. Assim, o Estado se retira do processo de redistribuição da terra, nos anos de 1960 e 1970, e resguarda a estrutura agrária existente de maneira desigual, fundada, basicamente, no predomínio, nas terras baixas [no oriente do país], das haciendas [forma de organização econômica da terra baseada no latifúndio, típica do sistema colonial na América espanhola]. Além disso, para que estas se convertessem em empresas capitalistas, o Estado começa a desviar a redistribuição de

terras, que não iam mais para camponeses indígenas, e sim para uma nova classe de proprietários, com a qual se cria o neolatifúndio agrário, ou seja, extensões de terras presenteadas por clientelismo. É assim que se começa a fortalecer essa corrente relacionada de poder, esse vínculo perverso do acesso à terra, do latifúndio, com o poder do Estado.

pública, cansada e desesperada com esse modelo de economia neoliberal, passe a ser uma oposição dura com o governo nacional, através da ameaça dos fantasmas construídos. Não é casual que, sob essa lógica, tentaram destruir todo o processo, desmantelar as políticas que o governo nacional está levando a cabo, mas, fundamentalmente, terminar com o governo.

E por que não houve um processo semelhante no ocidente do país? Porque, no ocidente, praticamente se desestruturaram as haciendas. O próprio processo de revolta popular indígena, camponesa e operária – quando o governo revolucionário de 1952 toma posse e inicia a reforma agrária, em 1953 – já havia terminado seu trabalho. Até então, todas as haciendas no altiplano [no oeste] e nos vales [no centro] já haviam sido tomadas pelos camponeses e indígenas. A reforma agrária de 1953 vem apenas legalizar essa tática de ocupação. Aqui existia um movimento forte e organizado, enquanto, nas terras baixas, tínhamos uma base de movimento indígena muito presa ao sistema patronal das haciendas, com pouca capacidade organizativa. Além disso, o Estado tinha uma visão clara: no ocidente, a reforma agrária radical, a redistribuição das terras; no oriente, a transformação das haciendas em empresas capitalistas, para a substituição das importações, para construir uma burguesia nacional, para criar um mercado interno. E isso dá numa distorção do processo de reforma agrária, fortalecendo as dotações e distribuições de terras para esse setor emergente.

Como você avalia o diálogo nacional entre governo e oposição? Acredita que justamente essa questão da terra pode travar as conversações, pela demanda dos governadores de, dentro do tema das autonomias, terem o controle sobre a terra? O diálogo se abriu para conciliar alguns temas já preestabelecidos. Como disse o presidente, não é possível pegar e revisar o texto constitucional completo. Tampouco é possível não mudar nem uma vírgula. O que foi dito é que serão revisados os temas que são demandas legítimas das regiões. Mas o que vemos é que estão tentando mexer em toda a Constituição. Houve um processo de um ano, com uma ampla participação democrática de todas as forças de poder. Eles participaram em cada uma das 21 comissões. Construíram acordos. Nunca, neste país, se construiu uma Constituição tão participativa como agora. Porque, antes, isso estava limitado a um círculo político da partidocracia tradicional, que nomeava seus “notáveis”. Hoje, todos foram eleitos pelo voto para fazerem esse trabalho. E não é possível desconhecer esse trabalho, passar sobre ele, só porque a minoria política, conservadora e reacionária, não concorda. O que se terá que entender é que esse governo está no poder com um mandato para fazer as transformações, não para negociá-lo, vendê-lo. Qual foi a mensagem do referendo revogatório? Uma contundente e ainda maior vitória popular ratificando as mudanças. E temos que cumprir. Isso significa aprofundarmos esse processo sem negociar. E, para eles, também foi dada outra mensagem. Que devem aceitar essas regras da transformação democrática, mas revolucionária, do Estado boliviano.

Na Bolívia, é evidente que o poder sobre a terra e, conseqüentemente, o poder econômico, está fortemente vinculado ao poder sobre os meios de comunicação. O que isso implica? Essa relação da terra com o poder do Estado, que conflui em um esquema de relações sociais e políticas, permite controlar todas as armas anexas, ou seja, ter o poder sobre os meios de comunicação. A maioria dos proprietários de terra é dona dos meios de comunicação. E, nessa conjuntura difícil, os instrumentalizam, para influenciar na opinião pública, satanizando, por exemplo, o processo agrário. Isso porque eles querem fazer com que a opinião

Mas você acredita que eles vão aceitar essas condições no tema terra, dentro da discussão das

Quanto

1 milhão

de hectares, praticamente, foram distribuídos pelo governo Evo competências na questão das autonomias? Têm que aceitar. Porque, em nenhuma parte do mundo, os recursos estratégicos da nação estão nas mãos das regiões, pois aí se põe em risco o interesse nacional.

Agora [com a nova Constituição], é a redistribuição para terminar com o latifúndio, com a servidão, com a pobreza e a carência de terras de camponeses e indígenas

Como você avalia a política de reforma agrária do governo Evo nesses quase três anos? A reforma agrária levada adiante nos marcos do mercado liberal chegou ao seu final, se esgotou. Aprofundou as contradições e os conflitos sociais violentos. Isso nos deixou evidente que é preciso mudar e recuperar, radicalmente, o sentido original da reforma agrária. Ou seja, a redistribuição. Mudar a estrutura atual de propriedade e produção agrária que está baseada nas haciendas e nos cultivos destinados à agroexportação, e que deixou no desespero milhares de camponeses, trabalhadores rurais, sem-terra, e que permitiu essa espécie de proletarização urbana, pessoas obrigadas a ir às cidades, atrás de seus meios de subsistência, para se incorporarem ao mercado informal da economia neoliberal. Isso não é possível sustentar. Por isso, se relançou a reforma agrária boliviana, sob o conceito de recondução comunitária, cujos sujeitos principais são as comunidades que, na história republicana, haviam sido desmanteladas. Toda a terra que iremos reverter, através da vistoria, da expropriação, será redistribu-

