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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 6 • Número 298

São Paulo, de 13 a 19 de novembro de 2008

Na Colômbia, o teatro resiste à violência

Obama toma posse só no dia 20 de janeiro de 2009. Mas, menos de uma semana depois de eleito, já esteve na Casa Branca para se reunir com Bush. Aproveitou a conversa para encaminhar dois pedidos: a desativação do presídio da Base de Guantánamo e um pacote financeiro aos fabricantes de automóveis. Em Pine Hills, bairro negro de Orlando, haitianos comemoraram sua vitória como se fosse o fim da escravidão no continente. Págs. 10 e 11

Entre os dias 1º e 9, Medellín, na Colômbia, recebeu o 13º Encontro Nacional Comunitário de Teatro Jovem. De acordo com o secretário de cultura cidadã da cidade, Jorge Melguizo, o evento, que reuniu representantes de oito países latino-americanos, “comprova como a arte pode se converter em um significativo espaço de convivência e resistência pacífica”. Pág. 8

No dia 23, ocorrem as eleições regionais na Venezuela. De acordo com institutos de pesquisa, o governo do presidente Hugo Chávez pode ser derrotado em até sete Estados, de um total de 23. Porém, ainda que vença na maioria das regiões, o presidente deve perder espaço, já que, atualmente, seus aliados comandam 21 Estados. Pág. 9 José Cruz/ABr

www.brasildefato.com.br Julie Demler

Alexander Muñetón Beltrán

Chávez pode perder espaço nas eleições

R$ 2,50

Banco do Sul é uma alternativa para enfrentar a crise mundial Diante da crise internacional, a criação de instituições financeiras regionais aparece como alternativa a organismos tradicionais como o FMI e o Banco Mundial. No dia 10, representantes de países sul-americanos acertaram os últimos detalhes da criação do Banco do Sul. Porém, o governo brasileiro defende uma estrutura de funcionamento

semelhante à de instituições já existentes, nas quais o peso do voto é definido pelo tamanho do aporte de capital efetuado por cada país. Já para movimentos sociais da região, cada país deve ter direito a um voto. “Tem que haver solidariedade, se não vai ser um processo viciado de reprodução dos bancos do Norte”, opina Gabriel Strautman, da Rede Brasil. Pág. 3 João Zinclar

O rastro da devastação da cana no Brasil Pág. 5

Sistema bancário mais concentrado Grupo Sarney trama queda de com novas fusões Jackson Lago As recentes fusões entre Em discurso na Câmara, o deputado federal Ribamar Alves (PSB/ MA) acusou o grupo do senador José Sarney (PMDB/AP) de tentar pressionar o Tribunal Superior Eleitoral em ação na qual o governador do Maranhão, Jackson Lago (PDT), é acusado de abuso de poder econômico. Pág. 6

instituições bancárias no Brasil, como a que envolveu Itaú e Unibanco, não são novidade nos últimos anos, mas reforçam a concentração do setor. Além de prejuízo para os funcionários, as aquisições criam um oligopólio contrário aos consumidores. Pág. 4 ISSN 1978-5134

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AFOGANDO EM NÚMEROS A China acaba de anunciar um pacote de investimentos de R$

1,23

trilhão. O valor, que tem de ser usado nos próximos dois anos, equivale a quase

2,5

vezes o total de investi-

mentos previstos no PAC brasileiro, que atinge R$

504

bilhões (para o

período de 2007 a 2010). Se esse dinheiro fosse dividido entre todos os brasileiros, cada um receberia R$

6

mil.


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editorial EM JULHO de 2007, a grande mídia comercial, orquestrando e orquestrada pelo que há de mais conservador e reacionário no país, criou grande alvoroço em torno da desorganização dos aeroportos e atrasos de vôos. O que poderia ser resolvido com a intervenção do Estado junto às empresas privadas de aviação, principais responsáveis pelo congestionamento, era na verdade uma crise construída para derrubar o então ministro da Defesa, Valdir Pires, e substituí-lo por um outro que atendesse aos reclamos do grande capital e que, entre outras coisas, consumasse a privatização da Infraero. O nome que a direita tirou do bolso do colete e impôs para suceder o ministro Valdir foi o do doutor Nelson Jobim. A grande mídia comercial saudou a ascensão do doutor Jobim. Enfim, um ministro da Defesa (pasta diretamente responsável por garantir o cumprimento da Consituição) que fraudou o texto da Carta.

As sucessivas investidas do ministro Nelson Jobim

O fato é que doutor Jobim, candidato à sucessão presidencial, não “relaxou”. Rapidamente (nesse quase ano e meio), para além do seu histórico, tem demonstrado insistentemente a que veio (e por quem veio). As sucessivas investidas contra seus pares – especialmente ministros Tarso Genro, da Justiça, e Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) – já se tornaram rotina, desde o lançamento do livro Direito à Memória”pelo ministro

debate

Enquistada no aparelho de Estado, ultra-direita já conspira Vannuchi. Depois disso, foi no mínimo conivente com diversas conspirações e insubordinações da direita militar, entre as quais o ato no Clube Militar (RJ) em desagravo ao torturador e coronel da Reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra. Além de outras estrepolias de igual envergadura, a mais recente foi o ato realizado há poucos dias em aliança com o Clube Naval. Agora, o ministro ganha aliados: a Advocacia Geral da União (AGU) e o presidente do Supremo Tribunal Federal, senhor Gilmar Mendes. Em 14 de outubro, a AGU apresentou uma contestação à 8ª Vara Federal Civil de São Paulo, assumindo a defesa dos coronéis Ustra e Audir Maciel.

Doutor Gilmar Mendes tenta intimidar ministra

O presidente do STF, por sua vez, não se acanhou de vir a público atacar a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, que se declarou contra a extensão da Lei de Anistia aos agentes da repressão política no regime do pós-1964, envolvidos com torturas. Para a ministra, a tortura é crime imprescritível. Em tom intimidatório, doutor Gilmar partiu em defesa dos torturadores, afirmando que “a imprescriti-

bilidade [do crime de tortura] é uma discussão com dupla face. O texto constitucional diz que o crime de terrorismo também é imprescritível”. Poderíamos concordar com o doutor Gilmar se ele estivesse se referindo ao terror de Estado implantado em 1964, ou aos diversos grupos de ultra-direita alimentados por aquele regime, como os casos da tentativa de explosão do Gasômetro (1968 – articulada por militares da Aeronáutica) ou as bombas durante o show de 1º de maio no Rio Centro (1981 – articulado e executado por militares do Exército), ambos no Rio. Para não falarmos outros atentados perpetrados pelo grupo do senhor Sábato Dynotos, em São Paulo, entre os quais as bombas contra o jornal O Estado de S. Paulo, e contra a ponte de ferro sobre o Tietê (ambas em 1968), além, é claro, dos diversos atentados contra teatros em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Mas o suposto terror a que recorre o doutor Gilmar são as ações armadas das organizações de esquerda que combatiam o terror de Estado. Ora, o direito de se levantar em armas contra o opressor e o tirano está mais que consagrado: assim o fizeram, entre outros, a Guerra de Secessão nos EUA; a Revolução Francesa; as resistências

em todos os países ocupados pelas forças nazistas na Europa. E mais: Santo Agostinho já defendia esses métodos contra tiranos. Aliás, o que o doutor Gilmar ignora (ou finge ignorar) é que, embora a ditadura tenha se utilizado da qualificação de “terroristas” – cunhada nos laboratórios do jornalista Alberto Dines no Jornal do Brasil – contra os militantes da chamada luta armada, nenhum desses/as miltantes jamais foi condenado por “terrorismo”, sequer pela Justiça Militar em vigor. Além disso, o presidente do STF deveria manter um mínimo de compostura e não se expor como um beócio, que ignora que aqueles a quem pretende intimidar com suas bazófias já foram torturados, interrogados, julgados, condenados, cumpriram pena e foram anistiados. Ou seja, essas declarações o desqualificam para ocupar o mais alto cargo do Judiciário desta República, pois revelam ignorância e/ou má-fé.

Medidas que urgem

Frente a esse quadro, além dos processos contra os torturadores, três outras medidas urgem ser tomadas, sob pena, inclusive, de continuarmos expostos a condenações

artigo

Temístocles Marcelos e Rui Kureda

ONGs transnacionais em xeque

internacionais, como aconteceu recentemente na Corte Interamericana reunida nos EUA. As duas primeiras, cabem ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva: demitir seu ministro da Defesa – doutor Jobim –, e o diretor da AGU – doutor José Antonio Dias Toffoli. Ambos são nomeados pela Presidência. A terceira, cabe ao Judiciário: através de impeachment ou qualquer outro instrumento legal, destituir o doutor Gilmar Mendes do cargo que hoje ocupa. Deixar enquistados no aparelho de Estado personagens que se utilizam desses métodos e práticas significa conivência com tais procedimentos, cujas conseqüências são das mais graves. Sobretudo se temos claro que, para enfrentar com sucesso a crise que se avizinha, necessitamos fechar todas as brechas para qualquer aventura totalitária. E não tenhamos dúvida: a saída da crise não será conquistada apenas pelas medidas econômicas mais, ou menos acertadas que se possam tomar. A saída será fundamentalmente política, e as conspirações e provocações da ultradireita já estão em curso. NB – Um conjunto das mais expressivas entidades de defesa dos Direitos Humanos organizou e está fazendo circular um importante abaixo-assinado em apoio às políticas desenvolvidas pela SEDH e ao ministro Paulo Vannuchi. O documento pode ser acessado em nossa página na internet (www.brasildefato.com.br).

Frei Betto

Tortura: Suprema decisão

Gama

HÁ ALGUM tempo, o papel das ONGs transnacionais, em especial na Amazônia, tem sido objeto de polêmica. A publicação de A ecologia política das grandes ONGs transnacionais conservacionistas, de Antonio Carlos Diegues (org.), professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental da USP (PROCAM), traz uma contribuição importante a esse debate. Infelizmente, o livro não teve ainda o impacto merecido. A coletânea traz textos escritos por diversos autores que abordam diferentes aspectos das filosofias e práticas de ONGs como a The Nature Conservancy (TNC), Conservação Internacional (CI) e a WWF. Ao longo do livro, somos confrontados com análises críticas, relatos e denúncias contundentes que não podem ser ignoradas. Os títulos dos textos que compõem a coletânea dão uma idéia do foco do livro: “Um desfio aos conservacionistas”; “Por dentro da TNC – Nature Conservancy: Arrebata bilhões”; “Filantropia faz ativos em parceria com as corporações”; “Refugiados da conservação”; “Expulsão para a Conservação da Natureza: Uma visão global”. O livro incide principalmente sobre as estratégias conservacionistas das grandes ONGs transnacionais, em particular da WWF (World Wildlife Fund), da CI (Conservation International) e da TNC (Nature Conservancy). Estratégias que, como sabemos, têm exercido grande influência nas políticas públicas de vários países ao redor do mundo, sobretudo através do incentivo à criação de áreas protegidas integrais, onde as comunidades tradicionais têm sofrido forte impacto em seu modo de vida e cultura, quando não são expulsas ou deslocadas. É exatamente essa influência o fato mais preocupante. Afinal, são ONGs cujos laços com corporações transnacionais, muitas delas com assentos nos seus conselhos consultivos, são notórias. A dimensão da influência e do impacto dessas estratégias é evidenciada pelos números citados por Diegues em sua Introdução. Atualmente existem “mais de 100 mil dessas áreas protegidas no mundo, muitas de proteção integral, cobrindo cerca de 20 milhões de km², superfície equivalente a do continente africano. (...) calcula-se que entre 10 a 14 milhões de pessoas foram expulsas dessas áreas, incluindo povos indígenas e tradicionais.

No Brasil, a superfície de áreas protegidas na Amazônia já supera os 10% do território (...)”. Sem dúvida, o livro apresenta questões cruciais, com argumentos sérios e fundamentados. Só esse fato é suficiente para suscitar um debate amplo envolvendo ONGs ambientalistas e demais organizações e movimentos sociais.

Questões de fundo

É verdade que, no livro, o Brasil está praticamente ausente. Mas isso não nos exime da tarefa de averiguar, pois as ONGs transnacionais adotam filosofias e práticas coerentes no Brasil ou em qualquer outro país, ainda que adaptadas às especificidades nacionais. Ademais, é notório que essas ONGs têm uma influência significativa no Brasil, o que nos leva a concordar com Diegues sobre a necessidade de pesquisar “a ação dessas grandes ONGs presentes no Brasil, suas estratégias e práticas conservacionistas, seus impactos sobre as políticas dos órgãos públicos, das quais participam ativamente, como é o caso do Projeto ARPA, os programas de identificação de áreas prioritárias para a conservação e, sobretudo, sobre as populações tradicionais, cujos territórios foram transformados em áreas de proteção integral com conseqüências semelhantes às que foram descritas por vários trabalhos desta coletânea”. Além da ARPA, outro exemplo de sua influência é a participação dessas ONGs no Conselho Consultivo recém-formado pelo Ministério do Meio Ambiente. Não se trata de transformar as citadas ONGs em réus. Mas sim de realizar uma reflexão crítica e uma avaliação das políticas e práticas não só das ONGs transnacionais, mas do conjunto do movimento socioambientalista. Afinal, apesar de conquistas e

avanços logrados nos últimos anos, os reveses têm sido muitos. Lembremo-nos “apenas” das derrotas sofridas no CTNBio em torno da liberação dos transgênicos e dos enormes impactos causados pelas grandes obras implementadas a toque de caixa. Outro tema crucial é a delimitação dos papéis e da relação entre os principais atores e segmentos: o poder público, os agentes do mercado e os representantes da sociedade civil. Não são poucos os planos e projetos que, em nome de causas nobres e sob o rótulo de “parceria”, estabelecem uma conciliação entre interesses antagônicos. Mas, em tais casos, quando as fronteiras entre o público e o privado desaparecem, já não se pode falar de “parceria” ou de “aliança”. As críticas presentes nos textos do livro de Diegues sugerem exatamente que por trás do conservacionismo de algumas ONGs pode estar a mão invisível de interesses estranhos à causa socioambiental. Tais questões já vêm sendo debatidas, mas ainda de modo tímido e restrito. Não será hora de fazermos um debate aberto, colocando o dedo na ferida? Pensamos que sim. E, reafirmamos, o livro de Diegues é referência obrigatória. Deve ser lido e divulgado amplamente. Temístocles Marcelos é membro da Executiva Nacional e coordenador da Comissão Nacional do Meio Ambiente da CUT; Rui Kureda é militante ecossocialista e ex-assessor da Comissão Nacional do Meio Ambiente da CUT.

Para saber mais Título: A ecologia política das grandes ONGs transnacionais conservacionistas Autor: Antonio Carlos Diegues (organizador) Editora: Nupaub – USP

ESTÁ EM mãos do Supremo Tribunal Federal (STF) a decisão de uma questão polêmica: a Lei de Anistia – promulgada em 1979, em pleno regime militar – considera inimputáveis os torturadores da ditadura? Um dos juízes que dará resposta é ex-preso político, o ministro Eros Grau, nomeado por outro ex-preso político, o presidente Lula, que usufrui o direito de indenização pecuniária mensal. A tortura é considerada crime hediondo, inafiançável e imprescritível por leis brasileiras e internacionais. O Brasil aprovou o Estatuto de Roma – tratado internacional de proteção aos direitos humanos – através do Decreto Legislativo n° 112, de 7/6/ 2002, promulgado pelo decreto n° 4.388, de 25/9/2002. Uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, inédita, encaminhada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), exige do STF decidir se crimes comuns praticados por militares e policiais durante a ditadura estão cobertos pela Lei de Anistia. O presidente da entidade, Cezar Britto, sustenta que a lei de 1979 não isenta militares envolvidos em crimes e deixa em aberto a possibilidade de nova interpretação que permita ao Brasil rever ações praticadas por agentes do Estado. Anistia não é amnésia. Britto alega que a anistia foi elaborada sobre “base falsa”, para assegurar impunidade a quem torturou. Segundo ele, se o período militar não for passado a limpo, os erros cometidos podem se repetir: “É preciso abrir os arquivos (da ditadura) e contar nas escolas a verdade”, afirma. Países como Argentina, Chile e Uruguai apuraram os crimes e puniram responsáveis. Não por uma questão de vingança, e sim de justiça, inclusive com o aparato policial e as Forças Armadas. Não se pode confundir essas instituições com aqueles que, no reino do arbítrio, praticaram, em nome do Estado, tudo aquilo que contraria princípios elementares dos direitos humanos: sevícias, assassinatos, juízos sumários, desaparecimentos e seqüestros de crianças. No Brasil, a Lei de Anistia foi elaborada pela ditadura e promulgada pelo general Figueiredo. Os “juristas” de plantão preferiram ignorar os avanços do Direito em casos semelhantes na Europa da Segunda Guerra Mundial. As Resistências francesa e italiana operaram do mesmo modo que, mais tarde, o fariam os “subversivos” brasileiros: recorreram às armas. Terminada a guerra, nenhum membro das Resistências foi anistiado, foram todos homenageados por suas ações consideradas heróicas – delas resultaram a derrota do nazifascismo e a libertação daqueles povos, restituídos à democracia. Os nazistas, entretanto, foram presos, julgados e condenados. O Tribunal de Nuremberg constitui um caso jurídico sui generis. Foi um julgamento realizado ex post facto. O princípio do Direito prevaleceu sobre a ilícita legalidade e as conveniências políticas. Ainda hoje, nazistas sobreviventes são passíveis de punição.

