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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 6 • Número 294

São Paulo, de 16 a 22 de outubro de 2008

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br

Divulgação

Arquivo Público do Estado de São Paulo

Fabio Pozzembom/ABr

CULTURA

40 anos de Ibiúna

A rabeca de Mestre

Capitalismo vive seu Ensaio sobre a Cegueira Págs. 4 e 5

Salú

continua viva Pág. 12

Pág. 12

Após pressão da Via Campesina, Syngenta cede área no Paraná Arquivo Brasil de Fato

Depois de dois anos e meio de luta, a Via Campesina conseguiu que a transnacional suíça Syngenta abandonasse uma área de 127 hectares no oeste do Paraná. Foram três ocupações desde a descoberta de que a empresa cultivava ilegalmente soja e milho transgênicos no local. Na última delas, em outubro de 2007, 40 pistoleiros contratados pela Syngenta assassinaram o militante sem-terra Valmir Mota de Oliveira.“Mesmo que tenha custado a vida do Keno, foi uma vitória da Via Campesina”, declara o deputado federal Dr. Rosinha (PT/PR) sobre a assinatura da escritura que cede a área para o governo do Paraná. Este vai usar o local para produzir sementes crioulas, exatamente o objetivo dos trabalhadores rurais.“É uma vitória de quem deu a vida para protestar”, completa Chico Alencar (PSOL/RJ). Pág. 7

Área de experimento da Syngenta em Santa Tereza do Oeste, no Paraná Valter Campanato-ABr

Prefeitura de SP privatiza a saúde

Governo planeja venda de aeroportos

Aos poucos, por meio das Organizações Sociais de Saúde (OSS), a prefeitura de São Paulo vai privatizando as unidades de saúde na cidade. Agora é vez dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que tratam de pacientes com transtornos mentais. A manobra acontece da seguinte forma: o poder público contrata as OSS para administrar um serviço, recebendo uma verba pública correspondente, mas sem licitação. A Justiça já determinou, em primeira instância, que tais contratos sejam cancelados. Pág. 3

O Conselho Nacional de Desestatização publicou resolução no dia 9 iniciando o processo de privatização dos aeroportos de Viracopos, em Campinas (SP), e do Galeão, no Rio de Janeiro (RJ). Esse pode ser o primeiro passo em direção à venda de todo o setor, seguindo o mesmo modelo do mandato Fernando Henrique Cardoso, com a entrega de áreas lucrativas acompanhada de financiamento do BNDES. Empresas estrangeiras já se organizam para participar do desmonte. Pág. 6

Minga

Argentina nega Barragens secas asilo a militantes afetarão 850 paraguaios famílias em MG Seis camponeses paraguaios que buscavam asilo político na Argentina tiveram seu pedido negado. A decisão do governo saiu após 60 dias de greve de fome dos militantes, que estão presos há mais de dois anos aguardando uma resposta. Representantes de movimentos avaliam que, mesmo com a posse de Fernando Lugo, os camponeses correriam perigo ao voltar a seu país. Pág. 9 ISSN 1978-5134

No sul de Minas Gerais, cerca de 6 mil pessoas serão atingidas pela construção de três barragens no rio Sapucaí. A obra é do governo do Estado e tem como objetivo acabar com as enchentes nos municípios de Itajubá, Santa Rita do Sapucaí e Pouso Alegre. Entretanto, o projeto não se preocupou com as comunidades que vivem antes do muros que serão feitos, rio acima. Além disso, o projeto não tem o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), premissa básica para o início de qualquer obra. Pág. 8

Fórum convoca união continental Cerca de 10 mil pessoas participaram, entre os dias 7 e 12, do Fórum Social Américas, realizado na capital da Guatemala. Durante os seis dias, aconteceram debates e intercâmbios de experiências na perspectiva de construir a unidade entre os países do continente. Pág. 11


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de 16 a 22 de outubro de 2008

editorial A GRAVE crise do sistema financeiro estadunidense expõe as falácias dos defensores das políticas neoliberais. Começou no setor bancário, mas suas causas são muito mais profundas. Para Michel Chossudovsky, “esta crise mundial é mais devastadora do que a Grande Depressão dos anos de 1930. Tem consequências geopolíticas muito mais alargadas; a deslocalização econômica também tem sido acompanhada da explosão de guerras regionais, da fratura de sociedades nacionais e, em alguns casos, da destruição de países inteiros. Essa é de longe a crise econômica mais grave da história moderna.” As projeções para 2009 são de aumento do desemprego. Estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam para mais 5 milhões que ficarão sem serviço, número que, dependendo do aprofundamento da crise, poderá ser ainda maior. Como toda crise que ocorre, haverá a desaceleração da economia mundial e, conseqüentemente, a classe patronal recorrera às mediadas mais simplistas e imediatas para preservar seus interesses: promover o desemprego, empurrando uma massa de trabalhadores para o mercado informal. Com a crise financeira, aliada ao aumento dos preços dos alimentos e do petróleo, pelo menos 100 milhões de pessoas voltarão à pobreza este ano, cifra que poderá subir ainda mais. No Brasil, no início da crise finan-

debate

Com a crise financeira, é hora de propor mudanças profundas ceira nos Estados Unidos, o governo adotou o discurso otimista, dizendo que o país não seria afetado pela crise. Se comportava como o comandante do Titanic, que pedia para a orquestra continuar tocando e animando a festa porque o rombo no casco do navio era pequeno. Somente recentemente admitiu a possibilidade de o Brasil também ser atingido pela crise. Agora, já aparecem os efeitos junto ao setor bancário e também o produtivo. Empresas como a Sadia, Aracruz, Votorantim Papel e Celulose e a Petrobras estão entre as vítimas da desvalorização do real. A Aracruz anunciou prejuízo de R$ 1,9 bilhão nos negócios com o mercado de câmbio, e a Sadia, o montante de R$ 760 milhões. O grupo Votorantim comunicou ao Banco Central que teve perdas de R$ 2,2 bilhões em operações de câmbio, o maior prejuízo divulgado por uma empresa brasileira desde o início da crise de crédito. Já a Petrobras informou que a subsidiária Petrobras Distribuidora registra perdas de R$ 118 milhões com operações de hedge (proteção cambial) para cobrir a comercialização de querosene de aviação.

O setor automobilístico também já deu sinais de que a crise bateu às portas. Várias montadoras – entre elas a Fiat (Minas Gerais) e a General Motors (Rio Grande do Sul) – já pisaram no freio ao suspenderem temporariamente a produção de veículos. Como se pode ver, a crise financeira internacional desembarcou no país. “O Brasil já foi atingido pela crise de alguma maneira, pois a bolsa de valores caiu violentamente, o real se desvalorizou, a taxa de câmbio subiu e as empresas brasileiras que têm empréstimos no exterior estão com muitas dificuldades de renová-los. Assim, a reserva internacional brasileira começou a diminuir”, analisa Carlos Lessa. Para ele, a crise já comprometeu o crescimento econômico do país em 2009. “Os 5% que o Brasil cresceu em 2007 e 2008 ficarão na história como um ‘vôo de galinha”. Como em todas as crises, quem paga a conta são os trabalhadores. Para Juan Somavia, diretor-geral da OIT, os “trabalhadores, suas famílias e comunidades têm tanto direito de serem salvos dessa crise quanto as institui-

ções financeiras que, finalmente, nos colocaram nesta confusão”. Os governos dos países periféricos do sistema capitalista, coniventes com os interesses patronais, não hesitaram em adotar medidas políticas para socorrer os sistema financeiro internacional e minimizar as possíveis perdas que os grandes grupos econômicos poderão ter com essa crise. Também não se mostram indecisos em promover cortes nos gastos sociais e em diminuir os direitos trabalhistas, conquistados após longas jornadas de lutas. Tudo feito sob o discurso governamental, sempre repetido nas horas de crise, que “todos devemos pagar um pouco para sairmos dessa crise”. Quando esse sistema navegava em águas tranqüilas e produzia lucros gigantescos, em nenhum momento se falou em socializar seus ganhos. Haverá quem proporá, bem intencionado, a adoção de medidas políticas em busca de resguardar os trabalhadores, assegurar proteções sociais para os desempregados, expansão da demanda local, atenção às pequenas empresas, que são grandes geradoras de empregos, maior atenção às forças

crônica

Sandra Quintela

prova-se que a fatura do banquete dos ricos e dos países do Norte tem caído, historicamente, sobre as costas dos Estados da periferia e, conseqüentemente, sobre os trabalhadores e trabalhadoras desses países. O FMI já anunciou que estariam disponíveis 250 bilhões de dólares para ajuda aos países emergentes. O G-20 (que reúne 19 países de economias centrais e periféricas, mais a União Européia, FMI e Banco Mundial) também é chamado a contribuir no processo global de salvar o sistema financeiro. Salvar quem de quê? Salvar bancos sem contrapartida nenhuma para a sociedade? São recursos dos contribuintes que estão sendo queimados na fogueira da especulação financeira criada pelo dogma do mercado auto-regulado. Na semana de 12 a 19 de outubro, organizações no mundo todo estão em luta. Por soberania alimentar, contra o pagamento da dívidas financeiras ilegítimas e pela cobrança das dívidas sociais e ambientais. Certamente, novos ciclos de sobre endividamento se avizinham de países como o Brasil, Argentina, México e outros. A conta virá novamente com essa faceta para nós: a continuidade de nossos endividamentos. Recursos públicos – que deveriam atacar os problemas centrais das nossas sociedades, como reforma agrária e urbana, educação e saúde de qualidade, dentre outros – continuarão sendo destinados a pagar a festa do cassino global. Até quando? Mais do que nunca, jornadas de lutas são necessárias. Precisamos enfrentar de forma articulada as crises que nos cercam: a financeira, a de alimentos, a energética e a climática. O que está em risco, mais do que nunca, não é o fim do capitalismo. Eles vão encontrar uma maneira de se reciclar com a crise. O que está em risco é a humanidade. A possibilidade das presentes e futuras gerações terem as suas existências garantidas neste planeta. E quem vai pagar essa conta?

EM TODAS as culturas, a convivência humana e a comemoração das alegrias ocorrem em torno da mesa e dos alimentos. A alimentação tem a finalidade de sustentar a vida biológica, mas vai além disso: é expressão de convívio e instrumento de comunhão fraterna. Infelizmente, esta tradição cultural não é valorizada pela sociedade moderna. Essa prefere o lucro à partilha e valoriza mais a concorrência do que a colaboração. Neste ano, comemoramos o centenário do nascimento do economista Josué de Castro, que, nos anos de 1940, escreveu a Geografia da Fome. Ele afirmava: “O mundo tem recursos suficientes para nutrir uma população muito maior do que a atual. A natureza tem recursos suficientes. É boa e generosa. Os culpados pela fome no mundo são alguns grupos que se apoderam dos recursos naturais e os dividem de forma injusta e ilegal. Vivemos num mundo de abundância em meio à miséria”. Isso que era verdade na época de Josué de Castro ainda é mais real atualmente. De 2007 para hoje, algumas transnacionais de alimentos compraram safras inteiras de cereais para retê-los e, assim, vendê-los por um preço mais caro. Além disso, diversos países desviaram terras do plantio agrícola para a produção de etanol. Por isso, o número de pessoas com fome no mundo aumentou de 850 para 925 milhões. Calcula-se que 178 milhões de crianças, em 62 países, estejam sofrendo de grave desnutrição e corram risco de morte. Em Roma, Jacques Diouf, diretor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), declarou: “O motivo principal desta crise foi a disparada dos preços dos alimentos, impostos pelas transnacionais”. Nos dias atuais, todos os dias, os meios de comunicação dedicam horas e horas a debater a crise da economia estadunidense e a quebra das bolsas, mas não dizem que essa crise do sistema, incapaz de garantir vida para a humanidade, é muito mais grave e estrutural. Desde 1999, a ONU estabeleceu que, cada ano, o 16 de outubro seja o “dia mundial da alimentação”. A FAO não consegue que governos ricos destinem 1,2 bilhão de dólares para acabar com a fome no mundo. Ao mesmo tempo, o governo dos Estados Unidos e seus aliados gastaram, no ano passado, mais de um trilhão de dólares em armas. Mesmo em meio a uma política que continua sendo neoliberal e dependente do pagamento da dívida externa, o governo brasileiro conseguiu uma vitória ao pôr na agenda internacional o conceito de segurança alimentar e nutricional. Não basta garantir alimentos suficientes para todos. É preciso que a produção, transporte e armazenamento proporcionem a todos alimentação suficiente, segura e nutritiva. Este princípio de segurança alimentar e nutricional deve ser objeto de política pública. No Brasil, desde 2003, voltou a funcionar o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), para garantir não só a quantidade, mas a qualidade dos alimentos. A 2ª Conferência Nacional sobre Segurança Alimentar e Nutricional consagrou o direito à alimentação como direito básico de todo ser humano. Finalmente, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) institucionaliza no Brasil o combate à fome e torna este cuidado com a segurança alimentar um dever do Estado, e não só dos governantes. No mundo, o Brasil é o segundo consumidor de defensivos agrícolas e alimentos transgênicos. Apesar de que, em todo o território nacional, enquanto as mulheres camponesas reinventam a agricultura pela seleção de sementes naturais para garantir uma alimentação saudável, cinco grandes transnacionais dominam o mercado do agronegócio e afogam o Brasil com produtos tóxicos, alguns proibidos pela própria sociedade internacional. Já séculos antes de nossa era, Hipócrates, o pai da Medicina, ensinava: “Seja o alimento a tua Medicina”. A garantia de uma boa saúde começa pelo cuidado com o alimento. Todas as tradições espirituais valorizam o alimento como sacramento da relação com o Divino. Cuidar da alimentação sadia e lutar para que ela seja acessível a todos não é somente um princípio de humanidade. É também caminho de intimidade com o Espírito que vem a nós no pão, no vinho e na partilha. No Novo Testamento, um documento atribuído ao apóstolo Tiago conclui: “A religião pura e correta consiste em socorrer os órfãos e as viúvas nas suas necessidades e manter-se livre das corrupções deste mundo” (Tg 1, 27).

Sandra Quintela é socioeconomista da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais/Rede Jubileu Sul.

Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais: Dom Helder Câmara, Profeta para o nosso Tempo. Ed. Rede da Paz, 2006.

Gama

tempestades tropicais no Haiti.” “O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) informou que 300 mil crianças foram afetadas pelos furacões que estão atravessando o Haiti há pouco mais de uma semana. O número representa quase metade dos 650 mil atingidos pelas enchentes e ventos fortes.” Enquanto isso, o governo haitiano, por exigência dos bancos multilaterais e de países credores, continua pagando, mensalmente, cerca de 6 milhões de dólares de juros de sua dívida externa.

