Edição 303 - de 18 a 24 de dezembro de 2008

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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 6 • Número 303

São Paulo, de 18 a 24 de dezembro de 2008

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br

Valter Campanato/ABr

Agronegócio se apodera da Amazônia A expansão do agronegócio na floresta amazônica ganhou mais força com o texto de uma Medida Provisória que afasta o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) do processo de regularização de terras na Amazônia Legal e cria a Agência Executiva de Regularização Fundiária da Amazônia. Pág. 3

Crise: hora dos trabalhadores aproveitarem

João Zinclar

STF reafirma direitos dos indígenas

Movimentos contra leilão do petróleo

A legalidade da demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol foi assegurada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dia 10. A indígena e advogada Joênia Batista de Carvalho analisa o processo e fala sobre as expectativas dos índios. Pág. 4

Uma articulação entre petroleiros, centrais sindicais e movimentos sociais promoveu uma semana de luta contra a 10ª rodada de leilão de petróleo e gás da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Protestos ocorreram pelo país. Pág. 7

Na Bolívia, Evo Morales erradica o analfabetismo No dia 20, a Bolívia será declarada território livre do analfabetismo pela Organização das Nações Unidas (ONU). O país se tornará o terceiro da América Latina a atingir tal feito. O primeiro foi Cuba, em 1961. Depois, foi a vez da Venezuela, em 2005. Em menos de três anos, o governo Evo Morales conseguiu fazer com

que 820 mil bolivianos aprendessem a ler e escrever com o método Yo, sí puedo, criado pela Revolução Cubana. O Brasil de Fato entrevistou os coordenadores do programa, que explicam o método e contam como o projeto se desenvolveu e foi implementado no país. Pág. 10 José Luís Quintana/ABI

“As crises são momentos que levam necessariamente a um reposicionamento das classes.” Essa é a avaliação de João Pedro Stedile, do MST. Dessa forma, a esquerda deve se preparar para aproveitar as brechas que a atual crise poderá abrir. Uma das vantagens é que a direita não mostra sinais de como sair do buraco. Pág. 6 CMI Brasil

Por que apoiar Cesare Battisti

Mulher boliviana comemora a erradicação do analfabetismo no departamento de Tarija; país é o terceiro a resolver o problema na América Latina

Estados Unidos terá Natal dos desempregados

Há quase dois anos, o italiano Cesare Battisti está preso no Brasil. O governo da Itália pede sua extradição, sob a acusação de ter cometido, há 30 anos, quatro assassinatos, quando membro de um grupo de extrema esquerda. Pág. 8

Com a crise financeira, cerca de 10 milhões de postos já desapareceram Neste ano, o Natal nos EUA será o Natal dos desempregados. Com a crise financeira, cerca de 10 milhões de postos já desa-

pareceram – a maior perda de empregos dos últimos 34 anos. A fuga dos consumidores obrigou o comércio a promover grandes liquida-

AFOGANDO EM NÚMEROS Em 2009, o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), vai gastar R$

313 milhões com publicidade. Quase o dobro do

valor que foi usado para este fim em 2008. Com este dinheiro, asal

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156 escolas públicas, ou 6 hospitais de grande porte, ou ainda 10 mil

seria possível construir

ISSN 1978-5134

moradias populares.

ções. Um dos diretores da General Motors chegou a declarar que resta à empresa apenas mais duas semanas de vida, devido ao impas-

se do pacote de 14 bilhões de dólares que ajudaria as montadoras a manter empregos pelo menos até abril de 2009. Pág. 11


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editorial NO DIA 13 de dezembro de 1968, o governo do general-presidente Arthur da Costa e Silva – hoje cognominado “O Pusilânime” –, depois de uma reunião na qual foi ouvido o Conselho de Segurança Nacional, baixou sobre a nação o Ato Institucional Número Cinco, o famigerado AI-5. O regime endurecia. Ampliava-se o Estado de Exceção. Intervinha-se assim na ordem jurídico-política de modo a criar um Estado ultracentralizado. Um regime capaz de, através do terror de Estado, ser um instrumento adequado para impor as políticas econômicas, sociais, trabalhistas etc. daqueles que em 31 de março de 1964 haviam rasgado a Constituição e deposto o presidente João Goulart. As conseqüências do AI-5 são hoje conhecidas por nossos leitores: anulação dos mínimos direitos democráticos, para impor um projeto de desenvolvimento baseado na concentração de riquezas – o que implicou a perda de direitos políticos e trabalhistas do povo e a implantação do arrocho salarial, uma das peças-chaves do projeto econômico. Juntamente com isso, a soberania nacional era igualmente banida, destruindo-se todos os esforços de uma política internacional independente, substituída pela subordinação mais rasteira aos desígnios da Casa Branca. Menos conhecidas são as manifestações dos integrantes do Conselho de Segurança, reunido para a discussão do

debate

Eles sempre sabem o que querem. E o que eles querem não é mole novo texto legal. O coronel Jarbas Passarinho, então ministro do Trabalho, além de um dos intelectuais e ideólogos do regime (e por isso mesmo), integrava o egrégio fórum de sumidades e, frente às vacilações do presidente, decidiu ser contundente: “Às favas, senhor presidente, com os escrúpulos de consciência”; “É hora de medidas de exceção”; “(...) estamos vivendo uma situação de exceção. Para lidar com ela, precisamos tomar medidas de exceção”. A afirmação acima parece fazer parte do discurso do coronel Passarinho. Vejamos como se encaixam: “Às favas, senhor presidente, com os escrúpulos de consciência; estamos vivendo uma situação de exceção. Para lidar com ela, precisamos tomar medidas de exceção.” No entanto, apesar das propostas conservarem o mesmo espírito, quarenta anos as separam. As “medidas de exceção” são pedidas pelo senhor Roger Agnelli, presidente da Vale, em entrevista ao jornalista David Friedlander, publicada no dia 14 de dezembro passado no jornal O Estado de S. Pau-

lo. A Vale é a antiga Companhia Vale do Rio Doce, estatal privatizada pelo governo do presidente tucano, doutor Fernando Henrique Cardoso. De acordo com o senhor Agnelli, frente à crise, “o Governo e os sindicatos precisam se convencer da necessidade de flexibilizar um pouco as leis trabalhistas: suspensão de contrato de trabalho, redução da jornada com redução de salário (...)”. Mas essa não é uma opinião isolada. Na quinta-feira 11 de dezembro, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), senhor Armando Monteiro Neto, acompanhado de outros empresários, reuniu-se com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem apresentou as mesmas propostas. De acordo com “um dos interlocutores do governo” – segundo o jornal –, embora o presidente nada tenha respondido aos empresários, “técnicos dos ministérios da Fazenda, da Previdência e do Trabalho já estudam a questão, que pode significar renúncia fiscal e desoneração”. A CSN também convocou sindicatos “para propor a redução do atual percentual de férias, dos

Esses dias são de Alexis… … a raiva da juventude…

Depois da primeira expressão dessa raiva acumulada, veio a organização espontânea da juventude. Mais de 400 escolas secundárias de todo o país foram ocupadas, assim como muitas universidades, e já há uma coordenação das ações de alunos e estudantes. Todos os dias alunos e alunas da escola secundária chegam até diferentes delegacias, cercam-nas, rodeiam-nas, gritam aos policias, lhes atiram pedras, queimam seus carros, enfrentam-nos diariamente nas ruas, sem pensar nos riscos e nas conseqüências. Raiva pura e bonita. Os jovens deste país já gritaram seu “já basta!”. E pedem para que toda a sociedade esteja do seu lado para, assim como eles e elas, gritar seu “já basta!” e tomar as rédeas de suas vidas. As pessoas nos bairros de Atenas e de outras cidades em alguns casos os escutou. Em vários bairros foram organizadas ocupações de edifícios municipais e, no geral, há muitas tentativas de, cada vez mais, se organizar e coordenar essas ações. Há protestos generalizados. Barricadas são armadas todas as noites ao redor da universidade politécnica de Atenas e resistem a noite inteira aos policiais. Os mais reprimidos também encontraram sua oportunidade para expressar sua raiva. Os ciganos, que sofrem repressão policial e sua impunidade; os migrantes, que diariamente são mortos de diferentes maneiras, também saíram para as ruas e agarraram suas pedras como @s jovens. A repressão também se generaliza. Em toda a cidade de Atenas há uma nuvem permanente de gás lacrimogêneo e outros químicos. Os policiais de uniforme verde, os mais truculentos, reprimem, golpeiam, prendem, dão tiros para cima, insultam. E todos que assistem suas ações de perto já não as podem tolerar. Há quem saia das “cafeterias” onde tomam seus cafés para gritar aos policiais: “fora da-

“Seis meses sem democracia” Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, em Lisboa, durante um almoço organizado pela Câmara de Comércio Luso-americano, a presidenta do Partido Social Democrata (PSD – oposição), senhora Manuela Ferreira Leite, criticando a política do governo, afirmou: “Quando não se está em democracia é outra conversa, eu digo como é que é e faz-se. E até não sei se, à certa altura, não é bom haver seis meses sem democracia. Mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia”. Atacado pelos adversários políticos, o PSD se defendeu, afirmando que sua presidenta “se limitou a fazer uma crítica irônica à atuação do governo”. Disputa política e ideológica Não existem coincidências. Nas crises, as primeiras mudanças são as mudanças políticas, as mudanças na

crônica Luiz Ricardo Leitão

Elpida Nikú, de Atenas (Grécia)

NO DIA 6 de dezembro morre um jovem de 16 anos vítima de uma bala perdida no bairro de Exarchia, em pleno centro de Atenas. O único pecado desse jovem – não lhe deram tempo de ter mais que um pecado –, como o de muitos, milhares e milhões de outros jovens, o pecado que lhe custou a vida, foi o de gritar a dois policiais que passavam por ele e por seus amigos num sábado à noite, algo como: “fora deste bairro, seus porcos policiais!” Seu nome é Alexis, mais um Alexis de um país distante que se chama Grécia. A notícia corre rápido e chega aos ouvidos de outros jovens como ele. As pessoas se indignam. Não, não está certo. Não é apenas indignação. É um acúmulo de raiva. Uma raiva que quis sair para as ruas e arrastar tudo o que há nelas. E saiu. As pessoas com suas raivas saíram para as ruas e colocaram Atenas, assim como quase todas as cidades deste país, em estado de emergência. Em sua maioria jovens, com pedras nas mãos e raiva nos corações, saíram para as ruas. E arrastaram tudo. As lixeiras, as calçadas, os prédios, as lojas, os bancos, os carros; arrastaram também as promessas vazias e o presente que os priva delas. Arrastaram a má educação, a falta de emprego, a insegurança do futuro, o presente que nos oprime, o passado que se esqueceu. Arrastaram os símbolos que o sistema lhes oferece para olhar de longe, porque tocá-los lhes custa muito caro. Arrastaram os símbolos que, aliás, nem sequer necessitam. Arrastaram os anúncios luxuosos, espelhos de uma vida encarcerada nas quatro paredes do trabalho, da escola, da universidade, que obedece ordens de gente que suga toda a sua energia em troca de migalhas. O governo de direita que no momento governa este país passou dos limites de tolerância, aprovando leis que eliminam os direitos trabalhistas, o direito à saúde, à educação, à moradia, à própria vida e reprimindo aos que gritam com toda sua força que não deve ser assim. Nos estão tirando a vida cotidiana, e o assassinato de Alexis foi a gota que quebrou e transbordou o copo da tolerância e do silêncio. Nada mais será igual aqui para nenhum de nós. O que vivemos esses dias na Grécia é uma revolta juvenil, de meninos, de meninas, de 14 e 15 e 16 e 17 e 18 anos de idade. É uma revolta de jovens que sentiram que suas vidas estão em risco: “já mataram um de nós, quem será o próximo?”. E nos estão dando uma lição de vida.

atuais 70% para 33% do salário-base, o aumento do turno de 6 para 8 horas e licença remunerada com redução de base salarial”.

conformação do Estado, nas regras do jogo. Sem essas, impossível implantar medidas econômicas drásticas – como exigem as crises. O capital sabe disso, e nisso tem uma longa experiência em seus cerca de 220 anos enquanto sistema hegemônico. Por isso, seu discurso afinado, suas propostas de mesma índole que, com toda a dominação ideológica a que submete as demais classes (e estas introjetam), fazem com que, no limite, os dominados não desenvolvam outra lógica que não aquela que nos diz “dos males, o menor”: melhor ganhar menos que estar desempregado. Lógica tanto mais forte quanto menor o grau de organização e mobilização dos trabalhadores e do povo. Embota-se nesse momento a possibilidade de se pensar outros tipos de saída, mesmo que nos limites das reformas do próprio sistema. Mas acreditamos que vale sempre pensar na contracorrente do establishment. Portanto, por que não imaginarmos, por exemplo, que os bilhões injetados enquanto empréstimos nas grandes financeiras e bancos não devam ser feitos como compras de ações pelo Estado? Por que não pensar que as reduções salariais podem ser feitas, desde que entendidas e regulamentadas, como compra de ações das empresas pelos trabalhadores? Enfim, perguntar não ofende.

Meio século de resistência: o que será o amanhã?

qui!”. Há quem lhes atire ramos de flores de suas varandas. Há aqueles que, quando vêem os policiais agarrando os jovens, correm e lhes tiram de suas mãos violentas. Do outro lado há a propaganda permanente dos meios de comunicação de massa. Repetindo imagens de destruição, falando dos pequenos empresários que perderam tudo, das propriedades de uns coitados, do espírito de natal que uns vândalos estão destruindo, dos ladrões que se aproveitam para roubar as propriedades destruídas. Mas esses dias têm se desenhado imagens tão bonitas em nossas ruas. E nossos corações se enchem de uma esperança, mesmo que ainda não possamos assimilar o que está acontecendo em nossa sociedade. É chegada a hora de escutar àqueles mais sãos de nosso país: os mais jovens, os mais inocentes, que essa semana cresceram muito e rápido, e suas ações se fizeram postura de vida. Temos que escutá-los e estar junto deles, junto delas, porque o que pedem é o que nós também queremos: nossas vidas tratadas com dignidade e respeito. Do lado de fora do Congresso do país, uma menina está conversando com um policial em um momento de calma, lhe perguntando por que estão batendo nos meninos e meninas, por que reprimem a ela e a seus companheiros. O policial pergunta quantos anos ela tem. Ela responde que tem 18 anos. O policial ri e diz que quando ela tiver 40 anos mudará de idéia. E a menina de 18 lhe responde: “quer dizer que quando eu tiver 40 e matarem a um menino de 15, do meu lado, eu vou ficar quieta?”. A conversa acaba aí e a palavra se perde por detrás do som das bombas molotov e do som do cassetete, de novo o mesmo, caindo sobre as costas de outros jovens como ela.

