Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 302
São Paulo, de 11 a 17 de dezembro de 2008
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Reprodução
Estado brasileiro extermina juventude negra e pobre
VIDAS SECAS
Obra-prima de Graciliano Ramos completa 70 anos
Pág. 12
Culpado. Esse foi o veredicto dado pelo Tribunal Popular ao Estado brasileiro, responsável por uma sistemática política de extermínio da juventude negra e pobre do país. O evento, realizado entre os dias 4 e 6 de dezembro na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista, julgou quatro casos considerados emblemáticos
de violações de direitos humanos: operações militares no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, em 2007; sistema carcerário e execuções de jovens negros na Bahia; execuções na periferia de São Paulo, em maio de 2006; e a criminalização dos movimentos sindicais, de luta pela terra, pelos direitos indígenas e quilombolas no Rio Grande do Sul. Págs. 2, 4 e 5 Luciney Martins
Sobrevivente Neoliberalismo relata massacre não serve mais na Bolívia ao capitalismo, O drama vivido pela líder camponesa Carmen Parada no massacre de Pando, na Bolívia, em 11 de setembro de 2008, “foi como uma chuva de balas saindo de todos os lados”. A chacina deixou cerca de 20 mortos e outros tantos desaparecidos. O principal acusado pelo massacre é Leopoldo Fernández, à época, governador de Pando. A União de Nações Sulamericanas (Unasul), divulgou relatório afirmando que o massacre é um crime de lesa humanidade. Pág. 9
diz economista A atual crise econômica impõe à esquerda esforços de interpretação; não à toa, é o tema central das análises de conjuntura. Em exposição durante a II Plenária Nacional da Consulta Popular, o economista Luiz Filgueiras debateu a natureza da crise atual, o esgotamento do neoliberalismo e até que ponto ela vem acompanhada de uma crise política que pode pôr em xeque a hegemonia estadunidense. Pág. 8
Metalúrgicos já sentem os impactos da Em Oaxaca, povo continua crise financeira Com as maiores montamobilizado
Dois anos após a “Comuna de Oaxaca”, segue vivo neste Estado do sul mexicano a mobilização popular, sindical e indígena que em 2006 formou a Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). A pauta reivindicatória, que antes tinha como ponto central a destituição do governador Ulisses Ruiz Ortiz, é mais ampla agora: liberdade aos presos políticos, punição aos responsáveis pelas 27 mortes de 2006 e revogação do Acordo pela Qualidade da Educação. Pág. 10
O presidente da Associação Brasileira da Reforma Agrária, Plinio Arruda Sampaio, que atuou como acusador na sessão final do julgamento
doras do mundo solicitando socorro ao governo dos EUA para não quebrar, a realidade das filiais não poderia ser diferente. Férias coletivas e ameaça de demissão. Diante desse quadro, metalúrgicos apontam que a manutenção do emprego deve ser a principal bandeira em 2009. Pela primeira vez em 5 anos, a indústria automobilística apresentou uma redução de vendas e produção nos últimos meses. Pág. 7
Paulo Magalhães Filho
Grilagem na Bahia No norte do Estado da Bahia, uma ação judicial está prestes a desabrigar cerca de 360 famílias de agricultores de comunidades de fundo de pasto que estão na terra há mais de 100 anos. Fundo de pasto é um modo tradicional de criar, viver e fazer, no qual a gestão da terra e de outros recursos naturais articula terrenos familiares e áreas de uso comum, onde se criam caprinos e ovinos à solta e em pastagem nativa. Pág. 6
ISSN 1978-5134
Fernando Pilatos/Folha Imagem
AFOGANDO EM NÚMEROS O governo dos EUA destinará às empresas GM, Ford e Chrysler uma ajuda de R$ R$
62,5 bilhões – quase 8 vezes o valor de
8 bilhões que o governo federal e o do Estado de São Paulo
destinaram juntos aos bancos de montadoras; a quantia supera em
2,5 milhões de vezes os R$ 25 mil arrecadados em poucas horas com a venda de camisas 9 do Corinthians quando o clube anunciou a contratação de Ronaldo Fenômeno.
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de 11 a 17 de dezembro de 2008
editorial
CENA 1: o carcereiro joga o garoto, um pré-adolescente, na solitária. Algum tempo depois, “alguém” ateará fogo ao seu corpo. Os outros garotos internados, ao verem a fumaça saindo pela janelinha da sela, começam a gritar, em desespero. O carcereiro atende, mas, por alguma razão misteriosa, “não consegue” achar a chave. O garoto morre torrado. Isso não aconteceu em alguma prisão da Alemanha nazista, nem em Israel, Iraque ou Guantánamo. Aconteceu em São Paulo, na antiga Febem, em 2003. Ninguém jamais foi punido. Cena 2: a polícia militar invade um morro do Rio de Janeiro, com o suposto objetivo de caçar narcotraficantes. Porta um mandado de busca coletivo, que lhe autoriza a entrar em qualquer barraco situado naquela área. Independente das habituais atrocidades cometidas pela polícia em “missões” desse tipo – que incluem o assassinato de perigosos bandidos de oito anos de idade e o uso do sinistro “caveirão”, um tanque blindado inspirado nos veículos utilizados pelo exército israelense para reprimir a população palestina –, o próprio mandado coletivo é uma aberração jurídica.
debate
Extermínio Ele elimina o direito constitucional à inviolabilidade do lar e coloca todos sob suspeita, simplesmente por residirem em determinada região. Os favelados são coletivamente punidos, apenas por serem favelados. Caso residissem nos Jardins de São Paulo ou na Zona Sul do Rio de Janeiro, suas chances seriam infinitamente maiores de verem os seus direitos minimamente respeitados. Histórias assim poderiam ser reproduzidas numa lista quase infinita de ignomínias e tragédias, como se comprovou ao longo de três longos, infinitos dias, entre 4 e 6 de dezembro, nas sessões do Tribunal Popular que julgou os crimes praticados pelo Estado brasileiro. Mães de vítimas inocentes colocaram para fora o seu grito de revolta, jovens relataram os crimes praticados pelos homens de farda, trabalhadores mostraram em seus próprios corpos os sinais da violência autorizada por governadores e coronéis. Ao final dos trabalhos, impôs-se uma constatação terrível, da qual
devem ser extraídas todas as conseqüências, por mais que a consciência resista a admitir o horror: está em curso no Brasil uma política deliberada de extermínio da população pobre, de trabalhadores jovens e honestos cujo imperdoável crime é portar a “cor errada” de pele, viver no “lado errado” das grandes cidades e ter uma baixa ou quase inexistente capacidade de consumo. Trata-se de uma população que, aos olhos das elites, é excessiva (existem milhões e milhões de desempregados), onerosa (pois consomem e demandam serviços públicos, se é que exista algo que realmente mereça esse nome no Brasil), ameaçadora (que outro sentimento a Casa Grande poderia nutrir em relação à Senzala?). A política de extermínio é calculada. Trata-se de uma guerra implacável, diária, permanente, sem tréguas. Os números não enganam: são 50 mil mortes por ano, mais de 100 por dia, segundos dados oficiais, como resultado de tiroteios e confrontos violentos com a polícia. A ONU considera que
crônica Marcelo Barros
Farrokh Bavar, de Teerã (Irã)
Para um novo pacto social
Israel pode vir a atacar o Irã?
O outro é a provocação em Mumbai, na Índia, com a chegada pelo mar de comandos que, ocupando os albergues e um centro hebraico, provocaram mais de 160 mortes. Mas, a quem interessa? O que se propõe? Não pode ser uma cópia do atentado à sede da Amia, o centro hebraico de Buenos Aires, para o qual o máximo juiz argentino, depois deposto, acusou o Irã? Os Estados Unidos estão na orla da decomposição e devem ganhar tempo, apelando ao governo da República Popular da China para serem ajudados com o seu grande depósito de dólares, mas também aos governos das burguesias petrolíferas árabes. Então, a pergunta que deve ser colocada não é se o Exército de Israel atacará o Irã, mas o que fará a máquina bélica nas condições atuais de desabamento e de desagregação quanto ao governo Obama, seja na Europa com Berlusconi e Sarkozy – que se afastam dos Estados Unidos para se salvar em plena onda de lutas e manifestações de todo tipo –, seja na esteira política geral, com russos e chineses em pleno movimento. A questão que se coloca não se aplica somente ao Irã, mas ao Oriente Médio, Ásia Central e entorno, África do Norte e países da Alba, mas também aos grandes países emergentes – política, econômica e militarmente – como Índia, China e o próprio Brasil, com todos os desafios de alianças econômicas, financeiras, superestruturais e militares – em nível regional e continental – que apontam para o gigante americano com pés de argila. O gigante, com Obama dentro, junto a boa parte dos aparatos que estão monitorando a política de guerra, está cada vez mais isolado. De momento, as interpretações das notícias no Haaretz parecem, antes de mais nada, querer influenciar o processo de formação do governo Obama, em que todos os atores intervêm. E desta intervenção depende, pois, o que fará o imperialismo nesses dois meses ou logo depois. De qualquer modo, o Irã está em estado de alerta e vigilância, e a detenção da rede de espionagem israelense é a demonstração mais clara disso.
AS ESTATÍSTICAS apontam Goiânia como uma das cidades com maior índice de violências e crimes de morte no Brasil. Somente neste ano, já se somam mais de 400 pessoas mortas pela violência nossa de cada dia. É bom saber que a sociedade civil começa a reagir, e entidades e parlamentares marcaram para o dia 10 de dezembro um evento especial pela superação da violência. De fato, neste dia, há 60 anos, (1948), a Assembléia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU) adotou e proclamou solenemente a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Foi um acontecimento histórico da maior importância que se inscreve na categoria dos eventos que inauguram novas fases da história. Pela primeira vez, a concepção de vida internacional ia além do estrito campo da relação entre governos. O objeto da declaração é a sociedade civil e os direitos de toda pessoa humana, enquanto tal. O contexto desta conquista foi o após guerra. A sociedade internacional estava tão chocada com as atrocidades cometidas pelo nazismo que se exigia uma nova ordem internacional, assentada em princípios como a paz, a cooperação e a auto-determinação dos povos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é como um pacto social. Ao proclamar os direitos inalienáveis e básicos de todo ser humano, quer garantir uma base de civilização a partir da qual as pessoas e povos possam conviver sem precisar ter medo uns dos outros. O texto contém 30 artigos e um preâmbulo que fundamenta a natureza do documento. Recolhe contribuições do passado, como os princípios norteadores da independência dos Estados Unidos (1776) e da Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão, aprovada no processo da Revolução Francesa. Os direitos humanos não são elementos estáticos e definitivos. A base é imutável e universal, já que diz respeito à sacralidade da vida e à dignidade irredutível de toda pessoa humana. Os direitos concretos são elementos de conquista gradual e permanente das sociedades e das pessoas. Falamos de direitos civis e políticos quando se tratam de questões que o Estado não pode fazer com nenhum(a) cidadão(ã). Não pode censurar o direito de expressão, não pode proibir que as pessoas se organizem em grupos e organizações sociais. Não pode impedir o direito dos cidadãos circularem livremente no país e no mundo. Conforme a mesma legislação, o Estado não pode prender alguém sem ordem judicial. Isso faz parte dos direitos civis de qualquer pessoa. Mesmo alguém que, por comportamentos anti-sociais, não age de acordo com esta dignidade e não respeita a dignidade dos outros, deve ser punido, mas não pode ter seus direitos de pessoa humana desrespeitados. Se policiais ou autoridades, sob o pretexto de se tratar de bandidos, desrespeitam os direitos à pessoa, cometem um crime maior contra a integridade da sociedade humana do que o delito pelo qual a pessoa culpada foi presa e punida. O simples fato da lei internacional tornar obrigatório o respeito aos direitos fundamentais de qualquer pessoa, pobre ou rica, branca ou negra, torna ilegais todas as ditaduras, revela a iniqüidade de qualquer tipo de tortura e mostra que é impossível uma verdadeira civilização sem respeito às liberdades individuais e à dignidade humana. No entanto, a defesa dos direitos civis e políticos se tornam superficial e improdutiva sem a garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais, tanto das pessoas individuais como das comunidades (direitos coletivos). Goiânia começa a se organizar contra a violência que a assola. Mas as estatísticas que apontam Goiânia como uma das capitais mais violentas do Brasil também mostram que é a capital com maior índice de desigualdade social do país. Enquanto em bairros como o Setor Bueno a média de ganho por família chega a dez salários mínimos (a média), nas periferias, a maioria das famílias não consegue nem atingir o salário mínimo, obrigatório por lei. Essa violência estrutural não justifica nem legitima as violências do cotidiano, mas, se os vereadores e as pessoas de boa vontade querem enfrentar a violência das ruas, precisam se comprometer com a luta para diminuir essa iniqüidade social. A pobreza, em si mesma, é conseqüência e expressão de uma sociedade que desrespeita vários ou todos os preceitos dos Direitos Universais proclamados pela ONU. Essa injustiça básica e estrutural não é inevitável. Basta vontade política dos governos e atuação decidida da sociedade civil para estabelecermos uma cidade mais justa. A defesa dos direitos fundamentais de todo ser vivo expressa a fé na sacralidade de toda pessoa, da humanidade inteira e até de todos os seres vivos. O ser humano pertence ao universo como elemento intrínseco e parte consciente da natureza. Por isso, os direitos humanos não podem existir desligados dos direitos da terra, da água, do ar e de todos os seres vivos.
