Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 301
São Paulo, de 4 a 10 de dezembro de 2008
R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Fernando Donasci/Folha Imagem
Lugo
Santa Catarina
completa cem dias de governo no Paraguai. Entre os principais desafios enfrentados estão o combate à corrupção, a reforma agrária e o resgate da soberania nacional em Itaipu. Para o assessor do ministério da Comunicação do país, Juan Díaz Bordenave, o presidente Fernando Lugo deu início à reforma agrária e está conseguindo desmontar ninhos de corrupção. Mas o governo necessita do apoio do povo para poder fazer as mudanças. Pág. 9
Familia Blublitz aguarda a chegada do helicóptero de resgate, no município de Luiz Alves, Santa Catarina
Resultados de fenômenos meteorológicos de grande intensidade, despreparo dos governos e falta de políticas de habitação para as cidades brasileiras compõem o quadro da tragédia em Santa Catarina. Os efeitos do agravamento do aquecimento global em todo o mundo também são uma preocupação, embora meteorologistas e pesquisadores afirmem que as enxurradas não foram provocadas diretamente pela elevação da temperatura mundial. Págs. 2 e 3
Divulgação
Nos Estados Unidos, muitos presídios, grandes negócios
Movimentos sociais querem discutir crise, não eleições Pela primeira vez desde o início da crise, os movimentos sociais brasileiros foram chamados para debater com o governo federal. Na ausência do presidente Lula, alguns quiseram aproveitar o evento para fazer loas à ministra da Casa Civil, antecipando a campanha de 2010, destoando, vergonhosamente, da gravidade dos fatos. Págs. 2 e 4
Quando se pensava que o sistema capitalista havia esgotado todas as suas formas de exploração, descobrese mais uma: o uso da mão-de-obra carcerária nos presídios privatizados. Com 8.700 unidades espalhadas dentro de seu território, os EUA, além de serem o país campeão mundial de presídios, também são o primeiro em números percentuais de presos. E esse é um negócio que interessa aos empresários dos mais inesperados ramos. Até mesmo a rede de lanchonetes KFC (Kentucky Fried Chicken), que distribui frangos fritos aos soldados estadunidenses nos fronts do Afeganistão e Iraque, investe em presídios no país. Pág. 11
Deputado dá aval a assassinato de fiscal “Aqui em Goiás, até isso acontece, os caras tiveram que matar um fiscal.” Assim o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS), em audiência pública no Congresso, dia 18, para defender a agropecuária – que, segundo ele, sofre pressão dos bancos, ambientalistas, índios e Ministério do Trabalho –, tentou justificar o assassinato de um servidor público em Goiás. Pág. 6
A propaganda ideológica de todos os dias
Douglas Mansur/ Novo Movimento
Pág. 8
Na Bahia, Jacques Wagner apóia expansão da Veracel ISSN 1978-5134
Com o total apoio do governador Jacques Wagner (PT), a transnacional do ramo da celulose Veracel deverá investir 2,5 bilhões de dólares na expansão da monocultura do eucalipto. Wagner chegou a ir a Estocolmo, capital da Suécia,
em meados de novembro, para garantir os investimentos. Para as entidades da sociedade civil, é inaceitável que o governo apóie uma empresa condenada judicialmente por desmatar áreas de Mata Atlântica Pág. 5
África – Ismael Ossemane, um dos fundadores da União Nacional de Camponeses (Unac) e militante ativo na construção da Moçambique pós-independência, fala da história de seu país e da luta do seu povo em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Pág. 12
Wilson Dias/ABr
AFOGANDO EM NÚMEROS A ajuda destinada pelo governo federal a Santa Catarina,
1,6 bilhão, é metade do que foi gasto com o Pan-americano do Rio, que custou R$ 3,3 bilhões. Orçado inicialmente em R$ 390 milhões, o Pan superou em 12 vezes a média dos gastos dos jogos de
de R$
Santo Domingo, Winnipeg, Mar del Plata e Havana, que foi de R$
280 milhões.
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editorial
NAS ÚLTIMAS semanas, a imprensa corporativa tem dado destaque aos sinais, fatores, causas e conseqüências da crise. No início, o debate girava em torno de falsas polêmicas, como, por exemplo, se a crise era do capitalismo ou apenas do capital financeiro. Depois, mudaram o enfoque, abordando se a crise era dos Estados Unidos e também da Europa, ou quem sabe mundial. Em seguida, passaram a abordar se a crise era duradoura ou passageira, cíclica ou estrutural. A verdade é que poucos analistas trataram com profundidade e buscaram de fato explicar a natureza da crise, sua gravidade e conseqüências. Primeiro, pelo que se viu dos jornalistas e dos colunistas econômicos de plantão, o fato é que eles não sabem explicar; a maioria tem formação neoclássica. Segundo, aderiram com “mala e cuia”, como dizem os gaúchos, às teses do neoliberalismo, nas quais o mercado é o Senhor, regula tudo e todos. Terceiro, por não estudarem, ficam como papagaios repetindo a vontade do capital expressa nas declarações de suas fontes empresariais. Agora, diante da crise, além de não saberem explicar, ficam constrangidos com suas próprias contradições. Conclusão: os comentaristas da grande imprensa foram todos desmoralizados junto com seus
debate
A crise é grave e atingirá todo povo brasileiro patrocinadores doutrinários. O fetiche do mercado os “enganou”. Como consequência, os leitores e telespectadores acabam tendo diariamente apenas o relato dos fatos, não explicados, dos sintomas de uma crise grave, profunda, cíclica, estrutural, mundial, e que, provavelmente, será muito prolongada. Enquanto isso, os assessores do governo Lula parecem mover-se apenas pelo que lêem nos jornais. Muitos deles, inclusive, esqueceram o que estudaram no velho Marx. As explicações do governo para a sociedade seguem o sabor da superficialidade, e, em alguns casos, da irresponsabilidade defendida pela imprensa. Durante várias semanas foi repetido que o Brasil era protegido por Deus, que a crise não chegaria aqui, que tínhamos bases sólidas, reservas em dólar etc., etc., etc. Mas a realidade é outra. A cada dia estamos assistindo as conseqüências dessa crise baterem à porta de todo povo brasileiro. As vendas da indústria automobilística caíram 25%, muitos setores já deram férias coletivas para os trabalhadores e o desemprego
cresce. Projetos de investimento são adiados. Isso, justamente nesse setor que é a locomotiva do capitalismo industrial dependente. Além disso, a indústria de calçados está desempregando em massa, há deficit na balança de pagamentos. Sadia, Nestlé e outras empresas do agro jogaram todo peso da crise sobre os pequenos agricultores, baixando o preço pago pelo leite, frango e porco em mais de 30%. Sem baixar o preço no supermercado, é claro. Frente a isso, o governo tomou até agora apenas medidas para proteger os interesses das empresas. As notícias dão conta de que foram injetados 158 bilhões de reais em financiamento barato para os capitalistas. Há uma medida provisória que autoriza o senhor Meirelles a fazer o que quiser com nosso dinheiro. A taxa de juros continua lá em cima. O governo segue garantindo a taxa de 14% ao ano aos banqueiros. E os bancos cobram até 68% ao ano nas prestações dos consumidores. São as mais altas taxas de juros do mundo. Já nos países ricos, cobra-se apenas de 2% a 3% de juros ao ano.
crônica Luiz Ricardo Leitão
Elaine Tavares
As chuvas em Santa Catarina AS CHUVAS que caem há três meses seguidos em Santa Catarina acabaram se transformando em tragédia. E, no meio da dor de milhares de famílias que perderam pessoas e coisas, me vem à mente o célebre debate entre Voltaire e Rousseau, feito através de escritos, pouco depois do terremoto de Lisboa (Portugal), ocorrido em 1755. Naquela tragédia européia morreram mais de 100 mil pessoas, a cidade ficou destruída e os grandes pensadores da época – que eram os que formavam opinião, tal qual hoje a mídia – erguiam os braços aos céus dizendo que era uma fatalidade, obra da providência divina. Voltaire ironizava esta idéia de que o terremoto fosse um castigo de deus e colocava a culpa na natureza. Já Rousseau mostrava as causas sociais do desastre e apontava: “20 mil casas de seis ou sete andares foram construídas. O homem deveria tê-las feito menores e mais dispersas”. Para ele, era a civilização humana a culpada pelos males que se abatiam sobre ela. Rousseau inocentava assim a deus e a natureza, e lembrava que havia sido a idéia insana de muitos lisboetas de protegerem seus pertences que os levara – muitos – à morte. Pois, em Santa Catarina, estamos nesse embate. O mundo literalmente desabou sobre nossas cabeças. Na região do vale do Itajaí, os morros vieram abaixo, soterrando casas e gentes. As construções humanas se esmigalharam como se fossem folhas de papel, mostrando a fragilidade da raça. Algumas cidades foram inteiramente invadidas pelas águas dos rios, e o desespero tomou conta de mais de um milhão de pessoas atingidas pela catástrofe. Como na Lisboa do século 18, não há aqui nada de providência divina. Se deus é bondade, não permitiria tanta dor. Eu que creio num deus minúsculo, que é apenas rede onde descansamos a dor, o eximo deste caso. A grande mídia exibe os argumentos de Voltaire. A chuva é a grande vilã. Não fosse ela, nada teria acontecido. Ninguém fala que a chuva é coisa natural e que desde que o mundo é mundo ela cai, ora mais, ora menos. O que se diz é que os morros caíram por conta dela, que os rios subiram por conta dela e quando, de noite, ela volta, insistente, as gentes a maldizem e a temem. Eu tendo a fazer uma leitura roussoniana. A chuva é coisa bendita. Ela vem para trazer vida, nunca morte. Se hoje, junto com ela, vem a ceifadora, há que se buscar outros culpados. Afinal de contas, por que os rios transbordam? Que fizeram com eles os homens que habitam suas margens? E os morros que desabam, não teriam sido revirados para a plantação de tubos da gigantesca obra do gasoduto, tão denunciada por ambientalistas e estudiosos no
No dia 26 de novembro, o presidente Lula tomou a sábia iniciativa de convocar todos os movimentos sociais do país para debater a crise. Militantes e dirigentes preocupados com a gravidade da crise acorreram massivamente ao convite. Cerca de 60 entidades e movimentos mais representativos do povo brasileiro prepararam um documento com mais de 20 propostas (leia na pág. 4). As sugestões são muitas e amplas. Vão desde trocar o presidente do Banco Central, mudar a política de superavit primário e aplicar esse dinheiro, que é publico, em vez de pagamento de juros, em programas de solução dos problemas do povo, como reforma agrária, educação, moradia, melhorias na saúde pública, elevação do salário mínimo etc., à necessidade de um plano de emergência e massivo de geração de empregos, com redução da jornada de trabalho, e penalização das empresas que desempregarem. Os movimentos também defenderam as iniciativas de governos da América Latina para efetivar o Banco do Sul, para colocar nossas reservas, tirando-as de Nova
York, e construir uma zona de moeda comum, supranacional, fugindo do dólar e de suas armadilhas. Os movimentos fizeram sua parte, leram e entregaram os documentos. Mas os puxa-sacos palacianos faltaram. Como o presidente não pôde comparecer por causa das chuvas em Santa Catarina, alguns espertinhos quiseram aproveitar o evento para fazer loas à ministra da Casa Civil, antecipando a campanha de 2010, destoando, vergonhosamente, da gravidade dos fatos. A imprensa burguesa se lambusou. Uniram-se os oportunistas do Palácio com os jornalistas tucanos de plantão. Nada de debater seriamente as soluções para a crise. Para os burocratas e carreiristas partidários, só lhes interessam as campanhas eleitorais, para manterem seus cargos públicos, pagos com nosso trabalho. Mas a história ensina que quem costuma brincar com fogo em geral sai queimado! Todos sabemos que, quando o capitalismo entra em crise, fica ainda mais explorador, mais violento e irresponsável. É hora do governo Lula e governos estaduais sérios convocarem todas as forças da sociedade para fazermos um grande debate sobre as medidas necessárias para proteger o povo brasileiro da sanha do capitalismo.
Em terras de Simón Bolívar Gama
início dos anos de 1990. Pois naqueles dias eram chamados de loucos, os “ecochatos”, os antiprogresso, os que impediam o desenvolvimento. As enchentes e os deslizamentos que cobriram de dor Santa Catarina não são obra do acaso ou da ira de um deus vingativo. Elas são o resultado da incapacidade dos homens em perceber que são parte da natureza, membros vivos da Pachamama, da mãe Gaia. Mas qual, isso é conversa de naturebas, falsos hipppies, inconseqüentes, os que vivem falando de socialismo, cooperação, vida simples e integrada com a natureza. A tragédia que se abate sobre o vale do Itajaí e outras tantas regiões do Estado já estava anunciada. Desde sempre... Vinha sendo prevista por aqueles a quem as pessoas denominam “os arautos da desgraça”. Os que vêem defeito em tudo, que questionam cada obra faraônica, cada plano diretor mal planejado, cada ação irracional do sistema capitalista. Basta que se dê uma espiada nos relatórios elaborados por estudiosos e ambientalistas, estes que nunca são ouvidos pelos governantes. As obras de prevenção sempre são caras demais e nunca saem do papel. Às vezes se faz uma concessão aqui ou ali, mas, no geral, as grandes saídas são esquecidas nas gavetas, até que venha uma nova tragédia. Por isso, me entristece um pouco ver toda essa comoção que imediatamente toma conta das pessoas em todos os lugares. Os comitês de ajuda, as doações de comida e roupas, as lágrimas de piedade. Não que eu ache que isso não é necessário. Sim, é. As pessoas precisam comer agora, aqui. Mas o povo de Santa Catarina não precisa só desse breve momento de musculação de consciência que vai durar enquanto a mídia centrar seus holofotes na região. A gente desse Es-
tado vai precisar de todo esse povo na hora de empreender a luta por obras de prevenção, na hora em que tiver de abrir mão de algumas benesses do progresso e do desenvolvimento para garantir que coisas assim nunca mais aconteçam. Cá com meus botões, eu temo que tudo isso siga seu ciclo perverso. O mundo todo de olho no Estado por um mês ou dois e, depois, o esquecimento. As famílias que perderam gente, acomodam sua dor. Os que perderam coisas, recuperam. E a vida segue, enquanto nos palácios os governantes contratam empreiteiros para a reconstrução. Os mesmos de sempre levarão os lucros. Os que nada têm agradecerão por estarem vivos, e os remediados se levantarão outra vez. Até quem venha um ciclone, outra chuva, um tsunami e tudo recomece na roda insana. Talvez, a grande tragédia não seja a chuva, mas essa absurda incapacidade que grande parte das gentes têm de compreender que as catástrofes são faturas da nossa construção histórica, da nossa forma de organizar a vida, do desejo de dominar a natureza, da nossa ânsia de acumular riqueza. Não é à toa que enquanto o mundo todo ora por nós, o governo do Estado trame a aprovação – em caráter de emergência – de um novo código florestal que tem como princípio básico a destruição da natureza. Se efetivamente precisamos de lágrimas e comoção, que seja por isso. E que todos possam se unir na luta contra esse projeto tanto quanto estão mobilizados para a ajuda às vítimas. Como já dizia o velho Marx, é sempre bom que a gente possa ver para além da aparência. Eu, otimista incurável, acredito que Santa Catarina vai lutar. Elaine Tavares é jornalista .