NO ANO Novo de 1959, o ditador Fulgencio Batista deixava o seu bunker em Havana às pressas, para não ser preso pelas tropas revolucionárias. Fogos e repressão, champanha e corrupção, tudo ficava para trás. Onde antes havia um complexo militar, hoje há um Instituto Pedagógico que forma milhares de professores. Claro, estamos falando de Cuba, às vésperas do 50º aniversário de sua Revolução, talvez a melhor aula de História que o continente de Martí, Che e Bolívar nos tenha dado em 500 anos de solidão. Não tem sido fácil sustentar essa ilha socialista no planeta do capital. O bloqueio político e econômico articulado pelos EUA quase asfixiou o arquipélago, privando-o de qualquer recurso advindo das nações que compunham o chamado “mundo livre ocidental”. As restrições, que seriam intensificadas ao longo dos anos de 1990 por medidas oficiais aprovadas pelo Congresso dos EUA, como a Lei Torricelli e a Lei Helms-Burton, estenderam-se não apenas à eventual compra de gêneros e bens produzidos com capitais e/ou matérias-primas ianques, como também aos empréstimos obtidos junto aos agentes do sistema financeiro internacional. Os créditos, aliás, já haviam sido definitivamente cortados desde que o governo cubano decidira declarar, em 1986, a moratória de sua dívida externa, por considerar — com inteira razão, por sinal — que os juros pagos aos credores estrangeiros eram mais do que extorsivos. Suspenso o intercâmbio com o bloco socialista do Leste europeu após 1990, Cuba tampouco dispunha de verbas para investir em infraestrutura e tecnologia, retomando o seu crescimento e satisfazendo as demandas de sua população. Em pouco tempo, as carências em habitação e transporte público afetariam substancialmente a vida cotidiana, negando aos cubanos alguns dos direitos mais elementares do cidadão moderno, inclusive o de poder deslocar-se ao próprio centro de trabalho para cumprir sua função básica na sociedade. Havia, pois, motivos incontestáveis para projetar rupturas no tecido social e na organização política do arquipélago. Os grandes meios de comunicação ocidentais, obviamente, já se ocupavam do tema desde a queda do Muro de Berlim e tratariam de reavivá-lo a cada novo anúncio de suspensão ou cancelamento dos acordos econômicos e comerciais firmados entre Cuba e os países do “socialismo real”, como se cada notícia neles estampada fosse um número a menos na contagem regressiva da mídia rumo à tão sonhada manchete da “restauração da democracia” na ilha... Contra todos os prognósticos, porém, eles resistiram. Embora vários fatores da conjuntura internacional pesem decisivamente sobre a vida insular, não resta dúvida de que os cubanos continuam a cultivar sua soberania e autodeterminação nacional. Não bastasse o longo aprendizado histórico de cerca de duzentos anos de luta por sua libertação, além de quase meio século de Revolução e mais de uma década e meia de Período Especial, as lições mais recentes nos reiteram que nenhuma profecia pode ser feita acerca do seu futuro. Ninguém ignora que os eventos da era global interferem agudamente sobre o país, mas não se pode prever até onde a atual crise do capital influirá sobre o curso dos acontecimentos no caimán antilhano. Afinal de contas, após dois séculos de embate entre Davi e Golias, não será apenas a recessão ianque ou a eleição de Obama que determinará os desdobramentos da política cubana. De qualquer forma, “o que será o amanhã?” continua a ser a questão central para a mídia e os analistas de plantão. O novo xadrez da geopolítica planetária – em que o poder monolítico dos Estados Unidos sofre um sensível declínio, a Europa se fortalece e outras nações como a China, a Índia e o Brasil assumem papéis relevantes no cenário mundial – concorrerá para as alternativas vislumbradas pela ilha. Contudo, o destino do teimoso caimán dependerá, uma vez mais, das decisões soberanas que o país tomar em meio às mais adversas conjunturas, no sinuoso e incompreensível processo político do socialismo caribenho, de que o povo, o Partido Comunista e certas instâncias da sociedade civil participam de modo imponderável. Em suma: Cuba não sobreviverá sozinha, mas jamais aceitará qualquer tutela alheia e sempre defenderá seu direito inalienável à soberania e autodeterminação, conforme tão bem ilustra a frase estampada em um enorme outdoor que se ergue sobre o muro já descascado e desbotado de um terreno em Havana: ¡Aquí! No queremos amos (“Aqui não queremos patrões!”). Parafraseando o melodioso samba do G.R.E.S. União da Ilha do Governador: “O que será o amanhã? / Responda quem puder... O que irá lhe acontecer? O seu destino será como ela quiser...”

Elpida Nikú, de Atenas, escreveu para revista grega Alana.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidad de La Habana.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

Com apoio do Executivo, agronegócio se apodera das terras da Amazônia REFORMA AGRÁRIA Ministro Extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger projeta agência para normatizar a regularização de terras na região e afasta o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) da função Valter Campanato/ABr

Eduardo Sales de Lima da Redação O MOVIMENTO de expansão do agronegócio na floresta amazônica ganhou mais força no início de dezembro, quando foi finalizado o texto de uma medida provisória que afasta o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) do processo de regularização de terras na Amazônia Legal, e cria a Agência Executiva de Regularização Fundiária da Amazônia (Aerfa). A nova agência, projetada pelo ministro Extraordinário de Assuntos Estratégicos e coordenador do Plano Amazônia Sustentável (PAS), Roberto Mangabeira Unger, será vinculada à Presidência da República e terá a função de normatizar a regularização de terras na região. Ela terá poderes para, em substituição ao Incra, promover a discriminação das terras devolutas federais na Amazônia Legal, com autoridade para reconhecer as posses legítimas. A União é dona de mais de 102 milhões de hectares na região, mas não tem um diagnóstico das ocupações. Mangabeira sustenta que a insegurança jurídica causada pela desordem fundiária é obstáculo fundamental ao desenvolvimento da Amazônia. No entanto, analistas defendem que o governo utiliza o sucateamento do Incra e a condição irregular de 90% dos estabelecimentos rurais na Amazônia (400 a 500 mil posses) para legitimar as posses dos grandes grileiros da Amazônia. Desenvolvimento?

Sérgio Leitão, diretor de políticas públicas do Greenpeace, questiona algumas atribuições da Aerfa, como a expedi-

“Caso a Aerfa se concretize, Lula estará a fazer a maior anti-reforma agrária da história desse país”, afirma José Vaz Parente, presidente da Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (Cnasi) ção de títulos de propriedade. “O título é aquilo que vai permitir o cara colocar a terra no jogo legal do mercado”, mas, lembra que na Amazônia há uma grande concentração de terras nas mãos de grileiros. Na avaliação de Ulisses Manaças, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a criação da agência não irá promover desenvolvimento, “porque não cria meios de dar melhores condições de vida para os camponeses, ribeirinhos, indígenas e quilombolas”, lembra. Em declarações públicas, o presidente do Incra, Rolf Hachbart, também se posicionou contra a criação da Agência. De acordo com ele, a criação desse novo órgão resultaria na distribuição de terras sem critérios de avaliação de quem as ocupa atualmente ou dos possíveis impactos ambientais. Coronelismo

Com a criação da Agência, os latifundiários poderão ganhar terras da União

Títulos fajutos

Leitão acredita que a visão do coordenador do PAS não tem nada de novo. “Essa parcela nova de propostas oriunda da cachola do Mangabeira Unger é mais uma etapa dessas que a gente já viu acontecer desde 1850, com a Lei de Terras”, lembra o diretor do Greenpeace. Na Constituição de 1891, o artigo 64 passou parte das terras que eram da União para os Estados. “Aí, boa parte dos títulos fajutos que existem pelo Brasil aparecem”, pois “os Estados passaram a ter o poder de expedi-los”, explica.

Ocupação induzida

O ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger

e ser parceiros na regulação de suas próprias terras griladas. Isso porque Mangabeira Unger idealizou a futura Aerfa como uma autarquia conduzida pelo governo federal em parceria com os institutos estaduais de terra com o objetivo de promover a regularização fundiária. Para Sônia Moraes, vicepresidente da Abra, a proposta de uma gestão privada e pública junto com os Estados e municípios, que também faz parte das diretrizes da Aerfa, só poderia ter sido feita “por quem não entende nada do assunto”, visto que nas regiões Norte e nordeste, o coronelismo ainda vigora. “Vamos dar para o prefeito de Pacaraima (RR) [Paulo César Quartiero], que também é um arrozeiro, o poder de decidir com quem fica as terras”, ironiza.

Com a criação da Agência, os latifundiários poderão ganhar terras da União e ser parceiros na regulação de suas próprias terras griladas. Anti-reforma agrária Sônia Moraes acredita que a atitude da governo federal de apoiar a expansão do agronegócio na Amazônia vai na contramão das afirmações do presidente Lula, que defende que o Brasil vai superar a crise econômica mundial com o fortalecimento do mercado interno.

“Ao se criar uma autarquia que tira poder do Incra para a utilização do bem público – geração de trabalho, de renda, de produção agrícola –, ele está na contramão das medidas para superar a crise”, defende a vice-presidente da Abra. Ela conclui que, com a legitimação da grilagem de terras na Amazônia para o capital, “o mercado vai vender as commodities e outras matérias primas da Amazônia para o mercado no exterior”. Está em curso, de acordo José Vaz Parente, presidente da Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (Cnasi), e “com todo um requinte”, a retomada do processo de internacionalização da Amazônia. Ele ressalta que, caso a Aerfa se concretize, “Lula estará a fazer a maior anti-reforma agrária da história deste país”.

Muito tempo depois, na vigência da ditadura civil-militar, foram criados dois grupos executivos da regularização fundiária na Amazônia: o Grupo Executivo de terras no Amazonas e Tocantins (GETAT) e o Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas (GEBAM). “Nesse processo de indução para ocupar a região, feito principalmente da ditadura para cá, foram destruídos 20% da floresta amazônica”, conta Sérgio Leitão. Segundo ele, os títulos expedidos não eram para pequenos proprietários, que foi uma parcela muito pequena nesse processo de indução à ocupação da região. Já José Vaz Parente, que acompanhou todo o processo de dentro do Incra durante a ditadura militar, relaciona as ações do Estado federal na região nordeste, e vê os mesmos pressupostos que hoje estruturaram projetos de regularização fundiária na Amazônia. “Tivemos foi um processo de ocupação criminoso, sobretudo no começo dos anos de 1980, no governo João Figueiredo, marcado pela concentração excessiva de terras em mãos de médios e grandes grileiros”, lembra.

Governo não tem política agrária para a Amazônia Antônio Cruz/ABr

Para coordenador do MST, um projeto para a Amazônia depende da cultura e das necessidades de camponeses, ribeirinhos, indígenas e quilombolas

Alternativa é fortalecer o Incra da Redação

da Redação O enfraquecimento do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) ao longo dos anos apenas atesta que os seqüentes governos brasileiros, desde a criação do órgão, em 1970, nunca se empenharam em elaborar planos estruturais para a reforma agrária na região da Amazônia. No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a política não é diferente. “O problema fundamental é que não existe uma política agrária e fundiária para a Amazônia”, aponta Ulisses Manaças, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). José Vaz Parente, presidente da Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (Cnasi), lembra que as políticas públicas voltadas ao pequeno agricultor sempre foram, e continuam sendo, intervenções pontuais, “inclusive para distensionar as áreas de conflito”. O geógrafo da Universidade de São Paulo Ariovaldo Umbe-

Região sofre com ausência de política agrária e fundiária

lino aponta, em artigo, que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) apresentou a lista com os 100 maiores desmatadores da Amazônia Legal, no período entre 2005 e 2008. Os assentamentos do Incra ocupavam os seis primeiros lugares. Metas falsas

O quadro é resultado da falta de política de acompanhamento desses assentamentos, assim como na maior parte dos assentamentos da Amazônia. Neles, é comum os assen-

tados venderem ilegalmente seus lotes para o agronegócio, que, para comprá-los, os querem totalmente desmatados. Ao fazer essa exigência, a responsabilidade recai sobre o assentado e o Incra. No entanto, Segundo Sérgio Leitão, diretor de políticas públicas do Greenpeace , “o governo tenta mostrar que está cumprindo com as nossas metas da reforma agrária”. Na Amazônia Legal estão 307 mil assentados, ou seja, 68% do total.

Devido ao atual sucateamento do Incra, Manaças reforça que o processo de reforma agrária precisa estar conjugado ao fortalecimento do Incra e a uma nova política agrária e fundiária na Amazônia, “garantindo a presença do Estado e incentivo para as populações trabalharem e preservarem a Amazônia”. Produção e ocupação

Uma política específica para assentamentos e peque-

A regularização fundiária de terras públicas a partir da criação do Incra, em 1970, sempre teve como propósito a democratização do acesso à terra, e não o contrário. Sônia Moraes, vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) aponta que por mais que o Incra seja rejeitado por setores do governo, com baixo orçamento, pouco pessoal e precária infra-estrutura, o órgão foi criado dentro de uma legislação agrária sistematizada, no bojo de outras iniciativas, como o Estatuto da Terra, que disciplina o uso da terra; e a Lei 8629, que regulamenta as disposições sobre a Reforma Agrária. Na sua avaliação, ao invés de criar um novo órgão responsável, “muito mais correto é dar instrumentos para o Incra poder regularizar as posses de terras de acordo com o interesse público, e não com interesses privados”, assinala. Assim como Sônia, José Vaz Parente, presidente da Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (Cnasi), defende o fortalecimento do órgão federal para barrar as intenções do capital privado na Amazônia. “Dentro dessa concepção, que hoje encerra a estrutura de serviço do Incra, com todas as normas que disciplinam suas ações, o (Roberto) Mangabeira Unger não iria encontrar espaço para operacionalizar suas idéias”. (E.S.L.) nas propriedades na Amazônia, demanda diferentes formas de produção e ocupação territorial. Assim observa o presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), Plinio Arruda Sampaio. Para ele, ainda faltam estudos e mecanismos de política agrícola adequados para sustentar ações de desenvolvimento mais intensas e abrangentes. E que, “antes de alterar um ecossistema vulnerável, é preciso conhecê-lo bem”.

O projeto para a Amazônia, segundo Ulisses Manaças, depende da cultura e das necessidades de camponeses, ribeirinhos, indígenas e quilombolas. “Os assentamentos, por exemplo, são um espaço privilegiado para conseguir restaurar o que o agronegócio destruiu na região”, atesta. No entanto, Manaças reforça que, para isso ser feito, é necessário haver infraestrutura, incentivos para a produção, energia elétrica e estradas. (ESL)


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Para advogada indígena, decisão do STF reafirma direitos constitucionais RAPOSA SERRA DO SOL A indígena e advogada Joênia Batista de Carvalho considera positivo o parecer favorável à demarcação contínua e espera que decisão final saia o mais breve possível; situações básicas não podem esperar final de julgamento Valter Campanato/ABr

Michelle Amaral da Redação

A Carta Magna é bastante taxativa quando fala que princípios constitucionais devem ser considerados e as terras indígenas são patrimônio da União Outra divergência sobre a saída dos não-índios das terras indígenas é levantada por políticos e arrozeiros da região. O líder dos arrozeiros em Roraima e prefeito de Pacaraima (RR), Paulo César Quartiero, acredita que, com a entrega das terras da reserva aos índios e a retirada dos brancos, a área – que está na faixa de fronteira – ficaria vulnerável à ação de estrangeiros. Porém, Joênia lembra que o ministro Ayres Britto, em seu voto, mostra que não há nenhum risco à soberania nacional “com a demarcação de terras indígenas na faixa de fronteira”. Quartiero, que é um dos seis arrozeiros que está na reserva, encabeça um movimento de resistência contra uma decisão

Joênia conversa com indígenas durante o julgamento da constitucionalidade da demarcação contínua da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol

do STF favorável aos indígenas. O prefeito de Pacaraima chegou a declarar à imprensa, na véspera do julgamento, que seus funcionários têm ordem de responder contra qualquer tentativa de invasão de sua propriedade. A advogada indígena analisa o andamento do processo e fala sobre as expectativas dos índios no decorrer do julgamento até a decisão final. Joênia alerta para o fato de que o futuro dado à Reserva Raposa Serra do Sol influenciará os demais processos de demarcação de terras indígenas no Brasil.

da essa situação de discussão de terras indígenas tem sido abordada por muitos interessados, uns que estão na expectativa de resolver e outros, de cada vez mais tentar retalhar as terras indígenas. Como deve ficar a situação entre os índios e os brancos na reserva até o final do julgamento, que só se dará no próximo ano? Eu acho que as nossas autoridades devem tomar uma posição bem séria, porque a situação de danos causados não pode ficar à mercê do prazo, porque a gente nem sabe quando vai ser o próximo julgamento. Não podemos esperar por esse julgamento para resolver situações básicas, como os problemas do meio ambiente e a questão da segurança. As autoridades devem tomar uma providência em relação a isso, porque o Supremo, com a suspensão do julgamento, não está fechando os olhos para a prática de crimes. Então, isso tem que ser considerado mais como uma questão de proteção do meio ambiente e das comunidades indígenas.