Farrokh Bavar é articulista do Brasil de Fato em Teerã, Irã.
Marcelo Barros é monge beneditino e escritor. Tem 30 livros publicados, dos quais o romance indigenista: A Noite do Maracá (Goiás – Rede da Paz).
Gama
O FATO de o jornal israelense Haaretz publicar notícias sobre a possibilidade de Israel atacar o Irã é a demonstração de que o imperialismo está continuamente projetando planos de provocação ou de ataques como aqueles da Geórgia à Ossetia do Sul, com bombas de fragmentação, ou como este último a Mumbai, na Índia. O próprio general que preparou, a pedido da Casa Branca, um relatório sobre o conflito Israel-Palestina sustenta que o primeiro é o responsável pela eliminação de qualquer perspectiva política e de segurança do segundo, de acordo com o jornal Al Arabyah. Outras fontes de informação iranianas falam da mudança do governo de Israel como o melhor modo para deter o Irã nuclear e lotado de mísseis. Sem contar que, durante a formação do governo de Obama, podem suceder muitas coisas para imprimir uma nova direção ao imperialismo estadunidense. Isto quer dizer que, no Irã – não obstante a calma aparente –, se observa uma situação de alerta contínuo. Há poucos dias, a Marinha instalou uma base militar no Mar de Omã, no porto de Jask, e reforçou o controle sobre o Estreito de Hormuz.
Receita antiga Já faz alguns anos que o imperialismo colocou em marcha o 11 de setembro, para iniciar o novo plano de agressão no mundo, que se transformou num pântano e voltou-se contra ele na forma de um bumerangue. Kennedy, pouco depois de ser eleito, foi colocado à prova com o desembarque de tropas na baía dos Porcos, em Cuba. Agora, nos mesmos moldes, um dos altos chefes dos Estados Unidos recorda o ocorrido, e espera-se um fato semelhante àquele para modelar melhor Obama. No final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos lançaram a bomba atômica sobre o Japão para conter o avanço da União Soviética às portas de Hannover, enquanto que, na primeira metade da Segunda Guerra, planejou o ataque japonês a Pearl Harbour, para justificar a sua entrada na guerra. Mas naquela época os EUA eram fortes. Hoje, a situação é totalmente diversa, e para dizer como Charles Jenks, em seu Jumping Universe, o vôo de uma borboleta na Indonésia pode provocar uma tempestade no Brasil. A concentração de processos é de um grau tal que faz com que um ataque decisivo de Israel ao Irã represente incendiar imediatamente no mínimo o Oriente Médio todo, incluindo até mesmo Israel. Essa concentração não permite acordos isolados importantes, como aquele sobre as Colinas do Golã. Assim como nem mesmo o fim da administração assassina de Abu Abbas pode mudar a sorte da formação de dois Estados. Algo impossível enquanto o Estado sionista não aceitar um referendo sobre a sorte da Palestina com a parti-
cipação de todos os palestinos, dentro e fora dos confins atuais de Israel. Isto é, que esteja posta a possibilidade da construção de uma federação socialista, de colaboração entre todas as etnias, religiões, fés, culturas ou línguas, pelo progresso do ser humano e da sociedade, como o companheiro Posadas há anos vem propondo, ou mesmo sobre a forma de referendo proposta por Ahmadinejad. A construção de uma federação que possa resolver as escaramuças entre o Azerbaijão e a Armênia sobre o caso de Karabakh, claro, numa perspectiva socialista – embora, no caso de Karabakh esteja ali o Exército dos Estados Unidos para impedir semelhante tipo de acordo acordo e solução histórica. A tentação de ataque ao Irã é forte, e quem sabe quantas vezes estiveram a ponto de fazê-lo, mas agora é mais forte a dispersão. O ataque ao Líbano não foi uma simples prova. Fazia parte de uma guerra estratégica, mas o Estado sionista saiu ferido e a ferida continua aberta.
Eleições Em Israel, haverá eleições daqui a três meses, e os governantes – após a derrota dos planos do Grande Israel com a Guerra dos 33 dias contra o Líbano – estão completamente em crise. E se Ehud Barak decidir apertar o cerco mortal contra Gaza, é também graças à colaboração da burguesia árabe e egípcia. A população de Gaza paga com a própria vida a causa da posição de classe dos governos árabes reunidos em Annapolis. Mas este massacre pode tornar-se um bumerangue contra a prepotência assassina de Israel e daquelas burguesias. O Exército de Israel poderia também atacar o Irã? Mas onde? Há tantos sítios nucleares no Irã bem protegidos pelos mísseis russos e também iranianos. E isso somente sob o aspecto militar. Na semana passada, um espião de Israel foi enforcado após um ano de interrogatórios, e de repente o porta-voz do governo declarou a descoberta de uma rede de espionagem de Israel bem estruturada e com ampla penetração nos organismos estatais de informação e militares do Irã. Não é tão surpreendente a presença de espiões israelenses quanto à contraespionagem iraniana que bloqueia, de momento, os planos imperialistas?
um país está em guerra civil quando o número de mortos por violência atinge a cifra anual de 15 mil. Quando se considera que há uma política deliberada de extermínio, a extrema violência policial ganha novo significado. Ela não é gratuita, nem é provocada por meros impulsos de sadismo (embora, obviamente, não falte esse componente). Trata-se, muito mais, de uma prática voltada para a desmoralização do “inimigo” (no caso, os milhões de jovens e trabalhadores pobres), para o alastramento do clima do terror, para gerar a sensação de impotência diante da força bruta. “Para que, afinal, servem as leis?”, pergunta, perplexa, uma jovem quilombola de Ubatuba (SP). Sua angustiada pergunta resume, dramaticamente, o quadro criado pela tática terrorista das elites: as vítimas não têm a quem recorrer. A lei, as instituições não servem como proteção do arbítrio, da punição coletiva, do assassinato em massa. Sobram o terror e o desamparo. Mas nem nisso as elites brasileiras são originais ou criativas. Os sucessi-
vos governos da Colômbia, em particular o atual, encabeçado por Álvaro Uribe, há décadas pratica política semelhante, sob o pretexto de combater o narcotráfico. Na Colômbia foram criadas empresas de saneamento público (sic), destinadas a tirar os “desechables” (o lixo humano, os pobres, os pedintes, os camponeses e indígenas expulsos do campo pelo latifúndio e pela guerra civil) das ruas das grandes cidades. A política de extermínio tornouse, no Brasil, uma política de Estado – esta foi, provavelmente, a principal conclusão do tribunal. Não há como separar a administração pública da violência policial generalizada. A maneira encontrada pelas elites para lidar com o desemprego, a pobreza, a demanda de serviços públicos foi criminalizar os desempregados, a juventude e os trabalhadores pobres e os movimentos sociais que os representam. Exatamente por isso, a única maneira efetiva de acabar com a violência é destruir esse Estado repressor e as elites que o criaram. A guerra não cessará até que caiam todos os generais do inimigo.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil
Brasil responde em Corte Internacional por violação de direitos humanos Joka Madruga
DH País é julgado por ter permitido interceptações telefônicas ilegais em duas linhas do MST em 1999, e por não ter punido nenhum dos culpados Michelle Amaral da Redação A CORTE Interamericana de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos (OEA) realizou nos dias 03 e 04 uma audiência única, na Cidade do México, do processo de julgamento do Estado brasileiro por permitir interceptações telefônicas ilegais em duas linhas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) em 1999, no Paraná. As testemunhas foram ouvidas durante os dois dias de audiência e o veredicto sairá em aproximadamente seis meses. De acordo com as organizações sociais peticionárias no processo – MST, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Justiça Global, Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) e Terra Direitos – a denúncia foi apresentada à OEA devido à demora do governo brasileiro em conduzir o caso e punir os culpados. As interceptações telefônicas foram feitas em duas linhas utilizadas por lideranças do MST, no ano de 1999, e o caso chegou à OEA em dezembro de 2000, após os acusados terem sido absolvidos pela Justiça brasileira, em ações penal e administrativa movidas pelas vítimas. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizou uma audiência com os peticionários e os representantes do governo em novembro de 2001, e em março de 2007 emitiu recomendações ao Estado brasileiro sobre como deveria conduzir o processo. No entanto, as recomendações não foram seguidas, e o caso foi levado pela OEA à Corte, instância maior do orgão. Os peticionários da ação defendem que houve a violação de direitos à honra, à dignidade e à liberdade de associação, previstos na Convenção America-
Militantes do MST ocupam fazenda no Paraná onde havia trabalho escravo; movimento foi perseguido pelo governo Lerner
na de Direitos Humanos, assinada pelo Brasil em 1992. São apontados como culpados o major da Polícia Militar Waldir Copetti Neves, a juíza Elisabeth Karther, o coronel e então chefe da polícia Valdemar Krestschmer, o sargento Valdecir Pereira da Silva e o secretário de segurança pública do governo Jaime Lerner, Candido Manoel Martins de Oliveira. Ilegalidade O governo brasileiro justifica que as escutas foram feitas para investigar suposto desvio de dinheiro de um programa social e a morte de um integrante do movimento. No entanto, Camilo da Silva, membro da coordenação nacional do setor de Direitos Humanos do MST, afirma que os reais motivos dos grampos foram políticos. “Na verdade, o objetivo da interceptação era justamente a perseguição às lideranças do Movimento Sem Terra”, declara. O pedido de interceptação foi feito pelo major da Polícia Militar, Waldir Copetti Neves, na cidade de Querência do Norte, e concedido pela juíza da comarca de Loanda, Elisabeth Karther. Tanto o pedido como a autorização se referiam à interceptação de uma linha telefônica do movimento, porém, a escuta foi estendida para mais uma linha. De acordo com a lei, a interceptação pode ser feita por no máximo dois períodos
Os peticionários da ação defendem que houve a violação de direitos à honra, à dignidade e à liberdade de associação, previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada pelo Brasil em 1992 de 15 dias, neste caso os grampos foram feitos por 49 dias. A Secretaria de Segurança Pública do Paraná chegou a divulgar trechos das gravações – que chegaram a ser veiculadas por uma emissora de televisão em nível nacional –, e as usou para processar lideranças do MST. Segundo as organizações sociais peticionárias do caso, as gravações foram manipuladas pelo secretário de segurança pública. De acordo com a advogada da organização não-governamental Justiça Global Renata Lira, a ilegalidade da ação começa no fato de o pedido de interceptação ter sido feita pela Polícia Militar, quando esta
não tem competência de investigação; e por ter sido autorizada sem a justificativa necessária pela juíza. Sem fundamento “Para pedir uma interceptação telefônica, tem que ser uma autoridade competente para isso, que pela lei são os policiais civis ou federais, não o policial militar. Uma segunda ilegalidade foi que ela [a juíza] não fundamentou o pedido. Ela concedeu sem dizer o porquê estava concedendo uma interceptação pedida de forma ilegal. Apenas escreveu ‘defiro’ e assinou. Ela fez um despacho, quando na verdade a lei das interceptações determina que as interceptações só podem ocorrer em casos de gravidade, para investigação de homicídios e seqüestros. E que a concessão desse pedido tenha que ser muito bem fundamentada, o que também não aconteceu”, explica Lira. Em relação à absolvição dada pela justiça brasileira aos culpados pelas interceptações ilegais e o modo como o governo brasileiro conduziu o caso, não cumprindo as recomendações da OEA, Renata Lira afirma tratar-se de uma postura que visa garantir a integridade do sistema político brasileiro em detrimento da violação sofrida pelos trabalhadores. “É uma decisão corporativista. É o que a gente observa: um pedido de um policial militar com a concessão
de uma juíza e o corporativismo não permitiram que eles fossem devidamente responsabilizados pela ilegalidade da ação”, protesta. Criminalização Para a advogada da Justiça Global, a conduta da juíza foi totalmente ilegal e inconstitucional. “A gente entende que teve uma razão política muito forte e uma intenção muito grande de criminalizar os movimentos sociais”, alega. Gisele Cassano, assessora jurídica da organização não-governamental Terra de Direitos, relata que, na época das interceptações, os movimentos sociais viviam uma intensa perseguição. “O momento era de criminalização e violência aos movimentos sociais, com despejos violentos, prisões ilegais de trabalhadores e mortes de militantes”, descreve. Camilo da Silva alega que os envolvidos no caso possuem um histórico de perseguição aos trabalhadores rurais e que as interceptações se somam a um cenário de criminalização dos movimentos sociais vivido no Estado na época. “Nesse período, e principalmente a partir de 1997, o governo do Paraná, numa política orquestrada com o governo Fernando Henrique, deflagrou a guerra de perseguição aos movimentos sociais e especialmente nesse caso, ao MST”, denuncia.