ESCREVO DIRETAMENTE de Caracas, na Venezuela, onde tive a honra e o prazer de ministrar uma oficina de Literatura para um grupo de jovens profissionais da Vive-TV, emissora estatal que difunde e estimula as lutas e iniciativas comunitárias em todo o país. O clima por aqui é de enorme efervescência: há um processo de mudanças em marcha, liderado pela figura polêmica e singular de Hugo Chávez, ao qual ninguém consegue ficar indiferente, o que estimula a crescente politização da vida pública nacional. O ambicioso projeto da “Revolução Socialista Bolivariana” segue seu curso, em meio a vários desafios e obstáculos cuja superação, por vezes, nos parece quase impossível. Apesar da Constituinte, a estrutura do Estado ainda é incapaz de impulsionar todas as medidas reclamadas pela população. Além disso, o poder dos monopólios e das corporações transnacionais permanece praticamente incólume, fato que soa como um paradoxo dentro de um regime que se pretende socialista. Nacionalizaram-se algumas empresas (entre elas, siderúrgicas, indústrias têxteis e até mesmo o afamado Hilton Hotel, que agora se chama Alba), é bem verdade, mas o capital privado continua a faturar milhões na terra de Simón Bolívar. A trágica herança de décadas de submissão da burguesia aos interesses do imperialismo ianque está bem visível na própria fisionomia da metrópole. Quase todas as encostas de Caracas (situada em uma região montanhosa a poucos quilômetros do litoral) foram ocupadas por condomínios luxuosos, tal como ocorre na zona sul do Rio de Janeiro, ou por moradias populares. Estas configuram uma ampla malha de comunidades a que os habitantes locais chamam de barrios. Elas me evocam de imediato o cenário das favelas cariocas, mas com uma diferença básica: em vez do poder absoluto das “milícias” ou dos bandos de traficantes que há nos morros cariocas, surgem nesses espaços os Conselhos Comunitários, uma forma ainda incipiente, porém efetiva, de inserir o povo venezuelano na revolução proposta por Chávez. No asfalto, as seqüelas do capitalismo periférico também se notam. Com a gasolina a preço de banana, o número de carros não pára de crescer. O tráfego é caótico, os motoristas ignoram todas as regras de trânsito e os congestionamentos são insuportáveis até mesmo para um paulistano habituado à paranóia das marginais do Tietê. O novo alcaide da velha Caracas, Jorge Rodríguez (PSUV), promete investimentos no transporte coletivo e de massa (já existem seis linhas de metrô em funcionamento), mas essa batalha deverá ser bem mais árdua do que a própria Revolução Bolivariana... Isso sem falar na febre dos celulares (há casais que almoçam sem conversar entre si, presos ao telefone durante a refeição), um índice eloqüente da sedução que a sociedade de consumo pós-moderna exerce sobre a classe média. No plano político, a efervescência não tem fim. A julgar pela quantidade de textos e análises que circulam pela internet, as eleições do último dia 23 são um exemplo cabal do fenômeno. Há quem jure que o chavismo agoniza, há quem se empolgue com os números do novo partido socialista (PSUV). Como fugaz observador do pleito, devo dizer que “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”... O PSUV logrou recuperarse da derrota sofrida há um ano, quando a oposição venceu por estreita margem o referendo sobre as emendas constitucionais e barrou as alterações postuladas por Chávez. Com quase 1,2 milhão de votos a mais que os adversários, o partido elegeu 17 dos 22 governadores estaduais, mas amargou sérios reveses em algumas das províncias mais ricas do território, sobretudo em Zulia (região petrolífera), Táchira e Miranda. Mais além dos números, porém, o fato incontestável na Venezuela é a crescente inserção dos movimentos sociais na vida nacional, decerto o maior trunfo do projeto bolivariano em curso. É evidente que uma parte da oposição já não cultiva o mesmo tom bélico e agressivo que levou ao golpe de 2003. Até na própria mídia, há sutis matizes dignos de atenção: enquanto a RCTV e a rede Globovisión seguem atacando ostensivamente o governo Chávez, a Venevisión resolveu adotar uma posição de “independência” ou “neutralidade”, evitando claramente provocações ou calúnias contra o regime. Chávez, por sua vez, insiste na tática do confronto, não concedendo um minuto de trégua aos opositores. Alguns analistas julgam equivocada a tática do comandante, mas quadros do PSUV avaliam que, sem a polarização, não seria possível acelerar o processo de consolidação do poder popular e de incremento das forças bolivarianas. Ninguém pode prever o rumo das coisas por aqui, mas não há dúvida de que Chávez tem prestado uma ajuda decisiva às lutas dos povos latino-americanos. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidad de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800
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Tragédia anunciada em Santa Catarina DESASTRE Fenômenos meteorológicos de grande intensidade, despreparo dos governos e falta de políticas de habitação para as cidades brasileiras compõem o retrato da tragédia no Estado do Sul. Preocupação aumenta com piora do aquecimento global Fernando Donasci/Folha Imagem
Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS)
Moradores do município de Luis Alves (SC) são resgatados por helicóptero da Força Área Brasileira
O que não esperávamos eram chuvas acima de 300 mm, como caíram no leste de Santa Catarina. O que podemos fazer é avisar. Não há como segurar a natureza”, argumenta. O pesquisador Antônio Manzi, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), descarta uma influência do desmatamento da Amazônia nas enxurradas que caíram no Estado. Resultados bastante conclusivos mostram que a derrubada da mata altera o clima lo-
cal, mas no sentido de tornar mais quente e menos úmido. Sobre alterações no regime de chuvas, há apenas modelos que apontam um aumento do índice pluviométrico no Centro e no Sul do Brasil e da América Latina, mas pouco conclusivos. No entanto, Manzi argumenta que, numa avaliação mais ampla, é possível relacionar a enxurrada catarinense com as mudanças climáticas globais. Mesmo que ainda não existam dados suficientes, estudos pre-
vêem que as mudanças globais vão amplificar os fenômenos climáticos. “É possível que as mudanças climáticas globais possam ter alguma influência na intensidade do efeito em SC. Embora seja muito difícil afirmar com certeza em um evento único. Mas uma das conseqüências das mudanças climáticas globais que os modelos prevêem é que esses eventos considerados extremos vão acontecer com maior intensidade no futuro”, diz.
Má preparação O despreparo dos governos e das cidades brasileiras para um agravamento dos efeitos do aquecimento global se mostrou gritante na tragédia em Santa Catarina. Grande parte das 116 mortes registradas pela Defesa Civil até a noite do dia 1 foi devido a deslizamentos de terra em conseqüência das fortes chuvas, e não diretamente por afogamento nas enchentes. O meteorologista do CPTEC/ INPE Olívio Bahia do SacraFernando Donasci/Folha Imagem
A TRAGÉDIA que assola Santa Catarina nas últimas semanas pode ser uma amostra dos efeitos do agravamento do aquecimento global em todo o mundo. Embora meteorologistas e pesquisadores afirmem que as enxurradas não foram provocadas diretamente pela elevação da temperatura mundial, estimativas apontam que eventos climáticos extremos devem ocorrer mais vezes e com mais intensidade. O meteorologista do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/INPE) Olívio Bahia do Sacramento explica que as chuvas fortes que atingiram o Estado foram provocadas por dois sistemas meteorológicos fortes e que estiveram na região por muito tempo. De um lado, um grande anticiclone atuou sobre o Atlântico, fazendo com que a circulação de ar levasse a umidade do oceano para o continente. Além dos ventos, também havia um vórtice ciclônico que sugou a umidade que estava em superfície e a enviou para camadas superiores, intensificando assim a instabilidade e provocando mais chuva. Para Sacramento, esses dois fenômenos explicam porque as chuvas, embora normais durante o verão no Sul do Brasil, caíram com tanta intensidade em Santa Catarina. “Infelizmente não havia como evitar. Fazemos uma avaliação diária e já tínhamos enviado avisos sobre chuvas significativas na região, acima de 100 mm.
Políticas precárias de habitação agravaram o problema
Wilson Dias/ABr
A falta de política de habitação, muito comum nas cidades brasileiras, agravou os efeitos das chuvas que atingem Santa Catarina há três meses e que se intensificaram no final de novembro. O arquiteto e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Regional de Blumenau (FURB) Luiz Alberto de Souza avalia que a urbanização e as moradias precárias no Vale do Itajaí – região mais atingida pelos temporais e pelas enchentes – contribuíram para as mais de cem mortes. Dados extraoficiais apontam que, somente na cidade de Blumenau, o deficit de moradia atinge 6 mil famílias. “Nossa região não difere de nenhuma outra parte do Brasil e de outras cidades. Nós temos um modelo de exclusão socioterritorial, em que a população menos favorecida, do ponto de vista habitacional, tem que suprir sua demanda através de alternativas. E essas alternativas geralmente acabam sendo as áreas que não são muito apropriadas para a ocupação”, afirma. Souza relata que a própria urbanização da região do Vale do Itajaí foi alterada por outra tragédia, as enchentes de 1983 e de 1984. Devido às perdas, a população de diferentes classes sociais, que antes morava nas áreas planas, passou a desmatar e a ocupar os morros. Processo que, com o agravamento das chuvas, resultou nos deslizamentos e em pelo menos 116 mortes. “As enxurradas e os deslizamentos atingiram as classes menos favorecidas, as pessoas pobres, mas atingiram também, em determinados setores e regiões da cidade casas, edificações da classe média. Mas eu ainda diria que, em um balanço mais geral, a população mais pobre foi a mais penalizada, porque foi na periferia que houve muitos danos materiais.”
O arquiteto reclama que as políticas habitacionais não são prioridade para os governos estaduais e o federal. Tanto é que, com a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH) em 1986, houve um vácuo nas políticas nacionais até 2003, com a criação do Ministério das Cidades. No entanto, os recursos disponibilizados para habitação ainda são escassos, e os municípios falham na fiscalização de moradias em áreas de risco. “O que aconteceu aqui em Blumenau não é diferente do que pode aconte-
De acordo com professor, as enchentes de 1983 e de 1984 podem ter associação com os deslizamentos. Desde aquela época, devido às perdas, a população de diferentes classes sociais, que antes morava nas áreas planas, passou a desmatar e a ocupar os morros
cer em outras cidades brasileiras. A população pobre continua morando mal, em áreas impróprias e sujeitas a risco. Só que é claro que aqui teve esse fenômeno meteorológico que agravou a situação. Esperamos agora, com essas tragédias que ocorreram, que as políticas sejam realmente mais efetivas e que seja resolvida a questão habitacional”, diz. (RC) e (PC)
Neiva Daltrozo-SECOM
de Porto Alegre (RS)
Famílias lamentam tragédia, e bombeiros ainda buscam sobreviventes
mento avalia como necessário pensar em estratégias de antecipação desses fenômenos. “As cidades ainda não estão preparadas para agir em uma situação dessas, pois não há como parar as chuvas, que em grande quantidade vão alagar os rios e as ruas, os barrancos vão deslizar e soterrar casas que estão próximas. O que a Defesa Civil vai fazer? Evacuar cidades inteiras? É uma situação para se avaliar”, afirma. O professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Regional de Blumenau (FURB) Luiz Alberto de Souza acompanha de perto o drama das famílias flageladas. Blumenau, no Vale do Itajaí, é a segunda cidade que mais registrou número de óbitos (24). Ele também concorda que os governos, tanto das cidades como dos Estados e do próprio país, estão despreparados para esse tipo de acontecimento e defende mais investimento em sistemas de alertas e prevenção e na infra-estrutura, como a Defesa Civil. “Acho que o que deve ser realmente pensado é ter a possibilidade disso ser uma prática mais comum. De termos condições de alerta como acontece nos Estados Unidos com os tornados, que possam fazer com que esse trabalho posterior de limpeza e de reconstrução seja menor. As pessoas ficam nos abrigos, mas eles não estão preparados. São abrigos improvisados. A maioria das pessoas está em escolas com poucos chuveiros, as cozinhas não estão equipadas. Nós realmente não temos um plano de Defesa Civil que dê conta”, argumenta (colaborou Paula Cassandra).
Números de guerra de Porto Alegre (RS) Dados divulgados na noite do dia 1º pela Defesa Civil de Santa Catarina registram 116 mortes, 31 pessoas desaparecidas e quase 79 mil desalojados e desabrigados. A cidade de Ilhota contabiliza o maior número de vítimas fatais, 37, seguida de Blumenau, com 24, e Gaspar, com 16, todas no Vale do Itajaí. Os deslizamentos de terra também atingiram rodovias – até o dia 1º, uma BR e sete estradas estaduais ainda estavam totalmente fechadas – e interromperam a distribuição de gás natural no Rio Grande do Sul, afetando principalmente hospitais, algumas indústrias e a frota de táxi GNV. A BR101, uma das mais importantes do país, permaneceu interrompida até o último domingo em SC. As exportações via Porto de Itajaí, segundo maior porto de contêineres do país, sofreram queda de 370 milhões de dólare em novembro por conta dos produtos que deixaram de ser embarcados. Levantamento do Ministério do Desenvolvimento mostra que o porto responde por 4% das exportações: 22% das vendas externas de fumo, 26% das exportações de móveis, 21% de produtos cerâmicos, 32% de compressores e 60% da produção nacional de maçã. As reformas e a normalização do porto, que foi destruído pelas enxurradas, deverão levar em torno de 20 dias. Doenças Em locais que ficaram “ilhados” devido à enchente e aos deslizamentos, a Defesa Civil determinou que os próprios moradores enterrassem os animais mortos, principalmente de grande porte, como bois e cavalos. Em casos extremos, foi indicado o enterro de pessoas mortas com a marcação do local, para que depois seja feito o procedimento correto. A iniciativa é para evitar doenças. A Secretaria de Saúde de Santa Catarina já registrou 10 casos de possível infecção de leptospirose. A preocupação é que os casos aumentem, já que em alguns municípios, como em Itajaí, não há recolhimento de lixo normalizado e a enchente espalhou os resíduos, situação que contribui para a proliferação dos ratos, causadores da doença. (RC) e (PC)
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Movimentos apresentam propostas para o Brasil diante da crise mundial ALTERNATIVAS Em reunião com governo federal, 57 movimentos sociais criticam política econômica e defendem trabalhadores Alan Marques/Folha Imagem
Dafne Melo da Redação MUDAR A política econômica, ampliar emprego, renda e direitos sociais, fortalecer as alianças latinoamericanas. Essas são as linhas gerais das propostas que um conjunto de 57 movimentos sociais brasileiros levaram ao governo federal em reunião com os ministros Guido Mantega (Economia), Luiz Dulci (Secretaria Geral da Presidência) e Dilma Roussef (Casa Civil), dia 26 de novembro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, esperado pelos movimentos, não compareceu. Justificou sua ausência com a necessidade de ir a Santa Catarina, por conta dos desastres causados pelas chuvas. Foi a primeira vez, desde o início da crise financeira mundial, que o governo sentou para conversar com os movimentos sociais. Primeiro, falaram Mantega e Dulci, seguido de alguns dos dirigentes. A carta de reivindicações foi lida em voz alta, e outros fizeram duras críticas à política econômica. Por último, pronunciou-se Dilma Roussef, que defendeu a postura econômica de seu governo. Na avaliação de Milton Viário, secretário nacional da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM-CUT), a reunião, ainda que importante, não correspondeu às expectativas. “Queríamos debater e dialogar de forma transparente. A reunião caminhou muito para uma prestação de contas dos seis anos de governo. Não houve o debate anunciado”, lamenta.
Avaliações
Para Marina dos Santos, integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o não comparecimento de Lula também acabou prejudicando a reunião. “Queríamos discutir com o responsável pelas políticas do governo as mudanças necessárias e o destino do nosso país. Queremos fazer um debate sério e profundo sobre o Brasil com o presidente. Compreendemos a situação de catástrofe em SC, e nos solidarizamos, mas queremos ser chamados para debater o projeto de nação com o presidente, e não somente nos momentos de crise – como foi feito até agora”, protesta. Lúcia Stumpf, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), salienta a importância de
Saídas à esquerda Leia algumas propostas retiradas do documento assinado por 57 entidades e movimentos, entre eles Via Campesina Brasil, Assembléia Popular, União Nacional dos Estudantes (UNE), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Marcha Mundial de Mulheres, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB):
Dilma Rousseff e Guido Mantega durante encontro com movimentos sociais
“A reunião caminhou muito para uma prestação de contas dos 6 anos de governo. Não houve o debate anunciado”, lamenta Milton Viário, da CUT se manter espaços de diálogo entre o governo e os movimentos sociais. “Valorizamos o espaço que tivemos para colocar nossas idéias, e conseguimos deixar claro que o povo organizado tem uma opinião sobre a crise e estamos atentos. Não passarão desapercebidas quaisquer medidas que venham a onerar o povo”, afirma. Lúcia também avalia que as medidas tomadas por Lula para conter a crise são “insuficientes” e não tocam na grande contradição do governo, que é sua política macroeconômica, com a manutenção de altos juros e alto superavit primário. Milton Viário concorda: “São medidas paliativas e de fôlego curto. A longo prazo, não se sustentam”. Essas medidas, avaliam, estão centradas apenas em setores da elite econômica, sem que nada tenha sido pensado para o conjunto da classe trabalhadora. “As medidas do governo, até agora, se limi-
tam ao apoio aos bancos, às grandes empresas e ao setor exportador, que lucraram com o neoliberalismo e agora, em momento de crise, recorrem ao Estado que tanto discriminavam”, conclui Marina.