Brasil de Fato – A maioria dos ministros do STF votaram a favor da demarcação de forma contínua das terras da Reserva Raposa Serra do Sol. Qual a importância dessa decisão para os povos indígenas da região? Joênia Batista de Carvalho – Ela é importante porque reafirma direitos constitucionais dos povos indígenas, como a garantia de sua demarcação em área contínua, deixando desde já assegurado o usufruto exclusivo e a retirada dos ocupantes que estão ali dentro – os fazendeiros de lavoura de arroz –, que têm prejudicado a tranqüilidade e a sobrevivência física, econômica e cultural das comunidades indígenas. [A decisão] é importante porque reafirma que esses 30 anos em que os povos indígenas têm reivindicado seus direitos estão garantidos para uma conclusão de processo. Então, a gente espera que eles tão logo retomem a sessão para que se possa dar início à decisão. Como você avalia a forma como o julgamento tem sido conduzido? A gente entende que tem muitas coisas a serem esclarecidas ainda pelas condicionantes que foram colocadas. Mas, a nosso ver, a maioria dos ministros compreendeu a legalidade da demarcação de forma contínua da Raposa. Então, a gente aguarda que haja o mais rápido possível a conclusão. Infelizmente houve o pedido de vista e isso mostra como o Supremo está hoje composto, porque o ministro Ayres Britto insistiu na conclusão, insistiu pela cassação, mas existem muitos pensamentos diferentes ali que querem ditar suas regras, seus entendimentos, dentro de uma decisão que é tão importante. Essa decisão sobre a Raposa Serra do Sol não vai apenas afetar a Raposa, mas outros povos indígenas do Brasil. To-

Alguns índios são favoráveis à presença de brancos na reserva, outros não. No entanto, tem se visto, nos votos do STF, que possivelmente eles serão retirados das terras indígenas. A que se deve a divergência de opiniões entre os índios sobre a permanência ou não dos não-índios na área? A terra é de usufruto exclusivo indígena. Os índios têm como princípio a indisponibilidade dos seus direitos. Alguns índios defendem a permanência dos brancos na reserva porque temem a perda de garantias. Isso mostra que deve haver maior incentivo para programas que supram essas deficiências, que [esses índios] acham que vão perder com a demarcação de forma contínua. Todos os argumentos que nós temos visto dos ín-

dios que se mantêm contra [a saída dos brancos] é o receio de não ter escolas, de acabar com a saúde, de perder emprego. Então esses não são argumentos que a gente vê que condizem com a realidade, são apenas argumentos que são colocados na boca [dos índios] pelos políticos de Roraima, que insistem em afirmar que índios não são cidadãos roraimenses e nem cidadãos brasileiros passivos de direitos e garantias que foram estabelecidos pela Constituição. É obrigação do Estado levar educação, saúde e ajudar a auto-sustentação [dos índios]. A terra é necessária para desenvolver todos esses direitos básicos. É a partir da terra que se desenvolvem outros direitos. São muito fracos, falsos e equivocados os motivos que são apresentados na mídia, em dizer que [os índios] vão ficar isolados, que vão morrer de fome. As comunidades indígenas já têm desenvolvido sua economia, e com bastante sucesso, e hoje não existe esse tipo de problema lá na área. Como você avalia as declarações do prefeito Quartiero que levam ao entendimento de resistência caso sua propriedade seja ocupada por índios? Ele tem ameaçado publicamente as comunidades indígenas, suas lideranças. Isso se torna um caso de polícia, porque ameaças são crimes também e ele deve responder por tais. Eu acho que os órgãos públicos devem tomar providências cabíveis para assegurar a segurança e a proteção lá na área. E isso é mais um motivo para que o Supremo não demore fazer o seu julgamento. O ex-presidente da Câmara Aldo Rebelo criticou os votos favoráveis à demarcação contínua das terras indígenas da reserva, apelando pela integridade dos nãoíndios e protestando contra a decisão de retirá-los, o que, segundo

Quem é Valter Campanato/ABr

PASSADOS 30 anos, a luta dos povos indígenas da Reserva Raposa Serra do Sol pelo direito à terra está próxima de sua vitória. O julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a legalidade da demarcação das terras indígenas assegurou, no último dia 10, o direito dos índios sobre a Reserva, com oito votos favoráveis à demarcação de forma contínua. A finalização do processo, no entanto, se dará somente no próximo ano, devido ao pedido de vista do ministro Marco Aurélio Mello, que afirma necessitar de mais tempo para analisar o caso. O Judiciário encerra suas atividades de 2008 no dia 20 e retorna apenas em 1º de fevereiro de 2009. Os oito ministros que votaram a favor da manutenção da homologação, declarada em 2005, foram Carlos Ayres Britto, relator da ação, Carlos Alberto Menezes Direito, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso e Ellen Gracie. Ainda faltam votar os ministros Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Gilmar Mendes. Durante a votação, foram levantadas algumas condições a serem obedecidas pelos indígenas, sendo que o ministro Menezes Direito apresentou 18 ressalvas. Apesar da decisão final ainda não ter sido declarada, já é certa a permanência dos índios nas terras da reserva, sem alteração de sua área demarcada. O que ainda não ficou determinado pelo Supremo, e que se dará a conhecer após os últimos votos, é a permanência dos nãoíndios nas região. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, a indígena e advogada Joênia Batista de Carvalho (Wapixana de Roraima) explica que o tema é polêmico mesmo entre os indígenas, pois parte deles teme perder algumas garantias com a saída dos brancos da reserva, como infra-estrutura e atendimentos básicos. “Isso mostra que deve haver maior incentivo para programas que atendam a essas deficiências que eles temem perder com a demarcação de forma contínua”, completa.

Nascida e criada na Reserva Raposa Serra do Sol, a advogada Joênia Batista de Carvalho é a primeira indígena a graduar-se em Direito no Brasil. Representante da tribo Wapixana, ela defendeu oralmente a causa dos índios da reserva na tribuna do Supremo Tribunal Federal (STF). Graduada pela Universidade Federal de Roraima, hoje é advogada do Conselho Indigenista de Roraima (CIR).

ele, trata-se de uma ameaça à integridade territorial do país. Assim como ele, os arrozeiros defendem que com a retirada dos não-índios, o território, de fronteira, ficará vulnerável à ação estrangeira. Qual a sua opinião a respeito? Essa já é uma questão superada. O próprio voto do ministro Ayres Britto, que foi bastante fundamentado nessa situação, já demonstrou com argumentos enfáticos que não existe qualquer risco à soberania com a demarcação de terras indígenas na faixa de fronteira. É um equívoco jurídico e político que não condiz com a nossa legislação. A Constituição é bastante taxativa quando fala que princípios constitucionais devem ser considerados e as terras indígenas são patrimônio da União, elas não são patrimônio privado, como os arrozeiros querem que sejam para eles.

Não podemos esperar por esse julgamento para resolver questões básicas, como os problemas do meio ambiente e a questão da segurança. As autoridades devem tomar uma providência em relação a isso É mais fácil você ter políticas públicas como já está assegurado na lei, no próprio decreto de homologação, com a atuação das Forças Armadas, da Polícia Federal e políticas para resguardar o direito público da União do que ter propriedade privada. Então, eu não sei qual o risco. Se eles têm algum indício de risco, que mostrem para as autoridades. Eu acho que eles deveriam estar preocupados mais com a questão de apoio às comunidades indígenas, nos seus direitos e nas suas particularidades. A questão da soberania e o pacto federativo não vão ser feridos, porque o Estado de Roraima vai continuar existindo, as terras indígenas não vão sair do mapa do Estado de Roraima, vão continuar sendo território do Estado de Roraima, agora com seus direitos garantidos e respaldados pelo tribunal maior do país.

Nós estamos vendo que são totalmente incompatíveis esses argumentos que são colocados na mídia e não têm respaldo legal e respaldo constitucional para tentar retalhar a Raposa Serra do Sol, deixando seis arrozeiros que estão lá e contra a permanência dos mais de 19 mil indígenas. Tentam colocar argumentos para a mídia e para a sociedade como se fossem argumentos suficientes para negar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Então, ao meu ver, não procedem, o Supremo já rechaçou cada argumento desses. E, não tendo outro [argumento], há uma tentativa de colocar para o público as opiniões deles [políticos e arrozeiros], que não têm qualquer amparo legal. O ministro Menezes Direito fez 18 ressalvas sobre o uso das terras da Reserva pelos índios. Essas ressalvas são favoráveis ou não para os povos indígenas? A gente vê com muita preocupação algumas dessas ressalvas. Creio que na próxima sessão alguns dos ministros analisem [algumas das ressalvas] porque vão, até mesmo, contra outros reconhecimentos dos povos indígenas. Uma delas, que eu posso citar, é a de negar o direito de consulta e consentimento prévio, livre e formado, das comunidades sobre a aplicação de algumas atuações e projetos. Eu acho que isso deve ser explicado pelo Supremo. E outras a gente entende que já são contempladas pela nossa Constituição, então só reafirmam algumas coisas. Mas, enfim, trata-se de políticas públicas que vão ter que ser reexaminadas, no sentindo de explicar como é que é isso, qual é a permissão que não se dá em terras indígenas, principalmente na questão do usufruto das terras indígenas. Nós estamos bastante ansiosos para ver quais serão as explicações em relação a essas dezoito condicionantes. A homologação da demarcação contínua das terras da Reserva Raposa Serra do Sol pode influenciar os demais processos de demarcação em andamento? Sim. Se é formado um acordo com essas condicionantes que nós acabamos de falar, se é vedada a revisão de demarcação de terras indígenas, se são postas certas restrições à questão de sobreposição de Unidades de Conservação em terras indígenas, então com certeza muitas terras indígenas serão afetadas em suas análises. A gente espera que os ministros estejam atentos quanto a isso. Nós defendemos a questão dos direitos constitucionais, que devem ser interpretados de acordo com os preâmbulos básicos que a Constituição traz, essa que traz a harmonia social, garante que o país seja multicultural, pluriétnico e traz o seu corpo para ser interpretado com esses princípios que relacionam a aplicação dos direitos. O artigo 231 tem que ser interpretado dessa forma para resguardar a diversidade étnica dos povos indígenas e para considerar a forma como vivem, para que assim a gente possa avançar nesse processo. Creio que as 18 condicionantes devem ser interpretadas dessa forma. Existem situações em que terras indígenas estão reivindicando parte de seus territórios há mais de vinte anos – como Pataxó, Guarani. Com essas condicionantes, de vedar a revisão de demarcação das terras indígenas, algumas com certeza poderiam ser prejudicadas.


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Como aproveitar as contradições do capital em tempos de crise? Vivian Neves Fernandes

CONJUNTURA Para João Pedro Stedile, esquerda deve explorar as brechas abertas pela crise e intensificar as lutas sociais

Saída clássica Uma das saídas clássicas do capitalismo para suas crises é a destruição de parte do próprio capital. Isso, claro, gera contradições entre os capitalistas. Numa crise, alguns deles perdem tudo – ou quase tudo – e outros ganham ainda mais. Mas precisam necessariamente destruir capital. As estatísticas apontam que já nas primeiras semanas destruíram 4 trilhões de dólares. Mas alguém pagou. A Sadia perdeu R$ 1,8 bilhão. Mas alguém ganhou. E alguém vai pagar para a Sadia agora, para que ela recupere o lucro. Ela já está transferindo o prejuízo para os pequenos agricultores. Exploração O aumento da exploração sobre os trabalhadores é outra saída para recompor o lucro. No período de transição entre uma crise e uma nova etapa de acumulação, sempre há aumento da exploração. Isso também ocorre entre os países ricos e pobres, com maior transferência de capital da periferia para o centro. Isso se dá, por exemplo, via transnacionais. A GM estadunidense está praticamente quebrada. Um dos motivos pelo qual não fechou é que a GM brasileira transferiu, só nos últimos dois meses, 500 milhões de dólares à matriz. O governo brasileiro se protege dizendo que tem 200 bilhões de dólares de reserva, mas tudo depositado em bancos de Nova York. Se a crise se aprofunda muito, ninguém traz esse dinheiro de volta. Ou seja, os governos também contribuem para a transferência de capital do Sul para o Norte. O dólar é outro mecanismo de exploração. Como os Estados Unidos não têm controle nenhum, a emissão de dólar é um instrumento fundamental de expoliação dos povos de todo o mundo, para manter, inclusive, o padrão de vida de toda classe média estadunidense. Mais-valia social Usando a terminologia marxista, o Estado que recolhe e controla a mais-valia social, obtida por meio dos impostos, transfere parte desses recursos para o capital. Em 1929, o Estado cumpriu esse papel, mas sob influência das idéias keynesianas. Tanto na Inglaterra quanto nos EUA, o Estado capitalista usou essa mais-va-

Manobra judicial O julgamento sobre a constitucionalidade da Reserva Raposa Serra do Sol poderia ter sido concluído no dia 10 de dezembro, já que a maioria dos ministros havia declarado voto a favor da demarcação contínua das terras. Só não saiu a decisão final porque o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, decidiu protelar o julgamento. Está na cara que a manobra favorece os arrozeiros que invadiram a reserva indígena. Vale caído Festejada pela mídia burguesa como exemplo de privatização que deu certo, a ex-Companhia Vale do Rio Doce (agora apenas Vale) não conseguiu escapar da crise econômica que abala os mercados do mundo capitalista: cortou a produção em duas unidades no Espírito Santo e anunciou a demissão de 1.300 trabalhadores, além de colocar outros 5.500 em férias coletivas. Parece que é apenas o começo do ajuste.

Dafne Melo de Guararema (SP) “A CRISE embaralha as cartas, traz componentes que abrem maiores brechas para a luta de classes, a questão é se as classes vão aproveitar esse momento”. A frase é de João Pedro Stedile – integrante da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – em debate com o economista Luiz Filgueiras (cuja análise foi publicada na edição 302), durante a II Plenária Nacional da Consulta Popular. Para Stedile, o próximo período poderá abrir um cenário inédito para a esquerda, mas, para aproveitá-lo, será necessário unidade nas lutas, busca de bandeiras que traduzam um projeto popular para o país e que consigam disputar os anseios do povo brasileiro. Otimista, o dirigente ainda aponta que há outro elemento que torna a conjuntura favorável: a direita dos países centrais e também dos periféricos – onde se encaixa a brasileira –, ainda patina ao tentar achar uma solução para a crise. “Dos governos centrais e seus subordinados na periferia, tudo que se tem visto nas últimas semanas são medidas paliativas. Correm atrás do prejuízo, tirando o saldo do vermelho”. A seguir, alguns dos principais trechos da fala de Stedile.