Recursos para os povos

Esses milhões e bilhões anunciados todos os dias para socorrer o sistema financeiro representam cifras que, para as maiorias, não dizem nada; mas para alguns representa o significado máximo de suas vidas: a busca pelo lucro, pelo ganho sem limite. Diante dessa crise, o sistema capitalista global parece querer esconder seus dogmas fundamentais, como a idéia apregoada aos quatro cantos de que o mercado se auto-regula e que a economia sem a interferência do Estado funciona muito bem, obrigada. Esses dogmas foram aplicados radicalmente durante os anos de 1980 e 1990 pelas políticas de Ajuste Estrutural, muito comuns naqueles tempos. O FMI e os governos do Sul, como os de países da África, Ásia e América Latina, na sua maioria, aplicaram sem críticas ou pudor essas políticas que agora vão por água abaixo e viram pó como os bilhões que estão sendo destinados a salvar bancos privados nos países do centro do capital. Esse processo de reestruturação do “mercado livre global”, que tem suas raízes na crise de endividamento dos anos de 1980, vem mostrando ao longo dos últimos 25 anos – pelo menos –, que a conta termina chegando para os países da periferia do capital. Pagamos com as privatizações, novos processos de sobre-endividamento, novas faces da dívida pública (como a dívida interna) e a perda de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras (como a reforma da previdência social, pela qual passaram muitos países). Dentre outros indicadores, com-

Marcelo Barros

A mesa da vida

Quem paga a conta somos nós A CRISE que aflige os mercados financeiros tem sido motivo de grande preocupação e está, diariamente, estampada nas manchetes dos jornais de todo o planeta. Não é para menos: milhares de milhões de dólares e euros estão virando pó da noite para o dia. Só na segunda semana de outubro, a Alemanha anunciou um pacote de 470 bilhões de euros de resgate aos bancos; o Reino Unido aplicou 37 bilhões de libras (64 bilhões de dólares) para recapitalizar bancos; a Áustria aprovou um plano de 100 bilhões de euros; a França decidiu ajudar com até 300 bilhões de euros seu sistema financeiro; e, no Brasil, o Banco Central anunciou a liberação de recolhimento compulsório, deixando disponíveis R$ 100 bilhões para o setor financeiro. Querem nos fazer crer que a origem dessa crise se deve ao financiamento da casa própria de cidadãos e cidadãs dos Estados Unidos (EUA). Casas construídas com tijolo, cimento e tudo mais que, aparentemente, aquecem a economia, fazem desmoronar mercados financeiros do mundo inteiro. Hipotecas que se transformam em outros papéis comercializados mundo afora, pelo preço que o mercado diz valer. Sem nenhum tipo de controle para comprovar se eles, de fato, valiam o que os operadores dos mercados financeiros diziam valer. E agora, querem nos fazer crer que “com o aquecimento do mercado imobiliário, as financeiras americanas passaram a confiar de modo excessivo em pessoas que não tinham bom histórico de pagamento de dívidas”. De que modo essas financeiras agem, sobre que tipo de regulamentação e sobre que modalidades de transparência parece significar pouco para justificar a origem da crise financeira. Enquanto isso, a rádio das Nações Unidas noticia: “De acordo com as Nações Unidas, pelo menos 40% dos africanos vivem na pobreza extrema. O secretário-geral da ONU afirmou que a África precisa de 72 bilhões de dólares para alcançar as metas do milênio.” “Atualmente, 1 milhão de pessoas perdem a vida todos os anos para a malária. Para eliminá-la, em nível global, seriam necessários 5 bilhões de dólares até 2009.” “A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) informou que os altos preços dos alimentos levaram mais 75 milhões de pessoas a passar fome no mundo. De acordo com a FAO, o total de famintos em 2007 aumentou para 923 milhões.” “O Fundo Monetário Internacional (FMI) anunciou, dia 25 de setembro, que pelo menos 50 países continuarão sofrendo os efeitos das crises energética e alimentar no próximo ano.” “O Escritório de Assistência Humanitária das Nações Unidas (Ocha), juntamente com várias agências da organização, lançou um apelo de mais de 107 milhões de dólares, o equivalente a R$ 171 milhões, para os sobreviventes de

democráticas das sociedades em detrimento do livre mercado, supremacia do trabalho sobre o capital. Já é um começo para enfrentarmos o cerne da questão: a necessidade de promovermos amplas, radicais e profundas reformas econômicas e políticas, em nível mundial. Os organismos internacionais, como a OMC, FMI e Banco Mundial, não só atestaram sua incapacidade frente a crise como são os gestores dessa crise, e como tais devem ser responsabilizados. É hora de questionar suas políticas internacionais, sempre a serviço dos interesses dos países ricos. Da mesma forma, a hegemonia estadunidense, com sua moeda internacional e uma política monetária irresponsável, fazendo com que o planeta financie seu consumismo irracional e uma política belicista insana, deve ser posta em xeque. Não precisamos de nenhum país governando o mundo para assegurar seus interesses nacionais e, principalmente, os interesses dos seus grupos econômicos. Essas transformações profundas, e necessárias, somente ocorrerão se houver pressão popular das massas trabalhadoras. Se não houver, as elites socializarão os prejuízos e recomporão seu sistema de dominação num novo patamar de exploração da classe trabalhadora. Então, que a crise provocada por eles traga também as lutas populares para as ruas.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


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Em São Paulo, a saúde segue mal PRIVATIZAÇÃO Prefeitura já começou a entregar parte do serviço de atenção à saúde mental para organizações sociais Dafne Melo da Redação O GOVERNO municipal da cidade de São Paulo continua sucateando os serviços de saúde pública por meio da contratação de “pessoas jurídicas de direito privado”, as chamadas Organizações Sociais de Saúde (OSS), para administrar unidades de atendimento. Depois das Assistência Médica Ambulatorial (AMA), Unidades Básicas de Saúde e Programas de Saúde da Família e hospitais, agora a nova investida é contra os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), dedicados ao atendimentos de pacientes com transtornos mentais. Segundo Fábio dos Santos, da diretoria do Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo, todas as unidades abertas a partir de 2006 foram entregues às OSS. Este ano, algumas unidades de Caps II (ver box) foram avisadas que passaram a operar como Caps III (que fornece serviço 24 horas). Entretanto, nessa transição, as OSS entrarão como parceiras. “Temos criticado esses contratos desde 2006 por meio do Conselho Municipal de Saúde, que se posiciona contrário a essa prática, mas eles simplesmente nos ignoram”, afirma Santos. As organizações sociais assinam contrato de concessão com o poder público e passam a administrar um serviço, recebendo uma verba pública correspondente, sem que tenham passado por licitação. O governo estadual de São Paulo também vem lançando mão do expediente. Críticas A prática tem sido duramente criticada por sindicatos e movimentos de trabalhadores da saúde, que acreditam que esse modelo de gestão é inconstitucional e fere os princípios básicos do Sistema Único de Saúde, pois não contrata novos profissionais qualificados e concursados, precariza as relações de trabalho, não garan-

te a integralidade e qualidade do atendimento médico, além de jogar por terra o controle social. De acordo com Clóvis Feliciano, integrante do Conselho Municipal de Saúde, órgão responsável por fiscalizar o SUS no município, os contratos não estão acessíveis aos conselheiros e os critérios de contratação não são transparentes. “Não há nenhum controle social – nem do governo – dessas entidades”, afirma. Segundo Feliciano, as OSS têm metas contratuais a cumprir, o que faz com que o atendimento médico tenha a qualidade comprometida, uma vez que a preocupação é quantidade, não qualidade. “Esse modelo já não funciona e não funcionará nos Caps. A AMA acolhe, dá o remedinho, mas não trata. Se o paciente está com dor de estômago, eles dão o remédio e sequer encaminham para a UBS para saber a causa da dor e fazer o tratamento. Atendem e mandam embora para casa. Não é do interesse deles tratar o paciente, tentar melhorar a qualidade de vida dele, mas apenas computar o atendimento. E no Caps vai ser assim”, argumenta. Privatização Isabel Marazina, psicanalista e professora da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), acredita que a contratação de OSS é uma forma “mais sutil” de se privatizar a saúde. Ela pontua que essa prática é fruto de uma política de Estado que não quer se responsabilizar pelos serviços públicos básicos. “A saúde pública é um problema do qual eles querem se livrar”, avalia. Mesmo que uma OSS seja bem intencionada, ela não conseguiria fazer um bom trabalho, continua Isabel, pois, quando precisa de amparo diante de eventuais dificuldades, não tem a quem recorrer. “O contrato estabelece que o poder público não tem responsabilidade nenhuma quanto à qualidade do serviço”, aponta. A professora, entretanto, acredita que a maioria das OSS

O que são os Caps Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades de saúde pública dedicadas ao atendimento de pacientes com transtornos mentais. Em cada unidade, uma equipe multiprofissional tem como objetivo “oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários”, conforme definição do Ministério da Saúde. O primeiro do Brasil foi implantado na cidade de São Paulo em 1987, mas somente em 1992, por meio de uma portaria, o serviço se integrou ao Sistema Único de Saúde (SUS).

não está de fato comprometida com saúde pública e também não segue os princípios do SUS. “Há um Caps gerido por uma organização ligada à Igreja que distribui santinhos para os pacientes”, denuncia. Como cada unidade é gerida por uma entidade com filosofias próprias, o sistema de saúde fica cada vez mais desarticulado e descontínuo. “Isso gera problemas enormes na área da saúde, na qual o vínculo entre o paciente e o profissional deve ser sólido, pois muitas vezes estamos falando de tratamentos delicados e a longo prazo”, alerta. Defasagem Entretanto, a julgar pela campanha eleitoral, a administração de Gilberto Kassab (DEM) – que tenta a reeleição – quer mesmo é mostrar números. E como a área da saúde mental é extremamente deficitária na cidade, entregar Caps às OSS foi a saída. Mas mesmo essa decisão não foi tomada por vontade política própria. A gestão municipal sofre processo por parte do Ministério Público Federal (MPF), que entende que a cobertura de saúde mental de São Paulo é bastante frágil. A ação, impetrada em maio, aponta que o atendimento e tratamento efetivo dos portadores de transtornos mentais é “insuficiente”. Hoje, a cidade tem 51 Caps (o ideal, de acordo com o Ministério da Saúde, seriam 108) e apenas uma residência terapêutica. Além disso, a cidade possui um número elevado de pacientes psiquiátricos internados: em 2007, eram 295. A ação exige a criação de 57 Caps e 37 residências terapêuticas na cidade, que devem ser entregues paulatinamente, exigindo também as contrapartidas dos governos estadual e federal. A Prefeitura, em audiência, reconheceu que o atendimento é deficitário, mas afirmou que os números exigidos pelo MPF são altos e impraticáveis. O Ministério Público não recuou e reiterou os termos da petição inicial.

A concepção do Caps se insere numa perspectiva antimanicomial, após inúmeras críticas que o modelo de reclusão em hospitais psiquiátricos sofreu a partir da década de 1970 no Brasil. Há quatro tipos de Caps: os voltados para crianças e adolescentes (Caps i), para adultos (Caps I e Caps II), para pessoas com problemas relacionados ao uso abusivo de álcool e drogas (Caps ad) e os que têm funcionamento 24 horas, com leitos de retaguarda (Caps III). Para acelerar a substituição da internação psiquiátrica prolongada, em 2000, o Ministério da Saúde editou uma portaria que cria as residências terapêuticas em saúde mental, moradias ou casas inseridas, preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais que não possuem suporte social e laços familiares e que viabilizem sua inserção social. (DM)

Gama

Justiça pede fim das OSS na capital Juíza federal acatou ação civil pública que pede extinção dos contratos; Tribunal Regional Federal analisará recurso da Redação O avanço das Organizações Sociais de Saúde (OSS) no município de São Paulo sofreu um revés no dia 26 de agosto, quando a juíza Maria Lúcia Ursaia, da 3ª Vara Cível Federal, acatou uma ação do Ministério Público Federal (MPF), de 2006, que pede o cancelamento dos contratos vigentes entre a prefeitura e as OSS. No entendimento do MPF, esse modelo de gestão fere os princípios do direito público e é inconstitucional, uma vez que as entidades privadas são contratadas sem licitação, e também porque terceiriza a prestação de serviços públicos de saúde. Na prática, é a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS). A Justiça Federal dá 90 dias, contados a partir de 2 de setembro, para a prefeitura reassumir as 360 unidades de saúde que hoje estão nas mãos das organizações sociais. Entretanto, como o réu é um órgão público, o Tribunal Regional Federal ainda deverá reexaminar a decisão da juíza. De acordo com Fábio dos Santos, da diretoria do Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo, a prefeitura não se intimidou com a decisão. No dia 7, ela divulgou no Diário Oficial outros contratos com OSS para bairros da zona oeste do município. Assim, se Gilberto Kassab se reeleger, essa deve ser a tônica de sua nova gestão. Sua adversária, Marta Suplicy (PT), também não se mos-

tra refratária ao assunto. Em entrevista à Folha de S. Paulo, ela afirmou: “Temos dois modelos funcionando na saúde: o do SUS e o das organizações sociais. Eles precisam ser aperfeiçoados e funcionar em sinergia”. CPI Esse não foi a único questionamento que as OSS sofreram neste ano. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi instalada na Assembléia Legislativa de São Paulo para averiguar irregularidades nos contratos e nas gestões das OSS. Raul Marcelo (Psol) foi um dos relatores e conta que, apesar de pontos positivos, o relatório final não foi aquele defendido pelo grupo de parlamentares mais críticos às OSS. Entretanto, uma dos pontos positivos é que o Tribunal de Contas do Estado terá que rever todos os contratos para averiguar eventuais irregularidades e mau uso de dinheiro público. Nas visitas que fez em hospitais e outras unidades de saúde, Marcelo afirma que de fato há uma maior preocupação com quantidade do que com qualidade. Um outro argumento das gestões públicas entusiastas desse modelo é que ele é menos custoso ao Estado. “De fato é, porque há uma superexploração de mão-de-obra, com salários baixos, funcionários fazendo jornadas duplas, triplas. Em muitos lugares que visitei, os funcionários não davam informação porque morriam de medo, quando eram convocados e então tinham que fa-

lar, eram evasivos”. O deputado também verificou que nessas unidades havia uma alta rotatividade de funcionários, “o que evidencia que as condições de trabalho não são boas”. Responsabilidade fiscal Segundo Marcelo, para entender a intensificação da adoção das OSS, é necessário ter como pano de fundo o grave quadro de endividamento do Estado brasileiro. “Elas são subproduto desse endividamento. Agora, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, há um teto para se gastar com contratação de pessoal, o que impossibilita o Estado de ampliar serviços públicos. Essa verba das OSS sai da rubrica de investimentos. Então, é um jeito de escapar da Lei, precarizando o atendimento e o trabalho, claro”, analisa. O deputado aponta que neste ano já foram gastos, no Estado, R$ 1 bilhão com as OSS. “Não é uma verba satisfatória para a Saúde, mas totalmente suficiente para se gerir os 13 hospitais estaduais na mão das OSS hoje, com qualidade muito superior”, pondera. Marcelo conta que o velho argumento de “problema técnico de gestão” e de “busca de melhorias” foram usados para privatizar esses hospitais, mas que, na prática, a qualidade continua ruim. “Não é problema técnico de gestão, é problema de investimento, de prioridade. O que resolve a saúde é investimento pesado na administração direta e controle social efetivo”, conclui. (DM)