Unidade
Um dos pontos positivos da reunião, destacado pelos três dirigentes, é a unidade de diversos movimentos em torno de propostas concretas para mudar a sociedade brasileira (ver box). Lúcia Stumpf enfatiza que, agora, “a unidade de propostas precisa se concretizar numa unidade de luta, em batalhas concretas que somem as forças ali representadas”. Para isso, espaços de debates e organização de lutas entre as entidades e movimentos devem ocorrer nos próximos meses. O objetivo é criar agendas de lutas conjuntas para 2009. Marina dos Santos conta que esses setores vêm participando de discussões, com a meta de elaborar um programa com propostas de mudanças que criem condições para um projeto de desenvolvimento nacional que resgate o papel do Estado como ator na economia. “E esse processo não vai parar aí, estamos construindo uma agenda de mobilizações em conjunto para 2009. Nossa preocupação é o tamanho da conta que vai sobrar para a classe trabalhadora com essa crise. O governo brasileiro tem que se preocupar com o trabalho e as questões sociais do povo”, finaliza.
- Controlar e reduzir imediatamente as taxas de juros; - Impor um rigoroso controle da movimentação do capital financeiro especulativo; - Utilização das riquezas naturais (como o petróleo e minérios) para criar fundos solidários que solucionem os problemas do povo; - Cancelamento imediato do novo leilão do petróleo, marcado para dia 18 de dezembro; - Revisar a política de manutenção do superavit primário, uma velha e desgastada orientação do FMI – um dos responsáveis pela crise econômica internacional. Os recursos devem ser revertidos para a sociedade, com in-
vestimentos em áreas como a saúde, educação, moradia e reforma agrária; - Execução de um plano de manutenção e ampliação dos empregos e renda, redução da jornada e punição às empresas que demitem; - Revogação da Lei Kandir que suspende o imposto sobre as exportações de matérias-primas agrícolas e minerais; - Fortalecimento da estratégia de integração regional, que se materializa a partir dos mecanismos como o Mercosul, Unasul e Alba; - Substituição do dólar nas transações comerciais por moedas locais, como recentemente fizeram Brasil e Argentina; - Consolidação, o mais rápido possível, do Banco do Sul, como agente promotor do desenvolvimento regional, auxiliando no crescimento do mercado interno entre os países da América Latina e como um mecanismo de controle de reservas, para impedir a especulação financeira; - Retirada imediata de todas as forças estrangeiras do Haiti. Nenhum país da América Latina deve ter bases e presença militar estrangeira. Propõe-se, no lugar, a constituição de um fundo internacional solidário para reconstrução econômica e social do Haiti.
Movimentos negam apoio à Dilma No dia seguinte à reunião, imprensa corporativa afirma que reunião virou ato pró-Dilma da Redação No dia seguinte após a reunião entre os movimentos sociais e o governo federal, alguns dos principais jornais do país reportavam que o encontro havia se transformado em um ato de apoio à candidatura de Dilma Roussef para a presidência da República em 2010. Ainda que alguns movimentos tenham feito falas nesse sentido, os representantes ouvidos pela reportagem negam qualquer declaração de apoio eleitoral à atual chefe da Casa Civil nas próximas eleições. “Houve uma fala nesse sentido que não expressa a totalidade das forças que lá estavam. A UNE não foi lá defender nenhum candidato para 2010”, declarou Lúcia Stumpf, para
quem a imprensa corporativa deu ênfase a isso para, na verdade, fugir do debate central e do conteúdo das propostas dos movimentos. “Estamos preocupados com o futuro do nosso país, que não será resolvido de eleição em eleição, mas com um novo ascenso do movimento de massas em defesa das mudanças estruturais e de um projeto nacional”, reitera Marina dos Santos, do MST. Milton Viário, da Confederação Nacional dos Metalúrgicos, também afirma que o objetivo da reunião foi debater a crise econômica com o governo federal, nunca declarar qualquer apoio político. “Se, diante da grave crise em que estamos, o governo só pensasse em 2010, seria de uma pobreza política enorme”, opina Milton. (DM)
ECONOMIA
Governo pretende aprovar reforma tributária conservadora ainda em 2008 Projeto de Emenda Constitucional é criticado por afetar as contas da Seguridade Social e desonerar empresários sem contrapartidas Renato Godoy de Toledo da Redação Uma comissão especial da Câmara aprovou, no dia 19 de novembro, um parecer do deputado Sandro Mabel (PRGO) sobre a reforma tributária. Em termos práticos, essa alteração na cobrança de impostos já está pronta para ser votada no plenário. Para a reforma ser aprovada, é preciso que o governo tenha uma maioria simples no plenário em favor do Projeto de Emenda Constitucional (PEC). Ávido por uma alteração na arrecadação de tributos desde a extinção da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), em dezembro de 2007, o governo demonstra que se empenhará para votar a PEC ainda neste ano. No entanto, a oposição promete barrar os planos do governo. O bloco DEM-PSDB alega que é favorável à reforma, mas prefere esperar a crise passar para
instituí-la, já que ainda não se tem noção do tamanho do impacto da turbulência. O principal articulador da resistência à reforma tem sido o governador paulista José Serra (PSDB), que teme perder verbas com a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), que repararia algumas disparidades arrecadatórias presentes no atual modelo tributário e combateria a guerra fiscal. A reforma também recebe críticas da oposição de esquerda, representada no Congresso pelo Psol, que rechaça a PEC por ela manter a estrutura regressiva do sistema de cobrança de impostos. Em outras palavras, quem ganha mais continuará pagando menos, e os pobres permanecerão sendo os mais onerados pelos impostos. Dentro da própria base aliada, não há consenso sobre a reforma. O bloco de Esquerda, formado por PCdoB, PDT e PSB, exige alterações no texto para votar com o governo.
Em outras palavras, [com a reforma] quem ganha mais continuará pagando menos, e os pobres permanecerão sendo os mais onerados pelos impostos Seguridade ameaçada
Para além da disputa parlamentar, especialistas apontam uma série de falhas no projeto de reforma e, sobretudo, um elemento nefasto que pode dar fôlego aos argumentos favoráveis a uma nova reforma da previdência, obrigando milhares de trabalhadores a contribuir com mais anos de serviço.
Segundo essa análise, a criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) ameaçaria o conjunto das verbas da seguridade social – que, de acordo com a Constituição de 1988, engloba previdência, saúde e assistência social. De acordo com o projeto de reforma, esse novo tributo substituiria o Programa de Integração Social (PIS), a Contribuição para Financiamento da Seguridade (Cofins) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líqüido (CSLL), que têm receitas vinculadas à Seguridade Social. Com o IVA, a arrecadação iria para a conta única do Tesouro Nacional, e o principal temor é de que as verbas sejam utilizadas para fins “menos nobres”. Nesse cenário, a equipe econômica do governo teria liberdade para gastar essa verba com o pagamento de superavit e juros da dívida, por exemplo, já que não tem mais a obrigação constitucional de investir o recurso em seguridade.
A instituição do novo imposto prevê que parte de sua arrecadação pode ser destinada à seguridade, mas o montante não pode ultrapassar 38%. Assim, em um ano fiscal de baixa arrecadação, a verba de saúde, previdência e assistência social podem ser prejudicadas pela nova legislação. Como resposta a essa crítica, o governo afirma que, se necessário, o Tesouro acudirá a seguridade em momentos de crise. No entanto, o Executivo afirma que esse expediente nunca precisou ser utilizado até hoje.
MEC descontente
Outro item que causou discórdia dentro do próprio governo quando a PEC foi elaborada, em fevereiro deste ano, foi a extinção do salário-educação. Este benefício hoje é financiado pelo recolhimento de 2,5% da folha de pagamento. A medida enfrenta resistência no Ministério da Educação (MEC), que recebeu R$ 7 bilhões em 2007 por meio dessa contribuição. O governo afirma que tanto as verbas da seguridade quanto as do salário-educação serão ressarcidas pelo Tesouro Nacional. Sérgio Miranda, ex-deputado federal e presidente do PDT de Belo Horizonte, critica a PEC desde sua primeira edição, no início do ano. Mesmo com as revisões e destaques sugeridos no Congresso, a essên-
cia do projeto continua a mesma, segundo ele. “As agressões à seguridade continuam, bem como as isenções ao setor patronal e o fim das contribuições sociais”, explica. Na análise do pedetista, não há clima para votar a PEC neste ano, como pretende o governo. “A seguridade é uma das conquistas mais avançadas da Constituição. Ela garantiu as igualdades de direito e a multiplicidade de fontes de recursos. Não adianta o governo dizer que isso [a reforma] não vai mudar nada. Não se pode discutir política social sem discutir financiamento”, afirma Miranda. As centrais sindicais criticaram o fato de a reforma instituir uma redução da alíquota das contribuições patronais ao INSS de 20% para 6%, sem indicar quais fontes reporiam essa perda financeira. Em conversas de bastidores no início do ano, o próprio presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, teria dito que essa desoneração poderia aumentar o chamado deficit da Previdência. “A desoneração pode aumentar o que eles chamam de deficit da previdência. Se tira de um lado, tem que compensar de outro. E isso não foi feito. Pode ser que não tenhamos problemas agora, mas no futuro o governo pode se arrepender amargamente”, prevê Miranda.
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nacional
Veracel II: duas vezes mais problemas MONOCULTURA Empresa obtém apoio do governador Jacques Wagner (PT) para dobrar sua produção de celulose no Estado da Bahia Reprodução
Quanto
Dafne Melo da Redação A DESPEITO da condenação pela Justiça da Veracel, por desmatar 96 mil hectares de Mata Atlântica no sul da Bahia, o governo do Estado não tem medido esforços para que a empresa mantenha – e amplie – seus negócios na região. A Veracel atua no ramo da celulose e é fruto de uma parceria entre a sueco-finlandesa Stora Enso e a brasileira Aracruz. Atualmente, ela atua em dez municípios do sul da Bahia. Em maio deste ano, a empresa já havia manifestado o interesse em duplicar sua produção. Em novembro, o governador Jacques Wagner (PT) foi para Estocolmo para acelerar o processo e acertar detalhes da negociata. No programa de rádio “Conversa com o Governador” – programa semanal feito pelo seu gabinete –, ele confirmou que Stora Enso irá investir 2,5 bilhões de dólares no novo projeto. “Eu me encontrei com o diretor presidente da Veracel mundial e o diretor presidente do grupo Stora Enso. Para minha alegria, vi a absoluta disposição deles em confirmar o investimento de 2,5 bilhões de dólares para fazer a Veracel II e, portanto, duplicar sua produção”, informou, e completou que o empreendimento garantirá “mais investimento, mais obra, mais emprego e mais riqueza para o Estado”. O governador ainda disse, durante a entrevista, que se reuniu com a federação das indústrias de madeira da Suécia com o objetivo de atrair outras transnacionais do ramo da celulose para a Bahia. De acordo com informações disponíveis na pági-
A Veracel possui apenas trabalhadores diretos em sua fábrica e cerca de terceirizados, além de contar com serviços terceirizados de empresas.
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9 mil
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Deserto verde: eucaliptos da Veracel no sul da Bahia
na na internet do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Aracruz doou 100 mil reais para a campanha de Wagner em 2006; a Veracel, outros 100 mil. A Suzano, outra empresa do ramo, deu 70 mil.
Repercussão
“O que nos deixa preocupado é que, se for dobrar a capacidade de produção deles, nossos problemas devem dobrar também”, alerta Ivonete Gonçalves, coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul (Cepedes). Por problemas, entende-se a concentração de terras, expulsão dos trabalhadores rurais do campo, degradação ambiental causada pelo monocultivo do eucalipto, dentre outros, conforme denuncia-
va a edição 285 do Brasil de Fato. Ivonete conta que mesmo antes de confirmar e oficializar seu projeto de expansão, a empresa já vem adquirindo terras no sul do Estado. O padre José Koopmans, do município de Teixeira de Freitas, lamenta que mais uma vez as reivindicações históricas dos movimentos sociais da região estejam “sendo jogadas no lixo” pelos governos. “Aqui, o Estado sempre apoiou esse modelo de desenvolvimento. Com a entrada do PT, infelizmente, nada mudou.” Quanto à geração de empregos, Ivonete afirma que a empresa emprega diretamente pouquíssimas pessoas e aposta na tercerização a baixos salários. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores nas indústrias de
celulose da Bahia (Sindicelpa), a Veracel possui apenas 410 trabalhadores diretos em sua fábrica e cerca de 9 mil terceirizados, além de contar com serviços terceirizados de 180 empresas.
Ação civil
Outro ponto grave é que o governo apóie uma empresa que judicialmente foi condenada por ter desmatado 96 mil hectares de Mata Atlântica. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Centro de Recursos Ambientais (CRA) também foram condenados, por terem sido negligentes e terem autorizado o início das atividades da empresa, em 1991, sem os estudos de impacto ambiental que a legislação brasileira exige.
De acordo informações disponíveis na página na internet do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Aracruz doou 100 mil reais para a campanha de Wagner em 2006; a Veracel, outros 100 mil. A Suzano, outra empresa do ramo, deu 70 mil A Justiça federal acatou a Ação Civil Pública impetrada pelo Ministério Público Federal em agosto deste ano, 15 anos depois da data em que a ação foi movida. De acordo com a determinação do MPF, a empresa terá que restaurar, com vegetação nativa, todas as suas áreas compreendidas nas licenças de plantio de eucalipto liberadas entre 1993 e 1996. A empresa recorreu, e o processo se encontra a espera de novo julgamento. Além do processo na área ambiental, o MPF também investiga se houve corrupção por par-
te dos funcionários públicos do Ibama e CRA para a liberação do plantio. O promotor de Justiça João Alves da Silva, que cuida da ação, em entrevista à edição 285 do Brasil de Fato, afirmou que há indícios de formação de uma quadrilha que atua em favor da empresa, facilitando autorizações.
Novas degradações
De acordo com Ivonete, as entidades ficarão atentas a novas possíveis ilegalidades. “O que aconteceu pode voltar a acontecer, inclusive porque os órgãos responsáveis afirmam que não têm condições técnicas e humanas de fazer os estudos”, explica. Padre José afirma que de fato há poucos recursos e estrutura para os estudos. “O CRA tem dois escritórios com quatro funcionários, no total, para 27 municípios do sul da Bahia”, denuncia. Diante da incapacidade do Estado de fazer valer a lei ambiental, Ivonete conta que as entidades pedem moratória do plantio, “mas o que tem prevalecido são os interesses dessas empresas”, que iniciam seus projetos sem estudos. Outro fator preocupante é a construção do Porto do Sul. No dia 28 de outubro, em visita a Salvador, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um protocolo de intenções para estabelecer procedimentos para a construção da obra, que, segundo as declarações de Jacques Wagner, foi um atrativo a mais para que a Stora Enso decidisse aumentar a sua produção na região. Entidades ambientalistas já afirmam que o porto, a ser construído na cidade de Ilhéus, trará inúmeros problemas ambientais, abrangendo inclusive áreas de preservação.
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brasil
Deputado “libera” assassinato de fiscais do trabalho no país AMIGOS DO PODER Declaração de deputado do Rio Grande do Sul e condecoração a prefeito de Unaí ilustram a que ponto chegou o aparelhamento do Estado pelo agronegócio Diógenis Santos
Eduardo Sales de Lima da Redação “AQUI EM Goiás, até isso acontece, os caras tiveram que matar um fiscal.” Para bom entendedor, a frase proferida pelo deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS), em audiência pública no Congresso Nacional, no dia 18 de novembro, é uma declaração de apoio ao assassinato de um servidor público que fazia cumprir a lei no Estado de Goiás. Para o economista José Juliano de Carvalho Filho, diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), a segurança que Heinze demonstra, ao dizer abertamente o que pensa, ocorre porque a bancada ruralista é apoiada pelo governo Lula. “Muitos parlamentares que representam as forças mais retrógradas do país formam a base parlamentar do governo. Alguém vai processá-lo por este testemunho público de assassinato? Com quem anda a Justiça?”, questiona, com indignação, o economista. Contudo, a bancada ruralista não se concentra somente em Brasília. Seis dias após a declaração, o prefeito de Unaí (MG), Antero Mânica (PSDB), acusado de mandar matar três fiscais e um motorista em 2003, foi condecorado pela Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. O prêmio a Mânica foi proposto pelo deputado estadual Inácio Franco (PV), que participou da recente campanha de sua reeleição e é proprietário da construtora Embraurb, especializada em pavimentação de estradas e ruas, que presta, em Unaí, serviços pagos pela prefeitura. “Vejo esse fato como pura desfaçatez. Além da impunidade, a condecoração. Fatos como esse ofendem a cidadania”, indigna-se o diretor da ABRA. Acaso Mânica seja preso, a condecoração servirá para diminuir a pena, funcionando como circunstância atenuante.