ída, exclusivamente, em favor de camponeses e indígenas e em forma de propriedade comunitária, coletiva da terra. Isso porque esse é o âmbito onde se expressa, com maior nitidez, a reciprocidade, a solidariedade e a administração sustentável da terra. Com esse conceito fundamental, constituímos instituições que nos devem permitir, em médio prazo, acabar com essa estrutura latifundiária e promover uma radical democratização, para que camponeses e indígenas possam ter acesso à terra. Essa é a filosofia central. Até o momento, distribuímos, de terras públicas, que não têm nenhum dono, quase um milhão de hectares. Os governos anteriores, em dez anos de política agrária de mercado, distribuíram 35 mil hectares. Nós regularizamos a propriedade de cerca de 15 milhões de hectares. Eles, em dez anos, nem nove milhões de hectares. Então, o contraste é absolutamente radical, o que mostra essa filosofia social, profunda, que leva a cabo o presidente Evo Morales. Então, em termos de resultados, a avaliação é altamente positiva. Radicalmente. E poderia ser ainda mais. Mas, diante da aplicação da reforma agrária, há um levantamento dos latifundiários, ou seja, a maior ameaça para eles é essa lei [de reforma agrária, aprovada em novembro de 2006]. Se eles dizem que a ameaça é essa lei, é porque ela está, efetivamente, promovendo a transformação radical da estrutura da propriedade da terra, dos privilégios de poder baseados na terra. Então, esse é o pano de fundo dessa luta autonômica, desse modelo autonômico. Esse é o pretexto, a razão, o fundamento para eles dizerem: “vocês não se metam mais aqui. Nós, agora, teremos o controle para distribuir”. E os estatutos contêm uma lei que expressa basicamente uma contra-revolução, uma contrareforma agrária. O que eles estabelecem nos estatutos é uma nítida contra-reforma agrária. Qual o grau de importância que terá a nova Constituição, justamente na solução da questão da concentração agrária? Ela é coerente com a filosofia da lei de recondução comunitária e a aprofunda, porque, nessa matéria, essa é uma Constituição que retoma o conceito de redistribuição. Não é como a reforma do mercado: devese distribuir o que existe ou então comprar terras para tal, mas sem mexer na estrutura agrária. Essa é a visão liberal. Agora, é a redistribuição para terminar com o latifúndio, com a servidão, com a pobreza e a carência de terras de camponeses e indígenas.


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américa latina

“O povo toma em suas mãos seu próprio destino”, diz Correa Presidencia de la República del Ecuador

Dafne Melo da Redação CONFIRMANDO o que já apontavam as pesquisas, uma nova Constituição Federal foi referendada pelo povo equatoriano, no dia 28 de setembro. Os números, entretanto, surpreenderam até mesmo membros do governo, já que as pesquisas de opinião não apontavam uma margem de vitória tão folgada. Até o fechamento desta edição, com 96% das urnas apuradas, o “sim” contava com ampla maioria dos votos, mais de 64%. Para ser aprovada, a maioria simples (51%) já bastaria. “O Equador decidiu ser um novo país, as velhas estruturas foram derrotadas. Essa é a confirmação dessa Revolução Cidadã que oferecemos ao povo em 2006”, declarou o presidente Rafael Correa, que também festejou a “democracia plena” que se vive hoje no país, e prometeu proteger e executar a nova legislação “com responsabilidade histórica”. Os resultados oficiais devem ser divulgados em dez dias, contados a partir da data do referendo. O próximo passo será a convocação de novas eleições para presidente, governadores, prefeitos e parlamentares, que deverão ocorrer em fevereiro de 2009, quando cerca de 3 mil cargos públicos devem ser renovados.

Conteúdo

Com 444 artigos e 30 disposições transitórias, essa é a 20ª Constituição do país, o que dá uma vida média de 9 anos para cada uma, desde que o Equador se tornou uma República, em 1830. O texto foi elaborado pela Assembléia Constituinte, na qual calcula-se que, dos 130 assembleístas, 80 são alinhados à Aliança País, frente de Rafael Correa, já favoritíssimo para as eleições presidenciais. Como a nova Carta permite a reeleição, há possibilidades do economista ficar à frente do país até 2017. Em relação ao conteúdo do texto (ver quadro), enquanto a direita aponta que os poderes concedidos ao Executivo são excessivos, acusando Correa de centralizador e autoritário, a esquerda, espectro no qual se inserem os movimentos indígenas do país, optou pelo apoio total ou pelo apoio crítico. Para estes últimos, Correa não tem combatido de forma eficaz o processo de privatização dos recursos naturais, incluindo a terra, abrindo assim caminho para a ação do agronegócio. Também o criticam por não ter aceito a inclusão de um artigo que concederia às comunidades locais poder de veto em projetos

O que traz a nova Constituição Um dos pontos elogiados pelos movimentos sociais indígenas é a adoção do conceito do sumak kawsay, algo como “boa convivência” em quéchua, uma filosofia ancestral dos povos originários do Equador que permeia toda a Constituição. A seguir, algumas determinações da nova legislação: O Estado passa a participar ativamente da economia do país, não apenas como controlador e regulador, mas também como ator econômico; O Banco Central não tem autonomia e segue as determinações do Executivo; O Conselho Nacional de Planificação, presidido pelo presidente da República, tem o dever de elaborar planos de desenvolvimento para o país;

O presidente equatoriano Rafael Correa comemora a aprovação da nova Constituição do país

de exploração de petróleo e outros minerais. Mesmo assim, o apoio da esquerda foi amplo. Uma carta conjunta pelo “sim” foi assinada por pouco mais de 100 entidades. Diante da aprovação esmagadora, a oposição – liderada pelo prefeito de Guayaquil Jaime Nebot – diminuiu o tom instransigente das declarações. Dias antes do pleito, Nebot chegou a afirmar que se o “não” obtivesse 51% ou mais dos votos no município, a disputa com o governo central ficaria “mais acirrada”. Diante dos acontecimentos na Bolívia, o prefeito foi acusado por Correa de inspirar-se no separatismo de Santa Cruz. No dia 29, porém, Nebot recuou. “Sou um homem civilizado”, esclareceu, e reconheceu publicamente a vitória da Aliança País. Também se mostrou aberto ao debate com o presidente. Nebot é considerado um dos maiores representantes do capital financeiro internacional no Equador. Para além da retórica de uma preocupação com o acúmulo de poder no Executivo, o grande receio das elites econômicas do país é o perfil abertamente intervencionista que a nova Carta tem no campo da Economia. Um dos receios, por exemplo, é a desdolarização da moeda. “Em seis meses, a economia equatoriana estará desdolarizada”, declarou o exdeputado Luis Fernando Torres do Partido Social Cristiano, ligado à direita.