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Se houver unidade nas lutas, crise pode criar cenário favorável para a esquerda

lia social para programas massivos de emprego e investimento público. Agora, ainda que ressuscitem Keynes para justificar a tese de que Estado tem que controlar a economia, todas as ações que os governos estão tendo são apenas de entrega da mais-valia social aos bancos e empresas. Nunca ficou tão claro o caráter de classe do Estado. Nós deveríamos, como esquerda, como parcela consciente da classe trabalhadora, ajudar a explicar esse caráter burguês do Estado para as massas. Respostas do Estado burguês Dos governos centrais e seus subordinados na periferia, tudo que se tem visto nas últimas semanas são medidas paliativas. Correm atrás do prejuízo, tirando o saldo do vermelho. Mas em nenhum deles há sequer um esboço do que foi o New Deal, do [presidente estadunidense Franklin Delano] Roosevelt. Não há em nenhum deles uma proposta clara para sair da crise, um planejamento. Mesmo as ilusões eleitorais que se criaram em torno do Obama duraram uma semana apenas. Foi só ele começar a montar sua equipe de governo que todos se deram conta de que serão mais 4 anos de governo Clinton. Não terá ousadia de fazer uma política keynesiana. Na prática estamos percebendo que mesmo os governos centrais não têm a direção política desse processo, portanto, não estão tendo a iniciativa hegemônica. Propostas da Alba Quais respostas têm dado os governos da periferia ditos progressistas? Também não há grandes novidades. O [Hugo] Chávez chamou uma reunião extraordinária dos governos da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) e prepararam uma proposta de emergência que será levada na reunião em Salvador, dias 16/17 de

dezembro. A proposta, na minha opinião, é boa, mas é de resistência, não um programa. Se resume em três itens: sair da esfera do dólar, criando uma moeda das Américas; o Banco do Sul, que na prática substituiria o Fundo Monetário Internacional (FMI); e a criação de uma zona econômica comum que gerasse maior independência das economias centrais. Luta de classes no Brasil As crises são momentos que levam necessariamente a um reposicionamento das classes. Abrem as possibilidades para sairmos da pasmaceira em que estamos: descenso de massas e hegemonia total das classes dominantes. A crise embaralha as cartas, traz componentes que abrem maiores brechas para a luta de classes, a questão é se as classes vão aproveitar esse momento. Mas é da natureza política da crise econômica engendrar um reposicionamento das classes. A burguesia brasileira está totalmente dependente do capital internacional e não tem um projeto de saída nacional. Isso é vantagem para nós. Na crise de 1929, a burguesia brasileira soube aproveitar a brecha da crise internacional e apresentou um projeto de desenvolvimento nacional, avançando na construção do modelo de industrialização, ainda que dependente. Agora, a proposta da burguesia brasileira é pagar o prejuízo e se subordinar mais ao capital internacional. Bom para nós, pois não precisamos mais enfrentar um projeto nacional da burguesia. Perspectivas e desafios A crise vai abrir um novo cenário na luta de classes, vai mexer nas peças. Aí vem a pergunta clássica: como aproveitar as contradições do capital? Ou seja, nós estamos diante de uma perspecMarcello Casal Jr./Abr

Para João Pedro, governo só apresenta medidas paliativas

tiva boa, vai mexer, e quando isso acontece, é a hora de entrar em campo. Segundo: a burguesia não tem projeto, e, portanto, está sem discurso unitário, não está conseguindo hegemonizar uma proposta clara para a crise, basta ler os jornais. Cada um dá uma resposta mais estapafúrdia que a outra. Precisamos aproveitar essas brechas para estimular lutas sociais de todo tipo. Ou fazemos isso ou ficaremos excluído da luta de classes, vamos ficar só falando dela. É a luta social que nos permite entrar na luta de classes. Com essa crise, abre-se um espaço para retomar o debate sobre a necessidade de um projeto alternativo para o país, com a vantagem de que agora surgirão contradições nacionais, de soberania do Brasil, de interesses do povo como um todo, e temos que aproveitar essas contradições para transformar essas pautas nacionalistas em antiimperialistas; a vantagem é que a burguesia nacional, que tem hegemonia política, não é nem nacionalista nem antiimperialista. Então, acho que vai se criar um cenário propício para se debater a necessidade de um projeto popular com componentes nacionalistas. Não o projeto de desenvolvimento nacionalista da burguesia, mas nacionalista do ponto de vista de recuperar a soberania do povo brasileiro sobre suas riquezes: petróleo, energia elétrica, terra, alimentos etc. Reascenso O proletariado industrial, parcela mais organizada do ponto de vista econômico e sindical, está anestesiado. Por quê? Três motivos: uma estrutura sindical que engessou a possibilidade de renovação de novos líderes; a base dentro das fábricas é jovem e sem experiência de luta de classes; e porque há o mito Lula, que, do ponto de vista da psicologia social, está no imaginário da classe operária hoje como “um dos nossos lá”. Isso transfere para ele a obrigação de fazer alguma coisa em relação à crise. Mas uma crise prolongada é benéfica para nós. Mudanças podem ocorrer no comportamento coletivo do operariado industrial, que, por suas contradições objetivas do dia-a-dia, aprende muito rápido. A classe trabalhadora ligada à produção reage muito rápido em situações de crise. Portanto, temos que colocar nossas energias nesse setor. Mais do que ficar se lamentando, “os sindicatos são pelegos”, “não têm direção”... Esqueça o sindicato, olhe para a classe. Embora, agora, ela ainda esteja ausente. Nós precisamos urgentemente levar essas informações e esse debate para todos os espaços sociais possíveis e explicar para o povo como a crise vai afetar todo mundo. Mas do que nunca temos que recuperar métodos de agitação e propaganda e chegar com nossa explicação da crise para o povo. Antes que chegue apenas o desemprego e perda de outros direitos.

Lavanderia ativa Detido no aeroporto de Guarulhos (SP) após desembarcar de viagem a Portugal, o empresário Enivaldo Quadrado, sócio da corretora Bônus-Banval, foi flagrado com 361 mil euros (mais de um milhão de reais) não declarados e escondidos nas meias e na cueca. Réu no escândalo do mensalão (2005), ele continua manipulando dinheiro de origem desconhecida. A ação criminosa tem sido premiada no Brasil! Violência policial –1 Casos de violência policial explodem pelo Brasil afora: dia 3, em Goiânia (GO), os ocupantes da viatura 3562, da Polícia Militar, abordaram o catador Daniel Ferreira Barbosa, de 20 anos, e o espancaram para que confessasse o roubo de cartuchos de impressora usados – sem que houvesse qualquer prova contra ele. A tortura foi registrada na 7ª Delegacia de Polícia. Será que os policiais serão punidos? Violência policial – 2 No dia dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, moradores da Maré, no Rio de Janeiro, realizaram manifestação em frente à Assembléia Legislativa e lembraram o assassinato do menino Matheus Rodrigues, morto por policial militar uma semana antes. Participaram vários movimentos sociais populares, vítimas da violência do Estado contra os pobres da cidade e do campo. Até quando? Testemunha especial Em entrevista exclusiva para a revista Caros Amigos de dezembro, o delegado federal Protógenes Queiroz faz inúmeras revelações sobre corruptos e corruptores no Brasil, inclusive sobre decisões altamente suspeitas dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Nada como a veiculação de fatos escabrosos por pessoa que conhece as entranhas do sistema. Tanto é que o STF permanece em silêncio. Espírito Santo Tudo indica que o Espírito Santo está mesmo sendo estigmatizado pela Polícia Federal: a última operação realizada lá foi chamada de Naufrágio, prendeu a máfia das sentenças no Tribunal de Justiça. A operação anterior, em abril, foi denominada de Titanic, e acabou com esquema de importação ilegal de veículos de Ivo Cassol Júnior, filho do governador de Rondônia, que continua foragido. Dinheiro fácil Constituída no dia 8 de outubro, a força-tarefa da ProcuradoriaGeral da União encarregada de combater a corrupção nos órgãos públicos já deu entrada a 372 ações judiciais para recuperar verbas federais desviadas por fraudes que envolvem 1.276 pessoas, sendo 555 empresários, 561 servidores e 233 prefeitos e ex-prefeito. Tudo gente fina. O desvio apurado é superior a R$ 200 milhões. Moratória agora A Rede Latino-americana de Mulheres Transformando a Economia acaba de aprovar, em encontro realizado em Cochabamba, na Bolívia, carta aberta de apoio ao presidente Rafael Correa, do Equador, pela declaração de moratória parcial da dívida externa e a realização de auditoria sobre a origem da dívida. Para elas, o exemplo deve ser seguido pelos demais países da América Latina visando justiça e soberania.


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Movimento contra privatização do petróleo ganha força e radicaliza SOBERANIA Contra leilão da ANP, articulação ampla de movimentos realiza manifestações, greve nacional e ocupa ministério Renato Godoy de Toledo da Redação DE 15 A 18 de outubro, uma articulação entre movimentos sociais demonstrou repúdio às tentativas da Agência Nacional do Petróleo (ANP) de vender, praticamente às cegas, parte das riquezas energéticas do Brasil, sobretudo o petróleo e o gás natural. Neste ano, após a divulgação das descobertas do présal, movimentos se uniram sob o mote “O petróleo tem que ser nosso”. O objetivo comum desse amplo leque de movimentos, que inclui praticamente todos os setores do sindicalismo e os movimentos da Via Campesina, é o cancelamento da 10ª Rodada de Licitações de Blocos para Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural. Pontualmente, a idéia era extinguir esse evento marcado para o dia 18 de dezembro (depois do fechamento desta edição) e, como norte, estancar o processo de entrega do óleo e do gás brasileiro à iniciativa privada. A ANP previa repassar às empresas 30 blocos para pesquisa de petróleo e gás natural, com cerca de 70 mil km² divididos em oito setores: Sergipe-Alagoas, Amazonas, Paraná, Potiguar, Parecis, Recôncavo e São Francisco. A Federação Única dos Petroleiros (FUP), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) aprovaram uma jornada de lutas que continha uma paralisação nacional dos petroleiros no

dia 16 de dezembro e mobilizações em frente à sede da ANP, no Rio de Janeiro, e diante do Ministério das Minas e Energia (MME), em Brasília. Até o fechamento desta edição, a greve de 24 horas dos trabalhadores do Sistema Pe-

“A Lei do Petróleo de 1997 é uma lei entreguista. Infelizmente, o governo Lula está entregando o petróleo também, porque segue a mesma lei do FHC”, lamenta Antônio Carlos Spis, petroleiro e membro da executiva nacional da CUT trobras vinha obtendo sucesso nas principais refinarias e terminais da empresa. Entre paralisações totais, parciais e ausência de troca de turno, o movimento teve adesão em Minas Gerais, Paraná, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Santa Catarina e Rio Grande do Norte . No dia 15, cerca de 300 manifestantes ocuparam a sede do MME e conseguiram uma audiência com o secretário-executivo do Ministério, Marcio

João Zinclar

Zimmermann, e com o secretário de Petróleo e Gás do governo federal, José Lima Neto. Objetivos

De acordo com Antônio Carlos Spis, petroleiro e membro da executiva nacional da CUT, o objetivo do movimento é criar um novo marco regulatório, substituindo a Lei do Petróleo de 1997, ratificada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A principal crítica do petroleiro à legislação é que ela considera o óleo como patrimônio da União enquanto está no subsolo brasileiro. No entanto, ele pertence, posteriormente, à empresa que o extrair. “Isso é um absurdo. É uma lei entreguista. Infelizmente, o governo Lula está entregando o petróleo também, porque segue a mesma lei do FHC”, lamenta. Spis defende a suspensão dos leilões para que especialistas possam analisar melhor a quantidade de riquezas no subsolo, “sobretudo em um momento de grandes descobertas”. “Qualquer país sério do mundo faria isso. Nossos geólogos não têm a real noção da quantidade de petróleo que existe em algumas áreas leiloadas. As empresas transnacionais iriam entender se o governo suspendesse para avaliar. E se não entendessem, danem-se”, enfatiza. O petroleiro afirma que, com esse leilão “às cegas”, uma empresa pode pagar um preço baseado numa quantidade estimada de barris e deparar-se, quando da extração, com um número infinitamente maior.

Ato contra os leilões da ANP realizado na Refinaria do Planalto Paulista (Replan), em Paulínia (SP)

ANP não atende aos interesses da sociedade, diz Metri da Redação Diante da venda iminente de parte das reservas energéticas brasileiras, cresce o repúdio de movimentos sociais e especialistas com visões nacionalistas sobre o papel da Agência Nacional do Petróleo (ANP) e do governo brasileiro. Para Paulo Metri, conselheiro do Clube de Engenharia, a agência, tal como as outras criadas após as privatizações, atendem a interesses alheios às demandas da população. Confira entrevista abaixo. Brasil de Fato – A perda da União deve ser ainda maior em função do baixo preço do barril de petróleo. Ou seja, os compradores pagarão menos pelas áreas?

Paulo Metri – Sim. Para fixar os valores a serem ofertados nos leilões, os compradores constroem fluxos de caixa com investimentos, receitas, custos, risco geológico etc. Se o preço do petróleo está baixo, a receita esperada será mais baixa. Esses blocos que serão leiloados têm petróleo de baixa qualidade?

Serão leiloados na 10ª rodada, campos maduros e áreas de novas fronteiras. Os campos maduros tendem a produzir petróleo de baixa qualidade. Nas novas fronteiras, se ocorrer petróleo, não se sabe a priori sua qualidade.

Quantos barris, em estimativa, podem ser extraídos na área em leilão?

Ninguém tem esta resposta, mesmo como estimativa. Mas não é um novo pré-sal. Qual a sua avaliação sobre a postura da Agência Nacional do Petróleo nesse processo de venda do óleo. Por que leiloar neste momento?

A ANP, como outras agências reguladoras, foi dominada – ou “cooptada”, uma maneira de dizer a mesma coisa de forma mais branda – pelos grupos econômicos do setor. No caso da ANP, pelos grupos econômicos estrangeiros do setor. Assim, a ANP não procura atender aos interesses da nossa sociedade, mas, aos interesses dos grupos petrolíferos estrangeiros. Não há nenhum interesse da sociedade brasileira que justifique a 10ª rodada. (RGT)


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Por que devemos apoiar Cesare Battisti ANÁLISE Na verdade, o pedido de extradição de Cesare Battisti é mais uma grande articulação da ultradireita européia (pelo menos italiana e francesa – Berlusconi e Sarkozy) no sentido de se fortalecer e construir governos/Estados ultracentralizados Rui Martins de Berna (Suíça) HÁ QUASE dois anos, o italiano Cesare Battisti está preso no Brasil. Há duas semanas, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) recusou conceder-lhe a condição de refugiado. Na semana passada, a Comissão Executiva Nacional do PT adiou uma decisão quanto a uma extradição ou não de Cesare Battisti, reclamado pela Itália, acusado de ter cometido, há 30 anos, quatro assassinatos, quando membro de um grupo de extrema esquerda, e condenado, à revelia, à prisão perpétua. O destino de Cesare Battisti está agora nas mãos do ministro da Justiça, Tarso Genro, ao qual cabe tomar uma decisão no recurso impetrado em favor de Battisti contra a decisão do Conare. Para interceder por Battisti junto ao ministro, em nome dos europeus reunidos em comitês de apoio, está em Brasília a escritora francesa Fred Vargas, que vem financiando o pagamento da defesa de Cesare Battisti. Uma extraordinária campanha promovida pelo governo italiano ignorou as condições em que se desenrolou o processo, sem presença do acusado, e procurou transformá-lo num simples criminoso de direito comum. Essa campanha, no Brasil, acabou conquistando a revista Carta Capital, cuja matéria parcial parecia ditada pela embaixada italiana em Brasília. Na França não foi muito diferente: o jornal Le Monde e a revista Nouvel Observateur deixaram de apoiar Battisti, enquanto o Partido Socialista, em plena crise e num acesso de covardia, preferiu evitar pronunciamentos com receio do tema ser impopular, mesmo tendo sido o ex-presidente François Mitterrand o primeiro a proteger Cesare Battisti. Por que a Itália se lembrou de Cesare Battisti, que, depois de mais de vinte anos de fugas, vivia tranqüilo em Paris, misto de escritor de romances policiais com zelador de imóvel para sobreviver? Por que a França, que já havia dado acolhida a Battisti sob o governo François Mitterrand, decidiu reabrir a questão?