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brasil

Aeroportos são último filé das privatizações ECONOMIA Grandes empresas já se preparam para comprar Viracopos e o Galeão Wilson Dias/Abr

Miguel Enrique Stédile e Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS) O ÚLTIMO setor de infra-estrutura público do país deverá ser privatizado a partir de 2009. O Conselho Nacional de Desestatização publicou resolução no dia 9 iniciando o processo de entrega dos aeroportos de Viracopos, em Campinas (SP), e do Galeão, no Rio de Janeiro (RJ), para administrações privadas. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, e o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) estão responsáveis pela elaboração da proposta. Entretanto, as primeiras declarações apontam para a repetição do modelo implementado no governo Fernando Henrique Cardoso (19952002): entrega das áreas mais lucrativas com financiamento estatal do BNDES. A pressão pela retirada do Estado da Infraero ou dos aeroportos controlados pela estatal não é recente. A ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, defende a proposta há mais de dois anos. Com o “Apagão Aéreo” e as tragédias nos vôos da Gol (2006) e da TAM (2007), a proposta ganhou força no governo e no Congresso, onde os mais ferrenhos defensores estão no DEM, do senador Demóstenes Torres (GO), relator da comissão parlamentar de inquérito (CPI) do Setor Aéreo, e do ex-senador Jorge Bornhausen (SC).

de Porto Alegre (RS) A declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de que “o governo não tem mais que cuidar de aeroporto”, funcionou como sinal verde para que as empresas de capital estrangeiro já se preparassem para as privatizações do setor. Um dos primeiros interessados é o fundo de investimentos estadunidense Advent, que já controla 13 aeroportos na América Latina e Caribe. Construtoras como a Camargo Corrêa e a Odebrecht também deverão participar dos leilões. A Odebrecht participa atualmente de um consórcio para privatização de um novo aeroporto em Lisboa (Portugal). Já a Camargo Corrêa associou-se às empresas Unique, operadora do aeroporto de Zurique (Suíça), e Gestión e Ingeniería IDC, do Chile, para formar a A-Port, que controla nove aeroportos internacionais. A CCR Rodovias, que controla oito estradas no país, notabilizadas pelos altos pedágios, como a Dutra e a Bandeirantes, já estuda uma mudança estatutária para tam-

Professores em jejum Vinte e oito educadores das escolas itinerantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pais de alunos protestam na porta da Secretaria de Educação do Estado (SEC), em Porto Alegre, por meio de greve de fome, contra a política da governadora Yeda Crusius (PSDB) para a educação, especialmente nas zonas rurais. O Pelotão de Choque da Brigada Militar despejou-os no dia 13. No dia 14, entretanto, retornaram à frente do prédio e prosseguem o jejum, mesmo com novas ameaças de despejo da Brigada Militar. No dia 10, cerca de 600 crianças do MST realizaram uma manifestação no centro de Porto Alegre exigindo mais verbas para a educação no campo, a manutenção do convênio com as escolas itinerantes, a criação de mais escolas em assentamentos, a contratação de professores e transporte escolar. Segundo jornalista estadunidense Jeremy Bigwood, o seu país, por meio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, sigla em inglês) e do Fundo Nacional para a Democracia (NED), tentou desestabilizar e tirar o atual presidente boliviano Evo Morales do cenário político antes mesmo de ele assumir o cargo de chefe de Estado da Bolívia. Seis documentos demonstram o intervencionismo de Washington no país sul-americano desde o início dos anos de 1990.

Modelo “privatiza filé e deixa osso para o Estado e o povo”

“A idéia é privatizar o filé e deixar o osso para a União, para o Estado e o povo sustentarem”, denuncia Celso Klafke, presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores em Aviação Civil

dência, Bornhausen foi vicepresidente da Brasif, empresa que explora os free shops dos terminais internacionais. Segundo Celso Klafke, presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores em Aviação Civil (Fentac), o país possui seis aeroportos superavi-

tários que sustentam os demais. “A idéia é privatizar o filé e deixar o osso para a União, para o Estado e o povo sustentarem”, denuncia. Antes de ser privatizado, o aeroporto de Viracopos receberá ainda R$ 500 milhões em recursos públicos para construção de uma nova pista. “A privatização não tem nada a ver com os problemas que ocorreram no setor”, afirma Klafke, para quem o problema do sistema aéreo está nas terceirizações e no alto número de cargos de confiança na estatal. “A Infraero é uma empresa lucrativa, ela tem dado lucro. O que falta para o órgão melhorar os aeroportos no país é uma política de gestão administrativa. E nós entendemos que não é privatizando que vai se conseguir resolver isso”, conclui.

Futebol

Depois das tragédias aéreas, o novo argumento dos privatizadores é a realização da Copa do Mundo de 2014. “Isso é um falso argumento. Tu vais privatizar um aeroporto

Quanto

500 milhões

de reais em recursos públicos serão investidos em Viracopos antes da venda

para a Copa do Mundo. Passou a Copa do Mundo, tu fazes o que com ele?” rebate Klafke. Segundo ele, essa é uma falsa discussão. “Nós temos problemas sérios de infra-estrutura no Brasil, não só nos aeroportos. Por exemplo, em Porto Alegre, existe trem urbano, mas não metrô”. No Brasil, o único aeroporto de médio ou grande porte administrado por uma empresa privada é o de Porto Seguro (BA). Construído pelos governos federal e estadual, foi adquirido há nove anos pela Sinart, empresa que pertencia originalmente ao grupo Odebrecht. A Sinart opera também o aeroporto municipal de Juiz de Fora (MG) e outros aeroportos de pequeno porte na Bahia, além de diversas rodoviárias no país.

Capital estrangeiro está de olho Empresas dos Estados Unidos, Portugal e Suíça se organizam para participar, ao lado de gigantes brasileiras, das privatizações

saiu na agência

Intervenção dos EUA

Interesse privado

Há um ano, a Fundação Liberdade e Democracia, vinculada ao DEM e presidida por Bornhausen, apresentou um modelo de privatização dos aeroportos que reduzia o papel da Infraero à fiscalização das concessionárias e entregava 66 aeroportos para apenas três grandes empresas. Por coinci-

www.brasildefato.com.br

bém entrar na disputa pelos aeroportos. A CCR é controlada pela portuguesa Brisa, pela Camargo Corrêa e pela Andrade Gutierrez. Além da CCR, a Andrade Gutierrez e a Camargo Corrêa também estão juntas, assim como a Odebrecht, no consórcio Via Amarela, responsável pelo desabamento das obras do metrô de São Paulo (SP) que deixaram sete mortos em janeiro de 2007. Maior empresa aérea do país, com o princípio declarado de “o lucro acima de tudo”, e principal responsável pela tragédia do vôo 3054, a TAM também já declarou a intenção de também participar do processo, assim como a Azul Linhas Aéreas, do empresário estadunidense David Neeleman. Ambas propõem a administração dos terminais de passageiros pelas próprias empresas.

Modelo fracassado

Em tempos em que os países mais ricos do mundo estatizam desesperadamente os bancos privados, a cantilena da privatização já soa estranha e arriscada. E a experiência de desestatização de outros aeroportos internacionalmente não dá indícios de que seja um bom negócio para o público. No México, os aeroportos, privatizados há 10 anos, conseguiram irritar até as empresas aéreas. Em nota oficial, em novembro de 2007, a Associação de Transporte Aéreo Internacional (IATA) considerou as privatizações mexicanas como um “fracasso”, porque os lucros não são reinvestidos em infra-estrutura, estrangulando o tráfego aéreo. O lucro das concessioná-

rias no México alcança margens de 58%. “Em alguns lugares da América Latina, ter a concessão de um aeroporto é a mesma coisa que ter autorização para imprimir dinheiro”, declarou na ocasião Giovanni Bisignani, diretor da IATA. Segundo a organização, enquanto a margem de lucro internacional com aeroportos é de 1%, na América Latina este número chega à média de 46%.

“Em alguns lugares da América Latina, ter a concessão de um aeroporto é a mesma coisa que ter autorização para imprimir dinheiro”, declarou na ocasião Giovanni Bisignani, diretor da IATA O caso mais grave provavelmente seja o dos argentinos. Dos 54 aeroportos do país, 34 são administrados por empresas privadas. Destes, 32 pertencem ao grupo Aeropuertos Argentina 2000 – AA2000. O principal acionista da empresa é Eduardo Eurnekian, um empresário do ra-

Quanto

33% dos aeroportos

privados na Argentina não possuem infra-estrutura de combate a incêndios

mo têxtil e de TV a cabo, amigo dos ex-presidentes Carlos Menem e Néstor Kirchner, também investigado na Itália por fraudes fiscais em uma companhia aérea.

“Shoppings”

Enquanto as taxas aeroportuárias aumentaram, em média, 30% nos aeroportos privatizados, o lucro das concessionárias não foi revertido nem em impostos nem em infra-estrutura. Há dois anos, a AA2000 foi cobrada por dívidas fiscais que resultaram em reestatização de 20% do capital da empresa em troca das dívidas. Neste ano, a Auditoria Geral da Nação (AGN) denunciou que um terço dos aeroportos em mãos privadas não possui estrutura de combate a incêndios. Segundo a AGN, 34% não possuem rede de água e 65% não contam com sistemas de alarme. “São shoppings, não aeroportos”, concluiu a auditoria. Assim como o receituário neoliberal, a fórmula de privatização parece valer apenas para os países pobres. Nos Estados Unidos, país que concentra 50% da aviação mundial, todos os 3.361 aeroportos com linhas comerciais são estatais, de propriedade dos governos locais ou regionais. O último aeroporto controlado por uma empresa privada foi estatizado em outubro de 2007. (MES e RC)

Superpopulação carcerária

O sistema carcerário do Estado de São Paulo concentra 50% mais presos do que sua capacidade. A informação consta do último Censo Penitenciário, realizado em junho pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão do Ministério da Justiça. A superlotação, para o coordenador da Pastoral Carcerária, padre Valdir João Silveira, não surpreende. De acordo com o padre Valdir, a superlotação é resultado da má atuação do Judiciário, que mantém as pessoas presas por muito tempo, às vezes meses, sem julgamento. Além disso, para ele, o aprisionamento em massa, aliado às más condições das cadeias, só contribui para fortalecer as organizações paralelas nas prisões, que tentam assumir um papel que as autoridades não desempenham mais. Marcello Casal Jr./ABr

fatos em foco Em decomposição Atingida por oscilações bruscas e a instabilidade do sistema financeiro, a Bolsa de Valores de São Paulo fechou no dia 10 com queda acumulada neste ano de 45% dos valores das ações, inclusive as da Petrobras e da Vale, adquiridas pelos trabalhadores que aplicaram parte do FGTS nessas empresas. Analistas financeiros continuam garantindo que essas ações vão recuperar os valores de antes da crise. Será mesmo? Balança ameaçada O dólar saltou de R$ 1,55, em 1º de agosto, para R$ 2,31, em 12 de outubro, um aumento de quase 50% em dois meses e meio. Se permanecer nesse patamar, com certeza vai provocar elevação da inflação em setores que dependem de matériasprimas e componentes importados. De outro lado, os setores exportadores, que em princípio seriam favorecidos com a valorização do dólar, tendem a perder mercado com a crise internacional. Lobão saudosista Durante seminário na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, o ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, tratou de reescrever a história do Brasil: ele disse reiteradas vezes que a ditadura militar (19641985) não foi uma ditadura, mas um “regime de exceção”. E fez vários elogios ao “regime de exceção” dos generais. Racha sindical Em campanha contra o imposto sindical e a unicidade, o Sindicato dos Servidores Públicos Federais do Distrito Federal distribuiu a seguinte nota: “Há poderosos interesses em favor da manutenção

Hamilton Octavio de Souza do imposto e da unicidade sindical. Também há a oportunidade de revogá-los. É o momento de todos aqueles que não têm rabo preso nem com o governo e nem com os patrões se unirem, junto com a CUT, para acabar com esses dispositivos legais”.

Pergunta obrigatória Os principais bancos brasileiros registraram, nos últimos 15 anos, seguidos recordes de lucratividade, mesmo nos momentos de crescimento econômico zero, desemprego alto e queda geral de poder aquisitivo dos trabalhadores. Será que a crise atual vai acabar com essa “tradição” de lucros acima de qualquer outra atividade? Resistência midiática Será realizado de 20 a 23 de novembro, no Rio de Janeiro (RJ), o 14º Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação, que trata do tema “Mídia dos Trabalhadores e Política”. A mesa de abertura, sobre “A Comunicação do Império e a Resistência dos Movimentos Sociais”, contará com João Pedro Stedile, do MST, e Ignácio Ramonet, do Le Monde Diplomatique. Castigo cruel De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, o lavador de carros David Gedison de Oliveira está preso desde o dia 11 de setembro no Centro de Detenção Provisória do Belém, em São Paulo (SP), sob a acusação de roubar R$0,80 (oitenta centavos) da vítima. David, de 30 anos, pai de dois filhos, alega que teria pedido o dinheiro para completar a passagem do ônibus. O Ministério Público negou o pedido de liberdade provisória.