Porém, tanto Rafael Correa quanto o ministro da Seguridade Interior e Exterior, Gustavo Larrea, afirmaram em diversos momentos que manterão a dolarização da economia, política adotada em 2000. Larrea também negou rumores de estatizações e expropriações. “Queremos empresas mistas em que o Estado tenha 51% das ações”, explicou.

Odebrecht tem bens embargados Transnacional brasileira não pagou multa ao Estado equatoriano por conta de problemas em construção de hidrelétrica

Transição e eleições

A próxima tarefa da Assembléia Constituinte é formar comissões que tocarão o processo de transição do país e também as eleições. Embora Correa não tenha ainda declarado publicamente sua candidatura, é improvável que outro político passe a ocupar a cadeira presidencial ano que vem. Adrián Bonilla, diretor da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso), no Equador, afirma que a popularidade de Correa (em torno de 70%) se apóia na imagem de que ele representa o rompimento com uma velha política que dominou o Equador nos últimos 15 anos, bastante vinculada à corrupção. Além disso, tem apostado pesado em políticas para os mais necessitados, aumentando salários e controlando o preço dos alimentos básicos. (Com informações da Agência Latino Americana de Informação – http://alainet.org, Página 12 – www.pagina12. com.ar e La Jornada – www.jornada.unam.mx).

da Redação Três dias antes do referendo constitucional, o presidente do Equador, Rafael Correa, ordenou o embargo de todos os bens da construtora brasileira Odebrecht no país, após ela ter se recusado a pagar uma indenização ao Estado decorrente de serviços mal prestados. A empresa construiu a hidrelétrica de San Francisco e, após um ano da entrega das obras, a central começou a apresentar falhas em seu funcionamento e saiu de serviço diversas vezes por conta de defeitos nas turbinas. Segundo o decreto, a Odebrecht “não cumpriu eficientemente com seus trabalhos” no Equador e “se negou irresponsavelmente a indenizar o país por seus prejuízos”. A Odebrecht foi avisada da possibilidade no dia 11, mas não tomou nenhuma providência. Diante da “reprimenda” do governo Correa, voltou atrás e aceitou todas as exigências. Além de fazer os reparos técnicos para que a usina volte a funcionar, pagará cerca de 29 milhões de dólares, sendo 11 milhões de mul-

INFORME PUBLICITÁRIO

A Cooperativa Multip. Asses. Assent. Ref. Agrária – COOTRASP, CNPJ 08.027436/0001-86, publica o resumo da ATA de sua assembléia geral realizada em 02/06/2008 no Centro de Formação Sócio-Agrícola Dom Helder Câmara, na Rod. Alessandro Balbo, km 328,5, Anel Viário – Contorno Norte, Vila Monte Alegre, Ribeirão Preto/SP, onde reuniu todos os cooperados fundadores e convidados interessados no ingresso à cooperativa, com a pauta: 1 – Saída de cooperados fundadores; 2 – Ingresso de novos cooperados; 3 – Apresentação do resultado do exercício de 2007; 4 – Eleição e posse da diretoria triênio 2008/2011; 5 – Apresentação do cronograma de atividades para o exercício de 2008; 6 – Alteração do endereço da sede da cooperativa. Com todos os cooperados presentes em totalidade e convidados, o Coordenador justificou que não houve publicação da convocação (artigo 38 da Lei nº 5.764/1971) por questões financeiras e necessidade urgente de agilizar a regularização da diretoria, cuja vacância traria transtornos. Após a leitura das cartas de afastamento, datadas de 15/05/2008, os cooperados: Edemir Henrique Batista, Aparecido Donizete Pires de Oliveira, Carlos Renato Ferreira, Diogo Castro, Edino Pereira dos Santos, Ivan Carlos Bueno, José Batista de Oliveira, Jussara Fernanda Santos, Magnólia Fagundes da Silva, Maria Cristina Duarte, Nardeli Rodrigues de Lima, Nilton Cardoso Dias, Priscila de Oliveira Maia, Reginaldo Pereira de Oliveira, Yamila Goldfarb, passaram, a partir desta data, a não mais pertencerem à cooperativa. Presentes a assembléia: Adalberto de Oliveira; Nardeli Rodrigues de Lima; Rubval Dias Moreira; Oziel Fernando Reis; Jiullians Pinheiros de Campos; Priscila de Oliveira Maia; Geralda Rosa da Silva; Maria Aparecida da Silva; Lidiane Aparecida da Silva; Enedida Ferreira de Andrade; Camila Brandina Crispin de Souza; Eder Fernandes da Silva; Robison de Oliveira Melo; Maria Zilda do Amaral; José Amilton de Almeida; Lucia de Fátima Costa de Albuquerque; Vandeí Junqueira Aguiar; Alex Yoshinori Kawakami; Sany Spinola Aleixo; Edemir Henrique Batista; João Paulo de Oliveira; Douglas Estevan, que passam a integrar a COOTRASP a partir desta data. O exercício 2007 se manteve com suas atividades financeiras paralisadas, cumpridas as formalidades fiscais e tributárias, não havendo alteração no balanço aprovado pelos conselheiros fiscais presentes. Foram eleitos triênio 2008/2011, chapa única: Adalberto de Oliveira - Coordenador Geral, Maria Aparecida da Silva - Coordenador de Finanças, Lidiane Aparecida da Silva - Coordenadora Secretária; Conselheiros Titulares: Geralda Rosa da Silva, Robison de Oliveira Melo, José Amilton de Almeida; Conselheiros Suplentes: Sany Spinola Aleixo, Enedina Ferreira de Andrade e Lucia de Fátima Costa de Albuquerque. O Coordenador-geral eleito apresentou o novo endereço da sede da cooperativa, antes na rua Brigadeiro Galvão nº 28 – Santa Cecília, e a partir desta data passa a rua Lopes de Oliveira, nº 635 – Barra Funda – São Paulo/SP, CEP 01152-010. Publique-se, cuja íntegra encontra-se em livro próprio, em sua nova sede.”