O destino de Cesare Battisti está agora nas mãos do ministro da Justiça, Tarso Genro, ao qual cabe tomar uma decisão no recurso impetrado em favor de Battisti contra a decisão do Conare Cesare Battisti é apenas um bode expiatório, cujo sacrifício é pedido por interesses políticos da direita, num momento de covardia generalizada do socialismo francês, enfraquecido por suas lutas internas. Ao exigir a extradição dos italianos perdoados por Mitterrand, em 2004, a Itália se aproveitava da derrota dos socialistas e da chegada ao poder de Jacques Chirac. A questão já estava praticamente encerrada, Cesare Battisti vivia legalmente em Paris com um título de residência permanente e estava prestes a obter a nacionalidade francesa. Entretanto, o governo Chirac aceitou reabrir o caso para mostrar ao eleitorado de direita que não trilhava o mesmo caminho de seu antecessor socialista em matéria de anistia política. Houve também promessas de vantagens comer-

CMI Brasil

ciais para a França por parte do governo italiano. Assim, o tribunal de apelação de Paris seguiu as decisões políticas do novo governo de direita e, em lugar de promover um novo processo ou rejeitar o pedido de extradição de Battisti, preferiu aceitar o julgamento feito na Itália, sem levar em conta como se efetuara.

Uma extraordinária campanha promovida pelo governo italiano ignorou as condições em que se desenrolou o processo, sem presença do acusado, e procurou transformá-lo num simples criminoso de direito comum Isso foi considerado uma aberração jurídica, à qual se seguiram diversas violações ditadas pelos interesses políticos daquele momento. Assim, houve a violação do direito de asilo concedido pela França de maneira tácita aos refugiados italianos fazia 20 anos, e também a violação da palavra do presidente Mitterrand em 1985, em termos públicos e noticiada pela imprensa. Houve igualmente violação da declaração escrita do primeiro-ministro que autorizou a entrega a Battisti de um documento de permanência válido por dez anos, ao qual se segue a naturalização do beneficiado. No mais, houve infração à Convenção Internacional dos Direitos da Criança, pois se ignorou a existência de duas crianças francesas filhas de Battisti, nascidas em Paris, e que seriam privadas do pai no caso de sua extradição. Como todos os golpes são permitidos, é com ironia que a escritora Fred Vargas fala numa de suas entrevistas, na França: “no Brasil, não se extradita ninguém por crime político, então a Itália faz todo o possível para explicar agora que Battisti é culpado de crimes de direito comum”. Da França para o Brasil Pouco antes da decisão judicial francesa que o extraditaria para a Itália, onde iria apodrecer na prisão se não fosse morto, Cesare Battisti, que já havia fugido no passado da Itália para o México, retomou sua vida de foragido e acossado, conseguindo chegar até o Brasil. Embora se julgasse em paradeiro desconhecido, os defensores franceses de Battisti afirmam que a polícia francesa sabia onde ele se escondia, e o então ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, preferiu adiar o pedido de sua prisão ao Brasil para a época das eleições, o que de fato ocorreu, afim de reforçar sua candidatura à presidência. A prisão ocorreu pouco antes das eleições presidenciais francesas, no momento em que Battisti ia receber uma ajuda em dinheiro para sua sobrevivência, enviada pelo comitê que o apóia na França. Um ano depois de preso, o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, deu parecer favorável à extradição, aceitando a argumentação do governo italiano de que Battisti cometeu crimes de direito comum e não político, sem entrar no mérito do próprio julgamento italiano, considerado por tantos juristas europeus como um simulacro de julgamento.

Marcello Casal JR/ABr

A decisão sobre o futuro de Cesare Battisti (à esquerda) está nas mãos do ministro Tarso Genro

Na verdade, alguns membros arrependidos do movimento de extrema esquerda do qual participava Battisti, aproveitando-se de sua fuga, jogaram sobre ele todos os crimes cometidos pela pequena organização, acusações aceitas pelos juízes, muitos deles ainda hoje no Judiciário e desejosos de que o caso seja logo liquidado com a extradição de Battisti, para não serem le-

vantadas as irregularidades processuais cometidas durante o julgamento do processo. O Conare seguiu o parecer do procurador-geral e negou o refúgio humanitário a Battisti, e assim o Brasil – que no passado acolheu o colonialista francês Georges Bidault, o salazarista português Marcelo Caetano e o ditador-general paraguaio Alfredo Stroessner – pôde rejeitar o pedido

de um combatente de esquerda que nega os crimes que lhe são imputados pela Justiça italiana Na verdade, o único processo efetivo contra ele foi o de ter pertencido a uma organização extremista de esquerda, pelo qual cumpria pena na Itália, até sua fuga para o México. A condenação por crimes a partir de denúncias de “arrependidos” foi feita à revelia (sem

sua presença), e duas acusações parecem obviamente absurdas, pois tratam de dois crimes cometidos no mesmo dia em lugares distantes 500 quilômetros um do outro. Circulam rumores na imprensa francesa de que teria havido um acordo entre Brasil e Itália-França, pelo qual entregaram o banqueiro Savaltore Cacciola para terem em troca Cesare Battisti.

Em filme, a atualidade européia do caso Divulgação

de Berna Existe uma atualidade européia envolvendo o caso Cesare Battisti. É recente a projeção do filme alemão Der Baader Meinhof Komplex, narrando em duas horas e meia as ações da Fração Armada Vermelha (RAF) na Alemanha, que antecederam a Ação Direta italiana, movimentos da extrema esquerda que adotaram métodos terroristas. Andreas Baader, Ulrike Meinhof e Gudrun Ensslin (os mais destacados dirigentes da RAF) tipificavam, na Alemanha dos anos 70, um movimento de rebeldes com uma causa, diferente dos rebeldes sem causa do hollywoodiano Juventude transviada, estrelado por James Dean nos anos de 1950, sobre uma juventude desnorteada do pós-guerra. Não se pode também esquecer que a vitória de Fidel Castro contra o ditador cubano Fulgencio Batista, contando com um pequeno grupo de jovens armados e decididos a jogar suas vidas em troca do ideal de um novo mundo, marcou os anos de 1960. E que a participação nesse grupo de libertadores do médico argentino Che Guevara, transformado na figura mítica de um revolucionário, iria fazer a cabeça de muitos jovens decididos a mudar o mundo, para evitar que um novo nazismo ou fascismo aparecesse e em favor de um mundo mais solidário, mais justo, sem desigualdades sociais e de oportunidades iguais para todos. Todos podiam sonhar, e alguns sonhavam à moda dos cavaleiros andantes. Nos anos de 1960 soprava um vento violento, pregavase a violência, acreditava-se que apenas com as armas seria possível mudar um mundo que mantinha seu status quo através das mais cruéis intervenções militares e golpes de Estado: a invasão da Baía dos Porcos, a guerra no Vietnã e em todo o Sudeste Asiático, e os golpes no Cone Sul da América Latina são apenas os exemplos mais conhecidos da agressividade

com que as elites internacionais buscavam defender e ampliar seus privilégios históricos, esquecendo-se irresponsavelmente que a violência engendra a violência. Nosso próprio “cardeal vermelho” Hélder Câmara, de uma Igreja hoje já quase não mais existente, frágil e franzino, denunciava a violência da fome e da miséria. O cineasta argentino Fernando Solanas, recentemente candidato à presidência do seu país, com seu filme La Hora de los Hornos, apelava – por sua vez – naquele passado recente, para o uso da violência contra o imperialismo estadunidense. Mesmo no interior dos EUA, se por um lado o pastor Martin Luther King pregava a resistência pacífica para a conquista dos direitos civis, no outro extremo do movimento negro, os Panteras Negras tinham como palavra de ordem o “Burn, Baby. Burn, now”, que conduziu aos incêndios de bairros inteiros. Os alemães Andreas, Ulrike, Gudrun e seus compa-

nheiros eram crianças filhas da guerra, primeira geração depois da catástrofe de Hitler e das bombas atômicas lançadas pelos EUA contra Hiroshima e Nagazaki. Assustadas com a ocupação estadunidense da então República Federal da Alemanha (RFA), que se mostrava conivente e cúmplice dos sobreviventes do nazismo, e temendo uma forma de neofascismo, entenderam que essa ordem deveria ser combatida a todo custo. Queriam uma sociedade mais humana. No entanto, se perderam na escolha do caminho, que os levou à ruína e à própria morte. Mortes numa prisão de segurança máxima, e nunca suficientemente esclarecidas – quem assitiu ou vier a assistir o filme Anos de chumbo, da cineasta alemã Margrethe Von Trotta (1982), tem a perfeita noção do que pode ter acontecido. Do mesmo modo, quem se detiver na obra de um outro cineasta da antiga RFA, Fassbinder, conhecerá como se dava, como se concretizava, durante a ocupação e ime-

diatamente depois do fim da 2º Guerra, o conúbio entre os Governos da Casa Branca e os herdeiros de Hitler. O mesmo ocorreu na Itália com a Ação Direta e com outros grupúsculos da extrema esquerda. Mas o tempo passou, as ilusões se desfizeram, surgiu também uma nova consciência, segundo a qual as reformas sociais, para poderem perdurar e serem justas, precisavam ser obtidas pacificamente. O fato é que muitos daqueles jovens que nos anos 1960-1970 partiram para o confronto direto e de armas em punho foram mortos, apodreceram ou estão apodrecendo na prisão, enquanto seus temores premonitórios, infelizmente, parecem tomar corpo e sorrateiramente ameaçar toda a sociedade em escala mundial. As novas tecnologias desenvolvidas a partir de então – muitas vezes anunciadas e apresentadas como “o progresso” – não favorecem o ideal de um mundo mais justo. Ao contrário: foram usadas para uma concentração cada vez maior das riquezas produzidas, gerando um processo que se propõe à uniformização do pensamento, numa sociedade onisciente e facilmente controlável, governada por desumanas megaempresas multinacionais. Cesare Battisti, o jovem militante de um movimento italiano inspirado pela violência de sua época, não existe mais. Aliás, mesmo que não houvesse mudado sua visão de como transformar o mundo, na sua sina de fugitivo já haveria pago à sociedade os excessos de que foi acusado, se é que os cometeu. O Cesare Battisti que pede asilo no Brasil é, como tantos membros dos sucessivos governos e dos parlamentos que sucederam a ditadura em nosso país, um cidadão que prossegue em sua busca de transformações sociais em direção a um mundo mais justo, agora, porém, pelas vias institucionais. Um cidadão casado, com duas filhas adolescentes. Apenas isso. (RM)


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Sobrevivente do ataque colombiano ao acampamento das FARC volta ao México BOMBARDEIO Depois de longos meses de espera na Nicarágua, a estudante da UNAM Lucía Morett volta para seu país Anna Feldmann e Waldo Lao DEPOIS DE longos meses de espera em Manágua, capital da Nicarágua, a estudante da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) Lucía Morett Álvarez finalmente voltou ao México. A jovem de 27 anos é

a única sobrevivente mexicana dos ataques ocorridos em março na chamada operação Fénix, realizada pelo Exército colombiano contra o acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) no território equatoriano. No episódio, morreram 21 guerrilheiros, 4 estudantes mexicanos – Verónica Nata-

lia Velázquez Ramírez, Juan González del Castillo, Sorén Ulises Avilés Ángeles e Fernando Franco Delgado –, e mais o porta-voz e assessor do Bloco do Sul das FARC, Raúl Reyes. Lucía regressou ao seu país na companhia dos legisladores mexicanos ligados ao Partido Revolucionário Democrático (PRD) Isidro Pe-

draza Chávez, José Antonio Almazán González e Aleida Alavez Ruiz, na intenção de protegê-la de qualquer detenção. Isso porque a Procuradoria Geral da República acolheu pedido da organização mexicana “Melhor sociedade, Melhor Governo”, ligada a setores de ultra direita, que acusa a estudante pela prática de terrorismo.

Em sua chegada, Lucía disse que não cometeu nenhum delito, “nem tenho porque me esconder de nada”. E completou: “Vou multiplicar por cinco minhas forças, uma por cada um de meus amigos mortos e outra por mim, para que sejam culpados os verdadeiros criminosos. Porque neste dia 1º de março se come-

teram muitos delitos e deve haver justiça”. Em suas falas, a estudante ainda ressaltou a postura omissa do presidente mexicano Felipe Calderón, que não emitiu nenhum pronunciamento na ocasião da morte dos colegas após o massacre. Leia abaixo um relato produzido pelo diário mexicano La Jornada.

“Os militares colombianos executaram vários feridos. Eu ouvi tudo...” Reprodução

do La Jornada Vero e Lucía adormeceram, vencidas pela longa caminhada na selva. De repente, Lucía despertou bruscamente em meio a um tremor, um estrondo, um estampido horrendo. Olhou em volta. Uma árvore incendiava-se diante dela. Estendeu então o braço para chamar a companheira, mas não havia ninguém. “Teria sido um raio?”, pensou. Novo estrondo, mais fogo. “Eu gritei: “Verónica!”, mas ninguém respondeu. Ainda hoje não entendo o que houve. Por que ela morreu e eu escapei? Será que ela levantou-se à noite e não estava ao meu lado quando o bombardeio começou? Ou a força da explosão a teria arremessado longe?” Esse é o relato de Lucía Morett Álvarez durante o vôo que a trouxe de volta da Nicarágua ao México, com escala em El Salvador. Há cerca de oito meses, em abril, ela teve que pedir proteção ao governo de Manágua pela ameaça de uma ação penal pelo crime de terrorismo, denúncia acatada pela Procuradoria Geral da República. México “Não, não cometi qualquer delito nem tenho por que esconder-me de ninguém”, fez questão de dizer. A aeronave já sobrevoava a fina nuvem cinza que cobria a Cidade do México. Já não era a voz quebrantada de alguém que a todo momento parecia querer desabar em prantos. “Eu é que sou a vítima. E vou quintuplicar minhas forças, em nome de todos os meus amigos mortos e também por mim, para que se descubra quem foram os verdadeiros criminosos. Nesse 1º de março se cometeram muitos crimes e precisa haver justiça”.

