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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 6 • Número 293

São Paulo, de 9 a 15 de outubro de 2008

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br

Reprodução

CULTURA

100 anos de

Cartola

Pág. 8

Biodiesel do governo Lula marginaliza camponeses Programa do governo para regular o biodiesel no país não cumpre as metas. Das 200 mil famílias de pequenos produtores pretendidas, só 36,7 mil participam do Programa de

Produção e Uso do Biodiesel. Relatório da Ong Repórter Brasil aponta o monopólio de terras e renda por parte de grandes empresas como um dos problemas. Pág. 7

Divulgação/TV Globo

Crise dos EUA vai chegar ao Brasil

A Favorita

O modelo econômico brasileiro, ao manter o controle dos principais setores industriais nas mãos de grandes transnacionais, deixa o país tão vulnerável à crise do sistema financeiro dos Estados Unidos quanto sempre foi. Em entrevista, o economista Adriano Benayon destaca que tal insegurança pode ser observada no altíssimo deficit de transações correntes com o exterior que o país possui. Nos EUA – Obama ultrapassa McCain em Estados tradicionalmente republicanos, como Flórida e Colorado. Págs. 3 e 12

O diálogo entre as personagens Donatela (Cláudia Raia) e Augusto César (José Mayer), exibido no dia 4, na novela A Favorita, da Rede Globo, foi um primor de “merchandising social” a favor de empresas como Aracruz Celulose e Stora Enso. Na conversa, Augusto resiste em vender seu lote de terra para e exploração de eucalipto, em benefício de uma empresa de celulose comandada por Gonçalo Fontini (Mauro Mendonça). Donatela retruca: “Que que tem? Todo mundo precisa de papel” e “pelo que sei, é tudo 100% reflorestado”. Ficção à parte, a Globo omite que empresas da vida real, como Aracruz Celulose e Stora Enso, são acusadas de corrupção e condenadas por desmatamentos ilegais. Pág. 6

das empresas de celulose

Dividida nas eleições, esquerda perde espaço As eleições municipais confirmaram uma tendência já perceptível em 2006. A luta eleitoral já não cumpre o papel de unificar as forças populares. A atual fragmentação das forças de esquerda e a ausência de um debate sobre projeto de país resultaram na despolitização das eleições municipais, cujo primeiro turno foi realizado no dia 5. Plinio Arruda Sampaio, do Psol, e Ricardo Gebrim, da Consulta Popular, entendem que a organização popular é essencial para fazer das eleições um verdadeiro

instrumento de transformação. Apesar dessas análises, os números finais do primeiro turno apontam para uma redução dos municípios administrados por partidos de direita tradicional, sendo que o DEM e o PSDB sofreram as maiores perdas. Quem obteve as maiores conquistas foram as legendas da base aliada do governo federal, sendo que o PT terá 157 prefeituras a mais do que tem atualmente e o PCdoB conseguiu dobrar a quantidade de cidades sob sua administração. Págs. 2, 4 e 5. Roosewelt Pinheiro/ABr

Equador faz auditoria oficial da dívida

Em Gonaives, no Haiti, membro da Força de Paz da ONU ameaça haitianos em fila para receber alimentos doados

Um estudo sobre a dívida pública interna e externa do Equador concluiu que o endividamento ocorrido entre 1976 e 2006 está cheio de ilegalidades, ou seja: o seu pagamento é ilegítimo. A iniciativa, que levou um ano, contou com a participação da brasileira Maria Lúcia Fatorelli, também responsável pela auditoria cidadã feita no Brasil. Pág. 11

No Haiti, tropas da ONU atrasam o país As tropas da ONU no Haiti estão impedindo que a população se mobilize em torno dos seus direitos e legitimam a exploração dos trabalhadores haitianos por empresas estadunidenses. Para conselheiro da OAB, que visitou o país em 2007, as operações militares consistem, sobretudo, em conter a revolta popular. No dia 10 de outubro, haverá manifestações em várias partes do mundo para exigir que as tropas sejam imediatamente retiradas do país e para que uma ajuda humanitária, de alimentos e remédios, seja enviada para lá. Pág. 9

ISSN 1978-5134

EM POUCAS PALAVRAS

O resultado das eleições foi o esperado: uma vitória monstruosa da direita e uma derrota monumental da esquerda Plinio Arruda Sampaio, do PSOL

Arquivo Brasil de Fato

Lucas Lacaz Ruiz/Folha Imagem

AFOGANDO EM NÚMEROS

128.806.592 é o número de eleitores do país.

85,46% destes votaram. Do total de votos,2,76% ficaram em branco e 7,04% foram anulados.

No dia 5 de outubro, os brasileiros foram às urnas para escolher 5.562 prefeitos. Fonte: TSE


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de 9 a 15 de outubro de 2008

editorial

ESTAMOS assistindo um crescente processo de despolitização de nossas eleições. Durante vários anos, havia uma forte percepção de que a esquerda brasileira avançava a cada processo eleitoral. Mesmo em disputas municipais, onde predominavam os problemas locais, era possível identificar um debate político que traduzia concepções de projetos distintos para o país. Cada pleito era a oportunidade de ocupar novos postos, propagandear idéias e avançar na perspectiva de finalmente conquistar a presidência da república. Porém, o que era um meio tornou-se um fim em si mesmo. Essas eleições municipais – as mais despolitizadas dos últimos tempos – confirmam o esgotamento desse ciclo político. Com raras exceções, a disputa de prefeituras e vereanças em todo o país converteu-se apenas num momento privilegiado para difundir maciçamente a ideologia conservadora, de direita. Ao longo da campanha eleitoral, não se debateram projetos políticos. As eleições municipais não contribuíram para desenvolver o sentido crítico do povo em relação ao sistema e fortalecer

debate

Eleições, cada vez mais despolitizadas e rebaixadas sua capacidade de mobilização, ou seja, sua vontade de tomar para si a construção do próprio destino. Tampouco fortaleceram a capacidade de organização popular. A presença de militantes nas campanhas eleitorais é cada vez mais escassa –, e, quando existe, esvaziada de seu grande potencial que é exatamente a força numérica –, revela-se impotente diante do arsenal dos marqueteiros profissionais. Problemas estruturais da sociedade tornam-se problemas administrativos a serem resolvidos somente nos marcos institucionais existentes. Qualquer tentativa de romper essa lógica é imediatamente desqualificada. As relações de poder que moldam por dentro a sociedade ficam intocadas. No máximo, levantase a bandeira da ética, cada vez mais banalizada e distante dos verdadeiros problemas nacionais. A blindagem jurídica construída nestes anos de neoliberalismo fe-

cha portas para qualquer mudança estrutural. O exemplo principal é a Lei de Responsabilidade Fiscal. Os administradores ficam engessados, obrigados a priorizar os compromissos com os bancos e o capital financeiro. As margens de decisão política tornam-se estreitas e podem ser exercidas somente se não afetarem as bases determinantes da política e da economia. Neste contexto, as propostas administrativas pouco se diferenciam. Privatizar rapidamente ou de forma gradual? Destruir os serviços públicos ou enfraquecê-los aos poucos? O Estado tornou-se refém da acumulação financeira, e as instituições políticas – embora conservando características formais de uma democracia – perderam a conexão com as demandas por uma nação mais digna e uma vida melhor para a maioria do povo. Temos no Brasil um Estado cada vez mais preparado para reprimir

os movimentos sociais e favorecer os grandes grupos econômicos, porém impermeável a qualquer proposta de transformação. Outro fator para a despolitização é a legislação eleitoral. As regras da institucionalidade eleitoral pasteurizam os projetos políticos, disseminando a mensagem ideológica conveniente ao projeto de dominação de que “todos são iguais”. Os candidatos se conformam numa massa indistinta e o discurso aparentemente radical pode aparecer na boca dos mais conservadores. Mas a grande característica dessas eleições foi a ausência de um projeto popular capaz de se colocar como uma alternativa nacional. Por todo o país surgiram candidaturas isoladas que se esforçaram neste sentido, mas quase sempre foram engolidas pela dinâmica despolitizadora. As tentativas de utilizar os parcos segundos no horário eleitoral gratuito para propagandear

crônica

Rudá Ricci

O pleito de 2008: a mesmice O BRASIL é sempre surpreendente. Recentemente, soubemos que estamos atingindo o índice de natalidade europeu: a média de filhos por mulher, hoje, é de 1,8 (mesmo nas áreas rurais ou mais pobres, o índice foi reduzido a 2,1). Todo discurso de controle de natalidade foi para o ralo da história. E, nesses dias de eleição municipal, mais alguns tabus caíram. O mais importante, possivelmente, é que o mote da mudança não atrai mais eleitores. É perceptível nessa eleição (em especial, nas capitais e grandes centros urbanos) um certo continuísmo ou mesmo a influência evidente dos partidos dominantes. Estamos estabilizados do ponto de vista da representação política formal. Alguns condicionantes levam a essa situação. O primeiro é o processo eleitoral que limita a capacidade da vontade do eleitor ser respeitada. Em virtude do quociente eleitoral, nem sempre o mais votado é eleito, já que a soma de votos do partido ou coligação acaba sendo dividido entre os “puxadores de voto” ou “os caciques partidários”. Um partido estabilizado pode, em virtude de dois ou quatro puxadores de voto, eleger vereadores com baixa representatividade, enquanto um candidato de partido inexpressivo, com grande representatividade, poderá ficar na lista de espera. Um segundo fator é a consolidação do sistema partidário entre PT, PSDB e PMDB. PT e PSDB se firmaram no espectro partidário desde os anos de 1990. Lá se vão quase duas décadas. São dois partidos com programas similares: social-democratas ou social-liberais, que se aproximam rapidamente para constituir uma aliança anunciada desde a Europa (o sociólogo francês Alain Touraine desde sempre afirmava que esta seria a maior solução política para o Brasil). O PMDB, por sua vez, é o partido dos vários pais, o qual em muitos lugares, pela falta absoluta de identidade nacional, terá sempre um candidato que reflita a vontade da maioria. O PMDB é o partido mais próximo do “espírito brasileiro”, o “partido ônibus” que um dia Fernando Henrique Cardoso procurou teorizar sem grande charme. Com tantos caciques de caráter regional, é um partido mosaico, como uma família-mosaico, na qual pais e filhos não são exatamente parentes biológicos, mas se reconhecem como família (instável, mas não deixando de se apresentar socialmente – ao menos – como família). A mesmice está no perfil das câmaras municipais. A Transparência Brasil vem estudando o índice de relevância das ações dos vereadores de capitais brasileiras. A relevância não supera 20% de seus atos. O caso mais absurdo é o de Porto Alegre, onde 86% da atividade legislativa dos vereadores é absolutamente irrelevante. De 1.442 mil projetos apresentados entre 2005 e 2008 pelos vereadores que se encontram em exercício, 694 foram aprovados. Desses, 171 se referiam a assuntos de impacto real sobre a vida dos cidadãos de Porto Alegre. Os demais projetos foram reservados a fixação de datas comemorativas, homenagens e outros assuntos que mais se aproximam de campanha eleitoral que de legislação do município. São Paulo e Rio de Janeiro não estão muito além desta situação, onde a taxa de relevância chega a 20%.

Outro indicador da desaceleração das mudanças na política formal brasileira é a faixa etária dos vereadores. Em São Paulo e Rio de Janeiro, a faixa etária mais relevante é a que vai de 40 a 60 anos de idade (76% em São Paulo e 56% no Rio de Janeiro). Rui Maluf, que destacou o fenômeno em artigo publicado no Valor Econômico (de 2 de outubro), sugere que o encantamento com a redemocratização já acabou. Lembremos que, nas últimas eleições para as Assembléias Legislativas, o índice de mudança real nos parlamentos estaduais foi muito baixo, ocorrendo uma mudança de nomes, mas não de comando familiar. Em Minas Gerais, o deputado mais votado era o desconhecido filho do todo poderoso secretário de governo de Aécio Neves, Danilo de Castro. Muitos outros seguiam nessa lista. Em Belo Horizonte, encontramos Leonardo Quintão, filho do prefeito de Ipatinga, em destaque. Em Salvador, ACM Neto. No Acre, temos a dinastia da família Viana. Os casos se multiplicam ao longo do país. O Brasil se acomoda politicamente, afinal. A concentração orçamentária e política que foi se refazendo após a Constituição Municipalista de 1988 é o fator mais determinante desta situação. Pequenos municípios dependem de transferências de receita federal e estadual, chegando a 80% de sua receita disponível. Como deixar de apoiar ou se vincular aos caciques estaduais e nacionais? Como arriscar ou blefar politicamente com tal nível de dependência orçamentária? Ser outsider da política tornou-se uma iniciativa quixotesca. Há um ou outro fenômeno peculiar e desigual. Mas são menos significativo. Este é o caso das ações de impugnação de candidaturas que parecem se avolumar

Luiz Ricardo Leitão

¿Qué hacer? Gama

O Brasil da política oficial é cada vez mais igual, mais estável, mais previsível. É cada vez mais “americanizado”, com espetáculos curtos e de grande efeito que transformam o eleitor em espectador, em platéia

idéias acabam sendo tragadas pela lógica da banalização. O trágico é que esse esforço acaba consumindo as principais energias e recursos de inúmeros lutadores e lutadoras populares. As eleições municipais confirmaram uma tendência já perceptível em 2006. A luta eleitoral já não cumpre o papel de unificar as forças populares, como fez nos últimos trinta anos. Mais uma vez se comprova que a unidade entre as forças e organizações de esquerda somente será possível em torno de ações e lutas de massa e na construção de um programa mínimo que contemple as bandeiras de um projeto popular. Se não formos capazes de unificar as forças populares em torno de lutas, ações e campanhas, não conseguiremos romper a armadilha em que se converteu a luta eleitoral. O futuro não pode ser a perpetuação do presente. Não podemos permitir que esse cenário se reproduza, ainda mais trágico, nas eleições de 2010. Para os lutadores e lutadoras populares, a principal tarefa é organizar, formar politicamente o povo e construir um projeto popular para o Brasil.

no país. Não são meras ameaças. Muitos prefeitos tiveram quatro anos de tortura, disputando recursos, perdendo e retornando ao cargo. São muitos os casos. E parecem que se repetirão, como em Recife ou Ipatinga. É um fenômeno em ascensão que merece atenção. Há, ainda, fenômenos políticos regionais como a polarização PT/Dinastia ACM, na Bahia; a constante instabilidade e crise de representação no Rio de Janeiro, que desmancha candidaturas e lideranças até ontem poderosas; o papel das máquinas partidárias e eleitorais em São Paulo; a disputa consolidada entre PT-Orçamento Participativo/Jarbas Vasconcelos-associações de bairro, em Recife. Há casos como esses, que colorem a mesmice. Mas não passam de detalhes. O Brasil da política oficial é cada vez mais igual, mais estável, mais previsível. É cada vez mais “americanizado”, com espetáculos curtos e de grande efeito que transformam o eleitor em espectador, em platéia. É o país da política profissional, onde o eleitor é um mero coadjuvante da política formal, aparentemente poderoso no dia da eleição. Nem mesmo suas opções são efetivamente respeitadas, caso mais evidente nas eleições de Belo Horizonte, onde um desconhecido de sempre foi vendido como candidato preferido dos caciques de Belo Horizonte e Minas Gerais. Quem ganha as eleições em situações desta natureza? O candidato ou seus padrinhos, os caciques? Assim, temos a emergência de uma nova geração de políticos profissionais, com perfil próximo dos yuppies, distantes e formais, com seus ternos escuros e cabelos com gel ou mousse, suas falas pausadas, sua falta de charme e originalidade, seu olhar frio e grande intimidade com grandes empresas. É a volta às grandes obras, à felicidade das grandes empreiteiras, às desapropriações conhecidas nos anos de 1970. Na área social, ficam os projetos de transferência de renda de tipo neoclientelista. E assim, la nave vá. O que salva o país é a política não oficial. Mais uma vez. Rudá Ricci é sociólogo, doutor em Ciências Sociais. É membro do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. É co-autor de A Participação em São Paulo (Editora UNESP) e Dicionário da Gestão Democrática (Editora Autêntica).

(Eleições em Bruzundanga II) HÁ MAIS de um século, precisamente em 1902, um certo Vladimir Ilitch Ulianov, mais tarde conhecido apenas como Lênin, que dirigia a luta de uma organização revolucionária russa contra o czarismo, resumiu suas concepções sobre os objetivos do partido e as formas de viabilizá-los em condições de ilegalidade no célebre texto Que fazer? – até hoje, decerto, a pergunta mais incômoda que um espírito progressista formula a si próprio neste planeta neoliberalmente globalizado. Digo isso pensando, obviamente, no resultado do 1º turno das recentes eleições municipais. Na maioria das capitais e grandes cidades de Bruzundanga, o voto da negação prevaleceu, de forma contundente e fragorosa, sobre o voto da afirmação. Demonstrando sua indignação e cansaço com as manobras das velhas raposas tupiniquins, o povo das metrópoles fechou as portas a inúmeras figuras que, além de lesar o patrimônio público, trataram o eleitor com escárnio e desfaçatez ao longo dos últimos anos, como ocorreu no Rio de Janeiro, onde o grande derrotado do dia 5 de outubro foi o alcaide César Maia, que comandou a farra do PAN 2007 e torrou as verbas da cidade em projetos tão alucinados quanto o próprio. Até mesmo em Belzonte, o empate entre o candidato de Aécio Neves e o PMDB atesta que nem o eleitor mineiro subscreve essa idiotice de que, na política das Alterosas, o “consenso” (das elites, é claro) sempre prevalece.