Endógeno ao Estado
A declaração de Luis Carlos Heinze e a condecoração a Antero Mânica revelam a que ponto chegou o aparelhamento do Estado feito pelo agronegócio. “Então, de certa forma, o crime é endógeno ao Estado porque tem o envolvimento de parlamentares e gente do poder Executivo, como o próprio prefeito de Unaí”, exemplifica o coordenador
Construção histórica
“Aqui em Goiás, até isso acontece, os caras tiveram que matar um fiscal”, diz deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS) do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo/UFRJ, Ricardo Rezende Figueira. Em outro nível, ele aponta, em artigo, que a ação de alguns servidores públicos que promovem o crime ou que são omissos nas investigações, nas denúncias e nas sentenças também remetem a crimes considerados como endógenos ao Estado. Rezende cita outros nomes envolvidos com a exploração do trabalho escravo. “Temos o presidente da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o deputado estadual Jorge Picciani, acusado de envolvimento com o trabalho escravo no Mato Grosso, há dois anos; e o deputado federal Inocêncio de Oliveira (PR/PE), também denunciado por ter envolvimento com o trabalho escravo.” Para ele, é essa robustez da bancada ruralista, por vezes sustentada por membros do poderes Executivo e Judiciário, que dificulta a solução de crimes no campo. No caso do massacre de Unaí (MG), além do crime não ter sido solucionado, o
À sociedade brasileira: Relatório Direitos Humanos no Brasil 2008 LANÇAMENTO Relatório Direitos Humanos no Brasil chega à sua 9ª edição e será lançado no dia 4 de dezembro da Redação O Relatório Direitos Humanos no Brasil 2008, organizado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, reúne 30 artigos que abordam temas históricos relacionados ao acesso à educação, à terra, à moradia e ao trabalho dignos; ao respeito ao meio ambiente, aos direitos da mulher e aos povos indígenas e quilombolas. A obra conta com a participação de 22 entidades ligadas à defesa dos direitos humanos. É uma referência principalmente para organizações sociais em seu processo de luta e também funciona como um instrumento na educação da opinião pública sobre os temas que aborda, de acordo com a opinião de Maria Luisa Mendonça, diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. A edição atual tem como desta-
rito para investigar a ação do grupo móvel. Ou seja, os papéis se inverteram.
ques a luta dos povos indígenas e a luta contra a criminalização dos movimentos sociais. No entanto, “a idéia é apresentar um amplo panorama, no qual a sociedade possa entender que a luta pelos direitos básicos faz parte do cotidiano da maioria da população”, explica Maria Luisa, que reforça que o relatório não se trata da “‘defesa de bandidos’, como a mídia reacionária tenta colocar”.
Relações de poder
Um trecho do artigo escrito pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) mostra um pouco da visão dos que lutam no meio do povo. “A partir de uma situação local, de interesses particulares de invasores de terras da União (como são as terras indígenas), parte da sociedade brasileira, neste ano de 2008, passou a olhar para os povos indígenas como inimigos, e para os aliados dos indígenas como criminosos de interesses inconfessáveis”. Considerada por Maria Luisa um instrumento de cobrança do Estado, a obra aborda os direitos humanos de forma ampla. Isso porque analisa a política econômica em conjunto com as relações de poder e opressão no Brasil. Um exemplo dessa relação é mostrado pelo diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária José Juliano de Carvalho Filho,
principal acusado de ser o mandante dos assassinatos, Antero Mânica, foi sancionado positivamente pelos deputados mineiros. Ricardo Rezende Figueira lembra no artigo outro fato que exemplifica a dificuldade de punir o conjunto de crimes dos ruralistas: a operação na fazenda Pagrisa, em Ulinópolis (PA), no final de junho de 2007, quando um grupo móvel procedeu uma das maiores operações de libertação de trabalhadores, num total de 1.064 pessoas. À época, o diretor da empresa, Marcos Villela Zancaner, acompanhado pela bancada parlamentar federal paraense, obteve audiência com o ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Lupi, para reclamar do rigor da fiscalização. Dias depois, cinco senadores da “bancada ruralista”, do PSDB e do DEM (ex-PFL), em nome da Comissão Externa do Senado, estiveram na fazenda da Usina Pagrisa e disseram que o tratamento recebido pelos trabalhadores lhes parecia adequado, solicitando à Polícia Federal que instaurasse um inqué-
que acompanha e analisa a política agrária do governo Lula. Em seu artigo, ele cita a ata secreta de uma reunião do Ministério Público do Rio Grande do Sul, com a aprovação de uma série de sanções contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que tinha como objetivo final sua dissolução, o fechamento de suas escolas, bem como a recomendação de investigação da atuação do Incra, da Conab e da Via Campesina no Estado.
Temas diversos
As ações e omissões na segurança pública de São Paulo é outro tema presente no relatório. Os cientistas sociais Adriana Loche e Leandro Siqueira, do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, escrevem que o número de ocorrências de mortes provocadas pelas polícias no primeiro semestre de 2007, comparado com o mesmo período de 2008, aumentou em 21,9%, subindo de 201 mortes no ano passado para 245 mortes em 2008”. No que diz respeito ao trabalho escravo, o livro mostra, que, entre janeiro e setembro de 2008, houve 179 denúncias de unidades de produção rural envolvidas em trabalho escravo, com 5.203 trabalhadores resgatados. Entre 2003 e setembro de 2008, período do governo Lula, houve 1.446 denúncias. O Estado considerado “campeão” no crime tem sido o Pará. Sobre os direitos da mulher, uma das denúncias do livro são as 250 mil internações por ano no Brasil para tratamento das complicações de aborto e seu conseqüente custo anual para o sistema público de saúde, que chega a R$ 35 milhões. No último capítulo, aparecem
Para José Juliano de Carvalho Filho, toda a força e manipulação orquestradas pelos ruralistas é, em grande parte, culpa do governo Lula, que “prosseguiu e aumentou o avanço das forças políticas mais retrógradas do país”. Segundo ele, a história se repete. “Foi assim na época das Reformas de Base em 1964 quando ocorreu o golpe militar. Repetiu-se na redemocratização com a frustração da campanha das Diretas e, agora, envolve o governo Lula, o que significa mais uma frustração nacional”, lamenta. Ao interpretar que o culpado da atual situação não é somente o atual governo, Ricardo Rezende considera também o peso da história. Para ele, os resquícios da ditadura civil-militar, em conjunto com todas as Constituições brasileiras, tramaram e estabeleceram, de fato, o atual poder dos ruralistas. “Apesar de vivermos numa abertura política, não significa que as bases de sustentação da ditadura acabaram.” A saber, dois dos partidos entre os que mais expressam os interesses da bancada ruralista, o DEM e o PP (do deputado Heinze), são remanescentes da Arena (o partido dos militares).
Quebra de decoro
Mas a história continua. O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho vai entrar com uma ação contra o deputado Luis Carlos Heinze, tentando provar a quebra de decoro. A deputada federal Vanessa Grazziotin (PCdoB/AM), que chegou a fazer uma representação na Câmara contra o deputado Jair Bolsonaro (PP/RJ) por quebra de decoro parlamentar, acredita que no caso de Heinze, cabe responsabilizálo do mesmo modo. Em agosto deste ano, Bolsonaro afirmou publicamente que torturados no período ditatorial brasileiro deveriam ter sido assassinados. Mas antes de qualquer representação, a deputada federal afirmou ao Brasil de Fato que o presidente da Câmara deveria se reportar a Heinze para que o deputado revise a sua declaração. “Às vezes, ele pode ter falado sem pensar ou foi mal compreendido”, pondera Grazziotin.
análises sobre as políticas internacionais, como, por exemplo, sobre a Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA), a retomada das atividades militares dos Estados Unidos na América Latina, uma análise sobre o último ano da “Era Bush” nesse aspecto, e a situação dos migrantes.
Avanço do capital
Na trajetória do primeiro ao atual relatório (9ª edição), a diretora da Rede Social de Direitos Humanos extrai a essência que vem regendo o conjunto de artigos ao longo dos anos: “Um avanço enorme do capital no meio rural, o que aumenta a destruição de bens naturais e a exploração da força de trabalho”. Para ela, o governo Lula abandonou a proposta de reforma agrária. “É preciso retomar a bandeira da reforma agrária como elemento central de um novo modelo de desenvolvimento”, defende. Em todos esses anos, desde 2000, Maria Luisa afirma que o que se vê é a continuidade de políticas públicas que beneficiam as classes dominantes. “O Brasil teria todas as condições de resolver problemas históricos como a fome, o analfabetismo, a falta de moradia adequada, de acesso à terra, de educação de qualidade, entre outros”, argumenta. Ela se vê indignada ao constatar que, em pleno século 21, o brasileiro ainda é obrigado a conviver com tamanha desigualdade econômica e social. O lançamento do livro acontece no dia 4 de dezembro, às 13h30, no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, dentro da programação do Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus. (ESL)
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Ralo público Há muito tempo que entidades filantrópicas de fachada e ONGs de picaretagem assaltam os cofres públicos com projetos e serviços não executados. Inúmeras entidades encobrem os esquemas de caixa dois de deputados e senadores. A atual CPI das ONGs é um engodo da direita. Cabe ao governo tomar a iniciativa de fiscalizar essas atividades mantidas com o dinheiro público, inclusive para separar o que é sério do que é pura trambicagem. Arrocho salarial Utilizado para o reajuste dos aluguéis e de outros contratos, o índice IGP-M, da Fundação Getúlio Vargas, fechou o mês de novembro com inflação acumulada de 9,95% no ano de 2008 e 11,88% nos últimos 12 meses. Para compensar esse aumento no custo de vida, os reajustes salariais dos trabalhadores devem ser de 12% no mínimo. Quem conquistou isso nos dissídios e acordos coletivos? Luta permanente A Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 60 anos no dia 10 de dezembro. Representou importante conquista, é referência para todos os povos e consiste num programa de luta para todos aqueles que acreditam na construção de uma sociedade livre, democrática, igualitária, justa e solidária. Os direitos básicos ainda precisam alcançar boa parte do povo brasileiro. Daniel Dantas – 1 O delegado federal Ricardo Saadi, que assumiu a operação Satiagraha no lugar de Protógenes Queiroz, pediu à Justiça nova prisão do banqueiro Daniel Dantas, já que o acusado – solto de prisão anterior pelo presidente do Supremo Tribunal Federal – continua praticando os crimes de gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Se o juiz decretar a prisão, o STF vai soltar? Daniel Dantas – 2 A situação de Daniel Dantas se complicou com a documentação e os depoimentos de alguns doleiros, que confirmaram o esquema do Banco Opportunity para depositar dinheiro sujo no exterior e repatriálo com a lavagem. Os nomes dos clientes começam a aparecer aos poucos, entre eles o do empresário e deputado Paulo Maluf (PP-SP). Tem muito mais para ser revelado, se o STF deixar. Fracasso digital Inaugurado há um ano, o sistema de TV digital não conquistou o público, principalmente porque exige do usuário a compra de um conversor que custa em média 400 reais. O ministro das Comunicações, Hélio Costa, que escolheu o padrão digital só para agradar a TV Globo, quer agora que o governo financie a indústria e reduza impostos para baixar o preço do conversor. É muita cara de pau! Ganância contínua Mais uma vez o discurso ambientalista do governo foi desmentido pelo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais: o desmatamento da Amazônia cresceu 3,8% no último ano, devido à ação de grandes empresas de criação de gado e cultivo de soja. Os Estados que lideraram a derrubada da floresta foram o Pará (5.180 km2) e o Mato Grosso (3.259 km2). Um descalabro total! Crime impune Está provado que a mina subterrânea do Grupo Votorantim no município de Vazante, Minas Gerais, causa danos ambientais gravíssimos, como o esgotamento das reservas de água e a contaminação dos rios da região com zinco, manganês, chumbo e ferro. Os processos movidos por agricultores estão parados no Judiciário. Existe alguma autoridade no Brasil capaz de conter a poderosa empresa? Traição comercial Apesar de a crise econômica mundial afetar a indústria, o comércio e o setor de serviços no Brasil, com redução de produção e aumento das demissões, a imprensa empresarial brasileira continua fazendo o jogo do capital internacional: critica a posição da Argentina, de proteção industrial na rodada Doha, e defende novas concessões do Mercosul para a indústria dos países ricos. É puro entreguismo!
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brasil
De volta ao Brasil, FSM vincula crise financeira à questão ambiental Kasuga Sho/CC
ENTREVISTA Representante da coordenação do FSM aponta a relação entre crise financeira e danos ambientais como principal desafio da reunião Renato Godoy de Toledo da Redação APÓS QUATRO anos, o Fórum Social Mundial voltará ao Brasil em janeiro de 2009, agora em Belém (PA). Um dos principais motivos para a escolha da cidade foi o fato de ser considerada o portal da Amazônia. Assim, quando a cidade foi eleita, decidiu-se que um dos eixos principais do evento seria a apresentação de alternativas dos movimentos sociais de todo o mundo para as agressões ao meio ambiente e a alteração climática, que colocaram uma agenda ambiental na ordem do dia em todas as regiões do planeta. No entanto, o fórum, tal como todos os outros espaços de discussão, tanto de esquerda quanto de direita, também será fortemente pautado pela crise mundial deflagrada mais nitidamente em meados deste ano. O grande desafio do encontro será relacionar os danos ao meio ambiente com o modelo de produção capitalista, posto em xeque com o agravamento da situação econômica mundial. Entre os dias 27 de janeiro e 1º de fevereiro, mais de 2 mil organizações de 60 países devem se envolver em discussões sobre esses temas e procurar saídas para a humanidade a partir de uma perspectiva mais humana, sustentável e so-
lidária. De acordo com a organização do FSM, ao todo, cerca de 100 mil pessoas devem participar das centenas de oficinas nos seis dias do evento. Para Sérgio Haddad, coordenador do FSM, a 9ª edição deve retomar a raiz do evento: firmar-se como contraponto ao Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça). Confira abaixo entrevista com Haddad. Brasil de Fato - Qual é a importância simbólica da capital paraense como sede do Fórum Social Mundial? Sérgio Haddad – Vários foram os motivos que levaram à escolha de Belém: o tema da crise ambiental, o crescimento do efeito estufa e do aquecimento global que tem levado à catástrofe ecológica global e à destruição de ecossistemas. Isto afeta de maneira particular as populações locais e os pobres de uma maneira geral, tornando-se uma crise socioambiental. Além disso, a Amazônia é o local onde podemos identificar mais fortemente os conflitos produzidos pelo modelo de ocupação, onde a fusão entre os mercados de alimento e energia se juntam em um avanço de destruição ambiental e de populações, produzindo graves conflitos sociais. A Amazônia e a América Latina também foram escolhidas pelo crescen-
Encerramento do FSM de 2007, no Quênia
te número de governos eleitos por oposição ao modelo neoliberal e que podem apontar para uma nova alternativa política para a reunião. Inicialmente, se falava num fórum com uma característica mais ambiental, pelo fato de o aquecimento global ter imposto uma agenda “verde” até para os mais conservadores. O que a organização do FSM fará para que o tema não seja atropelado pelas discussões acerca da crise financeira internacional? O grande desafio para os participantes será relacionar a crise socioambiental com a crise financeira, que é produto de um modelo de desenvolvimento que aprofunda as desigualdades sociais e o consumismo desenfreado, e que consome energia e bens naturais de forma incompatível com a sustentabilidade do planeta. No fundo, há uma
crise civilizatória com profundas conseqüências, e que aponta para um futuro sem saída para a humanidade. Como o Fórum Social Mundial pretende ligar a crise aos danos ao meio ambiente? A crise financeira e a sensibilidade atual para os temas socioambientais apontam para uma oportunidade de aglutinação das forças sociais para pensar e atuar na construção de outro modo de organização da sociedade. As forças presentes no FSM foram as primeiras a denunciar os limites das atuais políticas neoliberais e suas conseqüências nefastas para a humanidade. Foram elas também que denunciaram mais fortemente os organismos internacionais que aprofundavam e sustentavam este modelo de desenvolvimento. Mas é também no FSM que se apresentam sementes de alternativas para
uma nova sociedade. A grande questão é como aglutinar forças e construir estratégias de enfrentamento para que as alternativas possam se expressar de forma efetiva. De que forma o fórum pretende apontar alternativas à crise financeira mundial? O FSM tem sido um local de busca de alternativas, para além das denúncias. Suas múltiplas redes sociais apontam para novas formas de organização da produção, da circulação e do comércio justo, novos modelos de desenvolvimento socioambiental. De lá tem saído propostas para controle dos capitais financeiros e para as compensações ambientais, sobre alternativas de organização do trabalho que possam levar em conta a valorização do conhecimento e da mão-de-obra frente ao capital. Também sobre o controle orçamentário dos governos e sobre mecanismos de participação democrática que possam valorizar a democracia participativa, na qual a presença das maiorias possa ser motivo de respeito aos direitos humanos e justiça social. Enfim, são muitas as propostas. Qual deve ser o formato do fórum? Deve haver um documento final? O FSM, como um processo, já vem se organizando com as inscrições de atividades. Agora estamos na fase de aglutinação e facilitação destas atividades de forma a irmos construindo afinidades programáticas. Alguns eventos ocorrerão no período anterior, como o Fórum Ciência e Democracia, o Fórum Mun-
dial de Educação, Mídia Livre. Depois da marcha de abertura, com destaque para os povos indígenas e africanos, apontando para o FSM de 2010, haverá o dia pan-amazônico (28). As atividades autogestionadas ocorrerão nos dias seguintes, com facilitadores para as assembléias do sexto dia, por objetivos temáticos, nos quais se buscarão as aglutinações para declarações convergentes, estratégias de lutas e campanhas. Deverão ser produzidos vários documentos a partir dessas assembléias de convergências temáticas e alguns de natureza mais coletiva. Por fim, o fórum ainda pretende firmar-se como um contraponto a Davos ou admite a idéia de trabalhar em conjunto em alguns temas? Mais do que nunca, o FSM retoma sua natureza de contraponto a Davos. Afinal, foi para isso que ele nasceu, e hoje, frente à crise, que é muito mais ampla que a questão financeira, a história demonstra o quanto esta estratégia estava correta. O que terão a dizer aqueles que se sentam no Fórum de Davos? Como explicar o fracasso de suas recomendações frente às profundas conseqüências para a humanidade e o meio ambiente?