Auditoria

Correa, entretanto, cogitou rever a atuação da transnacional. “Agora, temos de analisar se permitimos que continue ou não no país porque, por coincidência, tive uma reunião com a comissão auditora da dívida externa, e um dos empréstimos muito questionados é o da central San Francisco”, acrescentou. Correa afirmou que um crédito de 200 milhões de dólares foi concedido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) à Odebrechet para financiar a obra, mas quem aparece como devedor é o Equador (com La Jornada – e agências internacionais).

ABN/ABI

COMUNICADO

tas e 18 de devolução de um prêmio que havia recebido por haver terminado as obras antes do prazo previsto. Para a empresa brasileira, não é interessante comprar briga com Correa. Hoje, a Odebrecht lidera os consórcios responsáveis pela execução de outras cinco obras no Equador. A empresa se limitou a criticar a postura do governo e considerou “autoritárias” as medidas.

Garante a universalização e gratuidade da saúde e educação; O presidente da República pode dissolver o Congresso Nacional em três situações: caso este obstrua, de forma reiterada e injustificada, o Plano Nacional de Desenvolvimento, previsto na Carta; quando a Casa executar funções que, de acordo com a lei, não lhe competem; ou em casos de grave crise política e comoção interna. Essa lei só vale para os três primeiros anos do mandato e pode ser feita uma única vez; Qualquer mandato da administração pública pode ser revogado pelo Congresso Nacional e por voto popular; Além do castelhano, o quéchua e o shuar também passam a ser idiomas oficiais; Conserva a propriedade das terras comunitárias dos povos indígenas, consideradas “inalienáveis, imbargáveis e indivisíveis”; Estabelece que o Estado deve promover a soberania alimentar. Após 120 dias da vigência da nova Carta, o Congresso Nacional deverá apresentar ao Executivo um plano para atingir esse objetivo; Determina que os recursos naturais não renováveis são patrimônio inalienável, irrenunciável e imprescriptível do Estado; Proíbe a instalação de bases militares estrangeiras no país; Quanto aos direitos reprodutivos, deixa em aberto. Estabelece o artigo 66 que se reconheça o direito das pessoas “a tomar decisões livres, responsáveis e informadas sobre sua saúde e vida reprodutiva e a decidir quando e quantos filhos e filhas desejam ter”; Reconhece a união civil de “duas pessoas livres”, o que, na prática, legaliza a união civil gay;

Equatoriana vota em Caracas

Proíbe monopólios e oligopólios e propriedade cruzada dos meios de comunicação; instituições financeiras não poderão ter veículos. Donas-de-casa e desempregados são incluídos no sistema previdenciário.


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“Monopólios continuam mandando” CRISE Economista afirma que o Estado continua tomando medidas que os capitalistas esperam, ou seja,“dar dinheiro para os ricos” Wally Gobetz/CC

Tatiana Merlino da Redação HÁ OS que pensam que a crise econômica vivida hoje pelos EUA e a subseqüente intervenção do governo de George W. Bush na economia podem significar o fim do neoliberalismo e o início de uma fase mais suave do capitalismo. Poderia ser, por exemplo, uma espécie de volta do Estado de bem-estar social. Mas não é nisso que acredita o economista Nildo Ouriques, professor do departamento de Economia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para ele, o Estado continua tomando as medidas que os capitalistas esperam, ou seja, “dar dinheiro para os ricos”. No dia 29 de setembro, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos rejeitou por 228 votos a 205 um conjunto de medidas econômicas para controlar a crise econômica do país, estimado em 700 bilhões de dólares. Em entrevista, Nildo afirma que “os bancos continuam mandando, os monopólios mandando e não estão dispostos a efetivamente controlar o sistema bancário e diminuir os interesses dominantes nos EUA. Não estou vendo quebra de paradigma”. Brasil de Fato – Muito se tem discutido sobre qual será a verdadeira extensão da crise econômica financeira que afeta os EUA. Qual a sua opinião? Nildo Ouriques – Impossível saber, porque isso é um segredo de Estado. Mas temos evidências: primeiro, não se trata de uma crise restrita ao mercado de hipotecas, como as autoridades estadunidenses tentam dizer e o ministro [da Fazenda] Guido Mantega também. A crise afetou todos os bancos e chegou à AG [corretora de Bolsa de Valores A.G. Edwards]. Ou seja, atingiu todo o sistema. Porém, no último trimestre, em agosto, a taxa de lucros das empresas transnacionais estadunidenses continuaram com o mesmo ritmo. Assim, se afetou todo sistema, mas a taxa de lucro das empresas de capital produtivo não baixaram. Esse é um indicador de que a crise não atingiu o lucro das transnacionais. É possível saber quanto tempo ela irá durar? Não sabemos a extensão dessa crise, mas tudo indica que ela é cíclica, muito profunda e não dá para prever quanto ela vai durar. Mas, sendo cíclica, destrói muita riqueza. Uma das primeiras coisas a acontecer é o aumento do desemprego e a diminuição dos salários. Vai aumentar o grau de exploração dentro dos EUA, que já tem milhões de trabalhadores em situações precárias. O fato do Bush estar pedindo 700 bilhões de dólares evidencia que o buraco pode ser muito mais profundo, mas nós nunca vamos saber disso. A crise é violentíssima e vai afetar os países da periferia do capitalismo. É possível prever quanto a crise financeira irá afetar a economia real? Não. A crise, que já tinha dado sinais em agosto de 2007, não afetou o lucro do setor produtivo. A taxa de lucro das multinacionais continuou sendo muito alta, entre outras razões, porque elas repatriaram lucro da periferia capitalista. Eles remetem lucros e dividendos e estão produzindo um rombo nas transações correntes do nosso país. Por enquanto, com dados de agosto de 2008, sobre os dois primeiros trimestres dos EUA, as taxas de lucro das multinacionais não baixaram. De acordo com o economista Paulo Passarinho, tudo indica que o longo ciclo de descolamento da esfera financeira em relação à economia produtiva real