Expectativas O integrante do MST ressalta a importância do julgamento do Estado brasileiro pela Corte Interamericana para que se perceba que o governo não tem cumprido o seu papel em relação à garantia dos direitos humanos no país. “Não são muitos casos dessa natureza que chegam à Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas com certeza é simbólico ter chegado desse, tratando de direitos humanos em relação aos movimentos sociais. E deve contribuir, em tese pelo menos, para que o Estado brasileiro perceba que não está fazendo sua parte, que não está cumprindo os tratados. E que, se continuar não cumprindo aquilo que se positiva na legislação, essa lei vai se tornar letra morta e de nada vai adiantar dizer que é um Estado democrático, um Estado que respeita os direitos humanos, e que não os cumpre”, explica Camilo da Silva. Renata Lira conta que o fato de o caso ter ido à Corte é muito importante, porque expõe o Estado brasileiro à comunidade internacional e exige que ele se defenda. “É nesse momento que o Estado se abre, se mostra para toda a comunidade internacional, sobretudo para um tribunal internacional de direitos humanos e tem que apresentar a sua defesa. Para além de um resultado que a gente venha a ter, positivo ou negativo, já é uma grande vitória. E ocorrendo uma sentença favorável a gente vai, enfim, pressionar o governo brasileiro para que ele cumpra com todas as determinações que a Corte Interamericana fizer”, afirma. A advogada acredita que a responsabilização do Estado brasileiro diante de uma Corte internacional poderá contribuir para que as ilegalidades nas interceptações telefônicas, atualmente investigadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Interceptações Telefônicas, acabem, e que o governo conduza a concessão de autorização para as escutas de acordo com o que estabelece a lei. “A gente espera que o governo brasileiro adote a postura de conceder interceptações quando estas sejam estritamente necessárias, respeitando a dignidade e a integridade moral das pessoas que estão sendo interceptadas”, afirma a advogada.
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Grilagem de terra ameaça fundos de pasto na Bahia Paulo Magalhães Filho
COMUNIDADES Cerca de 360 famílias de agricultores que estão na terra há mais de 100 anos podem ser expulsos
Quanto
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Existem cerca de associações de fundos de pasto na Bahia, totalizando 20 mil famílias e mais de 100 mil sertanejos. Até o momento, foram regularizadas cerca de 60 áreas terras são contínuas e formam um território compartilhado por quatro comunidades de fundo de pasto: Salina da Brinca, Jurema, Riacho Grande e Melancia.
Paulo A. Magalhães Fº e Pedro Diamantino de Salvador (Bahia) UMA AÇÃO judicial está prestes a desabrigar cerca de 360 famílias de agricultores que estão na terra há mais de 100 anos. Esta é a situação das comunidade de fundo de pasto Riacho Grande, Salina da Brinca, Jurema e Melancia, em Casa Nova, região de Sobradinho, no norte baiano. Fundo de pasto é um modo tradicional de criar, viver e fazer no qual a gestão da terra e de outros recursos naturais articula terrenos familiares e áreas de uso comum, onde se criam caprinos e ovinos à solta e em pastagem nativa. Desenvolvido ao longo de gerações entre os povos e comunidades tradicionais nas caatingas e cerrados nordestinos, constitui um patrimônio cultural do povo brasileiro. Existem cerca de 300 associações de fundos de pasto na Bahia, totalizando 20 mil famílias, e mais de 100 mil sertanejos. Até o momento, foram regularizadas cerca de 60 áreas. As comunidades de fundo de pasto integram um conjunto de forças sociais e políticas que visam instituir um novo paradigma e olhar sobre o contexto regional, substituindo a noção de “combate às secas” pela “convivência com o semi-árido”. A ação vem sendo acompanhada pela Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais do Estado da Bahia (AATR), entidade que presta assessoria jurídica popular a organizações e movimentos populares, trabalhadores rurais, indígenas e quilombolas, além de trabalhar com formação e educação jurídica popular. Uma longa história “Tudo começou na época da barragem de Sobradinho, já foram tirando a gente de lá e botando pra fora, depois veio essa empresa Camaragibe, foi uma briga danada, agora já querem mexer com a gente de novo”, relata Luciano Neto, presidente da Associação de Produtores Rurais de Areia Grande. Em 1973, se iniciou a construção da Barragem de Sobradinho, o maior lago artificial do planeta, que, segundo dados do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), expulsou mais de 70 mil camponeses de cidades como Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pi-
Camponeses protestam contra ação judicial
As comunidades de fundo de pasto integram um conjunto de forças sociais e políticas que visam instituir um novo paradigma e olhar sobre o contexto regional, substituindo a noção de “combate às secas” pela “convivência com o semi-árido” lão Arcado. As comunidades de Riacho Grande e cercanias resistiram bravamente, mantendo-se firmes nas terras remanescentes, rejeitando proposta de colonização do regime ditatorial e migrar para as agrovilas instaladas em Serra do Ramalho/BA, para onde foram outras tantas famílias que tiveram suas casas e terras inundadas. Após a migração forçada e o restabelecimento das plantações e do criatório, outra bomba: a Agroindustrial Camaragibe S.A. adquiriu em 1979 as terras ocupadas pelas comunidades, mediante “compra de títulos de posses” passados à empresa por políticos e membros das oligarquias regionais, que exerciam forte influência sobre os cartórios locais. A Camaragibe foi uma das grandes empresas envolvidas com o “escândalo da mandioca”, em que latifundiários nordestinos forjavam perdas de safras para não quitar os empréstimos e continuar a receber incentivos ligados ao Pro-álcool, durante o regime militar. A injeção de capital para produção de álcool a partir da mandioca no sertão do rio São Francisco foi um projeto desastroso para a economia popular, que aqueceu o mercado de terras e promoveu ex-
pulsão forçada de enorme contingente populacional, causando danos ambientais e superexploração do trabalho rural. As tentativas da empresa, de empurrar os moradores para fora de sua suposta propriedade com tratores e caminhões, esbarraram em uma sólida resistência, que articulou aliados e conseguiu atrair a atenção da opinião pública nacional, até a conquista de uma vitória na Justiça por parte dos moradores. A Camaragibe SA se instalou em terras vizinhas mas terminou por ir à bancarrota, deixando uma dívida de mais de R$ 40 milhões com o Banco do Brasil. Grilagem e pistolagem Em 2004, os empresários Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva, em uma negociação efetuada com o Banco do Brasil em Nova Iguaçu (RJ), compraram do banco as dívidas da Camaragibe, estimadas em R$ 40 milhões, pela bagatela de R$ 639 mil. Alberto, diretor geral do SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto da Prefeitura de Juazeiro), seria sócio da Qualitycal Indústria e Comércio Ltda. e diretor da Sane Engenharia Ltda., envolvida em escândalo no município de Uauá, e foi condenado pelo Tribunal de Contas da União e Tribunal de Contas dos Municípios (TCM) da Bahia em 2004, por acumular o salário de servidor federal e o de secretário de obras do município de Juazeiro (BA) durante dois anos. Carlos é especulador imobiliário e intermediário na compra de mamona na região de Jacobina, Mirangaba e Irecê para produção de “biodiesel”. Suspeita-se que os dois sejam meros “laranjas” da própria Camaragibe ou de outra empresa ligada à produção de agrocombustível. Com a transação, que privatizou uma dívida com o Estado, puderam negociar com a empresa a quitação de suas dívidas através de algumas supostas propriedades, entre elas as fazendas Lajes, Baixa do Umbuzeiro, Cacimba do Meio, Curralinho e Urecê, todas em Casa Nova. Essas
Dia de terror Em 6 de março, as comunidades tiveram um dia de terror. Às 5h da manhã, policiais civis e militares, acompanhados de um oficial de Justiça, cumpriram a reintegração de posse de forma violenta e arbitrária, destruindo casas, chiqueiros e currais, milhares de metros de cercados, confiscando carros e documentos, submetendo cidadãos a constrangimentos e a situações de cárcere privado. Também exigiram a retirada imediata de cerca de 3 mil caixas de colméias de abelhas instaladas no local há mais de cinco anos pelos apicultores das comunidades. Os posseiros, juntos, produzem cerca de 30 mil litros de puro mel da caatinga, em projeto de R$ 72 mil financiado pelo Banco do Nordeste. A área, rica em mata nativa, é essencial para a criação à solta de mais de 13 mil cabeças de caprinos e ovinos, pertencentes aos posseiros. Com a persistência característica do povo nordestino, as comunidades se mobilizaram para retomar suas terras e impedir a destruição de seu meio de subsistência, reocupando a área poucos dias depois. O pior, entretanto, ainda estava por vir. Jeová da Silva, presidente da Associação dos Produtores de Jurema, relata o ocorrido em 17 de março: “Estávamos todos presentes, chegaram os capangas encapuzados atirando na gente, batendo, queimando as pessoas, menino, velho, mulher... Teve criança que quebrou o braço na confusão, uma mulher chegou a abortar o filho de sete meses”. Quatro crianças ficaram reféns da milícia, usadas como escudo humano para coibir a reação dos camponeses. A polícia, longe de proteger os moradores, demonstrou intimidade e complacência com os pistoleiros. “Registramos várias queixas na delegacia, mas a polícia nunca foi lá tomar uma providência. No dia 17 de março, a gente fez contato com a polícia, eles chegaram duas horas depois e simplesmente cumprimentaram os encapuzados, depois passaram a noite lá batendo papo com eles”, denuncia Valério da Rocha, da Associação de Pedra Fria. Os camponeses continuam recebendo constantes ameaças por parte dos pistoleiros e temem pela vida.
Agrocombustíveis bebem a água do sertão Paulo Magalhães Filho
de Salvador No sertão, uma das áreas de menor IDH do mundo, as populações locais sofrem os impactos dos grandes projetos, voltados para os interesses do agro e do hidronegócio. Se a barragem de Sobradinho expulsou milhares de camponeses de suas terras, a transposição do Rio São Francisco promete ainda mais, passando por cima de comunidades ribeirinhas, quilombolas e dos índios Tumbalalá, Tuxá, Truká, Pankararu, Pipipan, Kambiwá, Anacé, Xocó e Kariri-xocó. O Canal do Sertão, mais uma Parceria Público-Privada, terá 500 quilômetros de extensão e levará água do lago de Sobradinho ao Sertão do Araripe, em Pernambuco. Todos estes projetos caminham no sentido de privatização das águas nos locais onde ela é mais necessária para a sobrevivência da população. A poucos quilômetros do rio São Francisco, a população passa fome e sede por falta de uma política integrada de infra-estrutura básica (água, energia e saneamento) e alternativas de geração de renda. Cerca de 70% dos açudes públicos do Nordeste não estão disponíveis para o povo.