Quem é Sérgio Haddad é coordenador geral da Ação Educativa, membro da coordenação do Fórum Social Mundial (FSM) no Brasil e diretor presidente do Fundo Brasil de Direitos Humanos
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cultura Rafael Villas Boas A produção televisiva de ficção no Brasil, sobretudo do mercado de telenovelas da rede Globo, tem incorporado com freqüência em seus produtos a contrapropaganda de bandeiras dos movimentos sociais da esquerda brasileira, haja vista o caso da crítica à política de cotas para negros nas instituições de ensino superior em “Duas caras”, e a defesa aberta das empresas de celulose em “A Favorita”, ambas telenovelas do assim chamado “horário nobre”, espaço de maior índice de audiência, em que o preço do anúncio dos comerciais atinge a taxa mais alta. Seria errôneo chamar esse procedimento de merchandising, porque não se trata simplesmente do anúncio de um produto em meio à trama da narrativa ficcional. Sequer cabe o termo merchandising social, que propõe a publicização de práticas civilizatórias e o combate ao preconceito e à discriminação em algumas situações específicas, como aos portadores de necessidades especiais, inserindo na trama personagens que tenham algum tipo de necessidade, como a Síndrome de Down. O que está em jogo é a prática de propaganda ideológica inserida na trama das telenovelas, com o objetivo de difundir uma opinião sobre temas da agenda política que foram pautados pelo esforço progressista de segmentos populares da sociedade, à revelia dos interesses reacionários dos quais as grandes emissoras são porta-vozes.
A conta-gotas
A tática tem lá sua eficiência, pois, diferentemente do caráter formal dos telejornais, em que a forma notícia supostamente retrata questões da realidade, com a pretensa finalidade de informar a população, no caso da ficção, a propaganda ideológica é diluída na trama narrativa, pegando os telespectadores no momento em que se encontram desarmados dos filtros críticos que possam ter ao assistirem os telejornais. No limite, o hábito cultural de consumir telenovelas, com a disciplina de horas diárias dedicadas ao gesto da entrega ao entretenimento, é também o momento de introjeção inconsciente do ponto de vista da classe dominante sobre assuntos estratégicos para a manutenção de seu projeto de poder.
A seguir, cenas da ideologia global capítulo a capítulo ANÁLISE Telenovelas da rede Globo incorporam em suas tramas discursos contra temas pautados por segmentos populares da sociedade Divulgação/Rede Globo
No último capítulo de “Duas Caras”, uma família multirracial posa feliz para a fotografia que pretende retratar a efetivação do modelo ideal de integração racial no Brasil: a retomada anacrônica do mito da democracia racial. Para uma telenovela que concentrou pesada artilharia contra a legitimidade da política de cotas para negros, e na legitimação da privatização do ensino superior brasileiro, com direito até a personagem negro que escondia sua condição de riqueza para, supostamente, numa manobra populista, falar em nome dos negros pobres, a fotografia parecia expressar com certo sarcasmo o júbilo com a batalha vencida no campo da ficção. Entretanto, o poder da emissora, para além das fronteiras da ficção, não corresponde à suas expectativas. Pelo contrário, na vida real, a despeito das manipulações dos telejornais e telenovelas, assistimos dia a dia ao aumento de universidades que encampam as ações afirmativas de cotas para negros, indígenas e egressos de escolas públicas, e ao fortalecimento das instituições públicas de ensino superior – o que certamente incomoda aos empresários que lidam com a educação como uma mercadoria a ser consumida, entre outras, e representam fatia nada irrelevante dos anunciantes das emissoras.
A favor de quem?
“A Favorita” não representa novidade no procedimento de incorporação temática nas telenovelas de questões polêmicas candentes na “sociedade brasileira”. Para ficarmos com exemplos de nosso interesse, em “O Rei do Gado” (1996), a luta pela reforma agrária foi o mote do inverossímil enredo dramático que teve na trama
Um dos focos de conflito da trama é a resistência que um personagem oferece para vender suas terras à empresa, que já comprara todas as terras ao redor de sua propriedade, pois pretende estender o monocultivo de eucalipto visando o fornecimento de madeira para a produção de papel.
A Rede Globo aprendeu com um tiro no pé que dera com a novela “O Rei do Gado”. Em “A Favorita”, nenhum sujeito político coletivo, nenhum movimento social que se contrapõe com freqüência à prática predatória das empresas de celulose apareceu
A atriz Cláudia Raia interpreta Donatela em “A Favorita”
um romance entre uma semterra e um latifundiário. E em “Duas caras”, a crescente organização dos movimentos de trabalhadores sem-teto e de desempregados foi representada como uma luta manobrada por oportunistas e autoritários líderes comunitários. Em “A Favorita”, uma em-
presa de celulose é o centro aglutinador dos diversos núcleos de personagens da telenovela, distribuídos entre a família proprietária e seus agregados, e os diversos focos de núcleos dos trabalhadores, habitantes da pequena cidade que tem como seu principal motor econômico a indústria.
A disparidade do conflito real entre transnacionais de celulose e os povos indígenas, quilombolas e camponeses que antes habitavam as terras que foram transformadas em área de plantio de eucalipto e a figuração do conflito na ficção chama a atenção: o personagem antagonista é um cantor e compositor famoso em décadas passadas, de estilo hippie, que acredita que seu grande amor, a mãe de seu fi-
lho, foi abduzida por extraterrestres. É um dos personagens mais estereotipados da trama, que “vive no mundo da lua”. A resistência que ele oferece à expansão das terras da indústria parece ser mais um devaneio entre outros, um capricho de artista rico, ou extremismo ecológico. Suas ações cômicas e seus argumentos pitorescos são refutados na trama com argumentos aparentemente incontestáveis, que assinalam a excelência das práticas de desenvolvimento sustentável da empresa, até a importância social da mesma para a cidade. Esses argumentos são proferidos não apenas pelos personagens que detêm o capital da empresa, mas também por aqueles bons trabalhadores do núcleo pobre, que se orgulham por trabalhar numa empresa que está entre as maiores do mundo nesse ramo. Ao que tudo indica, a rede Globo aprendeu com um tiro no pé que dera com a novela “O Rei do Gado”. Por mais dramática e manipulada que fosse aquela trama, ela cumpriu o papel de divulgar amplamente a luta pela reforma agrária e os movimentos sociais que levantam essa bandeira, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em “A Favorita”, nenhum sujeito político coletivo, nenhum movimento social que se contrapõe com freqüência, e de diversas formas, à prática predatória das empresas de celulose apareceu. Pelo que sugere a trama, ser contra o progresso garantido pelo avanço da empresa seria, no mínimo, um ato romântico e idealista, ou “coisa de louco”. A tática de combate por meio da ficção implica a supressão do ponto de vista das classes populares, por meio de seus movimentos organizados. Como a mercadoria telenovela chega a todas as casas que têm um aparelho televisor, para a militância dos movimentos sociais, saber apontar as contradições e manipulações presentes nesse formato ficcional pode ser bastante útil nos trabalhos de articulação com a sociedade e no trabalho de base para massificação dos movimentos, pois, como a referência ao assunto é comum, é possível entrar na discussão pela desconstrução do ponto de vista dominante, ao mesmo tempo em que informamos e debatemos os passos estratégicos para a construção do projeto popular para o país. Rafael Villas Boas é militante do MST
BIOGRAFIA
Pedro Casaldáliga, ao lado dos últimos da fila Livro conta história do bispo emérito de São Félix do Araguaia, que há 40 anos trocou a Espanha pelo Brasil para viver entre os pobres e excluídos da Redação Corria a década de 1970. A inauguração de uma “fazenda”, criada em terra de índios e camponeses expulsos, em São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, exigia um evento à altura. Várias autoridades foram convidadas para prestigiar a festa: ministros, banqueiros, políticos, religiosos. Presentes, à parte, os trabalhadores que haviam “limpado” o terreno para a criação de gado dos novos donos. Entre os convidados, o bispo Pedro Casaldáliga, chamado para fazer parte, como era lógico, da trupe das autoridades. Chegada a hora do banquete, trabalhadores de um lado, em fila, com o prato na mão, para que cada um se servisse. Do outro, a gente importante sen-
do servida do banquete na sede da fazenda. Casaldáliga olha para um e outro lado, apanha seu prato e caminha até a fila de trabalhadores. “Meu lugar é aqui”, diz. Naquele instante, ficava clara a personalidade de Pedro Casaldáliga, o pastor dos pequenos. Tal fato, ocorrido num Brasil de cenário político conturbado, marcou a vida do bispo que encarnava a cristandade genuína: o olhar para os pequenos, pobres e excluídos. Os últimos da fila. Fatos como esse e muitos outros fazem parte do livro: Pedro Casaldáliga – As causas que imprimem sentido à sua vida – Retrato de uma personalidade. A biografia traz a lume a vida de um homem conhecido internacionalmente por sua defesa da verdade e que doou toda a sua vida à causa do Evangelho. Coerente com a doutrina de Jesus, uma vez colocado pela Providência à frente da Prelazia de São Félix (MT), “encarnou-se” junto a seu povo tão amado. Tornou-se um com ele, participou de suas lutas e dores, principalmente durante a ditadura militar.
O livro
Escrever a biografia de um homem dessa envergadura, que lutou contra toda a espécie de preconceito em várias
Chegada a hora do banquete, trabalhadores de um lado, em fila, com o prato na mão, para que cada um se servisse. Do outro, a gente importante sendo servida do banquete na sede da fazenda. Casaldáliga olha para um e outro lado, apanha seu prato e caminha até a fila de trabalhadores.“Meu lugar é aqui”, diz frentes, tornava-se dificílimo. Os coordenadores do livro decidiram, então, tomar cada uma dessas facetas, entregá-las à pena de vários espe-
cialistas que conviveram com Casaldáliga, a fim de que nada se perdesse dessa enorme riqueza de evangélico testemunho. Dessa forma, sua primeira parte discorre sobre as grandes causas abraçadas por Casaldáliga: a Grande Pátria, a terra, os indígenas, os negros, as mulheres, os pobres, o diálogo inter-religioso, os mártires, a Igreja e a causa de Deus. Sem peias, com liberdade, num tom profético de denúncia corajosa. Na segunda parte, outros tantos amigos revelam a personalidade não-manipulável e de extremo respeito dele com as coisas e com as pessoas. Nada o fazia temer nem parar quando a injustiça era causa de sofrimento dos pequenos, dos excluídos e dos sofredores. Esse sentimento de justiça, levado até o extremo, aliado à inteligência e coragem fora do comum (para um homem pequenino e franzino), fez-no crescer como um gigante na defesa do seu rebanho.