Restrita aos moldes do consenso burguês e fiel ao discurso da ordem, a esquerda não logrará estabelecer uma correlação de forças capaz de propiciar aos nomes eleitos pelo povo condições de implementar as transformações que este há tanto tempo reclama De Norte a Sul do país, muito “coronel” tomou surra de peia nas urnas. Que o diga ACM Neto, que sequer chegou ao 2º turno em Salvador, ou a tchurma de Ciro Gomes e Tasso no Ceará, cujos afilhados eleitorais perderam já no 1º turno. Todavia, nada disso parece indiciar mudanças mais profundas na consciência popular: infelizmente, negar ou rechaçar velhos nomes nem sempre significa que algo novo esteja a brotar entre nós. Afinal de contas, eleger Íris Rezende em Goiânia, ou levar Kassab ao 2º turno em São Paulo é prova cabal de que permanecemos na esfera mais artificial das mudanças, mesmo cientes de que meras eleições burguesas na periferia do sistema em nada indiciam transformações concretas na ordem social imposta pelos dois Consensos pós-modernos que nos governam, um natural, de Washington, e o outro, de Brasília. Em verdade, há muito por fazer em Bruzundanga. Falta programa, falta partido (legal ou ilegal) e faltam Lenines entre nós. O movimento social enfrenta um refluxo digno de reflexão. Há mais evangélicos a bater de porta em porta pregando os poderes maravilhosos de Jesus Cristo do que quadros políticos de esquerda a organizar as lutas de nosso povo, cada vez mais explorado pela ganância do agronegócio, de banqueiros e monopólios, arautos de um “progresso” que só faz crescer o abismo (e a violência) social ao sul do Equador. E, mesmo diante de tanta penúria e desalento, poucos se têm dedicado a responder a incômoda e secular questão: ¿Qué hacer? A inexistência de um debate político mais profundo afeta muito mais a esquerda do que a direita, advertiu-nos, com inteira razão, Plinio Arruda Sampaio, ao comentar o pífio resultado eleitoral do PSOL, que, a seu ver, priorizou equivocadamente o discurso “administrativo”, tão ao gosto do formato imposto pela mídia, em detrimento da discussão político-ideológica que a direita, por motivos óbvios, abomina. Restrita aos moldes do consenso burguês e fiel ao discurso da ordem, sem investir em mudanças estruturais mais radicais, como tem ocorrido na Venezuela, Bolívia e Equador, a esquerda não logrará estabelecer uma correlação de forças capaz de propiciar aos nomes eleitos pelo povo condições de implementar as transformações que este há tanto tempo reclama. A pergunta de Lênin resultou em um guia decisivo para a luta revolucionária do povo russo. E, hoje, em que redundará a questão proposta para esta singular República de Bruzundanga? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

A crise financeira chegará ao Brasil ENTREVISTA O economista Adriano Benayon garante que manutenção de modelo no qual transnacionais controlam os principais setores da economia deixa país tão vulnerável quanto antes; há oportunidade de buscar desenvolvimento independente Moacyr Lopes Júnior/Folha Imagem

Luís Brasilino da Redação NO DIA 3, o Congresso dos Estados Unidos aprovou e o presidente George W. Bush sancionou um pacote de 850 bilhões de dólares de socorro às instituições financeiras afetadas pela crise. A medida, porém, não acalmou os mercados, que vivem dias turbulentos. Desde o início do mês até o dia 7 (data de fechamento desta edição), o índice Dow Jones, que mede as ações negociadas na Bolsa de Valores de Nova York, acumulou queda de 13%. No Brasil, os abalos foram ainda mais fortes. Entre os dias 2 e 7, a Bovespa sofreu uma perda de 19,4%. Com isso, perdem força as análises que sustentam que o país está blindado contra a crise. Para o economista Adriano Benayon, não há nenhuma possibilidade de o “colapso financeiro”, como prefere, não afetar o capitalismo brasileiro. Nesta entrevista sobre a conjuntura econômica, o professor da Universidade de Brasília (UnB) analisa ainda os motivos da crise e afirma que ela já extrapolou a esfera financeira e está atingindo o setor produtivo.

Adriano Benayon – A imprensa corporativa ocupa-se demais das Bolsas e pouco de coisas mais importantes para a economia. As Bolsas estão registrando quedas expressivas nas ações, e isso não vai parar aí. Mas quebradeira mesmo é com os bancos, financeiras e seguradoras. Não chamo de crise o que está ocorrendo, porque são crises sucessivas formando o colapso financeiro em curso, que se amplia e aprofunda. Os que fazem aplicações já têm sofrido perdas, não só em ações, mas também em outros títulos. Além disso, esse colapso já contaminou a economia real nos EUA e na maior parte dos países da Europa. Essa seqüência certamente ocorrerá também no Brasil.

Não chamo de crise o que está ocorrendo, porque são crises sucessivas formando o colapso financeiro em curso, que se amplia e aprofunda A crise, então, já atingiu o setor produtivo?

Como frisei, o colapso financeiro atingiu o setor produtivo em muitos países e de modo sério. É questão de tempo isso se agravar, inclusive no Brasil. As bolhas financeiras acabam rompendo-se, como as formadas por títulos com conexão cada vez mais longínqua (derivativos) com os ativos imobiliários, fiduciários, cartões, títulos de crédito, opções e futuros de ações, de commodities etc. Começa a haver queda de renda real dos devedores, mesmo porque a concentração econômica leva a criar quantidades colossais de ativos financeiros

Sob o atual modelo, a orientação do comércio exterior do Brasil depende mais das transnacionais e de algumas outras empresas concentradoras do que da política econômica do governo, mesmo porque esta é talhada segundo os interesses desses grupos dominantes na economia.

A política econômica do governo atual (de juros altos, liberalização financeira, câmbio flexível e superavit primário elevado) ajuda ou piora as condições do país nesta hora de crise?

Não tem feito outra coisa até hoje senão piorar as condições do país. Claro que, sob conjuntura mundial adversa, o dano vai ser exponenciado.

Operadores da BM&F durante pregão: a imprensa corporativa se ocupa demais com a bolsa

e mais ainda de derivativos supostamente lastreados nesses ativos, enquanto que a base real da economia, espelhada, por exemplo, nos salários permanece praticamente estagnada. Intensificando-se as inadimplências, o crédito encolhe, bancos e financeiras vão ficando com ativos sem retorno, tentam passá-los adiante e não conseguem. Muitos, e cada vez mais, vão tendo que escriturar prejuízos, vem a corrida aos depósitos e por aí vai. É claro que, nessa dinâmica para baixo, o setor produtivo sofre tanto por causa da queda da procura nos mercados de bens e de serviços, como por dificuldades e custos mais altos para o crédito. O aperto do crédito atinge tanto consumidores como empresas produtoras de bens e de serviços. Nesse contexto, as cotações da grande maioria das ações de empresas caem, e esse é mais um fator de perda de patrimônio das pessoas e mais um fator de retração da procura.

Entretanto, professor, em entrevista ao Brasil de Fato (edição 292), o economista Nildo Ouriques, da Universidade Federal de Santa Catarina, afirmou que a crise não afetou o lucro do setor produtivo estadunidense, pois as transnacionais estão repatriando dividendos da periferia capitalista. O senhor discorda?

Provavelmente Ouriques está reportando algo correto, mas é uma afirmação genérica demais. Algumas transnacionais certamente já vão lucrar menos em função da retração nos EUA e na Europa. Além disso, dentro de algum tempo, haverá também menos ganhos para enviar da periferia (nem digo repatriar, porque elas ganham na periferia infinitamente mais do que nelas investiram).

Os analistas independentes e competentes dos Estados Unidos e da Europa têm qualificado esse pacote como bandalheira. Os bancos beneficiados são grandes doadores das campanhas de ambos os candidatos à presidência

tentes dos Estados Unidos e da Europa têm qualificado esse pacote como bandalheira. Os bancos beneficiados são grandes doadores das campanhas de ambos os candidatos à presidência [Barack Obama e John McCain], os quais recomendaram a seus partidos a aprovação no Congresso. O secretário do Tesouro [Henry Paulson, o autor do pacote,] é ex-sócio diretor de um deles, o Goldman Sachs. Penso que o pacote é ruim para a economia dos Estados Uni-

O economista Reinaldo Gonçalves, em entrevista ao Correio da Cidadania, apóia o pacote do governo dos Estados Unidos, porque entende que ele procura “travar uma crise financeira que abrange todo o mundo”, oferecendo recursos para estabilizar as empresas e bancos envolvidos. O que o senhor acha dessa posição?

Mantendo o que afirmei na resposta anterior, creio que, nesse ponto, o excelente economista Reinaldo Gonçalves não está bem informado.

Existe alguma possibilidade de uma crise nos Estados Unidos não afetar o capitalismo brasileiro? A meu ver, nenhuma.

Os fundamentos da economia brasileira (reservas) são realmente sólidos ou o Brasil continua tão vulnerável quanto antes?

Continua tão vulnerável quanto antes. Basta dizer que, mesmo antes de o colapso financeiro mundial não poder ser mais escondido, o deficit de transações correntes do Brasil com o exterior já era altíssimo.

O Congresso estadunidense finalmente aprovou o pacote (que havia sido rejeitado pela Câmara no dia 29 de setembro), agora de 850 bilhões de dólares (antes eram 700 bilhões de dólares, mas na votação do Senado, no dia 1º, foram incluídos outros 150 bilhões em isenções fiscais), de socorro aos bancos, uma forma de socializar as perdas com os contribuintes. Apesar disso, o senhor acredita que esse pacote é necessário ou, mais ainda, pode ser benéfico para os trabalhadores?

De forma nenhuma. Os analistas independentes e compe-

va, pois não é aí que estão investindo. O sistema concentrador, que comanda a política econômica em quase todos os países do mundo, abusou das ideologias econômicas do tipo neoliberalismo, globalização, desregulamentação, Estado mínimo etc. Agora recorre à intervenção do Estado, porque controla discricionariamente o Estado (malgrado a aparência de eleições presidenciais, votações no Congresso etc.). Aí surge a usual louvação infundada ao keynesianismo, uma doutrina que, como mostrou [o economista e ex-senador, falecido em 2003] Lauro Campos, preconiza guerras de grande porte, com mobilização de muitos soldados (como a 2ª Guerra Mundial), para sair da depressão econômica.

dos e para a economia mundial. Claro que é pior ainda para os trabalhadores. Ele apenas livra a cara de alguns banqueiros que abusaram de jogadas gananciosas, ganharam centenas de bilhões de dólares com essas jogadas e não vão ter que reparar o estrago que causaram. Ele faz com que o governo dos EUA compre títulos sem valor ou de escasso valor para limpar os balanços de bancos e financeiras atolados nesses títulos, cuja manutenção nas suas carteiras significa a bancarrota. Se houvesse democracia nos EUA, essas instituições teriam que passar para o controle de interventores do Estado e os recursos do contribuinte seriam usados na aquisição de ações delas bem desvalorizadas, como já ocorre em função dos maus negócios (agora) para elas. Outra coisa. Somente os ativos podres do setor imobiliário nos EUA são estimados em 7 trilhões de dólares, de modo que o tal pacote pode cobrir só um pouco mais de 10% dos rombos. Além disso, se forem incluídos os demais ativos com grande potencial de virar pó, a conta poderá atingir mais de 100 trilhões de dólares. Para que os leitores tenham idéia do problema, o valor nominal dos derivativos, em dólares e euros, principalmente, passa de 500 trilhões de dólares. Portanto, o que estão fazendo é jogar mais lenha na fogueira da inflação, sem resolver nada na economia produtiAndré Vicente/Folha Imagem

Brasil de Fato – “Quebradeira geral”, “caos” etc. Assim a imprensa corporativa vem noticiando a queda das Bolsas de valores em todo o mundo e, especialmente, no Brasil. Por outro lado, o cotidiano dos brasileiros ainda não foi alterado, e poucas pessoas parecem estar cientes desse “caos”. Enfim, como (ou quando) a crise financeira afeta a economia familiar?

política de comércio exterior que procura reduzir a dependência do Brasil com relação aos Estados Unidos, ao passo que estimula trocas com países do “Sul”. Até que ponto isso é verdade? Essa mudança pode proteger o país da crise estadunidense?

O mercado interno brasileiro pode absorver as perdas do setor primário-exportador?

Isso só me parece possível mediante uma mudança completa de modelo econômico, com o Estado fortalecendo empresas médias e pequenas e acabando com os brutais subsídios em favor de transnacionais concentradoras, que controlam os principais e quase todos os setores da indústria, sem falar no agronegócio.

No Brasil, crise aumentará custo do crédito

O governo Lula tem propagandeado uma

O senhor acredita que, para o Brasil, essa crise significa uma oportunidade para alcançar um desenvolvimento mais independente?

Acredito que ela oferece oportunidade preciosa ao Brasil de buscar o desenvolvimento independente (sem o comparativo, porque, primeiro, o modelo econômico é radicalmente dependente, segundo, embora haja algum crescimento, não há desenvolvimento real).

[O país] continua tão vulnerável quanto antes. Basta dizer que, mesmo antes de o colapso financeiro mundial não poder ser mais escondido, o deficit de transações correntes do Brasil com o exterior já era altíssimo Por quê?

Porque, nessa situação, pode-se entender melhor que convém desatrelar-se da economia mundial controlada por oligarquias de potências hegemônicas, as quais, de resto, controlam também a economia brasileira em sua atual estrutura. A Revolução de 1930 foi uma resposta ao anterior grande colapso econômico mundial. Sua seqüência, embora só conseguisse autonomia parcial, foi grandemente positiva, e as lições dessa experiência devem ser aproveitadas, inclusive no sentido de não repetir erros.

Quem é Adriano Benayon é formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em Economia pela Universidade de Hamburgo (Alemanha). Aos 75 anos, ele é diplomata de carreira, tendo trabalhado na Alemanha, Bulgária, Estados Unidos, Holanda e México, além de no próprio Itamaraty. Foi professor da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto Rio Branco e é consultor na área econômica da Câmara e do Senado, além de ser autor de Globalização versus Desenvolvimento, Editora Escrituras.


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Aliados do governo obtêm vitória ELEIÇÕES MUNICIPAIS PT foi o partido que mais cresceu; PSDB e DEM foram os que mais perderam prefeituras Haroldo Abrantes/Folha Imagem

Renato Godoy de Toledo da Redação O PRIMEIRO turno das eleições municipais foi marcado pela vitória dos partidos da base aliada do governo federal – sobretudo do PT –, os quais ampliaram o número de prefeituras que irão comandar a partir do dia 1º de janeiro de 2009. Além disso, o pleito do dia 5 marcou um recuo dos partidos de direita, como o PSDB e o DEM. Este último venceu 176 prefeituras a menos do que em relação a 2004. Mesmo se vencer a eleição paulistana, com seu candidato Gilberto Kassab, o DEM terá um resultado modesto nas capitais: apenas uma prefeitura. Nas 79 principais cidades do país – as capitais e os municípios com mais de 200 mil eleitores, nos quais pode haver segundo turno –, o ex-PFL conquistou apenas quatro prefeituras no primeiro turno e foi ao segundo em duas: São Paulo e Joinvile (SC). Já o PT venceu em 13 dessas cidades – sendo seis capitais – e garantiu vaga no segundo turno em 15. Porém, mesmo perdendo 109 administrações, o PSDB ainda permanece como o segundo partido com mais prefeituras (780), atrás do PMDB (1.194). O PT aparece em terceiro, com 548 prefeituras, o que representa 157 a mais do que administra atualmente. Para o secretário de Relações Internacionais do PT Valter Pomar, ainda não pode ser dito que o partido é o maior vencedor dessas eleições. “Como partido, o PT venceu o primeiro turno. Mas o balanço final das eleições depende do que vai ocorrer no segundo turno”, resume.