Comunidades lutam contra o agro e o hidronegócio
O governo, através de programas como o BahiaBio, aliado ao grande capital, prefere criar estruturas para a produção de agrocombustíveis através de cana, mamona, dendê e pinhão-manso, e de fruticultura para o mercado externo. Com o aquecimento do mercado de terras da região, o agronegócio age no sentido de expulsar populações locais para a instalação de grandes empreendimentos, com subsídios governamentais e produção de monocultura para exportação.
As comunidades da região de Riacho Grande vivem dias de tensão, mas não pretendem arredar o pé de sua terra. “Saindo daqui, onde é que nós vamos viver? Vamos trazer nossos filhos pra ficar sem emprego nas periferias das cidades? Meu avô chegou aqui solteiro e morreu com 80 anos, meu pai nasceu e se criou aqui. Nós temos mais de 140 anos nessa área”, protesta Jeová. Desassistidos pelo Estado, que só mostra seu lado repressor, não oferecendo condições básicas de saú-
de, educação e saneamento básico, os camponeses vivem basicamente do criatório de bodes e ovelhas, do plantio de feijão e mandioca e da produção de mel “Oropa”. O sentimento geral é de revolta, quase sufocando a esperança. Zacarias da Costa, da Associação de Riacho Grande, desabafa: “Não temos perspectivas de sair daqui pra lugar nenhum. A gente não desanima porque nasceu na luta e quer morrer lutando. Se for necessário, vamos derramar o sangue aqui, porque aqui é a nossa vida”. O Estado da Bahia, por meio de sua Procuradoria Geral do Estado em Juazeiro, ingressou no dia 21 de novembro com uma Ação Discriminatória de Terras Públicas na Vara da Fazenda Pública em Casa Nova. A ação representa um obstáculo ao cumprimento de nova decisão judicial que pretendia retirar mais uma vez as comunidades de seus territórios. Há um compromisso do Estado da Bahia em, após arrecadar as áreas para o patrimônio público, cedê-las às famílias e, com isso, o patrimônio cultural, ambiental e socioeconômico que elas representam será definitivamente resguardado de outros atentados. (PAMF e PD)
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Prioridade um Políticos de todos os partidos usam a retórica de que o povo brasileiro precisa urgentemente de escolaridade, mas o investimento em educação continua aquém das necessidades. Segundo o IBGE, além dos milhões de analfabetos que nunca pisaram numa escola, existem no mínimo 30 milhões de analfabetos funcionais no Brasil, gente com menos de quatros anos de ensino fundamental. Qual o futuro desses brasileiros? Mais desemprego O Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de São Paulo registrou o aumento das demissões desde a segunda quinzena de outubro: calcula que mais de 100 mil trabalhadores – perto de 5% da categoria no município – devem perder o emprego neste final de ano. O “socorro” do governo para as empresas não resolve a questão da baixa renda e da inadimplência no setor. É a crise! Resgate necessário Na tentativa de reparar os estragos feitos pelo neoliberalismo aos direitos dos aposentados, o Senado aprovou três projetos de lei fundamentais para quem depende da aposentadoria: um que acaba com o fator previdenciário, outro que recompõe as perdas e um terceiro que assegura o reajuste dos benefícios igual ao do salário mínimo. Agora a decisão está na consciência dos deputados federais. Barbárie consentida O Tribunal Popular realizado na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, de 4 a 6 de dezembro, comprovou, com base no depoimento de testemunhas e apresentação de inúmeros casos ocorridos nos últimos anos, que o Estado Brasileiro executa uma política de extermínio de jovens pobres e negros nas favelas e periferias do Brasil. Pior, a omissão das autoridades e da mídia é escandalosa. Controle perigoso Sob o pretexto de proteger as reservas e os povos indígenas, o governo federal deve baixar decreto que dá ao Ministério da Defesa e ao Ministério da Justiça o controle das ONGs que atuam na Amazônia. Dom Tomás Balduíno, do CIMI, acha que essa fiscalização deveria ser exercida por um conselho constituído por entidades dos índios e da sociedade, com conhecimento da cultura indígena. Esquema protelador Cassados pelo Tribunal Superior Eleitoral por abuso de poder econômico nas eleições de 2006, o governador e o vice-governador da Paraíba, respectivamente do PSDB e do DEM, continuam no pleno exercício de seus cargos, embora a cassação tenha sido decisiva. A tolerância do TSE com os recursos da defesa protelam o caso indefinidamente. Mais uma pizza assada pelo Judiciário. Massacre provocado A comissão internacional que apurou o assassinato de 20 camponeses em Pando, na Bolívia, em setembro passado, chegou à conclusão de que “os agressores dos camponeses o fizeram em forma organizada e respondiam a uma cadeia de comando muito bem definida, contando inclusive com funcionários e bens do governo departamental a serviço da empreitada criminosa”. Desmente a versão de conflito generalizado. Jogo casado Para conseguir a obra de uma usina hidrelétrica no Equador, a Construtora Odebrecht levou junto o financiamento do BNDES. Como a obra foi malfeita, deu prejuízo para o Equador e a empresa se negou a pagar a multa prevista no contrato, o governo daquele país decidiu suspender o pagamento ao BNDES até que a Justiça decida a questão. Quem envolveu o dinheiro público brasileiro nessa armadilha foi a Odebrecht. Dinheiro fácil Na sentença em que condenou o banqueiro Daniel Dantas e seus cupinchas Humberto Braz e Hugo Chicaroni, o juiz Fausto Martin De Sanctis lembra que os réus estão tão preparados para ações criminosas que nenhum deles solicitou a restituição de quase R$ 1 milhão apreendido pela Polícia Federal no flagrante de tentativa de suborno. Está sobrando grana. É mole?
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Férias coletivas e demissões já assombram metalúrgicos no Brasil CRISE ECONÔMICA Motivadas pela crise das matrizes, montadoras já reduzem a produção de automóveis no país Renato Godoy de Toledo da Redação APÓS TER devastado o setor imobiliário dos EUA, quebrado dois dos maiores bancos do mundo e derrubado os índices das principais Bolsas de Valores, a crise internacional ameaça seriamente empresas transnacionais do setor automotivo com ativos que superam o Produto Interno Bruto (PIB) até de países médios. Sendo a nova bola da vez, corporações como a General Motors (GM) e a Chrysler solicitam ao governo dos EUA uma ajuda financeira de 35 bilhões de dólares. O presidente eleito Barack Obama pressionou George W. Bush para que um auxílio bilionário seja liberado ainda na atual gestão, que se encerra em 20 de janeiro de 2009. Agora, o governo, que até então era entusiasta da “mão invisível” do mercado, cogita até controlar parte das ações de GM, Chrysler e Ford, como contrapartida ao socorro de cerca de 25 bilhões de dólares que deve ser concedido nos próximos meses. As montadoras já têm os seus planos de “reestruturação”, sobretudo nas matrizes. A GM dos EUA admite que pode demitir 32 mil funcionários até 2012. No Brasil, tal como no mundo, os agentes mais atingidos pela crise devem ser os trabalhadores do setor automotivo-metalúrgico. No último semestre, a venda e a produção de automóveis apresentou uma desaceleração. É o primeiro indício de refluxo que o setor apresenta desde 2003. De lá para cá, as vendas e a produção apresentaram um crescimento considerado vigoroso (cerca de 6% ao ano), impulsionado pela expansão do crédito e pelo razoável ciclo de crescimento econômico no período. Com essa performance, o setor automotivo passou a representar 24% da economia brasileira. Nesse período, as montadoras auferiram lucros recordes,
Reprodução
sempre proporcionais às remessas de lucro enviadas pelas filiais às matrizes. Mau indício O fato de as férias coletivas das montadoras terem sido antecipadas e concedidas a um número maior de trabalhadores é o primeiro indício de que o ano de 2009 será repleto de turbulências para os metalúrgicos. Esse expediente utilizado pelas empresas visa reduzir a produção, entendendo que a crise é reflexo de uma superprodução dos últimos anos. Ou seja, turbinadas pelo crescimento mundial, a indústria automobilística produziu muito mais do que a real demanda.
O governo [dos EUA], que até então era entusiasta da “mão invisível” do mercado, cogita até controlar parte das ações de GM, Chrysler e Ford, como contrapartida ao socorro de cerca de 25 bilhões de dólares que deve ser concedido nos próximos meses Na análise de Luís Carlos Prates, o Mancha, funcionário da GM e secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos (SP), filiado à Conlutas, as empresas do setor não têm o direito de se queixar da crise, já que vêm de um período de alta lucratividade. “Nos últimos três anos, essas companhias acumularam grandes lucros, remeteram-
Linha de montagem da GM: governo dos EUA promete ajuda de 25 bilhões de dólares para o setor
nos para as matrizes e fizeram reestruturações. Ou seja, reduziram salários ou demitiram e contrataram funcionários com salários mais baixos. Agora querem descarregar o preço da crise nas costas dos trabalhadores. [Em São José dos
Campos] boa parte já está em férias coletivas há dois meses e há uma possibilidade concreta de demissões, que vai variar de acordo com a redução do mercado”, diz Mancha. A GM de São José dos Campos conta com cerca de 9 mil
Dirigente cutista vê 2009 com otimismo Reprodução
Acúmulo dos últimos anos deve reduzir impactos da crise
Socorros Mancha, tal como os membros da Conlutas, é crítico ferrenho dos empréstimos concedidos por governos às montadoras. No Brasil, o governo federal e o do Estado de São Paulo destinaram R$ 8 bilhões (R$ 4 bi de cada) para os bancos das montadoras, alegando que a quantia estimularia a oferta do crédito, mantendo o padrão de consumo dos últimos anos e a oferta de empregos na indústria. O presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT (CNM-CUT), Carlos Alberto Grana, afirma que o auxílio brasileiro é diferente do que vem sendo arquitetado nos EUA. “Não é uma injeção direto nas montadoras como nos EUA. Aqui no Brasil, a situação é muito diferente. Pelo ciclo de crescimento virtuoso nos últimos anos, diria que o país se encontra numa situação privilegiada. Aqui as montadoras não estão pedindo investimento direto do governo. O que precisamos é ampliar a linha de crédito e reconquistar a confiança do consumidor, para o mercado voltar à normalidade. E isso tem sido feito com esses R$ 8 bilhões destinados”, explica o dirigente. Para Mancha, a intervenção do governo tem um outro sentido. “Não podemos deixar que isso aconteça. Esse recurso que as montadoras receberam pode ser utilizado para arcar com as demissões e para remeter às matrizes. Defendemos que eles reduzam a jornada de trabalho para garantir a estabilidade no emprego, já que tiveram lucros exorbitantes nos últimos anos”, afirma.
Conlutas e CUT têm manutenção do emprego como prioridade da Redação
da Redação Mesmo admitindo que o final de 2008 dá indícios de um ano seguinte complicado, o dirigente metalúrgico Carlos Alberto Grana, da CNM-CUT, afirma estar otimista em relação à retomada da produção automobilística em 2009. Grana considera que os ganhos extraordinários do último período devem ser fundamentais para diminuir os impactos da crise no setor automotivo e de metalurgia em geral. “A nossa visão é otimista porque o mercado interno é bastante promissor. Acho que a partir de março ou abril, o cenário pode ser normal, até porque o crescimento nos últimos anos foi muito acima do normal”, considera. Para o metalúrgico, o ano de 2008, mesmo com a desaceleração do último trimestre, apresenta um resultado “espetacular”. “No último trimestre, o setor sofreu os impactos da crise internacional, com a diminuição da oferta de crédito e de facilidades para o consumidor”, constata. Outro fator que alimenta o otimismo do dirigente sindical é a sinalização do gover-
trabalhadores, dos quais 2 mil já estão em férias coletivas. A partir de 22 de dezembro, todos os funcionários deste pólo estarão sem trabalhar. O retorno está previsto para 25 de janeiro. Nas três principais fábricas da GM no Brasil – São
José dos Campos, São Caetano do Sul (SP) e Gravataí (RS) –, chega a quase 15 mil o número de operários em recesso compulsório. “O principal problema das férias coletivas é que elas desorganizam a vida do trabalhador. Não se pode planejar nada. Com isso, no ano que vem, a maioria não poderá tirar férias”, explica o metalúrgico.