O Brasil inventou algo inusitado na história: tentar apagar, por um decreto de “anistia recíproca”, um de seus períodos mais cruéis, os 21 anos (1964-1985) de ditadura. Como se a memória nacional pudesse eclipsar-se por milagre. Assim, os algozes permanecem impunes. E as vítimas? Estas carregam o doloroso peso de, até hoje, conviverem com danos morais e físicos, verem seus torturadores impunes e seus mortos desaparecidos. Não bastasse isso, a Advocacia Geral da União (AGU) decidiu, agora, assumir a defesa de torturadores acusados formalmente. O governo do presidente Lula adiantou-se à decisão do STF e colocou o aparato jurídico do Estado (leia-se, do povo brasileiro) a serviço daqueles que violaram o sistema democrático e praticaram crimes hediondos. A União decidiu assumir a defesa dos excomandantes do DOI-Codi de São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel, no processo instaurado contra eles pelos procuradores federais Marlon Weichert e Eugênia Fávero. Estes exigem que ambos sejam declarados culpados pelos crimes cometidos sob o comando deles. Na contestação apresentada em 14 de outubro pela AGU à 8ª Vara Federal Cível de São Paulo, a advogada Lucila Garbelini e o procurador-regional da União em São Paulo, Gustavo Henrique Pinheiro Amorim, defendem a tese de que a lei de 1979 protege os coronéis: “A lei, anterior à Constituição de 1988, concedeu anistia a todos quantos, no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos (...). Assim, a vedação da concessão da anistia a crimes pela prática de tortura não poderá jamais retroagir”. A ação do Ministério Público contra Ustra e Maciel é a primeira a contestar a validade da Lei da Anistia para acusados de tortura. Os procuradores Marlon Weichert e Eugênia Fávero pedem que Ustra e Maciel restituam à União todo o dinheiro pago em indenizações a vítimas de tortura no DOI/CODI, entre 1970 e 1976. Segundo dados das próprias Forças Armadas, divulgados no livro “Direito à Memória e à Verdade”, edição da Presidência da República, 6.897 pessoas passaram por aquele antro de sevícias. A maioria, como Frei Tito, sofreu espancamentos, choques elétricos, pau-de-arara, afogamento, asfixia etc. Muitos, como Vladimir Herzog, foram assassinados amarrados na cadeira-do-dragão, revestida de metal para aumentar a potência das descargas elétricas. A União tinha três alternativas: entrar no processo ao lado dos procuradores; permanecer neutra; tomar a defesa dos carrascos. Preferiu a terceira, escolha inconcebível e inaceitável, até porque contradiz frontalmente toda a legislação internacional assinada pelo Brasil, bem como as recomendações da ONU. E ofende a memória nacional e a todos que lutaram pelo restabelecimento do atual Estado Democrático de Direito. Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

Banco do Sul: um FMI sul-americano ou um financiador da solidariedade? ALTERNATIVA Movimentos defendem paridade entre países nas decisões do novo órgão; mas Brasil quer ter peso maior Presidencia de la Republica del Ecuador

Renato Godoy de Toledo da Redação

Divergências O representante venezuelano na reunião, Eudomar Tovar, afirmou que, com o Banco do Sul, “os Estados da região não terão que buscar recursos no exterior, pois poderão canalizar suas reservas para projetos de investimento e, dessa forma, a vulnerabilidade financeira será menor”.

“Recentemente, o Brasil clamou por uma alteração nos organismos multilaterais, reivindicando maior poder de decisão para os países em desenvolvimento. No entanto, no Banco do Sul, eles defendem o mesmo modelo do Norte”, observa Strautman, da Rede Brasil

É com base nesses argumentos que os movimentos sociais e alguns governos sul-americanos, como o equatoriano e o boliviano, têm defendido a criação do Banco do Sul. Porém, há divergências entre movimentos sociais e outros governos a respeito de como deve ser o funcionamento da instituição. De um lado, as organizações defendem que o órgão rompa com a lógica de investir em projetos que integrem o capital, ao invés dos povos, e passem a financiar o desenvolvimento social dos países, respeitando a soberania de

Rafael Correa, Lula, Cristina Kirchner, Hugo Chávez, Nestor Kirchner, Alan García e Evo Morales durante a fundação do Banco do Sul

cada um. Por outro lado, alguns governos, como o brasileiro, defendem que os países que concederem maior aporte financeiro tenham maior peso nas decisões da instituição. A crítica dos movimentos a essa posição dá conta de que, nos órgãos do Norte, a composição é feita dessa maneira: cada dólar, um voto. Atualmente, os EUA têm, sozinhos, 17% dos votos do FMI e, no Banco Mundial, os países do G8 concentram mais da metade dos votos. Para Gabriel Strautman, secretário-executivo sobre instituições multilaterais da Rede Brasil, o modelo de peso por tamanho de economia não condiz com o projeto de banco solidário que os movimentos sociais esperam da iniciativa sul-americana. “Os órgãos em que os países ricos têm mais poder de voto atendem às determinações deles. Para criar um projeto solidário, é preciso inverter essa lógica. As maiores economias têm sim que colocar mais recursos. E a dinâmica deve ser: cada país, um voto. Tem que haver uma mudança na governança das instituições”, defende. Strautman aponta uma contradição no discurso do governo brasileiro. “Recentemente, o Brasil clamou por uma alteração nos organismos multilaterais, reivindicando maior poder de decisão para os países em desenvolvimento. No entanto, no Banco do Sul, eles defendem o mesmo modelo do Norte. Na construção do banco, tem que haver um esforço de solidariedade, se não, vai ser um processo viciado de reprodução dos bancos do Norte”, afirma. Para ele, o país deve ficar atento e rejeitar as investidas do FMI, que recentemente se disse capaz de conceder empréstimos rápidos aos países que necessitarem. “Eles enxergam a crise como uma oportunidade. O que o FMI oferece como solução, na verdade, é a causa da crise: as políticas ultraliberais, que acarretam em privatização, desregulamentação do fluxo de capitais e a diminuição do papel do Estado”, diz. Lógica antiga De acordo com Fátima Melo, coordenadora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), o Brasil, com essa postura, segue os antigos preceitos definidos nas convenções de Bretton Woods, em 1944. “Para os países que têm mais poder, existem dois caminhos: o de se impor, com o uso da força, ou o da concertação. O destino dos países maiores está ligado aos países vizinhos. As nações com as maiores economias têm que pagar uma conta

proporcional ao seu poder. Portanto, se o Brasil e a Argentina têm maior condição de aportar recursos, devem fazê-lo, em seu interesse e em interesse dos demais. Se não, vira um unilateralismo aos moldes do [presidente dos EUA George W.] Bush, que determina a lógica que levou ao desastre no qual o mundo se encontra hoje”, explica.

Para Emir Sader, ainda que não coloque em risco a hegemonia do Banco Mundial e do FMI, o Banco do Sul é uma boa solução para a construção de um mundo multipolar

Já Emir Sader, sociólogo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), acredita que o funcionamento do novo órgão deve seguir uma perspectiva mais realista, diante do quadro político atual. “Tem que haver uma decisão equilibrada. Se cada país tiver o mesmo peso, isso pode induzir os países com mais recursos a não destinar todas as suas reservas para o Banco do Sul. É necessário que se combine as perspectivas democráticas, de cada país ter o mesmo peso, com as realistas, pois as concepções dominantes no continente não são tão democráticas. O mesmo deve ser feito em relação às taxas de juros: elas têm que estar abaixo dos patamares mundiais, mas não se pode emprestar a fundo perdido, pois o banco pode quebrar”, considera.

Hegemonia Para o sociólogo, ainda que o Banco do Sul não consiga fazer frente à hegemonia construída pelas instituições financeiras internacionais, o nascimento da nova instituição pode contribuir para uma ordem mundial menos concentrada. “A criação do banco não põe em risco [a predominância do FMI e Banco Mundial] porque ela não terá um peso determinante na economia mundial. Mas ela aponta para a criação de uma moeda única e de um banco central único, que irá aplicar políticas econômicas que, ainda que não sejam únicas, serão convergentes. Enfim, o banco é uma boa solução para a construção de um mundo multipolar”, conclui.

PETRÓLEO

Momento é propício para criar organismo regional

Investimentos futuros são melhor caminho para royalties

Banco estimula debate sobre modelo de desenvolvimento da Redação O período de crise econômica internacional dá um fôlego maior para a criação do Banco do Sul. Essa é a opinião de especialistas que vêem no órgão uma oportunidade de consolidar uma alternativa regional para os países que enfrentam dificuldades financeiras. O nascimento desse órgão regional também insufla o debate sobre qual deve ser o modelo de desenvolvimento para o continente. “Através do Banco do Sul, temos a possibilidade de decidir qual modelo de desenvolvimento os recursos do banco vão apoiar. Uma coisa é o FMI decidir o que vai ser apoiado, outra é nós mesmos decidirmos. Isso vai abrir um debate sobre o que queremos desenvolver com os recursos”, prevê Fátima Melo, da Fase. Para Gabriel Strautman, a maior contribuição do banco nesse momento de crise seria criar uma “complementaridade entre as economias locais, reduzindo a dependência, nos blindando e nos protegendo contra recessões”. O principal diferencial do órgão sul-americano, em relação ao FMI, deve ser o respeito à autodeterminação dos povos, de acordo com Strautman. “Não basta apenas criar uma nova fonte, essa fonte tem que estar disponível para os países. Não se pode criar condições para acessar o dinheiro [do Banco do Sul]. O dinheiro deve ser acessado livremente pe-

lo país, para executar aquilo que a sociedade almeja”, afirma, estabelecendo um contraponto às exigências que os organismos multilaterais fazem aos países devedores.

Gisele Barbieri de Brasília (DF)

“Através do Banco do Sul, temos a possibilidade de decidir qual modelo de desenvolvimento os recursos do banco vão apoiar”, prevê Fátima Melo, da Fase Participação Strautman também aponta outra inversão de lógica que deveria pautar o surgimento do banco. Em vez de ter como conselheiros altos funcionários de empresas transnacionais, a instituição deveria abrir espaço para os movimentos sociais do continente. “É preciso criar canais efetivos de participação dos movimentos, para que eles tenham sua voz ouvida no processo de construção de um novo modelo. Outro critério que deve balizar a atuação do banco é a transparência. A instituição tem que mostrar quais são as regras para os financiamentos, para que a sociedade saiba quais são as disputas em jogo”, opina. (RGT) Presidencia de la Republica del Ecuador

A CRIAÇÃO de instituições de poder regional na América do Sul torna-se ainda mais urgente diante de uma crise internacional, cuja real dimensão ainda não pode ser mensurada. Com base nessa avaliação, especialistas apontam a relevância e a necessidade de se avançar o debate acerca do Banco do Sul, uma alternativa para os povos da América do Sul à dependência em relação aos organismos multilaterais do Norte. Em momentos de crise e recessão, o caminho tradicional dos países do Sul é recorrer aos socorros financeiros de órgãos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. No entanto, todos os países que contraíram dívidas com essas instituições conhecem as conseqüências: dependência financeira e submissão às políticas liberalizantes exigidas como contrapartidas. Daí a importância de consolidar um organismo financeiro para que os países sul-americanos possam recorrer a um órgão próprio em momentos como o atual. O Banco do Sul está prestes a se tornar uma realidade. No dia 10, uma reunião em Caracas (Venezuela) acertou os últimos detalhes de um documento que deve formalizar o nascimento do banco. Além de representantes venezuelanos, o encontro contou com delegados do Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai e Uruguai. Em um novo encontro, a ser realizado em breve, o texto deve ser finalizado e enviado aos mandatários dos países signatários, para que apontem suas ponderações. Inicialmente, o banco deve contar com um capital de 20 bilhões de dólares e o aporte de cada país deve ser proporcional à sua economia.

Banco deve respeitar autodeterminação dos povos

A má utilização dos recursos dos royalties do petróleo – valor pago ao Estado pela exploração do insumo – entre os municípios brasileiros é um problema tão preocupante quanto a desigualdade na sua distribuição. A conclusão está em um documento divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que concluiu que 80% dos royalties do petróleo ficam com as cidades mais ricas. Em 2007, mais de 57% dos recursos foram para microrregiões de alta renda, e pouco mais de 3% para as de baixa renda. Dos 5,6 mil municípios do país, apenas 907 foram realmente beneficiados com os royalties. Segundo o pesquisador do Ipea Márcio Ribeiro, a divisão dessa arrecadação se dá de acordo com a localização geográfica, considerando a proximidade de Estados e municípios dos campos petrolíferos. Porém, o pesquisador aponta que o maior problema está na aplicação desse dinheiro. “Esses recursos estão sendo usados pelos governos municipais e estaduais sem uma preocupação de investimentos futuros na área de infra-estrutura ou para descobrir possíveis fontes alternativas de energia. Os municípios que mais recebem royalties têm um crescimento menor no seu produto per capita. Esses recursos estão sendo usados para gastos correntes. É necessário pensar nas gerações futuras.” O pesquisador sugere como alternativa o exemplo do Estado do Alasca – nos Estados Unidos. Lá, os dividendos do fundo do petróleo são repartidos igualmente entre seus cidadãos, criando uma espécie de Bolsa Família anual na região. (Radioagência NP)


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brasil Joel Silva/Folha Imagem

Todo poder aos bancos OLIGOPÓLIO Com fusão do Itaú e Unibanco e as possíveis aquisições de bancos públicos, cinco instituições concentrarão 80% dos ativos financeiros Dafne Melo da Redação A FUSÃO dos bancos Itaú e Unibanco chama a atenção pelo calibre das duas empresas, mas, segundo especialistas, não traz nada de muito novo. Apenas reforça o cenário de concentração das instituições bancárias que se iniciou nos últimos 15 anos. De 1995 a 2008, os cinco maiores bancos que atuam no país (Itaú-Unibanco, Banco do Brasil, Bradesco, Grupo Santander e Caixa Econômica Federal) aumentaram de 45,2% para 75,2% o total de ativos do sistema bancário, de acordo com pesquisa feita pela consultoria Austin Rating e pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração (Inepad). Miguel Pereira, da direção da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf), avalia que há dois aspectos mais imediatos que devem ser observados acerca dessa tendência: a situação dos trabalhadores das empresas envolvidas e as conseqüências para a sociedade de um mercado concentrado. Além disso, em termos mais gerais, a fusão consolida um oligopólio cada vez mais forte, econômica e politicamente, para resistir às tentativas de regulamentação do setor financeiro, no qual os bancos se inserem. “Os bancos não prestam nenhuma conta à sociedade brasileira. O povo está a serviço deles, e não eles a serviço do Brasil”, analisa Pereira.

Crise?

Assim que a fusão foi anunciada pelas famílias proprietárias do Itaú e do Unibanco – Setúbal e Moreira Salles, respectivamente –, os presidentes dos bancos afirmaram que a negociata estava sendo feita há 15 meses e que, portanto, a atual

Quanto

13 anos foram suficientes

para que os cinco maiores bancos do Brasil ampliassem de 45,2% para 75,2% sua participação no mercado brasileiro

crise não havia tido peso. Leda Paulani, professora do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP), avalia que, ainda que a operação já estivesse sendo pensada há anos, a crise pode ter apressado o acordo. “Até onde a gente sabe, o Unibanco tinha alguns problemas, nada sério, mas estava enfraquecido. O advento da crise tornou quase que imperativa essa fusão, que parece mais uma aquisição por parte do Itaú”, opina. Reinaldo Gonçalves, economista da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), avalia que, num cenário mundial onde os bancos buscam por saneamento financeiro, é certo que a operação foi impulsionada pela crise. “Não acho que seja coincidência que, no momento desse furacão, ocorra essa fusão entre dois dos maiores bancos brasileiros”, observa.