Continuidade

Outro fenômeno observado nas eleições, sobretudo nas capitais, foi a tendência de continuidade, com reeleição ou a eleição de um sucessor do mesmo partido. Uma das hipóteses para explicar esse fato é o período de crescimen-

to econômico pelo qual o país passa. Nesse cenário, a tendência do eleitor é creditar o bom momento a todas as esferas de poder. “Um ambiente ‘positivo’ tende a favorecer quem está no governo. Por outro lado, o governo Lula ampliou os investimentos feitos em todas as cidades; muitos prefeitos se apropriaram disso, mesmo quando integram partidos de oposição ao governo Lula”, analisa Pomar.

“O PT espera que os petistas – filiados, militantes, dirigentes, parlamentares, governantes – apóiem as candidaturas do partido. Especialmente onde os oponentes, de ‘base aliada’, só têm a base, no sentido de maquiagem”, ironiza Valter Pomar Para ele, partidos contrários ao governo procuraram não demonstrar sua face de oposicionista nas eleições municipais. “O que acontece é que um ambiente de crescimento gera um ambiente político-ideológico favorável à situação; motivo pelo qual poucos candidatos do PSDB e do DEM, no país inteiro, se opuseram ao governo Lula. Buscaram, e em muitos casos conseguiram, capitalizar e compartilhar esse ambiente. Mas esse não é o único fator que influiu nos resultados”, afirma o petista.

Agora, o PT pretende concentrar seus esforços para eleger suas 15 candidaturas que foram ao segundo turno. Mesmo em locais onde o partido disputa eleições contra legendas da base aliada – como em Porto Alegre (RS) e Salvador (BA), onde o partido enfrenta o PMDB –, Pomar defende que todos os filiados ao partido, inclusive membros do governo, direcionem seus esforços para eleger petistas. “O PT espera que os petistas – filiados, militantes, dirigentes, parlamentares, governantes – apóiem as candidaturas do partido. Especialmente onde os oponentes, de ‘base aliada’, só têm a base, no sentido de maquiagem”, ironiza Pomar.

Imprensa

Parte da imprensa corporativa “decidiu”, logo após o fechamento das urnas no dia 5, que o governador paulista e presidenciável José Serra (PSDB) foi o maior beneficiado do resultado das urnas, por ter emplacado Gilberto Kassab (DEM) no segundo turno paulistano, e pelo desempenho aquém do esperado, em Belo Horizonte (MG), de Márcio Lacerda (PSB), candidato apoiado e criado por Aécio Neves e por parte do PT mineiro. Assim, Serra teria derrotado dois adversários internos: Aécio e Geraldo Alckmin. O último foi abandonado pelo partido e preterido pelo eleitorado conservador, que escolheu o candidato apoiado veladamente por Serra, Gilberto Kassab. Pomar admite a vitória interna de Serra, mas critica o alinhamento da imprensa com a candidatura tucana para 2010. “Tem um pedaço da imprensa que está blindada em favor de Serra. Portanto, parte do que dizem é preconceito de classe, não análise. O que pode ser dito é que Serra ganhou, ao menos neste momento, a disputa que está sendo travada no PSDB. Ele derrotou Alckmin e saiu-se melhor do que Aécio”, interpreta.

PCdoB obtém maior êxito eleitoral de sua história

Urnas eletrônicas utilizadas pelo TRE na Bahia

Em sua primeira eleição municipal, Psol se diz satisfeito com resultado Partido elegeu 25 vereadores, sendo oito em capitais

Com nova tática, partido elege 39 prefeitos Reprodução

da Redação

da Redação Desde a chamada redemocratização do país, o PCdoB apareceu nas eleições sempre ao lado de seu principal aliado, o PT. Mas as eleições de 2008 marcaram uma alteração nessa posição de quase sublegenda do PT, que era atribuída ao PCdoB por parte da sociedade. Isso porque a legenda deixou de ter o partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como aliado preferencial, buscando a construção de um novo campo, sem fazer oposição ao governo federal. Assim, o PCdoB buscou aliar-se a partidos como PDT e PSB, prioritariamente. Lançar o maior número de candidaturas possíveis também fez parte dessa nova tática do partido. Pelo resultado das eleições, a nova postura parece ter obtido êxito. O partido elegeu 39 prefeitos, sendo dois em cidades importantes, como a capital sergipana Aracaju, e Olinda (PE), onde o partido terá o seu terceiro mandato consecutivo. Na última eleição municipal, em 2004, o PCdoB elegeu 19 prefeitos. O número de vereadores aumentou mais do que o dobro e chegou a 608. O PCdoB ainda concorre ao segundo turno na capital maranhense São Luís, com o deputado federal Flávio Dino.

Altamiro Borges, membro do Comitê Central do PCdoB

“Antes, tínhamos uma tática muito tímida nas eleições. Não nos lançávamos muito ao mar. Agíamos conforme o binômio coligação-concentração. Isto é, nos concentrávamos em duas ou três candidaturas nossas e nos coligávamos preferencialmente com o PT”, lembra Altamiro Borges, membro do Comitê Central do PCdoB. Para Altamiro, a nova tática deixou o partido em evidência. “As eleições dão muita visibilidade ao partido. Foi o momento em que o PCdoB apareceu mais abertamente para a sociedade brasileira. O resultado político foi muito rico e projetou muitas novas lideranças. O 65 passou a ser conhecido”,

afirma Borges, referindo-se ao número do partido. No segundo turno, o PCdoB deve apoiar as candidaturas de esquerda, segundo Altamiro, para recompor as forças de esquerda que estiveram em candidaturas diferentes na primeira etapa. “Também temos como objetivo impedir que o bloco liberal-conservador saia vitorioso no segundo turno. Eu, pessoalmente, acho que não é interessante para a esquerda que vença uma candidatura verde-tucana no Rio de Janeiro, com o apoio do [ex-presidente do Banco Central no governo Fernando Henrique] Armínio Fraga”, posiciona-se, fazendo uma referência ao candidato Fernando Gabeira (PV). (RGT)

Estreante em pleitos municipais, o Psol conseguiu eleger 25 vereadores em todo o país, sendo oito em capitais. O partido comemora o fato de ter tido a maior votação proporcional para uma candidatura a vereador. A presidente nacional do partido, Heloísa Helena, obteve 7,4% dos votos em Maceió (AL). O alto percentual fez com que o partido elegesse mais um vereador na capital alagoana. Para Luiz Araújo, secretário-geral do partido, a avaliação da atuação do Psol é positiva, “diante dos limites impostos pela legislação eleitoral, que privilegia os grandes partidos”. “Cumprimos nossa tarefa principal, que era nos apresentar como uma alternativa de esquerda, uma alternativa de massa, não só para fazer proselitismo programático. Conseguimos nos enraizar no país e nos apresentar como alternativa”, analisa. O partido lançou candidaturas majoritárias em 22 capitais e apoiou o PSTU, em Belo Horizonte (MG) e Aracaju (SE), e o PSB, em Macapá (AP), candidatura que foi ao segundo turno. O Psol só não esteve presente em Palmas (TO). Nas candidaturas em que o partido encabeçou a chapa nas capitais, a mé-

“Cumprimos nossa tarefa principal, que era nos apresentar como uma alternativa de esquerda, uma alternativa de massa, não só para fazer proselitismo programático”, analisa Luiz Araújo, secretáriogeral do Psol

dia de votos do partido foi 2%. “Olhando de longe, esse número pode parecer pequeno. Mas se formos analisar melhor, o Psol é um partido de apenas três anos, disputando sua primeira eleição municipal. É muito difícil se consolidar, ainda mais com um tempo de televisão em torno de um ou dois minutos, e concorrer com as grandes candidaturas que representam o poderio econômico”, explica Araújo.

Financiamento

Segundo o dirigente do Psol, os principais entraves encontrados pelo partido foram oriundos do sistema político brasileiro, baseado no financiamento privado de campanha. O maior reflexo do poder econômico sobre o desempenho das candidaturas do Psol, segundo Araújo, se deu na reta final da campanha. Nas últimas semanas, algumas candidaturas, como a do carioca Chico Alencar e a da portoalegrense Luciana Genro, tiveram uma sensível redução de intenção de votos, que foi confirmada pelo resultado das urnas. “Parte dessa redução se deu pelo fato de a influência do poderio econômico ser mais forte na reta final das campanhas, com as compras de voto disfarçadas de boca de urna. Há também a influência do voto útil, em que muitas pessoas, principalmente dos setores médios, tendem a trocar de voto para evitar o ‘menos pior’”, acredita. No segundo turno, de acordo com o dirigente, o partido deve optar, via de regra, por não manifestar apoio a nenhuma candidatura. “Haverá uma pressão por apoio a candidaturas do PT. Mas o partido deve permanecer fora do processo eleitoral. O que vamos fazer é cobrar a implementação de pontos do nosso programa democrático e popular”, informa. (RGT)


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Esquerda sai enfraquecida das eleições Ney Marcondes/Folha Imagem

ENTREVISTA Plinio Arruda Sampaio, do PSOL, e Ricardo Gebrim, da Consulta Popular, analisam o resultado das eleições municipais ocorridas em todo o Brasil no dia 5 Patrícia Benvenuti da Redação PLINIO ARRUDA Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), e Ricardo Gebrim, militante do Movimento Consulta Popular, analisam o resultado das eleições municipais realizadas dia 5. Sampaio, que é filiado ao PSOL, acha que o seu partido – que elegeu 25 vereadores em todo o país – usou o discurso errado, “fez o discurso administrativo”. Por sua vez, Gebrim destaca que, ao optarem por lançar candidaturas próprias, os partidos de esquerda (PSOL, PSTU, PCdoB, entre outros) saíram enfraquecidos. Segundo ele, até mesmo dentro do PT, com algumas exceções, “as candidaturas que se fortaleceram nacionalmente não são as candidaturas que expressam a esquerda do partido”. Brasil de Fato – Como os senhores avaliam os resultados das eleições? Plinio Arruda Sampaio – O resultado era o esperado, uma vitória monstruosa da direita e uma derrota monumental da esquerda. Ricardo Gebrim – A grande marca desta eleição foi a despolitização. A legislação eleitoral até contribui para isso. O que nós assistimos foi principalmente a discussões do tipo “quantos quilômetros”, “onde seria a ponte”, “onde seria asfaltado”. Não havia um debate de projetos políticos diferenciados, e nenhum setor foi capaz de colocar esse projeto diferenciado em nível nacional. A base aliada do governo no Congresso Nacional encabeça chapas em 10 das 11 disputas do segundo turno para prefeitura das capitais. É possível atribuir

Venezuela, Equador e Bolívia provaram que, mesmo que com todos os obstáculos e contradições, pode-se fazer implementar políticas sociais. Como criar as mesmas condições no Brasil para que as eleições sejam, um dia, um instrumento de transformação? Sampaio – Organizando o povo. Não tem outra maneira. Participando das lutas do povo, aproveitando essas lutas para conscientizar a massa e organizar a massa. Isso para construir poder popular fora do clientelismo político. Gebrim – Nesses países, nós estamos assistindo a um processo político que envolve transformações estruturais, mas é preciso lembrar que elas não vieram de um típico processo eleitoral. Tanto na Venezuela, na Bolívia e mesmo no Equador ocorreram grandes manifestações populares, levantes populares e até mesmo uma situação insurrecional, como foi na Bolívia. E as candidaturas, tanto de Hugo Chávez, de Evo Morales e de Rafael Correa, de uma certa forma, refletem uma correlação de forças que foi produzida por lutas populares, por manifestações de rua, por enfrentamentos de massa, e não por um acúmulo eleitoral, simplesmente. Isso lhes dá, em grande parte, a força e a unidade dos discursos populares para poder implementar as mudanças que estão fazendo.

esse número expressivo ao fato do PT ter se tornado um partido do “sistema”, digamos assim? Sampaio – Dá para atribuir ao Bolsa Família, ao ProUni (Programa Universidade para Todos) e a toda essa mistificação assistencial. Gebrim – A base aliada do governo sai fortalecida nessas eleições, com o Lula sendo o cabo eleitoral. Ao mesmo tempo, é interessante notar que os setores mais conservadores da base do governo que saem mais fortalecidos não são os da esquerda, nem mesmo dentro do PT. Com algumas exceções, as candidaturas que se fortaleceram nacionalmente não são as candidaturas que expressam a esquerda do PT, até pelo contrário. Que conseqüências essa política de alianças pode trazer para o país? Sampaio – As alianças beneficiam a direita. Os partidos de esquerda devem se aliar entre si, porque toda vez que se aliam com o outro lado estão somando para o outro lado. Gebrim – Acho que isso é um perigo, pois reforça a tendência de não se apresentar projetos políticos. O PSOL teve ainda uma participação muito baixa nas eleições de 2008, elegendo apenas 25 vereadores em todo o país. Por que o partido ainda tem uma participação tão baixa? Por que ele ainda não se consolidou como alternativa real? Sampaio – Eu acho que o PSOL usou o discurso errado, fez o discurso administrativo. Se você, sabidamente pelos Ibopes e pelas pesquisas, não tem chance, o eleitor não presta atenção à sua proposta. Ele tinha que fazer um discurso ideológico político, mas ele não conseguiu sair do formato que a

esquerda. PSOL, PSTU, PCdoB e vários outros partidos resolveram lançar suas candidaturas e não fazer alianças, o que fragmentou toda a esquerda e enfraqueceu todos eles.

Eleitores aguardam conserto de urna em Belém (PA)

mídia fez para o debate. Os que conseguiram ir mais para a política tiveram resultados um pouco melhores, foram para a faixa dos 4% ou 5%. A Luciana Genro, em Porto Alegre, conseguiu o melhor resultado (9%) porque se engalfinhou no debate político. Gebrim – Atribuo isso a dois fatores. Em primeiro lugar, não houve, nesta

campanha, uma discussão a respeito de projetos de governo. Houve discussões só no âmbito administrativo, como construir mais unidades, construir pontes, esse tipo de coisa. Isso prejudicou os partidos e os candidatos que tinham e queriam apresentar propostas, ficaram privados de mostrar isso. Em segundo lugar, houve uma ruptura na

Quais as perspectivas para esse 2º turno? Sampaio – Eu acho que são as piores possíveis. Sabe por quê? Porque não tem escolha. O que ganhar reforça o domínio burguês, que é o grande problema desse país. Não tem diferença. Gebrim – As perspectivas não são muito animadoras. Pode ser que, em algumas cidades, como São Paulo, Porto Alegre e Salvador, onde o PT disputa, haja uma mudança. Se isso não ocorrer, pode ser que haja um fortalecimento dos governos conservadores.


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O “merchandising social” da TV Globo e os desertos verdes Divulgação/TV Globo

coberta por eucaliptais da empresa, deverá ser reflorestada por árvores da mata atlântica, um dos biomas mais diversos do planeta e, ao mesmo tempo, mais ameaçados. A empresa também foi condenada a pagar uma multa de R$ 20 milhões (12,5 milhões de dólares) pelo desmatamento da Mata Atlântica, com tratores e correntão, ocorrido nos seus primeiros anos de funcionamento (1991-1993). Este é o tipo de reflorestamento – à força, via Justiça federal – que as empresas de eucalipto promovem. Depois de muita destruição. No Espírito Santo, a Aracruz invadiu terras indígenas – reconhecidas legalmente pelo governo federal como de posse permanente das comunidades originárias – e devastou boa parte do Estado. Em quatro Estados (RJ, MG, BA e ES), os problemas são acompanhados de perto pela Rede Alerta contra o Deserto Verde, uma ampla rede da sociedade civil composta por mais de 100 entidades, movimentos, comunidades locais, sindicatos, igrejas e cidadãos preocupados com a contínua expansão das plantações de eucalipto na sua região, assim como a venda de “créditos de carbono”. Basicamente, a rede chama atenção para o desastre socioambiental causado nos últimos 35 anos pela monocultura de eucalipto e pinus, integrado aos complexos siderúrgico e de celulose, atingindo diversos ecossistemas e populações do território brasileiro, empobrecendo nossa diversidade biológica, social e cultural, e causando expropriação, desemprego, êxodo rural e fome. Mas também tenta mostrar a viabilidade de modelos alternativos de desenvolvimento que têm sido implementados localmente por vários movimentos e comunidades que participam da rede.