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Movimentos sociais pressionam, e Syngenta cede área para o governo do Paraná Solange Engelmann

SOBERANIA Após dois anos e meio, três ocupações e a morte de um militante, transnacional suíça abandona área em que plantava sementes transgênicas

A TRANSNACIONAL suíça Syngenta Seeds cedeu uma área de 127 hectares, em Santa Tereza do Oeste (PR), para o governo do Estado do Paraná. A assinatura da escritura de cessão foi feita, no dia 14, após uma série de denúncias sobre a realização de experimentos ilegais com milho e soja transgênicos na zona de amortecimento do Parque Nacional do Iguaçu, no oeste paranaense. Ciente das irregularidades, a Via Campesina ocupou a área, que ganhou o nome de acampamento Terra Livre, em março de 2006, exigindo sua desapropriação. Decisões judiciais obrigaram os militantes a abandonar o terreno, que voltou a ser ocupado outras duas vezes. Na última delas, em 21 de outubro de 2007, uma milícia formada por cerca de 40 homens armados contratada pela empresa suíça disparou contra os trabalhadores. A ação resultou na morte do dirigente da Via Campesina, Valmir Mota de Oliveira, conhecido como Keno. Em nota, a coordenação da Via Campesina no Paraná, celebrou o desfecho: “a vitória só foi possível por causa da luta incansável e da resistência dos camponeses, que permaneceram acampados na região por mais de dois anos”. Além de agradecer ao apoio de movimentos sociais brasileiros e internacionais, a Via Campesina

ressaltou a importância da posição do governo do Paraná na resolução do conflito, em favor dos trabalhadores rurais. Agora, a área passará a ser administrada pelo Instituto Agronômico do Paraná (Iapar). Este vai se dedicar a produzir e distribuir sementes crioulas aos pequenos agricultores do Estado e para países como Haiti, Cuba e Jamaica que, recentemente, foram devastados por furacões. A Via Campesina manifestou que vai solicitar ao governo que a área seja transformada em um centro de referência de sementes crioulas, que seria administrado por uma parceria entre o poder público e o movimento social.

Milho orgânico plantado durante ocupação

“A vitória só foi possível por causa da luta incansável e da resistência dos camponeses, que permaneceram acampados na região por mais de dois anos”, afirma nota da Via Campesina parcerias com o Iapar no local, bem como com os movimentos sociais. “Não temos problema em agir em conjunto com a empresa em pontos em que haja interseções. Temos diferenças com a empresa em relação aos transgênicos e aos oligopólios”, afirma Bianchini.

O secretário afirma ter compartilhado, em conversa com os movimentos sociais, da “alegria” dos agricultores perante a decisão. “Em relação aos movimentos sociais, temos muitas intersecções. Principalmente, quando os movimentos defendem a agricultura sustentável e a preservação

Para Darci Frigo, coordenador executivo da ONG Terra de Direitos, o fato é um importante avanço na luta dos trabalhadores rurais. “O fato de a Syngenta ter cedido a área para o Estado do Paraná coroou uma grande luta dos camponeses no mundo inteiro. A luta contra os crimes da Syngenta também foi importante para mostrar a cara do agronegócio e das transnacionais que hoje dominam cada vez mais a agricultura e os agricultores. Essa foi uma luta de insubordinação a esse modelo regido pelas transnacionais”, afirma o coordenador da ONG, que foi a primeira entidade a receber denúncias sobre o plantio de transgênicos pela Syngenta. Para ele, o fato de a transnacional ter saído da área não pode ser usado como forma de esquecer os acontecimentos que ocorreram no local. “Os camponeses precisam que a justiça seja feita e que os responsáveis pelo assassinato de Keno sejam punidos. Eles não podem ser inocentados só porque cederam a área. Também queremos o fim das perseguições aos agricultores que foram criminalizados”, defende Frigo. (Colaboraram Luís Brasilino, da Redação, e Solange Engelmann, de Curitiba - PR)

Transnacional tem histórico de contaminações da Redação A Syngenta não é uma empresa qualquer. A transnacional da Suíça é simplesmente a responsável pelo maior caso de contaminação genética comprovado no mundo. A revista estadunidense Nature revelou, no dia 31 de março de 2006, que a corporação comercializou por quatro anos nos Estados Unidos um milho transgênico sem a autorização dos órgãos reguladores. Ou seja, sem qualquer pesquisa sobre os efeitos para a saúde humana e animal e para o meioambiente. Nesse período, a variedade Bt10 era vendida misturada com a Bt11, essa sim aprovada.

O produto foi exportado para diversos países, dentre eles alguns da União Européia, a África do Sul, a Argentina, o Canadá, o Japão e o Uruguai. O Brasil, que não permitia a importação de milho transgênico, não deve ter sido afetado. De acordo com a Nature, as alterações genéticas ao grão foram realizadas de modo a conferir-lhe resistência ao antibiótico ampicilina. Isso significa que o gene modificado, ao entrar em contato com bactérias presentes no estômago de pessoas e animais, pode conferir ao organismo resistência a esse antibiótico, um dos mais utilizados atualmente. De acordo com a Syngenta, a mistura teria sido acidental.

Para deputados, conquista é resultado da mobilização Parlamentares destacam o conteúdo político da resolução do conflito Mayrá Lima de Brasília (DF) Na avaliação do deputado federal Adão Pretto (PT/RS), os movimentos sociais saíram vitoriosos do conflito com a transnacional suíça Syngenta. “Isso é uma vitória extraordinária da Via Campesina do Brasil. Mostra que a luta não foi em vão. O governo do Paraná já havia pedido as terras, mas agora, legalmente, estão em posse da área. Agora, ali, que vai ser um laboratório de sementes crioulas, vai ser um ótimo contraponto aos transgênicos, que agridem o meio ambiente, não só nacionalmente, mas também no nível latino-americano”, conclui. Dr. Rosinha (PT/PR) acredi-

ta que a conquista é do movimento social porque a luta não era restrita à conquista da propriedade, mas sim em protesto ao modo como a área estava sendo usada. “Nesse protesto, mesmo que tenha custado, infelizmente, a vida do Keno, a Syngenta acabou sendo derrotada. É uma vitória da Via Campesina e uma derrota da Syngenta, que foi denunciada por cometer crimes de contaminação ambiental e por ter matado um militante.”

A luta da Via Campesina no acampamento Terra Livre sempre foi para que a área de experimentos ilegais de transgênicos da Syngenta fosse transformada em um centro de agroecologia e reprodução de sementes crioulas para a agricultura familiar e a reforma agrária. Na opinião de Roberto Baggio, da coordenação estadual da Via Campesina, o acampamento tem um caráter simbólico, pela resistência ao agronegócio internacional vinculado à burguesia regional.

Resultado da luta

Repercussão

O secretário de Agricultura e Abastecimento do Paraná, Valter Bianchini, celebrou o encerramento do conflito. “A nossa avaliação sobre o desfecho desse processo é altamente positiva. Vamos destinar essa área para realizar pesquisas e produzir sementes para um programa estadual que será voltado a comunidades indígenas, quilombolas e assentamentos de agricultura familiar. Também aproveitaremos o espaço do Parque Estadual para realizar pesquisa florestal. A área é de terra bastante produtiva e bem estruturada, e o oeste do Estado tende a ganhar com a presença do Iapar na região”, explica. O secretário afirma que a transnacional terá algumas

Cronologia do embate

MST/PR

Renato Godoy de Toledo da Redação

de semente crioulas. Essa ação de hoje é um avanço a mais, para uma agricultura não apenas preocupada com a produtividade, mas também com o processo de inclusão social e ambiental. Acreditamos que a Via Campesina, o MST e outros movimentos contribuirão muito para os avanços da nova estação do Iapar”, comenta o secretário.

Já Chico Alencar (PSOL/RJ) destaca que a conquista revela que existe um caminho, “que é possível fazer diferente”, e que os governos não só podem como devem estar voltados para atender aos interesses da maioria da população. “É uma vitória de quem deu a vida para protestar. Uma notícia muito boa que pode se espalhar para outros cantos do Brasil. Uma outra produção agrícola que interessa à população é possível e necessária”, completa. MST/PR

Marcas de balas na guarita da Syngenta

Keno construiu o MST em vários Estados do Brasil da Redação Membro da Via Campesina e do MST, Valmir Mota de Oliveira, o Keno, tinha 34 anos e é lembrado pela maioria das pessoas da região pela sua militância incansável. Deixou o Paraná com 17 anos e partiu para outros Estados, nos quais organizou brigadas e acampamentos. Chegou a viver no Sergipe, Bahia e no Maranhão. Passou 10 anos em Brasília ajudando a construir o MST ao redor da capital do país. Seus pais, João Mota de Oliveira e Evanir de Oliveira, estão há 23 anos no MST. Há um ano, instalaram-se em um assentamento. Keno também teve chance de ser assentado, mas preferiu ficar nos trabalhos de formação da organização no movimento. Como a sua mãe disse: “Ele estava sempre disposto a ir para outros lugares, dizia que não podemos deixar as famílias passando fome”. Em maio, a Brigada de Audiovisual da Via Campesina produziu o documentário Nem um minuto de silêncio!, que relata as circunstâncias e o contexto no qual Keno foi assassinado. O trabalho pode ser encontrado na internet, no endereço eletrônico do MST ou no YouTube.

8 de março de 2006. O Ibama encontra soja e milho transgênico em 14 áreas dentre as 18 denunciadas na região do Parque Nacional do Iguaçu. 14 de março de 2006. Área de experimentos da Syngenta é ocupada por cerca de 600 integrantes da Via Campesina. 16 de março de 2006. A Syngenta consegue na Justiça a reintegração de posse da área. 21 de março de 2006. A transnacional é multada pelo Ibama em R$ 1 milhão por crime grave contra a biossegurança, ao plantar milho e soja transgênicos na zona de amortecimento do Parque Nacional do Iguaçu. Outubro de 2006. O poder Judiciário paranaense determina a desocupação da área e o pagamento de multa de R$ 50 mil pelo Estado do Paraná por cada dia de descumprimento, caso o governador não fizesse o despejo. 31 de outubro de 2006. O governo federal edita uma medida provisória feita especialmente para a transnacional Syngenta. A nova legislação determina que as zonas de amortecimento (perímetro que circunda unidades de conservação ambiental) sejam definidas caso a caso. Antes, o raio fixo era de 10 quilômetros. 13 de novembro de 2006. O governador do Paraná, Roberto Requião (PMDB), anuncia a desapropriação por interesse público da área de 127 hectares da transnacional suíça. Fevereiro de 2007. O Judiciário do Paraná suspende a desapropriação. A partir daí, inicia-se um embate entre o governo do Estado e o Judiciário, que buscava cumprir a reintegração de posse. Os acampados da Via Campesina chegam a deixar uma vez a área, para retornar novamente. Julho de 2007. Membros da Via Campesina deixam o acampamento e se deslocam para o assentamento Olga Benário, próximo à propriedade da Syngenta. 21 de outubro de 2007. Milícia contratada pela Syngenta promove ataque contra 300 trabalhadores rurais. Eles haviam voltado ao acampamento pela manhã e, às 13h30, 40 paramilitares contratados pela companhia invadiram a área atirando. Valmir Mota de Oliveira, o Keno, foi assassinado com dois tiros à queima roupa. Izabel Nascimento de Souza, depois de ser espancada, recebeu um tiro no olho. O projétil instalou-se no pulmão da semterra que, após alguns dias em coma, conseguiu sobreviver, ainda que tenha perdido a vista. Gentil Couto Vieira, Jonas Gomes de Queiroz, Domingos Barreto e Hudson Cardin também foram feridos. Os semterra permanecem na área. Junho de 2008. Justiça obriga os camponeses a, novamente, sair da área. 14 de outubro de 2008. Syngenta cede a área ao Estado do Paraná para que seja nela sejam produzidas e multiplicadas sementes crioulas.


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População critica projeto de barragens “secas” do governador Aécio Neves ENERGIA Em Minas Gerais, governo do Estado planeja a construção de três barragens e ignora o destino de mais de 6 mil pessoas Alexania Rossato

Alexania Rossato de Itajubá (MG) “A CONSTRUÇÃO de um sistema de barramentos no sul de Minas vai acabar com o problema das enchentes do rio Sapucaí que atingem os centros urbanos de Itajubá, Santa Rita do Sapucaí e Pouso Alegre”. Essa é a propaganda da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), que, desde meados de 2007, tem transformado a realidade da região e tirado o sono de muitos moradores atingidos pelo projeto. Estão previstos grandes muros que, em período de cheias, represarão três rios em sua calha principal. Ao invés da água correr, ela ficará represada e escoará através de comportas. Teoricamente, depois dos muros não haveria mais enchentes, mas a região localizada antes dos barramentos ficaria completamente alagada. Estima-se que as inundações devem atingir até 3.142 hectares de terra, onde vivem 850 famílias. O projeto é do governo do Estado de Minas Gerais. Ele injetou R$ 310 milhões na Copasa para a construção das barragens de Sapucaí-Itajubá, que atingirá áreas dos municípios de Itajubá, Wenceslau Brás e Piranguçu; Lourenço Velho, que provocará impactos nas cidades de Itajubá e Maria da Fé; e Vargem Grande, que vai afetar Santa Rita do Sapucaí.

Propaganda oficial

À primeira vista, o projeto está sendo implantado sem maiores problemas. Houve uma ampla divulgação na mídia estadual quando o governador Aécio Neves (PSDB) liberou o recurso. Atualmente, os técnicos estão nas comunidades fazendo as medições das benfeitorias e demarcando a área de abrangência do lago. De seu lado, a sociedade em geral, que não tem conhecimento profundo do caso, acredita que os barramentos resolverão o problema das cheias.

“Não existe projeto de relocação das famílias que vivem em bairros com mais de 200 anos de ocupação. Lá, existem igrejas com mais de 100 anos de construção, é a tradição de um povo que não está sendo respeitada”, observa professor da Universidade Federal de Itajubá

Porém, esse não é o real cenário que se encontra ao visitar a região. Um clima de tensão está instalado entre os moradores e a Copasa, que não realizou nenhuma audiência pública de esclarecimento. A maioria das famílias atingidas está desesperada, sem garantia de indenização e de novos locais de moradia e trabalho. Além disso, o projeto não tem o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), premissa básica para o início de qualquer obra, e os órgãos de regulação e fiscalização, como o comitê de bacias e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), não foram consultados.