Alguém muito perto de mim gritava horrivelmente, pois estava morrendo. Depois veio o silêncio. Demorei a ouvir a tropa se aproximar, disparando como sempre. Fechei os olhos com força e fiquei imóvel, quieta, fingindo-me de morta Ao sair da Nicarágua, finalmente a jovem universitária decidiu falar em detalhes sobre o ocorrido no acampamento em que morreram mais de 23 pessoas – entre elas quatro mexicanos e o número 2 das Farc, Raúl Reyes. Antes, em Manágua, ela havia acatado uma condição das autoridades locais, que lhe deram proteção com a condição de que se manti-

Lucía Morett (à esquerda) concede entrevista em Manágua; na outra ponta, Daniel Ortega, presidente da Nicarágua

vesse a discrição. Na véspera da viagem, o responsável por acolhê-la, Rafael Ortega, filho do presidente Daniel Ortega, a proibiu de conceder uma entrevista solicitada por este diário. Naquela noite, relata, não se deu conta inicialmente de que estava ferida. “Sentia a calça rasgada e quente, molhada. Vi que era sangue, mas não doía. Porém, não podia me levantar nem me movimentar. Lembro que também caíram coisas em mim e mesmo no meio do bombardeio fiz tudo para me tranqüilizar. Ouvia os aviões passarem, uma, duas, várias vezes. Coloquei uma mochila sobre a cabeça e conferia as luzinhas do meu relógio, minuto a minuto: à meia-noite e meia já haviam passado 10 minutos, meia hora. Minha esperança era o amanhecer, e intuí, não sei como, que não ia morrer. Pensava que Verónica ainda estaria por ali e de repente me passou pela mente que dali a pouco nós duas acordaríamos do pesadelo. Às 3 horas os aviões voltaram, fizeram um novo bombardeio. Foi então que lamentei não ter me afastado dali, ainda que fosse me arrastando. Bem, foi aterrorizador. Depois ouvi alguns helicópteros que varriam a zona com vários disparos. Alguém muito perto de mim gritava horrivelmente, pois estava morrendo. Depois veio o silêncio. Demorei a ouvir a tropa se aproximar, disparando como sempre. Fechei os olhos com força e fiquei imóvel, quieta, fingindo-me de morta. No meio do tiroteio alguém gritou: ‘Estou ferido, ajuda!’. Depois vieram mais tiros e só. Mais nada. Por isso eu digo que os militares colombianos executaram vários feridos. Eu ouvi tudo”. Lucía tremia da cabeça aos pés, mas já havia começado a falar durante uma escala no aeroporto salvadorenho, e daí em diante não parou. “Um dos soldados disse: aqui tem uma fêmea, está viva. Era eu. Me rodearam e um deles me advertiu: Não se mova,

“No meio do tiroteio alguém gritou: ‘Estou ferido, ajuda!’ Depois vieram mais tiros e só. Mais nada. Por isso eu digo que os militares colombianos executaram vários feridos. Eu ouvi tudo” somos do exército colombiano e você está na nossa mira. Não tente nada, levante os braços e solte a arma”. Tratamento dado Dias depois o ministro da Defesa da Colômbia, Juan Manuel Santos, exibiu um vídeo sobre a operação Fénix. As imagens, feitas com uma câmera de visão noturna, mostraram Lucía jogada no chão, rodeada de soldados que a interrogaram e deram-lhe os primeiros socorros. O objetivo do governo colombiano era mostrar que ofereceu “auxílio humanitário” à sobrevivente mexicana. Como ela tinha as mãos amarradas à frente do corpo, Santos espertamente declarou à imprensa,

no vídeo, que os guerrilheiros a teriam amarrado. “É mentira, quem me amarrou foram os militares colombianos. Me fizeram perguntas, sobretudo relacionadas a Reyes. Não acreditaram quando eu disse que nada sabia, que era civil e tinha chegado um dia antes. Me chamaram de mentirosa e me ameaçaram. Quando me revistaram, disseram que eu tinha feridas de estilhaços, mas eu nem sabia o que era isso”. No alvorecer, Lucía pôde ver que o lugar onde estava fora torrado, que a floresta ao seu ao redor virara uma massa cinzenta e fumegante de galhos mortos. Quase às seis da manhã chegaram outros homens com um uniforme difeReprodução

Lucía repousa em cama de hospital em Quito, capital equatoriana

rente. “Se você ficar com eles, nós vamos embora”, disseram os soldados. Os recémchegados eram da polícia colombiana. Puseram-na sobre uma maca improvisada para transportá-la, segundo eles, até os feridos. Mas no trajeto só viu cadáveres. Alguns policiais aproveitaram para furtar relógios, revistando corpos e outros pertences de valor. Viu tudo aquilo com indignação, até que lhe mostraram o corpo de uma mulher com roupas íntimas. Tinha vários disparos na costas. Perguntaram se a conhecia. “Me deixaram a 10 metros desse cadáver”. Um pouco mais longe viu uma moça gravemente ferida. Soube, depois, que era a colombiana Marta Pérez. As horas se passaram. Lucía pôde ver como dos helicópteros desciam macas e subiam cadáveres, dois ou três, não pôde precisar. Enquanto isso os uniformizados continuavam as perguntas e negavamlhe água, apesar do sol já alto. Formigas começaram a subir pelos seus braços e pernas ensangüentados. Os homens a despiram para trocar-lhe a roupa, em meio a um agressivo assédio sexual. Depois do meio-dia, depois de várias trocas de mensagens via rádio, ficaram nervosos. “Limpem as pegadas, vamos embora daqui!”, foi a ordem. “Eu me angustiei muito. Se nos deixassem ali, como sobreviveríamos? Eu disse que tinham que nos tirar dali, mas nem fizeram caso. Preferiram levar alguns cadáveres, como troféus. Depois nos abandonaram”. Eram 3 horas da tarde do 1º de março. Essa era a guerra Naquele momento Lucía se deu conta da gravidade de suas feridas. A roupa estava embebida. Pôs um lençol sob o corpo, que em poucos instantes também estava embebido em sangue. Os cadáveres em seu redor começaram a inchar. “As moscas, formigas, os urubus. E um odor putrefato que me dava repulsão e pena ao mesmo tempo, pois

sabia que aqueles eram meus companheiros. Sobre Juan, tinha certeza que havia morrido porque os soldados me mostraram a sua credencial e também me disseram. Achei que tinha visto Fernando entre os cadáveres, mas tinha certeza. Sobre Vero e Soren eu não não sabia nada.” Passaram-se várias horas antes que voltassem a escutar o barulho de outros helicópteros. Seus ocupantes sobrevoavam sem ver os dois sobreviventes. Lucía, como pôde, ajoelhou-se e agitou uma camiseta. “Eu sabia que, se eles fossem embora, nós morreríamos”. Em poucos instantes, porém, apareceram novos soldados entre as ruínas. Tinham nos uniformes as insígnias do Exército do Equador. “O tratamento foi outro. Improvisaram umas cabanas para proteger-nos do sol, nos deram água, deram-me a minha mochila onde tinha uma bebida energética. Já escurecia quando um enfermeiro fez os primeiros curativos. Outro jovem soldado passou a noite a meu lado, segurando a minha mão e sustentando-me psicologicamente, falando de qualquer coisa, de esportes, da sua mulher, tudo para dissipar o meu absoluto terror.”

“Eu me angustiei muito. Se nos deixassem ali, como sobreviveríamos? Eu disse que tinham que nos tirar dali, mas nem fizeram caso. Preferiram levar alguns cadáveres, como troféus. Depois nos abandonaram.” Eram 3 horas da tarde do 1º de março Amanheceu o segundo dia de Lucía na selva. “Os soldados buscaram minhas coisas, uns bonecos de artesanato que eu tinha comprado, minha mochila, um embornal. As únicas coisas que não apareceram foram o meu passaporte e o meu dinheiro. Mas eu não queria nada disso, só que me tirassem daquele lugar. Quando estávamos a ponto de ir embora, encontraram outro ferido ali perto. Mas estava muito mais grave, com as duas pernas destroçadas. Era Doris Torres, a mais jovem. Estava amarrada. Então começamos um caminho muito difícil, por dentro da selva, para alcançar os helicópteros. Os soldados tinham umas insígnias brancas no braço para identificálos como resgatadores. Curiosamente, foi esse detalhe que me fez tomar consciência de que havia uma guerra. Que eu estava em uma guerra!”


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A um passo do fim do analfabetismo José Lirauze/ABI

BOLÍVIA Com a ajuda de Cuba e Venezuela, governo do presidente Evo Morales anunciará, no dia 20, que no seu país todos sabem ler e escrever

famílias sacrificaram as meninas para que os meninos estudassem. Agora, há um incentivo para que as mulheres ingressem os estudos. O programa é apoiado até por prefeitos que não são da “base” do Evo? Como é isso?

Fernanda Chaves Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)

Brasil de Fato – Como funciona o programa Yo, sí puedo? Como foi aplicado na Bolívia?

Javier Labrada Rosabal – Na Bolívia, foi iniciativa do presidente eleito. Em Havana, antes de tomar posse, Evo Morales firmou um convênio com o então presidente cubano Fidel Castro para o projeto de desenvolvimento do programa nacional de alfabetização em seu país. No último dia da campanha presidencial de Evo, um jornalista perguntou a ele: “para que o senhor quer ser presidente?”. Ele respondeu: “para muita coisa, mas, principalmente, valorizar o meu povo”. Essa era sua máxima aspiração. Então, em Cuba, em dezembro de 2005, em sua primeira viagem como presidente eleito, o governo cubano se comprometeu a desenvolver e enviar todo material didático necessário e também a assessoria para a implementação. Um mês depois, na Bolívia, desenvolvemos junto com Evo, a partir de suas orientações, os moldes do programa, que foi lançado em março de 2006. Quais sãos os fatores fundamentais dessa campanha?

Javier – Em primeiro lugar, a vontade política do presidente. Em mais de 500 anos de existência da Bolívia e quase 200 de Bolívia republicana, nunca nenhum governo havia implantado, como política, uma campanha de alfabetização. Aqui, houve algumas tentativas, inclusive através de ONGs, mas nunca se consolidou uma verdadeira política como agora. Se houve vontade política, Evo é o fator decisivo neste processo. E as particularidades da Bolívia?

Javier – Em relação à Venezuela e à Bolívia, que são casos mais recentes (o primeiro declarou-se livre do analfabetismo em 2005, o segundo, declarará no dia 20), o trabalho é fruto de presidentes comprometidos com seu povo, que interpretam as reais necessidades dele ou que vêm de famílias extremamente humildes. E cumprem o que prometeram em suas campanhas. Esses também são fatores importantes. Mas o principal fator é o político. Outro ponto decisivo foi a maneira como o povo boliviano se assumia na campanha, o que permitiu a conformação das comissões de alfabetização em todos os níveis. É um

Boliviana comemora a erradicação do analfabetismo do departamento de La Paz

fenômeno social muito complexo que não aconteceria sem a força de muitos. Desse modo, a Bolívia está enfrentando o analfabetismo, com 60 mil bolivianos atuando como facilitadores e supervisores. Aí está o protagonismo principal. A força é dos bolivianos. Nós trazemos o método, ajudamos metodologicamente, organizativamente, através da experiência que já temos, mas o recurso humano principal é o boliviano. Aqui somos 128 cubanos e 47 venezuelanos ajudando a implementar o programa. Somente nós não teríamos como promover a alfabetização. Impossível. O êxito do projeto se deve claramente à inclusão cidadã e também à adesão de todos os municípios, incluindo seus prefeitos, que apóiam o programa – até mesmo os que não simpatizam com o governo. Isso é muito importante dizer. É um programa humano, educativo, que não tem a ver com assuntos políticos internos.

Javier – O maior inimigo do programa é a pobreza. O problema número um do analfabeto não é não saber escrever, é ter que dar o sustento para sua família. Portanto, deve-se ser flexível para que todos tenham condições de comparecer. A outra chave é que o programa é alfanumérico, o que é atraente. Então, o fator audiovisual, combinando letras e números, é altamente exitoso. Os iletrados conhecem bem os números, pois compram e vendem, e vão aprendendo a associar a letra ao número. Em três ou quatro meses, a pessoa está alfabetizada, dependendo da condição do participante. Há também o programa voltado para os portadores de necessidades especiais, como surdos-mudos. Há o método em braile também, para os cegos. Esse foi um aporte venezuelano. Os resultados são muito bons. O senhor pode explicar melhor essa adaptação para as línguas indígenas?

Javier – Reunimos pedagogos cubanos e bolivianos em uma comissão conjunta para desenvolver o programa voltado para as culturas aimara e quéchua. Compatibilizamos as cartilhas desses idiomas com a do castelhano. A partir daí, fomos encontrando soluções, por exemplo, para o caso do aimara, que só tem três vogais. Os especialistas nesse idioma buscaram essa solução. Selecionamos possíveis professores, fizemos várias etapas de capacitação e preparação e os levamos a Havana, já com os textos prontos, compatibilizados, e confeccionamos as fitas cassetes, que, depois, foram enviadas para a Bolívia, juntamente com as cartilhas.Gravamos os programas em Cuba, mas os professores que aparecem no vídeo são bolivianos. Os facilitadores, que reproduzem os programas e se responsabilizam pelas classes, são pessoas da própria comunidade, alguns professores, alguns jovens universitários, outros são oficiais do exército... Onde há predominância de línguas nativas, temos facilitadores que domina o idioma local. A maior parte se alfabetiza em castelhano, mas temos um conjunto da população que optou por ser alfabetizado em seu idioma original: 13 mil pessoas em quéchua e 25 mil em aimara. Assim, chegamos a toda a Bolívia, ponto a ponto. Incluindo lugares em que não há energia elétrica.

Em quantos países se desenvolve o método Yo, sí puedo?

Javier – O programa está presente em 28 países do mundo. Nós temos o método Yo, sí puedo em vários idiomas: em inglês, em mauí (para a Nova Zelândia), em por-

Usamos a televisão para transmitir conhecimento e cultura, não da forma como ela é usada freqüentemente nos países capitalistas, para formar o desejo consumista na população tuguês (estamos aplicando em alguns lugares do Brasil, como Piauí), em creole (para o Haiti) e, aqui na Bolívia, aplicamos nos idiomas indígenas aimara e quéchua, além do castelhano convencional. Temos a preocupação fundamental de não só respeitar, mas fortalecer as tradições culturais de cada país. É um método flexível, porque se adapta à condição do participante, e também é altamente atrativo, porque usa a televisão. Usamos a televisão para transmitir conhecimento e cultura, não da forma como ela é usada freqüentemente nos países capitalistas, para formar o desejo consumista na população. Através dela, o programa vai até onde está o participante. No mercado, no campo, na comunidade... Geralmente, quais dificuldades são enfrentadas?

Como, se é por televisão?

Javier – Com a cooperação

de Venezuela e Cuba, instalamos 8.350 painéis de energia solar, num esforço tremendo, atravessando rios, estradas... esse país é imenso. Tem altiplano, vales, amazônia, é muito diverso. Mesmo assim, triunfamos na diversidade, adaptamos o método às características das regiões, obviamente com toda a ajuda dos facilitadores e das próprias comunidades. É uma missão, sobretudo?

Javier – Nós, professores cubanos e venezuelanos, estamos numa missão internacional. Aprendemos muito com o povo boliviano e ainda há muito o que aprender sobre a Bolívia. Nos sentimos honrados de estar aqui agora, de auxiliar esse desenvolvimento, sobretudo por cumprirmos o sonho de Che Guevara, que deu seu sangue por esta terra, para que não houvesse analfabetos. Se o Che tivesse triunfado há 40 anos, as coisas estariam bem diferentes. Mas temos agora essa oportunidade com o Evo no governo. Eu particularmente estou muito emocionado. São 820 mil pessoas alfabetizadas. O Evo é o impulsionador máximo, o animador máximo desse programa. Agora, com muito entusiasmo e sua orientação, estamos preparando o ato nacional que vai declarar a Bolívia livre do analfabetismo, no próximo sábado, dia 20, em Cochabamba. Será uma grande festa, com delegações de todo o país. Está confirmada a presença de ministros, do presidente da OEA (Organização dos Estados Americanos), representantes da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), e de Fernando Lugo, presidente do Paraguai – o próximo país onde estaremos em missão para erradicar o analfabetismo. Dessa vez, seremos Cuba, Venezuela e Bolívia a ajudar um país irmão. E os próximos passos?