Gustavo Barreto do Rio de Janeiro (RJ)

O “debate”

Esse lunático tentou convencer sua “esposa” de que não deveria vender seu lote de terra para a exploração de eucalipto, em benefício de uma grande empresa comandada por Gonçalo Fontini (Mauro Mendonça). Gonçalo, este grande empresário, é estrategicamente posicionado no roteiro: “É um homem inteligente, culto, íntegro e dedicado à família. Sua autoridade é imposta naturalmente. Quando jovem, Gonçalo tinha idéias comunistas, mas, ao longo da vida, traiu seus ideais e tornou-se um homem riquíssimo. Apesar disso, é discreto e não gosta de ostentação nem de bajuladores. Gonçalo é muito apegado à neta Lara e sofre com o assassinato de seu filho único Marcelo.” Sendo inteligente e culto, na percepção dos autores, faz algum sentido que – de acordo com a ideologia da emissora – tenha “traído” seus ideais e se tornado “riquíssimo”. Voltando à cena em questão, Donatela argumenta com Augusto (o “delirante”) que ele deveria vender suas terras. Augusto se defende com dois argumentos: construiu sua vida ali, naquela terra, ao lado da esposa (a que foi “abduzida”, que ele pensa ser a Donatela) e acredita que “esse pessoal só pensa em lucrar”. Donatela (a justiceira, do “bem”), por sua vez, deu outros dois argumentos: “Que que tem? Todo mundo precisa de papel” e “Pelo que sei, é tudo 100% reflorestado”. É curioso que a TV Globo faça uma campanha semelhante – para não dizer igual – às campanhas, por exemplo, das empresas Aracruz Celulose e Stora Enso, líderes no mercado da indústria de celulose. Teria sido mais um exemplo do “merchandising social” – uma espécie de inserção de te-

Gonçalo Fontini e Augusto César

mas sociais para debate público no conteúdo de mídia – ou uma propaganda política?

Desinformação

Os telespectadores não conhecem, pelas mãos da mesma emissora e do seu departamento de jornalismo, o gigantesco conflito político que, aos olhos dos autores da novela, soa como um agradável bate papo para discutir se precisamos ou não de papel.

A TV Globo usa a novela A Favorita para fazer campanha em defesa das empresas Aracruz Celulose e Stora Enso, líderes no mercado da indústria de celulose No Rio Grande do Sul, por exemplo, cinco organizações ambientais se uniram no mês passado em uma ação judicial contra a presidente da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Ana Maria Pellini, a quem acusam de praticar assédio moral ao pressionar seus funcionários em processos de interesse do setor papeleiro. A denúncia, segundo reportagem da agência internacional de notícias IPS, se refere a ameaças e transferências injustificadas de técnicos que se negaram a modificar critérios de Zoneamento Ambiental da Silvicultura, na licença para

construção de represas e para ampliação que quadruplicará a fábrica de celulose Aracruz, maior empresa brasileira do setor, controlada pelos grupos familiares Lorentzen, de origem norueguesa, e Safra, do Líbano. As ações judiciais neste Estado se encaminham principalmente por irregularidades em licenças ambientais e acordos para que sejam feitos estudos e informes de impacto ambiental. “Exigimos mais restrições, porque o Zoneamento Ambiental, recentemente aprovado, oferece baixa proteção”, explicou Annelise Steigleder, fiscal de meio ambiente de Porto Alegre. Em outro Estado, o quadro é parecido, ainda de acordo com o relato da IPS: “Na Bahia, a promotoria estadual pediu à justiça que anule licenças ambientais para plantio de eucalipto, obtidas pela empresa Veracel, criada por uma associação (Joint venture) entre Aracruz e a suecofinlandesa Stora Enso. A firma “usou meios ilícitos, desde corrupção de funcionários de órgãos vinculados às licenças até subornos de prefeitos e vereadores”, disse João da Silva Neto, coordenador da Promotoria em Eunápolis, município do sul baiano. “Também foram obtidos de forma irregular certificados de qualidade para garantir exportações”, acrescentou.” O que as personagens Donatela e Augusto “esqueceram” de falar é que, em junho deste ano, a Justiça Federal brasileira condenou a Veracel (Aracruz e Stora Enso) a restaurar, com vegetação nativa, todas suas áreas compreendidas nas licenças de plantio de eucalipto que foram liberadas entre 1993 e 1996 neste mesmo município. Significa que uma área de 96 mil hectares,

Grito abafado

Itamar Aguiar/Palácio Piratini

FOI O professor Arlindo Machado, pelo que me lembro, que conceituou de forma brilhante a importância de analisarmos a televisão não como um meio em si – tal como Adorno ou McLuhan, para se odiar ou venerar a tevê –, mas pelo conteúdo dos seus programas. Os brasileiros preocupados com os rumos democráticos da nossa nação precisam ficar atentos ao conteúdo específico de cada programa de grande repercussão e rediscuti-los urgentemente, a julgar pelo que se passou na novela A Favorita, da TV Globo, no sábado (4/10). Entrou em pauta neste dia o tema da celulose e o respeito ao meio ambiente, de forma explícita, na fala entre a personagem Donatela (interpretada por Claudia Raia) e Augusto César (interpretado por José Mayer). Contextualizando: Donatela é uma mulher que está atualmente do lado do “bem” no imaginário simbólico dos telespectadores (que “torcem” por ela), buscando justiça contra sua adversária Flora (Patrícia Pillar), uma criminosa da pior estirpe (capaz de seqüestrar a própria filha por dinheiro). Donatela vive atualmente escondida de todos, ao lado de Augusto César, “um homem bonito, atraente, romântico e delirante”, segundo a descrição no site oficial da novela. Segue um breve relato sobre Augusto: “É ufólogo atuante e realiza encontros para meditação. Ganhou fama de doido quando resolveu largar o rock para se tornar um eremita à espera de um disco voador. Acredita que a mulher Rosana Costa foi abduzida por alienígenas há 13 anos e ainda vai retornar ao planeta para viver junto dele e do meio-filho, Shiva Lênin.” Atualmente, ele efetivamente pensa – fruto de seu delírio – que Donatela é a tal esposa abduzida.

Governadora do RS, Yeda Crusius (PSDB), em evento da Aracruz

Veracel é acusada de corrupção e condenada por desmatamento O Brasil de Fato publicou, nas edições 285 (de 14 a 20 de agosto de 2008) e 286 (de 21 a 27 de agosto de 2008), matérias sobre a denúncia do Ministério Público da Bahia que investiga ação conjunta de funcionários públicos– principalmente ligados à área ambiental – no favorecimento à empresa Veracel Celulose. Na ocasião, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o promotor João Alves da Silva, da comarca de Eunápolis (BA), denunciou casos de corrupção envolvendo a empresa e servidores públicos.“Aqueles que estão em cargos relevantes e que deveriam proteger o meio ambiente estão corrompidos. Atuam numa organização criminosa para o favorecimento dessas empresas”, denunciou o promotor. Além disso, a Justiça Federal condenou a Veracel a pagar multa de R$ 20 milhões por desmatar 96 mil hectares de Mata Atlântica – área equivalente à cidade do Rio de Janeiro. (Para saber mais sobre essas reportagens, acesse a Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br).

Didaticamente: estes 100 movimentos sociais gritam e reivindicam que monoculturas não são florestas. Portanto, não podem ser destruídas e depois “reflorestadas”, pelo sem-número de conseqüências que trazem para o meio ambiente e para as comunidades locais. De que adianta o clamor da sociedade civil? A justiceira da novela fala para milhões, argumentando com um homem delirante que, “pelo que sei, é tudo 100% reflorestado” e que “todo mundo precisa de papel”. O homem delirante é “ufólogo” (com todo o respeito à categoria). O empresário responsável pela monocultura criminosa é “inteligente, culto e íntegro” e sugeriu a um negociador, ainda durante a novela de hoje, que dobre o preço pela terra, “que é muito importante”. Com estas referências – a julgar pelo conteúdo desta novela da TV Globo, as únicas referências que milhões de pessoas receberão –, de que “lado” você ficaria? Gustavo Barreto é co-editor nos meios independentes Consciência.Net e Fazendo Media.

Para saber mais Clarinha Glock “Armas judiciais contra fábricas de papel no Brasil”. Agência Envolverde/ Terramérica. 8 de agosto de 2008. www.jornaldiadia.com.br/ noticia.php?id=24857 Comissão Pastoral da Terra Nordeste “Stora Enso e Aracruz são condenadas por crime ambiental”. 1º de agosto de 2008. http://www.cptpe.org.br/ modules.php?name=News&fi le=article&sid=1502

www.brasildefato.com.br

saiu na agência “Batalha da Maria Antônia” Entre os dias 6 e 10, o Centro Universitário Maria Antônia (São Paulo) promove um ciclo de palestras, filmes e exposições sobre os 40 anos da guerra estudantil de outubro, um dos episódios mais importantes do enfrentamento entre apoiadores da ditadura e a resistência contrária ao regime civil-militar intensificado no final de 1968. Ao longo das primeiras semanas de outubro, jovens estudantes e trabalhadores, opositores ou apoiadores da ditadura, enfrentaram-se violentamente nas redondezas, e na própria rua (Maria Antônia) que separava a antiga Faculdade de Filosofia da USP (atual Centro Universitário) e a Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Limpeza social” em Porto Alegre

O Conselho de Assistência Social de Porto Alegre afirma que a Brigada Militar está detendo moradores de rua sem motivo. A vice-presidente do órgão, Iara Rosa, atesta que o governo Yeda Crusius adota a medida para “higienizar” a cidade, e que o motivo da ação é baseado no preconceito. “Eles fazem como se estivessem fazendo uma higienização, só que isso é paliativo, não resolve a situação, nós precisamos de políticas públicas. E a culpa é muito da mídia, principalmente da RBS, que faz sempre reportagens criminalizando os moradores de rua”, argumenta Rosa. Pelo menos cinco foram detidos sem motivo por policiais em um quartel entre os dias 29 de setembro e 6 de outubro.

Sem acordo na Bolívia

O diálogo entre o governo do presidente Evo Morales e as autoridades dos departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Chuquisaca chegou ao fim, no dia 5, sem a assinatura de um acordo entre as duas partes. Agora, as negociações devem ir para o Congresso Nacional, que decidirá pela convocação do referendo sobre a nova Constituição do país. De acordo com o ministro do Desenvolvimento Rural, Agropecuário e Meio Ambiente, Carlos Romero, quando os temas das autonomias e do imposto sobre o gás já estavam acordados, os governadores apareceram com outros pretextos para não assinarem o documento.

fatos em foco Suaves prestações O governo federal continua minimizando as conseqüências da crise econômica mundial e mantém o discurso de que o Brasil será pouco afetado, mas paulatinamente adota medidas e recursos públicos para socorrer setores privados mais atingidos, como o agronegócio, a indústria de exportação, os pequenos bancos com problemas de caixa etc. Mais uma vez, a conta dos prejuízos da ciranda da especulação será socializada com o povo. Trabalho garantido O Tribunal Superior do Trabalho manteve a cláusula do dissídio coletivo dos metalúrgicos do Estado de São Paulo que prevê garantia de emprego e salário até a aposentadoria para os trabalhadores portadores de doenças profissionais e acidentados no ambiente de trabalho dos setores de estamparia, equipamentos odontológicos, material bélico, lâmpadas e outros. A decisão beneficia mais de 15 mil metalúrgicos. Encontro camponês Mais de 500 líderes camponeses de mais de 70 países participam da 5ª Conferência Internacional da Via Campesina, entre os dias 16 e 23, em Maputo (Moçambique). A pauta prevê o fortalecimento das novas etapas da luta mundial contra o empobrecimento das populações rurais, pela segurança alimentar e por uma agricultura familiar sustentável – sem danos ambientais e sem o uso de energia fóssil. Manobra global A poderosa TV Globo continua aprontando contra o aperfeiçoamento da democracia brasileira. Na reta final da campanha eleitoral de 1º turno, cancelou debates entre os candidatos de várias cidades importantes, inclusive em São Paulo, com a desculpa esfarrapada de que os candidatos com menores índices nas pesquisas não aceitaram as regras. Na verdade, a emissora tentou burlar a lei eleitoral e não deu certo.

Política errada De acordo com a Agência Petroleira de Notícias, de 2000 para cá, ocorreram 300 acidentes em todas as unidades da Petrobras, com um total de 280 mortos. No Estado de Sergipe, foram seis

Hamilton Octavio de Souza mortos somente neste ano. Os sindicatos de petroleiros consideram a privatização da empresa, a precarização das condições de trabalho e a terceirização dos serviços como os principais responsáveis pelos acidentes.

Imenso canavial A onda do etanol continua empolgando grupos nacionais e estrangeiros: usineiros pernambucanos acabam de se associar à trading inglesa ED&F para a construção de três novas usinas perto do porto de Suape. A estimativa é de que já estejam em construção, em todo o Brasil, mais de 100 usinas de álcool para entrar em operação nos próximos três ou quatro anos. O cenário no campo está condenado ao mar de cana. Fantasia legal Promulgada em 1988, a Constituição vigente já foi considerada a mais avançada na defesa dos interesses nacionais e sociais da história brasileira, mas, em 20 anos, sofreu 56 emendas que a alteraram substancialmente, em especial para favorecer o processo de privatização e para retirar direitos dos trabalhadores, como a reforma da Previdência. Muito do que está escrito nela jamais saiu do papel. Sem novidade Campanhas eleitorais despolitizadas, mais preocupadas com o marketing e a criação de factóides do que com o debate dos principais problemas enfrentados pela população, ficaram mais uma vez entregues a uma competição de pesquisas e números estatísticos. Mais uma vez o Ibope divulgou dados equivocados sobre a preferência do eleitorado no Rio de Janeiro e em São Paulo, por incompetência ou má-fé. Em 2008, o mesmo de sempre!

Babel eleitoral O quadro de desagregação eleitoral no país pode ser avaliado pelas seguintes informações: 1 – A abstenção média nacional foi de 14,5%, mas em muitos municípios importantes encostou nos 18%; 2 – O partido que mais cresceu em número de votos foi o PMDB, que é uma federação de caciques e oligarquias regionais e locais; 3 – A representação partidária na Câmara Municipal do Rio de Janeiro pulou de 16 para 21 partidos.


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brasil Repórter Brasil

Biodiesel prejudica camponeses e meio ambiente ENERGIA Programa criado pelo governo federal para regular o uso e a produção do biodiesel no Brasil não cumpre as metas estabelecidas, denuncia relatório da ONG Repórter Brasil Michelle Amaral da Redação O AVANÇO da produção do biodiesel no Brasil não cumpre as metas estabelecidas pelo Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), do governo federal. O apontamento é feito pela organização não-governamental Repórter Brasil no relatório O Brasil dos Agrocombustíveis – Palmáceas, Algodão, Milho e PinhãoManso – 2008. O levantamento, feito pelo Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis (CMA) da Repórter Brasil, revela que um dos pontos principais do programa, a participação da agricultura familiar na produção do biodiesel, está muito aquém do prometido pelo governo. Das 200 mil famílias pretendidas, somente 36,7 mil participam do programa. Para Frei Sérgio Görgen, integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o modo como o programa do governo foi realizado e implementado está equivocado. “Ele apresenta muitos buracos. Faltou um programa de Estado mais eficiente, para incluir os camponeses desde o processo de produção até a industrialização”, defende. No estudo, foram monitoradas quatro culturas com poten-

ciais para a produção do biodiesel: duas palmáceas – o dendê e o babaçu –, o algodão, o milho e o pinhão-manso. Vanderlei Martini, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também acredita que o PNPB fracassou, pois descumpriu sua meta prioritária. “A idéia inicial era de que esse projeto fosse para beneficiar a agricultura familiar. O que nós vimos é que, na verdade, nada disso se concretizou”, protesta.