Resumo biográfico
Pedro Casáldaliga nasceu em Balsareny, Espanha, em 1928. Ingressou na Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria – conhecidos entre nós como claretianos – e se ordenou sacerdote em 1952. Exerceu o
ministério sacerdotal durante 16 anos na Espanha. Poeta, escreveu inúmeros poemas de significado profundo, editados em vários livros e línguas, que revelam sua sensibilidade e fina percepção da natureza humana. Enviado por seus superiores para o Brasil em 1968, após alguns meses de adaptação no Rio de Janeiro, seguiu como missionário para São Félix do Araguaia, no Estado do Mato Grosso, no centro geográfico do Brasil, onde vive até hoje. Suas atividades pastorais com o povo ribeirinho, camponeses e índios e sua capacidade de viver no meio deles chamaram a atenção do Vaticano. Paulo VI nomeou-o bispo, ampliando assim sua independência para um trabalho pastoral ainda mais eficiente. Sua sagração se deu às margens do rio Araguaia, a céu aberto, em 1971. No lugar da mitra, um chapéu de palha, do báculo, uma enxada. A miséria e as condições infra-humanas encontradas não lhe permitiam apresentar-se de outra forma numa terra paupérrima de 150 mil km2, onde havia apenas um único posto de saúde para índios, com um médico que só ia lá de vez em quando. Casaldáliga decidiu viver
como pobre no meio dos pobres e fazer-se tudo para todos por mais de meio século. Mal compreendido pelas autoridades, foi perseguido e caçado para morrer. Gestões diplomáticas foram feitas várias vezes para levá-lo de volta à Espanha. Reprodução
Serviço Livro: Pedro Casaldáliga – As causas que imprimem sentido à sua vida – Retrato de uma personalidade. Coordenadores: Benjamín Forcano, Eduardo Lallana, José M. Concepción e Maximino Cerezo B. Editora: Ave-Maria Páginas: 432 Preço: R$ 55,00
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américa latina
Dilemas de Lugo nos primeiros 100 dias PARAGUAI Fernando Lugo completou, em 25 de novembro, cem dias à frente do governo paraguaio. Combate à corrupção, a reforma agrária e o resgate da soberania nacional em Itaipu estão entre os seus principais desafios e avanços APC
Daniel Cassol de Porto Alegre (RS) QUANDO FERNANDO Lugo conseguiu pôr fim à hegemonia de seis décadas do Partido Colorado no Paraguai, já se sabia que a chave de seu governo seria o combate à corrupção, a reforma agrária e o resgate da soberania nacional em Itaipu. Passados os primeiros cem dias da posse, é justamente nestes pontos que o novo presidente alcança seus principais avanços – e enfrenta as primeiras crises. Além do desafio de administrar uma máquina pública corrompida após 60 anos de domínio de uma mesma casta política, Lugo vem enfrentando pressões por partes dos movimentos sociais, que desejam mudanças mais rápidas e profundas, e tentativas de desestabilização por parte dos que não querem mudança nenhuma. O primeiro enfrentamento ocorreu nos primeiros dias de setembro, quando Lugo foi a público denunciar uma conspiração de “intenções golpistas de setores antidemocráticos e retrógrados”. Lugo referia-se a uma reunião ocorrida na residência do general Lino Oviedo, da qual participaram o ex-presidente Nicanor Duarte Frutos, o presidente do Congresso, Enrique González Quintana, o chefe do Ministério Público, Rúben Candía Amarrilla, e o vice-presidente do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, Juan Manuel Morales. “Era uma reunião de altas cabeças, de diferentes partidos e poderes, que evidentemente estavam lá para juntar forças contra Lugo”, afirma o comunicador e pesquisador paraguaio Juan Diáz Bordenave, em entrevista ao Brasil de Fato (leia ao lado). A reação imediata de Lugo deu ao presidente não apenas respaldo político, interno e externo, como fortaleceu seu discurso por mudanças nos altos cargos da Justiça paraguaia, devido às acusações de corrupção que atingem seus membros, todos alinhados ao Partido Colorado. “Nos comprometemos durante a campanha eleitoral a realizar as ações políticas necessárias para instaurar um Poder Judiciário independente, eficiente e comprometido com a justiça social”, reiterou Lugo, em 25 de novembro, no pronunciamento sobre os 100 dias de seu governo. No ato, o presidente apontou o combate à corrupção como o principal avanço da sua administração. “Nossas primeiras ações vêm demonstrando o combate à corrupção, os primeiros passos para desarticular uma escandalosa estrutura que desvia recursos públicos”, afirmou o presidente paraguaio. Sem maioria no Congresso, o governo encontra dificuldades para que os parlamentares promovam as mudanças no Poder Judiciário. Por isso, conta com o apoio das organizações sociais, que vêm realizando manifestações em frente aos órgãos da Justiça do país, principalmente contra o chefe do Ministério Público, presente à reunião na casa de Oviedo. Acusado pela oposição de instigar as mobilizações sociais, Lugo necessita delas, mas também vê a pressão aumentar, principalmente no campo. As organizações camponesas não se demonstram contentes com o ritmo das medidas na área da reforma agrária e vêm organizando ocupações de terra, o que aumenta a revolta dos grandes produtores. No final de novembro, Lugo reuniu-se com dirigentes camponeses e com a Coordenação Executiva para a Reforma Agrária (Cepra), que aglutina vários órgãos de Estado, para anunciar, a partir de 15 de dezembro, as primeiras ações no setor. Mas elas se limitam, por
O presidente paraguaio Fernando Lugo em evento oficial: pressões de movimentos sociais e da velha oligarquia
enquanto, a programas de assistência a assentamentos rurais já existentes. A meta é beneficiar, na primeira etapa do plano, cerca de cinco mil famílias assentadas, com programas de saúde, habitação, educação e infra-estrutura. No tema de Itaipu, o governo paraguaio mantém as negociações com o Brasil e demonstra esperança de chegar a um acordo em pouco tempo. Em reunião realizada no final de novembro, em Montevidéu, o Parlamento do Mercosul pediu equilíbrio e transparência nas relações entre Brasil e Paraguai sobre o tema da binacional Itaipu. Logo após a reunião, o engenheiro Ricardo Canese, representante paraguaio no ParlaSul, encontrouse com o presidente Fernando Lugo e afirmou que espera um acordo com o Brasil até agosto de 2009. Porém, disse que o Paraguai não renunciará a seis pontos chave na negociação, entre eles a livre disponibilidade da energia que pertence ao país e o recebimento de um preço justo pelo excedente vendido ao Brasil. Pressionado pelos movimentos sociais e criticado pela oposição, Lugo recebeu uma avaliação regular nas pesquisas de opinião realizadas pelos principais jornais do país. Em sondagem realizada pela empresa de consultoria Ati Snead, a pedido do jornal La Nacion, 47,9% dos entrevistados qualificaram o governo Lugo como “regular”, ao lado de 37,1% que o consideraram “bom”. O mesmo levantamento indicou que as prioridades do presidente, de acordo com os entrevistados, devem ser o combate ao desemprego e à violência no país, seguido por temas como corrupção e pobreza. Já a empresa First Análisis y Estudios, em pesquisa realizada para o diário ABC Color, indicou que 60,1% da população entrevistada aprovava os primeiros cem dias de Lugo, ao passo que 31,4% reprovavam e 8,5% não sabiam responder. De acordo com os jornais paraguaios, o ex-presidente Nicanor Duarte fora mais bem avaliado que Lugo nos cem primeiros dias de governo. O presidente paraguaio se saiu melhor no recente relatório da ONG chilena Latinobarómetro. O Paraguai foi o país pesquisado, entre 18 nações latino-americanas, em que as expectativas de esperança para o próximo ano foram mais positivas: 83% dos entrevistados disseram que mantêm esperanças para 2009.
ENTREVISTA
“O governo necessita do apoio do povo” BALANÇO Juan Díaz Bordenave, assessor do ministério da Comunicação do Paraguai, avalia que, nestes cem primeiros dias de governo, o país avançou de Porto Alegre (RS) Aos 82 anos, o comunicador e pesquisador paraguaio Juan Díaz Bordenave aceitou o desafio de integrar o governo Lugo como assessor do ministério da Comunicação. Autor de dezenas de livros, como Comunicação e Planejamento (com Horácio Martins de Carvalho), Comunicação Rural: discurso e prática e O que é Comunicação, Bordenave esteve em Pelotas (RS), em novembro, participando de um congresso de pesquisadores em comunicação. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ele fala dos avanços e desafios do governo de Fernando Lugo, que acaba de completar cem dias. Brasil de Fato – O governo Lugo se elegeu prometendo combater a corrupção, fazer a reforma agrária e buscar a renegociação de Itaipu. Como o senhor avalia os primeiros cem dias de governo, a partir destes três eixos? Juan Díaz Bordenave – Houve um grande passo à frente. Só para dar um exemplo: colocaram uma câmera escondida no escritório do novo diretor dos portos. Havia suspeita de um esquema de corrupção lá dentro, então combinou-se com o Ministério Público colocar uma câmera oculta. E aparecem na televisão os 12 diretores de portos indo entregar a propina para o diretor. Foi uma vergonha. Mas foi uma coisa muito boa, porque de repente desmantelou um esquema de corrupção que vem de anos. E, assim, vários órgãos de governo estão conseguindo desmontar ninhos de corrupção. Na reforma agrária, Lugo também não sabia onde estava se metendo quando prometeu. Os latifundiários paraguaios e brasiguaios são muito poderosos. É muito grande a presença de brasiguaios na fronteira. No total, existem algo como 300 mil brasileiros na fronteira, o que vem alterando a cul-
tura do país. Em toda a fronteira, não se escuta rádio paraguaia, não se vê televisão paraguaia, os meninos já não falam nem castelhano nem guarani, só português. E não é culpa das pessoas, é culpa da situação econômica efetiva.
Doze milhões de hectares foram distribuídos durante o tempo de Alfredo Stroessner a pessoas que não eram sujeitos da Reforma Agrária. Agora o governo está tratando de recuperar tudo isso E como o senhor avalia a atuação do diretor de Itaipu, Carlo Mateo (dirigente do Partido Liberal)? É um homem muito competente. Foi presidente da Câmara de Comércio, fez pós-graduação no exterior. Está moralizando a gestão de Itaipu. Está levando à Justiça o antigo diretor, que era um ladrão total. Qual é a sua participação no Ministério da Comunicação? Cada ministério organizou um relatório sobre os cem dias. No caso, o nosso, estamos juntando as coisas que já fizemos. Por exemplo: estamos criando uma nova carreira, de técnico em Comunicação para o Desenvolvimento. São dois anos e meio para formar tecnólogos em Comunicação para o Desenvolvimento. Pretendemos formar mil em três anos, e já há quatro universidades interessadas em criar este curso. Outra coisa que fizemos foi criar
uma agência de notícias do Estado. E, também, a transparência total das informações públicas. Não são grandes revoluções, mas, para o Paraguai, são. Quais são os principais avanços do governo Lugo? A luta contra a corrupção e o início da reforma agrária. Alberto Alderete [ministro do Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra] está fazendo um estudo sobre quem é dono das terras. Um cadastro. Mas isso é muito caro para fazer. Há propriedades que já foram vendidas várias vezes. Há lotes de reforma agrária que historicamente foram recebidos por militares, políticos. Doze milhões de hectares foram distribuídos durante o tempo de Alfredo Stroessner a pessoas que não eram sujeitos da Reforma Agrária. Agora o governo está tratando de recuperar tudo isso, já começou o processo. Então, estão sendo feitas coisas como essa. Nada espetacular. Que dificuldades o governo enfrenta? De todos os tipos. A imprensa já está contra Lugo. Os principais jornais já estão contra Lugo. Além disso, houve a reunião na casa do general Lino Oviedo, composta inclusive pelo chefe do Ministério Público, Rubén Candia Amarilla. Os camponeses estão fazendo fortes movimentos para que o tirem, pois é o chefe do Ministério Público e é um conspirador. Outro problema é que a Corte Suprema de Justiça no Paraguai está totalmente corrupta. O parlamento paraguaio também é muito corrupto. É uma luta diária contra esse tipo de coisa. Mas essa reunião na casa de Oviedo foi de fato uma tentativa de golpe ou Lugo acabou por capitalizar politicamente, ao fazer seu pronunciamentodenúncia? Não foi uma tentativa de golpe militar. Foi uma tentativa de articular cabeças, in-
clusive convidaram um militar. Na casa de Oviedo, estava o presidente do Congresso, o ex-presidente da República. Ou seja, era uma reunião de altas cabeças, de diferentes partidos e poderes, evidentemente estavam lá para juntar forças contra Lugo. Inclusive, Oviedo perguntou ao militar o que pensava o Exército sobre Lugo. Perguntar isso a um general é uma pergunta política que não se pode fazer a um general. Então, Lugo teve que denunciar. Como está a relação do governo Lugo com os movimentos sociais? A aliança de Lugo, além de contar com o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), inclui vários pequenos partidos, inclusive partidos de esquerda que não estão no parlamento. Lugo se deu conta de que, se não contrabalançar o poder do PLRA, este vai se apoderar de tudo. Então, criaram uma frente social e popular com o povo que não é afiliado ao Partido Liberal, quer apoiar Lugo e é contra o PLRA. Qual é a função desta frente? Defender Lugo. Fazem mobilizações nas ruas. E também mesas de trabalho. Há 17 delas, sobre transporte, educação, buscando propostas de governo. Não é um partido, é uma frente. Os camponeses pressionam por mais agilidade na Reforma Agrária. Eles querem forçar o governo. Lugo colocou como ministro da Agricultura, encarregado da reforma agrária, um sujeito fraco. Por isso, estão forçando para romper as coisas. Porque o Parlamento é fraco, o Partido Liberal diz que quer a reforma agrária, mas são todos proprietários de terra, então os camponeses querem forçar. O próprio governo simpatiza com isso. O governo aposta nas mobilizações populares? O governo necessita do apoio do povo para poder fazer as coisas. (DC)
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internacional
Países da América Central: turbulência, migração, passado e presente de lutas Eric Rojas
CRISE SOCIAL Extremamente dependentes da economia dos EUA e após anos de neoliberalismo, países da América Central já enfrentam efeitos da crise do capitalismo mundial Pedro Carrano e Venâncio de Oliveira de San Salvador (El Salvador), especial para o Brasil de Fato A AMÉRICA Central é formada por um conjunto de países que vivem uma crise econômica, social e política latente, que se expande a passos rápidos a bordo da crise estadunidense. Este ano, em Honduras, 50 mil pessoas saíram às ruas contra as altas tarifas de energia elétrica, deixando a cidade fechada para os turistas. Na Nicarágua, é recorrente acabar a água e a luz em alguma hora do dia. O continente é um mosaico de história de lutas, pobreza, festas populares, povoados e capitais precárias em fornecimento de serviços básicos. As fábricas maquiladoras, uma das imposições dos governos desde a década de 1990, são parasitárias da economia, não geram sinergias produtivas e demandam apenas a força de trabalho local, sem direitos trabalhistas. O economista Ruy Mauro Marini escrevia que elas eram um enclave de uma economia em outra. De acordo com o pesquisador holandês radicado na Costa Rica, Win Dierckxsens, o índice de desemprego atual dos Estados Unidos é de 25%, abalando setores como o da construção civil. Essa situação força
Fora dos trilhos: política neoliberal em El Salvador trouxe instabilidade no emprego, falta de infra-estrutura básica e baixa qualidade da saúde
o retorno massivo dos trabalhadores migrantes para suas terras de origem. Cerca de 200 mil centroamericanos atravessam a fronteira todos os anos. De El Salvador, menor país latino-americano, partem 600 pessoas diariamente; porém, em 2008, 70 mil já retornaram. No México, 600 mil. Assim, a falta de emprego e a demanda social aumentam. Com a queda nas remessas dos migrantes para suas famílias, a liquidez do Estado e dos bancos dos países de origem se torna crítica. Além disso, as bancarrotas das instituições financeiras internacionais podem gerar um efeito de contas negativas e de diminuição de oferta de moeda e crédito. A demanda internacional pela produção centro-americana deve cair – como a das fábricas maquiladoras – e o desemprego interno pode aumentar. E, assim, o neoliberalismo caminha no fio da navalha.
Crise política As massas populares respondem à crise com intensidades diferentes. Apenas em 2008, houve três paralisações gerais de trabalhadores hondurenhos. A redução do preço da cesta básica está na pauta. Sem base
produtiva, Honduras já se confrontou com a perda de cinco mil empregos nas fábricas maquiladoras, devido à conhecida instabilidade de trabalho nas suas plantas. A crise econômica soma-se à crise política já instalada. Há
Dependência econômica de El Salvador com Estados Unidos - Estados Unidos: salário de 64 dólares diários nas fábricas maquiladoras. - El Salvador: salário de 6 dólares diários nas fábricas maquiladoras. - El Salvador envia 50% de suas exportações aos Estados Unidos e 30% para a região centro-americana - Em El Salvador, a cesta básica vale 172,83 dólares, enquanto o salário mínimo é de 161,97 dólares - 1.600: número de mulheres demitidas nas fábricas maquiladoras da cidade de Santa Ana. - Único país da América Central com tropas no Iraque. FONTE: Red Regional de Monitoreo DR-Cafta
uma tentativa fraudulenta de impedir o vice-presidente hondurenho, Elvin Ernesto Santos, de concorrer às eleições. Assembléias de poder cidadão foram montadas para buscar “contaminar o processo eleitoral com o debate político”, como afirma Gregório Vaca Rivera, da organização Bloque Popular. Na Nicarágua, por sua vez, o Partido Liberal não reconhece a vitória dos sandinistas nas eleições municipais do dia 11 de novembro, abrindo um processo de confronto nas ruas entre a militância dos dois partidos. Os governos de Estados Unidos e União Européia começam a imprimir retaliações contra Daniel Ortega, presidente pela frente sandinista, suspendendo programas de ajuda financeira. Nessa conjuntura, Honduras, Nicarágua e, possivelmente, El Salvador aproximam-se da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) e do chavismo.
Tratado de Livre Comércio A assinatura do Tratado de Livre Comércio (DR-Cafta), em 2006, entre os EUA, a América Central e a República Dominicana, aprofundou o caráter importador dos países da região e sua dependência da economia estadunidense. Na República Dominicana, por exemplo, foram os setores de serviços – como a intermediação financeira, as comunicações e o comércio –, que registraram taxas de crescimento. Novo contraste: em países como a Guatemala, os 200 mil empregos perdidos na cadeia produtiva juntam-se à migração massiva para as capitais e outros países. El Salvador é considerado pelas organizações sociais um campo de experimentos do neoliberalismo na América Central desde os anos de 1990, modelo aplicado com a seguinte fórmula: privatizações dos bancos estatais, dolarização e abandono da produção agrícola interna. Maquiladoras se instalaram no país e as empresas mais frágeis sumiram. Hoje, o país está inundado por mercadorias, celulares e carros, contrastando com a instabilidade no emprego, a falta de infra-estrutura básica e a baixa qualidade da saúde. No país centro-americano, a dolarização da moeda, aplicada em 2001, aconteceu na mesma época de um terremoto de grandes proporções. A imagem é forte, e a devastação, parecida. A partir daí, o povo ficou refém da política monetária dos EUA. Com a possível desvalorização do dólar, o dinheiro em mãos dos salvadorenhos perde o poder de compra, podendo gerar inflação interna e prejudicar as transações comerciais externas.