Acumulação

Paulani ainda aponta que a tendência de concentração de capital faz parte da própria natureza do processo de acumulação capitalista. “Nos períodos de normalidade, o capital cresce e concentra. Se a empresa vai bem, tem lucro, reinveste e cresce mais. Então, haveria uma tendência natural de formar grandes blocos. Quando há um período de crise, o capital se concentra mais por conta de uma centralização de capitais: absorção de capitais menores e fragilizados pelos capitais mais robustos”, explica. Reinaldo Gonçalves aponta

Roberto Setubal, presidente do Banco Itaú, explica a fusão das instituições à imprensa

Bancários temem demissões Sindicatos pressionam nova empresa para obter acordo assinado que garanta os atuais postos de trabalho da Redação que, como o setor bancário já está concentrado há anos, essa fusão, especificamente, não piora o quadro, embora o reforce. “Antes eram três bancos brasileiros, agora são dois que dominam o setor privado. Sempre atuaram como um condomínio, têm rivalidade, mas não muita”, analisa. Ainda que essa competitividade fique mais comprometida, completa Gonçalves, “o brasileiro já vem tendo um serviço bancário ruim e a preços altos há muito tempo”. E, em termos de poder econômico, o bloco privado se mantém praticamente o mesmo, junto com o grupo espanhol Santander (que comprou o Amro Real em outubro de 2007, que, por sua vez, havia comprado o Sudameris em 2003).

Instituições federais também farão aquisições Medida Provisória autoriza bancos públicos a comprar outras instituições financeiras; sociedade deve exigir contrapartida da Redação Caso o Banco do Brasil concretize a compra da Nossa Caixa, banco estadual de São Paulo, e do Banco Votorantim, a participação dos cinco maiores bancos atuantes no Brasil pode chegar a 80,41% dos ativos do país. As duas operações estão quase certas e devem ser anunciadas nos próximos dias. Isso foi possível graças à edição, no dia 22 de outubro, da Medida Provisória nº 443, que autoriza os bancos públicos brasileiros a adquirirem participações em instituições financeiras no país sem passar por um processo de licitação. Além de bancos, poderão comprar seguradoras, instituições previdenciárias, empresas de capitalização e outros. O Banco do Brasil e a Caixa também poderão constituir subsidiárias no exterior. Expediente semelhante foi feito, no contexto da crise, por governos europeus e estadunidense, o que foi chamado pela imprensa de uma onda de reestatização. Entretanto, especialistas apontam que as regras e contrapartidas devem estar bem claras para que essas operações sejam de fato estatizações, e não uma socialização das perdas. “É inadmissível que o governo brasileiro use dinhei-

ro público para salvar banqueiro. Se for comprar, deve ser exigida uma contrapartida”, opina Miguel Pereira, da direção da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf).

“É inadmissível que o governo brasileiro use dinheiro público para salvar banqueiro. Se for comprar, deve ser exigida uma contrapartida”, opina Miguel Pereira, da Contraf

Outro banco

Pereira avalia que, por serem bancos públicos, o Banco do Brasil e a Caixa têm ainda mais necessidade de regulamentação e controle social. Ele aponta que mesmo que, muito longe do exigido pelos movimentos sociais, esses são os únicos com linhas

de crédito para programas de moradia popular ou de agricultura familiar. É nesse sentido que Pereira afirma que as instituições financeiras devem estar a serviço da sociedade, para intensificar programas como esses ou conceder crédito à indústria, por exemplo. Entretanto, não é assim que o governo Lula tem agido desde o começo. Com a crise, nada mudou. “O Brasil vai contra a tendência mundial: enquanto, em todo mundo, com a crise, há tendência de perda de poder relativo do setor financeiro, no Brasil, esse poder econômico dos bancos está sendo reforçado. Isso expressa um governo que é pautado por esse setor financeiro, o bancário, em particular”, defende Reinaldo Gonçalves, professor de Economia da UFRJ. Ele ainda aponta que todas as medidas que Lula tomou desde o início da crise atenderam a três setores: o financeiro, o agronegócio e as construtoras. “A política econômica é um fracasso total do ponto de vista de Brasil, mas atende perfeitamente aos interesses do setor dominante. O fato do Banco Central (BC) não reduzir as taxas básicas só favorece esse setor”. Na última reunião, o Conselho Monetário manteve a taxa de juros em 13%, 75% ao ano. (DM)

Fusões e aquisições de empresas são sempre notícias aflitivas para os trabalhadores das instituições envolvidas. Hoje, Itaú e Unibanco somam cerca de 100 mil trabalhadores, sendo 68 mil na empresa da família Setúbal e 32 mil na dos Moreira Salles. Na coletiva de imprensa do dia 3, concedida pelos executivos Roberto Setúbal e Pedro Moreira Salles, as promessas foram de que trabalhadores não serão demitidos. “Estamos fazendo esse negócio olhando para o crescimento, não para a redução”, afirmou Salles. Questionados se tinham um planejamento para a tal ampliação, Setúbal se limitou a dizer que “vai depender do crescimento da economia”. Miguel Pereira, da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf), afirma que não basta a promessa dos presidentes do Itaú e Unibanco; ele quer um acordo assinado, já que, historicamente, os dois bancos não hesitaram em cortar postos de trabalho após absorverem outras empresas. “Eles fizeram esse procedimento para otimizar estrutura, produzir mais com menos. Quando um banco

compra outro, não fica com as duas estruturas, todas as agências, todos os funcionários. Nós estamos escaldados nisso”, afirma. O sindicalista diz que, nesses casos, os bancos costumam fazer uma análise das estruturas e verificam atividades e funções que se sobrepõem. Em seguida, demitem. “Nós não podemos pagar a conta dessa fusão, desse cenário oligopolizado, até porque é o trabalhador que sofre também com um setor menos competitivo e oneroso.”

Reuniões

Logo após o anúncio, a Contraf pediu uma reunião com a direção. No dia 10 foi feita a primeira, em São Paulo (SP), com os diretores de recursos humanos do Itaú, Marcos Carnielli, e do Unibanco, Sérgio Fajerman. Os bancários apresentaram três reivindicações centrais: manutenção do número de agências, dos empregos e direitos dos trabalhadores, além de um processo de negociações permanentes. As empresas reafirmaram que não fecharão agências e se dispuseram a manter uma mesa de negociação com os representantes dos trabalhadores durante todo o processo de fusão. Entretanto, nenhum documento formal foi assina-

do, o que a Contraf pretende conseguir nas próximas reuniões. Para o presidente do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, Luiz Cláudio Marcolino, “a fusão transforma esse novo banco no maior do Brasil e do hemisfério Sul, com condições de concorrer com grandes instituições do mundo. Ou seja, não precisam demitir, pelo contrário, devem contratar para fazer frente ao grande negócio que acabaram de concretizar”. No próximo encontro, os sindicalistas esperam sair com um documento assinado em mãos: “achamos extremamente importante estabelecer esse processo de negociação e esperamos que, na próxima reunião, os bancos possam assumir por escrito a garantia de que não haverá cortes de postos de trabalho com a fusão”, observou Carlos Cordeiro, secretário-geral da Contraf e funcionário do Itaú, que participou da reunião. Enquanto isso, os sindicatos orientam que os bancários façam denúncias caso ocorram demissões. “Não pode haver dispensa enquanto há um processo de negociação em curso”, diz Marcolino. (DM, com informações do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região).


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nacional

Relatório denuncia impactos gerados pelo avanço da cana em todo o Brasil Ripper

AGRONEGÓCIO Estudo contradiz tese do governo de que o etanol é uma energia “limpa”, produção do combustível causa danos sociais e ao meio ambiente Michelle Amaral da Redação O AVANÇO do monocultivo da cana-de-açúcar no Brasil ameaça a soberania alimentar, gera degradação do meio ambiente e propicia exploração do trabalho. Essas são as principais constatações do relatório: Os impactos da produção da cana no Cerrado e na Amazônia, elaborado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). O levantamento mostra que a principal causa da expansão da cana no Brasil é a produção do etanol. A União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) estima que 70% da cana colhida seja destinada à produção do etanol, enquanto os outros 30% são para a produção de açúcar. Hoje, o setor sucroalcooleiro produz cerca de 18 bilhões de litros de etanol, e a previsão é de se chegar a 28 bilhões em 2010. De acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), nos últimos dois anos, a área de plantação de cana-de-açúcar cresceu de 4,5 milhões para 7 milhões de hectares. Segundo Maria Luisa Mendonça, coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a expansão do monocultivo é resultado de uma opção política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, impulsionada pela pressão da bancada ruralista e de grandes empresas. “O Lula está fascinado com essa história do etanol, de que o Brasil vai se tornar uma potência energética”, opina Maria Luisa.

Grandes canaviais

De acordo com o relatório, o monocultivo impede que o Brasil alcance a soberania alimen-

No entanto, de acordo com o estudo, a produção de cana já tem causado grandes impactos ambientais e sociais no Brasil, alguns deles irremediáveis, como por exemplo a devastação da Mata Atlântica e do Cerrado. “A cana já está na Amazônia, e os governos, tanto federal como estaduais, contribuem para isso”, afirma Mendonça. Segundo ela, o papel das usinas sucroalcooleiras é legalizar a grilagem de terras, e os próprios governos contribuem com essa prática.“O próprio governo Lula já aprovou a Medida Provisória para facilitar a grilagem de terras”, denuncia. A Medida Provisória aumenta de 500 para 1.500 hectares a área de terras públicas que pode ser vendida sem licitação na Amazônia.

tar. Terras antes destinadas à produção de alimentos têm sido transformadas em extensos canaviais. “Nós estamos expandindo um modelo que sabemos que é destruidor”, lamenta a coordenadora da Rede Social. Para José Plácido Junior, agente pastoral da CPT-PE, governo federal foi convencido pelas transnacionais de que o agronegócio é a solução para a agricultura brasileira. “As transnacionais não estão preocupadas em encher a barriga do povo, e sim, em lucrar cada vez mais, seja qual for a cultura que tenham que plantar. No momento, são os agrocombustíveis. Quando passar essa euforia, quem vai pagar a conta?”, questiona. O relatório alerta para o fato de que a energia que a humanidade necessita para sua sobrevivência é a gerada pelos alimentos. No Brasil, apesar do potencial agrícola, cerca de 14 milhões de pessoas passam fome e mais de 72 milhões vivem em situação de insegurança alimentar, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Esse quadro é resultado do modelo agrícola adotado, que prioriza a expansão de monocultivos visando a exportação de commodities, em detrimento da produção de alimentos para o mercado interno.

A cana na Amazônia

Cortador de cana em ação: monocultivo impede que o Brasil alcance a soberania alimentar

Pobreza e fome

O estudo também denuncia que o Brasil continua sendo um dos países em que há mais concentração de renda e terra, além de manter um alto índice de pobreza e fome. Maria Luisa destaca que, ao contrário do que é divulgado pelo governo federal – que as terras destinadas à produção do etanol são aquelas já degradadas –, o monocultivo da cana tem avançado em terras férteis.

A coordenadora da Rede Social afirma que o governo deveria priorizar o modelo de agricultura camponesa, e que este, na verdade, não deve ser visto como uma política assistencialista, mas como uma política central. Segundo ela, os países ricos se desenvolveram com a realização da reforma agrária. No entanto, o “Brasil continua desenvolvendo uma política co-

Monocultivo ameaça biodiversidade brasileira

lonial, voltada para o mercado externo”, lamenta.

Plano de zoneamento

O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, afirmou, no início de novembro, que o plano de zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar foi concluído. O ministro disse que o plano garante que não sejam feitas novas usinas de cana na Amazônia

ou no Pantanal, além de estabelecer prazo para acabar com as queimadas da cana e para melhor destinação dos resíduos gerados no processo de produção. Minc também enfatizou que, segundo o plano, não haverá mais invasão de área de produção de alimentos. “Nosso etanol será verde, não vai agredir os biomas, nem vai substituir a produção de alimentos”, defendeu.

Plácido Júnior lembra que não há como o governo federal afirmar que não existe cana na Amazônia, já que própria Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) reconhece a existência do monocultivo na região. Segundo dados da Conab, houve um aumento na produção de cana na Amazônia, entre 2007 e 2008, de 17,6 milhões para 19,3 milhões de toneladas. Para Maria Luisa Mendonça, a política adotada pelo governo contradiz seu discurso, de que a produção do etanol seria uma saída ao aquecimento global. “Ao priorizar uma política que traz a devastação, aumentam-se os impactos sobre o clima. Se a intenção é diminuir o aquecimento global, essa política está equivocada”, conclui. Plácido Júnior aponta outro fator que comprova a expansão da cana na Amazônia. Segundo ele, existem projetos ambiciosos na região, através da Iniciativa de Integração de Infra-estrutura Regional SulAmericana (IIRSA), que visa a construção de hidrovias, por onde será possível escoar a produção de açúcar ou de etanol pelo oceano Pacífico, diminuindo os custos de produção. “É um governo a serviço do grande capital”, completa.

Expansão dos canaviais é acompanhada por exploração de trabalho Ripper

da Redação O relatório “Os impactos da produção da cana no Cerrado e na Amazônia”, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), mostra que a expansão da cana-de-açúcar no Brasil tem causado graves impactos ao meio ambiente. O levantamento aponta o desmatamento e a poluição das águas e do ar como alguns dos prejuízos provocados pela cana. “O modelo de produção baseado no latifúndio e no monocultivo, seja ele de que cultura for, é inerentemente violento e devastador”, afirma José Plácido Júnior, agente pastoral da CPT-PE. Segundo Maria Luisa Mendonça, coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, um exemplo é a Mata Atlântica. “Foi lá onde começou o cultivo da cana. Em Pernambuco, por exemplo, há menos de 3% de Mata Atlântica”, completa.

Somente a cana

No caso da vegetação, Maria Luisa conta que, mesmo quando o plantio de cana se dá em terras antes destinadas à criação de gado, onde já se notava um

nível de desmatamento por causa da abertura de pastos, o efeito do monocultivo ainda causa mais danos ao meio ambiente. “O gado precisa de sombra, então ainda se vê a preservação das árvores grandes. Quando chega a cana, é um outro nível de degradação, porque ela não convive com nenhum outro tipo de vegetação”, completa. “O monocultivo da cana empurra as motosserras e bota o boi para dentro da Amazônia e do Cerrado, causando enormes desmatamentos e destruição ambiental e, além de tudo isso, invade os territórios indígenas e quilombolas”, exemplifica Plácido Júnior.

“Pai das águas”

A exemplo dos efeitos que a expansão da cana traz ao meio ambiente, o estudo relata a devastação que o monocultivo tem causado no Cerrado. Maior bioma brasileiro, o Cerrado abriga a nascente das três principais bacias hidrográficas da América Latina: Tocantins, São Francisco e rio da Prata. No bioma, a produção da cana gera contaminação das águas pelo uso de agrotóxicos e por resíduos lançados nos rios o que afeta a biodiversidade não só do Cerrado, como de outras re-

giões alimentadas por suas águas, como o Pantanal –, e prejudica as populações rurais da região. Além disso, a quantidade de água utilizada para a irrigação das plantações de cana favorece o processo de secagem dos brejos e dos leitos dos rios, dizimando pequenas nascentes.

Poluição do ar

Outro problema apontado pelo estudo é a poluição do ar. Ao contrário da defesa do governo, de que a energia gerada pelo etanol é “limpa”, o relatório mostra que, mesmo antes da conclusão do processo de produção do combustível, ele gera um alto nível de poluição do ar e causa danos à saúde das pessoas. Após a colheita da cana, é feita a queima da palha restante, o que libera gases que contribuem para o efeito estufa. Foram constatados casos de doenças agudas e crônicas e até a morte de trabalhadores por causa da exposição à fuligem gerada pelas queimadas da cana. “Aqui em São Paulo, se você viaja para a região de Ribeirão Preto na época de colheita da cana, vê que a população não consegue respirar por causa das queimadas”, relata Maria Luisa Mendonça. (MA)

da Redação O avanço da cana-de-açúcar aumenta as violações de direitos trabalhistas e os casos de trabalho escravo, denuncia relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Embasado em dados oficiais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o levantamento mostra que os casos de cortadores de cana submetidos a condições de trabalho análogas à escravidão são freqüentes. Faltam recursos básicos à sobrevivência dos trabalhadores nos canaviais e há casos de privação da liberdade, tanto por dívidas ilícitas impostas pelos produtores como por isolamento geográfico. “A maioria dos escravos libertados o ano passado, por fiscais do trabalho e polícia federal que compõem o Grupo Móvel, estava nos canaviais”, conta José Plácido Júnior, agente pastoral da CPT. Além disso, o estudo aponta que os cortadores de cana sofrem com a falta de cumprimento da legislação trabalhista e com a exposição a situações de risco à saúde. No estudo, constataramse intoxicações por uso de produtos químicos, morte dos trabalhadores por inalação de gás cancerígeno, incidência de problemas respiratórios gerados pela queima da palha da cana, que libera gases tóxicos, assim como ferimentos recorrentes por facões utilizados no corte da cana.