Quanto

850

famílias serão atingidas pelas barragens Desinformação

Os moradores das áreas a serem alagadas também criticam a falta de informações sobre o projeto e a forma autoritária como ele vem sendo imposto pela companhia de abastecimento estadual. Em entrevista à imprensa local, Márcio Vasconcelos Nunes, diretor da Copasa, afirmou: “cerca de 6 mil pessoas atingidas pela obra não podem impedir o benefício das 70 mil que ficam desalojadas com as cheias”. No entanto, as grandes cheias acontecem, em média, a cada seis anos e, nesses intervalos, a cidade cresceu onde não deveria ter crescido. As prefeituras permitiram que fossem aprovados loteamentos em áreas que historicamente já tinham enchentes. “Então, é errado dizer que o rio invadiu nossas casas, pois na verdade foram as casas e as fábricas que invadiram os rios”, revela Alexandre Santos, professor do Centro de Excelência em Eficiência Energética da Universidade Federal de Itajubá (Unifei). Ele faz uma crítica contundente aos barramentos. “A implantação está sendo feita de maneira totalmente arbitrária, não existe projeto de relocação das famílias que vivem em bairros com mais de 200 anos de ocupação. A chance de declínio econômico dessas famílias é enorme, pois são bem estruturadas e com alta geração de emprego e renda. Lá, existem igrejas com mais de 100 anos de construção, é a tradição de um povo que não está sendo respeitada. E o pior é que essas obras não possuem EIA/RIMA. O único documento que viabiliza a construção é o Relatório de Controle Ambiental (RCA) emitido pelo secretário de meio ambiente de Minas Gerais [José Carlos Carvalho] e que não serve de base para um projeto de grandes impactos como esse”, declara.

Na frente da barragem

Segundo estudos desenvolvidos pela Unifei, as barragens, tal como estão projetadas, não resolverão o problema das cheias nas três cidades mais atingidas: Itajubá, Santa Rita do Sapucaí e Pouso Alegre. Conforme as conclusões do estudo, “um dos maiores pontos de discussão entre os engenheiros da Copasa e os acadêmicos da Universidade Federal de Itajubá, que pode configurar um erro de projeto, é a metodologia e os resultados apresentados para os cálculos das vazões e tempo de retorno ao leito normal, pois vários trabalhos técnicos dos acadêmicos da Unifei apresentam valores muito destoantes dos apresentados no projeto da Copasa. Devido a esse fato, muitos professores afirmam que os valores do projeto estão subdimensionados”. O professor Santos diz ainda que, do ponto de vista técnico, o projeto é ineficaz e em 20 anos as barragens estarão com 50% de sua efetividade superada. A previsão é de que, em períodos de cheias, o lago da barragem permaneça por cerca de 15 dias até a liberação total da água pelas comportas. Segundo ele, posteriormente ao represamento da água, ocorrerá um problema ambiental incalculável em função da lama acumulada, propícia à proliferação de mosquitos e mau cheiro que atingirão diretamente a cidade de Itajubá, a qual, em linha reta, fica a pouco mais de um quilômetro de uma das barragens. “O preço que se pagará será enorme frente ao pequeno benefício dessas barragens”, conclui.

Vista do bairro São João, que será desapropriado para a construção da barragem

Terras atingidas e violação aos direitos humanos Moradores das regiões atingidas pelas barragens secas sofrem tortura psicológica de Itajubá (MG) O bairro São João, responsável por 12% da receita do município de Maria da Fé, será um dos atingidos pela construção de barragens no rio Sapucaí, no sul de Minas Gerais. Uma tonelada diária de doces da fábrica Pé da Serra segue para Belo Horizonte (MG), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ), destino final também da produção de dezenas de outras companhias de doces e de engenhos que empregam cerca de 500 jovens do bairro São João e de outras comunidades. A pequena fábrica Pé da Serra emprega 13 pessoas, entre elas Valéria Batista Gonçalves, que trabalha no local há um ano e vê nas barragens apenas desemprego para os moradores locais, uma preocupação da maioria. Raquel Dias Gonçalves, presidente da associação do bairro São João, afirma que existem alternativas que provocariam menos impactos para a população. “Não queremos viver de cesta básica. Somos trabalhadores. Deveriam investir em outras formas de prevenção das cheias, como o reflorestamento do topo dos morros, para que a água da chuva infiltre e não desça serra abaixo, e o desassoreamento do rio”, sugere a líder comunitária, que se orgulha em dizer que seu bairro é o que menos dá problemas com a polícia em toda a região.

“Vieram tirar fotos das casas e das escrituras sem autorização nenhuma para entrar, eu fiquei muito sem jeito em ver esses estranhos entrando na minha casa, medindo e tirando fotos de todos os lugares”, conta agricultor

reito. Já houve o caso de duas mortes nas comunidades e vários de depressão. Dona Raquel conta que, a partir do momento em que os empregados da Copasa entraram no bairro, os idosos foram piorando e, nos últimos meses, dois moradores faleceram de enfarte. “No dia em que um deles enfartou, ele chorava e perguntava para a esposa: o que vai ser de nossa vida?”, diz. Dona Elisa Maria, que vive na região há 33 anos, precisou levar seu marido de 78 anos para São Paulo para fazer tratamentos de saúde, a qual piorou muito depois que vieram medir sua casa. “Ele agora tem depressão, a gente lutou tanto para ter isso aqui e eles vão destruir tudo de uma hora para outra. Foi isso que deixou ele doente. Eu saí de casa quando eles vieram, não gostei nada deles entrarem na minha casa e me ameaçar”, relata.

“Vieram tirar fotos das casas e das escrituras sem autorização nenhuma para entrar, eu fiquei muito sem jeito em ver esses estranhos entrando na minha casa, medindo e tirando fotos de todos os lugares”. O que mais intimida as famílias é a ameaça de que, se não deixarem medir suas casas, não receberão indenizações ou terão que ir até Belo Horizonte garantir seu di-

Sem resposta

Situações com essa estão sendo comuns e muitos já questionam: o que está por trás dessa barragem? A mesma pergunta foi feita pelo comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Sapucaí: a quem interessa a construção das barragens, uma vez que outras soluções podem ser dadas, inclusive de forma a resultar em menores custos e maiores ganhos Alexania Rossato

Constrangimentos

No entanto, o que tem tirado o sossego de dona Raquel e da maioria das 850 famílias que serão atingidas é a forma como a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), responsável pelas obras, se aproximou das comunidades. Os empregados que estão fazendo as medições de terras, casas e galpões estão impondo situações constrangedoras, prejudicando as relações de trabalho e colocando em risco a saúde e a vida das pessoas. “Eu tenho um capãozinho de mato para plantar e colher e a indenização é uma vez só, né...”, diz um agricultor. Já outro declarou: “A gente fica perdido porque não tem informação. Eu mesmo já pensei em ir embora daqui”. Um terceiro disse que se sente acuado:

Dona Elisa Maria: pressão deixou o marido doente

Quanto

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pessoas morreram de enfarte após o início do projeto sociais e ambientais? Em carta destinada ao governador Aécio Neves (PSDB), o comitê questiona a autorização dada pelo governo à Copasa para construção das obras. Ainda menciona suas funções, entre elas promover o debate das questões relacionadas a recursos hídricos e articular a atuação das entidades intervenientes e arbitrar, em primeira instância, os conflitos relacionados aos recursos hídricos. Porém, o comitê sequer foi consultado. Em entrevista à imprensa local, o governador afirmou: “O nosso objetivo é que realmente, até o ano de 2010, nós tenhamos os três barramentos concluídos”.

Grandes negócios

Não por coincidência, um dos locais mais atingidos pelas cheias em Itajubá é o distrito industrial, construído na base do rio. Lá estão sediadas grandes empresas como a Areva, referência mundial em geração de energia nuclear e transmissão e distribuição de eletricidade; a Mahle, empresa da indústria automobilística; e a Helibras, que constrói helicópteros e cujo site informa que, em Itajubá, a companhia tem como acionista a MGI Participações, pertencente ao governo de Minas Gerais. Lideranças locais afirmam que as empresas fazem fortes pressões para a construção dos barramentos. Além disso, elas afirmam que existem interesses políticos de loteamento de áreas na cidade que são inundadas com as cheias. Se não bastasse, as grandes beneficiadas com obras desse porte são as empreiteiras de construção. Apesar de toda a estrutura montada pela Copasa para atenuar conflitos, como a contratação de psicólogos e assistentes sociais, e de toda tortura psicológica que as famílias atingidas estão sofrendo, as comunidades atingidas estão se mobilizando: “Não somos ovos a serem quebrados para fazerem esse omelete, nós vamos lutar até o fim para impedir essas barragens”, disse Edmilson Passos e Silva, morador da região. (AR)


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américa latina

Argentina nega asilo a camponeses paraguaios em greve de fome Reprodução

são sobe ainda mais por que o triunfo de Lugo tem gerado expectativas no campo popular”, atesta Bernardo Coronel, assessor do Movimento Agrário e Popular em Assunção.

INDIFERENÇA Há mais de 60 dias sem comer, lideranças camponesas paraguaias pedem liberdade e asilo político à presidente Cristina Kirchner

Longe de casa Cristiano Navarro de Buenos Aires (Argentina) NO INÍCIO de 2006, seis lideranças camponesas paraguaias ingressaram legalmente na Argentina, fugindo das perseguições que sofriam em seu país por parte de políticos e milícias policiais ligadas ao Partido Colorado. Segundo o advogado desses militantes – membros do partido Pátria Livre e do Movimento Agrário Popular – a ida para a Argentina foi decidida na Embaixada do próprio país, em Assunção, capital do Paraguai, onde lhes foi prometido que seriam acolhidos como exilados políticos. Já em solo argentino, em fevereiro do mesmo ano, Agustín Acosta González, Roque Rodríguez Torales, Basiliano Cardozo Jiménez, Gustavo Lezcano Espínola, Arístides Luciano Vera e Simeón Bordón Salinas foram detidos no município de Marcos Paz, ao solicitarem asilo político ao Estado argentino. Em 15 de agosto deste ano, depois de mais de dois anos aguardando em cárcere a análise do pedido de asilo político, os seis camponeses resolveram fazer uma greve de fome para pressionar o governo Cristina Kirchner para obter uma resposta. Foram realizadas passeatas e abaixo-assinados foram difundidos por movimentos sociais, intelectuais, artistas e dirigen-

tes de organizações humanitárias, sindicais e políticas de diferentes países de toda a América Latina, exigindo que o governo argentino reconheça imediatamente os seis militantes como refugiados políticos (a lista pode ser vista em http://w ww.prensamercosur.com.ar/ apm/nota_completa.php?idno ta=4044).

A ida para a Argentina foi decidida na Embaixada do próprio país, em Assunção, capital do Paraguai, onde lhes foi prometido que seriam acolhidos como exilados políticos. Chegando no país, foram detidos

Pedido negado

Porém, a situação se tornou ainda mais complicada para os militantes quando no último dia 10 de outubro, o pedido de asilo político foi rechaçado por meio do Ministro do Interior,

Florencio Randazzo. Havia uma expectativa por parte das organizações que pediam a revisão do caso, já que o governo de Cristina Kirchner projetou-se internacionalmente no tocante à sua política de direitos humanos ao reabrir e punir os crimes praticados por militares durante o período da ditadura militar. Em resposta à decisão de não conceder o refúgio, os grevistas contestaram a postura da presidente argentina em carta pública. “Repudiamos a atitude hipócrita da presidente Cristina Kirchner, que se apresenta como defensora dos direitos humanos, mas que violou flagrantemente nossos direitos, mantendo-nos em prisão por mais de dois anos sem nenhuma razão.” O texto imputa à presidente

Em acampamento na Venezuela, juventude debate participação política

Manuela Sisa de Caracas (Venezuela) Evocando a solidariedade, o internacionalismo e a responsabilidade dos jovens para a construção de uma “América Latina Socialista”, foi inaugurado em Caracas, no dia 7, o Acampamento Che Guevara da Juventude da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e da Via Campesina. No encontro, que se estende até 15 de novembro, os jovens participarão de seminários de formação política-ideológica com intelectuais latino-americanos e também de atividades de intercâmbio de experiências e culturas. O objetivo, destaca a coordenação do acampamento, é traçar mecanismos de participação “nos quais os jovens possam ser parte do sujeito transformador, por meio das experiências de organização popular, social e dos processos políticos de transformação da América Latina”. No teatro municipal de Caracas, onde o acampamento

Sem consistência

O exílio dos seis camponeses deu-se em meio a um forte processo de criminalização e violências contra dirigentes de movimentos sociais no Paraguai. Em 2005, os seis camponeses foram acusados de serem responsáveis pelo seqüestro e assassinato de Cecília Cubas, filha do ex-presidente, Raúl Cubas, sob orientação das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas

(FARC). Sem consistência, as acusações feitas contra os militantes não foram acolhidas pelo juiz do caso, Pedro Mayor Martinez. Em novas investigações, há indícios de que o crime tenha sido motivado por acerto de contas entre políticos e mafiosos ligados ao Partido Colorado. Por trás da criminalização dos movimentos sociais no Paraguai, dirigentes camponeses apontam como seus principais atores os políticos ligados à sojicultura brasileira e interesses militares estadunidenses na área chamada de Tríplice Fronteira. “A situação no campo paraguaio é explosiva; o capitalismo sojeiro avança sobre a população pobre camponesa, que perde suas terras, principal meio de produção. E a ten-

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INTERCÂMBIO

No encontro, jovens participarão de seminários de formação políticaideológica e realizarão trabalho voluntário

a responsabilidade por negar o asilo que lhes pode custar suas vidas. “Ela entrará para a história como a responsável por quebrar uma tradição humanitária que a Argentina manteve incólume. A presidente não só viola nossos direitos, como também ultraja uma limpa tradição argentina.”

A simples volta dos militantes ao seu país de origem trata-se de um grave risco para os seis. Anuncio Martí, ex-dirigente do Pátria Livre, acredita que, apesar da posse do novo presidente de corrente progressista, Fernando Lugo, em agosto último, todo controle social montado pelo Partido Colorado, que dominou o país por 61 anos, continua operando. “Os companheiros presos são militantes políticos e sociais criminalizados por um sistema judiciário corrupto que ainda continua forte no Paraguai. Sem segurança jurídica e física, sua volta os coloca em grave risco”, garante Martí. O ex-dirigente, refugiado hoje no Brasil, sentiu na pele a perseguição e o sofrimento que seus companheiros vivem na Argentina. Em janeiro de 2002, em Assunção, Martí foi seqüestrado e gravemente torturado por um grupo policial-militar vinculado ao governo. O cativeiro durou quase duas semanas. Desde 2003, ele vive em uma cidade brasileira como refugiado político, situação que divide com dois de seus companheiros de partido, Juan Arrom e Víctor Colmán. “Como militante do Partido Pátria Livre, aguardamos que seja, outorgado com urgência o refúgio político aos seis companheiros dirigentes camponeses paraguaios, presos injustamente na Argentina”, ressente o militante.

foi inaugurado, os jovens se entusiasmaram com as canções de músicos venezuelanos e cubanos que entoavam composições de Ali Primera e Silvio Rodriguez.