Mercado brasileiro tende a se normalizar a partir de março
no dos EUA de que irá liberar cerca de 25 bilhões de dólares para GM, Ford e Chrysler. Para ele, esse choque financeiro nas empresas trará impactos positivos no setor correlato brasileiro. “Considero como excelente essa atitude do novo governo dos EUA. A queda da indústria automobilística não é um problema do setor privado, é um problema para a arrecadação de tributos no país. Esperamos que essa medida venha o mais rápido possível, até porque os EUA importam muitos equipamentos do Brasil e as indústrias dos EUA têm muito investimento aqui. As medidas
serão muito bem recebidas no Brasil”, crê. Situação favorável Questionado sobre a possibilidade de o governo brasileiro realizar uma operação semelhante à do estadunidense, Grana afirma que não há necessidade, já que a indústria automobilística brasileira tem um acúmulo dos últimos anos. “A situação brasileira é infinitamente diferente da dos EUA. Acredito que, com a ampliação do crédito, a situação se normaliza. Mas em 2009 o crescimento será menor do que o dos últimos 5 anos”, prevê.
O governo federal e o de São Paulo aportaram R$ 8 bilhões para os bancos das montadoras, a fim de estimular o crédito (leia matéria acima). Como contrapartida a esse auxílio, o cutista defende que o governo tenha um papel incisivo na fiscalização e cobrança das montadoras. “É importante o governo acompanhar o desdobramento dessa medida. Ele deve observar o comportamento das vendas e da produção no ano que vem. Qualquer medida que o governo adote deve ter como contrapartida a manutenção do emprego”, defende. (RGT)
Na análise de membros do movimento sindical, o país vivia um momento propício para as lutas trabalhistas até alguns meses atrás. Boa parte das categorias alcançou aumentos salariais significativos, acima da inflação. Pela primeira vez em uma década, as reivindicações deixavam de ser defensivas e apontavam para mais conquistas por parte dos trabalhadores, como o aumento salarial e a participação nos lucros e resultados das empresas. Agora, com a crise financeira internacional, o sinal parece ter se invertido mais uma vez. Dirigentes metalúrgicos ouvidos pela reportagem, de duas correntes distintas ideologicamente do sindicalismo, apontam a manutenção do emprego como a prioridade dos operários no próximo período. A Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT (CNM-CUT) prepara uma campanha nacional pela preservação dos postos de trabalho, que deve ser lançada ainda neste ano. “Nossa intenção é criar uma
agenda em defesa do emprego. Todos os analistas estão afirmando, e nós, por experiência em outras crises, também sabemos que teremos um período difícil no primeiro semestre no ano que vem. Então, vamos apresentar propostas para atravessar esse deserto”, afirma Carlos Alberto Grana, dirigente da CNM, que preferiu não adiantar o conteúdo das propostas. A CNM-CUT representa cerca de 1 milhão de trabalhadores e inclui em sua base o ABC paulista, principal pólo automotivo do país. Estabilidade A Conlutas dirige o sindicato dos metalúrgicos de São José dos Campos (SP), importante pólo paulista que conta com funcionários de GM e Embraer. Luís Carlos Prates, dirigente do sindicato, aponta que os metalúrgicos da Conlutas adotarão um lema: “Demitiu, parou!”. Eles ainda devem exigir do governo federal um compromisso pela estabilidade no emprego. “O governo deve impedir que os recursos concedidos por ele às empresas sejam utilizados para demissões”, pontua. (RGT)
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Crise: doença e remédio do capitalismo A. Altusken
CONJUNTURA Para o economista Luiz Filgueiras, a crise aponta o esgotamento do neoliberalismo e pode abalar hegemonia política estadunidense Dafne Melo de Guararema (SP) POUCOS MESES após o início da crise financeira mundial, as dúvidas ainda são muitas, mas algumas certezas já aparecem. Dentre elas, a de que nenhum país ficará “blindado”, dado o próprio estágio do atual capitalismo financeiro e globalizado. Se também havia dúvidas se a crise chegaria ao capital produtivo, os recentes cortes na produção e demissões (ver matéria na página 7) evidenciam que, ao contrário de outras crises localizadas que pipocaram nas décadas de 1980/90 – como a de Nova York (1987), Ásia (1997) e Brasil (1999) –, não será fácil conter os estragos. O fato é que, para o conjunto dos movimentos sociais e organizações de esquerda do país, a crise é o novíssimo e mais importante elemento a ser levado em conta nas análises de conjuntura. Nesse espírito, esse foi o tema do primeiro dia da II Plenária Nacional da Consulta Popular, que ocorreu entre os dias 8 e 12 de dezembro, na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, interior de São Paulo. O economista Luiz Filgueiras participou da análise, juntamente com João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Leia abaixo os principais trechos da exposição de Luiz Filgueiras, nos quais comenta a natureza da crise, a (in)viabilidade do neoliberalismo e se, junto com a crise econômica, o mundo também poderá assistir a quebra da hegemonia política estadunidense. Be-á-bá Todas as crises são, ao mesmo tempo, iguais e diferentes entre si. Iguais porque as causas mais gerais são sempre as mesmas, aquelas que Marx descreve n’O Capital. O capital é uma riqueza que só tem sentido, só sobrevive, se aumentar continuamente, e assim deve ser. Essa valorização permanente é empurrada pela concorrência intercapitalista; a valorização vem da mais-valia, mas cada capitalista faz isso empurrado pela concorrência. O capitalista é funcionário do capital, não tem escolha: ou ele valoriza capital ou deixa de ser capitalista. Esse processo leva ao desenvolvimento das forças produtivas, ao aumento da produtividade do trabalho, o que leva ao processo de concentração de capitais na mão de poucos, e há então a centralização de capitais, ou seja, grupos maiores que engolem os menores. No decorrer disso, é gerada uma massa de recursos que não consegue mais se valorizar na esfera produtiva e vai se valorizar na esfera financeira das ações, dos papéis, dos títulos. E essa massa financeira tende a se descolar da esfera produtiva (ver tabela). Essa é uma tendência do capitalismo. A raiz da crise Para se ter idéia do descolamento da esfera produtiva em relação à financeira, o valor dos ativos financeiros (papéis, títulos públicos, depósitos, aplicações) em 1980 era de 12 trilhões de dólares. O PIB mundial, ou seja, tudo que foi produzido no mundo durante o mesmo ano, foi 10,1 trilhões de dólares. Em 2008, a riqueza financeira foi de 167 trilhões de dólares e o PIB mundial, 48 trilhões de dólares. Não estão aí somados os derivativos, o
Placa em pontenos EUA avisa que há esperança para crises e que as consequências para quem pula são trágicas
que piora fantasticamente esses números. Então, as pessoas têm 167 trilhões de dólares nas mãos, mas, materialmente, essa riqueza não existe, ela é só de 48 trilhões. Esse descolamento está na raiz da crise mundial. Isso não foi apenas pela tendência geral do capitalismo, que é a de fazer isso, mas foi impulsionado por decisões políticas de desregulamentação financeira de governos e instituições multilaterais. Desemprego O processo de superacumulação do capital advém do fato de que o capitalismo tende a ultrapassar seus próprios limites e então entra em crise. Ela é a doença e o remédio ao mesmo tempo, pois explicita que o processo de acumulação não tem condição de continuar. Então, é necessário desvalorizar capital e riqueza, o que é a crise: as ações caem, os preços caem. E, ao desvalorizar capital, desvaloriza a força de trabalho, o que gera desemprego. Aí está a desgraça maior da classe trabalhadora: quando a crise chega na estrutura produtiva e esse setor começa a desempregar. Todas as crises têm mais ou menos essa lógica. Sujeito da crise A crise historicamente, no dia-a-dia, foi construída por sujeitos econômicos e políticos que tomam decisões e, portanto, produzem essa situação. Podem depois elaborar a solução também. São os fundos institucionais de investimentos. Quem são? Fundos mútuos, fundos de pensão e as grandes seguradoras. Esses atores, que têm o mesmo comportamento, arrecadam um volume gigantesco de recursos e as atitudes deles podem levar o mercado financeiro para um lado ou outro. Exemplo: o petróleo estava a 140 dólares e está a 40 dólares o barril. Por quê? Antes, os fundos estavam especulando com o petróleo, mas como a crise mostra que vai se acentuar e a demanda de petróleo vai cair, eles saem vendendo seus papéis no mercado futuro do petróleo e o preço desaba. Outro exemplo: o fundo do George Soros, um dos maiores especuladores do mundo, quebrou a Inglaterra em 1992 ao especular contra a libra-esterlina, e o governo inglês teve que desvalorizá-la. Então, imagina a força desses fundos. Desestabilizou a Inglaterra. Os governos de países desenvolvidos, os EUA em particular, são os segundos sujeitos fundamentais no processo. Em seguida, organismos multilaterais – Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio, Banco Mundial –
Descolamento da esfera produtiva e financeira 1980
1990
2000
2008
12
43
94
167
PIB mundial (PM)
10,1
21,5
31,7
48,3
AF/PM
1,2
2
3
3,5
Ativos financeiros (AF)
Fonte: McKinsey Global Institute, Janeiro de 2008.