Modo de produção

O estudo também constata que a diversificação das culturas, contemplada no programa do governo, ainda não é realidade, e, mesmo em fase de introdução, a expansão dos cultivos apresenta impactos como desmatamento na Amazônia e no Cerrado, contaminação por agrotóxicos, exploração de trabalhadores nas áreas de expansão agrícola, ameaça à soberania alimentar de pequenos agricultores e concentração de renda e terras. Segundo o levantamento, esses impactos se dão por causa do modo de produção adotado. O texto constata que a adoção dos monocultivos pode significar uma ameaça à biodiversidade de sistemas, como a Amazônia e o Cerrado. Martini acredita que o gover-

no cedeu ao modelo do agronegócio, com a implantação das monoculturas, sem visar outras formas de diversificação. E, dessa forma, continuou beneficiando aqueles que já mantinham o controle das lavouras – os grandes fazendeiros e as empresas transnacionais. “Ao invés de se diversificar a produção, está se ampliando para outras monoculturas. Antes tínhamos a monocultura da soja, da cana e do algodão. Hoje temos outras, a do dendê, a da mamona, a do babaçu e do pinhão-manso”. Segundo ele, as terras brasileiras estão sendo entregues para empresas estrangeiras. “O relatório aponta que empresas do Canadá, da Europa e até da Malásia estão produzindo monoculturas para o biodiesel”, ressalta. Após quatro anos de lançamento do PNPB, dados do relatório mostram que a soja continua sendo a principal fonte de óleo para o biodiesel brasileiro, seguida pelo sebo bovino. Cada uma das demais oleaginosas não alcançam 1% da produção nacional. Contudo, nas regiões em que os cultivos já foram adotados, tem-se notado impacto das lavouras sobre a terra, o meio ambiente e a sociedade. Frei Sérgio explica que a tarefa de implantação dessas culturas na produção do biodie-

Programa marginaliza a agricultura familiar

De acordo com o relatório O Brasil dos Agrocombustíveis – Palmáceas, Algodão, Milho e Pinhão-Manso – 2008, da ONG Repórter Brasil, um dos problemas gerados pelo Programa de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) do governo federal aos pequenos produtores é o monopólio, tanto de terras como de renda, por parte das grandes empresas. No caso do cultivo do dendê, por exemplo, o relatório aponta que três empresas de capital estrangeiro ameaçam a segurança alimentar e a autonomia das comunidades de pequenos produtores da região do Pará e da Amazônia, onde há a maior concentração de plantações do dendezeiro. Segundo Vanderlei Martini, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a forma como o programa foi concebido, ao invés de trazer uma nova dinâmica para a agricultura, perpetua o modo de produção centralizada. “Esse projeto beneficia os grandes fazendeiros e grandes empresas, que já se beneficiavam com a soja, a cana e o algodão. Agora, eles continuam se favorecendo com as outras culturas”, observa. Segundo o documento, a produção centralizada gera conseqüências diretas às famílias dos pequenos agricultores. No cultivo de algodão, o estudo constatou a ocorrência de trabalho escravo nas lavouras do Mato Grosso e no oeste baiano. A crescente mecanização da lavoura e a precarização da mão-de-obra são as principais causas do afastamento dos agricultores das plan-

tações de algodão. Além disso, há uma grande disputa das indústrias de óleos vegetais e dos fabricantes de ração pelo caroço do algodão com os produtores de biodiesel. Já em relação ao cultivo do babaçu, cada vez mais cobiçado pelas siderúrgicas do Maranhão e do Pará para a produção de carvão vegetal, as tradicionais quebradeiras de coco de babaçu têm sofrido com a perda de acesso às palmeiras, hoje localizadas em terras particulares. Calcula-se que o impacto seja ainda maior quando o produto passar a ser disputado também pelos produtores de combustível. Hoje, a utilização do babaçu para o biodiesel está em fase de pesquisa. O milho, mesmo não sendo utilizado para fins energéticos no Brasil – em decorrência do aumento da demanda por causa da geração de etanol promovida pelos Estados Unidos – teve seu preço elevado e as áreas de plantações multiplicadas no país. Isto resultou em uma pressão no mercado de farelos, sobretudo em relação aos criadores de aves e suínos, altamente dependentes do milho.

sel requer investimentos e pesquisas, e os resultados não são imediatos. Ele cita como exemplo a introdução da mamona na produção do biodiesel, que foi feita com pouca pesquisa. “O governo acreditou que teria retorno imediato, o que não ocorreu”, explica. “Não é simples. O governo investiu achando que ela era fácil de se produzir, mas errou.” A formação de policultivos, que geraria a descentralização da produção, e a criação de sistemas integrados na produção de alimentos e energia são apontados por Frei Sérgio como alternativas ao modelo de agrocombustíveis no Brasil. Segun-

do ele, o país tem potencial para autonomia energética, mas falta um aprofundamento dos métodos de produção.

Mercado

Em julho deste ano, o percentual de mistura de biodiesel ao diesel subiu de 2% para 3%, resultando no aumento da demanda pelo produto. O seu preço passou de R$ 1,90 o litro em 2007, para R$ 2,60 em 2008. No entanto, este aumento foi suficiente somente para suprir a necessidade de retorno de grandes investidores, sem contemplar os pequenos produtores. A princípio, foi permitido somente à Petrobras comprar bio-

diesel nos leilões da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e vender para as 229 distribuidoras existentes no país. Esta medida foi adotada pelo governo com o intuito de controlar o mercado, já que a implantação do biodiesel estava em sua fase de experimentação. Hoje, as distribuidoras já podem comprar diretamente das usinas, mas somente para a formação de estoques. Ainda não há um prazo estipulado para que elas possam comercializar o biodiesel em estoque, sendo permitida somente a comercialização do produto adquirido pela Petrobras.

A Amazônia do dendê

Pequenos produtores não têm acesso ao cultivo e ao mercado do biodiesel; muitos são submetidos ao trabalho escravo da Redação

Pinhão-manso, milho e dendê, fontes de agrocombustível

O pinhão-manso é a única das culturas estudadas que apresenta uma participação efetiva da agricultura familiar, com investimentos do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), no Rio Grande do Sul, para a produção de energia alternativa. No entanto, seu cultivo está em fase de experimentação, já que ainda não há conhecimento necessário sobre o manejo e o potencial de geração de óleo em larga escala para a produção de combustível. Ainda assim, Vanderlei Martini alerta para o fato de que a expansão da monocultura no pampa gaúcho possa trazer impactos ambientais, como o envenenamento do solo por conta do uso de agrotóxicos que este tipo de cultivo requer. Frei Sérgio Görgen, do MPA, ressalta ainda que o programa foi implantado em regiões onde já se verificava baixa incidência de agricultura familiar. Como solução, ele defende a criação de cooperativas, para que os camponeses possam se organizar e assim participar efetivamente. (MA) Repórter Brasil

Mata derrubada para plantio de dendê

Relatório aponta risco de aumento do desmatamento na Amazônia em decorrência da expansão da cultura na região Repórter Brasil

da Redação Das cinco culturas monitoradas pelo relatório O Brasil dos Agrocombustíveis – Palmáceas, Algodão, Milho e Pinhão-Manso – 2008 , da ONG Repórter Brasil, o dendê é a que apresenta maior potencial para a produção do biodiesel. De acordo com o estudo, a Amazônia possui condições apropriadas para o cultivo do dendezeiro. Se fosse plantado nessa região, poderia tornar o Brasil um dos maiores produtores de dendê no mundo. Hoje, o país ocupa o 18º lugar no ranking mundial. Contudo, estes dados não levam em consideração que a maior parte da área tecnicamente apropriada para o cultivo do dendê na Amazônia está coberta por floresta. Segundo o levantamento, teme-se o aumento do desmatamento na Amazônia em decorrência da expansão da cultura na região. Já existe um projeto de lei em tramitação na Comissão de Meio Ambiente da Câmara, de autoria do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que requer a alteração no Código Florestal Brasileiro, para permitir que 30% das áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia sejam reflorestadas com espécies exóticas, principalmente o dendezeiro. De acordo com Frei Sérgio Görgen, do Movimento dos Pequenos Agricultores, o modo de produção baseado em monocultivos, seja na produção do biodiesel como em qualquer outro tipo de produção, pode representar graves impactos ao meio ambiente. O relatório também alerta para o fato de que o reflorestamento a partir do cultivo de monoculturas não garante a preservação das funções

Avanço do agronegócio ameaça segurança alimentar

ecossistêmicas que se espera da reserva legal em termos de conservação e reabilitação dos processos ecológicos. Ou seja, a expansão de monoculturas na região amazônica acabará por eliminar parte da floresta nativa e, ao contrário do que é defendido pela bancada ruralista no Congresso, não contribuirá para a preservação da Amazônia. Na prática, as mudanças no Código Florestal poderão resultar na diminuição da Amazônia Legal de 80% para 50%. Frei Sérgio explica que o dendê pode ser utilizado no reflorestamento de áreas desmatadas desde que não seja pelo monocultivo. “Ele pode ser utilizado em sistemas agroflorestais diversificados, não sendo a principal espécie, mas sim um complemento do ecossistema.” Em contrapartida à situação do cultivo do dendê na região amazônica, o relatório demonstra que, no sul da Bahia,

onde o cultivo é praticamente nativo e mantido por famílias de pequenos agricultores, a cultura tem gerado empregos e renda. “O dendê é utilizado de forma nativa na Bahia. Essa é a melhor forma”, defende Vanderlei Martini, da coordenação nacional do MST. Martini explica que o modo como o dendê foi introduzido na Amazônia e no Cerrado, através do monocultivo, é equivocado. “Não há técnica para a implantação dessas culturas de forma sustentável, o governo não deveria investir em monoculturas.” Derivado da palma, o óleo de dendê é o segundo mais comercializado no mundo, perdendo somente para o óleo de soja. Na Ásia, ele é destinado à culinária e às indústrias de cosméticos. No Brasil, o óleo de dendê é conhecido por sua utilização na culinária e é cultivado principalmente no Pará e no sul da Bahia. (MA)


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cultura

Cartola é 100

CRÔNICA Ou como o Guima, numa tarde ensolarada carioca, ajudou o amigo paulista a recontar algumas passagens da história de um dos maiores nomes da música brasileira Aldo Gama da Redação ENCONTREI com o João Guimarães – o Guima, não o Rosa – em um bar ali nas proximidades dos arcos da Lapa, numa dessas tardes cariocas de calor sufocante. Enquanto disputávamos um lugar no balcão lotado, o Guima desferiu uma gentil cotovelada em minhas costelas: – Corre que eu achei uma mesa vagando! E fomos atravessando o salão, entupido de gente, com ele me rebocando pela camisa enquanto entoava o mantra “com licença, perdão, desculpa, ôpa, obrigado, desculpa...” até uma mesinha perto da janela. Sentados e acomodados, partimos para os comes e bebes. Ele foi de bolinho de bacalhau, eu pedi de carne. Ele riu e eu mudei de idéia. – Comer carne aqui é de uma valentia...– completou. O garçom, que acompanhava a conversa sem muito interesse, concordou com a cabeça. – Mas diga lá, como vão as coisas em São Paulo. – Muito trabalho... – O quê? – Interrompeu – Trabalho em São Paulo? Não acredito! – Esse estereótipo... – Tá bom, mas diga lá o que te traz ao Rio. – Preciso escrever sobre o centenário do nascimento do Cartola. Você chegou a conhecê–lo, não? – Rapaz, não vou dizer que éramos amigos, mas... – Ai, não começa com cascata que o negócio é serio. – Tá bom. – Ele era da Mangueira, não era? – As pessoas confundem. Principalmente os paulistas, né? – Provocou. – Ele é um dos fundadores da escola, mas não é de lá. Ele nasceu no Catete, em 1908, depois foi pras Laranjeiras e só foi morar no Morro da Mangueira aos onze anos de idade. – Agenor de Oliveira, não é ? – Na verdade Angenor. Erro do cartório que ele só descobriu quando foi casar com a Dona Zica, em 1964. – E como é que você guarda essas datas, hein? – Aprendi apontando o jogo do bicho. – respondeu com um sorriso insano. – Ou foi me preparando pro concurso de Miss Niterói. Sabe Deus... – E por que Cartola? – Jovem ainda, trabalhando como ajudante de pedreiro, usava um chapéu coco para proteger o cabelo do cimento. Os amigos chamavam aquilo de cartola e o apelido pegou. – E quando é que ele vai se envolver com a música? – Ih, desde menino. Aqui no Rio, o samba... – Pô, será que eu vou ter que lembrar que você é mineiro? – Mas carioca de adoção! Chefia, mais uma por favor! – E a música? – Olha só: ele já era ligado aos ranchos em Laranjeiras. Um deles era o Arrepiados, que ele gostava tanto que levou suas cores, o verde e rosa, pra Mangueira. Mas também tem o verde e grená do fluminense, então... No morro, ele participou da criação do Bloco dos Arengueiros, em 1925. Esse foi o embrião do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. – Primeira Escola de Samba ou primeira estação da Central do Brasil? – Aí vai uma imprecisão histórica. Ou justiça poética. Porque a Mangueira não é nenhum nem outro. A primeira escola de samba foi a Deixa Falar, embora a Mangueira tenha sido a

primeira a oficializar uma data de fundação, em 28 de abril de 1928. Já quanto à estação de trem, a D. Pedro II é de 1866. – E o Cartola já era músico profissional nessa época? – Olha, a carreira dele é, para alguns historiadores, uma metáfora da história do próprio samba, com épocas de sucesso e abandono. Ele teve que parar de estudar cedo. Mal tinha completado o primário quando a mãe morreu e ele teve que trabalhar. Viveu de uma série de biscates, como gráfico, auxiliar de pedreiro... Profissionalização mesmo só pra meados dos anos 60. – Mas ele já não era famoso antes? – Ele foi famoso, primeiramente, no morro, entre os sambistas. Aliás, o primeiro samba-enredo da Mangueira, “Chega de demanda”, de 1928, é dele. Mas a primeira gravação é de 1929, do Francisco Alves. O Mário Reis passou para ele um samba que tinha comprado do Cartola, “Que infeliz sorte”, por 300 mil-réis. Aí ele começa a vender outras composições... – Mas como se sabe que a música era dele? – Ao contrário de muitos compositores da época, o Cartola vendia os direitos da gravação e não os de autoria. Agora, sucesso mesmo, popular, é em 1933, quando o Francisco Alves lança “Divina dama”. – Ele foi contemporâneo de Noel Rosa, não foi? – Foram amigos, inclusive. Noel passou algum tempo em sua casa e fez a segunda parte do samba Diz qual foi o mal que te fiz, mas não quis assinar, deixando os direitos para o parceiro. – Mas quando é que ele... – Ah, você quer saber do nariz? – Como é que é? – Nada, nada. Garçom, outra gelada, faz favor! – Bom, mas, e o sucesso... – Ih, mas que mania, rapaz. Vamos com calma. – Disse com a voz já meio amolecida – Não quer saber das mulheres? – Bom, eu não escrevo para revista de fofoca.

Muito tardiamente, em 1974, ele lança um disco individual, com uma série de clássicos. O trabalho recebeu prêmios, rendeu vários shows e ele conheceu uma popularidade inédita na carreira

– Ah, paulisssssta! Mas um poeta como esse depende de suas musas, não? Quando a mãe dele morreu, ele tinha uns 15. Abandonou os estudos para trabalhar e começou a conhecer a boemia. Tanto que, lá pelos 17, seu pai o deixa por conta própria. Aí, soltinho, caiu na esbórnia. Bebiba, namoradas... Tanto descuido e acabou doente. A mulher que morava no barraco ao lado do seu acabou por cuidar dele. Deolinda era sete anos mais velha, casada e com uma filha de dois. Mas uma coisa levou à outra e eles acabaram juntos. – Sem tiro? – Aparentemente... Ficaram juntos até a morte dela, em

Gama

1947. Mas temos que falar dos anos perdidos também.. – Como assim? – Em 1946, ele teve meningite e sumiu de cena. A Deolinda cuidou dele e morreu no ano seguinte. Ele então se envolveu com uma mulher chamada Donária. E como o Cartola mesmo disse, largou tudo por ela, a Mangueira, a música, e estava morando no Caju. Aí, em 1952, ele e a Dona Zica se reencontraram. Ele estava na pior, bebendo muito, o nariz... – Que mania com nariz, rapaz! – Mas nesse caso faz sentido. O nariz dele parecia uma couve flor por causa de uma doença chamada rosácea. – Nas fotos ele aparece normal, mas com uma mancha escura. – É que ele ganhou uma cirurgia do Pitanguy ali pelo começo dos anos 60. – Mas a Zica começou a namorar com ele em 52... – Prova de que era amor mesmo. Garçom, mais uma aqui! – E quando terminam esses anos perdidos? – Não há uma data precisa, mesmo porque, quando ele se junta com a Zica, começa a se recuperar, bebendo menos... Voltando pra Mangueira, voltando pra música. Aí, em 1956, ele foi reconhecido pelo Sérgio Porto enquanto lavava carros. O Sérgio o ajudou a arrumar um emprego e ele foi voltando, aos poucos, a ficar em evidência. – Esse Sérgio é o Stanislaw Ponte Preta? – Isso. Mas tinham outros que não deixavam seu nome ficar esquecido, como o historiador Lúcio Rangel, que o chamava de Divino... – Como o Ademir da Guia? – Interrompi. – ...E muitos outros. – Ignorou – Aí, em 1963, ele inaugura o Zicartola, que para muitos é um marco na história do samba, porque contava com apresentações dos melhores sambistas do morro que eram assistidos por uma nova geração. Aliás, Cartola dizia que tinha pagado o primeiro cachê do Paulinho da Viola... – Foi o auge?

– Só o começo. A coisa esquenta mesmo nos anos 70. Muito tardiamente, em 1974, ele lança um disco individual, com uma série de clássicos. O trabalho recebeu prêmios, rendeu vários shows e ele conheceu uma popularidade inédita na carreira. Gravou ainda outros três discos em estúdio. – Tem aquelas bem manjadas, como a do moinho. – Rapaz, outro dia eu ouvi na internet, na página da Beth Carvalho, uma gravação do Cartola mostrando “As rosas não falam” pra ela. Depois ele toca “O mundo é um moinho”, mas diz que não é pra ela, que ela ia “queimar a música” e tal. Mas ela gravou a primeira em 1976 e foi um super sucesso. Aí a outra ela gravou no ano seguinte e, me parece, funcionou muito bem. Aliás, garçom, mais uma faz favor. E traz um conhaque também. – Você não tem que voltar pro trabalho? – O Cartola gostava de beber cerveja com conhaque. Eu acho uma boa escolha. E olha só: ele nasceu no dia que morreu o Machado de Assis... Os dois mulatos, imortais... Mas, falando nisso, tem o Sargentelli e as mulatas... É isso, vamos ver as mulatas do Sargentelli! – Acho melhor irmos... – Quando o primeiro disco saiu, ele já tinha 66 anos. Morreu em 1980, de câncer. O primeiro disco do Balão Mágico é de 1982... – Tá ficando tarde. Vamos indo. Garçom? – Mais uma! – A conta! O Guima me olhou contrariado, meio com raiva, meio com sono. E logo já não lembrava de nada. Pagamos a conta e foi minha vez de rebocá-lo até o ponto de ônibus, que, por sorte, passou logo. – O Nélson Sargento disse que o Cartola não existiu, que foi um sonho que tivemos. – Disse, quando finalmente sentamos e começamos a chacoalhar rumo a Vista Alegre. – Você não comeu o bolinho de carne, não é? – Não. – Respondi. – Sorte... – Emendou fechando os olhos.