Trabalhadora enxuga o suor do rosto em canavial

Maria Luisa Mendonça, coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, defende que a solução para esse problema é a realização de uma reforma agrária efetiva. De acordo com ela, a violação dos direitos dos trabalhadores é resultado do modelo de produção adotado, baseado nos monocultivos e direcionado às empresas transnacionais e grande produtores. “Se você tira da população rural os seus meios de

subsistência, haverá um maior número de mão-de-obra disponível, e se propicia uma maior exploração de trabalho. Nenhum governo realizou uma política agrária compatível com as demandas históricas dos trabalhadores”, explica Mendonça. Segundo Plácido Júnior, com o modelo de produção vigente no país hoje, não há possibilidade de extinção do trabalho escravo ou da devastação ambiental. (MA)


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brasil

João Zinclar

Desrespeito ao zoneamento da cana pode causar expropriação AGRICULTURA Projeto de Lei que tramita na Câmara dos Deputados prevê limite para o plantio da espécie Mayrá Lima de Brasília (DF) UMA COMISSÃO especial a ser instalada na Câmara dos Deputados irá analisar o Projeto de Lei (PL) nº 3.682/2008, que limita o plantio da cana-de-açúcar às propriedades localizadas em áreas com zoneamento ecológico. Segundo o autor da proposta, deputado federal Pedro Eugênio (PT/PE), se aprovada, a legislação acabará com a polêmica de que a “lavoura de cana prejudica a lavoura alimentar”, reservando um espaço para o seu plantio. Para o parlamentar, o crescimento da cana, se não regulado, vai gerar conflitos entre agricultura e meio ambiente e entre produção de energia e de alimentos. “Com o diferencial de rentabilidade a seu favor, a lavoura canavieira cresce a taxas acima daquela que seria compatível com o bem-estar da sociedade. Enquanto o preço da energia estiver alto e em alta, o preço da agroenergia continuará se distanciando dos preços dos produtos alimentares, e a lavoura canavieira continuará atraindo investimentos e se expandindo”, explica Pedro Eugênio.

O PL proíbe a concessão de qualquer modalidade de crédito em que se utilizem recursos controlados pelo poder público ou qualquer incentivo fiscal para as pessoas físicas ou jurídicas que plantarem cana em áreas não incluídas no zoneamento. Mas, há uma exceção: agricultores que fazem parte do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e cultivos em pequena escala, destinados à ração de animais ou à produção de cachaça, rapadura ou açúcar mascavo, não entrariam no rol de punições.

Zoneamento

Falta de regulamentação gera conflitos entre agricultura e meio ambiente

Contudo, o deputado pernambucano deverá ter dificuldades na aprovação de sua proposta já que interfere diretamente no interesse da bancada ruralista. A questão é que, dentre as proposições, o parlamentar prevê a expropriação, por interesse social para fins de reforma agrária, do imóvel rural que estiver fora do zoneamento agroecológico da cana, mas que, ainda assim, continuar praticando o cultivo cana-

Monsanto avança em mercado de etanol CONCENTRAÇÃO Transnacional anunciou um acordo para aquisição de duas companhias brasileiras de Brasília (DF) “Em face aos desafios de longo prazo necessários para atender a crescente demanda global por alimentos e biocombustíveis, a Monsanto está investindo em uma nova cultura: a cana-de-açúcar”. É assim que a transnacional estadunidense justificou, no dia 3, a sua mais nova aquisição no Brasil: a compra das empresas CanaViallis SA e Alellyx SA, ligadas ao grupo Votorantim, por um montante de 290 milhões de dólares (R$ 616 milhões). As duas companhias vinham realizando experimentos para criar variedades de cana transgênica. De acordo com o presidente da Monsanto no Brasil, André Dias, o objetivo “é aumentar a produtividade de lavouras desta cultura (cana) e, ao mesmo tempo, reduzir a quantidade de recursos necessários a sua produção”.

Dinheiro público

Exceção

No entanto, as duas empresas compradas receberam nos últimos três anos nada menos que R$ 49,4 milhões, em subvenção econômica (investimento a fundo perdido), provenientes do Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT), sendo que, desse valor, R$ 6,4 milhões já foram desembolsados. Se, por um lado, o ministro Sérgio Rezende, do MCT, declarou surpresa e decepção com a venda, por outro, não há a menor dúvida do que acontece com o dinheiro público investido nessas empresas e, até mesmo, se havia contrapartida por parte delas. No início deste mês, o deputado federal Adão Pretto (PT/RS) encaminhou um pedido de informações ao ministro Rezende, justamente com esse questionamento. “A aplicação de recursos públicos, principalmente a fundo perdido, em empresas privadas deve ter critérios rigorosos, inclusive com um controle e fiscalização da Câmara dos Deputados”, afirma o parlamentar. Procurada pela reportagem, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), órgão ligado ao MCT que liberou o dinheiro às empresas compradas, disse, por meio do chefe de gabinete da Presidência da instituição, Gilberto Assemany, ainda não ter as respostas sobre o que acontecerá com o dinheiro que já tinha sido liberado. CanaViallis e Alellyx são sediadas em Campinas e foram criadas por cientistas que participaram de projetos de pesquisa de genomas no país. O mais conhecido é o seqüenciamento genético de uma praga da laranja, a ylella fastidiosa, o que resultou em grande repercussão internacional. O nome, Alellyx, foi inspirado nessa pesquisa, é xylella ao contrário. (ML)

vieiro. De acordo com o PL, a propriedade “não estará cumprindo a sua função social”, caso desrespeite a cláusula. Pedro Eugênio conta que, até agora, o projeto não sofreu nenhum tipo de pressão ruralista, mas também não teve grandes repercussões dentro da Câmara. “A mesa ainda precisa informar aos partidos da comissão especial. Não existe um prazo para isso”, diz.

Segundo Pedro Eugênio, o zoneamento da cana no Brasil entrou em fase final de conclusão e está sob a coordenação da Embrapa de consórcio de instituições que incluem o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Companhia de Recursos Minerais (CPRM) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Informações dadas pelo embaixador André Amado, subsecretário geral de energia e alta tecnologia do Itamaraty, durante o anúncio da realização da Conferência Internacional sobre Biocombustíveis como Vetor do Desenvolvimento Sustentável (a ser realizada entre os dias 17 e 21, em São Paulo), mostram que o zoneamento tem por objetivo a demonstração do baixo risco que a produção de álcool combustível (etanol) representaria para a produção de alimento. O zoneamento deverá excluir a Amazônia e o Mato Grosso das áreas agricultáveis por cana.

MARANHÃO

Deputado denuncia tentativa de golpe do grupo Sarney José Cruz/ABr

de São Luís (MA) Com um discurso na tribuna da Câmara Federal, o deputado Ribamar Alves (PSB) denunciou, no dia 7, que o grupo Sarney está tentando antecipar decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra o governador Jackson Lago (PDT). Segundo o deputado, “os senadores do Maranhão, todos, sem exceção, vêm ligando para os prefeitos de todos os municípios do interior, informando que o processo de cassação de Jackson Lago está com data marcada e que eles contam com os votos, na grande maioria, do Tribunal Superior Eleitoral”, afirmou Ribamar Alves, referindo-se ao processo que corre no TSE contra o governador, acusado de abuso de poder econômico nas eleições de 2006. Em seu discurso, o deputado socialista foi enfático ao dizer que os senadores estão ligando para os prefeitos, ameaçando-os, constrangendo-os e deixando-os sob pressão, na expectativa de que haverá cassação imediata do mandato de Lago. Ribamar Alves advertiu ainda que o Maranhão tem sofrido bastante, pois não foram liberadas até agora as emendas de bancada ao Orçamento da União, porque o grupo Sarney, utilizando-se de sua influência junto ao presidente Lula, não deixa o governo federal liberá-las, de modo a impossibilitar que o governo estadual possa realizar um bom trabalho administrativo. Por conta das ameaças do grupo Sarney contra Lago, ressaltou Ribamar Alves, um sentimento de inconformismo se espalha por todo o Maranhão. “Esse inconformismo está se colocando diante das afrontas que estão sendo armadas contra a soberana vontade do povo maranhense. Afronta-se a vontade popular, expressa nas urnas, e a honra do Poder Judiciário, antecipando-se decisões, jactando-se de prestígios que soam como verdadeiro escárnio contra os membros da mais alta corte do país.”

Inconformismo dos derrotados

Depois de fazer uma explanação sobre os resultados positivos alcançados até agora pelo governo estadual, Ribamar Alves advertiu que “é justamente no esforço de construir um governo municipalista, de ampla participação compartilhada, que mora o inconformismo dos derrotados. E apelam aos tribunais para recuperar no tapetão o poder que mantiveram ilegitimamente por quatro décadas”. Ao discorrer sobre as acusações formuladas no processo instaurado no TSE, Ribamar Alves explicou que não há nenhuma prova de que houve uso eleitoreiro de convênios do governo do Estado para supostamente favorecer a eleição de Lago. “Atribuem ao Dr. Jackson Lago, um médico que dedicou a sua vida à causa pública, atribuem a ele os pecados que eles [o grupo Sarney] carregaram a vida toda. Forjam tes-

O senador José Sarney

temunhas, que agora vêm a público e, diante da Justiça, repõem a verdade”, frisou o deputado. Manifestando-se indignado com a forma abusiva com que o grupo Sarney vem fazendo ameaças ao governador, Ribamar Alves explicou que a mídia sarneisista está direcionando o discurso de seus jornais e emissoras de rádio e televisão para sugerir que o TSE, especialmente o ministro Eros Grau, relator do processo, já teria um juízo antecipado favorável à cassação do mandato de Lago. “Eles mencionam inclusive detalhes do relatório, como se acesso a ele tivessem, para mostrarem à população menos esclarecida que têm domínio sobre o ministro Eros Grau; como se eles mandassem no ministro, como se eles dessem ordens ao ministro, como se eles determinassem o que deveria ser escrito no relatório. Eles pregam no Maranhão que o senador José Sarney vem trabalhando uma vaga na Academia Brasileira de Letras para o sr. Eros Grau, em troca do relatório favorável à cassação de Jackson Lago”, declarou o deputado. Ribamar Alves afirmou ainda que considera um absurdo a tentativa de fazer com que “o povo maranhense fique inquieto e desesperado com a possibilidade do retorno, pela porta dos fundos, daqueles que os eleitores botaram para fora, e pela porta da frente, pelo voto popular. Fico entristecido com esses desmandos”. Ao concluir seu discurso, o deputado do PSB, mostrando uma cópia do processo, assegurou que na peça acusatória “não há nada que comprove nada”. Ele enfatizou que o processo que tramita no TSE contra o governador é uma forja de provas que faz lembrar a farsa do caso Reis Pacheco, quando o grupo Sarney acusou o ex-governador Epitácio Cafeteira de ter mandado seqüestrar, matar e ocultar o cadáver do ferroviário José Raimundo Reis Pacheco. (Jornal Pequeno)

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Daniel Dantas Em debate com estudantes da PUC-SP, no dia 4, o delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz, que investigou e denunciou os crimes praticados pelo dono do Banco Opportunity, Daniel Dantas, garantiu que a Justiça vai decretar nova prisão do banqueiro nas próximas semanas – com base nas provas do inquérito policial. Se isso acontecer mesmo, também é certo que o Supremo Tribunal Federal vai liberar o banqueiro novamente. Pizzaria STF É cada vez mais escandalosa a posição do Supremo Tribunal Federal e de seu presidente, ministro Gilmar Mendes, em defesa de torturadores e de bandidos ricos e poderosos. O STF tem concentrado suas baterias na desqualificação das investigações e processos que procuram desvendar os grandes esquemas de corrupção envolvendo empresas privadas e as entranhas do Estado brasileiro. Deveria fazer o contrário. Pura enrolação Enquanto na Argentina e no Chile os ex-torturadores e responsáveis pelos crimes do Estado durante os regimes ditatoriais são julgados e condenados, aqui no Brasil continua a polêmica se a anistia de 1979 vale ou não para quem torturou e matou em nome do regime. Falta vontade política ao atual governo para colocar de público todos os fatos da época – inclusive os documentos da guerrilha do Araguaia – e exigir que a Justiça cumpra o seu papel. Ficha corrida Acostumada a aprontar no Brasil sem sofrer as conseqüências, a construtora Odebrecht não tem conseguido o mesmo desempenho em outros países da América Latina. Há pouco mais de um mês, foi processada, no Equador, por uma obra que apresentava defeitos; e, no início deste mês, foi multada em 145 milhões de dólares, na Venezuela, por sonegação de impostos. Somente aqui que o tomalá-dá-cá tem dado certo. Perseguição étnica Política geral ou não da gestão Gilberto Kassab na prefeitura de São Paulo, o fato é que alguns índios guaranis foram impedidos de vender artesanato na região central da cidade, o que contraria frontalmente o Estatuto do Índio. As autoridades federais e as entidades de direitos humanos precisam ter uma postura mais dura contra os métodos fascistas usados pela administração municipal. Censura acadêmica Por solicitação da Reitoria da Unicamp, a Polícia Civil de Campinas apreendeu o servidor de internet do Grupo de Estudos Saravá, que opera no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas desde 2005 e abriga vários grupos sociais. Tudo porque autoridades da Holanda reclamaram de um site, que já havia sido tirado do ar, que veiculava dados sobre a rede envolvida com a imigração e a deportação do país europeu. O ato atingiu todos os sites do servidor. Braços cruzados Os 1.800 trabalhadores da fábrica da Rhodia em Paulínia (SP) entraram em greve no dia 5, porque a empresa francesa não quis negociar a pauta de reivindicações encaminhada pelo sindicato da categoria, que prevê reajuste salarial de 15%, cesta alimentação de R$ 200, correção de cargos e salários etc. Para vencer o arrocho salarial de tantos anos, só mesmo com greve! Diferença básica O governo dos Estados Unidos anunciou, como sinal da grave crise econômica do país, que o índice de desemprego chegou a 6,5% dos trabalhadores, o mais alto dos últimos 14 anos. Se a taxa de 6,5% causa tanta preocupação por lá, imaginem como está a situação do Brasil, que em outubro – segundo o Dieese – registrou índice de desemprego de 14%, o menor dos últimos dez anos. Haja crise! Roubo legal De 1987 a 1991, os bancos que operam no Brasil surrupiaram dos poupadores e correntistas bilhões e bilhões com os planos Bresser, Verão, Collor I e Collor II. Apenas uma pequena parcela dos prejudicados conseguiu reaver parte do dinheiro apropriado pelos bancos. O Supremo Tribunal Federal continua fazendo o jogo da Febraban, que não quer devolver esse dinheiro para milhões de cidadãos brasileiros. E ainda dizem que a Justiça é imparcial!


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brasil

Em Anapu (PA), uma aliança imoral DENÚNCIA Do Partido dos Trabalhadores (PT), ex-afilhado de Dorothy Stang une-se a envolvido com morte da missionária Eduardo Sales de Lima da Redação A MISSIONÁRIA estadunidense Dorothy Stang foi assassinada há três anos e oito meses, a mando de um grupo de fazendeiros, em Anapu (PA). Nas eleições municipais de outubro, foram seus projetos que sofreram um outro golpe na cidade. Francisco de Assis Sousa, o Chiquinho do PT, ex-afilhado político da freira, elegeu-se prefeito de Anapu, tendo como vice o fazendeiro Délio Fernandes (PRP), investigado como suspeito de ter sido um dos mandantes do assassinato de Dorothy.

“Os grileiros e os madeireiros botaram gente para disputar e venceram nessa região. Aqui é mais simbólico, porque Chiquinho era quase um filho da Dorothy. Por isso, os próximos quatro anos serão de guerra”, afirma a irmã Jane Dwyer Délio não chegou a ser denunciado pelos promotores. No entanto, é suspeito de ter se aproveitado dos mesmos processos de grilagens que Regival-

do Pereira Galvão, o Taradão, e Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, acusados de serem os mandantes do crime. O último foi julgado pela segunda vez em maio e inocentado da acusação de mandante. Nas ruas e comunidades de Anapu, corre a informação de que Délio também concedeu assistência a Bida e o refugiou dentro de sua fazenda logo após o assassinato de Dorothy. Esse é um dos motivos da freira Jane Dwyer não ter votado em Chiquinho do PT. Ela trabalhava com a missionária e vive em Anapu há onze anos. Apesar do apreço que tem por Chiquinho do PT, que era praticamente um filho para sua amiga Stang, Jane não poderia votar em Délio, “se ele levou Bida daqui de avião”. A investigação sobre o viceprefeito eleito de Anapu não conseguiu, entretanto, aprofundar os indícios mais evidentes. A apuração mal-feita sobre o fato de ter refugiado Bida em sua fazenda é um dos maiores exemplos.