No Franklin Delano Roosevelt Memorial, estátuas reproduzem fila do pão da Grande Depressão

O que está em questão aí é a hegemonia dos EUA, desse que vai dançar. E eu acho bom todo mundo, antes de pedir um novo Bretton Woods, começar a estudar o mandarim

está em xeque. Como o senhor avalia isso? Está em xeque mesmo. O que vai acontecer é que, como a crise chegou violentamente no andar de cima, no mundo das finanças, por meio da manifestação de desvalorização dos ativos das empresas – como advertiam [Karl] Marx e [John Maynard] Keynes – vamos descobrir que tudo que esse pessoal tem são papéis, que não são bens tangíveis. Mas com isso, que eu não chamaria de reconciliação entre o setor financeiro e o produtivo, o que fica mais claro agora é que a economia tem que se mover através de bens tangíveis. Quem tinha papel não tinha nada, quem tem terra tem alguma coisa. Simples assim. Como o senhor avalia a rejeição no Congresso dos Estados Unidos ao pacote de 700 bilhões de dólares elaborado pelo presidente George W. Bush? Nos EUA, tanto os republicanos quanto os democratas estão completamente descolados do ânimo da população, que não se vê representada em nenhum dos dois partidos, que representam os monopólios e os banqueiros. Que não me venham com esse papo de que [Barack] Obama vai ser melhor para a América Latina. Só pode dizer isso quem estiver sendo pago pela embaixada dos Estados Unidos. Ambos [os partidos] estão ultra comprometidos com os monopólios, não estão interessados em defender a população. Os dois partidos estão vivendo um processo eleitoral e fica a disputa para ver quem será o responsável por dar o dinheiro para os ricos. As decisões do Congresso, que é de maioria democrata, é para dividir minimamente os custos, dar uma explicação para a plebe. Nenhum dos dois partidos está contra dar os 700 bilhões, eles estão apenas discutindo como.

Ninguém discutiu nenhuma medida no sentido de efetivamente controlar os bancos. O senhor acha que o pacote seria um bom caminho para combater a crise? Eu estou achando a crise maravilhosa, porque ela desorganiza os interesses da classe dominante. Ela deixa claro, para quem vive de salário, como funciona o sistema. E mostra que o Estado está aí para salvar os ricos. Guido Mantega já está discutindo um pacote de apoio para os exportadores. E para o meu salário e para o teu, tem algum pacote? Não tem. Fica claro que o Estado está aí para favorecer os ricos. Então, eu não acho que isso vai ser suficiente. Não sei qual é o tamanho do rombo. Ninguém sabe. O que fica evidente é que esse estado de coisas não nos favorece, tanto em período de estabilidade quanto em período de crise. A situação está clara. O que acha da avaliação de que o pacote seria uma rendição do neoliberalismo ao Estado? Isso é uma bobagem. O conceito de neoliberalismo é muito ruim. O que há em curso é o capitalismo, o velho e terrível capitalismo. A idéia de um fim do neoliberalismo é a de que agora virá uma época de um “Welfare State” [Estado de bem-estar]? O socialismo? Não. Uma fase mais bondosa do capitalismo? Também não. Então eu não caio nessa. O fato é que os bancos continuam mandando, os monopólios mandando e não estão dispostos a efetivamente controlar o sistema bancário e diminuir os interesses dominantes nos EUA. Não estou vendo quebra de paradigma, como alguns querem dizer, que vem uma nova fase, como a professora Maria da Conceição Tavares. O Estado está cumprindo suas tarefas fundamentais, que é dar dinheiro para os ricos, e não está tomando nenhuma medida de controle sobre o sistema bancário. O senhor acredita que uma nova ordem geopolítica mundial sairá configurada dessa crise? O que está acontecendo é que essa crise está mostrando que a hegemonia dos Estados Unidos está muito difícil. A crise está mostrando que a China é uma protagonista, que a Europa quer afundar os Estados Unidos e que a América Latina e o nacionalismo revolucionário também dificultaram as coisas para o Império, de tal forma que está muito claro que ele está muito debilitado. Não há coesão interna, que é muito importante para o exercício da hegemonia. Eles estão debilita-

dos para enfrentar a crise e não têm aliados. A crise econômica não redefine a hegemonia, a crise da hegemonia que ajuda a arruinar a economia. O senhor acha que essa crise pode levar a uma investida do imperialismo na América Latina, por exemplo, por meio da Quarta Frota, e tentativas de desestabilização na Bolívia e na Venezuela? Eles já estão fazendo de tudo para sabotar os governos da Bolívia, Venezuela e Equador. As tensões dentro do imperialismo estadunidense estão cada vez mais fortes para isso, mas não sei se terão coesão interna a curto prazo, e certamente não há um cenário internacional favorável. Esse é o objetivo permanente deles. Tentaram derrubar o Evo Morales agora. Santa Cruz atuou em consonância com o embaixador estadunidense, que foi expulso por isso; e vão continuar tentando sabotar. Agora, irão atuar assim com a Constituição no Equador.