que atuaram sistematicamente no processo de financeirização. Neoliberalismo O tempo do neoliberalismo passou, mas não porque foi derrotado. Não o derrotamos. Passou porque não serve mais ao capital. Não há saída para a crise do capitalismo dentro das políticas e doutrina neoliberais. Assim como o keynesianismo foi a saída para o pós-Segunda Guerra e depois se esgotou, o neoliberalismo – a saída desde a década de 1970 – se esgota agora também. Isso não significa que voltaremos ao keynesianismo. Não sei o que acontecerá, mas o neoliberalismo não tem resposta a dar. É importante pensar sobre isso para que a esquerda não bata em um inimigo que jaz morto. Não podemos confundir o aprofundamento da crise e a violência que pode vir em cima dos trabalhadores com uma radicalização do neoliberalismo. A crise em qualquer circunstância é destruti-
va, desemprega e leva à miséria segmentos da classe trabalhadora. Essa crise vai se abater sobre a classe do mundo todo, mas o discurso para a saída dela, pelas classes dominantes, não é pelo neoliberalismo, porque não há o que responder. Deve haver alguma concertação no sistema monetário e financeiro internacional, o que deixou de existir nos anos de 1970, quando o acordo de Bretton-Woods, de 1944, se extingue e há a desregulamentação do capital financeiro que desemboca nessa crise que vemos agora. Morte natural? Uma questão, que parece uma pergunta retórica, mas na minha opinião é importante de ser feita é se essa crise, dada sua gravidade, pode ser o fim do capitalismo. Mesmo dentro da tradição marxista, já houve discussões teóricas e políticas, no século 20, que enxergava dentro da dinâmica do próprio capitalismo sua Rogério Cassimiro/Folha Imagem
Desolado, operador da bolsa de valores cobre o rosto com as mãos
autodestruição, a chamada teoria do colapso. Essa leitura é fruto de uma leitura economicista de O Capital e do marxismo, reproduzida contemporaneamente por um autor alemão chamado Roberto Kurz, que tem um livro chamado O Colapso da Modernização. Ele enxerga lá na frente o fim do capitalismo pela falta de consumo, por superprodução, superacumulação. Essa discussão sobre crises econômicas e fim do capitalismo é muito antiga e é bom descartar logo de saída como uma postura equivocada e economicista, porque a luta política é o que define dentro de uma crise do sistema capitalista qual é a saída da crise. A de 1929-33 desembocou no fascismo e nazismo em toda Europa, a esquerda derrotada e a Segunda Guerra Mundial. Hegemonia estadunidense Outra pergunta é se está colocada em questão a hegemonia dos Estados Unidos, entendendo hegemonia não apenas como dominação, força militar, mas direção política, moral, cultural e ideológica. O que levanto é que, nos últimos anos, já há um desgaste sistemático, que se acentua nos oito anos de George W. Bush. Ele é evidente na medida em que os EUA trilham uma política unilateral que desprezou instituições internacionais – em particular a ONU. Invadiram o Iraque, não assinaram o Protocolo de Kyoto. Deixaram de ter uma política de direção mundial, não ouvindo seus aliados na Europa na hora das decisões. Só olharam o próprio umbigo; se interesses internacionais eram contrários aos estadunidenses, tomavam o caminho deles e pronto. Do ponto de vista moral, o desgaste é ainda maior, devido à grande mentira que foi a invasão do Iraque. O Bush esta semana pediu desculpas – de forma cínica – na televisão, afirmando que foi um equívoco a história das armas de destruição em massa. A base Guantánamo também contribui para esgarçar o Império do ponto de vista moral. Culturalmente, o modo de vida estadunidense não pode se generalizar mundialmente, pois é inviável e mesmo lá esse modo de vida está abalado. EUA endividado Nos últimos anos, a hegemonia econômica já apresentava estar em processo de desgaste, com a dívida pública aumentando muito. Os EUA são o país que mais deve no mundo. Quem financia os EUA é a China, a Rússia, a Coréia, o Brasil. Financia por quê? Porque o saldo das exportações dos países da periferia vão pa-
ra os EUA. Esse dinheiro entra nos países e retorna aos EUA por meio da compra de títulos da dívida estadunidense, e assim financiam a dívida pública desse país. É uma ciranda. Nossa reserva de 200 bilhões de dólares está toda lá em títulos da dívida americana. A reserva chinesa de 1 trilhão e tanto está toda lá também. Ou seja, os países da periferia financiam o deficit público e externo dos EUA. Havia também, antes da crise, a perda de valor do dólar. Com o início da crise, esse quadro se esgarça mais e coloca em perspectiva a ideologia do neoliberalismo. A dominação e violência permanecem, já que as Forças Armadas estadunidenses são imbatíveis. Barack Obama Na minha opinião, agora, eles têm almejado a reconstrução dessa hegemonia, o que vai gerar uma mudança de comportamento. Aí, a eleição do Barack Obama encaixa como uma luva. O John McCain não tinha nada a dizer sobre os problemas que o capitalismo enfrenta hoje. A vitória do Partido Democrata, nas condições em que se deu, é fundamental para a tentativa de reconstrução política dessa hegemonia, no sentido de negociar com a Europa, recompor a imagem dos EUA dentro da ONU, assinar o Protocolo de Kyoto e comandar a defesa da luta pelo meio ambiente no mundo. Já há sinais desse caminho, uma tentativa de um multilateralismo. Os interesses dos EUA já não podem mais ser sustentados da maneira como estava sendo feita nos últimos anos. Por isso, a reconstrução dessa hegemonia passa pela eleição do Obama. Ele é do establishment, que ninguém se iluda. Fez a eleição mais cara da história estadunidense, ganhou mais dinheiro das empresas transnacionais e do capital financeiro que o outro candidato e se fortaleceu na medida em que a crise se aprofundou. Ele é o cara certo na hora certa para os EUA. Se eles vão conseguir reconstruir essa hegemonia da forma como estão pensando, é uma outra história, porque não são os únicos atores, há a Europa, a América Latina, os problemas internos. A luta de classes e antiimperialista é que vai definir como isso vai acontecer. O fato é que a hegemonia estadunidense está combalida e tem necessidade de se reorganizar. Barack Obama e o Partido Democrata são os sujeitos desse processo. Brasil Na crise de 1929-1933, houve uma mudança no padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil. Éramos um país agrário exportador centrado nas oligarquias rurais, principalmente os cafeicultores de São Paulo. Como o comércio internacional se fechou, o Brasil, com seu Bonaparte, o Getúlio Vargas, fez uma passagem do modelo agrário-exportador para uma economia de substituições de importações. Não acredito que a partir de iniciativas próprias da classe dominante teremos uma mudança de modelo econômico no Brasil, como em 1930. Lá, foi por iniciativa de parcela da classe dominante nãohegemônica que apontou outro modelo. Hoje acho que isso não ocorre porque o nível de articulação entre as classes dominantes brasileiras com o capital internacional é muito grande.
Quem é Luiz Filgueiras é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É autor, junto com Reinaldo Gonçalves, do livro A Economia Política do Governo Lula. Também escreveu História do Plano Real: Fundamentos, Imapactos e Contradições.
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américa latina
Carmen, 42 anos: sobrevivente MASSACRE DE PANDO Líder camponesa relata sua experiência do dia 11 de setembro de 2008, quando testemunhou chacina de cerca de 20 manifestantes pró-Evo em departamento então controlado por oposição Fotos: Fernanda Chaves
Fernanda Chaves Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia) “FOI COMO uma chuva de balas saindo de todos os lados”. Assim, Carmen Parada, de 42 anos, define o massacre ocorrido em El Porvenir, Pando, no dia 11 de setembro de 2008. Carmen é uma das sobreviventes da chacina que deixou cerca de 20 mortos e outros tantos desaparecidos, um crime definido como de lesa-humanidade pelo relatório divulgado pela União de Nações Sulamericanas (Unasul) no dia 3. O principal acusado pelo massacre é Leopoldo Fernández, à época, governador de Pando pelo Podemos (Poder Democrático Social, maior partido de oposição ao governo Evo Morales Ayma). Carmen é dirigente da Federação Única de Trabalhadores Campesinos de Pando e vive numa comunidade chamada Lago Victoria, na fronteira com o Brasil. Desde que Leopoldo foi preso em La Paz, ela está acampada em frente ao presídio San Pedro, na zona central da capital boliviana. Com ela, estão familiares de vítimas e outros sobreviventes do massacre, que dividem três barracas do tipo iglu e uma um pouco mais comprida, construída com lona azul e madeira. Em lugar de colchões, sacos de areia e cobertores de flanela – insuficientes para enfrentar o frio de 4,5 graus que tem feito em La Paz.
Pela paz
A chacina de Pando foi dirigida contra um grupo de 1800 pessoas que participariam de uma assembléia de trabalhadores na capital Cobija, cujos pontos de pauta eram Paz, Terra e Nova Constituição. “Pedimos paz porque já não se podia viver em Pando. Havia muita hostilidade contra os camponeses. Amanheciam camponeses mortos, amanheciam camponeses feridos quase todos os dias. Também discutiríamos o que fazer para retomar a sede do Inra [Instituto Nacional de Reforma Agrária], ocupada por eles duas semanas antes. Além disso, estava em pauta o refe-
Carmen Parada pede condenação para os assassinos de Pando; cartaz ao lado também pede justiça e mostra Leopoldo Fernández atrás das grades
rendo sobre o novo texto constitucional, o qual apoiamos”, lembra Carmen. A convocação pública declarava o caráter pacífico do encontro, ao qual se uniram crianças, idosos e mulheres grávidas. No meio do caminho, o grupo passou a ser seguido por cerca de 200 pessoas armadas com revólveres, escopetas e gás lacrimogêneo. Em sua maioria, funcionários do departamento de Pando e do Comitê Cívico local. Segundo Carmen, eles gritavam palavras racistas como “camponeses fedidos, filhos da puta, filhos de cachorras”. Os trabalhadores recuaram, mas continuaram a ser seguidos por aproximadamente seis quilômetros, até que os jovens decidiram parar de fugir. “Até quando seremos humilhados? Se voltarmos, vamos morrer de qualquer jeito. Somos homens, somos bolivianos. Sabemos que vamos morrer, mas vamos enfrentar essa gente. Temos que fazer com que Pando volte a viver em paz”, recorda Carmen. O conflito deixou um morto de cada lado e atraiu as forças policiais locais, acusadas de serem compradas pelo esquema de Leopoldo Fernández.
Atrocidades
Após uma breve negociação e quando o último carro da polícia deixou o local, veio a sarai-
vada de balas, gases e pedras. Carmen correu para um barranco enquanto ouvia o sibilar dos tiros que quase a acertaram. Tropeçou quando já chegava ao rio e lá ajudou a atravessar, em cima de um pedaço de pau, as companheiras que não sabiam nadar. Quando finalmente chegou ao outro lado do rio e se escondeu num lugar seguro, pôde ver uma série de atrocidades: “crianças foram estupradas, idosos tiveram orelhas e línguas arrancadas. Mataram uma mulher e abriram sua barriga. Arrancaram a criança e gritaram: ‘filho de puta’”. Há quase três meses morando em frente ao presídio San Pedro, sentindo o frio das ruas, Carmen já recolheu milhares de assinaturas pedindo a condenação a 30 anos de prisão sem indulto de Leopoldo Fernández e os demais responsáveis pela matança de Pando. Sua disposição para a luta reflete o espírito combativo da dirigente sindical, mas reafirma também o processo de conscientização política que se desenvolve na Bolívia: “Antes nos deixávamos manipular pelos partidos como MNR [Movimiento Nacionalista Revolucionario], aceitávamos um quilo de açúcar por voto. Os camponeses já não são mais como antigamente”, conclui.
ANÁLISE
Racismo, o instrumento da oposição Direita boliviana, concentrada nas regiões orientais do país, trabalha a construção do inimigo com base na questão étnica de La Paz (Bolívia) De acordo com o Observatório do Racismo da Universidad de la Cordillera, de La Paz, o massacre ocorrido em El Porvenir, no departamento de Pando, teve forte motivação racista. As manifestações preconceituosas foram exacerbadas após a eleição de Evo Morales Ayma, quando o grupo econômico e político que sempre esteve no governo foi destituído e se refugiou na região conhecida como meia-lua (Beni, Pando, Santa Cruz e Tarija), de onde passou a articular as campanhas oposicionistas. Segundo a socióloga Carla Espósito, houve três momentos marcantes do racismo: janeiro de 2006, em Santa Cruz; maio de 2007, em Sucre – quando camponeses foram agredidos e humilhados em praça pública; e setembro de 2008, em Pando. “Aqui houve um ‘salto qualitativo’. Das outras vezes despiram pessoas no meio da rua, fizeram-nas ajoelhar e pedir perdão e as golpearam com tacos de beisebol. Agora, em Pando, partiram para a execução física. Eliminam os índios porque eles obstaculizam seu conceito de progresso”, afirma. Os pesquisadores do Observatório do Racismo chamam a atenção para o processo de construção do inimigo realizado pelas forças
Como resultado, há uma desumanização do indígena. “Se você conversa com as pessoas que praticam atos de violência, eles não mostram sentimento de culpa, se justificam. Dizem: ‘fiz isso por meus filhos; guardei as roupas com sangue para mostrar a eles que lutei por eles’”, ressalta Carla. Martin Gabriel Torrico Zas, também integrante do Observatório, cita um caso verificado várias vezes durante a pesquisa: “Conversamos com um senhor, de traços indígenas ocidentais, que nos disse com menosprezo: ‘esse colla é do MAS’. De fato era um imigrante, mas não tinha posição política”, exemplifica. “As manifestações de racismo são sistemáticas. Desde as caricaturas, os colunistas de jornais, rádios, tevês, as palavras de ordem... estão em todo lugar”, conclui o sociólogo Eduardo Paz, coordenador do Observatório do Racismo. (FC)
tura básica e se conseguiu viabilizar sua aprovação em referendo nacional.
O que farão os do “não”?
É válido fazer-lhes a pergunta desde já: senhores governadores, senadores, deputados e prefeitos que farão campanha e votarão pelo “não” à nova Constituição: se o “sim” ganhar, os senhores permanecerão em seus cargos?
Os referendos dirimidor e aprovatório da nova Constituição Política do Estado boliviano acontecerão no dia 25 de janeiro. Oportunamente, como ocorre sempre nesses casos, um instituto de pesquisa útil para essas ocasiões publica uma sondagem que, em resumo, diz que o voto estará dividido. Não o diz em tais termos, mas a conclusão é óbvia: não importa que o “sim” se imponha por votação majoritária, a questão é que a metade do país estará contra. Que oportuno é esse instituto! É que, desde os dias seguintes ao consenso conquistado no Congresso Nacional, em outubro, a oposição formada pelos governadores direitistas (Rubén Costas, Mario Cossío, Savina Cuellar e Ernesto Suárez) começou a organizar a campanha pelo “não” à nova Constituição.
Desumanização
: Igor Ojeda
Irá embora quem disser não?
Antonio Peredo Leigue
da direita, sobretudo a imprensa. “Os meios de comunicação manejam em seu léxico palavras racistas, incitam o ódio, transmitem mensagens de medo”, diz Carla. O alvo é o índio, principalmente da parte ocidental do país, com um tipo físico bem definido – o colla – e, mais ainda, pertencente ao MAS (Movimiento Al Socialismo, partido no governo).
Têm todo o direito. Têm também a possibilidade de manipular as pesquisas, como já o fizeram. Até podem tapar o sol com a peneira, se é isso que querem.