Imperícia

A estagnação das investigações sobre Délio e seu grupo, como conta José Batista Gonçalves Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e membro da coordenação nacional da entidade, se deu porque elas se valeram apenas de documentos e testemunhas. “Hoje, um dos meios mais eficazes de se conseguir informações mais precisas sobre as relações de grupos que encomendam crimes, quando se trata de quadrilhas especializadas ou crimes que envolvem um grupo maior de pessoas, são as escutas telefônicas e as quebras de sigilos bancários”, afirma José Batista. Segundo o advoga-

Arquivo Brasil de Fato

A missionária estadunidense Dorothy Stang

do, a utilização de tais aparatos tecnológicos que facilitam o processo de apuração “praticamente inexistiu no processo investigativo do assassinato de irmã Dorothy”. A missionária denunciou Délio em vários momentos por desmatamento ilegal e grilagem de terras públicas no oeste do Pará. Segundo José Batista, ainda existem processos tramitando na Justiça Federal originados das denúncias da missionária. Na CPI da Grilagem da Terra, no Congresso, Dorothy apontou Délio como um dos principais organizadores da invasão e de queimadas em áreas da União.

Cabrito e onça

Fernandes e Chiquinho do PT têm trajetórias muito diferen-

tes. O último foi educado desde a adolescência pela missionária. Seu nome civil é Francisco de Assis dos Santos. Ele atuou como presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Anapu e foi o principal auxiliar da religiosa no combate aos ruralistas, entre eles Délio. Em 2003, quando exercia o cargo de viceprefeito da cidade, Chiquinho assinou, junto com Dorothy e outras entidades, um documento em que o fazendeiro é acusado de grilar as terras onde a religiosa organizava a implantação do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS). No mesmo documento, Délio é denunciado porque teria desviado recursos da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).

O prefeito eleito de Anapu, hoje em dia, defende Délio. Disse publicamente que, embora seu vice tenha sido apontado como suspeito no assassinato de Dorothy, nada ficou provado. Chiquinho possui um patrimônio contabilizado em R$ 127 mil. A declaração de bens do vice-prefeito eleito ultrapassa os R$ 10 milhões. Sobre a aliança, a irmã Jane cita uma frase que vem sendo bastante propagada na cidade: “A gente diz, nunca se viu uma onça deitar com o cabrito e o cabrito amanhecer”. José Batista acredita que essa aliança do candidato do PT com Délio faz parte de um processo que o PT atravessa nos últimos anos. “[O partido] abriu mão de um projeto de sociedade e decidiu chegar ao poder a qualquer custo. É natural que, para a estratégia do partido, também esteja no mesmo palanque o [deputado federal] Jader Barbalho e [a governadora paraense] Ana Júlia”, comenta, sobre outras alianças “funcionais” do partido. Tanto Chiquinho quanto Délio respondem a processo por compra de voto.

Piorou

Para Jane, a pressão sobre o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) criado pela antiga amiga vai aumentar; assim como a pressão sobre os pequenos agricultores de outros lotes que vivem nas comunidades no entorno da cidade. Isso porque, não só em Anapu, mas em toda a região atravessada pela rodovia transamazônica, houve um predomínio de prefeitos eleitos aliados a grandes fazendeiros. “Os grileiros e os madeireiros botaram gente para disputar e venceram nessa região. Aqui é mais simbólico, porque

Chiquinho era quase um filho da Dorothy. Por isso, os próximos quatro anos serão de guerra”, elucida Jane.

Luta pela terra

A título de exemplo, a luta do povo contra o poder local já ocorre entre o mesmo Délio e a população de Anapu. Segundo José Batista, da CPT, a área de terra que ele reivindica está dentro da Gleba Bacajá, matriculada em nome da União. Trata-se da mesma gleba onde Bida e Taradão também reclamam por lotes. “É uma Gleba reconhecidamente da União e que, inclusive, um ano e meio antes de irmã Dorothy ter sido assassinada, o juiz federal de Marabá, Herculano Nassif, chegou a conceder liminar de antecipação de tutela em pelo menos dez processos, devolvendo essas terras definitivamente para o patrimônio da União [Incra]”, lembra o coordenador da CPT. Fato é que, posteriormente, essas liminares foram cassadas pelo juiz sucessor, Francisco Gasset Júnior, e, novamente, “voltaram ao controle desses fazendeiros, impedida a emissão do Incra na posse”, conta Batista. Irmã Jane aponta que, desde as últimas eleições municipais, a questão agrária na região tem piorado para o povo. A freira se alegra, ao menos, ao notar a tentativa dos agricultores de Anapu, de se organizar e resistir ao que está acontecendo e que pode vir a ocorrer. “Tivemos uma audiência pública com o Incra no último sábado [8], com a presença de 700 pessoas, de todas as comunidades do município, preocupadas com a situação. O povo não vai se submeter a isso”, revela.


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cultura Alexander Muñetón Beltrán

Artistas e moradores tomam as ruas de Santa Cruz, periferia de Medellín, durante o 13º Encontro Nacional Comunitário de Teatro Jovem

Quando o palco se torna instrumento de resistência

Arte como alternativa A Corporação Cultural Nuestra Gente foi criada há 21 anos por um grupo de jovens moradores do bairro de Santa Cruz, região periférica de Medellín. Inconformados com a violência que recrudescia, assassinava a juventude e deixava a população aterrorizada, estes jovens começaram a fazer teatro pelas ruas do bairro. Nessa época, Medellín vivia o auge do domínio do narcotráfico nos morros da cidade, dominados pela ação do mundialmente conhecido Pablo Escobar. Através da arte, o grupo de jovens tinha como desejo principal levar outras possibilidades de vida não somente à juventude, mas a toda comunidade de Santa Cruz. Com o passar dos anos, o trabalho foi se fortalecendo. Então, a comunidade se uniu em torno do trabalho e passou a apoiar a ação teatral que começava a ser desenvolvida. O grupo conquistou sua sede, a chamada Casa Amarela, onde são realizadas aulas de teatro, música, dança, títeres (teatro de bonecos). Hoje, cerca de oito grupos formados por jovens atores e atrizes são ligados ao Nuestra Gente. Quando o grupo organizou a primeira edição do Encontro Nacional, em 1995, Medellín vivia um período dramático. A morte de Pablo Escobar, dois anos antes, deu início a uma intensa onda de violência. Distintos grupos de narcotrafican-

Cristiane Gomes de Medellín (Colômbia) MÚSICA, RITMOS, cores e alegria inundaram as ruas da comunidade do bairro de Santa Cruz, periferia da cidade de Medellín, Colômbia, no desfile inaugural que abriu oficialmente o 13º Encontro Nacional Comunitário de Teatro Jovem, que aconteceu de 1 a 9 de novembro na cidade de Medellín, Colômbia. A comunidade do bairro se uniu a artistas e grupos de teatro, dança, música e circo para começar com uma grande festa a atividade que já é tradicional não apenas em Medellín, mas em todo o país.

As reflexões e debates também se debruçaram sobre o papel do Estado no incentivo ao trabalho teatral comunitário, por meio da criação de políticas públicas

Mais de duas mil pessoas participaram do cortejo. Entre eles, artistas, crianças, moradores da comunidade e convidados. “As pessoas do bairro esperam com ansiedade o cortejo de abertura do encontro. É assim todos os anos. Mais do que a alegria, a música, os grupos que participam, o cortejo representa a população de Santa Cruz, que sempre nos acompanha com muita felicidade e carinho”, conta Adriana Rendón Rios, uma das integrantes da Corporação Cultural Nuestra Gente, que organiza o encontro. Dia 1º de novembro, houve a primeira apresentação teatral do encontro com o grupo

Luz de Luna, de Bogotá, com a obra Aterra. A peça trata da dramática questão dos chamados desplazados (famílias camponesas que são obrigadas a deixar suas terras por conta da guerra entre paramilitares e guerrilha). Algumas atividades e apresentações do encontro também integraram a programação da mostra Desterro e Reparação, organizada pelo Museu de Antioquia.

Resistência pacífica

O desfile dos grupos aconteceu no segundo dia do encontro, com shows de grupos de música colombiana, como a cumbia, o porro e, claro, a salsa. “Este encontro é muito significativo para Medellín e toda a Colômbia, porque comprova como a arte pode se converter em um significativo espaço de convivência e resistência pacífica”, afirmou o secretário de cultura cidadã de Medellín, Jorge Melguizo. Além das apresentações de grupos de teatro comunitário de todo o país e do grupo Compañia Gestual de Chile, o encontro conta com a participação de representantes de diversos grupos e organizações latino-americanas. Da Argentina, Guillermo Rodoni, secretário para América Latina da Associação Internacional de Teatro de Arte (AITA), e Adhemar Bianchi, diretor do grupo Catalinas Sur; do Brasil, Marcelo Palmares, um dos diretores do grupo Pombas Urbanas; da Bolívia, Iván Nogales, diretor da Comunidade de Produtores de Arte; do Chile, Vítor Soto, diretor da Escola de Atores Cerro Navia; de Cuba, Rafael Gonzales, diretor do grupo de Teatro Escambray, e Bárbara Rivero, do Conselho Nacional de Teatro; do México, Pablo Moreno, diretor do Teatro Carpa Carlos Ancira; do Peru, Roberto de la Puente, do Teatro Vichama; e de El Salvador, Julio Cesar Monje, diretor do Tiempos Nuevos Teatro. Os convidados internacionais compartilharam suas experiências nas comunidades em que atuam. As discussões tiveram início no dia 3, com

o 8º Seminário Nacional de Teatro, Pedagogia e Comunidade, que, neste ano, promoveu o Fórum Latino-americano de Políticas Teatrais. “Este foi um espaço de diálogo entre artistas que trabalham com, para e em comunidades. Juntos refletimos sobre nossas ações como forma de estimular o trabalho que cada um desenvolve em sua região, seja ela na Colômbia, Brasil, Cuba, Argentina”, conta Jorge Blandón, diretor-geral e um dos criadores do Nuestra Gente. Oficinas de atuação, direção e produção teatral também foram realizadas durante toda a semana do encontro. As atividades eram abertas ao público em geral, mas a prioridade na participação foi dos jovens envolvidos nos processos de teatro comunitário desenvolvidos no bairro.

“Este encontro é muito significativo para Medellín e toda a Colômbia, porque comprova como a arte pode se converter em um significativo espaço de convivência e resistência pacífica”, afirmou o secretário de cultura cidadã de Medellín, Jorge Melguizo Teatro e reflexão

O Fórum Latino-americano de Políticas Teatrais mostrou o potencial do teatro como ferramenta educativa e aglutinadora. Trabalhos como o desenvolvido há 25 anos pelos argentinos do Catalinas Sur,

do bairro de La Boca, em Buenos Aires; e as quatro décadas de experiências do Teatro Escambray junto aos camponeses do país não deixam dúvidas. “O teatro é, em si mesmo, um meio para a convivência. Sua base é a celebração e a ocupação do espaço público”, afirmou Adhemar Bianchi, diretor do grupo argentino. As reflexões e debates também se debruçaram sobre o papel do Estado no incentivo ao trabalho teatral comunitário, por meio da criação de políticas públicas. Orlando Cajamarca, diretor do grupo colombiano Esquina Latina, que trabalha com crianças e jovens da cidade de Cali, defendeu o fim da “visão romântica de contestação que faz com que haja um preconceito em levar a atuação dos grupos também para o nível estatal. O Estado administra o público, que, apesar de tudo, pertence a todos. Por isso é importante que os grupos atuem na formulação e implementação das políticas públicas”. A diversidade do teatro da América Latina também ficou clara nas diversas obras teatrais apresentadas durante o encontro. Grupos experientes, como o Matacandelas, estiveram junto com as meninas do Grupo Ajedrez, que encenaram a peça Y a Otra Cosa Mariposa. Técnicas diversas de clown também se fizeram presentes com a obra Clown... El Espetáculo, do grupo In-Fusión, e em Rompecabezas, da Compañia Gestual de Chile. Debate e reflexão uniramse às apresentações teatrais que aconteceram em diversos espaços da cidade, incluindo as comunidades da chamada zona Nororiental (periferia da cidade, algo similar a Zona Leste paulistana). Para todos que participaram da atividade, ficou claro que a arte pode (e é) um caminho possível para construir novas alternativas de vida e de sociedade. “O teatro é a arte da resolução de conflitos, porque nele as pessoas interagem e se humanizam”, acredita o diretor colombiano Orlando Cajamarca.

Alexander Muñetón Beltrán

TEATRO COMUNITÁRIO Encontro reúne representantes de oito países; atividade é organizada há 13 anos pela Corporação Cultural Nuestra Gente

tes começaram uma guerra nos morros da cidade para disputar o domínio territorial que antes Escobar tinha sob controle. Mesmo assim, em uma conjuntura complicada, os artistas do Nuestra Gente decidiram criar um espaço em que a solidariedade e o compartilhar tomariam o lugar da morte e do medo. Nos primeiros anos em que o encontro aconteceu, os grupos deram uma trégua em sua guerra para que a atividade acontecesse sem problemas. Apesar de não compreenderem muito a ação daquela juventude que queria fazer teatro, os narcotraficantes respeitavam seu trabalho. De lá para cá, algumas coisas mudaram. A situação política na Colômbia segue complexa. A ação dos paramilitares e das guerrilhas continuam expulsando milhares de pessoas, a cada dia, de suas terras. O número de lideranças sociais mortas e desaparecidas também cresce. Em cidades como Medellín, a violência nos morros está mais controlada, e, na comunidade de Santa Cruz, o trabalho do Nuestra Gente se mostra como uma resistência pacífica à violência. “A transformação cultural e social que vemos hoje em Santa Cruz só foi possível graças aos moradores e moradoras do bairro que tornaram possível o trabalho na comunidade”, conta Jorge Blandón. (CG)


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américa latina

Bernardo Londoy

Temendo perder hegemonia, Chávez converte eleições regionais em plebiscito VENEZUELA Presidente assume campanha eleitoral para recuperar votos que foram perdidos no referendo constitucional em dezembro de 2007, avalia analista Manuela Sisa de Caracas (Venezuela) A ABSOLUTA hegemonia dos aliados do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, à frente dos governos estaduais tende a ser reduzida nas próximas eleições regionais, que serão realizadas dia 23 de novembro. Na tentativa de dirimir novas derrotas que poderiam fortalecer os grupos opositores a seu governo, o presidente venezuelano optou por repetir o método utilizado em eleições anteriores: incrementar a radicalização da retórica eleitoral para alcançar um maior nível de polarização entre chavistas e opositores. “Se vocês permitirem que a oligarquia regresse ao governo, vou acabar tendo de pegar os tanques da brigada blindada para defender o governo revolucionário e o povo”, afirmou o presidente em comício, no dia 8 de novembro, no Estado Carabobo, noroeste do país, onde as pesquisas apontam uma derrota do candidato do governo.

Futuro da pátria

Na avaliação de Luis Vicente León, diretor da consultoria Datanalisis, empresa identificada com a oposição, o presidente venezuelano pretende transformar as eleições em um plebiscito, no qual o que estaria em jogo seria o voto a favor ou contra “a revolução bolivariana”. “O presidente quer reforçar os espaços eleitorais onde seus candidatos não puderam superar seus adversários, e assim converte a eleição em um plebiscito”, disse León, durante uma coletiva de imprensa, realizada em Caracas.

Para Vicente León, ao colocar “a revolução” em primeira ordem de importância, Chávez evita o debate sobre os problemas cotidianos, como insegurança, coleta de lixo ou educação, característicos deste tipo de pleito

Em um recente ato de campanha, Chávez sinalizou neste sentido, ao afirmar que o que está em jogo é o “futuro da pátria”. “Em 23 de novembro, está em jogo o futuro da revolução, o futuro do socialismo, o futuro da Venezuela, o futuro do governo revolucionário, e também o futuro de Hugo Chávez. Está em jogo tudo isso”, defendeu o presidente venezuelano. Para Vicente León, ao colocar “a revolução” em primeira ordem de importância, Chávez evita o debate sobre os problemas cotidianos, como insegurança, coleta de lixo ou educação, temas característicos deste tipo de pleito.