Descompasso

O mesmo entusiasmo não foi compartilhado quando ministros do governo Chávez, convidados a abrir o encontro, discursaram repetindo frases prontas, descontextualizadas e desconectadas da realidade dos jovens ali presentes e do legado deixado pelo líder revolucionário Ernesto Che Guevara. Para Thaís Rodriguez, uma das jovens venezuelanas que participavam da abertura, ainda há uma distância entre as esferas de poder e a juventude. “Por isso, é importante temos encontros como esse. A juventude tem uma tarefa histórica na construção de uma América Latina socialista. Devemos criar uma organização capaz de canalizar toda essa energia”, afirmou. A seu ver, o ponto de partida deve ser a integração às “lutas camponesa e operária”, acrescentou.

Trabalho voluntário

Coerentes com os ideais de Che – que teria 80 anos hoje, se não tivesse sido assassinado –, a coordenação do Instituto Agroecológico Paulo Freire (IALA) e a Via Campesina promoverão a realização de trabalhos voluntários. Um ex-latifúndio no Estado de Barinas, expropriado em 2006 – que atualmente abriga

as instalações do IALA –, servirá de palco. Mais de 600 jovens latino-americanos deverão construir, com técnicas agroecológicas, alojamentos que serão parte da sede definitiva do Instituto, que é considerado uma das principais conquistas do movimento camponês nos últimos anos. O IALA é fruto da primeira iniciativa da ALBA, que rompe com os tradicionais esquemas de cooperação, antes limitados a acordos entre Estados. A iniciativa para a construção de uma universidade camponesa foi concretizada duranta a visita de Hugo Chávez, em 2005, ao assentamento Lagoa do Junco, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Tapes (RS). Ali foi firmado o convênio entre o governo da Venezuela, a Via Campesina e o MST para a construção da Universidade Internacional “feita por e para as organizações camponesas”, ressalta Dana Ávila, da Coordenação do IALA.

Programação:

1ª etapa – de 7 a 16 de outubro. A programação estará focada na realização de atividades cujo marco de discussão será a ALBA e o processo político venezuelano. 2ª etapa – de 17 a 15 de novembro. A programação será marcada pela formação política dos jovens e terá como eixo central o pensamento de Ernesto Che Guevara e a vigência de suas idéias nos processos políticos de luta e resistência na região.


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Pela soberania energética do Paraguai ENTREVISTA Ricardo Canese, secretário internacional do Movimento Tekojoja, discute a recuperação hidrelétrica do país Claudia Korol de Buenos Aires (Argentina) DESDE MUITO cedo, Ricardo Canese, engenheiro industrial especializado em energia, tem lutado pela soberania energética de seu país, o Paraguai. Como estudante e dirigente do Movimento Independente, questionou os termos do Tratado de Itaipu, o que, junto à sua luta antiditatorial, obrigouo a se exilar, em 1977. Atualmente, é secretário internacional do Movimento Tekojoja e deputado eleito do Parlamento do Mercosul (Parlasul). Nesta entrevista, ele analisa os desafios enfrentados pelo Paraguai e a atual conjuntura para avançar no caminho da recuperação da soberania energética. Quais são as condições para o Paraguai recuperar a sua soberania energética? Ricardo Canese – A recuperação da soberania energética tem a ver com a livre propriedade da energia e com um preço justo. Nós acreditamos que ser soberano é poder dispor da energia que temos, dos recursos do solo, dos recursos naturais. Queremos dar um sentido de que isso é um patrimônio dos povos. Aqui há um critério incluído de intercâmbio justo, de trato justo, e promovê-lo nesse sentido. Se o Paraguai está contribuindo com a região, com o Brasil, no caso de Itaipu, e com a Argentina, no caso de Yacyretá, que nos seja dado algo justo em troca. Isso é o que queremos discutir. Em que condições políticas foram feitos esses tratados? O tratado de Itaipu [1973] ocorreu sob as ditaduras militares do Brasil e do Paraguai, quando o povo paraguaio não tinha soberania. No tratado de Yacyretá [também de 1973], apesar do [ex-presidente Juan Domingo] Perón estar na Argentina, o Paraguai estava sob ditadura militar e, foi, de alguma maneira, uma reprodução do de Itaipu, pelo qual perdemos nossa soberania hidrelétrica. Trata-se de uma situação que já mudou, na qual predominavam ditaduras militares e transnacionais, acompanhadas de um princípio de extração de nossas riquezas. Agora, há um contexto em que se tenta uma integração mais justa. Não digo que isso já está acontecendo, mas pelo menos há um discernimento de que deve haver uma integração solidária – falamos de um Mercosul social e solidário. Trata-se de sentarmos e analisarmos, entre Brasil e Paraguai, e também entre Argentina e Paraguai, se as condições desses tratados são justas, solidárias e eqüitativas. Caso não sejam, 35 anos é tempo mais do que suficiente para sentar e analisar o grau de justiça diante de trocas tão fundamentais para o Paraguai e a região.

Perdemos quase um bilhão de dólares, entregando oito vezes mais energia do que recebemos. Esse não é um trato justo, muito menos solidário

Quais seriam as condições de justiça, eqüidade e acordo?

O preço que recebemos é completamente injusto e disso qualquer um se dá conta, até o Lula. Como definimos o preço justo? É um critério de mercado? De fato, o preço do mercado é menos do que um preço justo, tem o custo do mercado atacadista elétrico, tem o

custo de substituição, ou seja, com que energia se pode substituir a energia hidrelétrica paraguaia de Itaipu e Yacyretá, com gás natural ou com petróleo. Encontramos um preço 20 ou 30 vezes maior do que o Paraguai está recebendo. Também pode ser um critério dizer que o Brasil está recebendo energia hidrelétrica paraguaia e o Paraguai necessita de petróleo. Estamos falando de energia. O Brasil é praticamente exportador de petróleo, o Paraguai importa 100% do petróleo que consome e, em parte, importa-o do Brasil. Então, até que ponto podemos fazer uma troca? Nós entregamos o que nos sobra, que é a energia hidrelétrica, e o Brasil nos entrega o que lhe sobra, que é o petróleo. São perspectivas de complementaridade e solidariedade. Se fazemos esse cálculo, o Paraguai está exportando energia hidrelétrica equivalente a 80 milhões de barris de petróleo ao ano e importando 10 milhões de barris, o que nos custa 1,6 bilhão de dólares. Na troca, recebemos 600 milhões, ou seja, perdemos quase um bilhão de dólares, entregando oito vezes mais energia do que recebemos. Esse não é um trato justo, muito menos solidário. Se pensamos em uma troca, nós entregamos energia hidrelétrica e o Brasil entrega petróleo. A troca deveria ser feita assim, sem que saia um dólar nem do Paraguai nem do Brasil.

Não podemos dispor de nossa energia hidrelétrica assim como dispõe a Venezuela e a Bolívia. Não só não é justo, como não é inteligente e, muito menos, solidário

O que é livre disponibilidade de energia? É um critério de solidariedade e integração. Veja o caso de 2007. A Argentina teve uma perda de 4 bilhões de dólares por não ter energia elétrica, enquanto que o sistema elétrico de Itaipu poderia ter ajudado os argentinos, se houvesse redes. Como no Paraguai é proibida a exportação de energia elétrica, jamais pensou-se em construir a rede. Se existissem redes assim, os 4 bilhões de dólares poderiam ter sido ganhos e não perdidos, 1,3 bilhão para a Argentina, 1,3 bilhão para o Brasil e 1,3 bilhão para o Paraguai. A Argentina poderia ganhar muito menos, mas ganharia. Por que não optar por um esquema em que todos ganham e seguir optando por um esquema em que todos perdem? Trata-se disso quando falamos em “livre disponibilidade”. Que a energia hidrelétrica do Paraguai, de Itaipu, não continue sendo de uso exclusivo do sistema elétrico brasileiro, mas que seja um recurso para toda a região, no qual todos ganham, inclusive o Brasil. Ele poderia participar de todos os benefícios, não somente com a venda da energia de Itaipu, mas também porque, em outro momento, o Brasil também teve deficit elétrico. Então, assim como hoje poderia estar auxiliando a Argentina, o Uruguai, o Chile, em outra ocasião o Brasil pode ser auxiliado. De fato, o Paraguai é o único país com excedente elétrico na região. Sobram mais de 40 milhões de megawatts por ano, o que é muitíssimo – quase 50% do conjunto da Argentina. Temos um excedente elétrico enorme, assim como a Venezuela tem excedente de petróleo e a Bolívia, de gás. No entanto, não podemos dispor de nossa

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Usina hidrelétrica de Itaipu: paraguaios querem discutir tratado feito durante ditadura

energia hidrelétrica assim como dispõe a Venezuela e a Bolívia. Não só não é justo, como não é inteligente e, muito menos, solidário. Como se explica que tenham sido realizados acordos de tanta iniqüidade? Foi no contexto da ditadura militar e da desconfiança entre os países. É preciso lembrar que Brasil e Argentina estavam muito afrontados, e o Brasil não queria, de forma alguma, ceder algo que estava fazendo com o Paraguai. Não havia o critério de integração, nem sequer um critério de integração capitalista neoliberal, como tem se dado a partir da década de 1990. Havia um ambiente de hostilidade e uma concepção de se apropriar dos recursos de países vizinhos. O Brasil teve essa filosofia de “segurança nacional”. Temos que recordar que, na década de 1970, quem mandava na gestão de recursos tais eram as Forças Armadas. Que significado tem a recuperação da soberania hidrelétrica do Paraguai no atual contexto do país? Para o novo processo progressista e de conteúdo social que vem com o companheiro Fernando Lugo [presidente empossado em agosto], é fundamental. Se os governos da região, Brasil e Argentina, que são também progressistas, ou pelo menos o afirmam, não derem a mão neste momento ao presidente Lugo, há sérios riscos de que fracasse. O governo paraguaio não tem recursos para lidar com todos os temas fundamentais, como a reforma agrária, o emprego e os direitos humanos de caráter social, como habitação, saúde e educação. Há uma pressão acumulada durante décadas e, agora, chegamos a um momento de grande expectativa, que é uma faca de dois gumes. As pessoas esperam uma solução mágica por parte de Lugo e, se não houver meios para dar respostas, a decepção será muito grande e o risco de que esse processo fracasse também. Temos falado, inclusive, de um Plano Marshall, como ocorreu na Europa depois da guerra, mas em outra escala. O Paraguai é um país devastado, em ruínas, não somente pela parte econômica, mas sim por uma questão moral, pela degradação que tem ocorrido. Sem uma reativação econômica e uma vigência de direitos sociais relativamente rápidas – não digo imediatas, mas rápidas –, esse processo corre um risco muito grande. Essas são as condições objetivas. Não que o Lugo tenha prometido, mas as pessoas esperam muito dele. Aqui, por parte dos governos do Brasil e da Argentina, espera-se, sobretudo, compreensão, porque, do contrário, esse processo tão interessante, que pode contribuir muito para o contexto latino-ameri-

cano, fracassará em poucos meses. Então, pelo menos os partidos progressistas da região, os partidos de esquerda, têm que tomar uma posição. Creio que isso é muito positivo. Nós, como parlamentares do Parlasul, como bancada paraguaia, estamos impulsionando essa proposta de resolução, que impulsione essa recuperação da soberania energética do Paraguai. Estamos muito esperançosos de que isso ocorra. A idéia é também ir articulando não somente uma causa nacional, mas sim latino-americana, para recuperar a soberania como o resto dos países e estar todos em pé de igualdade. Essas grandes represas, como Yaciretá, têm causado um forte dano a populações, tanto do Paraguai quanto da Argentina. Agora, está previsto um aumento da altura que geraria novos impactos. Qual sua posição diante disso? A energia tem que respeitar o social e o ambiental. O que era feito antes é que se deve mudar. Em Yaciretá, concretamente, as pessoas e o meio ambiente pouco importavam ao governo que perdeu as eleições. Poucos dias antes de terminar o mandato, resolveram, em acordo com o governo [argentino] de Cristina Fernández, elevar a altura. Isso não foi correto e obrigounos, como governo eleito, a adotar uma postura. O presidente Lugo propôs que não se elevasse mais o nível do reservatório sem antes solucionar os problemas sociais e ambientais que isso provocará. Esse é o modelo a que aspiramos: um modelo verdadeiramente sustentável, social e ambiental, e, sobretudo, com ampla participação das pessoas, não as excluindo. Não se trata, somente, de terem suas casas realocadas ou te-

Aqui, por parte dos governos do Brasil e da Argentina, esperase, sobretudo, compreensão, porque, do contrário, esse processo tão interessante, que pode contribuir muito para o contexto latinoamericano, fracassará em poucos meses