Mentiras e perigos
Claro que a realidade é distinta à peneira, à pesquisa e à campanha. É distinta à propaganda. Diferente da desinformação mediática. Mas existem coisas que podem fazer estrago. Esquerdistas do tipo “me oponho ao que seja que estejam discutindo” têm se dedicado a fazer questionamentos comparativos entre o texto aprovado em Oruro e o acordado no Congresso. Todos eles, sem exceção, concluem que o MAS claudicou em seus princípios – supondo-se que eles os tenham – e se vendeu à partidocracia para seguir governando em seu proveito. Obviamente, a direita está regojizada e aproveita muito bem esse debate. Inclusive, o está
Marcha pela aprovação da lei do referendo
patrocinando sem dissimulação de nenhum tipo. É importante advertir que alguns cidadãos honestos se deixam levar por esse questionamento e até chegam às mesmas
conclusões. Mas o tema principal não é quantos artigos foram mudados ou quantas palavras e frases foram introduzidas ou retiradas. A verdadeira questão é: manteve-se a estru-
Com todos esses apoios, e com as mentiras das quais eles mesmos se convencem, a oposição se lança a uma batalha contraditória e estranha, para dizer pouco. Apostam no “não”, sabendo que a nova Constituição será aprovada. Jogam no “placê”, como se diz nas corridas de cavalo. Ou seja, sair em segundo lugar e, a partir de tal posição, manejar o discurso que convença uns e outros de que eles têm presença e domínio sobre a metade (e, se possível, algo mais) do território nacional, uma vez que não podem pretender convencer o grosso da população. Calculam que o “sim” terá entre 55% e 65%. Conseqüentemente, o “não” terá entre 35% e 45%. Se repetem; há anos se repetem sem o menor rubor. O que é pior: terminam equivocados e, desde o fundo de seu fracasso, reagem com violência. Claro que agora já sabem que não são impunes e que devem pagar por seus delitos. A realidade, que se saberá em 25 de janeiro, é que o “sim” obterá 80% da votação. Eles não alcançarão sequer os 20% restantes se forem computados os votos brancos, nulos e desconsiderados.
Pergunta à oposição
Mas eles gostam desses jogos. Até o dia da eleição, estarão convencidos de que podem conseguir as altas cifras
que os institutos de pesquisa lhes prometem. Pois os pagam para que o fogo de suas expectativas não se apague. Após o referendo, ruminarão seu fracasso durante alguns dias e, depois, voltarão aos preparativos golpistas que lhes restam como via de escape. É válido fazer-lhes a pergunta desde já: senhores governadores, senadores, deputados e prefeitos que farão campanha e votarão pelo “não”: se o “sim” ganhar, os senhores permanecerão em seus cargos?
Incoerência
Porque terão que ser coerentes. Votar pelo “não” e, muito mais, fazer campanha nesse sentido, significa declarar que não querem a nova Constituição, que preferem seguir com a atual. Isso supõe aceitar que o governador é um representante do presidente, e não uma autoridade eleita. Que o regime autonômico não existe. Que perderam suas cadeiras parlamentares, pois não representam mais seus concidadãos. Do mesmo modo, se trabalham contra a nova Constituição e votam pelo “não”, seria uma falta de valor civil que depois se acomodem às circunstâncias e reclamem o direito a participar na discussão e aprovação das leis que regulam a Carta Magna. O triste é que assim o farão. (Prensa Latina - www.prensalatina.cu) Antonio Peredo Leigue é senador pelo MAS (Movimiento Al Socialismo).
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américa latina Bruno Terribas
Oaxaca: contra a repressão do Estado, mobilização popular MÉXICO Após dois anos do levante, a luta dos povos deste Estado mexicano continua com uma pauta mais ampla Bruno Terribas de Oaxaca (México) PASSADOS DOIS anos do que se chamou de “A Comuna de Oaxaca”, segue vivo neste Estado do sul mexicano a mobilização popular, sindical e indígena que em 2006 formou a Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). A última “megamarcha”, organizada pelo movimento em 25 de novembro, reuniu mais de 100 mil pessoas na capital para relembrar os dois anos da brutal repressão da Polícia Federal Preventiva. Converso com alguns presentes sobre minha surpresa em relação à multidão que respondeu à convocatória e logo me situam sobre a amplitude da participação que já foi vista por aqui: “Reunimos algumas vezes mais de 1 milhão; outra vez, 800 mil; noutra, 500 mil...”. Estamos tratando de um território com população de 3,5 milhões. A pauta reivindicatória, que antes tinha como ponto central a destituição do governador Ulisses Ruiz Ortiz, do Partido Revolucionário Institucional (PRI) é mais ampla agora: liberdade aos presos políticos remanescentes da APPO e de organizações indígenas, punição aos responsáveis pelas 27
mortes de 2006 e revogação do Acordo pela Qualidade da Educação (ACE). O sindicato estadual de professores do Estado (Sessão 22 do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação), como já fizeram os de Morelos, Guer-
O despertar de consciência do movimento que levantou milhares de barricadas e tomou 13 estações de rádio e um canal de televisão permanece após dois anos do que se chamou de “A Comuna de Oaxaca” rero e Michoacán, prepara para 2009 mobilizações contra o projeto educacional do governo federal, considerado um ataque privatizante ao ensino. O despertar de consciência do movimento que levantou milhares de barricadas e tomou 13 estações de rádio e um canal de
televisão permanece. “Até 14 de junho de 2006 [desalojamento policial violento de um plantão magisterial no centro da cidade], o povo tinha inconformidade, mas estava calado. Agora, temos coragem para levantar nossa voz”, explica a professora Maria del Carmen Altamirano Vásquez, que esteve na marchacaminhada até a Cidade do México e foi uma das participantes da greve de fome na capital mexicana em 2006. E, de fato, em duas semanas por aqui: megamarcha, manifestação pela não-transferência de presos políticos a penitenciárias de segurança máxima, ato em solidariedade a um processado pela morte de Brad Will, marcha contra a repressão sobre manifestantes secundaristas em Michoacan, fechamento de rua em protesto à tentativa de criminalização de espaço político-cultural na capital, realização de grupo de discussão aos domingos na praça central. Além disso, outro movimento importante foi o da criação de mais de 20 rádios comunitárias ou livres (pela internet) após 2006. “As nossas formas distintas de ver o mundo têm que ser escutadas, nossas rádios são uma forma de resgatar nossa identidade, nossas línguas, nossos costumes”, afirma
Marcha organizada pela APPO reuniu mais de 100 mil na capital de Oaxaca
Adán López Santiago, coordenador da Rádio Zaachila. “Não somos contra as novas tecnologias, mas consideramos que elas devem servir às comunidades e fortalecer os processos organizativos que nos permitam transformar nossa realidade de exclusão e margilização”, afirma a declaração deste ano da Assembléia de Rádios Livres e Comunitárias. A APPO, enquanto articulação de movimentos sociais de vários tipos, tem como próxima tarefa a organização de seu segundo congresso. As reuniões estaduais de conselheiros vêm preparando o encontro, previsto para fevereiro de 2008. Segue a repressão A repressão governamental ainda está presente no Estado. É nítida a presença ostensiva de corpos policiais municipais, estaduais e de militares nas ruas da capital e nas rodovias. Munidos de armamentos pesados, como fuzis e escopetas, constantemente param os transeuntes para averiguação. O pesquisador do Instituto de Investigações Sociológicas da Universidade Autônoma Benito Juarez de Oaxaca (IES-UABJO) esclarece que “há um caso típico de autoritarismo subnacional. Não só não se expressou qualquer mudança em ní-
vel nacional como se aprofundaram os traços do velho regime autoritário”. Segundo ele, depois da eleição de Vicente Fox, em 2000, houve um relaxamento do controle presidencial sobre os governadores, o que permitiu que estes atuassem sem freios nem contrapesos. “Tudo isso é expresso no governadorismo autoritário: se funda mais no terror do que no consenso; o atrai mais a repressão e a vingança do que a justiça; o recurso da força do que o diálogo, a conciliação e o acordo.” A violência do governo e de seus capangas é percebida por militantes da APPO. As denúncias de violação de direitos são freqüentes. Muitos têm recebido ameaças por telefone e mensagens de texto via celular, o que faz com que alguns não possam caminhar sozinhos pela cidade. Ainda há ativistas que não retornaram a Oaxaca depois de 2006. O governo estadual é acusado por organizações populares de financiar grupos paramilitares que promovem ataques contra comunidades indígenas em razão de conflitos por limites de terras. O informe da Comissão Civil Internacional de Observação pelos Direitos Humanos (CCIODH) de 25 de novembro declara que “não se há produziMarchela Marchuli
Impunidade no caso Brad Will de Oaxaca O caso da morte de Bradley Roland Will, repórter-cinegrafista estadunidense do Centro de Mídia Independente de Nova York, em 26 de outubro de 2006 continua irresoluto. Pior, a justiça oaxaquenha deteve em outubro deste ano Juan Manuel Martínez Moreno, militante da APPO, acusandoo te ter realizado os dois disparos que o mataram. Os advogados de Moreno denunciam que seu cliente está sendo perseguido por agentes do Ministério Público Federal. A ofensiva da Procuradoria Geral da República mexicana também atinge nove ativistas do movimento popular de Oaxaca, que estão sendo processados por acobertarem o suposto assassino. No próximo dia 15, será realizada audiência e desde então a justiça local terá um mês para dar seu parecer. A declaração da CCIODH manifesta sua preocupação pelo rumo que estão tomando as investigações: “É especialmente grave que o caso regresse ao fórum comum do Estado de Oaxaca e, sobretudo, que se dissimule a presença de funcionários armados e policiais nas provas dos fatos, os quais apontavam, entre outros, a quem os estava gravando, o falecido Brad Will”. O relatório também expressa que estes movimentos da justiça indicam a intenção de “seguir estigmatizando e criminalizando os movimentos sociais mais do que assumir as conseqüências que significariam acabar com a situação de impunidade imperante nas instituições mexicanas”. (BT)
do processos contra funcionários públicos como autores materiais e intelectuais das graves violações aos direitos humanos ocorridas no conflito de Oaxaca, e a desproteção das pessoas afetadas é manifesta”. Presos políticos O movimento contabiliza dois presos políticos em função do levante de 2006, além de outros de organizações sociais das comunidades indígenas de San Agustin Loxicha, Santiago Xanica e San Pedro Yosotato. “Nós, indígenas, somos um estorvo para o Estado. Por isso, não lhe custa mandar matar os nossos irmãos ou mandálos para os cárceres para deter o nosso processo organizativo”, denuncia comunicado emitido em outubro por três encarcerados na penitenciária de San Pedro Pochutla. Eles são integrantes do Comitê de Defesa dos Direitos Indígenas (CODECI) e foram condenados a quatro anos de prisão por supostamente terem organizado uma emboscada contra a entrada da polícia em sua comunidade em 2004. No último dia 27 de novembro, diversas entidades integrantes da APPO denunciaram que Pedro Castillo Aragón e Victor Hugo Martínez foram removidos do presídio de Santa Maria Ixcotel pela manhã, a mando do governo estadual, e que durante todo o dia os torturaram física e psicologicamente, além de deixar os parentes sem notícias sobre seus paradeiros. Com a falta de informações e a suspeita de que eles seriam transferidos para um presídio de segurança máxima fora do Estado, movimentos sociais e ativistas realizaram um protesto que exigia a permanência dos presos e a sua apresentação em boas condições. Imperialismo Segunda entidade federativa com menor índice de desenvolvimento do México – somente à frente de Chiapas – de acordo com o PNUD/ONU 20062007, Oaxaca não pode ser considerado um Estado pobre. “Estamos localizados em uma região rica em biodiversidade e recursos naturais importantes”, explica Felipa Zaragoza, das Organizações Índias pelos Direitos Humanos em Oaxaca (OIDHO). Por este motivo, denuncia, multiplicam-se os planos governamentais que impõem projetos empresariais em áreas habitadas por povos indígenas, causando impactos sociais e ambientais sem consultar as comunidades afetadas. O maior deles é o Plano Puebla-Panamá, agora denominado Projeto de Integração e Desenvolvimento da Mesoamérica, que em Oaxaca contempla diversos projetos. Um dos mais importantes é o Corredor Transístmico. A obra consiste na construção de uma rodovia de 300 km que pretende ligar os porto de Coatzacoalcos, em Veracruz (Golfo do México, oceano Atlântico) e Salina Cruz, em Oaxaca (Pacífico), sendo uma opção ao Canal do Panamá.