Verde que te quero rosa Quando o primeiro telégrafo aéreo foi inaugurado no Brasil, em 1852, em um local próximo à Quinta da Boa Vista, na Zona Norte Carioca, a elevação vizinha passou a ser chamada de Morro dos Telégrafos. Pouco tempo depois, perto dali, foi instalada uma fábrica de chapéus que, por conta daquela região ser a maior produtora de mangas da cidade, acabou por adotar o nome de Fábrica de Chapéus Mangueira. O nome foi tão significativo que a Central do Brasil deu o nome de Mangueira à estação de trem ali inaugurada em 1889. Conseqüentemente, a elevação passou a ser chamada de Mangueira, sendo que Telégrafo, dali por diante, passou a designar uma parte do Morro que, juntamente com Pindura Saia, Santo Antônio, Chalé, Faria, Buraco Quente, Curva da Cobra, Candelária e outros pequenos núcleos, formam atualmente o complexo do Morro da Mangueira. (AG)

Cartola e seu tempo 1888 Assinatura da Lei Áurea 1889 Proclamação da República 1908 Nascimento de Cartola, no Catete, bairro classe média carioca 1916 A família muda-se para o bairro das Laranjeiras, motivo do menino escolher o Fluminense como clube do coração. Também é o ano de lançamento de “Pelo telefone”, que é considerado o primeiro samba gravado 1919 A família se muda para o bairro da mangueira 1925 Aos 17 anos, Cartola é expulso de casa pelo pai, entregando-se de vez à vida boêmia e participando da criação do Bloco dos Arengueiros 1928 É um dos fundadores do GRES Estação Primeira de Mangueira 1929 “Que infeliz sorte”, na voz de Francisco Alves, é a primeira composição gravada 1932 Carmem Miranda grava “Tenho um novo amor” 1933 “Divina dama”, gravada por Francisco Alves, é seu primeiro sucesso popular 1940 Indicado por Villa-Lobos, participa das gravações que maestro Leopold Stokowski fazia sobre a música brasileira 1952 Reencontra Zica, que conhecia desde a infância e que se torna sua parceira definitiva 1956 É “redescoberto” por Sérgio Porto 1963 É inaugurado o Zicartola 1968 É lançado o disco coletivo Fala Mangueira, com as participações de Cartola, Carlos Cachaça, Clementina de Jesus, Nélson Cavaquinho e Odete Amaral 1974 Lançamento de Cartola, seu primeiro disco individual 1976 Lançamento de seu segundo disco, também chamado Cartola 1977 Ano de lançamento de Verde que te quero rosa 1979 Lançamento de Cartola 70 Anos 1980 Morre aos 72 anos de idade 1982 São lançados os discos Documento inédito, com a gravação de uma entrevista e algumas canções, e Ao vivo, registro de uma apresentação de 1978


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américa latina

Tropas da ONU legitimam exploração de haitianos por transnacionais dos EUA MINUSTAH Para advogado que visitou Haiti em 2007, ocupação no Haiti serve também para conter revolta popular Matthew Marek/American Red Cross

Reprodução

Eduardo Sales de Lima da Redação “LÁ, TUDO era diferente do que eu imaginava e do que tinham me dito. Também não tenho nenhuma lição de moral para deixar para ninguém. Só gostaria mesmo de lembrar que estamos perdendo a verdadeira guerra: contra a miséria. Como os jogadores da seleção disseram no dia daquele jogo ridículo, só o combate à pobreza vai trazer a paz. Quando será que vão enxergar isso?” O relato, que faz parte do livro Um Soldado Brasileiro no Haiti, do soldado gaúcho Tailon Ruppenthal – que serviu durante seis meses naquele país – é um indício de como o povo haitiano está sendo violado no seu direito à soberania e à autodeterminação com a ação da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah). De acordo com o advogado Aderson Bussinger, que fez parte de uma delegação que visitou diversas regiões do Haiti em 2007, “o Brasil não possui legitimidade para tal intervenção, dado o conteúdo de ocupação da missão, que consiste em uma operação para conter a revolta popular e impedir que o povo haitiano tome nas suas próprias mãos o seu destino”. “Não assisti a um caso de repressão ou agressão direta da Minustah. Assisti, contudo, a uma situação de constrangimento ao povo, sobretudo nos bairros mais miseráveis, onde pude ver blindados brasileiros com seus canhões apontados para a população”, relata Bussinger. O advogado conta ainda que, durante a sua estada, ouviu muitos relatos de agressões praticadas pelas tropas das Nações Unidas (ONU), em particular pelas forças brasileiras. As denúncias de cerceamento à organização popular não param por aí. De acordo com Marcelo Buzetto, integrante da Via Campesina, a Minustah está mapeando e identificando todas as lideranças comunitárias. Muitas, inclusive, segundo ele, estão sendo perseguidas e presas. “Há centenas de presos políticos no Haiti por terem participado de processos de mobilização social, tanto no governo anterior como no atual”, afirma. Buzetto ressalta ainda que na maior favela de Porto Príncipe, hospitais, creches e escolas foram bombardeados. “Quem anda por Cité Soleil vê as marcas dos tiros.” A descrição não é de se estranhar. Incursões equivocadas dentro das favelas haitianas e o despreparo dos jovens soldados brasileiros já foram relatadas por um “veterano” do Exército brasileiro ao jornal Folha de S. Paulo, em 2006. “Às vezes, no meio de um tiroteio, um cara vindo em nossa direção pode parecer uma ameaça. Se a gente pede para ele parar e ele não pára, o jeito é atirar. Só que, com os FAL – arma de origem belga usada pelos soldados brasileros –, quase sempre acaba em morte. É um fuzil de guerra, não de patrulha urbana, como as que fazemos no Haiti.”

Greves

No relatório entregue à Comissão de Relações Exteriores do Senado, Aderson Bussinger relata como a Minustah legitima a ação de empresas estrangeiras no país, principalmente as estadunidenses. Cita a indústria têxtil Codevi, uma transnacional dominicana, ligada ao banco Chase Manhattan, que fabrica jeans para marcas famosas, como Levis e Wrangler. “Seus trabalhadores ganham 48 dólares (menos de R$ 100 reais) por

Condições sociais do Haiti

Vista aérea de rua alagada de Gonaives, uma das cidades mais atingidas pelos furacões

A expectativa de vida no país é de apenas 53 anos (no Brasil, por exemplo é de 71 anos); Mais de 50% das crianças estão fora das escolas; 45% da população é analfabeta; O país possui cerca de 96% de sua vegetação totalmente devastada; 80% de seus 8 milhões de habitantes se encontram abaixo do nível de pobreza extrema.

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pessoas foram assassinadas e ficaram feridas no início deste ano ao protestarem contra a subida generalizada dos preços dos alimentos e contra a presença de tropas estrangeiras no país

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mês, e trabalham vigiados por guardas armados, o que foi testemunhado por nossa delegação durante todo o período em que estivemos na área”, conta Bussinger. “Em Cité Soleil, onde está sendo organizada outra zona franca, conhecemos os trabalhadores da Hanes, a mais importante fabricante de camisetas dos EUA. Essa grande transnacional acaba de demitir 600 operários e operárias para fechar a planta industrial e além disso se recusa a pagar os direitos trabalhistas dos demitidos”, acrescenta o advogado, que também é conselheiro da OAB/RJ. Para Aderson, o modus operandi das empresas estrangeiras pode ser compreendido melhor quando se considera a presença da Minustah, pois trata-se “de uma intervenção que sustenta um modelo de exploração colonialista via transnacionais, em favor de alguns interesses específicos, têxteis em especial”. Ele lembra que os trabalhadores dessas “maquiladoras” mostraramlhe cicatrizes, dentes quebrados e queimaduras; resultado de repressão a greves ocorridas.

Mais repressão

Em abril e maio deste ano, em Porto Príncipe, sete pessoas foram assassinadas e 170 ficaram feridas (entre elas um soldado da Minustah) ao protestarem contra a subida generalizada dos preços dos alimentos e contra a presença de tropas estrangeiras no país. Para se ter uma idéia, o saco de 23 quilos de arroz passou de 35 para 70 dólares, enquanto o milho, o feijão e o óleo de cozinha registraram aumentos de 40% . Desde então, a repressão à organização sindical e a tentativas de organização de passeatas em Porto Príncipe e ao sul da ilha só aumenta. Nas manifestações pelo Dia Internacional do Trabalho, no 1º de maio, os nomes de todas as pessoas que fizeram uso do microfone durante a marcha foram recolhidos por parte da Minustah e da Polícia Nacional.

“Tropa de elite” ensina Exército a agir em favelas do Haiti No comando da Minustah, Brasil contribui para criminalização internacional da pobreza da Redação Um vídeo com imagens de atos de violência praticados por soldados da missão de paz da ONU que resultaram na morte de mulheres grávidas, crianças e homens inocentes entre 2005 e 2006 foi apresentado pelo senador Eduardo Suplicy (PT-SP), em agosto, à Comissão de Relações Exteriores do Senado. Essas mortes estão estritamente relacionadas a deze-

nas de outras mortes ocorridas nas favelas do Rio de Janeiro, como as que aconteceram recentemente no Complexo do Alemão e no Morro da Providência. “Membros do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) estão indo para o Haiti, junto com o Exército. Gente do Exército está treinando com o BOPE para conhecer melhor a geografia e o cotidiano das favelas do Rio de Janeiro”, afirma Marcelo Buzetto, integrante da Via Campesina.

Sintomático

De acordo com Buzetto, há um setor das Forças Armadas que defende mudanças na Constituição para que o Exército tenha condições legais de exercer esse tipo de atividade nos próximos anos. “As experiências do Haiti e do Rio de Janeiro são dois laboratórios que têm como objetivo fortalecer e projetar no meio da sociedade a imagem do Exército brasileiro como sendo um ator capaz de solucionar os problemas da violência urba-

Pela retirada das tropas e por auxílio imediato Em São Paulo, manifestação acontece no dia 10 de outubro Roosewelt Pinheiro/ABr

da Redação No dia 10, haverá jornada de manifestações no Brasil e no mundo para a retirada das tropas da ONU do Haiti e pelo auxílio humanitário às famílias atingidas por furacões entre agosto e setembro. A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), estabelecida em 30 de abril de 2004, tem mandato até 15 de outubro de 2008. A presença do Brasil no país caribenho pode ser considerada inconstitucional. “Sob o ponto de vista jurídico, a República Federativa do Brasil tem como princípio constitucional a auto-determinação dos povos e a defesa da soberania, o que, a meu ver, contrasta com este tipo de operação”, explica o advogado Aderson Bussinger. Mas é quase certo, de acordo com Rosilene Wansetto, coordenadora do Rede Jubileu Sul Brasil, que o Congresso Nacional nem se pronuncie em relação a uma possível retirada das tropas, “mas a gente quer que esse assunto extrapole isso, chegue à sociedade e se fortale-

Tropa da ONU organizam fila de doação de alimentos

ça para que no próximo ano não passe desapercebido”.

Auxílio

Quanto à ajuda humanitária imediata aos atingidos pelos furacões, o Brasil se omite. “Por que o governo brasileiro não usa um tempo na televisão para desencadear uma campanha nacional de solidariedade ao povo do Haiti e mandar três, quatro navios cheios de comida e de remédios”, indaga Marcelo Buzetto, da Via Campesina. De acordo com Wansetto,“as tropas pouco fizeram para auxiliar os desabrigados”.

Serviço Público

Em São Paulo, o ato ocorrerá às 17h, em frente ao escritório do governo federal, na avenida Paulista, 2163. Entre as organizações que convocam o ato estão a Central de Movimentos Populares (CMP), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Juventude Revolução (IRJ), Movimento Negro Unificado (MNU), Sindicato dos Servidores Públicos Federais (Sindsep) e Sindicato dos Professores da região do ABC (SINPRO ABC); além de mandatos de deputados estaduais. (ESL)

na no país”, diz Buzetto, que considera tal possibilidade um absurdo. A afirmação do integrante da Via Campesina é respaldada pelo coronel Cunha Mattos, responsável pela Comunicação Social do Exército, que, exatamente há um ano, declarou que não há muita diferença dos bairros no Haiti para as favelas cariocas, ao reclamar que o impedimento para a atuação nas favelas do Rio de Janeiro devia-se somente à legislação. (ESL)

Entre furacões e dívidas da Redação O Caribe foi severamente atingido por quatro furacões (Fay, Gustav, Hanna e Ike), que devastaram várias regiões, sobretudo no Haiti e em Cuba, entre os dias 15 de agosto e 7 de setembro. No Haiti, cerca de 800 pessoas morreram e, até o momento, 300 estão desaparecidas. O número de atingidos chega a 800 mil pessoas. Toda a infra-estrutura logística, como pontes, rodovias, indústrias e produção de alimentos, foi danificada. Como um filme repetido, o governo haitiano só pôde anunciar um desembolso de 900 mil dólares, já que o dinheiro que o país dispõe está atrelado ao pagamento de uma dívida externa – muito questionável – que atinge 1,6 bilhão de dólares. Em 2004, menos de 4 meses após a inundação de Gonaïves – cidade duramente atingida também desta vez –, o Haiti foi obrigado a pagar ao Banco Mundial 52 milhões de dólares de serviços atrasados, o que impediu o investimento urgente. À época, 3 mil pessoas acabaram morrendo. (ESL)


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américa latina

Diálogo com oposição termina sem acordo, mas governo não vê fracasso BOLÍVIA Avanços obtidos nas negociações entre o Executivo e os governadores opositores serão incorporados à nova Constituição Gonzalo Jallasi/ABI

Igor Ojeda correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia) APESAR DA oposição regional não ter assinado um acordo com o governo, o diálogo entre as duas partes, encerrado no dia 5, não foi considerado um fracasso, na visão do oficialismo e dos observadores internacionais presentes. Isso porque, segundo eles, foram obtidos avanços em grande parte dos temas envolvidos nas discussões iniciadas no dia 18 de setembro, na cidade de Cochabamba. “Foi positivo. Foi a única mesa de diálogo que avançou bastante, muito cordialmente, em que houve discussões técnicas, na qual se puseram de acordo em quase tudo”, avalia Raúl Prada, deputado constituinte pelo Movimiento Al Socialismo (MAS, partido no governo) que participou das negociações. Depois de mais de duas semanas de diálogo, os governadores de Santa Cruz, Beni, Tarija e Chuquisaca decidiram não assinar um acordo final por não se ter alcançado as “coincidências necessárias”. Eles reivindicam a revisão de outros aspectos da nova Constituição – aprovada em dezembro –, além da questão das autonomias, discutida em Cochabamba. Já o governo se recusa a abrir o novo texto em outros temas. Mesmo sem um acordo assinado, o MAS decidiu incorporar à nova Carta Magna o texto sobre o capítulo de autonomias acordado entre os técnicos dos dois lados durante as negociações. Assim, a Constituição será encaminhada ao Congresso Nacional, que decidirá a convocação de um referendo para aprová-la. O documento, que contém importantes avanços, segundo analistas, estabeleceu a existência de três níveis de governos autônomos: departamental, municipal e indígena (antes, estava previsto também o regional). Além disso, distri-

acredita que a medida dos movimentos irá influenciar para que o referendo constitucional seja aprovado no Parlamento. “Não tenho certeza de qual vai ser o cenário. Se um acordo político discutido, um acordo pressionado ou um desacordo. Talvez o mais provável é que a pressão obrigue a um acordo político”, analisa.

Direita enfraquecida

Dono da bola: conjuntura boliviana favorece organizações socias e o governo Morales

Para a aprovação da convocatória do referendo constitucional, são necessários dois terços dos 130 parlamentares, entre senadores e deputados. Embora o governo possua maioria, terá ainda de convencer 21 opositores. O MAS diz à imprensa que já conta com o apoio de 20 legisladores dissidentes buiu as competências entre cada um deles. Prada conta que, no dia 5 de manhã, o novo capítulo de autonomias do texto constitucional foi entregue ao presidente Evo Morales e aos governadores oposicionistas, mas estes últimos não quiseram firmar o documento. “Não assinaram por causa do tema de terras, que é fundamental. A posição mais radical era a de Santa Cruz, que queria competência exclusiva sobre

a questão. Os demais departamentos estavam bastante flexíveis.” Santa Cruz, no oriente boliviano, é onde há a maior concentração de latifúndios do país, e onde se prioriza a produção de soja e a criação de gado – inclusive com a forte presença de fazendeiros brasileiros.