Muitos setores estão com Lugo, mas não de forma incondicional. Ou seja, queremos participar desse projeto, mas a melhor forma de contribuir com o governo é sermos críticos

rem suas indenizações, mas sim escutá-las, participar com elas. Que os projetos de infra-estrutura de ampla envergadura sejam do povo, e não contra ele. Sabemos que tem havido rejeições, por parte dos movimentos sociais do Paraguai, à designação do diretor de Itaipu. A que se devem? Se devem ao fato de que essa pessoa não teve uma trajetória de luta pela defesa da soberania hidrelétrica. É um dirigente político com transcendência em seu âmbito, mas não nesse em particular. Então, foi feita uma reclamação a Fernando Lugo, questionando o porquê dele estar fazendo isso. Não foi uma crítica a ele como pessoa nem um pedido para que se nomeasse outra pessoa, mas, acima de tudo, foi uma observação de que não estavam respeitando um processo, uma linha, que é a de ser conseqüente com a defesa da soberania hidrelétrica, com a defesa desses princípios. Muitos setores estão com Lugo, mas não de forma incondicional. Ou seja, queremos participar desse projeto, mas a melhor forma de contribuir com o governo é sermos críticos. Apoiá-lo com força, mas, ao mesmo tempo, observar o companheiro quando ele cometer um equívoco. E isso tem servido bastante a ele, porque a pessoa – que se chama Carlos Mateus – se comprometeu com a linha que foi traçada em sua campanha. Além disso, as pessoas vão estar atentas e com expectativa, e o que importa é justamente isso, estar em um processo de troca, no qual as pessoas estejam compartilhando essa mesma linha do processo. Que papel espera do Mercosul? Nós cremos que tem que haver um Mercosul em que o povo esteja em primeiro lugar. Que garanta o direito à igualdade e ao trabalho. Um paraguaio que vá para a Argentina, o Brasil ou qualquer outro lugar não pode ter menos direitos que os locais. Vamos trabalhar para que todos os habitantes do Mercosul tenham exatamente os mesmos

direitos de trabalho, residência e circulação, não só os bens. Assim também em questões como a educação. Não pode ser que uma pessoa vá a um país e não se reconheçam seus estudos. As normas elétricas são as mesmas, são as mesmas leis da Física. E em todos os âmbitos: fazer com que acabe essa discriminação e que os direitos das pessoas estejam em primeiro lugar. Depois, há questões que fazem parte do econômico, mas que precisam de conteúdo social. Esse Mercosul se ergueu com as grandes transnacionais, para as grandes empresas, e são as pequenas que têm problemas. Por que o tomate tem problemas para sair do Paraguai? Porque é uma pequena empresa e a pessoa não está em condições de cumprir as normas sanitárias, de embalagem etc., que são concebidas pelas grandes empresas. Nós queremos, evidentemente, um Mercosul que sirva para a grande empresa, mas também e, sobretudo, para a pequena, para o camponês. Trata-se disso, de ir transformando. Essa vai ser a nossa linha. Creio que tenhamos que socializar as medidas. Temos que fazer com que esse conteúdo social vá crescendo em todos os países e que esses negócios de extração de riqueza, os quais buscam nos converter em meros exportadores de matériasprimas, vão perdendo vigência. Se as transnacionais agroexportadoras quiserem fazer negócio, que paguem de forma semelhante em toda a região e não busquem se refugiar em um ou outro país, e que no país em que eles queiram colocar mais obstáculos haja mais enfrentamento. Será melhor na medida em que todos avançarmos. É como a idéia de sindicato. Se cada trabalhador vai pedir por sua conta, um pede e outro não, o trabalhador nunca vai ter. Por isso é conveniente que nos organizemos. Como país, temos que nos organizar, não somente para fazer um comércio interno e tudo isso, mas para ter políticas comuns, que beneficiem a todos. Particularmente sobre a questão do campo, é muito claro, pelo menos para mim, que na medida em que favorecermos o pequeno agricultor que produz de forma orgânica, de forma ambientalmente sustentável, podemos avançar nesse sentido de maneira uniforme. Será difícil, porque as forças conservadoras paraguaias são extremamente fortes. Todos os que apoiamos Lugo somos minoria no Congresso e, dentro dessa minoria, os que apóiam a esquerda são uma tremenda minoria, outra vez. Então, vai ser um processo muito difícil. Por isso, a solidariedade, a compreensão dos governos progressistas do Brasil, Argentina, Uruguai é fundamental, porque, se vamos nos apoiar em nossas próprias forças internas, realmente vai ser muito difícil. Temos que ver isso como uma luta de todos, uma luta latino-americana, em que tivemos uma grande vitória. Mas temos muito mais batalhas pela frente. Nos próximos cinco anos, será uma batalha diária e, por isso, vamos precisar de toda essa solidariedade, não somente da região, mas também de fora dela.

Quem é Ricardo Canese é deputado do Parlasul por Tekojoja. Autor do livro La recuperación de la soberanía hidroeléctrica del Paraguay. En el marco de Políticas de Estado de energía.


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3º Fórum Social Américas faz um chamado à unidade continental

Brigadas

O evento, que aconteceu pela primeira vez em um país centro-americano, teve um forte acento indígena, como reconhecimento e homenagem à resistência das comunidades originárias em defesa de sua cultura, cosmovisão, terra e territórios. Daniel Pascual, dirigente da Coordenadora Latinoamericana de Organizações do Campo (CLOC), qualificou

Pará e Peru

O texto ainda ressalta que o sonho dos Estados Plurinacionais está sendo construído, apesar das tentativas das oligarquias e do imperialismo estadunidense de impedi-lo a todo o custo. “As lutas dos povos da Venezuela, Equador, Argentina, Paraguai e Cuba demonstram não somente que outros mundos são possíveis, mas que agora são urgentes”, diz a declaração. As agrupações continentais se preparam agora para participar do Fórum Social Mundial, que se celebrará em Belém do Pará, no Brasil, em janeiro próximo; e da IV Cumbre dos Povos e Nacionalidades Indígenas de Abya Yala, em Puno, Peru, no mês de maio (da Prensa Latina).

Entre outros objetivos, campanha busca arrecadar contribuições para compra de alimentos e remédios a serem remetidos às vítimas dos furacões Mário Augusto Jakobskind

do Rio de Janeiro (RJ)

“Com todos para o bem de Cuba.” Este é o slogan da Campanha Nacional Humanitária, lançada no dia 10, na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, que tem o arquiteto Oscar Niemeyer como presidente de honra. A data escolhida para o seu lançamento coincidiu com a data em que se comemorou em Cuba o 140º aniversário das lutas de independência frente ao colonialismo espanhol. E com o período em que os 41 anos do assassinato de Ernesto Che Guevara, na selva boliviana, a 9 de outubro de 1967, são relembrados. A iniciativa é da Associação Nacional de Cubanos Residentes no Brasil e da Associação Cultural José Martí. O cônsul-geral de Cuba no Brasil, Carlos Trejo, destacou o significado da data, e fez um relato sobre a tragédia provocada em uma semana pelos furacões Gustav e Ike – que causaram prejuízos superiores a 5 bilhões de dólares e deixaram 500 mil pessoas desabrigadas.

Participantes debateram avanços das lutas populares

Participantes pedem o fim do bloqueio imposto pelos EUA Há mais de 40 anos, Cuba sofre com restrições comerciais da Redação Os participantes do fórum expressaram sua solidariedade a Cuba pelos danos causados pelos furacões Gustav e Ike, e exigiram dos Estados Unidos o fim do bloqueio contra Cuba. “Cuba, que tanta ajuda tem dado aos demais países, hoje necessita do nosso apoio”, disse a ativista da Marcha Mundial das Mulheres Nalu Faria, que recordou que a revolução cubana tem acompanhado os demais povos, inclusive nos momentos duros da hegemonia neoliberal, quando se quis fazer com que todos acreditassem na impossibilidade do socialismo. O representante da coordenação indígena Emeterio Toj Medrano lembrou que a ilha caribenha, apesar do criminoso cerco econômico, co-

mercial e financeiro de quase 50 anos, tem sido capaz de entregar seu amor e levar saúde a muitos países. O representante indígena apontou que os cubanos enfrentam com heroísmo os milionários danos causados na ilha pela passagem dos furacões. Toj Medrano também manifestou a importância da unidade para vencer as mais duras adversidades. Os participantes no fórum recolheram assinaturas em solidariedade à ilha e para exigir que acabe o bloqueio contra Cuba por parte da administração estadunidense. O Fórum Social Américas, que aconteceu na Universidade de San Carlos da Guatemala, dedicou um dia inteiro a Cuba, por ocasião do aniversário de 140 anos do início das lutas pela independência frente ao colonialismo espanhol (da TeleSur).

Muy amigo

Trejo observou que os Estados Unidos condicionaram a oferta de uma ajuda financeira à permissão da entrada na

ilha caribenha de uma comissão de funcionários estadunidenses, o que foi rejeitado pelo governo cubano por ser tratar de uma intromissão em assuntos internos do país. O cônsul lembrou ainda que muitos países – entre os quais Brasil, Timor Leste e Angola – ajudaram Cuba sem impôr condições. Foi mencionada também a campanha internacional pela liberdade dos cinco presos políticos cubanos detidos nos Estados Unidos por combater o terrorismo. De acordo com Magdalena Torbisco, presidente da Associação de Cubanos Residentes no Brasil – José Marti, a campanha humanitária também recorre ao lema “Por quem merece amor”, em um justo reconhecimento ao povo cubano, que durante anos deu várias provas de solidariedade humana. Ela assinalou ainda que a campanha também traçou como objetivo condenar o criminoso bloqueio estadunidense a Cuba – que só no ano passado representou, para o país, um prejuízo de 3,775 bilhões de dólares. Contribuições para compra de alimentos e remédios a serem remetidos às vítimas dos furacões em Cuba podem ser remetidas a: Associação Ação Solidária Madre Cristina, Banco do Brasil, agência 4328-1, conta 6654-0.

Reprodução

APÓS PASSAR por Quito, no Equador, em 2004; e Caracas, na Venezuela, em 2006; o Fórum Social Américas chegou à capital da Guatemala para a sua terceira edição. De 7 a 12 de outubro, cerca de 10 mil representantes de organizações sociais repudiaram fortemente o militarismo na região e exigiram a retirada das bases estadunidenses de vários países do continente. As políticas antiimigrantes postas em prática por Washington e pela União Européia, que criminalizam aqueles que, motivados pela pobreza e marginalização, buscam um futuro melhor, também foram condenadas. O encerramento se deu no parque central da capital guatemalteca, ocasião em que um chamado à unidade continental foi feito como forma de se enfrentar os problemas que os povos da região têm enfrentado. Durante os seis dias, aconteceram debates e intercâmbio de experiências sobre os avanços das lutas populares e sobre os desafios que se colocam aos povos nos tempos atuais.

o Fórum como um êxito desde o seu início até o seu fim. “Os debates, as discussões e os intercâmbios foram muito enriquecedores, e agora fica um desafio muito grande de levar os seus resultados à prática e consolidar a unidade para se construir uma América melhor”, disse. Na declaração final do encontro, os povos e nacionalidades indígenas de Abya Yala (Nossa América) expressaram um total rechaço ao neoliberalismo, ao qual responsabilizaram pela exclusão, violência e pobreza. “Chamamos à organização de brigadas de solidariedade para a defesa da Bolívia e de outros processos revolucionários em gestação no sul do continente, onde está em jogo a continuidade dos povos seguirem subjugados ou romperem as cadeias da opressão”, assinala o documento.

Entidades lançam campanha de ajuda humanitária a Cuba

Minga

GUATEMALA Encontro sugeriu a formação de brigadas de solidariedade para a defesa da Bolívia e de outros processos revolucionários em gestação no sul do continente da Redação

SOLIDARIEDADE

Cubanos nas ruas alagadas de Havana após passagem de furacões

REFORMA NEOLIBERAL Waldo Lao Fuentes

México, o último da fila em educação

Quanto

0,5%

Apenas do PIB do México é destinado a pesquisas científicas. De acordo com dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o país está em penúltimo lugar na categoria Ciência e Tecnologia, entre 30 países membros

Professores aumentam as mobilizações em todo o país contra proposta do governo que pretende privatizar a educação pública Waldo Lao Fuentes e Anna Feldmann da Cidade do México (México) Um projeto educativo está sendo desenhado a partir das esferas governamentais para todo o México. O novo pacto firmado entre a atual presidente do Sindicato Nacional de Trabalhadores da Educação (SNTE), Elba Esther Gordillo, e o presidente Felipe Calderón leva o nome de Aliança para a Qualidade da Educação (ACE, na sigla em espanhol) e, obviamente, a idéia não foi claramente anunciada, nem consultada ou discutida com os professores do país. Essa iniciativa é mais uma proposta neoliberal do governo mexicano, com a qual se pretende privatizar a educação pública, limitando as vagas para professores nas escolas e colocando empresas privadas ao serviço de lucrativas avaliações anuais dos docentes. Uma medida autoritária e irregular. Um retroces-

so para a educação no país, que aniquila os princípios da educação popular, gratuita e laica.

Avaliação privada

A ACE se sustenta em cinco eixos centrais: 1) modernização dos centros escolares; 2) profissionalização dos professores e das autoridades educativas; 3) bem-estar e desenvolvimento integral dos alunos; 4) formação integral dos alunos para a vida e para o trabalho; e 5) avaliação para melhorias. Nestes novos paradigmas, os dois últimos itens sobre a profissionalização dos professores e suas avaliações dizem respeito ao fato de que estes trabalhadores devem ser devidamente formados e somente assim poderão receber estímulos ou incentivos. A idéia é padronizar os sistemas avaliativos por meio de exames que garantam a certificação destes como profissionais da educação, mas a avaliação, de acordo com a proposta, seria realizada por empresas privadas.

Torre de Humanidades, prédio da UNAM

A idéia é padronizar os sistemas de avaliação por meio de exames que garantam a certificação de professores como profissionais da educação, mas a avaliação, de acordo com a proposta, seria realizada por empresas privadas Porém, com as desigualdades sociais que existem dentro do magistério mexicano, essa medida acaba por excluir aqueles professores que não tiveram chances de desenvolvimento na carreira acadêmica de nível superior. Ou seja, a ACE pretende implantar uma nova estratégia que, além de privatizadora do sistema de ensino, é também elitista e seletiva.

Mobilizações

Esse novo projeto tem gerado a mobilização de milhares de professores em várias cida-

des mexicanas, de Veracruz, Oaxaca, Puebla, Baja California Sur, Hidalgo até a península de Quintana Roo, exigindo o cancelamento da ACE. Para o professor de ensino fundamental Cristóbal Vargas Morales, da cidade de Morelos, “este pacto é a plataforma com a qual se pretende privatizar a educação”. Tal tentativa se torna cada vez mais assustadora, quando Robert Zoellick, atual presidente do Banco Mundial, afirmou recentemente: “O que está acontecendo aqui, a sua maneira, é

muito revolucionário, não somente para a Educação, senão para o México como um todo”. Alguns professores chegaram a tomar por algumas horas os escritórios da Secretaria de Educação Pública para exigir de Josefina Vázquez Mota, titular do órgão, o cancelamento do projeto. Porém, ela reafirmou que essa proposta “representa uma nova etapa na história da educação mexicana”.