Estados em que o governo pode perder as eleições

Chávez discursa: polarização como tática eleitoral

A personalização da “revolução bolivariana” na figura do presidente não é algo novo. “Desde o referendo revogatório de 2004, esse tem sido o estilo de condução política dentro do processo: concentrar na figura do Chávez a mobilização da base de apoio do governo”, analisa o sociólogo Javier Biardeau Presidente “marqueteiro” Chávez assumiu a campanha como se tratasse de uma disputa à presidência. Desde o início de outubro, o mandatário realiza comícios quase que diários ao lado dos candidatos do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). O presidente discursa em nome dos candidatos, avalia a mobilização de seus simpatizantes para garantir votos e ataca os adversários, dentre os quais estão ex-aliados do governo. A oposição se queixa, argumentando que Chávez utiliza atos públicos para fazer campanha eleitoral de seus aliados, mas, por enquanto, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) não emitiu nenhum parecer contrariando a atuação do governante. Para o sociólogo Javier Biardeau, professor da Universidade Central da Venezuela, ao assumir a campanha, o presidente venezuelano pretende recuperar os votos dos simpatizantes do governo que foram perdidos no referendo da reforma constitucional realizada em dezembro de 2007, cuja derrota ainda é ressentida pelo governo. A personalização da “revolução bolivariana” na figura do presidente, porém, não é algo novo. “Desde o referendo revogatório de 2004, esse tem sido o estilo de condução política dentro do processo: concentrar na figura do Chávez a mobilização da base de apoio do governo”, analisa Biardeau. De acordo com o sociólogo, a concentração da liderança e

capacidade de mobilização em Chávez reforça um processo que denomina como “cesarismo revolucionário” (em referência ao estadista Júlio César, que, ao tornar-se imperador de Roma, passou a exercer poder quase absoluto). “É negativo que, depois de dez anos de processo revolucionário, não exista uma liderança coletiva da revolução”, avalia Biardeau. Depois de quase dez anos no governo, Chávez mantém um índice de popularidade de 54%.

Adversários na cadeia

O governador do Estado de Zulia, Manuel Rosales, ex-candidato presidencial, foi convertido por Chávez em um dos principais adversários do governo nesta campanha eleitoral. Em um comício, o presidente venezuelano denunciou o enriquecimento ilícito de Rosales à frente do governo de Zulia e ameaçou levá-lo à prisão. O Executivo afirma que o governador opositor, que agora se candidata à prefeitura da capital deste Estado, desde que assumiu o governo, comprou pelo menos sete fazendas, que teriam sido adquiridas a partir do desvio do dinheiro público. Dias depois da acusação pública, a denúncia passou a fazer parte da programação do canal oficial VTV, onde foi transmitido o áudio de ligações telefônicas entre Rosales e seus aliados, nas quais trata da negociação de suas fazendas e da compra de cabeças de gado. Rosales nega as acusações. “Que venham me investigar”, desafiou. Murray Cox

Em Caracas, venezuelanos regularizam o título de eleitor

Recentemente, Chávez atacou um ex-aliado, Ramón Martínez, governador do Estado Sucre. O mandatário disse que Martínez pretende desrespeitar o resultado da eleição e ameaçou prendêlo. “Vai terminar na prisão este asqueroso, traidor, mafioso!”, afirmou Chávez. Sucre é um dos oito Estados em que o chavismo poderia perder as eleições.

Velhos métodos

Em Petare, a maior favela da América Latina, localizada no município Sucre, zona leste de Caracas, cerca de seis mil famílias receberam do atual prefeito chavista, José Vicente Ávalos, máquinas de lavar roupa, materiais de construção, colchões, entre outros utensílios domésticos. Lá, o PSUV disputa a prefeitura do município mais povoado da cidade, onde o governo perdeu o referendo da reforma constitucional.

Chávez assumiu a campanha como se tratasse de uma disputa à presidência. Desde o início de outubro, o mandatário realiza comícios quase que diários ao lado dos candidatos do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV)

Na avaliação de Javier Biardeau, a reprodução de métodos clientelistas na campanha eleitoral revela uma ausência de debate político nas eleições regionais. “O que há é campanha negativa dos dois lados, nenhum dos dois pólos esteve interessado em realizar um debate programático. A campanha eleitoral se centraliza no pragmatismo para a manutenção do poder e deixa a um segundo plano um programa políticoideológico”, conclui. O resultado da disputa, acredita Biardeau, será de surpresa para ambos os lados: “O governo aposta em derrotar a oposição e recuperar os espaços perdidos no referendo de dezembro. Já a oposição poderá vencer em menos Estados do que acha que pode ganhar”. De acordo com pesquisas de opinião, o governo poderia perder entre cinco a sete Estados do país. O chavismo governa atualmente 21 dos 23 Estados, além da capital Caracas.

A hegemonia do governo, que atualmente controla 21 dos 23 Estados do país, além da capital Caracas, poderá ser reduzida nas eleições regionais de 23 de novembro. Fatores como ineficiência na gestão governamental chavista e a ruptura de partidos com a base aliada do governo aprofundam o quadro. A dissidência chavista é o novo elemento político que tende a ganhar peso a partir destas eleições. O grupo está marcado por duas principais características: a primeira, é a rejeição de alguns políticos à determinação do Partido Socialista Único da Venezuela (PSUV) durante as eleições primárias que definiram os candidatos do chavismo ao governo. Outro fator é a ruptura institucional com o governo, cujo principal exemplo é o partido Podemos, que se desligou da base chavista em 2007, durante a campanha para a reforma constitucional.

Veja quais governos estão em disputa nestas eleições: 1- Aragua - Governado por Didalco Bolívar (Podemos), este Estado se converteu em um dos primeiros bastiões da dissidência chavista. Candidaturas: Chavismo: PSUV - Rafael Isea - (ex-ministro de Economia) Dissidente: Podemos - Henry Rosales (único candidato da oposição) 2- Carabobo - Governado pelo general Luis Acosta Carlez. Um dos homens de confiança do presidente durante a crise política dos anos de 2002 e 2003, Acosta Carlez é considerado um dissidente do chavismo e apostou em uma candidatura independente. Acosta Carlez foi acusado por Chávez de cometer atos de corrupção durante sua gestão. Candidaturas: Chavismo: PSUV - Mario Silva (apresentador do programa La Hojilla, no canal oficial do governo VTV) Dissidente: independente - Luis Acosta Carlez Oposição: coalizão - Enrique Salas Feo 3- Guárico - Governador Eduardo Manuitt (ex-chavista). Um dos maiores latifundiários do país, não acatou o resultado da eleição primária do PSUV, que não o favorecia. Foi expulso do partido do governo, e decidiu lançar a candidatura de sua filha para dar continuidade a seu governo. Candidaturas: Chavismo: PSUV - Willian Lara (ex-ministro de Comunicação) Dissidente: Lenny Manuitt (filha do atual governador) Oposição: coalizão - Reynaldo Armas (cantor de música llanera (Tradicional) 4- Zulia - Governador Manuel Rosales (partido Um novo tempo - oposição). Principal bastião da oposição e um dos pólos econômicos do país, Zulia tende a permanecer nas mãos da oposição. Na fronteira com a Colômbia, é um dos Estados com maior presença de paramilitares colombianos. Candidaturas: Chavismo: PSUV - Gian Carlo Di Martino (atual prefeito de Maracaibo, capital Zulia) Oposição: Um Novo Tempo - Pablo Perez 5- Sucre - Governador Ramón Martínez (ex-chavista Podemos) Assim como ocorre no Estado Aragua, em Sucre, a dissidência do Podemos tende a dividir o eleitorado chavista. Chávez qualificou a Martínez de “traidor asqueroso” e disse que o governador poderia ser levado à prisão. Candidaturas: Chavismo: PSUV - Enrique José Maestre Dissidente: Podemos - Ramón Martínez Oposição: Ação Democrática - Morales Gil 6- Barinas - governador Hugo de los Reyes Chávez (pai do presidente venezuelano). No Estado natal de Chávez, a base e a dissidência chavista acusam o governador de enriquecimento ilícito e de ineficiência na gestão do governo. Candidaturas: Chavismo: PSUV - Adan Chávez (irmão do presidente da República, ex-ministro de Educação e Casa Civil) Dissidente: independente - Julio César Reyes (atual prefeito de Barinas, ex-chavista) Oposição: coalizão - Rafael Simón Jiménez 7- Táchira - Governador Ronaldo Blanco La Cruz (chavista). Táchira é considerado um Estado estratégico para o governo, por se tratar da região de fronteira com a Colômbia, de extrema porosidade de grupos irregulares da guerrilha e paramilitares. Candidaturas: Chavista: PSUV - Leonardo Ali Salcedo Oposição: Copei - César Pérez Vivas


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internacional

Barack Obama: uma vitória, uma derrota ESTADOS UNIDOS Eleição de afro-americano rompe tabu racista, mas enfraquece perspectiva de transformação social

“Yes we can!” A repetição da expressão – “Sim, nós podemos!” – no primeiro discurso de Barack Obama como candidato eleito à presidência dos Estados Unidos, no dia 4, simboliza o empoderamento de um conjunto da população sistematicamente humilhada no país: os afro-americanos. São eles que tomaram as ruas para eleger Obama, que saíram às ruas para comemorar a eleição, que vêem nele uma esperança. O candidato democrata expressa uma ruptura com o passado segregacionista estadunidense e com a linha política republicana do atual presidente, George W. Bush. O presidente eleito se apropria dos recursos do movimento anti-racismo. No discurso, numa praça de Chicago, maior cidade do Estado do Illinois, tomada por dezenas de milhares de apoiadores, especialmente afro-americanos, fez uso dos recursos retóricos das igrejas de base. Não faltaram referências à terra prometida, à esperança coletiva de um novo mundo, a promessas no sentido cristão do termo. “A estrada a nossa frente será longa. Nossa subida será íngreme. Talvez não consigamos alcançar nossos objetivos em um ano ou mesmo em um mandato, mas, América, nunca estive tão confiante, quanto hoje, de que chegaremos lá. Prometo-lhe: nós, como um povo, chegaremos lá”, declarou. Em vez de falar dos desafios macroeconômicos de seu governo, tema recorrente em sua campanha, Obama trouxe um rosto humano para sua eleição: Ann Nixon Cooper, de 106 anos. “Nasceu uma geração após o fim da escravidão; um tempo em que não havia carros nas estradas ou aviões no céu; um tempo em que uma pessoa como ela não podia votar por dois motivos, porque era uma mulher e em virtude da cor de sua pele. E, hoje, penso em tudo o que ela testemunhou em seu século nos Estados Unidos, os momentos difíceis e a esperança, a luta e o progresso, tempos em que nos disseram que não podíamos e tempos em que as pessoas avançaram, movidas pelo grito estadunidense: ‘Sim, nós podemos!’”. A multidão em Chicago repetiu, ao uníssono, “Sim, nós podemos!”. E o presidente eleito, ao longo de seu discurso, usou várias vezes a expressão e, como num coro, num paralelo com a dinâmica das missas estadunidenses, o povo repetiu.

Obama: “A estrada a nossa frente será longa. Mas, América, nunca estive tão confiante, quanto hoje, de que chegaremos lá. Prometo-lhe: nós, como um povo, chegaremos lá” A apropriação do discurso de base não é mero oportunismo. A política de Obama nasce desses espaços. É nas igrejas que a luta anti-segregacionista estadunidense, que tem o reverendo Martin Luther King Jr. como principal expoente, se manifesta e irrompe como forca política. King (1929-1968) foi um ativista afro-americano que se tornou uma das principais referências na luta contra o racismo nos Estados Unidos. Ele liderou os movimentos contra a segregação nos anos de 1960, conhecidos como movimento pelos Direitos Civis. Foi morto com um tiro em 4 de abril de 1968, em Memphis, no Tennessee, até hoje um Estado con-

Luther King: “Temos dias difíceis pela frente. Mas isso não me importa agora. Posso não chegar até lá com vocês, mas quero que saibam que nós, como um povo, chegaremos à terra prometida”

mas quero que saibam que nós, como um povo, chegaremos à terra prometida”. A reverenda Bernice King, filha do líder do movimento pelos Direitos Civis, declarou que “o trabalho e o sacrifício de seu pai não haviam sido em vão”, em virtude da vitória de Obama. A religiosa concedia a entrevista aos choros, numa igreja em Atlanta, capital do Estado da Geórgia, em que a euforia era ensurdecedora. Fiéis, todos afro-americanos, vibravam e gritavam. Cenas similares se repetiram em quase todas as cidades estadunidenses, seja em igrejas, seja em marchas espontâneas.

Neopentecostalismo servador – foi onde o republicano John McCain, adversário de Obama, obteve um de seus resultados mais significativos: 57% dos votos. Um dia antes do assassinato, King fez um discurso com paralelos estilísticos e semânticos com os de Obama: “Temos dias difíceis pela frente. Mas isso não me importa agora. Pois eu vi o topo da montanha. […] Deus me permitiu subir a montanha. E eu vi para além. Eu vi a terra prometida. Posso não chegar até lá com vocês,

A dinâmica discursiva de Obama rejeita o tom religioso de Bush, identificado a correntes conservadoras do protestantismo, o neopentecostalismo. A visão conservadora do atual presidente foi retomada por McCain, mas principalmente pela candidata republicana a vice-presidente, Sarah Palin. O neopentecostalismo republicano se baseia na idéia de que, no fim dos tempos, um grupo de cristãos está destinado a ter poderes absolutos e reorganizar a vida na terra. Tais “escolhidos” teriam a tarefa de

se preparar para esse destino profético e lutar continuamente contra as forcas do mal que querem dominar o planeta de Deus. A fundamentação do neopentecostalismo está na teologia de William Branham (19091965). Considerado um profeta por grupos evangélicos estadunidenses, ele influenciou o neopentecostalismo, pregando que a salvação tem de ser promovida pela “força da espada”, ou seja, na guerra permanente contra elementos inimigos. O branhamismo permeou a ideologia do governo Bush iniciada em 2001. Foi o sustentáculo da argumentação para a invasão do Afeganistão e do Iraque, respectivamente em 2001 e 2003, definidas pelo presidente como guerras do bem contra o mal. Na política interna, o neopentecostalismo serviu para criar uma rede institucional de apoio ao governo, formalizada com o nome de Comitê Nacional de Políticas. O reverendo Ted Haggard e Grover Norquist, assessores próximos do presidente, foram os principais articuladores da rede neopentecostal. A principal tarefa do Comitê foi ser um canal de transmissão de orientações do governo para igrejas conservadoras, a fim de influenciar a opinião pública.