Briga no Congresso

No Congresso, a tarefa não será fácil para o MAS. Embora possua maioria, o partido de Evo Morales não conta com os

dois terços de votos dos legisladores presentes, necessários para a aprovação da convocatória do referendo constitucional. Dos 130 parlamentares, entre senadores e deputados, o governo tem 84. Para atingir os dois terços, terá que convencer 21 opositores. O MAS diz à imprensa que já conta com o apoio de 20 legisladores dissidentes. A oposição, por sua vez, afirma que, se o texto constitucional não for modificado, o referendo para apro-

vá-lo não passará na casa. Os líderes do Podemos (Poder Democrático Social), além disso, estão preocupados que os oficialistas habilitem parlamentares suplentes, e afirmaram que estarão “vigilantes” para que isso não ocorra. Ao mesmo tempo, as organizações sociais pró-Evo confirmaram a realização de uma marcha de Caracollo, no departamento de Oruro, até La Paz, distantes cerca de 200 km, para pressionar o Congresso pela aprovação da consulta constitucional. No entanto, no dia 7, anunciaram que não mais realizarão um cerco (cujas medidas significariam, por exemplo, o impedimento da entrada de parlamentares opositores), e sim uma vigília. Mesmo assim, Raúl Prada

Uma vez aprovada a consulta sobre a nova Constituição, será a vez do rechaço – tanto ao referendo quanto à Carta Magna – por parte dos departamentos opositores. No entanto, na opinião do constituinte do MAS, a direita não conseguirá fazer uma oposição sistemática como a levada a cabo em setembro, com ocupações de instituições e atentados a gasodutos. “Neste momento, a oposição nas regiões se encontra muito enfraquecida. Foram derrotados no último conflito. O que aconteceu em Pando [com o massacre de camponeses, no dia 11 de setembro] foi alarmante, dramático, incompreensível. Estavam fortes até então, haviam tomado instituições, queriam dividir o país. Mas cometeram um erro grave com o massacre, e isso inverteu a correlação de forças, porque o governo se viu obrigado a tomar uma medida de força como o Estado de sítio e a prisão do governador de Pando, Leopoldo Fernández. E a fazer investigações sobre o ocorrido”, diz. Uma conseqüência desse enfraquecimento, segundo Prada, é que os próprios governadores tomaram a iniciativa de dialogar, depois de recusarem anteriormente. “Agora, eles estão em uma conjuntura em que as organizações sociais reagiram, cercaram Santa Cruz, mostraram sua contundência, sua força, e agora farão uma marcha de Caracollo ao Congresso. É uma conjuntura em que os movimentos sociais se reativaram e os governadores se enfraqueceram”, conclui.

ANÁLISE João Zinclar

Bolívia para os bolivianos A oligarquia se recusa a aceitar a reforma agrária aprovada pela nova Constituição, que limita a propriedade rural a 5 mil hectares, e almeja o controle dos lucros do petróleo e do gás Frei Betto Desde a chegada dos espanhóis no século 16, povos e terras do altiplano boliviano foram explorados à exaustão. Em fins do século 16, 80% da prata do vice-reinado do Peru vinham de Potosí, que fornecia 50% de toda a prata do mundo. Em 1610, Cerro Rico de Potosí contava com 160 mil habitantes. Superava em população todas as cidades da Espanha e se equiparava a Londres e Paris. Na era republicana, os indígenas continuaram explorados pelos brancos descendentes de europeus. Até a eleição de Evo Morales, uma pessoa com sobrenome indígena não ingressava na universidade nem se tornava oficial do Exército. Em Sucre, capital constitucional do país, alguns restaurantes proibiam explicitamente a entrada de indígenas. A parte oriental do território boliviano, cuja principal cidade é Santa Cruz de la Sierra, passou a se desenvolver a partir da década de 1970 graças às generosas doações de amplas extensões de terra para “colonizadores” brancos. Nos latifúndios, baseados em mão-de-obra indígena, em especial guarani e chiquitano, são freqüentes os casos de trabalho escravo.

As elites da Bolívia sempre governaram com mão forte, dilapidaram as riquezas naturais do país, estimularam o tráfico de cocaína. A família de Simon Patiño, dona das minas de estanho até meados do século 20, promovia festas em Paris de fazer inveja aos milionários europeus. Quando trabalhadores, sobretudo mineiros, chegaram a obter força de pressão, foram violentamente reprimidos, ao estilo das piores ditaduras implantadas pelos EUA na América Latina. A eleição de Evo Morales só foi possível após anos de fortes mobilizações sociais, como ocorreu com Lula no Brasil. Pela primeira vez, num país onde quase 70% da população é indígena, um aymara chegou à presidência. E pela primeira vez os grupos dominantes se viram fora do poder central. Continuam com domínio total sobre os grandes meios de comunicação e controlam o poder nos departamentos (Estados) de Tarija, Santa Cruz, Beni e Pando, onde se localizam as novas riquezas bolivianas – gás e petróleo. Todos os governadores desses departamentos são afilhados políticos do general Hugo Banzer, duas vezes presidente do país – uma através de golpe de Estado (1971-

1978), quando implantou um regime ditatorial apoiado pelos EUA, e outra eleito em 1997 –, tendo governado por estado de sítio de 2000 a 2001. Evo Morales herdou uma estrutura estatal corrupta, falida, quase sem presença nos departamentos mais distantes, principalmente os amazônicos Beni e Pando. Ali, umas poucas famílias são a lei, mandam e desmandam. Enquanto influíam no poder central, essas oligarquias nunca falaram em “autonomia”. As propostas de autonomia têm por objetivo manter o domínio sobre as terras e os recursos naturais daqueles departamentos. Os chamados estatutos autônomos são verdadeiras constituições paralelas, desconhecem as leis federais e o governo central. A oligarquia se recusa a aceitar a reforma agrária aprovada pela nova Constituição, que limita a propriedade rural a 5 mil hectares, e almeja o controle dos lucros do petróleo e do gás. A expulsão do embaixador Philip Goldberg – portador de sinistro currículo marcado por sua atuação nas guerras de divisão da ex-Iugoslávia – não foi um ato impensado. O governo alertou-o várias vezes sobre sua interferência na política do país e suas relações com os grupos

Manifestação de indígenas no Plan 300, em Santa Cruz

de oposição interessados em boicotar a legalidade. Com o apoio da Casa Branca, foram tentadas distintas estratégias para debilitar o governo. A mais recente consistiu no referendo revogatório para decidir sobre a continuidade do presidente Morales. Ao contrário do que se previa, o governo encampou a medida e o tiro saiu pela culatra: Morales foi aprovado com 67% dos votos, aumentando o percentual que o elegeu presidente (54%), inclusive nos departamentos da chamada “meia-lua”. Convém lembrar que, após a Segunda Guerra Mundial, importantes figuras do regime de Hitler fugiram para a Amé-

rica do Sul. Segundo Eduardo Simas, brasileiro atuante em projetos sociais na Bolívia, muitas se instalaram em Santa Cruz, para onde também foram, na década de 1970, croatas foragidos do comunismo. Uma das lideranças nazistas era Klaus Barbie, “o carniceiro de Lyon”. Viveu 40 anos na Bolívia, apoiou as ditaduras, disseminou a ideologia nazista antes de ser capturado, em 1983. Foi dele que fugiu a família de Anne Frank e foi ele quem assassinou Jean Moulin, líder da Resistência Francesa. Nos departamentos que se rebelam contra o governo, muitos militantes anti-Morales integram grupos neonazistas, co-

mo a União Juvenil Cruzenha. Não têm vergonha em exibir a suástica pelas ruas, em ameaçar e atacar pessoas de acordo com a cor da pele ou lugar de origem. Um país não pode pertencer a um grupo de famílias. E na Bolívia os indígenas são maioria. Faz bem o presidente Lula em respaldar o governo Evo Morales e respeitar a soberania boliviana. Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Estudou Jornalismo, Antropologia, Filosofia e Teologia. É autor de mais de 50 livros de diversos gêneros literários, dos quais muitos mereceram tradução no exterior.


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américa latina

Uma dívida (oficialmente) ilegal Presidencia de la República del Ecuador

EQUADOR País é o primeiro a finalizar uma auditoria dos empréstimos públicos a pedido do próprio governo federal Dafne Melo da Redação OS EMPRÉSTIMOS de dinheiro realizados pelo Equador entre 1976 e 2006 não trouxeram qualquer benefício à nação, apenas ao sistema financeiro internacional. Essa é a uma das conclusões do relatório final da Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público (Caic), no Equador. O trabalho da comissão teve início em julho de 2007, quando, por decreto, o presidente Rafael Correa determinou a auditoria da dívida pública interna e externa. É a primeira vez que um processo como esse se deu oficialmente, ou seja, com apoio governamental. “Foi pioneira essa iniciativa. Creio que, agora, o papel dos outros países da América Latina é prestar muita atenção ao que foi apurado lá e procurar adotar a mesma medida”, avalia Maria Lúcia Fatorelli, auditora da Receita Federal e integrante da Auditoria Cidadã da Dívida. Ela foi convidada pelo governo equatoriano para participar do Caic. Segundo Fatorelli, a exemplo do que foi apurado no caso brasileiro, as dívidas equatorianas estão repletas de ilegalidades, o que torna o endividamento ilegítimo. “Encontramos irregularidades que tenho certeza que, com o aprofundamento da investigação, vão permitir uma atitude bastante firme por parte do governo do Equador”, aponta.

De acordo com dados da Auditoria Cidadã, a América Latina, em 1970, devia 32,5 bilhões de dólares. Em 2002, devia 727 bilhões de dólares, mesmo tendo pago 193 bilhões de dólares a mais do que recebeu de empréstimos Exemplos de ilegalidades

Para facilitar o estudo, a Caic se dividiu em quatro subcomissões: dívida comercial, bilateral, multilateral e interna. Fatorelli participou da primeira, na qual alguns casos preocupantes apareceram. “A principal irregularidade que encontramos é que, desde 1983, não entrou de fato nenhum recurso no Equador. Essas dívidas foram feitas em negociações no exterior entre os próprios bancos privados, que apenas transferiam o ônus do pagamento ao Estado. A condição básica para cobrar a dívida é que a quantia tenha sido dada ao devedor. Como cobrar juros e comissões de uma dívida assim?”, questiona Fatorelli. Outro caso ocorreu no final da década de 1980, durante o Plano Brady – sobrenome do então presidente do Banco Central estadunidense –, quando o Fundo Monetário Internacional (FMI) fez empréstimos para conter a crise no continente latino-americano, trocando os títulos da dívida. O plano foi implementado em 22 países, inclusive no Brasil. “Houve exigência da compra de garantias. No caso do Equador, essas garantias correspondiam a 72% do valor de mercado da dívida na época, então, pagou-se à vista esses 72%, mas ainda se continuou devendo 100% desse valor. E o país seguiu pagando juros e comissões sobre esse valor integral. Em 2000, quando houve outra troca desses títulos, essa garantia não serviu de nada”, esclarece Fatorelli. Em troca, o FMI ainda impôs aos paí-

Números da dívida equatoriana Em 2007, o serviço da dívida externa pública total foi de 1,756 bilhão de dólares. Segundo o Banco Central Equatoriano (BCE), esse valor é maior que o previsto nos orçamentos da Saúde (738 milhões de dólares), Bem-estar Social (544 milhões de dólares), Desenvolvimento Urbano e Moradia (374 milhões de dólares), Ambiente (76 milhões de dólares) e Educação (1,586 bilhão de dólares). (DM) ses o aumento de impostos, tarifas de serviços públicos, desvalorização da moeda e redução de gastos governamentais.

Padrão

O Caic, em seu relatório, também aponta uma série de desrespeitos a acordos e leis internacionais no sistema de empréstimos. Fatorelli conta que, mesmo que parte dessa responsabilidade seja das elites econômicas e dos governos desses países, as negociações eram – e ainda são – feitas de maneira muito desigual, com imposição de contratos e cláusulas. Os credores, sempre amparados nas reuniões pelo FMI, pressionaram países como o Equador com ameaças de sanções, o que é um padrão no tom dos acordos com países pobres. Por isso, acredita-se que o caso equatoriano está longe de ser isolado. “Estamos verificando que os processo são semelhantes; não é um processo de livre iniciativa de cada país, mas uma imposição, não é coincidência”, opina Fatorelli, que vê como essencial a iniciativa de outros países. “Para ter mais força, claro que uma atitude deveria ser tomada conjuntamente. Até para equilibrar as forças, porque os bancos internacionais se articulam”, diz. De acordo com dados da Auditoria Cidadã, a América Latina, em 1970, devia 32,5 bilhões de dólares. Em 2002, devia 727 bilhões de dólares, mesmo tendo pago 193 bilhões de dólares a mais do que recebeu de empréstimos. A auditora fiscal conta que o presidente boliviano Evo Morales tem se mostrado interessado na auditoria e já fez algumas reuniões. No Paraguai, poucos dias após a posse de Fernando Lugo, foi anunciada a auditoria das contas da hidrelétrica de Itaipu, a maior fonte de geração de dívida externa para o Paraguai.

E agora?

A julgar pelas declarações de Correa, há vontade política de ir além. “Já estamos contratando estudos para que analisem a possibilidade de ações legais em nível internacional”, declarou o presidente no fim de setembro. Fatorelli explica que o governo equatoriano se mostrou empenhado em verificar os meios jurídicos de que podem lançar mão, internacionalmente, para tentar interromper o pagamento e até anular as dívidas ilegais. “Mas observamos bastante cautela por parte do governo. Na reunião em que apresentamos o relatório, Correa afirmou diversas vezes que não dará nenhum passo que possa prejudicar o país e que dará passos seguros”, conta. A Caic entregou o relatório final a diversos órgãos equatorianos que, legalmente, podem tomar alguma medida com base no estudo, como o Ministério Público. “A idéia é, juridicamente, estar muito embasado. Se o pagamento for interrompido, será junto com ação judicial, para que represálias que historicamente acontecem na América Latina não ocorram”, conclui Fatorelli.

Reunião dos presidentes Chávez, Evo, Lula e Correa: continente pode seguir exemplo equatoriano

Dívida brasileira:

No Brasil, a iniciativa cidadã

• Entre 1978 e 2007, a dívida externa brasileira aumentou cinco vezes, ainda que se tenha pago 262 bilhões de dólares a mais do que foi recebido de empréstimos. • Em 1978, a dívida brasileira era de 2,8 bilhões de dólares. Em 2007, era de 243 bilhões de dólares. • A dívida interna do governo brasileiro era inexpressiva no início da década de 1990. Cresceu a partir do Plano Real, atingindo R$ 62 bilhões em 1995. Entre 1995 e 2007, foram pagos 651 bilhões de dólares só de juros; mesmo assim, a dívida multiplicou por 20, e em 2007 estava em 1,390 trilhão de dólares. • De acordo com o orçamento geral da União de 2007, 53% foram destinados ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Com previdência, gastou-se 18,5%; com educação, 1,74%; 2% com assistência social; e 3,5% com Saúde. (DM)

Ainda que a auditoria da dívida externa brasileira esteja prevista na Constituição Federal, nenhum governo ainda tomou a iniciativa de fazê-la. Em 2000, porém, diversas entidades da sociedade civil realizaram um plebiscito popular sobre a dívida. Seis milhões de brasileiros se declararam contra o pagamento, mas o então governo de Fernando Henrique Cardoso ignorou a consulta. Em 2001, foram iniciados os estudos da Campanha Auditoria Cidadã, vinculada à Rede Jubileu Sul Brasil, que mantém análises até hoje, todas disponíveis na página da campanha na internet: http://www.dividaauditoriacidada.org.br.