Para entender Maquiladoras – empresas sediadas nos países periféricos que importam peças e componentes de suas matrizes estrangeiras para que os produtos sejam montados por trabalhadores que ganham salários muito baixos
Em El Salvador, antiga guerrilha pode chegar ao governo Frente Farabundo Martí pela Libertação Nacional possui inserção nos setores sociais, mas, segue a lógica eleitoral do PT brasileiro Bill Robinson
de San Salvador (El Salvador) Anos de guerra civil, encerrada na década de 1990 e marcada no imaginário popular. Logo veio a desertificação neoliberal e agora uma nova janela se abre para os salvadorenhos. O país prepara-se para as eleições legislativas e municipais, em janeiro, e presidenciais, em março. A polarização se dá entre dois partidos. De um lado, o oficialista Arena governa o país desde 1989 e tem o discurso abalado com a crise do neoliberalismo. A frágil burguesia local, importadora e dependente dos EUA, aposta nessa opção e no discurso de medo. Sem projeto político, vem fazendo concessões à esquerda, prometendo o passe-livre para os estudantes (uma luta histórica dos jovens salvadorenhos). A histórica Frente Farabundo Martí pela Libertação Nacional (FMLN), por sua vez, gera entusiasmo entre militantes e as massas populares. A caravana que deu início à campanha mobilizou mais de 300 mil pessoas. A Frente faz o discurso da mudança, da esperança, da necessidade de moderação para governar em meio à crise – a difícil opção de unir interesses divergentes. Maurício Funes foi o candidato escolhido para a disputa eleitoral de 2009. Apresentador televisivo crítico, ele não era militante do partido até então. Em novembro, o candidato viajou a Washington para tranqüilizar os investidores.
O que foi o FMLN? de San Salvador (El Salvador)
Convenção Nacional da FMLN em novembro, em San Salvador
O FMLN é o partido herdeiro da insurreição de 40 mil camponeses em 1932, das lutas do bispo Romero, da guerra civil dos anos de 1980 (veja quadro nesta página). Membros da Frente apontam que houve um movimento de refluxo das lutas de massas após a assinatura dos Acordos de Paz, em 1992. Gestão cidadã Hoje, existe o risco de fraude por parte da Arena, e o FMLN busca uma política que, no geral, seja contrária ao neoliberalismo. “O atual governo colocou 500 milhões de dólares para oxigenar os bancos. Queremos reformas que levem tranqüili-
dade para as pessoas. Nenhum processo pode-se manter com base na lógica eleitoral: há risco de fraude, pois as cartelas de votação não possuem o selo oficial”, afirma um membro da direção do partido. Durante a “Tribuna Participativa”, quando os deputados do FMLN passam informes para o povo que se aglutina às sextas-feiras em frente à catedral de San Salvador, militantes do partido defendem a construção de gestões cidadãs. “Mudar a maneira de fazer política para um modo mais participativo, no qual o cidadão seja o ator principal”, defende o deputado da Frente Hugo Martinez. Embora
Durante os anos 1980, o FMLN encabeçou o processo mais intenso de enfrentamento da América Latina na época, do ponto de vista militar. A Frente foi resultado da união de cinco partidos políticos, entre eles o Partido Comunista, com presença histórica em El Salvador. Sua gênese está no assassinato do bispo Oscar Romero, no momento em que os movimentos de massa eram perseguidos. As insurreições populares acumuladas desde 1960 desaguaram, então, em uma tática de acúmulo pela luta armada, por meio do FMLN. Depois de um assalto à capital do país, em 1989, houve uma constatação: nem o FMLN venceria o exército oficial, nem seria derrotada por ele (mesmo com o financiamento estadunidense). Houve o reconhecimento das autoridades de “empate técnico”. Antes, a Frente já havia sido reconhecida pelos governos de México e França como exército beligerante. Em 1992, são assinados os Acordos de Paz. (PC e VO) o movimento social no país seja frágil, o FMLN conta com uma inserção nos extratos populares, como o setor dos trabalhadores dos mercados e também dos vendedores informais, que aglutinam uma cota de cerca de 60% da força de trabalho salvadorenha. São 500 mil trabalhadores. O partido possui administrações nos 23 mercados populares da capital. Nos anos de1990, a hegemonia neoliberal e a ressaca do final da guerra transformaram a Frente numa “instituição partidária de natureza pública, financiada e com funções estabelecidas por lei”, como explica o pesquisador Dagoberto Gutiérrez. Com os
Acordos de Paz, a derrota eleitoral dos sandinistas na Nicarágua e, sobretudo, a queda do Muro de Berlim, El Salvador passou a viver uma baixa na luta de massas, mas o FMLN sobrevive com milhares de afiliados. Deixou de ser uma frente de cinco partidos para tornar-se um partido massivo, porém monolítico. Horizonte eleitoral “A luta passou a ser por cargos. O militante se converteu em um afiliado, em um conselheiro, deputado etc., os dirigentes passaram a fazer parte do Estado burguês, a Frente entrou com toda a força no processo eleitoral”, critica Fidel Nieto,
membro da organização política Tendência Revolucionária (TR). Críticos à esquerda do partido apontam que as eleições se tornam um fim em si mesmo e o partido não fomentaria a luta do movimento popular. Com a crise que já golpeia o país, a Arena está sem discurso. Porém, de acordo com a TR, o programa do FMLN mantém o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EUA, apóia o empresariado local e o investidor internacional. O processo buscaria referência no Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro: vitória e moderação do governo Lula. Nesse cenário, é consenso que a derrota da Arena e a vitória da Frente são importantes, mas a TR aponta a necessidade das massas lutarem pela construção de um poder popular, e da aposta em movimentos sociais de luta contra as mineradoras e as represas, pelos recursos naturais etc. As diferenças institucionais e políticas dos dois países são grandes: por um lado, o Brasil tem uma instituição e democracia liberal forte. Já El Salvador não possui uma estrutura produtiva e instituições consolidadas. O próximo governo estaria fragilizado com a crise que atinge o capitalismo. Um detalhe importante: o FMLN conta com uma militância capacitada, com uma expectativa de que, uma vez não cumprida, deve gerar uma insatisfação violenta. “Após as eleições, a relação partido e movimento pode mudar”, aposta Nieto. (PC e VO)
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EUA são o primeiro país em presídios MADE IN USA Com características de escravidão, mão-de-obra carcerária nos presídios privatizados é barata até para padrões chineses Reprodução
Memélia Moreira de Orlando (EUA)
Nos EUA, há 750 presos para cada cem mil pessoas. O percentual é assustador quando se sabe que na Inglaterra são 148 para cada cem mil; na França, 85; na Líbia, 217; e na China, 119 O chamado, generosamente, de “abuso” são torturas contra presos que se recusam a se submeter às regras trabalhistas dos presídios. E a tortura contra presos, assunto muito debatido na campanha presidencial, é crime previsto na 8ª emenda da Constituição dos EUA. Os leitores estão livres para comparar Chenney e Gonzalez a Joseph Mengel ou Goebbels. Não a Hitler, porque o criador do nazismo gostava de música. Chenney e Gonzalez não têm o menor interesse pelas artes e defendem abertamente a tortura, a pena de morte e qualquer outro método que atente contra a dignidade humana. Gonzalez, que sempre assessorou o presidente George W. Bush, quando procurador do Texas, fez o Estado bater recordes de condenações à morte.
8.700 presídios
Com uma população de pouco mais de 300 milhões de habitantes, os EUA mantém nos seus 8.700 presídios 2,5 milhões de presidiários dentro do seu território. Isto é, bem mais presos do que os países de grandes populações. Mas o número total de prisioneiros sob a responsabilidade do governo dos Estados Unidos é um segredo.
Presos preparam frangos na cadeia do Condado de Cowlitz, no Estado de Washington
A estatística é desconhecida não apenas por causa das prisões clandestinas dos navios, mas, principalmente porque o governo dos EUA não informa quantos prisioneiros mantém nas bases militares. Argumentam com a velha frase “questões de segurança”. Os números, portanto, cobrem apenas os presos dentro do território, incluindo Havaí e Alaska. Quantos em em Abu-Ghraib? Ou em Guantánamo? Talvez só mesmo o Departamento de Defesa saiba responder. Mas, mesmo assim, não deixa de ser impressionante o fato de que há 750 presos para cada cem mil estadunidenses. O percentual é assustador quando se sabe que na Inglaterra são 148 para cada cem mil, na França, 85; na Líbia, 217; e na China, 119.
Prisão típica
Nada que lembre os depósitos de presos dos cárceres brasileiros. Numa prisão típica, oito pessoas por cela já é considerada superlotação. As celas das prisões-modelo medem 2,5 m por 1,8 m e contam com uma cama de metal, pia e vaso sanitário. Algumas chegam ao “luxo” de ter janelas com vista para fora do presídio. Mas isso não significa que todos os presídios obedeçam os mesmos parâmetros. A mais temida e odiada prisão dos Estados Unidos é a de Sing-Sing, localizada no luxuoso condado de Westchester, a 40 km de Nova York e onde o ex-presidente Bill Clinton comprou uma casa. Lá, de acordo com relatório da organização não-governamental Human Rights Watch – que recentemente foi expulsa da Venezuela, depois de uma polêmica com o presidente Hugo Chávez – “proliferam ratos, baratas e aranhas venenosas”. No item “alimentação”, a ONG – que é vista com suspeitas não apenas por Chávez, mas também pelo Departamento de Estado dos EUA –, denuncia a “falta de higiene” das refeições oferecidas, causa principal de muitas das rebeliões que já agitaram e continuam agitando os presídios do país. Para completar o quadro de horrores apresentados pela Human Rights Watch, essa organização jogou na cara da sociedade estadunidense a notícia sobre a disseminação da tortura contra os presos, não apenas contra os chamados “terroristas” presos no Iraque, Afeganistão e em Guantánamo, mas dentro dos Estados Unidos. Sem se referir especificamente a essa denúncia, o presidente eleito Barack Obama se comprometeu a mandar investigar a veracidade da informação tão logo tome posse.
do e humilhando presos iraquianos, muitos deles, inocentes. A partir daí, a sociedade dos Estados Unidos, que parecia ter esquecido os horrores das torturas contra os guerrilheiros vietmihn durante a guerra do Vietnã, passou a questionar as práticas dos militares nas duas guerras nas quais o país está envolvido desde o início do século 21. Do Iraque, a preocupação saltou para Guantánamo, onde se encontram grande parte de muçulmanos acusados de terrorismo. As informações sobre Guantánamo são escassas, mas a intelectualidade estadunidense passou a exigir que os presos da base tivessem direito a advogados (eles não têm advogados, não recebem visitas e são julgados por leis de exceção que não vigoram dentro do território dos Estados Unidos). O assunto, então, se instalou definitivamente nos debates, culminando com as declarações de Murat Kurnaz, militante de direitos humanos, conhecido como “Talibã de Bremen”, nascido na Alemanha e de origem turca. Ele foi o primeiro preso de Guantánamo a falar ao Congresso dos Estados Unidos em vídeo-conferência, narrando os horrores da prisão mantida no território cubano. Kurnaz, quando entrevistado pelos congressistas, disse que Guantánamo é “o campo de tortura americano”. E acredita que Barack Obama vai desativar o presídio da base, “se for presionado pela sociedade”. Quando deu esta declaração, Karnaz não sabia ainda que Guantánamo já começara a ser desativada. A partir da videoconferência, que provocou polêmicas e principalmente revolta entre os estadunidenses que ainda continuam a acreditar que seu país é o maior defensor da democracia em todo o mundo, o tema dos presídios não tem saído das páginas dos jornais principalmente porque os analistas políticos não têm dúvidas de que a crise econômica será fator de crescimento da violência e, conseqüentemente, de um índice ainda maior de prisioneiros, a maioria levada para as cadeias privatizadas. E esse é um negócio que interessa aos empresários. Quem não gosta-
ria de poder demitir trabalhadores sabendo que há um exército de presidiários que podem exercer a mesma função por um custo mínimo?
Presídios S.A.
Chenney não é o único a lucrar com guerras e presídios. A empresa KFC (Kentucky Fried Chicken), que distribui frangos fritos aos soldados estadunidenses nos fronts do Afeganistão e Iraque, também investe em presídios. De acordo com relatório do World Search Group, a KFC é uma das mais bem-sucedidas empresas do ramo de presídios. Desde 1997, essa empresa viu o crescimento de suas ações superar 70 vezes seu capital inicial. E, aproveitando a onda de privatizações das cadeias, ela já vendeu seu “negócio” para a Inglaterra, Austrália e Porto Rico. Com a venda de frangos, ela abriu uma pequena empresa chamada Corrections Corporations, que se dedica exclusivamente a construir e administrar as prisões. E o negócio é tão lucrativo que essa empresa é uma das cinco mais bem cotadas na Bolsa de valores de Nova York. Criada em 1983, a Corrections Corporations vive à custa do trabalho gratuito dos presos, e, em sua propaganda, a KFC anuncia que a Corrections “pretende vender cadeias privadas como quem vende frango de aviário”. E esses mercadores de prisioneiros são organizados. Eles editam uma revista e promovem reuniões com os “especialistas do ramo”. Na convocatória para uma dessas reuniões, com uma linguagem que ultrapassa os limites do cinismo, os empresários eram chamados ao encontro porque “enquanto as condenações crescem, os lucros também. Os lucros do crime”. Mais direto, impossível. Outra que se dedica à construção de presídios privatizados é a Motor Coach Industries. No catálogo de vendas pode-se ver o modelo de um desses presídios. Mais especificamente, um “carro-prisão”, semelhante aos usados pelos pioneiros na época da colonização. A “arquitetura” do presídio lembra um canil dividido em jaulas de aço. Como se não bastasse serem
transformados em mercadorias, os presos que cumprem pena nas prisões privatizadas são tratados de forma brutal. A tal ponto que, no Estado do Texas, onde se reúne a extrema-direita mais raivosa dos EUA, a sociedade chegou a se escandalizar com as denúncias de maus tratos e abusos sexuais contra os presos em troca de favores. As denúncias levaram os texanos a exigir que as autoridades rescindissem o contrato com algumas dessas empresas. Daí o indiciamento do vice-presidente, Dick Chenney, e do ex-procuradorgeral, Alberto Gonzalez.
Chenney não é o único a lucrar com guerras e presídios. A empresa KFC (Kentucky Fried Chicken), que distribui frangos fritos aos soldados estadunidenses nos fronts do Afeganistão e Iraque, também investe em presídios Glamurização
Apesar de toda a situação, a indústria cinematográfica conseguiu glamurizar (e também demonizar) a vida atrás das grades, tornando célebres algumas dessas cadeias, principalmente aquelas que “hospedaram” presos famosos. E assim, cinéfilos sabem mais de Alcatraz do que de Carandiru. Mais de SaintQuentin do que do complexo de Bangu. Para começar, a famosa Alcatraz. Localizada na ilha do mesmo nome, ela foi celebrizada no cinema por vários filmes, o mais famoso deles, Fuga de Alcatraz, na versão original com Burt Lancaster e, na segunda versão, com Clint Eastwood. credito
QUANDO SE pensava que o sistema capitalista havia esgotado todas as suas formas de exploração, descobre-se mais uma: o uso da mão-de-obra carcerária nos presídios privatizados. Essa mão-de-obra, que tem características de escravidão, é barata até mesmo para os padrões chineses. Sem direitos trabalhistas e cuja e única forma de protesto é a rebelião, é largamente usada nos Estados Unidos, país campeão mundial de presídios no mundo, com 8.700 unidades espalhadas dentro do território, além dos 17 cárceres flutuantes, nos navios de guerra da Marinha dos EUA. E mais ainda com as inúmeras prisões em suas bases militares, sendo Guantánamo a mais notória de todas. E há presídios para todos os gostos. Públicos e privatizados, onde se registram os mais ignominiosos desrespeitos contra os direitos humanos. Digase de passagem, o Brasil vem adotando, quase em surdina, esse mesmo sistema de prisões privatizadas, num drible à Constituição e sob o rótulo de “PPP” (parcerias público-privadas). Em janeiro deste ano, o governo de Pernambuco abriu licitação para construir mais um cárcere privatizado. Desta vez, em Itaquitinga. E outros estão em pleno funcionamento nos Estados de São Paulo, Bahia, Minas e Ceará. Em 19 de novembro, quando o Brasil comemorava o Dia da Bandeira, o vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Chenney, um dos homens que mais lucra com a guerra do Iraque, e o exprocurador-geral, Alberto Gonzalez, eram notificados pelo tribunal de Willacy, condado no Estado do Texas, perto da fronteira com o México, para se defenderem da acusação de “atividades do crime organizado relacionado ao abuso de detentos em prisões privadas”.