Javier – Vamos iniciar, em fevereiro do ano que vem, o programa de pós-alfabetização, o “Yo, sí puedo seguir”, que vai beneficiar milhares de bolivianos. Agora, isso implica maior tempo e recursos, e maiores preparações das pessoas que serão facilitadoras. Seria lamentável, depois de implementar o Yo, sí puedo, não se prosseguir para a seguinte etapa. O próximo passo é muito importante para não incorrermos na possibilidade de se criar analfabetos funcionais.

Quem são Fotos: Marcelo Salles

NO DIA 20, a Bolívia se tornará o terceiro país da América Latina a erradicar o analfabetismo. O primeiro foi Cuba, em 1961. Depois, foi a vez da Venezuela, em 2005. E, justamente com a ajuda de cubanos e venezuelanos, o governo do presidente Evo Morales, em menos de três anos, pôde ensinar 820 mil pessoas a ler e escrever. O método utilizado foi o Yo, sí puedo, criado pela Revolução Cubana, que também contribuiu com assessores e equipamentos. Na entrevista a seguir, o cubano Javier Labrada Rosabal e o boliviano Pablo Quisber, ambos coordenadores do programa de alfabetização, explicam o método e contam como o projeto se desenvolveu e foi implementado na Bolívia.

Javier Labrada Rosabal (esquerda), 40 anos, é professor de Educação Física e Esportes e coordenadorgeral do Programa de Alfabetização boliviano, pela delegação cubana. Pablo Quisber (direita), de 36 anos, é historiador e coordenador nacional do programa pela Bolívia.

Pablo Quisber – Esse programa pretende fazer com que, num primeiro momento, as pessoas aprofundem sua capacidade de leitura e escrita e, num segundo momento, adquiram outros tipos de conhecimento, vinculados à Matemática, História, Linguagem, Geografia e até outros tipos de conhecimentos aplicados. Na Venezuela, por exemplo, experimentou-se ciências da computação. Oxalá faremos o mesmo aqui na Bolívia, ou que se trabalhe outros temas como educação, valores cidadãos e saúde preventiva. Há essa demanda.

“É uma iniciativa trinacional, entre Cuba, Venezuela e Bolívia. Eu, particularmente, estou muito orgulhoso de fazer parte da equipe nacional. E, oxalá, iniciaremos agora uma experiência com o quarto país, o Paraguai” Há mais mulheres que homens, mais idosos que jovens? Como são esses números?

Pablo – Ainda temos resultados preliminares, dos municípios. Estamos reunindo esses dados para o relatório final, em fevereiro. Mas acredito que há mais mulheres, como nos outros países latino-americanos. Temos cidades em que elas chegam a representar mais de 40% dos analfabetos, sobretudo nos lugares mais pobres. Temos uma faixa que atravessa o país desde a fronteira do Peru até a fronteira com a Argentina, onde se concentra a maior pobreza. Temos municípios onde 90% dos participantes são mulheres. Há classes de 15 participantes mulheres e um único homem. Isso tem explicação na própria história e condição social e econômica boliviana e numa maior marginalização da mulher. Está se tentando acabar com isso de duas formas: de um lado, temos a alfabetização de adultos e, de outro, o compromisso do Evo de garantir educação universal e gratuita para todos os bolivianos. Muitas

Pablo – Isso é a fortaleza do programa e estamos muito orgulhosos disso. Os governos municipais recebem recursos de muitas fontes. Temos 327 municípios, cada um com seu governo. Todos têm um orçamento. Uma parte dele vem do dinheiro obtido dos hidrocarbonetos, que o governo Evo Morales recuperou através da nacionalização, e que se distribui entre todas as cidades. E esse recurso só pode se converter em saúde e educação. O programa de alfabetização é um projeto ideal para os municípios, não importa seus tamanhos. Em primeiro lugar, o projeto permitirá que a cidade se torne livre do analfabetismo, depois vai possibilitar que ela execute a verba destinada para educação e, em terceiro lugar, o programa disponibiliza todo o material necessário, como televisores, cartilhas, painéis solares, professores... Trabalhamos em municípios totalmente opositores a Evo. Houve um caso no departamento de Pando, por exemplo, em Bolpebra, uma cidade bem pequena na fronteira com Brasil e Peru, e onde não havíamos entrado ainda. Mas era o único na região. As autoridades eram muito desrespeitosas com o pessoal de Cuba e da Venezuela, desconfiavam da gente, não nos queriam lá, até com escopetas nos ameaçaram... Não ingressamos nesse município até que o prefeito viesse nos pedir! Ele se deu conta que os municípios vizinhos, Cobija, El Porvenir, avançaram. Estavam se beneficiando do programa, com televisores, painéis solares e também com os professores. E iam os médicos cubanos, para fazer exames de vista, de aprendizado, eram distribuídos óculos. Exames de saúde eram feitos, e a população satisfeita. E o município “dele” era o único da região que não tinha acesso a esses benefícios. Prefeitos totalmente opositores se dão conta que vale a pena. O caminho do desenvolvimento, seja por qualquer via, socialismo ou capitalismo, passa pela educação das pessoas. Qual é o custo financeiro para se implementar o Yo, sí puedo?

Pablo – Todo o êxito do programa está vinculado diretamente à vontade política do governo. Isso relativiza o tema do custo. Hoje, o tema da alfabetização é uma prioridade real. Por isso o programa encontra todo o apoio necessário. Até agora, estamos fechando com 35 ou 36 milhões de dólares. Isso inclui tudo, tudo, tudo. O grosso desse custo não vai para o governo boliviano. O governo aportou 8 milhões de dólares, que sai dos contribuintes bolivianos. O restante, 28 milhões de dólares, é produto de doação em recursos como equipamentos e assessores, de Cuba e da Venezuela. Há os 8.350 painéis solares, que foram todos doados pelos dois países, e cada um custa 1,3 mil dólares. Esses 36 milhões parecem uma cifra grande, mas, se dividirmos pelo conjunto de pessoas que foram alfabetizadas, não dá mais que 40 dólares por pessoa. O cálculo mais realista fica em torno de 150 dólares por participante. Essa é a primeira vez que um programa de alfabetização se implementa em todo o país. Outros governos tratavam o assunto como uma obra de caridade. É uma iniciativa trinacional, entre Cuba, Venezuela e Bolívia. Eu, particularmente, estou muito orgulhoso de fazer parte da equipe nacional. E, oxalá, iniciaremos agora uma experiência com o quarto país, o Paraguai.


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internacional

O Natal dos desempregados nos EUA CRISE País tem sua maior perda de empregos dos últimos 34 anos; com a crise, cerca de 10 milhões de postos desapareceram Reprodução

Memélia Moreira de Orlando (EUA) O CENÁRIO já começa a se tornar sombrio nas grandes cidades dos Estados Unidos. E as milhares de milhões de luzes que decoram casas e vitrines são insuficientes para trazer de volta os excitados burburinhos das compras de fim de ano. As luzes de Natal mal conseguem esconder o desalento que se espalha nas grandes cidades. E não é para menos. Com um índice de desempregados que já ultrapassa 10 milhões de trabalhadores, os estadunidenses têm recebido um golpe atrás do outro desde as eleições presidenciais em 4 de novembro. A cada semana, o noticiário traz mais e mais informações que abalam a auto-estima da sociedade estadunidense. E a única reação até agora tem sido a perplexidade. Aturdidos com a sucessão de fatos negativos, pouco se animam a ir às compras, hábito dos mais cultivados na população desse país onde os shoppings centers são verdadeiras catedrais do consumismo. A fuga dos consumidores obrigou o comércio a promover grandes liquidações que, em alguns casos, chegam a oferecer descontos da ordem de 70 a 80% do valor do produto. Quem está se esbaldando são os turistas, principalmente alemães, franceses, holandeses e...brasileiros. O movimento de compras e troca de presentes está tão fraco, que a agência de Correios que mais atende brasileiros, localizada na International Drive, em Orlando, viu encalhar as 10 mil caixas que eles vendem para os clientes. Nem fila havia neste agência, às vésperas do Natal. As atendentes, todas brasileiras, informam que esse ano não foi necessário guichês extras, porque “não há tanto trabalho”. A sucessão de choques se iniciou na segunda semana de novembro, quando foi anunciado o fechamento de mais 533 mil postos de trabalho em todo o país. Somados aos índices de agosto a outubro, o número atingiu aquelas marcas que se tornam memoráveis. Ou seja, 10 milhões, a maior perda de empregos dos últimos 34 anos. De novembro até a segunda semana de dezembro, mais empresas de pequeno e médio porte fecharam suas portas, enquanto uma das gran-

Homem carrega cartaz em que afirma que é experiente, graduado pelo MIT e que está disponível para ser contratado

des marcas, a Electrolux, fabricante de eletrodomésticos, anunciou a redução do número de funcionários. Ou seja, o balanço do final do ano pode chegar a 11 milhões de desempregados. Isso é a população de uma metrópole brasileira e uma megalópole nos Estados Unidos, país que se caracteriza por cidades pequenas, sendo que apenas dez ultrapassam 2 milhões de habitantes. Armas de destruição Logo em seguida, na terceira semana de novembro, com a cara mais lavada do mundo, o presidente George W. Bush veio a público anunciar que se “enganou” ao determinar a ocupação do Iraque, porque acreditara nos relatórios com as informações de que o Iraque armazenava armas de destruição em massa. O presidente do Estado mais poderoso do planeta não teve a mínima vergonha de confessar primeiro o grau de sua leviandade ao mandar invadir um país soberano sem certezas sobre os alvos e, segundo, deixar claro que os serviços de espionagem e proteção dos Estados Unidos são falhos e mentem para o próprio presidente. A declaração poderia ser vista como um ato de humildade do presidente se, por trás desse ato, não tivesse aconteci-

do o massacre de mais de 100 mil pessoas, de um povo que hoje vive uma verdadeira diáspora porque seu país se tornou um campo de guerras e experiências contra a vida. E

O impasse do pacote de 14 bilhões de dólares que ajudaria as montadoras a manter empregos pelo menos até abril de 2009 levou um dos diretores da General Motors a declarar que resta à empresa mais duas semanas de vida mais: a invasão do Iraque não deixa só um rastro de torturas e massacres; ela também destruiu boa parte da história da humanidade, com a derrubada de monumentos e eliminação pura e simples de manuscritos históricos. Imaginem se Hitler, caso tivesse sobrevivido aos últimos

dias de guerra, viesse a público pelo rádio e dissesse ao mundo: “Perdão, ouvintes, só agora meu serviço secreto me informou que judeus, ciganos e homosssexuais são seres humanos”. Ou, então, se Ariel Sharon, depois do massacre dos palestinos em Sabra e Chatila, repetisse o gesto de pedido de desculpas. Em todos esses casos, das palavras escorreriam gotas de hipocrisia. Montadoras no limite Dezembro já começou no sufoco. Um jogo de empurra-empurra no Congresso para saber se concediam ou não a ajuda de 14 bilhões de dólares às montadoras Chrysler, Ford e General Motors. Estava em jogo a antiga base da economia dos EUA e alguns milhões de empregos. Na noite de 11 de dezembro, o Senado rejeita a proposta de socorro financeiro. Por trás da rejeição, a máfia sindical estadunidense. Sim, os sindicatos, os mesmos sindicatos que, durante toda essa crise, se mantêm a uma distância suspeita na defesa dos seus filiados, impediram a aprovação da ajuda porque ela implicava em reduzir alguns privilégios. O mais importante deles é o valor da hora trabalhada. Na maioria esmagadora das fábricas, os trabalhadores recebem 44 dóla-

Quanto Nos EUA, apenas dez cidades ultrapassam 2 milhões de habitantes.

res por hora. Nas três montadoras que agora precisam de ajuda, a hora vale 72 dólares. É bom que se explique que os sindicatos jamais reivindicaram um reajuste para os demais, como se houvesse operários de primeira categoria e operários de segunda categoria, desempenhando funções semelhantes. O impasse do pacote de 14 bilhões de dólares que ajudaria as montadoras a manter empregos pelo menos até abril de 2009 levou um dos diretores da General Motors a declarar que resta à empresa mais duas semanas de vida. Ou seja, imediatamente depois do Natal, mais desempregados podem estar perambulando pelas ruas do Estado de Michigan, onde se concentram as três montadoras. Enquanto a Casa Branca estudava uma solução, eis que mais uma notícia negativa invade as casas dos estadunidenses. A prisão do governador de Illinois, Estado onde o presidente eleito Barack Obama fez sua carreira política. O governador, Rod Blagojevich, foi pego com a boca na boti-

Frank Jakomeit

A colecionadora de árvores de Orlando (EUA) Papai Noel, todo mundo sabe. Ele mora na Lapônia e usa uma charrete puxada por renas para se deslocar mundo afora, distribuindo presentes e seus “Ho...ho...ho”. Mas poucas pessoas sabem onde mora o Natal. É, o Natal, suas árvores, folhas vermelhas e verdes, bolas coloridas, presépios e anjinhos moram em Orlando, nos EUA, numa casa que desde a entrada já anuncia que ali vive o Natal e seu espírito. Loura, olhos vivos e ligeiros, Kathy Ammarell, nascida na cidade de Readang, Pensilvânia é a dona da casa onde mora o Natal. E, enquanto algumas pessoas colecionam chaveiros, selos, miniaturas, Kathy coleciona árvores de Natal. Da entrada à varanda atrás da casa, passando pelos dois quartos e cozinha, são 17 árvores de Natal, todas elas ricamente enfeitadas e cada uma com seu nome. Há uma que se chama “Internacional”, que faria inveja à própria ONU, com enfeites do mundo inteiro, sem fronteiras. Há, inclusive, um enfeite brasileiro, um maracá, le-

vado por um colega de trabalho que esteve no Brasil, além de Honduras, Escócia, Alemanha, Noruega, México, Japão. Outra é a “Snowmen” (boneco de neve). Transborda de bonequinhos de neve em diferentes situações, mas sempre com a bengala e o nariz de cenoura. Na cozinha, a “Apple Tree”, ou árvore das maçãs. E há, inclusive, a “Árvore dos Amigos”, com fotos reduzidas de seus familiares e amigos. Gerente de treinamento na Disney Reservation Center, é claro que Kathy tem uma “Árvore da Disney”, onde Mickey, Minnie, Pateta, Pato Donald, Tio Patinhas e outros personagens estão pendurados nos galhos da árvore que fica no próprio quarto da colecionadora. Além de todos os animais que ganharam vida nos desenhos animados de Walt Disney, Kathy tem também suas pereferências. E ela gosta de gatos. por causa disso, mais uma árvore cresceu em sua coleção. É a “Árvore dos bichinhos de estimação”, na qual há miniatura de cachorros, gatos e outros nem tão domésticos assim. Mas de todas elas, a preferida de Kathy é a “Árvore dos EUA”. Praticamente cada en-

feite tem sua história. E Kathy, que, além de suas árvores, adora viajar, não hesita em atravessar Estados e mais Estados para comprar mais um enfeite. Foi assim quando ela esteve em Nebraska, visitando uns amigos. Já com seu enfeitinho de Nebraska, ela viu uma seta indicando que o Estado de Illinois ficava a 45 minutos de distância. Entre olhar a placa e tomar a direção de Illinois, foi só o tempo de fazer a manobra. Mas, por que se contentar apenas com Nebraska e Illinois se o Estado de Indiana era logo ali. Kathy seguiu viagem e a “Árvore dos EUA” ganhou, de uma só vez, mais três enfeites. De todas as árvores, há uma que vale uma pequena fortuna. É a “Árvore Hallmark”. O nome já diz. Hallmark é uma empresa especializada em fabricar enfeites em geral, cartões de Natal, bolsas. Kathy de vez em quando compra seus enfeites nessa loja. São únicos e não se repetem. Por três ou quatro dólares você pode ter um objeto exclusivo. E, a cada ano, o valor desses objetos aumenta mais ainda. Um desses enfeites, que custou menos de três dólares, hoje vale mais de

Kathy Ammarell ao lado de uma de suas árvores

cem. Mas se você for um comprador em potencial, não faça nenhuma oferta. Kathy não negocia suas árvores. Ao contrário, guarda cada peça como sua riqueza.