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cultura Reprodução
Vidas Secas,
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LITERATURA Conexões entre vida social e forma literária são debatidas por meio da obra de Graciliano Ramos Rafael Villas Bôas e Gustavo Arnt de Brasília (DF) ENTRE OS dias 3 e 5 de dezembro, pesquisadores de nove universidades públicas brasileiras e do CEFET de Minas Gerais reuniram-se na Universidade de Brasília, a convite do grupo de pesquisa Literatura e Modernidade Periférica, para participar do colóquio “Graciliano Ramos – Os setenta fôlegos de um livro: o senso histórico de Vidas Secas”. Durante os três dias do evento, foram debatidos a atualidade de Vidas Secas na dimensão histórica da vida brasileira; a temática da relação entre rural e urbano na representação estética e política da nação, presente na obra de Graciliano Ramos; e o sentido da obra do escritor para o conjunto da literatura brasileira. De acordo com o professor Hermenegildo Bastos, coordenador do grupo Literatura e Modernidade Periférica, “o colóquio propiciou discussões muito atuais sobre literatura brasileira e sobre o país”. Tendo como ponto de partida a obra de Graciliano Ramos, os conferencistas, debatedores e o público presente retomaram o debate (que sempre corre o risco de ser neutralizado pela academia e pela indústria cultural) sobre arte e sociedade. O debate foi também sobre o papel da crítica no mundo de hoje. Sacudir a poeira Os anos 30 do século passado nos legaram o conhecimento do país e dos seus impasses. Na atualidade, a forma mais consistente de ser contemporâneo é evitar que o passado seja soterrado pela poeira do tempo. O tempo não é uma entidade apenas cronológica, mas sobretudo uma função da ideologia dominante. Ler e discutir Graciliano Ramos hoje é ainda pensar o Brasil e o mundo. A cachorra Baleia de Vidas Secas é uma metáfora da morte da natureza e do homem. Escrito em 1938, o livro integra o ciclo do romance regionalista do Nordeste – produção responsável por um conjunto fundamental de figurações so-
bre a experiência brasileira – expressando com absoluta originalidade a consciência dilacerada de nosso atraso, conforme sugeriu Antonio Candido, em contraponto à consciência amena do atraso, que transformava nosso fardo histórico em promessa redentora da grande nação em formação, cujo projeto, hoje sabemos, não vingou. Atualidade do livro Para Mario Frungillo, professor de Teoria Literária da Unicamp, “todo grande livro que trata de problemas humanos, mesmo quando esses foram superados, mantém seu interesse para a humanidade. Quando um grande romance trata de problemas ainda não superados, a questão é mais candente. O mundo abordado em Vidas Secas ainda não mudou, essencialmente, e isso faz com que a atualidade seja mais forte, porque, além do interesse humano, há uma consciência inquietante de que ainda não caminhamos adiante”. Segundo Elizabeth Ramos, professora do Departamento de Línguas Germânicas da Universidade Federal da Bahia e neta de Graciliano Ramos, “enquanto houver injustiça social, criança passando fome, trabalhadores sendo explorados etc., Vidas Secas será uma obra atual, pois ela foi construída baseada nessa realidade de exclusão e opressão”. Além disso, ela ressalta que, em termos de texto, a linguagem da escassez, traço marcante da obra, contribui para sua recepção nos dias de hoje. Vigência da práxis Ana Paula Pacheco, professora de Teoria Literária da Universidade de São Paulo, ressalta uma concepção da literatura e da crítica literária como formas de conhecimento da realidade social. “A idéia da imanência da obra nesse sentido não se opõe à idéia de práxis, se ela nos faz ver melhor, como forma, aquilo que não enxergamos no dia-adia. A literatura nos faz ver melhor não porque ela seja o terreno do excepcional (mesmo o excepcional nela é historicamente configurado), e sim porque configura as contradições sociais de modo mais claro.
Para a professora, “a crítica literária, ao entender que as contradições na literatura são forma em sentido forte, isto é, são sedimentações de conteúdos sociais, é uma tentativa de colocar-se para fora da ideologia, sempre dominante. Porque na forma, para usar uma definição clássica, as contradições sociais estão equacionadas, porém não resolvidas. Essa maneira de entender a função da crítica literária é oposta a outras correntes (novas e velhas modas) que enfatizam a imanência da obra como ‘pura autonomia’, que a fizesse flanar, sem peso, para além ou para aquém do chão histórico em que vivemos”. Assim, para desfazer um lugar comum, Ana Paula ressalta que a crítica que entende a literatura como oposta à realidade social (porque esta seria muito banal para as “alturas” do literário) é uma crítica que não se interessa pela vida, uma vez que aquilo que nos diz respeito é sempre socialmente determinado – seja a própria (não-) constituição da subjetividade, seja a (não-) formação do nosso país, seja a história local dos ditos universais, ou a história e as especificidades locais no quadro pós-nações. Impacto da crise Para Belmira Magalhães, professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Alagoas, a crise sistêmica pode descortinar dois panoramas para a produção literária contemporânea: “De um lado, a crise pode trazer a possibilidade de uma literatura mais crítica, menos colada na realidade, dado o agudizamento das contradições. Por outro lado, pode trazer também uma vertente de produção mais focada em alguns problemas, sem necessariamente estabelecer conexões com aspectos mais gerais”. Quanto ao trabalho da crítica literária, pondera que ela se apresenta no momento posterior ao influxo da possível nova produção. Mas, além disso, refletindo sobre a discussão aflorada por ocasião do centenário de Machado de Assis, Belmira avalia que é também tarefa da crítica rediscutir e socializar o legado crítico dos grandes nomes da literatura brasileira.
25 anos depois do livro veio o filme de Brasília Vinte e cinco anos demarcam o intervalo entre o lançamento do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, em 1938, e a versão adaptada para o cinema por Nelson Pereira dos Santos, de 1963. A adaptação da obra literária para a versão cinematográfica suscitou reflexões como a seguinte: existiria o movimento do Cinema Novo sem o ciclo do romance regionalista do Nordeste? Visto com os olhos do contexto atual, o incômodo crítico do filme reside no fato de sua força significar a reminiscência de um projeto de país forjado pelos de baixo, que foi destruído pela ditadura militar antes mesmo que pudesse amadurecer. O filme confronta o padrão hegemônico de representação da realidade por organizar formalmente uma figuração da experiência brasileira em que não é a natureza do sertão o algoz do povo sertanejo, e sim a exploração do homem pelo homem. O som do carro de boi, a luz do sol estourada, as lon-
O trabalho para além da academia Rafael Villas Bôas
gas seqüências de planos gerais, que permitem que o telespectador reflita sobre a posição do homem no meio, entre outras opções formais, fazem com que o conjunto da obra atualize, em chave cinematográfica, no contexto dos anos de confrontação de classes que anteciparam o golpe de 1964, a força anti-sistêmica da percepção da consciência dilacerada do atraso. Pelo registro do filme, afinado com o impasse de nosso projeto de país, algo se desmorona, antes mesmo de ter se consolidado. Ao comentar a relação entre o romance Vidas Secas e o filme homônimo, Elizabeth Ramos, que interpreta o filme como uma tradução do livro, destaca os méritos do diretor e de sua equipe em recriar, de forma autônoma, o complexo universo apresentado por Graciliano no livro: “Nelson recria o romance como nova arte, ao mesmo tempo em que resguarda a aura da anterioridade”. A professora destaca ainda a importância das traduções do romance para outras línguas, o que ela vê como uma forma de expandir a obra de Graciliano Ramos. (RVB e GA)
O rural e o urbano na representação estética e política da nação
de Brasília Norteado pela perspectiva da práxis e ciente do valor crítico da literatura, o grupo Literatura e Modernidade Periférica empenhase em estabelecer parceria com movimentos sociais. Segundo Ana Laura Corrêa, professora da UnB e integrante do grupo, essa parceria de setores da universidade com os movimentos sociais deve ser entendida em quadro histórico e crítico, isto é, não se trata simplesmente de uma iniciativa desses setores em direção ao campo das lutas sociais com o intuito de levar o conhecimento formal a uma parte do povo brasileiro que não teve acesso a ele, mas, antes, de um processo posto em movimento pela força das demandas sociais no país em favor do cumprimento de um direito inalienável de todo brasileiro. “Para um grupo de pesquisa cujo objeto é a literatura, a força da demanda social por esse direito exige o reconhecimento de que a grande riqueza da literatura é dar a ver o que a ideologia escamoteia: as contradições de uma sociedade em que domina o modo de produção capitalista. A essa riqueza, todo homem tem direito, e nela se baseia a força da demanda com a qual todos, assumindo ou não o desafio de suportar as fortes contradições que vêm a reboque nes-
de Brasília
Parceria viabiliza a realização de cursos de formação
se processo, temos que lidar”, diz Ana Laura. Nesse sentido, de acordo com ela, as parcerias entre o grupo e o movimento social se estabelecem concretamente pela realização de cursos de formação da Via Campesina, principalmente do MST: “Pela participação no curso de Letras da UFPA, para a formação dos estudantes dos assentamentos do Pará que ali atuarão como professores e pesquisadores; pela discussão acerca da produção do conhe-
cimento e da pesquisa no campo, nos cursos básicos e seminários promovidos pela Escola Nacional Florestan Fernandes; e, ainda, pela composição do corpo docente do curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília, campus de Planaltina, que está já em sua segunda turma, e no qual o grupo está inserido no eixo de Linguagens, que, na perspectiva da formação por áreas, engloba literatura, teatro, música e artes plásticas”. (RVB e GA)
O objetivo do debate sobre o conflito modernizador, de acordo com Izabel Brunacci, professora do CEFET de Minas Gerais, foi discutir a produção literária no âmbito da relação entre o rural e o urbano no Brasil sob o signo do “progresso” capitalista. “Como se trata de uma relação conflituosa, isso faz com que a literatura se situe perigosamente no fogo cruzado desse conflito. É nessa perspectiva que a obra de Graciliano Ramos, pela peculiaridade de modulação dos pontos de vista dos narradores que a constituem, desvela para os leitores questões ainda não resolvidas do processo de formação da sociedade brasileira, pelas narrativas de personagens como Paulo Honório, em São Bernardo; Luís da Silva, em Angústia; e João Valério, em Caetés. Três perspectivas diferentes, dentro da estrutura de consciência de personagens pertencentes, todos eles, à classe dominante”, afirma. Brunacci, que publicou recentemente o livro Graciliano Ramos: um escritor personagem (Belo Horizonte: Autêntica, 2008), pondera que “em Vidas Secas, o processo se inverte: Graciliano coloca em movimento no texto literário toda a problemática do projeto de nação imposto pela burguesia brasileira, por uma perspectiva que tenta, ao máximo, localizar-se na consciência do homem marginalizado por esse processo”.
“Daí a autenticidade da relação que se estabelece entre o narrador desse romance e os personagens: trata-se de uma negação do paternalismo tão freqüente nas narrativas do romance de 1930, para dar lugar a um processo de compartilhamento do discurso literário, em um movimento permanente de identificação e de distanciamento entre narrador e personagem, que, dialeticamente, coloca diante do leitor os dilemas – até hoje não resolvidos – do nosso processo de modernização capitalista”, diz. Estado Novo Coube nessa discussão também o questionamento das razões que levaram Graciliano Ramos a trabalhar em instituições do Estado Novo, em plena era getulista, publicando crônicas em revistas do Departamento de Imprensa e Propaganda. Se para uns isso pode significar o intelectual cooptado por forças políticas, para outros coloca as determinações da conjuntura política da época como cruciais para a atuação da esquerda organizada, que tinha de se posicionar em relação à luta entre o governo Vargas e as forças populares, de um lado, e o latifúndio e o liberalismo udenista, de outro. “De qualquer forma, esses questionamentos abriram para nosso grupo nova frente de discussão sobre as formas de cooptação e de resistência – ou não – dos intelectuais aos apelos do capitalismo”, avalia Brunacci, que também integra o grupo Literatura e Modernidade Periférica. (RVB e GA)