A direita no poder

Obama rompe com o conservadorismo religioso de Bush, mas não representa uma alternativa para a orientação politica dos Estados Unidos. Chega ao poder com apoio popular histórico, como um fenômeno histórico, mas faz parte de uma corrente tradicional do Partido Democrata. Esse legado maldito –

O próximo presidente rompe com o conservadorismo religioso de Bush, mas não representa uma alternativa para a orientação política dos Estados Unidos

tanto quanto o de dois mandatos de Bush – pesa sobre Obama. O candidato eleito sinaliza para a preservação da política do atual presidente, na medida em que pretende conviJulie Demler

João Alexandre Peschanski de Madison (EUA)

Barack Obama descansa durante a campanha presidencial

Oxalá! O primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos concretizará o sonho de Martin Luther King Jr. ou o pesadelo de Condoleezza Rice? Eduardo Galeano Obama provará no governo que suas ameaças de guerra contra o Irã e o Paquistão não foram mais do que palavras, proclamadas para seduzir ouvidos difíceis durante a campanha eleitoral? Oxalá. E Oxalá não caia por nenhum momento na tentação de repetir as façanhas de George W. Bush. Ao fim e ao cabo, Obama teve a dignidade de votar contra a guerra do Iraque, enquanto o Partido Democrata e o Partido Republicano ovacionavam o anúncio dessa carnificina. Durante sua campanha, a palavra leadership foi a mais repetida nos discursos. Durante seu governo, continuará crendo que seu país foi escolhido para salvar o mundo, tóxica idéia que compartilha com quase todos seus colegas? Seguirá insistindo na liderança mundial dos Estados Unidos e na sua messiânica missão de mando? Oxalá essa crise atual, que está sacudindo os cimentos imperiais, sirva ao menos para dar um banho de realismo e de humildade ao governo que começa. Obama aceitará que o racismo seja normal quando exercido contra os países que seu país invade? Não é racismo contar, um por um, os mortos dos invasores no Iraque e ignorar

olimpicamente os muitíssimos mortos entre a população invadida? Não é racista este mundo onde há cidadãos de primeira, segunda e terceira categoria, e mortos de primeira, segunda e terceira? A vitória de Obama foi universalmente celebrada como uma batalha ganha contra o racismo. Oxalá ele assuma, a partir de seus atos de governo, essa formosa responsabilidade. O governo de Obama confirmará, uma vez mais, que o Partido Democrata e o Partido Republicano são dois nomes de um mesmo partido? Oxalá a vontade de mudança, que essas eleições consagraram, seja mais do que uma promessa e mais que uma esperança. Oxalá o novo governo tenha a coragem de romper com essa tradição de partido único, disfarçado de dois partidos, que, na hora da verdade, fazem mais ou menos o mesmo, ainda que simulem uma disputa entre eles. Obama cumprirá sua promessa de fechar a sinistra prisão de Guantánamo? Oxalá, e Oxalá acabe com o sinistro bloqueio a Cuba. Obama seguirá acreditando que está certo que um muro evite que os mexicanos atravessem a fronteira, enquanto o dinheiro passa livremente sem que ninguém lhe peça passaporte? Durante a campanha eleitoral, Obama nunca enfrentou com franqueza o tema da imigração. Oxalá a

partir de agora, quando já não corre o risco de espantar votos, possa e queira acabar com esse muro, muito maior e vergonhoso que o Muro de Berlim, e com todos os muros que violam o direito à livre circulação das pessoas. Obama, que com tanto entusiasmo apoiou o recente presente de 750 bilhões de dólares aos banqueiros, governará, como é costume, para socializar as perdas e para privatizar os lucros? Temo que sim, mas oxalá que não. Obama firmará e cumprirá o protocolo de Kyoto, ou seguirá outorgando o privilégio da impunidade à nação mais envenenadora do planeta? Governará para os automóveis ou para as pessoas? Poderá mudar o rumo assassino de um modo de vida de poucos, no qual se rifam o destino de todos? Temo que não, mas Oxalá que sim. Obama, primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos, concretizará o sonho de Martin Luther King Jr. ou o pesadelo de Condoleezza Rice? Essa Casa Branca, que agora é sua casa, foi construída por escravos negros. Oxalá ele não se esqueça disso, nunca. (Publicado originalmente no jornal Página 12. Tradução de Katarina Peixoto). Eduardo Galeano é escritor uruguaio, autor de A Escola do Mundo ao Avesso.

dar membros do Partido Republicano para formar seu governo. As primeiras indicações para a nova gestão democrata são de políticos da linha mais conservadora do partido de Obama. Rahm Emanuel, escolhido como chefe de gabinete, atuou nos projetos de livre-comércio na presidência de Bill Clinton (1993-2001) e apoiou a invasão do Iraque. Muitos dos conselheiros de Clinton, com tendência conservadora, são personalidades próximas a Obama, como o presidente do Citibank, Bob Rubin, e Larry Summers, ex-secretário de Tesouro. Ambos são neoliberais. Na política externa, as diferenças entre os planos de Bush e Obama são mais táticas do que estratégicas. O democrata defende uma retirada gradual do Iraque, sem apresentar uma projeção clara e uma data para o fim da invasão. Mas, nos debates presidenciais, disse que ataques militares a outros países, como Paquistão e Irã, serão realizados, se seus governos não modificarem sua atuação política. Obama pretende manter a invasão do Afeganistão e deslocar para o país parte das tropas no Iraque.

Cooptação

Obama pode usar seu carisma e sua influência nas igrejas progressistas estadunidenses e nos movimentos de luta contra o racismo para institucionalizar e cooptar organizações combativas. Nesse cenário, estará aniquilando a força de contestação de seu governo, que tem concertação de direita. A eleição de Obama representa uma vitória contra o racismo e o neopentecostalismo, mas, ao mesmo tempo, uma derrota na perspectiva de um projeto transformador social para os Estados Unidos. Nesse sentido, o democrata não pretende combater as raízes da pobreza de seu país. Pesquisas oficiais estimam que 13% dos 305,8 milhões de estadunidenses vivem abaixo da linha da pobreza. Nas grandes cidades, a taxa chega a 18,5%.

O candidato eleito pode usar seu carisma e sua influência nas igrejas progressistas estadunidenses e nos movimentos de luta contra o racismo para institucionalizar e cooptar organizações combativas

Chicago, centro da campanha de Obama, símbolo das dificuldades socioeconômicas dos Estados Unidos e terceira maior cidade do país, com 2,9 milhões de habitantes, tem bolsões de pobreza que se assemelham a favelas do terceiro mundo, como Bronzeville e Woodlawn. Quarenta por cento da população desses bairros, 95% afroamericana, vivem abaixo da linha da pobreza, sem acesso a saúde pública, e 55% dos economicamente ativos estão desempregados ou subempregados. Nos Estados Unidos, a população afro-americana é marginalizada e chamada de “subclasse”, abaixo da classe explorada. É nas contradições mesmas da cooptação institucional – como lidar com o dinheiro e os cargos que Obama lhes destinará – que os movimentos sociais estadunidenses terão que se reinventar. Encontrar a dialética da radicalização num cenário de institucionalização se torna a esperança – o hope tão propalado pelo candidato democrata – diante dos desafios da luta de classes e da resistência ao imperialismo no coração do Império.


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internacional

E, enfim, até a Condollezza sorriu... PRESIDENTE ELEITO Vitória de Barack Obama faz a toda-poderosa Secretária de Estado dos Estados Unidos e de George W. Bush sorrir; haitianos no país comemoraram eleição de democrata como se fosse o fim da escravidão no continente Matt Ephraim/CC

Memélia Moreira de Orlando (EUA) VENCER AS primárias contra a desgastada figura da senadora Hillary Clinton foi tarefa cumprida sem muitos atropelos. Vencer os debates e as eleições contra o senador John McCain, representante do partido do presidente George W. Bush – que encerra seu mandato em pouco mais de dois meses, e considerado o pior dos presidentes do país nos últimos 50 anos – foi quase um passeio. Mas conseguir um sorriso da toda poderosa Condoleezza Rice, a secretária de Estado dos Estados Unidos, posto muito mais importante do que o de vice-presidente, essa sim foi uma grande façanha. Mas, no dia seguinte, quando Obama já era o presidente eleito dos EUA, o que parecia impossível, aconteceu. Condoleezza Rice sorriu. E exibiu seu sorriso para as câmeras quando os jornalistas perguntaram sobre a vitória de Obama. Nem precisou falar. E o presidente George W. Bush, talvez porque nunca tenha engolido a candidatura de John Mccain, seu mais ferrenho adversário dentro do Partido Republicano, também sorria, enquanto comentava as “eleições históricas”. Ela e muitos milhões de estadunidenses, que, durante a noite de 4 de novembro – a noite da vitória de Barack Obama –, choravam e riam, como se, de repente, “das montanhas às pradarias, do oceano aos desertos”, como diz a letra do hino “Deus salve a América”, os estadunidenses, democratas ou não, tivessem sido atingidos por um choque de muitos milhões de megawats. Estavam eletrizados. Uns, de alegria, emoção. Outros, de total incredulidade, chegando à estupefação. “Sim, eles conseguiram”, era o comentário dos incrédulos.

Votação recorde

Os comentaristas dos canais de televisão mais alinhados à direita se entreolhavam perplexos. Sem contar que o canal FOX, talvez na esperança de algum desmentido de última hora, demorou muito a anunciar os resultados do Estado de Ohio, situado no centro do país, entre Illinois e Indiana, que consagrou a vitória de Obama. Ohio integra os chamados “Estados-pêndulo”, ou seja, não vota maciçamente em nenhum dos partidos e as preferências mudam a cada eleição. E Ohio, na noite de terça-feira, 4 de novembro, deu vitória acachapante dos democratas sobre os republicanos. A partir dali, não havia mais dúvidas: o senador do Estado de Illinois, que, há quase dois anos, quando começou a campanha, parecia mais um desses negros que chega para incomodar a festa dos brancos, estava eleito. E com uma votação que não admite dúvidas: 368 votos no colégio eleitoral – para ganhar é preciso ter 271 – e mais de 50% do voto popular, recorde democrata até hoje só atingido por Jimmy Carter, nas eleições de 1976. Sete anos depois do atentado (em 11 de setembro de 2001), contra o World Trade Center, quando a sociedade estadunidense viu desabar sua auto-estima e crença na invulnerabilidade do país, a noite de 4 de novembro parecia trazer de volta a possibilidade de novos tempos. Agora, raciocinaram alguns republicanos ainda insatisfeitos com a derrota, os Estados Unidos não podem mais ser acusados de racismo. E foi esse o sentimento dos eleitores do senador John McCain, que sequer esperou o final da apuração para telefonar, parabenizando Obama pela vitória.

Ordem e choro

Para contrariar as previsões das forças de segurança, que estavam preparadas para enfrentar demonstrações de vandalismo em Chicago, onde vive Barack Obama, além de No-

Eleitores de Obama saúdam o novo presidente e sua família com bandeirinhas e câmeras fotográficas

va York, Detroit e cidades do sul do país onde se concentram negros, os eleitores de Obama foram às ruas em ordem. Não houve qualquer manifestação de violência. Mas choro, sim. Muito choro. Até mesmo o reverendo Jack Jackson, que em 1992 concorreu nas primárias contra Bill Clinton, chorou. E chorou publicamente. Jackson, o negro que amparou Martin Luther King no momento do atentado, não parava de chorar. Bem antes de Obama começar seu discurso de eleito, ele já estava chorando, embora seja um dos grandes adversários de Obama dentro do Partido Democrata e junto ao movimento negro. Naquela noite, as diferenças foram esquecidas. Em Pine Hills, bairro negro da cidade de Orlando, bem distante do centro político-financeiro dos

Estados Unidos, havia festa em cada casa. Mais de 80% dos moradores desse bairro são haitianos. Muitos deles, ilegais. Choravam e cantavam batendo seus poderosos tambores, como se estivessem comemorando o fim da escravidão no continente. Os mais velhos não conseguiam se comunicar em francês ou inglês. Misturavam as duas línguas e terminavam apelando para o crioulo, a língua oficial do Haiti. Um deles, que tem 14 netos, todos com nomes de jogadores da seleção brasileira, garantia a quem quisesse que Obama foi criado no Haiti. “Não, foi no Havaí”, corrigiu Rivelinô, um dos netos. E ele, sem qualquer preocupação geográfica, dizia: “Il n´y a pas de problème. C´est tout pareil” (Sem problema. É tudo igual). E quem o contestaria?

Cara feia

Mas os números, sempre avessos às emoções, logo no dia 5, ofuscaram as demonstrações de alegria. Wall Street, no dia seguinte à eleição, não se sensibilizou com a vitória do seu próprio candidato (Wall Street encabeça a lista de doadores da campanha de Obama), e já amanheceu em baixa de 5%, tendência que se consolidou ao longo do dia, quando o índice Dow Jones chegou a cair 5,05%. O eleito não manifestou preocupação imediata com o desempenho da Bolsa de Valores de Nova York e foi fazer ginástica numa academia. Logo depois do almoço, começou a anunciar os nomes que vão compor seu governo. O primeiro deles foi o do chefe de gabinete. O cargo será ocupado pelo líder dos

democratas na Câmara, Rahim Emanuel. E, três dias depois da vitória, Obama concedeu a primeira entrevista coletiva, na qual evitou se comprometer com qualquer promessa. Diferentemente do que acontece com os presidentes eleitos da América Latina, que logo depois das eleições saem em viagem pelos Estados Unidos e Europa, como se fossem obrigados a pedir a benção dos ricos, aqui, seja quem for o eleito, ele tem obrigação de tratar imediatamente dos trâmites da mudança de governo. E, menos de uma semana depois de eleito, Obama já estava na Casa Branca para seu primeiro encontro com Bush. Aproveitou a conversa para encaminhar dois importantes pedidos, que foram promessas de campanha.

W. e seu final melancólico Reprodução

de Orlando (EUA) O presidente fala de boca cheia e não usa palitos para limpar os dentes. Enfia o dedão à boca e tira os restos de comida sem a menor cerimônia, em frente do seu secretário de Defesa. O presidente em questão é George W. Bush, um fazendeiro texano fanático por baseball e que um dia resolveu ser governador do seu Estado e, depois, presidente dos Estados Unidos. Venceu as duas eleições e ainda se reelegeu para a Casa Branca em 2004. As imagens do presidente falando de boca cheia, um espetáculo realmente deprimente, em meio a cristais e pratarias, fazem parte do filme W., dirigido por Oliver Stone, cineasta que dirigiu os filmes Nixon, sobre o ex-presidente que renunciou depois do escândalo conhecido como “Watergate”, e JFK, sobre o presidente dos EUA John Kennedy, assassinado em novembro de 1963. Stone tem se especializado no gênero que mistura documentário com ficção, e W., não fosse pela curiosidade de conhecer alguns detalhes de um governo que mal respira e parece se arrastar até o dia 20 de janeiro, quando o novo presidente tomar posse, não mereceria ser visto. É um filme comum, sem nenhum brilhantismo e, embora Oliver Stone tenha pretensões de fazer filmes de impacto e denúncia, a exemplo de JFK, nesse ele escorrega e chega até mesmo a ser piegas.

Papai Bush

Ao acabar a sessão, o público sai do cinema com uma certeza. A de que o presidente George Bush é um homem atormentado pela figura paterna. Seu pai, o ex-presidente George W. Bush, ultrapassa os limites do autoritarismo e parece esperar que seu filho seja sempre um medíocre. O trabalho é completado pela mãe, Barbara Bush, apresentada como uma verdadeira megera por

ber como se comporta o mandatário do país mais poderoso (ainda) do mundo leva o espectador a se sentir mais íntimo do poder.

Vai com os outros

Cartaz do filme W, de Oliver Stone

Stone. Da família, W. pode contar apenas com Laura Bush, sua esposa, sempre a lhe dar apoio. George W., ou simplesmente W., como a família e os amigos o chamam, chega a ter pesadelos com a figura ameaçadora do pai. E, mesmo com um diploma de Harvard, não conquista o reconhecimento da figura paterna, sempre a lhe exigir mais e, ao mesmo tempo, desencorajá-lo a vôos mais altos, como, por exemplo, concorrer à Casa Branca. George pai só confia no filho caçula, Jeb Bush. É para ele que o pai reserva sua herança política, porque George não passava de um cachaceiro que, depois de noitadas com os amigos, sai dirigindo bêbado e termina a noite na cadeia. Na cena seguinte, os espectadores têm motivos para rir. Em pé, envergonhado, W. ouve mais uma bronca do pai, que lhe diz: “Você pensa que é um Kennedy, que sai por aí bêbado, dirigindo”. A platéia se diverte. No mais, só não cai em tédio profundo porque, mesmo sendo um filme mediano, sa-

O filme, que mistura ações do passado e corta para os dias atuais, mostra um presidente pusilânime, influenciado pelos assessores, principalmente pelo seu primeiro-secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, e pelo vicepresidente, Dick Chenney, e induzido à guerra do Iraque pelas informações desses mesmos assessores. O único a se manifestar contra as guerras foi o general Colin Powell e, pela maneira como é tratado pelos demais, dá para entender porque o homem mais importante do primeiro período do governo Bush optou pelo voto em Obama. Quando finalmente ouve as informações sobre o arsenal do Iraque e já começa a delinear sua estratégia, um detalhe chama atenção: Bush, que ainda não dera a palavra final sobre a decisão de invadir o Iraque, convoca, em pleno Salão Oval da Casa Branca, todos os assessores para uma oração. Usassem turbantes e ninguém os distinguiria dos fundamentalistas islâmicos. Dá tudo errado nas duas guerras (Afeganistão e Iraque), e o presidente, que, em outubro de 2001, atingiu 92% de índice de aprovação, fica sem entender porque sua popularidade despenca a olhos vistos, enquanto a câmera mostra as manifestações de rua contra a guerra do Iraque. O final do filme é tão melancólico quanto tem sido o final do governo de W. Na última cena, durante uma entrevista coletiva, uma jornalista pergunta para o presidente que lugar estaria reservado para ele na História. Ele fica uns segundos sem responder e depois filosofa: “No futuro, todos nós estaremos mortos...”. Talvez essa tenha sido a única frase realmente marcante de toda a sua carreira, pronunciada pelo personagem principal. (MM)

O primeiro deles, a desativação do presídio da Base de Guantánamo, enclave dos Estados Unidos em território cubano e para onde são levados os presos acusados de terrorismo. Além disso, o presidente eleito pediu também a cooperação de Bush para conceder ajuda financeira aos fabricantes de automóveis, notadamente a General Motors, que está à beira da falência e viu suas ações perderem 30% do seu valor na Bolsa de Nova York. Para um país que, em outubro, perdeu mais 240 mil postos de trabalho, essa medida é a mais urgente. Obama sabe da urgência, e por isso espera que Bush tenha sensibilidade em atendê-lo. O pacote financeiro para a indústria automobilística não mereceu ainda nenhum tratamento especial da Casa Branca, mas a secretária-assistente de Defesa (espécie de vice-ministro), Sandra Hodgkinson, já anunciou que o Pentágono vai começar a procurar locais para alojar os presos que ora se encontram em Guantánamo. É bem possível que eles desembarquem em alguma prisão especial dentro do território dos EUA.