Antes e depois

O tema é complicado, dada à insegura realidade mexicana. Isto se deve, principalmente, a duas razões. Primeiro, pelos altos índices de corrupção que permeiam a vida do SNTE, liderado pela imagem corporativista e calamitosa da “professora” Elba Ester Gordillo. Segundo, pelo irrisório investimento em Educação que os governos neoliberais têm realizado nos últimos anos. Antes de tomar posse, o atual presidente, Felipe Calderón (do Partido Acción Nacional), reivindicava em discursos vazios, mas cheios de nacionalis-

mo, a “importância e prioridade que deve ter a Educação em um país como o México”. Um dia depois que assumiu a presidência, uma de suas primeiras medidas foi aumentar o salário dos militares, argumentando que “o trabalho da polícia pela segurança dos mexicanos deve ser justamente valorizado”. E o ofício dos professores em prol da educação do país, não merece aumentos? Se, em 2006, em seu primeiro ano de governo, a verba para a educação caiu de 25,4% para 22,9%; no segundo, baixou de 18,1% para 16,7%. O reitor da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), José Narro Robles, solicitou, em caráter emergencial, ao Poder Legislativo que no próximo ano a verba para as faculdades seja acrescida de 95 milhões de doláres. Robles recordou que “no México, não podemos estar conformados quando sabemos que apenas um em cada quatro jovens pode ir à universidade, enquanto alguns países com desenvolvimento semelhante ou inferior ao nosso podem ter taxas de cobertura com o dobro de estudantes nas escolas, como é o caso da Argentina, Costa Rica e do Chile”. Produto das aceleradas políticas calderonistas – o país está cada vez mais à deriva das privatizações –, a ACE surge como um projeto “modernizador do ensino mexicano” e não passa de uma estratégia do governo vigente, que pretende transformar a educação pública em uma mera mercadoria do capital privado.


12

de 16 a 22 de outubro de 2008

cultura Divulgação

Ensaio sobre a Cegueira diante da crise

A atriz Julianne Moore em cena do filme Ensaio sobre a Cegueira, do cineasta Fernando Meirelles

ANÁLISE Quem assistir ao filme dificilmente resistirá à analogia. A crise iniciada nos EUA, que aos poucos contamina o resto do planeta, é o Ensaio sobre a Cegueira de quem vive sob a supremacia dos mercados desregulados no alvorecer do século 21 Saul Leblon NO CINEMA e no romance, não há forças de redenção para a anomia descrita por Saramago. Algo semelhante parece ocorrer nesses dias marcados por um certo conformismo bovino na fila do matadouro. Reside aí, talvez, a verdadeira dimensão sistêmica da crise. Não se trata apenas de um atributo de abrangência econômica, mas sim da virtual incapacidade política de seus protagonistas para acionar uma mudança de rumo, comportando-se cada qual como parte indissociável da engrenagem em pane. São tempos trágicos nesse sentido. Numa das cenas do filme Ensaio sobre a Cegueira, adaptação de Fernando Meirelles para o romance de Saramago, o personagem pergunta à esposa cuja visão subsiste na solidão de um mundo que perdeu a capacidade de enxergar e se autogerir: “Há sinais de governo?”. A resposta é dada pelo angustiante passeio da câmera nas ruas de uma metrópole onde nada funciona. O que as lentes mostram são bandos esfarrapados e famintos vagando sem destino. Modalidades previsíveis da barbárie preenchem um hiato em que o Estado desmoronou e os valores da convivência humana se eclipsaram. A auto-regulação dos mercados não funcionou.

Quem assistir ao filme nesses dias de convulsão financeira dificilmente resistirá à analogia. A crise iniciada nos EUA, que aos poucos contamina o resto do planeta, é o Ensaio sobre a Cegueira de quem vive sob a supremacia dos mercados desregulados no alvorecer do século 21. Da esquerda à direita, dos trabalhadores aos banqueiros, passando por governantes, economistas e líderes políticos, quase ninguém consegue enxergar a real extensão de um colapso que se arrasta desde agosto de 2007. Num crescendo ele se derrama de um setor a outro, salta de país a país como uma fatalidade intangível e ingovernável, cuja visita cabe apenas aguardar. Mais inquietante, sobretudo, é a invisibilidade de alternativas que possam conduzir a sociedade a uma nova visão da economia e do seu desenvolvimento, escapando à propagação inexorável de solavancos que eclodem em intervalos cada vez menores, com virulência cada vez maior (1987-1988-2001-20032007-2008). Como na alegoria do escritor português, o que se “enxerga” por entre um noticiário errático são figuras trôpegas de uma tragédia grega. Cada passo hesitante que os governantes dão para impedir que ela se espalhe e se cumpra é mais um passo

A ausência de uma correlação de forças como a que emergiu da crise de 29 dá ao secretário do Tesouro dos EUA a liberdade de um bombeiro vesgo, cuja mangueira só enxerga a cobertura do edifício e ignora as chamas que devoram os andares debaixo

que pavimenta o caminho para que ela avance. Múltiplos de 100 bilhões de dólares ocupam as manchetes há semanas anunciando a solução definitiva para o impasse. No dia seguinte, uma nova quebra sinaliza a dinâmica de um colapso subterrâneo. O que se esfumou foi o indispensável

consenso que sustenta a fixação dos valores de troca no coração do sistema. Os mercados financeiros não sabem, ou escondem, quanto valem os ativos podres inscritos em seu metabolismo. Bilhões e trilhões se equivalem e nada detém o esfarelamento em marcha. No filme de Fernando Meirelles, um grupo de cegos envereda pelo mesmo labirinto quando assume o poder num campo de concentração. Em princípio mimetizam a ordem anterior, exigindo dinheiro em troca da comida escassa. Depois, pragmáticos, adotam o valor de uso: “Enviem as mulheres”. Às armas, se preciso for O que se assiste hoje é um movimento de fuga para a segurança cuja última trincheira, antes de a vida imitar a arte, são os títulos do Tesouro estadunidense. Não importa que os treasures ofereçam rendimento quase negativo nessa hora. O que a riqueza fiduciária mira é um abrigo de poder. Busca-se o derradeiro oásis capaz de legitimar, militarmente se preciso for, a suposta equivalência entre a riqueza fictícia e fatias da riqueza real disponíveis na sociedade – ouro, máquinas, terras, petróleo, alimentos, armas... Ao contrário da parábola de Saramago, o capitalismo real não se autodestrói. Assim co-

mo não existe auto-regulação, não há auto-revolução do capital. Lênin deduziu que política é economia concentrada. Mas se ela não atingir a densidade necessária à esquerda, a resposta virá da direita como de fato ocorre nesse momento. Na crise de 29, quando a Bolsa derreteu e o desemprego atingiu um em cada quatro estadunidenses (em 1933, a taxa de desemprego foi de 24,9%), a relação de forças existente no mundo era bem diferente da atual. Doze anos antes do crack, uma revolução operária instalou o primeiro governo comunista da história numa das maiores nações do planeta. A Alemanha também viu eclodir um poderoso movimento socialista que quase tomou o poder no país. Seu fracasso levou à ascensão expansionista do nazismo. Favela em Washington O economista Paul Krugmann (que, no dia 13, foi laureado com o Prêmio Nobel de Economia) lembra ainda que os desempregados e veteranos da Primeira Guerra Mundial ergueram uma favela na principal avenida de Washington durante a crise. Famílias famintas, desempregados rurais e urbanos entraram em conflito com o Exército estadunidense nas ruas de cidades em vários pontos do país. O PIB recuou 27% entre 1929 e 1933.

Nove mil bancos quebraram. A taxa de desemprego só retornaria a um dígito com o esforço de mobilização provocado pela Segunda Guerra, em 1941. Foi um tempo de miséria e simultâneo avanço social, com expansão do sindicalismo e das idéias socialistas em todo o mundo. Foi essa relação de forças que impôs à crise de 29 um New Deal feito de uma dura regulação estatal dos mercados financeiros, associada a frentes de trabalho, bônus de alimentos, refinanciamento de moradias e investimento público maciço em infra-estrutura, habitação e agricultura. É a ausência dessa mesma correlação que dá ao atual secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Paulson, a liberdade de um bombeiro vesgo, cuja mangueira só enxerga a cobertura do edifício e ignora as chamas que devoram os andares debaixo. A história destes dias é a história de uma agonia repetidas vezes anunciadas nos últimos anos. Mas a agonia ainda não é a morte para um neoliberalismo comatoso e cego. Vale relembrar a lição de Gramsci: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não consegue nascer. Nesse interregno uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. (IPS/ Envolverde) Saul Leblon é jornalista.

CULTURA POPULAR Fabio Pozzembom/ABr

Salú na rabeca é bom que nem doce de caju Mestre Salustiano partiu com o coração cheio de arte aos 62 anos, mas deixa herdeiros como Siba, Antonio Nóbrega e Silvério Pessoa Ana Emilia Borba Mestre Salú não morreu, se encantou, assim como os personagens do cavalo-marinho que surgem e depois se encantam pelas ruas e praças. Personagens que, quando a festa termina, não desaparecem, permanecem vivos no imaginário do povo, com suas loas – poesias de improviso – e batuques. Manoel Salustiano Soares, nascido em Aliança, zona da mata canavieira, foi um personagem presente na cultura popular de Pernambuco. Cresceu vendo o pai fabricar rabeca – um violino rústico que tem um som fanhoso e um lamento triste. E assim seguiu fazendo. Foi criado no trabalho árduo da cana – cortando, limpando, cambitando. No roçado de feijão e mandioca no quintal de casa. Nos fins de semana, participava das folias do cavalo-marinho – um folguedo popular encenado por homens e mulheres, composto por mais de 60 personagens entre humanos, animais e fantásticos, que reproduz a vi-

da do engenho. Uma celebração que acontece entre junho e janeiro, mas tem o seu ápice no período natalino. A trama O capitão que representa o senhor do engenho vive uma peleja com dois negros contratados para tomar conta do terreiro. Os negros assumem o comando do terreiro e se dizem donos do lugar. É quando entram em cena soldados para estabelecer a ordem local. Quando tudo parece normalizado, eis que surge o Mané do Baile para dar início à festa, convidando os trabalhadores, os galantes e as damas (a representação da elite). A encenação do cavalo-marinho dura a noite inteira, juntando poesias de improviso, teatro e muita música, para no final repartir o boi, outro elemento comum nas brincadeiras populares. De berço Foi neste ambiente místico que Salustiano se criou e incorporou as diversas facetas da cultura popular. Virou artesão,

aprendeu a produzir as máscaras, os bichos (bumba-meu-boi, a burra, o cavalo) e os instrumentos usados no cavalo-marinho, assim como os mamulengos feitos de mulungu (madeira típica da região). Esta é uma pequena introdução pra dizer que Mestre Salustiano não teve data marcada, nem foi preciso ir à escola, para começar a ser mestre. Já nasceu mestre. Aos 19 anos, Salustiano saiu do interior e mudou-se para Olinda. Ganhou espaço na cena cultural da cidade e criou o Maracatu de Baque Solto Piaba de Ouro, no ano de 1977 – que resiste até os dias de hoje. Mestre Salustiano deixou seu legado por onde passou e construiu sua história em Olinda. O terreiro de sua casa foi a sala de aula de muitos. Tendo cursado apenas o segundo grau, Salustiano foi doutor. Recebeu da Universidade Federal de Pernambuco o título de doutor honoris causa no ano de 1982. Isso o fez ainda maior, foi ser professor da vida, da cultura, em mui-

tos lugares, percorrendo quase todos os Estados do Brasil. Ganhou o mundo, caminhou na América Latina. Foi à Bolívia, México, Cuba e na Europa tocou para francês ouvir o lamento da rabeca. Em 1988, foi convidado pela Fundação de Patrimônio Artístico Histórico de Pernambuco para ser assessor especial da presidente da instituição, na época Leda Alves, que reivindicava a participação de um mestre, pois não bastava só técnicos e intelectuais, tinha que ter gente que fazia a cultura. Salú voltou a ocupar o cargo no ano de 1994, à convite do secretário de cultura Ariano Suassuna. Entre os tantos cargos e títulos que recebeu, teve o reconhecimento do governo federal, quando recebeu, em 2001, a Comenda do Mérito Cultural Brasileiro. De pai para filho Na escola do Mestre Salú, os seus filhos aprenderam a viver da arte e a levar o legado da família, resistindo ao tempo, e co-

mo a própria cultura diz: “Plantando, colhendo, semeando, cultivando a vida”. Dos 15 filhos que teve, hoje 9 estão envolvidos com a arte. No terreiro de casa, ensinou seus filhos os segredos da magia. Entre os filhos, estão Pedro, que é dançarino; Maciel, tão rabequeiro e cheio de arte como o pai; Manuelzinho, presente em todos os shows. Mas não é só deles a herança que Salú deixou durante as aulasespetáculo e oficinas nas quais eram ensinadas as histórias de cada folguedo, a construção dos instrumentos e dos personagens responsáveis pela criação de muitos folgazões e artesãos que disseminam a cultura por onde passam. Na sua herança ao povo, ainda deixou o Espaço Ilumiara Zumbi, idealizado junto com Ariano Suassuna (construído em homenagem aos 300 anos de Zumbi). Um território da resistência onde se realiza o Encontro de Maracatus do Baque Solto de Pernambuco, sempre na segunda-feira de carnaval. Um evento que reúne cerca de 90 grupos de diversos municípios do Estado. O espaço também abriga, no dia de São João, apresentações de cirandas, coco e forró pé-deserra, com muita rabeca, é claro. Já no Ciclo Natalino, o espaço serve de palco para se brincar a noite inteira no Encontro de Cavalo-marinho. Frutos A semente que Salú plantou renasce com figuras como Siba, Antonio Nóbrega e Silvério Pessoa – considerado um dos patronos espirituais do Mangue Beat, movimento musical da década de 1990 liderado por Chico Science.

Nesse espírito de preservação e renovação da música regional que Salú dizia: “eles são a semente e eu sou a raiz”. Assim, plantado na terra, de onde se fez gente, Salú tocou os céus com seus galhos imensos, e na sua sombra podemos ouvir gente que faz música nova e autenticamente regional como Publius, do grupo Azabumba, dizer que Salú era “um caule, uma raiz, uma semente...” e falar da importância de conhecer sua obra e fundamentalmente a do seu pai (seu Mestre) para poder desvendar o feitiço da cultura popular. Despedimos-nos do grande Mestre no dia 31 de agosto, quando morreu do coração aos 62 anos de idade. Manuel Salustiano partiu com o coração cheio de arte, levando orgulho pelas sementes que estão germinando, por ter deixado o germe da resistência da cultura ao mesmo tempo em que teve a capacidade de renovar, inovar e transformar para permanecer sendo sempre o mesmo. E quem haverá de discordar que Salú é tampa de Crush cantando maracatu, é bom que nem doce de caju, como ele mesmo dizia. Ana Emilia Borba é do Coletivo Nacional de Cultura do MST.

Para conhecer mais CD’s – Sonho da Rabeca, Mestre Salustiano e sua Rabeca Encantada , CavaloMarinho e Três Gerações. Participações em filmes – Abril Despedaçado e Nizinga, e nos documentários Moro no Brasil e Mário e a Missão. Livro – A Rabeca de Salú, por Lêda Maya


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