PERU

Escândalo em estatal abala governo de Alan García Revelação de corrupção na Petroperu reafirma crise no governo peruano Antonio Cruz/ABr

da Redação O governo peruano suspendeu, no dia 5, a assinatura de todo contrato em que participe o consórcio Petroperu-Discover, formado pela estatal petroleira Petroperu e pela norueguesa Discover Petroleum. A medida foi tomada após a denúncia de corrupção nos negócios entre a Petroperu e a empresa privada, em troca de cinco lotes de exploração de hidrocarbonetos. O fato veio a público em rede de televisão, quando o ex-ministro do Interior, Fernando Rospigliosi, apresentou gravações de áudio nas quais o integrante do diretório da Petroperu, José Alberto Químper Herrera, coordenava com Rómulo Leon, exministro do primeiro governo (1985-1990) do atual presidente peruano, Alan Garcia, diferentes ações dirigidas a favor da Discover em troca de dinheiro. As reações do governo peruano não demoraram. O chefe do Gabinete Ministerial, Jorge del Castilho, foi designado para anunciar em coletiva de imprensa as Resoluções Supremas tomadas pelo presidente Alan Garcia. Além do cancelamento dos contratos, decidiu-se pela destituição de José Alberto Químper Herrera do cargo de diretor da Petroperu. O procurador público do Ministério de Energia e Minas foi designado para iniciar as ações legais contra os responsáveis pelos delitos cometidos. O ministro de Energia e Minas, Juan Valdivia, afirmou que nunca esteve envolvido nas ações de corrupção denunciadas no dia 5 e disse sentir-se “indignado” pelo

O presidente do Peru, Alan Garcia

acontecido. Ele pôs seu cargo à disposição do presidente da República, que, no dia 6, aceitou a renúncia após insistir na “honorabilidade” do ministro. A ex-candidata presidencial e líder do Partido Popular Cristão (PPC) Lourdes Flores disse, no dia 6, que o escândalo de corrupção na entrega de cinco lotes petroleiros é a “primeira prova evidente da decomposição no governo”. Ela lembrou também que os dois envolvidos no escândalo são amigos diretos de Alan García e enfatizou que “Alberto Químper Herrera foi advogado por anos do presidente”. Para Flores, o Executivo deve “acabar radicalmente” com a ação de corrupção mais grave da gestão de Alan García.

Protestos

Organizações sociais realizaram, no dia 7, uma jornada nacional de protesto contra o governo de Alan García. Na capital Lima, uma mobilização foi organizada pela Confederação Geral de Trabalhadores (CGTP), a maior central sindical do país, que chamou a população para expressar nas ruas sua insatisfação com a política econômica do governo e a alta geral dos preços. Segundo o presidente da CGTP, Mario Huamán, a jornada exige uma mudança de rumo da política econômica neoliberal vigente no Peru desde 1992, bem como na política social e na ética do governo. Já o Sindicato Único dos Trabalhadores da Educação

(SUTEP), que congrega quase 300 mil professores, efetuará em paralelo uma paralisação nacional de 24 horas, que coincidirá com as mobilizações regionais em Cusco, Arequipa, Ica e Amazonas. A pauta de reivindicações inclui medidas contra a alta do custo de vida e dos combustíveis, a revogação das leis que criminalizam o protesto, a solução das demandas regionais e a defesa da soberania nacional. As lutas pelos recursos naturais, o meioambiente, a integridade territorial e o patrimônio cultural também integram a jornada de protestos. O presidente da CGTP chama atenção para o fato de que, de acordo com pesquisas, a desaprovação ao governo tem crescido. Segundo Huamán, se as demandas das organizações populares não forem atendidas, serão tomadas medidas mais drásticas. O governo, por sua vez, anunciou que militarizará o país para enfrentar qualquer eventualidade, como atos de violência contra locais públicos. “Nós, trabalhadores, não queremos a militarização. O que exigimos é a mudança do modelo econômico por outro que se baseie no desenvolvimento nacional e que permita uma autêntica distribuição da riqueza”, declarou Olmedo Auris, dirigente do Sindicato Unitário de Trabalhadores da Educação. No entanto, o governo de García sustenta que, por trás dessas mobilizações, está em marcha um complô que busca desestabilizar o país frente à proximidade do encontro de líderes das nações que formam o Fórum de Cooperação Ásia-Pacífico, a realizar-se em novembro em Lima (com Prensa Latina e Telesur).


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internacional

Delírios de Bush e ascensão de Obama COLAPSO FINANCEIRO Mesmo diante da crise, presidente dos EUA insiste em dizer que a economia de seu país é a mais forte do mundo inteiro; Obama ultrapassa McCain em Estados tradicionalmente republicanos, como Flórida e Colorado Reprodução

Memélia Moreira de Orlando (EUA)

Os esotéricos de plantão põem mais lenha na fogueira, dizendo que outubro é um mês “maldito” para Wall Street. E, anunciando o “fim do mundo”, lembram que foi no dia 24 de outubro de 1929, a chamada “Quintafeira Negra”, que se iniciou a “Grande Depressão”

Enquanto isso, o presidente George W. Bush parece viver em um planeta distinto de Washington. Na terçafeira, quando novamente as Bolsas despencaram na França, Alemanha, Argentina, Suíça, Japão, Brasil, o presidente dos Estados Unidos, cada dia mais semelhante a um personagem totalmente bronco interpretado pelo saudoso Ronald Golias, fez mais um de seus pronunciamentos na televisão, dizendo que “a economia dos Estados Unidos é a mais forte do mundo inteiro”. O jornalista da CNN ainda comentou, “e qual a vantagem disso?” Maldosamente, o pano de fundo da fala de Bush era o painel da Bolsa de Valores de Nova York, apontando a operação da Dow Jones, com -3,34, e da Nasdaq, em -4,22. Nenhuma crítica da esquerda poderia ser tão mordaz.

Relatório do FMI

O pronunciamento de George W. Bush na tarde de terça-feira coincidiu com a divulgação do

Para Bush, a economia dos Estados Unidos continua sendo a mais forte do mundo

relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), que logo nas suas primeiras linhas anuncia o apocalipse. Diz o relatório que a atual crise financeira mundial “ainda nem começou”. Em outras palavras, bancos se derretendo, pessoas perdendo seu teto, postos de trabalho se fechando são apenas aperitivos do diabólico banquete que o capitalismo está servindo. Sem meias palavras, o relatório do FMI diz que os Estados Unidos “estão no epicentro da crise” e, embora conceda um afago ao pacote de Bush de socorro aos bancos, o relatório é contundente, dizendo que, a cada dia que passa, os “bancos terão mais dificuldades de captar capital dos acionistas”. Com isso, a intervenção estatal estará mais presente e cada vez mais intensa. E o próprio diretor do fundo alerta que as soluções “conta-gotas”, no estilo do Proer de Bush, “estão com os dias contados”. Para quem sempre se preocupou em dar garantias ao capital, o FMI parece que se converteu à causa social, pois no final do relatório recomenda “proteção aos interesses dos contribuintes”. Nem parece o velho Fundo Monetário Internacional de guerra, quando, entre os anos de 1970 a 1990, propunha mais e mais arrocho contra os contribuintes. Nada como assistir o capitalismo se esfacelar para uma conversão, mesmo que tardia. O diretor do FMI, Dominique Strauss-Kahn, em breve pronunciamento quando da divulgação do relatório, quase silabou a palavra “proteção”, ao se referir aos interesses dos trabalhadores. A preocupação com a classe trabalhadora, aqui e acolá, surge como o grande fantasma da crise. Jamais mencionado em discursos oficiais e sem o mínimo amparo de seus sindicatos, que permanecem mudos diante do desemprego, da ajuda bilionária aos bancos e, principalmente, diante do número de sem-teto que cresce a cada dia, estão agora presentes na boca não apenas dos candidatos à Casa Branca, mas das autoridades governamentais e financeiras. E, se realmente forem beneficiários da proteção que todos prometem, verão a crise passar ao longe. Bem...

Palin resolveu chamar Obama de “terrorista” porque o senador democrata manteve encontro com um vizinho, William Ayers, um desses malucos que proliferam pelos EUA e que na década de 1960 queria explodir o Capitólio. O ataque não colou

talismo, critica os excessos das políticas liberais que deixaram o mercado ao sabor dos seus próprios caprichos. No documento, divulgado em Genebra, o braço da ONU para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) faz sua crítica ao dizer: “O argumento fundamentalista do mercado contra uma regulamentação mais forte, com base na idéia de que a disciplina dos mercados sozinha pode monitorar de forma eficiente o comportamento dos bancos, foi claramente desacreditada por esta crise”. E o secretário-geral da entidade, Ban Ki-Moon, anunciou em Nova York, na terça-feira, dia 6 de outubro, que a organização vai promover uma reunião com todas as suas agências, além do FMI e do Banco Mundial. As Nações Unidas raramente se pronunciam durante as crises econômicas. Em 1986, quando os Estados Unidos viveram a avant-première da recessão que ora abala o país, a ONU se manteve quieta. Sua manifestação da terça-feira foi mais

Obama surfa na crise

O candidato do Partido Democrata, senador Barack Obama, é, no momento, além dos especuladores tradicionais, o único que está surfando na crise. A cada queda em Wall Street, ele ganha pontos na pesquisa. A tal ponto que seu concorrente, senador John McCain, e sua vice, a governadora do Alaska Sarah Palin, passaram as duas últimas semanas jogando pesado, com ataques de baixo nível contra Obama.

O preço da gasolina nos Estados Unidos teve um crescimento de cerca de 100% em um ano, passando de 2 dólares o galão para quase 4 dólares

Cândido otimismo

Voltaire, intelectual francês que viveu entre os séculos 17 e 18, escreveu um romance chamado Cândido, ou o Otimismo. Trata-se de uma comédia romântica que opõe sentimentos nobres aos torpes. E o personagem principal é um otimista militante. O romance foi editado em 1759, mas serve perfeitamente para os dias de hoje nos Estados Unidos. Pelo menos para alguns analistas econômicos. Em plena crise, quando o preço da gasolina teve um crescimento de cerca de 100% em um ano, passando de 2 dólares o galão para quase 4 dólares, comentaristas de jornais e televisão conseguem enxergar bons sinais no meio da crise. Os “Cândidos” do século 21 afirmam que a crise vai afastar o problema da inflação porque as pessoas vão consumir menos. O problema é que a inflação atinge também o preço dos

A ONU na crise

Desmoralizada desde que os Estados Unidos desobedeceram a resolução contra a ocupação do Iraque, a Organização das Nações Unidas (ONU) aproveitou a divulgação do documento do FMI para se manifestar. Por enquanto, é a única voz que toca na ferida. Se não faz referência aberta ao capi-

alimentos. Mas os analistas, entre eles, Michael Fletcher, do Washington Post, ignoram essa necessidade vital. Juram para os quatro ventos que a desaceleração da economia “afasta o perigo da inflação”.

um elemento para engrossar as opiniões daqueles que prevêem uma crise mundial pior do que a que abalou a sede do capitalismo em 1929. Os esotéricos de plantão, que no momento vivem seu momento de sucesso, põem mais lenha na fogueira, dizendo que outubro é um mês “maldito” para Wall Street. E, anunciando o “fim do mundo”, lembram que foi no dia 24 de outubro de 1929, a chamada “Quinta-feira Negra”, que se iniciou a “Grande Depressão”, mergulhando os Estados Unidos numa de suas mais profundas crises econômicas, responsável por suicídios, infartos e, sublime pecado neste país, o descrédito nas instituições. A crise de 1929 vai completar 80 anos em 2009. E o dia 24 de outubro do ano que vem cai exatamente numa quinta-feira. Bastou essa coincidência para levar os esotéricos a se reunirem em conselhos, arrastando, por enquanto, apenas algumas centenas de pessoas.

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O PACOTE com a ajuda financeira de 850 bilhões de dólares foi insuficiente. A crise continua a se alastrar mundo afora. E saltou de qualidade. De crise econômica, transformou-se em crise de confiança, alastrando-se feito dengue no verão brasileiro. E com a desconfiança cresce também o desespero dos trabalhadores. Entre agosto e setembro, os Estados Unidos viram crescer em 159 mil o número de pessoas desempregadas que, obviamente, se ainda não têm casa própria, serão os novos insolventes na praça. Os jornais já até fotografaram pessoas que já deixaram suas casas e estão vivendo dentro de automóveis. Se a crise de 1929 não mostrou esses tristes espetáculos foi porque o número de automóveis naquela época era muito reduzido. Sorte dos que ainda têm carros para se abrigar... Na segunda-feira, 6 de outubro, todos os grandes jornais do país anunciavam em suas manchetes que, embora os esforços governamentais durante o fim de semana tenham se tornado mais agressivos no combate à crise, “os mercados continuam totalmente céticos quanto às medidas adotadas”. Essa era a chamada do Wall Street Journal, uma espécie de termômetro da Bolsa de Nova York. Com outras palavras, a mesma notícia podia ser lida no Los Angeles Times, Washinton Post, New York Times e o USA Today, os maiores jornais do país. Sem exceções, todos eles apontam para a dissolução das Bolsas de Valores ao redor do mundo. Mas nenhum deles é capaz de fazer críticas ao capitalismo. Como se a crise fosse alguma coisa parecida com as sete pragas do Egito ou coisa que o valha.

Cena do debate entre Obama e McCain

A dobradinha McCain-Palin se desenvolve em dois níveis. Enquanto um ataca as relações pessoais de Obama, o outro trata da atuação do senador no Congresso. Sarah Palin está usando toda sua experiência de locutora de televisão. Quando quer seduzir o público, fala com aquela voz feminina dos aeroportos do Brasil, que tanto sucesso faz junto ao público masculino. E quando parte para o ataque, mostra que não tem a menor sintonia com a sociedade. Desde que os estadunidenses descobriram as mentiras do presidente George W. Bush, dizendo que havia armas de destruição em massa no Iraque, para jusitificar a invasão daquele país, a palavra “terrorista” foi perdendo o brilho de outrora junto ao povo dos Estados Unidos. Virou quase folclórica. E Palin, que não sustenta um debate nem sobre economia e, muito menos, sobre política externa, os dois assuntos que mais interessam ao povo desse país, resolveu chamar Obama de “terrorista” porque o senador democrata mante-

ve encontro com seu vizinho, William Ayers, um desses malucos que proliferam pelos Estados Unidos e que na década de 1960 queria explodir o Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos. Nem mesmo os comentaristas de televisão da direita mais hidrófoba levou as palavras de Palin a sério. Bil O´Reilly, o preferido da direita, indagou: “E daí? Ayers não é candidato”. Pronto, o argumento da governadora do Alaska se desmoralizou até entre os republicanos. Já McCain ataca a atuação de Obama no Senado. Diz que seu concorrente é pouco assíduo e votou a favor da liberação de mais recursos para a guerra do Iraque. Acontece que McCain também foi favorável à proposta do presidente Bush de aumentar os gastos da guerra. Ou seja, mais um ataque que virou piada. Mas Obama não gostou de ser chamado de terrorista e ressuscitou um caso antigo de McCain e algumas transações nebulosas do candidato republicano, que já foi acusado de facilitar o funcionamento de cassinos em áreas proibidas. Todos os casos, tanto de Obama quanto de McCain, se referem aos anos de 1960 e 1980 e não influenciam a disposição dos eleitores. Por isso, nem o candidato republicano ganhou mais pontos na pesquisa, nem o democrata teve seu prestígio abalado junto aos eleitores. A única preocupação do eleitor estadunidense esse ano é econômica e, talvez por isso, John McCain, que parece muito ao gosto do estadunidense médio, vê minguar as intenções de voto na sua chapa. Sarah Palin, embora tenha se transformado em”símbolo sexual” do momento, não acrescentou nada à campanha. Pelo contrário. A cada aparição sua, telespectadores já se preparam para rir das infantilidades ditas pela governadora do Alaska. E a fragilidade da chapa republicana está exatamente na questão econômica. Esse não é o assunto preferido de McCain, e, decididamente, sua companheira de chapa sequer toma conhecimento dos rumos da economia. Por isso, McCain tenta de tudo para mudar o eixo dos embates com Obama. Chegou a anunciar que, no debate de 7 de outubro – data do fechamento desta edição –, mudaria o “enfoque” que, previsivelmente, seria a crise econômica.

Até a Flórida

A situação de McCain é tão delicada que até no Estado da Flórida, que sempre votou com os republicanos e em 2000 preferiu George W. Bush a Al Gore, dessa vez vai trair seus princípios. O Estado, localizado no extremo sul dos Estados Unidos, e porta de entrada dos migrantes latino-americanos, que são discriminados pelos negros e devolvem na mesma moeda, vai votar em Obama. De acordo com pesquisa divulgada pela CNN, o senador democrata conta com 50% das intenções de voto, contra 48% de McCain. O fato é inédito, pois a Flórida sempre descarrega seus votos nos republicanos. Alguém pode até dizer que é empate técnico. Teoricamente, sim. Mas 50% não é um número desprezível para quem não contava nem com 30%. O fenômeno se repete no Colorado, que no início hostilizou Obama, e agora, quatro em cada cinco eleitores garantem seu voto ao democrata. E na Califórnia, o maior colégio eleitoral do país, até o governador, Arnold “Exterminator” Schwazenegger, republicano com pinceladas fascistas, diferente de seus personagens do cinema, sempre vencedores, já jogou a toalha. Em recente declaração, o governador-ator disse: “É bom saber que os Estados Unidos podem ter um presidente negro. Afinal de contas, isso mostra que realmente esse é o país das oportunidades”.


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