Desafios

Obama tem pressa. E não é para menos. Ele vai assumir nas mesmas condições de seu correligionário Franklin Delano Roosevelt, que tomou posse em 1933, dois meses depois de iniciada a “Grande Depressão” dos Estados Unidos. Além disso, dentro de sua própria casa, ele encontra uma forte resistência contra as guerras do Afeganistão e Iraque. A futura primeira-dama é militante de direitos humanos e é a primeira pessoa que exige uma solução para essas guerras.

Os haitianos mais velhos misturavam o francês e o inglês e terminavam apelando para o crioulo. Um deles, que tem 14 netos, todos com nomes de jogadores da seleção brasileira, garantia a quem quisesse que Obama foi criado no Haiti. “Não, foi no Havaí”, corrigiu Rivelinô, um dos netos

E não é apenas Michelle Obama quem faz essa exigência. Os olhos do mundo estão voltados para ele. Obama tem consciência do fardo que lhe espera. Por isso, não tem tempo para dar voltinhas pela Europa. Já fez isso durante a campanha. E foi bem recebido. O senador Barack Obama tem muita pressa. As previsões de desemprego para 2009 no país são assustadoras. Podem chegar a mais de 500 mil, logo no primeiro semestre. E ele sabe que, se não der respostas imediatas, mesmo que paliativas, vai frustrar um eleitorado que parece totalmente embevecido com a escolha feita. E, mesmo tendo sido eleito com uma votação extrordinária, repetindo Jimmy Carter, ele também pode se surpreender em 2012, quando tentar a reeleição e, novamente igual a Jimmy Carter, não ser reeleito, deixando a Casa Branca voltar ao domínio de algum republicano sequioso de guerras. Por isso, Barack Obama já arregaçou as mangas e começou a trabalhar bem antes da posse.


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áfrica

De carona com o inimigo comum Augusto Juncal

CRÔNICA Quando meu amigo disse que nós pegaríamos uma carona com dois fazendeiros brancos, gritei:“O quê? Você está maluco? Carona com fazendeiro? Augusto Juncal “THIS IS a beautiful country, isn’t it?” (“Este é um belo país, não é?”). Descolei minha testa do vidro e olhei, pelo retrovisor, os olhos azuis do fazendeiro branco. Sua voz soou longe no meu pensamento, que ia estendido sobre a paisagem que nos enquadrava. Voltei a olhar a savana. Estendida como um lençol de árvores esparsadamente desenhadas. Uma aqui, outra lá. Solitárias. Salpicadas. Plantadas ao deus-dará. Pensei: o cerrado é um tipo de savana. Sem elefantes. Sem girafas. Sem leões. Dizem que tem onça. Nunca vi nenhuma. Disse que era sim. Um país muito bonito. Disse sem certeza. Disse porque precisava dizer que era. Disse. E procurei buscar um motivo pro meu dizer. E até encontrei. Essa planura imensa, com suas montanhas à distância, abria sobre nós um céu escandalosamente belo. “African skies!” (Céus de África!). Mesmo com a secura da chuva que não vinha, e que de quando em vez se ameaçava: “Sim!”. Era um belo país. Respondi e voltei ao meu silêncio. A África é mesmo infinita. Pensava. Sua savana infinita, seu céu infinito, sua ancestralidade infinita, sua pobreza e sua miséria infinitas. Os olhos de Mlamuli também eram infinitos. Aos cinco anos de idade, e já eram infinitos. Também os de Thandeka. E os de Khetha, cujo abraço me abriu janelas na savana do township onde morava. Townships eram cidades-dormitório da periferia onde moravam negros e negras, durante o apartheid racial da África do Sul. Para ir trabalhar nas grandes cidades, precisavam de “passe”. Com o fim do apartheid racial, permaneceu o apartheid econômico e social. Hoje os ne-

gros e negras pobres continuam a viver nos townships. Mas o que queria mesmo dizer aquele fazendeiro branco com o seu “This is a beautiful country, isn’t?”. De carona Quando meu amigo disse que nós pegaríamos uma carona com dois fazendeiros brancos, chocado, gritei: “O quê? Você está maluco? Carona com fazendeiro? E se ele matar a gente e jogar nossos corpos nessa savana, e vier o leão e comer nóis?”. Meu amigo riu do meu superlativo. “Esses fazendeiros querem fazer alguma coisa. Querem resolver o conflito. Interessa a eles também a reforma agrária. Sabem que vão acabar perdendo a terra e já preferem negociar antes.” Não me convenci. Eram fazendeiros. Inimigos. Estávamos indo para uma reunião de apaziguamento em Pietermaritzburg. Mediada pelo conselho das igrejas. Disse a meu amigo que inimigos jamais viram aliados. E, se virasse, seria uma revolução francesa. Voltei a olhar os olhos do fazendeiro branco pelo retrovisor. “Desculpe, pode repetir? Não ouvi.” “Lá no Brasil, os fazendeiros são como os daqui, que se sentam à mesa para resolver o problema?” Era uma casa... No meio daquela savana toda, sob algum ponto daquele céu escandalosamente belo, estava algo parecido com uma casa. Mas não era uma casa. Tinha porta. Tinha janela. Tinha teto. Mas não era uma casa. Nesta construção, morava Siphiwe, seus filhos, seu marido. Recuperei a visão da construção escorada. O dono da fazenda tinha proibido qualquer conserto, qualquer remendo na construção, que caía, caía. Recuperei a visão dos olhos arregala-

Crianças brincam em rua de terra na África do Sul

dos de Siphiwe quando acordou pela manhã e viu sua casa cercada de arame elétrico, e a única estrada que levava à cidade bloqueada pelo fazendeiro. Siphiwe, seus filhos, e seu marido tinham que dar voltas imensas pelo pasto, em volta do gado, para poder ir à cidade. Recuperei a visão dos olhos de Siphiwe inchados de chorar, quando, pela manhã, ao sair no seu quintal, viu que suas nove cabeças de gado tinham sido roubadas pelo fazendeiro e vendidas a outro fazendeiro. Recuperei a visão da humilhação de Siphiwe na delegacia, diante do delegado, que lhe disse: “Mas você catou lenha pro seu fogo nas terras dele”. O delegado era negro. E provavelmente um dia teve um “passe”. Servos de Deus Olhei pro retrovisor e recuperei nos olhos do fazendeiro que dirigia os olhos do fazendeiro que não deixou Siphiwe enterrar o seu filho morto em suas terras. Recuperei essas e outras visões, e respondi. “Não. Não sentamos com fazendeiros. São nossos inimigos. Nos matam.” O fazendeiro olhou para

Afrodescendentes sofrem mais com a globalização

mim pelo retrovisor, perguntou: “Eles não têm religião?”. Claro que tem, seu fazendeiro sul africano. “Eles vão à missa de dia, e matam à noite. Matam até os servos de Deus. Vocês não souberam da irmã Dorothy?” Mais tarde, durante nossa reunião, diante dos homens da igreja, o fazendeiro mencionaria este fato, este desagravo a Deus, que com facilidade ocorria no Brasil. Já iam alguns bons quilômetros de viagem quando o fazendeiro anunciou: “Vamos cruzar um dos maiores rios da África do Sul”. Me preparei para a longa travessia. O Thukela nasce nas montanhas Drakensberg. Lá também nascem os outros dois maiores rios, o Orange e o Vaal. Maiores rios. Da ponte, olhei o Tukhela lá embaixo. Os olhos azuis do fazendeiro no retrovisor foram substituídos por um largo sorriso. Meu amigo, ao meu lado, me olhava sorrindo. Olhei de novo para o Thukela. Tentei abarcar o seu serpentear quase excessivo em seus parcos 502 km de pressa para chegar ao Índico. Calculei, sem calcular porra nenhuma, que força eu precisaria imprimir para pu-

lar de uma margem à outra do rio. Quantos Thukelas cabem num Tietê? Pensei. Atrás do volante Olhei de volta pro fazendeiro, pro meu amigo e perguntei: “Vocês pescam nesse córrego?”. A África do Sul é um país sem água. Na seqüência, o fazendeiro me perguntou de hidrelétricas e de forças motrizes dos rios brasileiros. Falei das margens não vistas do Amazonas, do apartheid do Solimões e do Negro, e falei do São Francisco. De sua fundura, de seu volume, de sua população ribeirinha. E falei de sua transposição. Os olhos do fazendeiro branco sul-africano se chocaram com esse crime ambiental. “O governo compactua com isso?”. Essa pergunta eu respondi com o mesmo sorriso que eles me deram quando me mostraram um dos maiores rios da África do Sul, que agora ficou lá atrás. Éramos quatro no carro, mas só um dirigia. Cansado, parou num posto de gasolina. Meu amigo foi ao banheiro. E eu me vi sozinho com os dois fazendeiros. O que não dirigia, o fazendeiro 2, apontou um carro.

“Nós, os brancos, já não somos os mais ricos. Não tem branco pobre. Mas também não são os mais ricos. Somos uma camada no meio dos mais ricos e dos mais pobres. Vê aquele carro caro? Olhe quem dirige.” Um negro. Me apontou outro carro de luxo. Outro negro dirigindo. Me apontou um terceiro carro de luxo que entrava no posto. Dirigido por um negro. O fazendeiro 2 seguiu com sua análise. “Todos os smart cars (carros de luxo) pertencem aos negros. Eles são os mais ricos e os mais pobres. Eles criaram a diferença entre eles.” Meu amigo chegou do banheiro. Graças a deus. A conversa se interrompeu sem que eu precisasse responder nada. Voltamos pro carro e pra estrada. Olhava as tantas outras construções, esparsadas pela savana como as árvores. Recuperei a visão de Thandeka chorando na reunião, diante de todos, diante do induna – entre os zulus, induna é o líder conselheiro do povo –, diante do prefeito. Thandeka caminhava pela estrada que conduzia à cidade. Foi abordada por um policial. Negro. Disse-lhe que ela estava presa. Por quê? Porque você está andando nas terras que você não tem direito. Disse e levou-a para a delegacia. Foi deixada num banco por oito horas. Sem comer nem beber. Depois foi liberada sem mais. Recuperei, enquanto olhava as construções, a visão da voz embargada de Thandeka contando sua história diante de todos, do induna, do prefeito. Já iam muitos quilômetros de viagem quando uma outra vegetação deu uma pausa pros meus olhos. Já sentia que ia perdendo a minha alma naquela infinitude de savana. Com as montanhas agora muito próximas, a vegetação fechada à nossa volta e florestas de pinheiros, meu olhos recuperaram a concentração do olhar. Mas logo viria mais savana, e meu olhar voltaria a se estender sobre ela. Augusto Juncal é integrante da torcida organizada Gaviões da Fiel e do Coletivo de Projetos Internacionais do MST.

Morre Miriam Makeba, lendária cantora sul-africana Haags Uitburo/CC

da Prensa Latina Os afrodescendentes do planeta, em sua maioria, coexistem em condições de miséria desde a etapa da colonização até a sua forma moderna, que apenas teve o seu nome alterado para globalização. Cerca de 92% dos 150 milhões de descendentes africanos vivem abaixo da linha de pobreza e sem uma real participação no desenvolvimento de seus países. Tal panorama evidencia que a acumulação, durante séculos de trabalho forçado, massacres, violações e privações, propiciou a criação de um ser humano invisível e estigmatizado dentro de nossas sociedades. Segundo o holandês Teun Van, especialista sobre o tema, racismo não significa somente excluir uma outra pessoa de outra cor ou de outra cultura. Racismo, aponta, “tem a ver sempre com poder, com abuso de poder. Aquele que tem poder exclui. Aquele que tem poder discrimina. Se um grupo tem o poder em uma sociedade e abusa desse poder, então, podese falar de racismo”. Ações Desde o ano 2000, quando encontros internacionais sobre o tema começaram a ser realizados, estratégias políticas para se lutar contra o racismo, a desigualdade e a exclusão social começaram a ser apreciadas.

Na opinião de Marcelo Paixão, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e também membro do Observatório Afrobrasileiro, “antes, a intelectualidade brasileira pensava os negros como um problema, mas agora há uma preocupação sobre a temática racial num sentido positivo”. Segundo ele, o Brasil é o segundo país em população negra do mundo, com 79 milhões de pessoas, o equivalente a 47% da população – sendo superado em número somente pela Nigéria. A partir dessa percepção, medidas têm sido tomadas no país, como a que estabelece que seja obrigatório o ensino da história da África aos estudantes brasileiros, ou que em 28 universidades públicas do país haja um sistema diferenciado para o acesso de estudantes negros ou indígenas. Objetivos do milênio “A globalização nos afeta social e pessoalmente porque o mercado cria uma sociedade dos dois terços. Um terço dos que têm tudo e outro dos que não têm nada”, adverte o diretor do Instituto de Relações Raciais de Londres, Ambalavaner Sivanandan. Outras ações que internacionalmente têm se materializado são os compromissos assumidos, em setembro de 2000, por 189 chefes de Estado e de governo nas Nações Unidas (ONU) para reduzir pe-

la metade, antes de 2015, a porcentagem de pessoas com rendas inferiores a um dólar por dia e que passam fome. Apesar do tema estar presente, a Declaração do Milênio não se refere de forma explícita aos afrodescendentes. Nesse sentido, a especialista brasileira Edna Maria Santos propõe a necessidade de se introduzir uma modificação nos Objetivos de Desenvolvimento da ONU para o Milênio que reflita as desigualdades raciais e étnicas existentes, da mesma maneira como é feito em relação à matéria socioeconômica. Para que tal proposta avance, na sua opinião, é necessário que se conheça previamente as porcentagens de pessoas brancas e de descendentes de africanos atualmente em condições de pobreza extrema e de fome. Só assim seria possível a redução pela metade da porcentagem dessas pessoas. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, considera que as práticas racistas limitam a credibilidade das sociedades que as toleram. Estes métodos, segundo ele, “não permitem que os indivíduos se dêem conta de seu potencial e não os deixam contribuir ao progresso nacional”. Onde não são combatidas, insistiu, podem causar tensões sociais e conflitos que podem atingir a estabilidade e o crescimento econômico.

de Johannesburgo Com a morte da cantora sulafricana Miriam Makeba, perde-se um dos ícones da luta contra o apartheid. A destacada intérprete faleceu no dia 10, aos 76 anos, na Itália, vítima de um ataque cardíaco. Makeba era maior que sua própria vida, pelo que ela simbolizou e significou para tantas pessoas, diz o publicitário Mark Lechat. “Encheu um espaço que agora ficará vazio, mas como ela sempre disse, quando uma porta se fecha, outra se abre, e sua morte não apagará o exemplo que deixou, de esperança e resistência”, agregou. Makeba nasceu em Johannesburgo, em março de 1932. Por sua inabalável luta contra a discriminação racial, ganhou o nome de Mama África. Começou a cantar na década de 1950, misturando jazz com música tradicional sul-africana. Adquiriu notoriedade durante um tour pelos Estados Unidos em 1959, como parte do grupo Manhattan Brothers. Primeira africana Pouco depois, o regime de Pretória retirou-lhe o passaporte por ser a principal estrela de um documentário contra o apartheid. A partir desse momento, atingiu maior difusão mundial; em especial depois que compartilhou com Harry Belafonte o prêmio Grammy, em 1965, sendo a primeira africana a ganhar essa distinção. Só regressou ao seu país natal em 1994, depois de Nelson Mandela ter chegado à presidência.

A cantora sul-africana Miriam Makeba

O porta-voz do Ministério de Assuntos Exteriores sul-africano, Ronnie Mamoepa, afirmou que Miriam Makeba se converteu numa embaixadora da boa vontade pelo que expressava em suas canções. “Ao longo de sua vida, Mama Makeba comunicou uma mensagem positiva ao mundo sobre a luta do povo da África do Sul e a convicção da vitó-

ria contra as forças escuras do apartheid”, sublinhou o porta-voz. Numa ocasião, a artista declarou que cantava sobre o que lhe rodeava: o sofrimento pelo apartheid e o racismo existente no país. “Nossa música tem que se inspirar nessa realidade”, reconheceu a incansável lutadora pelos direitos de seus conterrâneos (da Prensa Latina).


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