Foi saudade A coleção começou por causa de um sentimento muito comum quando se está longe dos seus. Kathy trocou a Pensilvânia pela Flórida em 1991.

ja, tentando vender o mandato de senador para quem quisesse ocupar a cadeira que foi de Obama. Nos Estados Unidos não há suplente de senador e, em caso de morte ou renúncia, o governador escolhe um senador biônico. Blagojevich, de quem Obama nunca foi muito chegado, resiste em renunciar mas, cedo ou tarde sofrerá um processo de impeachment. O fato, deprimente em si, mostrou que os Estados Unidos não se diferem muito dos vizinhos do Sul, que um dia já foram chamados de “repúblicas de bananas”. O alvo As armas de destruição em massa se transformaram numa banda de um sapato masculino arremessado pelo jornalista Muntazer al-Zaid contra a cabeça do presidente dos Estados Unidos. George W. Bush, que dentro de quatro semanas deixará a Casa Branca para sempre, com certeza esperava uma recepção calorosa dos iraquianos quando fez mais uma visita de surpresa a Bagdá. Afinal de contas, ele fora ao país ocupado por suas tropas para anunciar a retirada de seus soldados até 2011. Nada disso. O que se viu foi um sapato voando. E o alvo era o presidente Bush, que nunca mostrou tanta agilidade diante de uma situação de risco. O dono do sapato não se satisfez apenas com o gesto desesperado e ainda gritou: “É o beijo da despedida, cachorro”. Até agora não houve protestos das sociedades protetoras de animais, mas, chamar o presidente dos Estados Unidos de “cachorro” enquanto tenta acertar seu rosto com um sapato foi um momento de extrema humilhação não apenas para Bush, mas para todos os estadunidenses. Afinal de contas, eles o elegeram há quatro anos. O arremesso de sapato transformou o jornalista em herói e desencadeou uma nova onda de protestos em Bagdá e em outras cidades do Iraque, e resume o desprezo com o qual um povo vê seus agressores. Enfim, 2008 não foi exatamente um ano feliz para o Império. E ainda faltam alguns dias para que se encerre. Quanto às perspectivas para 2009, poucos fazem apostas. Ninguém ousa prever que medidas o próximo governo vai tomar que não seja apenas imprimir mais notas de dólares como se essa moeda de pressão fosse apenas um papel de jornal.

Aqui, embora haja inverno, o frio é insuficiente para nevar. E em seu primeiro Natal longe da família e da terra onde nasceu e cresceu, Kathy teve sua crise de banzo, de saudade, porque nada parecia com os natais de sua infância. Sequer neve tinha para fazer um boneco. Então, ela decidiu montar sua primeira árvore. No ano seguinte, mais uma. E assim, em 17 anos, foram 17 árvores. Para 2009, ela já planeja uma árvore de presépios. Mas, muito além das árvores, nessa época do ano, a casa de Kathy se enche de luzes com outras decorações natalinas, desde o jardim. Há presépios, carrinhos de Papai Noel, além de um presépio todo em madeira colorida que é base de um abajur. Para receber o Natal devidamente, ela trabalha mais de um mês. Logo depois do Halloween, a dona da casa onde mora o Natal começa a tirar as árvores e enfeites das caixas e faz sua “terapia”, como ela mesmo chama a tarefa de arrumar os enfeites. E que tal transformar essa coleção em um museu de Natal? Não, responde Kathy:”As árvores só têm sentido nessa época. Fora do tempo do Natal, não tenho vontade de vê-las espalhadas pela casa”.


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cultura

Maria Aragão e seu Nilton Carlos Bellé SÃO LUIS, Maranhão. Outubro de 2008. Uma feira de livros como muitas outras... Calor quase insuportável. Uma praça em homenagem a Maria Aragão projetada por Oscar Niemeyer. Do centenário arquiteto, sabemos algumas coisas sobre sua vida, solidariedade e militância política. Do quase centenário de nascimento de Maria Aragão (1910-1991), pouco ou quase nada sabemos. Como a ignorância nos esconde a história! Como é bela a história de Maria Aragão! Se viva, teria 98 anos. Uma maranhense que representa os grandes anseios de justiça, dignidade, coerência e ética. Mulher que lutou por uma sociedade igualitária... Sindicalista, médica, professora, negra, socialista... Deixou um legado formidável e um exemplo de vida que brindaremos aos leitores da editora Expressão Popular, em 2009, com sua biografia! Foi também naquela praça que, numa tarde, no espaço de exposição dos livros da Expressão Popular, numa temperatura superior a 45 gaus, entra um senhor e começa a olhar os livros. Coisa que todos fazem, é verdade. Fiquei atento e acompanhando seus movimentos. Coisa normal. Tomava os livros nas mãos. Olhava com muita atenção a capa... Lia o texto de orelhas... Olhava a contracapa. Folheava o livro... Livro por livro... e, como único a enfrentar o calor naquele momento, o tempo foi passando... passando... e nada de se decidir ou desistir de sua iniciativa. Não resisti e perguntei: – Senhor, quer alguma ajuda? – Não, moço. Estou bem e tenho tempo. Retornei à cadeira,

estrategicamente colocada no corredor da feira, para aproveitar um pouco do vento e suportar o calor. Comecei a observá-lo mais atentamente. Um senhor negro, alto, bom físico! Uma mochila colocada sobre o peito e sempre segura com as duas mãos, como se fosse um filho, quando não estava com algum livro nas mãos. Rosto sempre coberto de suor. Camiseta e calças desgastadas pelo tempo e uso. Chinelos desgastados. Os pés um tanto deformados. Mãos grandes, dedos todos tortos, mal formados... e lá se foram quase duas horas. Outros companheiros e companheiras de outras editoras também observavam... Comentavam e perguntavam: – O que aconteceu com ele? – Gostou de ficar aí vendo os livros da Expressão Popular? – Quando é que chegará alguém para comprar algum livro? Num determinado momento, aquele senhor toma em suas mãos o livro Filosofia da práxis e o segura, dando a entender que o levaria. – O senhor gosta de Filosofia? – Gosto muito. Filosofia faz bem para a cabeça! – Mas, senhor, este livro é difícil de ser entendido. É um clássico. – Não te preocupe, moço. A gente lê devagar. – O senhor estudou ou estuda Filosofia? – Não, moço. Gosto muito de Filosofia. Filosofia faz bem para a cabeça. – Qual o seu nome? – Nilton – responde. Tenho

Gama

CRÔNICA Dois maranhenses comuns se encontram numa praça

43 anos. – Qual a sua formação? – Fiz o segundo ano colegial em contabilidade. – E gosta de Filosofia? – Gosto. Filosofia faz bem para a cabeça. Se é difícil, a gente lê devagarzinho. – O que o senhor faz? – Trabalho numa ferragem. Estou há dez anos trabalhando lá. Sempre que posso, gosto de ler. Gosto de Filosofia. Estou escrevendo um livro e tenho alguns outros já escritos. Estão guardados em minha casa. – Então, as marcas em suas mãos são do trabalho na ferragem? – Não, moço. É resultado de uma doença congênita. Nasci com a doença do crescimento e tive que fazer uma cirurgia na coluna... Acabou atingindo outros membros e fiquei assim. – Quantos trabalham contigo na ferragem? – Somos poucos. Nenhum gosta de ler. Mas vou convidar todos eles para virem aqui... Quanto custa este livro? – Vinte reais. Seu Nilton volta-se para

a mesa onde estão os livros e toma outro: Introdução à Filosofia de Marx. – Vou levar estes dois. – Muito bem, seu Nilton. Desejo um bom estudo. – Obrigado, moço. Vou ler, sim.

No dia seguinte, volta. – Boa tarde, moço. – Boa tarde, seu Nilton. Tudo bem? Da mesma forma. Olha todos os livros como se o tempo não existisse. Afinal, o tempo não é uma categoria relativa, conforme afirmam os filósofos? Como havia aprendido a lição do dia seguinte, apenas o observo com maior curiosidade. Lá pelas tantas, toma em suas mãos o livro Marx e a técnica. – Moço, vou levar este. Quanto é? – Mudou o tema de leitura? Agora vai estudar Economia Política? – Gostei deste livro. Vou levar. – Seu Nilton, este livro também é meio difícil. Trata do conceito de subsunção. Entre o trabalhador e o produto final existe uma máquina: o que ela faz com o

trabalhador? – Não te preocupe, moço. A gente lê devagar. Um pouco por dia e, assim, com algum esforço, lemos todo o livro. – Muito bem. Desejo um bom estudo e boa leitura. – Obrigado, moço. Até amanhã. No dia seguinte, lá vem seu Nilton. Junto, três companheiros de trabalho. Sorridente, diz: – Oi, moço. Tudo bem? Estes são meus companheiros. Falei que iria vir com eles aqui. – Muito bem, seu Nilton. Que bela iniciativa. Podem ficar à vontade. Se precisarem de algo, podem perguntar. Estou aqui para ajudá-los. Olham os livros de longe. Nenhum se atreve a pegálos. Em poucos minutos começam a andar... e, aos poucos, acompanhados por seu Nilton, se distanciam dos livros... Para mim e para os companheiros de feira, restou a pergunta: – E aí? Entendeu? ... Se ainda resta alguma dúvida, pergunte ao seu Nilton. Carlos Bellé é editor da Editora Expressão Popular

CRÔNICA

Ele não nasceu numa manjedoura Nenhuma boa estrela anunciou a chegada de Carlos, mas a mãe o recebeu como se fosse trazido por um anjo. Um garoto comum de Bauru, com uma mãe e uma irmã como todas as mães e irmãs que lutam cada dia para manter a casa em pé com a maior decência Silvia Beatriz Adoue Ele não nasceu numa manjedoura, também não chegou aos 33 anos e nem surpreendeu os doutores do templo com a sua sabedoria. Há, porém, um par de coincidências entre os dois garotos. Para começo de conversa, os dois vieram ao mundo numa família pobre. Nenhuma boa estrela anunciou a chegada de Carlos, mas a mãe o recebeu, nove anos após o nascimento da sua filha, como se fosse trazido por um anjo. Foi um garoto comum entre todos os garotos comuns de Bauru (SP), com uma mãe e uma irmã como todas as mães e irmãs que lutam cada dia para manter a casa em pé com a maior decência. Mesmo que esteja num canto da sala, a máquina de costura é o coração da casa. Nela se revezam mãe e filha para pagar as contas. Aquela máquina, elas pensam, é uma bênção. Sem ela, não teriam segurado as pontas. O menino cresceu ouvindo aquele barulho intermitente como um acalanto. RRRRRRRR (silêncio) RRRRRRRR (silêncio). Não há feriado. Só param o barulho para não atrapalhar o sono dos vizinhos. Do seu quarto, era só ouvir o barulho e o Carlinhos podia adivinhar o gesto de cada uma das mulheres da casa. A irmã, mais rápida, com intervalos menores. RRRR (...) RRRR (...). A mãe, mais cuidadosa, fazendo olhinho de japonês, já não enxergando. Ela

sempre esquece de acender a luz. Trabalhando no escuro? Acende a luz, mãe. Nos últimos tempos, Carlos começou a ter raiva do barulho da máquina, raiva do esforço das mulheres que apenas lhes deixava tempo para comer, dormir e tomar banho. Serviço não se rejeita. A conversa, o filme, o cafuné e os planos de estudar junto, tudo que é bom ficava adiado. Ano próximo a gente volta, fazemos supletivo. Tudo nessa casa ficava para depois. Eles tentaram, bem que tentaram. Foi bem difícil com Carlinhos. Ele não era bom pros estudos. Todo mês mudava a professora. E as que duravam mais também não tinham paciência com aquele bando de moleques. Carlinhos ia ficando para trás e a professora não reparava. A mãe também não sabia ajudálo com a lição. Ficou três anos na quarta série. Deu uma esticada boa de repente, os pêlos crescendo nas pernas. Tinha vergonha de ficar entre as crianças menores e foi ficando cada vez mais caladão. Mais triste. Cada vez com mais raiva do barulho da máquina. Ia logo pro quarto ouvir música de fone de ouvido. Quando era mais novinho, a máquina o fascinava. Ficava em pé observando a agulha subindo e descendo rapidão, mastigando o pano. Cuidado com a mão, Carlinhos, que você machuca. Ele ficava olhando hipnotizado. Mas, no último ano, o olho dele desviava da agulha, desviava da má-

Sammis Co/CC

quina, desviava dos olhos das mulheres da casa. Havia sangue no olho do menino. Não podia ouvir o barulho da máquina que saía pra rua. Pra onde você vai, menino? Vou co’s amigos. Esses amigos... Ele tem que fazer alguma coisa, mãe. Sem estudo, não vai conseguir emprego decente. A mãe, Elenice, se matriculou com ele. Toda noite iam juntos pra aula e depois faziam juntos a lição de casa. Carlinhos recuperou a mãe da máquina. Era tão bom poder ser criança outra vez. Ele estava gostando, e aprendia. Mas tinha as contas pra pagar, aparecia serviço urgente. Carlinhos, vou ficar para terminar este serviço, você pega a matéria e a gente estuda junto depois. Faltou um dia e depois outro. Se a senhora não for, eu também não vou. A dona Elenice ficava agoniada, entre a espada e a parede. Como que era? Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. O bicho comeu. Carlinhos parou de ir pra escola. E saía direto pra rua. A dona Elenice tentava segurar. Ele até tem seu quarto. Mas co’barulho da máquina nem dá pra assistir televisão. Lembra. Ela lembra daquele dia que olhou pro seu menino. Aquele menino que nenhuma estrela anunciou, mas que ela recebeu como se fosse trazido por um anjo. Olhou bem no fundo do olho do menino de sangue no olho, pra além do sangue no olho, lá no fundo. Ano próximo a gente matricula de novo.

Sim, mãe. Ano próximo a gente volta. E saiu pra rua. Naquela sexta-feira, perto do Natal, Carlinhos apareceu com uma moto. De quem é essa moto? De um colega, mãe, vamos dar uma volta na avenida e depois ele pega. Dona Elenice olha pra trás. Pensa como as coisas chegaram até esse ponto. Uma e outra vez pergunta a si mesma como podia ter evitado. Naquela madrugada, chegaram seis policiais batendo com força na sua porta e gritando. É um erro, pensou. Mas não, estavam atrás do Carlinhos. Cinco ficaram trancados com ele e um ficou na sala com as mulheres. Horas a fio trancafiados. Devia ser um erro. Eles iam perceber. Meu filho é um menino. Eles vão perceber. Ele só tem 15 anos. É procedimento normal, senhora. No começo, ela até confiou. Mas ouviu, entre os gritos dos policiais, os gemidos do Carlos, mais menino que nunca, no mesmo quarto onde ele se deitava para ouvir música. Na estante, ainda, os cadernos de escola. A porta se abriu e viu seu filho carregado, inconsciente, para fora da casa. No quarto, os CDs fora das caixinhas, os cadernos no chão, o fio desencapado. Na sala, a máquina de costura, agora silenciosa, sem acalantos para o menino que não nasceu na manjedoura. Silvia Beatriz Adoue é professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF)


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