O mundo está permitindo isso. Não é uma loucura do Hugo Chávez, do Rafael Correa e do Evo Morales. Por que que a gente não faz o mesmo?

Como essa crise poderá chegar na América Latina? Não é que ela pode chegar. Nós já estamos há muito tempo vivendo uma crise. O fato de que as elites nacionais conseguiram uma forma de passar o prejuízo para a população sob o manto da estabilidade monetária e, agora, do crescimento, não elimina o sentido de que estamos vivendo uma crise permanente. Pense, por exemplo, nas taxas de desemprego, na distribuição de renda. E o Brasil, será afetado? Do ponto de vista das maiorias, já estamos vivendo uma crise muito estendida. A concentração de renda não muda, e o emprego é um desastre. Veja o governo Lula. O programa social é distribuição de bolsa. Qual é o melhor esquema de acabar com a pobreza? É dar emprego, que é uma modalidade capitalista, mas isso não pode ser dado. A crise do sistema financeiro vai afetar mais negativamente ain-

da o emprego e vai aumentar a concentração de renda. Ela piora a situação da maioria da população, que já é ruim. Como você vê a postura do governo brasileiro? O presidente Lula fica dizendo que a economia está blindada. É óbvio que não está. Tem vários problemas aí. Primeiro: nós temos uma concentração de renda e uma taxa de desemprego altíssimas. Não me interessa a popularidade do presidente. Do ponto de vista de uma economia capitalista, isso é um desastre. Um desemprego gigantesco, quase 20%, de acordo com o Dieese, e um nível de concentração de renda terrível. Segundo: não tem uma proposta do governo para consolidar o mercado interno. Ao contrário. O que eles estão fazendo? Fortalecem a economia exportadora, que mostra que nossa economia funciona passando o prejuízo para a população. Terceiro: neste ano, tudo indica que não haverá um superavit comercial. E já tem um problema nas contas fiscais e um deficit nas transações correntes do ano passado e neste ano também. Isso mostra que esse equilíbrio chamado macroeconômico tem um custo produtivo e social terrível. Porque a produtividade do trabalho é baixa, a concentração de renda se mantém e, para manter o equilíbrio, se fortalece a economia exportadora, e se continua endividando o país, com a dívida pública que não pára de crescer. Não é uma situação fácil. Considerando isso, eu digo o seguinte: não é que a crise não chegou. Já temos aí uma forma de administração da crise que é totalmente antipopular e antinacional. Por isso que eu não aceito essa idéia de que estamos blindados em relação à crise. Nós já estamos no meio dela. A forma de ocultar foi esse programa de estabilidade e agora o PAC. Primeiro foi durante o governo FHC, o mito da estabilidade, e agora é o mito do crescimento. No dia 29 de setembro, após a rejeição do pacote de 700 bilhões de dólares no Congresso dos EUA, houve um efeito negativo nas bolsas, tanto na Argentina quanto no Brasil. Na Venezuela, não. Por quê? Primeiro, porque a importância da bolsa na economia venezuelana é muito pequena. Segundo, porque grande parte da economia na Venezuela é controlada pelo Estado, e está garantida pelos recursos do petróleo. Não está vinculada à capacidade de um agente nacional, a burguesia, de especular contra o Estado. Terceiro, porque o

Estado venezuelano tem imensos controles sobre isso. Aliás, com a aprovação da nova Constituinte no dia 28, no Equador, acaba-se com o Banco Central independente. Não tem mais essa bobagem. Aqui no Brasil, tudo isso está sob controle dos empresários. Na Argentina também. Em uma entrevista recente, Carlos Lessa, expresidente do BNDES, afirmou que o dólar acabou, e que seria preciso um novo Bretton Woods para estabelecer novos parâmetros para a economia mundial. Como você vê isso? Não sei se o dólar acabou. Ainda não. Mas é óbvio que o euro avançou muitíssimo, e tinham razão presidentes como o Hugo Chávez, que estavam mudando as divisas de dólar para euro. Todos aqueles que acreditavam que o dólar seria eterno têm que fazer suas autocríticas. E quando a hegemonia está em crise, ela se manifesta de forma muito clara na moeda. Segundo, o problema não é se precisamos de um Bretton Woods ou não. Porque Bretton Woods era uma tentativa de salvar o capitalismo. Eu não estou nem um pouco preocupado com isso. Quem o chamaria? Os EUA? Quem iria? A China? Não iria. A Europa? Não se moveria não, eles querem ver os EUA afundarem. O que está em questão aí é a hegemonia dos EUA, desse que vai dançar. E eu acho bom todo mundo, antes de pedir um novo Bretton Woods, começar a estudar o mandarim. E como fica a China nesse cenário? Vai continuar como sempre, como se não existisse. Quando teve a última Rodada de Doha, os chineses não participaram. Eles estão lá, mas não falam. Porque os caras estão falando de liberalização do comércio, e eles protegem tudo que podem. A China vai continuar tentando ser a locomotiva do mundo. Vai continuar brigando, continuar fazendo pacto. Viu os pactos que ela fez com o Chávez? Ela vai continuar passeando pela América Latina para tomar a base estadunidense. E os EUA, o que podem fazer, o que têm a oferecer para nós? Com esse possível fim da hegemonia estadunidense, como fica a geopolítica mundial? Não sei se é o fim, estou dizendo que é uma crise muito profunda. Mas que agora todo mundo está acreditando que a hegemonia está em crise, está. Eu acho muito bom, porque quando isso ocorre, mostrou-se historicamente que os países da periferia podem tomar iniciativas melhores, executar uma política externa efetivamente independente. E, na América Latina e no Brasil, é particularmente importante que os abobados daqui, especialmente o Itamaraty, sejam muito mais independentes. O mundo está permitindo isso. Não é uma loucura do Hugo Chávez, do Rafael Correa e do Evo Morales. Por que a gente não faz o mesmo? IELA