Nas manchetes
A questão carcerária estava afastada do noticiário desde quando foram denunciadas as torturas da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, ocasião em que foram mostradas cenas de soldados do Exército torturan-
Sob olhar de guarda, presa trabalha em jardim de Kane, em Illinois
Os dois personagens conseguem fugir da cadeia, façanha considerada impossível por todos aqueles que dirigiram esse presídio. Alcatraz também foi personagem do filme A Rocha, com Sean Connery. Sua fama deve-se também a Al Capone, um dos mais famosos bandidos dos EUA nos anos de 1930. Foi lá que ele passou os últimos anos de sua vida. Ocupada por lideranças indígenas que reivindicavam sua posse, hoje o presídio é um museu e recebe 1 milhão de turistas por ano. Outra famosa é a prisão de Attica, em Nova York, que virou filme com Dustin Hoffman, sobre a famosa rebelião dos presos acontecida em setembro de 1971 e que deixou um saldo de 39 mortos entre agentes policiais e detentos. Attica é o endereço de Mark David Chapman, assassino de John Lennon – que desde agosto passado se beneficiou da lei que permite visitas conjugais. Saint-Quentin, também na Califórnia, se tornou conhecida no mundo no final dos anos de 1950, quando Caryl Chesmann, conhecido como “O Bandido da Luz Vermelha” (apelido depois dado ao assaltante brasileiro João Acácio), passou a relatar em livros os horrores da cadeia, reivindicando a comutação de sua pena. Ele fora condenado à câmara de gás com cianureto dissolvido em baldes de água quente contendo ácido, por denúncias de assalto e estupro na Califórnia. Seu livro Cela 2455: Corredor da Morte foi editado mundo afora e levou inclusive o presidente do Supremo Tribual federal do Brasil, ministro Nélson Hungria, a escrever carta ao governador da Califórnia, Edmund Brown, pedindo clemência. De nada adiantou, e Chesmann foi morto em maio de 1961. Finalmente, Sing-Sing, a mais temida e demonizada das prisões dos Estados Unidos. Para lá são levados os presos condenados à pena capital. Sing-Sing já foi personagem de vários filmes, entre eles Saco e Vanzetti, dois anarquistas italianos que em 1920 foram condenados à câmara de gás porque lutavam pelo direito dos trabalhadores. Além deles, já nos anos de 1950, perseguidos pelo macartismo, o casal Julius e Ethel Rosenberg, condenados também à câmara de gás por “traição”. Foram acusados de entregar segredos nucleares dos Estados Unidos para a então União Soviética, em plena Guerra Fria. Quase 50 anos depois, o irmão de Ethel, responsável pela denúncia, arrependeu-se e disse que a acusação era falsa. Tarde demais. O casal fora assassinado pelo Estado em 20 de junho de 1953. Mais recentemente, um ídolo popular, Cassius Clay, campeão mundial de boxe, passou por Sing-Sing. Ele fora condenado por abuso sexual e escapou de todos os horrores da prisão. Mas, também, quem ousaria enfrentá-lo numa briga?
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áfrica Fotos: Douglas Mansur/Novo Movimento
“Não se pergunta a um escravo se ele quer ser livre” ENTREVISTA A frase acima – segundo Ismael Ossemane, da União Nacional dos Camponeses e militante ativo na construção de Moçambique pós-independência – foi a resposta de Samora Machel, líder da Frente de Libertação Moçambicana (Frelimo), aos colonizadores portugueses ao sugerirem um referendo para perguntar à população moçambicana se queriam permanecer ou não colônia de Portugal Sílvia Alvarez de Maputo (Moçambique) UM DOS fundadores da União Nacional de Camponeses (Unac) e militante ativo na construção da Moçambique pós-independência, Ismael Ossemane dá uma aula sobre a história do seu país, que sediou, entre os dias 16 e 23 de outubro, em Maputo, a 5ª Conferência Internacional da Via Campesina. Ossemane conta que, quando das negociações e conversas entre a Frelimo (Frente de Libertação Moçambicana) e os colonos portugueses, estes sugeriram que fosse feito um referendo para perguntar à população moçambicana se queriam permanecer ou não uma colônia de Portugal. A proposta foi imediatamente recusada por Samora Machel, então líder da organização. “Não se pergunta a um escravo se ele quer ser livre”, foi a resposta dada por ele, que seguiu com a luta armada até que os portugueses aceitessem que Moçambique tinha o direito de ser independente sem pré-condição, o que aconteceu em 7 de setembro de 1974. A data passou a ser celebrada em Moçambique como o dia da liberdade. A Indepêndencia acontece depois, em 25 de junho de 1975. Hoje, a Frelimo é o partido que está no poder em Moçambique, mas com novas características. “Eles dizem que a Frelimo é a mesma. Mas nós temos olhos para ver e corpo para sentir o que se passa”, disse. Ossemane militou no partido como secretário provincial de políticas econômicas. Mais tarde foi transferido para o comitê central, para assumir o programa de socialização do campo. Quando percebeu que o projeto revolucionário já não existia no partido, pediu demissão e foi para o campo ajudar a construir a Unac. Atualmente, ocupa o cargo de presidente da mesa da Assembléia Geral desta entidade. Brasil de Fato – Quem foi Samora Machel e qual o legado deixado por ele? Ismael Ossemane – Eu não participei da luta armada, mas sei que Samora Machel deu um grande impulso à guerrilha. Ele era um jovem moçambicano nacionalista que aderiu ao movimento de libertação de Moçambique e fez parte do primeiro grupo que recebeu treinamento na Argélia. Por sua grande capacidade de liderança, logo se tornou um comandante muito importante para a concretização da independência do país. Penso que, naquela altura, a liderança tinha que estar com um homem muito ligado às forças populares de libertação. Seria difícil um intelectual, mesmo revolucionário, liderar a luta armada. Ele transformou a luta armada em uma luta popular. E, depois da independência, foi um bom comandante, mesmo sem ter uma grande formação acadêmica. Ele era um homem muito inteligente. Qual foi a participação e importância da Frelimo na luta pela independência? A Frelimo passou por transformações ao longo desse processo. Em um determinado momento, existiam duas posições dentro da organização: a revolucionária e uma outra que se chamou de reacionária. A certa altura começaram a acontecer as zonas libertárias,
em que a administração portuguesa não entrava. Foi preciso formar uma administração da Frelimo nesses lugares. Os cargos da Frelimo eram misturados com pessoas dessas duas correntes, até que ficou clara a posição da organização como revolucionária, principalmente quando Samora Machel tornase um de seus líderes. Alguns dos chamados reacionários formariam depois a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), que hoje tornou-se o principal partido de oposição. Como se deu o processo da independência? Em 1974, o exército colonial português recuou. Não quiseram mais a guerra. Eles dizem que foi por causa das negociações, mas, para nós, os militares perceberam que estavam derrotados no campo de batalha, que os filhos dos portugueses estavam morrendo. Então, começam as negociações. Um pouco difíceis, porque as novas autoridades portuguesas queriam um referendo para perguntar ao povo moçambicano se queriam a independência. Mas Samora Machel bateu o pé. A nossa luta continuou, e, em setembro de 1974, firmaram-se os acordos. Nesse mesmo dia, aqui em Maputo, teve um levantamento da comunidade portuguesa reacionária. Eles até tomaram uma rádio, mas durou pouco tempo. O novo governo português não deu apoio [o governo depois do Estado Novo], e as populações aqui no subúrbio começaram a se organizar. Três dias depois, os portugueses saíram em debandada. Então dá-se a independência, e seguimos uma linha socialista. Quais foram os benefícios do socialismo para a população Moçambicana? Imediatamente começaram grandes programas de massa. Na educação, por exemplo, sobretudo na questão da alfabetização, porque tínhamos mais de 90% da população sem saber ler e escrever, aconteceram grandes campanhas. Nacionalizou-se a saúde, que passou a estar a serviço do povo. Aconteceram campanhas também de vacinação para as crianças. Nacionalizaram também os prédios de rendimento. Os moçambicanos não precisavam mais pagar aluguel, e isso levou a população negra a entrar
na cidade de Maputo. Antes era uma cidade colonial, só de brancos, enquanto os negros viviam nas periferias. A nacionalização transformou Maputo em uma cidade africana. Por que a revolução fracassou? Quando Ian Smith apoderouse do governo da Rodésia [atual Zimbabwe] ilegalmente, a ONU não reconheceu o novo governo e mandou aplicar sanções. No entanto, ninguém as aplicava. Mas quando Moçambique fica independente, resolve cortar relações diplomáticas e econômicas com a Rodésia. Mas isso custou muito à Moçambique, porque tínhamos ligações econômicas com eles. A ONU também havia prometido um apoio para quem aplicasse as sanções, mas nunca os deu. Então a Rodésia, com o apoio da Renamo, da África do Sul e de dissidentes da Frelimo, resolve entrar em guerra com Moçambique. E eles tinham um aparato militar muito grande. Qual foi o principal erro cometido pelo partido depois da independência? Nós cometemos alguns erros dentro da revolução. Aconteceu aquilo que podemos chamar de esquerdismo. Primeiro, começamos a hostilizar a religião. Não só as que vieram de fora, mas também as próprias tradições da população, as crenças. A poligamia, que era tradicional, também foi condenada. Depois hostilizamos também os líderes tradicionais, aqueles que eram agentes do colonialismo, mas tinham poder e legitimidade com o povo. Utilizamos a estratégia errada, transformamos o povo em inimigo da revolução. Acabamos por empurrar o povo para ser base da burguesia. Ela então se apropriou das falhas da Frelimo. Falava em “liberdade religiosa, liberdade das tradições”, quando o objetivo deles não era essa liberdade... A situação era: estávamos numa crise econômica, a falência da União Soviética, a queda do muro de Berlim, o povo estava morrendo. Então, em 1986 aderimos à abertura do mercado, pegamos receitas do FMI e do Banco Mundial. A princípio isso era uma estratégia. Dar um passo atrás para avançar depois. No entanto, começamos a perceber que aqueles que eram militantes da revolução estavam se trans-
Ismael Ossemani, um dos fundadores da Unac
Camponesas trabalham na zona rural de Moçambique
formando em agentes do capitalismo. Muitos enriqueceram da noite para o dia. Esse foi o pior golpe que sofremos.
as pessoas, para que fique claro quando esses projetos estão nos ajudando ou nos cooptando. Então a Unac tem um grande trabalho de, nesse contexto, nessa realidade, conseguir levar um desenvolvimento sustentável. Também pressionamos as autoridades para determinado tipo de política. Por exemplo, aqui em Moçambique não temos tanto problema de semterras como no Brasil. Mas a reforma agrária não pode ser vista só como distribuição da terra. O que adianta ter terra, mas não ter crédito, e outras condições? Vão te tirar a terra depois. Dirão que os camponeses não estão aproveitando da melhor maneira a terra e a entregarão às multinacionais.
E hoje, qual é a situação política e econômica de Moçambique? Temos hoje uma economia política neoliberal que em nada favorece o povo. Recebemos muito dinheiro internacional, que supostamente é para apoiar as comunidades, assim como os programas governamentais. Mas é para apoiar numa perspectiva capitalista, principalmente no campo, como forma de ganhar a base. O sistema capitalista precisa ter alguns na base que defendam o modelo. É uma estratégia. Os portugueses fizeram isso com os líderes tradicionais, como falei antes. Estes líderes recebiam alguns benefícios e eram os primeiros a defender o regime colonial. Além disso, só dar o dinheiro não resolve. Temos que capacitar. Mas o governo não capacita, e aí diz: “nós já fizemos tudo por essas comunidades. Já demos dinheiro. Eles é que não tem capacidade, não são empreendedores”. Depois dos acordos de paz, ou mesmo durante a guerra, muitas ONGs deram apoio humanitário, como roupas, comida. O que verificamos nisso é que grande parte (não todos) dos projetos das ONGs é uma repetição da implementação das políticas a que me referia. São desenhadas de uma forma que, na minha análise, em vez de terem um impacto no desenvolvimento das comunidades, têm maior impacto na maneira das pessoas pensarem. Elas ficam cada vez mais dependentes de projetos. Acaba um projeto e já pedem outro. Sem perceber, estão tornando o país vulnerável para que as grandes empresas dos países que doam esse dinheiro possam entrar aqui em Moçambique. A população não percebe que há um preço que pagamos. O país fica nas mãos das grandes empresas estrangeiras, com a cumplicidade das elites nacionais.
Como a crise mundial e a alta do preço dos alimentos têm afetado os trabalhadores de Moçambique? O nosso campo não depende muito do mercado para ter alimentação. A população produz a sua alimentação. O problema é que ela produz com muita dificuldade. E não lhe resta dinheiro para comprar outras coisas, como caderno para os filhos, remédios etc. O camponês é pobre. Nas zonas urbanas, onde um trabalhador ganha um salário mínimo de menos de 50 dólares, a vida também é muito difícil. Muitas vezes ele se mantém porque a família que está no campo lhe manda algum alimento. Agora, com o mercado livre e o desenvolvimento da África do Sul, a produção do interior de Moçambique não chega à cidade de Maputo. Os custos do transporte aumentam muito o preço do alimento que vai vender. Os produtos da África do Sul chegam a um preço baixo, e com uma embalagem bonita. Então é difícil você aumentar a produção quando não tem mercado. Isso ajuda as empresas a encontrarem espaço para incentivar monoculturas como o algodão e o tabaco, porque essas empresas garantem essa comercialização.
Perante essa situação, como a Unac se organiza? Como combatem esse modelo? A Unac tem feito debates, reuniões, ligações com movimentos internacionais, como a Via Campesina, para tentar encontrar soluções perante a realidade da pobreza moçambicana. Estamos fazendo cursos de formação, inclusive com a ajuda de movimentos sociais brasileiros, tentando conscientizar
O senhor disse que grandes líderes tornaramse agentes do capital. A Frelimo seria também um agente do capitalismo hoje? Dizer que no partido só há agentes do capitalismo pode ser injusto. Mas quando temos dentro do partido pessoas influentes, de peso, que são grandes capitalistas, podemos ter uma idéia do que é o projeto do partido. Mas não podemos pe-
gar um partido com milhares de membros e dizer que todos são agentes. Muita gente ainda acredita em uma transformação. Por exemplo, essa escola onde estamos (Escola do partido Frelimo) foi construída logo após a independência, e era onde se dava a consciência do proletariado, do camponês. Eu mesmo fiz curso aqui. Mas se tu me perguntas o que acontece aqui hoje em dia, eu não sei. Esta sendo útil agora porque conseguimos esse espaço para fazer a Conferência, mas, tirando isso, eu não sei. Além disso, a Frelimo, que era um partido de operários e camponeses, com aliança com intelectuais, hoje se diz que é de operários, camponeses, burgueses, agentes econômicos...tudo! Não sei se historicamente somos capazes de misturar esses tipos de pessoas com interesses completamente diferentes. Existe uma esquerda intelectual hoje em Moçambique? As pessoas estão traumatizadas, desanimadas. Quando entramos com um discurso como o da Unac e o da Via Campesina, ainda te toleram, mas dizem: “bom, essa gente não deve andar muito bem da cabeça”, ou dizem que somos românticos, algo assim. O capitalismo usa um discurso de que está provado que os regimes socialistas são fracassados. A universidade também está influenciada pelo modelo capitalista. Então, o jovem que sai da universidade sai esquematizado dentro do modelo. Há alguns intelectuais que nos apóiam, mas que às vezes acham nosso discurso muito radical. Quais são as perspectivas para o futuro de Moçambique? A perspectiva é má. Mas também é verdade que, durante esses anos que entramos no capitalismo – que não são muitos –, já começam a haver algumas frustrações, como jovens desempregados, por exemplo. Começam a verificar que o capitalismo não é tudo isso que a propaganda diz. Em fevereiro deste ano, houve uma mobilização popular por conta do aumento do preço dos combustíveis, que pegou as autoridades de surpresa. Então, há uma base inconformada. A dinâmica do insucesso do capitalismo, da exploração dessas elites, pode desencadear, gradualmente, uma consciência que engrosse nossa luta. Mas temos que saber que ainda somos uma minoria.