Quem é O economista Nildo Ouriques é professor do departamento de Economia e presidente do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


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internacional Reprodução

Reprodução

Tzipi Livni e Ehud Olmert: estratégia para mudar deixando tudo como está

Cai a máscara em Tel Aviv: Olmert renuncia para tapar os erros sionistas ISRAEL O sacrifício do primeiro-ministro, Ehud Olmert, queimado a fogo brando por ser acusado de corrupção, foi a solução política para a classe média israelense e setores ortodoxos sionistas acreditarem que a moral e a honra do Estado sionista foram salvas. Achille Lollo O RITUAL midiático escolhido pelo governo israelense para mascarar seus fracassos militares e econômicos foi perfeito, tanto que para salvar a identidade do Estado sionista, desta vez, a vítima foi nada menos que o primero-ministro Ehud Olmert, também líder do Kadima, principal partido de centro-direita da coalizão governamental, em que participam o Partido Trabalhista de Ehud Barak e o direitista-ortodoxo Shas, de Eli Yishai. Da mesma forma como aconteceu com Sharon, Olmert, durante os últimos dois meses, foi queimado “a fogo brando” pela imprensa israelense com a acusação de receber milionárias gratificações dos empresários, banqueiros e transnacionais em função de contratos assinados com entidades do governo. É evidente que esse esquema de corrupção, implantado nas instituições governamentais israelenses, não foi introduzido por Ehud Olmert. Também não foi Ariel Sharon que introduziu a corrupção nos meios governamentais.

Os jornais israelenses veicularam que a exagente 007 Tzipi Livni poderá ser a nova Golda Meir [eleita primeira-ministra em 1969], principal ícone da história sionista, conhecida por sua intolerância com os palestinos, a quem comparou às baratas

Em Israel, a corrupção é uma doença financeira que sempre existiu. Porém, ela se multiplicou e se espalhou sobretudo nas instituições quando a “honestidade dos homens dos kibutzim foi trocada pela agressividade dos empresários da economia de mercado”.

Apedrejamento

O filho de Ariel Sharon, por exemplo, se aproveitou do papel político do pai para financiar com verbas públicas uma especulação imobiliária da mesma forma como tantos outros filhos de líderes políticos ou de rabinos fizeram com a construção dos colonatos judaicos ou de outras obras públicas. A verdade é que o cinismo do Estado sionista é tão bem estruturado na lógica de sua defesa que no mo-

mento de maior crise, o poder Executivo permitiu que a mídia israelense praticasse um autêntico apedrejamento virtual contra um “corrupto excelente” como Ehud Olmert, deixando intacta toda a estrutura subterrânea da corrupção. O sacrifício de Olmert – que nunca será preso – foi a solução política para a classe média israelense e sobretudo os setores ortodoxos sionistas acreditarem que a moral e a honra do Estado sionista foram novamente salvas.

Tzipi Livni no governo

O último capítulo desta novela israelense é caracterizado com a parcial vitória, no dia 19 de setembro, de Tzipi Livni, ministra das Relações Exteriores do governo Olmert, na convenção do partido Kadima, que, com apenas 400 votos, ganhou o título de “líder do partido”, com direito de formar um novo governo em até 3 meses. Depois, no dia 21 de setembro, Ehud Olmert apresentava ao presidente israelense, Shimon Peres, seu pedido de renúncia, dando a entender que desta maneira o momento de crise que o governo Olmert vivia há mais de um ano estava encerrado. A nomeação de Tzipi Livni não veio por acaso. Havia uma predisposição para se recompor a imagem do governo israelense e, sobretudo, a lógica política do Estado sionista. De fato, todos os jornais israelenses, inclusive os estadunidenses, veicularam que a ex-agente 007 Tzipi Livni poderá ser a nova Golda Meir [eleita primeira-ministra em 1969, depois de servir também como ministra das Relações Exteriores], que, como todos sabem, é o principal ícone da história sionista não só pela honestidade, mas sobretudo pelo seu “filoamericanismo” e o desprezo e a intolerância com os palestinos, a quem comparou às baratas.

Jogos de poder

Como ministro das Relações Exteriores do governo Olmert, Tzipi Livni desempenhou um papel determinante para manter indefinido o processo de paz para a criação do Estado palestino e articular com EUA e União Européia a chantagem sobre o Fatah e o bloqueio de Gaza, com o objetivo de provocar a implosão do Hamas. De fato, ela nunca se manifestou contra Olmert. A primeira vez que o fez foi em fevereiro de 2008, quando toda a imprensa já exigia a demissão do primeiro-ministro, após a desastrada missão punitiva no sul do Líbano contra o Hezbollah. Também no governo Sharon, quando era uma ministra de segundo escalão, ela ficou oportunamente calada quando explodiram as acusações de corrupção contra ele. Aliás, é bom lembrar que Tzipi Livni pediu a demissão de Olmert na convenção do Kadima, porque este era o único meio para derrotar o ministro do Trabalho, o ex-general Shaul Mofaz, e seus aliados Avi Dichter e

Meir Sheetrit, com os quais – como se nada tivesse acontecido – se reuniu logo para propor uma claudicante união partidária e, conseqüentemente, não enfrentar as eleições antecipadas. Por isso, ganhou o apelido de “Madame Limpeza” (Miss Clean), visto que todos os jornais, para diluir os tons da crise político-econômica israelense, disseram que, com a nova líder do Kadima, a corrupção vai acabar e uma nova estabilidade política vai voltar ao Knesset (Parlamento).

Reação palestina

O medo de devolver o poder ao partido direitista Likud, de Benjamin Netanyahu, que, juntamente aos pequenos partidos de extrema-direita, aposta em novas eleições, fez com que Tzipi Livini estreitasse o relacionamento político com o trabalhista Ehud Barak (ministro da Defesa), o ministro das Finanças, Roni Bar-On – fiel sequaz da economia de mercado – e com Eli Yishai, do partido dos sionistas ortodoxos Shas, sem o qual a nova coalizão não alcançaria o quórum mínimo de 67 deputados no Knesset. Uma coalizão que, por enquanto, satisfaz Saeb Erekat, conselheiro político do presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Abu Mazen, segundo o qual, “a nova premier Tzipi Livni está intimamente ligada ao processo de paz, e por isso achamos que vai procurar manter aberto o canal de negociações com a ANP”. Em Gaza, o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, manifestou sua opinião negativa, lembrando que “todos os líderes israelenses compartilham posições hostis contra nosso povo, negando-lhe os principais direitos, além de esquecerem a ocupação de Jerusalém do leste e a questão do regresso dos refugiados da guerra de 1948”. Mais crítica foi a posição do partido de esquerda árabe Hadash, segundo o qual “um novo governo liderado pelo Kadima ou por outros não vai resolver o cerne político do atual contexto, que é o da crescente discriminação da população árabe por parte da maioria dos setores da sociedade israelense”. De fato, foi Tzipi Livni que viabilizou a definição das novas fronteiras que Israel pretende impingir à ANP, tanto que a rádio Militar, no dia 28 de setembro, anunciou que Israel poderá renunciar a alguns colonatos judaicos no vale do Jordão, mas vai manter o Muro da Vergonha, o controle da chamada Linha Verde e todos os colonatos de Ariel, Maaleh Adumim e Gush Etzion na Cisjordânia. O que na prática significa reduzir, ainda mais, a soberania do futuro Estado palestino, quando este realmente surgir. Achille Lollo é jornalista italiano. Diretor do filme América Latina: Desenvolvimento ou Mercado?, também em DVD, em www.portalpopular.org.br.

O extremismo sionista Todas as vezes que alguém critica a atuação político-militar do Estado de Israel ou pondera sobre as limitações do sistema democrático israelense, em função dos conceitos unilaterais do sionismo ortodoxo, logo é taxado de anti-semita. Enquanto isso, no interior de Israel, os militantes pacifistas ou de esquerda que denunciam as violações dos direitos humanos são achincalhados com o nome de “Kapô”, que, na realidade, era o nome dos guardiões nazistas nos campos de extermínios. Uma cultura da perseguição iniciada pelo rabino ortodoxo Mair Kahane, que criou profundas raízes em Israel, ao ponto de criar redes clandestinas que operam para intimidar os progressistas israelenses e, sobretudo, para expulsar os palestinos de seus territórios.

Cabeça a prêmio

De fato, um manifesto clandestino oferecia 1 milhão de shekel (R$ 620 mil) para matar o historiador israe-

lense Zeev Sternhell, professor de Ciência Política na Universidade Hebraica e militante do movimento pacifista Peace Now. O manifesto foi encontrado ao lado da explosão da bomba caseira que atingiu as pernas do historiador, no dia 25 de setembro último. Como sempre, a polícia israelense qualificou o atentado como “obra de grupinhos insignificantes”. Os mesmos que, recentemente, mataram outro ativista político, Emil Gruenzweig, ou que todos os dias atacam os palestinos no interior da Cisjordânia. Por exemplo, no dia 28 de setembro, colonos israelenses chegaram de carro na vila de Itamar, na região de Nablus, e começaram a atirar indiscriminadamente contra os pastores que levavan ovelhas em suas terras. Neste ataque, morreu o jovem Yehya Ata, de apenas 18 anos, e a polícia militar israelense limitou-se a dizer que, por enquanto, vai averiguar as declarações das vítimas. (AL)

ANP, Fatah e Hamas Os negociadores egípcios fizeram de tudo para que a reunião interpalestiniana entre o Fatah e o Hamas desse certo e, aparentemente, parece que conseguiram enterrar os ódios que, em 2007, dilaceraram os palestinos em Gaza. Entretanto esta paz aparente esconde uma realidade bem complexa, visto que, na Cisjordânia, a ANP de Abu Mazen prospera com os financiamentos ocidentais, enquanto o povo de Gaza, que votou no Hamas, sofre um dramático bloqueio econômico e militar do Exército israelense que nenhum jornal europeu ou estadunidense tem coragem de noticiar.

Na Cisjordânia, a ANP prospera com os financiamentos ocidentais, enquanto o povo de Gaza, que votou no Hamas, sofre um dramático bloqueio econômico e militar do Exército israelense

Praticamente, este contexto aprofundou ainda mais a fratura entre o Fatah e o Hamas, visto que Israel e seus aliados ocidentais pretendem re-

conhecer o Estado palestino sem a presença do Hamas. Uma imposição que, na realidade, é a forma para inviabilizar a criação do Estado palestino, uma vez que o Hamas, após fortalecer sua hegemonia em Gaza, está crescendo também na Cisjordânia, sobretudo nos campos de refugiados atingidos pela violência do Exército israelense e dos colonos sionistas.

Feridas abertas

Diante disso, o presidente da ANP, Abu Mazen, pretende prolongar seu mandato por mais um ano, até janeiro de 2010, de forma a impedir uma segunda vitória do Hamas em Gaza. Abu Alaa, chefe da comissão do Fatah para as negociações e também responsável pela reorganização do partido, foi peremptório ao afirmar que “o conflito com o Hamas deve acabar com diálogo ou com luta armada, visto que o Fatah não vai aceitar uma terceira ferida deixando que o Hamas tome o poder também na Cisjordânia”. Ainda mais duro foi o general dos serviços de segurança da ANP, Diab Ali, ao declarar publicamente que, “se Gaza continuar rebelde, o governo palestino não terá outra opção senão recorrer à força”. Palavras duras e ameaçadoras, apreciadas sobretudo nas chancelarias de Israel, da Jordânia e do Egito, visto que a eclosão de outro conflito entre o Fatah e o Hamas, em termos políticos, poderá enterrar definitivamente o projeto de criação do Estado palestino. (AL)


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