Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 306
São Paulo, de 8 a 14 de janeiro de 2009
R$ 2,50 www.brasildefato.com.br
Reprodução
S.Shannon-CC
Zapatistas Desde 2005, os zapatistas iniciaram a Outra Campanha. Nela, o movimento busca aprofundar alianças e relações com outros movimentos sociais e organizações. Em entrevista, o historiador mexicano Carlos Antonio Aguirre Rojas analisa essa nova etapa, além de outros aspectos. Pág. 9
ILHA DO PRESÍDIO
A SAGA DE UM BARQUEIRO GAÚCHO NO INÍCIO DA DITADURA MILITAR Págs. 4 e 5 Nely Rosa
A violência da polícia de SP e da Rota na internet Mais de duas décadas depois do fim do regime civil-militar no Brasil, a página na internet da divisão de elite da Polícia Militar de São Paulo resgata, com saudosismo, uma série de acontecimentos violentos em
que a PM e a própria Rota estiveram envolvidas. Em especial, o golpe que derrubou o presidente João Goulart em 1964, o combate a Carlos Lamarca e a repressão aos opositores do regime. Pág. 6 Antonio Paz/Palácio Piratini
Dona Zefinha, do Ceará para o mundo Pág. 8
MESMO COM YEDA – Em 2008, o governo gaúcho, chefiado pela tucana Yeda Crusius, mostrou a que veio. A Brigada Militar promoveu repressão contra sindicalistas, sem-terra e moradores de rua. Dentro do Palácio Piratini, denúncias de corrupção estremeceram o governo. Mesmo assim, os movimentos avaliam como positivo o ano, em termos de mobilização e vitórias. Na foto, a governadora Yeda Crusius participa da solenidade de troca no Comando-geral da Brigada Militar Pág. 3
Europa busca consumo para conter a crise
O cotidiano cheio de vida dos insurgentes das Farc Depois de passar alguns dias vivendo como um insurgente das Farc-EP, o historiador uruguaio Ezequiel Rodrígues Labriego conta, em entrevista ao filósofo argentino Néstor Kohan, a realidade “abnegada e sacrificada” dos guerrilheiros. O historiador lembra do
apoio popular dado à organização, uma vez que ela realiza um forte trabalho social no interior do país, como vacinar crianças e construir estradas. Depois da visita, o uruguaio concluiu que a organização “definitivamente é uma guerrilha popular”. Págs. 10 e 11
ISSN 1978-5134
9 771678 513307
00306
Pela primeira vez após oito anos de bonança, fábricas européias voltaram a agitar o fantasma do desemprego num clima de recessão progressiva. Hoje, trabalhadores da Grã-Bretanha, França, Itália e Alemanha são estimulados a consumir para combater a crise. Pág. 12 Marcello Casal JR/ABr
AFOGANDO EM NÚMEROS Em 2009, o superavit primário, economia de recursos para pagamento de dívidas, deve ser de R$
67,8 bilhões, de acordo com o orça-
mento aprovado pelo Congresso brasileiro. Esse valor poderia ser usado para construir
664 hospitais como o de M’Boi
Mirim, na zona sul de São Paulo. Ou seja, em vez de “investir” esse recurso em pagamento de dívidas, o Estado brasileiro poderia criar
159 mil leitos hospitalares.
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de 8 a 14 de janeiro de 2009
editorial Certamente, para os movimentos sociais, não há muito o que comemorar em 2008. Os seis anos do governo Lula são merecedores de uma boa reflexão. A continuidade da política econômica de FHC, como mencionou seguidas vezes o então ministro da Fazenda Antônio Palocci, e suas políticas estruturantes em favor do capital – como a liberação dos plantios transgênicos –, motivam as críticas de uma parte da esquerda dos movimentos sociais e partidos políticos. Do outro lado, as políticas assistencialistas, responsáveis pela melhoria das condições de vida de uma fração da população mais pobre e o melhoramento dos índices de emprego, servem de combustível para uma outra parte da esquerda, defensora da estratégia política adotada pelo atual governo. É um governo que atendeu todas as exigências do grande capital, e mesmo assim é criticado e ridicularizado pela mídia burguesa. Esse mesmo governo, que destina migalhas com suas políticas assistencialistas aos pobres, obtém sucessivos recordes nos índices de aprovação junto à população brasileira. A complexidade dessa situação ainda não é compreendida pelo conjunto dos movimentos sociais. Ou, pelo menos, passada
debate
O 2008 para os movimentos sociais e os desafios de 2009 já a metade do segundo mandato, os movimentos sociais ainda não lograram construir uma análise unitária sobre ele. Houve, no decorrer de 2008, várias iniciativas para fortalecer alguns instrumentos que pudessem sinalizar para uma unidade maior dos movimentos sociais e da forças progressistas da sociedade brasileira. A Assembléia Popular, a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) e a Conlutas são, talvez, as mais significativas dessas iniciativas. Bem intencionadas, todas com a disposição de fortalecer a classe trabalhadora, mas nenhuma delas proporcionou uma unidade maior do movimento social e sindical. A sensação, chegado o término do ano, é de que estamos ainda mais fragmentados. Houve decisão política, disposição e trabalho para construirmos jornadas nacionais de lutas. As mobilizações em 8 de março e a jornada de lutas em junho exemplificam as tentativas de mobilizar a sociedade. Jornadas importan-
tes para manter acesa a chama da necessidade de lutar. Mas restringiram-se a mobilizações de militantes sociais. Não conseguimos sensibilizar a sociedade e motivála para que se somasse às lutas. Não fomos além de nós mesmos. Ainda em 2008, houve poucos avanços, quase inexistentes, no debate sobre a necessidade de termos um projeto popular de desenvolvimento para o país. Aqui, novamente, parece haver barreiras intransponíveis para se buscar uma unidade maior. Para parte da esquerda, basta reafirmar o projeto socialista. Para outra parte, o projeto popular é imprescindível para acumular forças e sinalizar para a sociedade uma alternativa de desenvolvimento oposta à apresentada pela burguesia. E, infelizmente, há também a parte que sucumbiu aos ditames do grande capital. As eleições municipais de 2008 atestaram essa ausência de debates sobre a necessidade de um projeto popular. Por último, passado mais um ano, os movimentos sociais pre-
crônica Luiz Ricardo Leitão
Ariovaldo Umbelino
Lula dá adeus à reforma agrária O II PLANO Nacional de Reforma Agrária (II PNRA) terminou em 2007 e poucos se lembraram deste fato, ou seja, o governo Lula só faz a reforma agrária se quiser, pois não tem mais nenhum plano para isso. Mas o MDA/Incra continua produzindo “factóides” para enganar a sociedade através da mídia com notícias tais como: novo estudo sobre os índices de produtividade, ou então, há muitas terras sendo compradas por estrangeiro no Brasil. Aliás, o órgão governamental encarregado de cuidar desta última questão é o próprio Incra, e não se sabe por que ele não toma as providências contra essas vendas se elas por acaso são irregulares. Quanto aos novos índices de produtividade que nunca têm sido decretados pelo governo Lula, é mais uma notícia do “me engana que eu gosto”. Por outro lado, o mesmo MDA/ Incra, como tem feito sistematicamente, não publica automaticamente os dados da reforma agrária, agindo como se não fossem órgãos públicos que devem prestar conta de suas atividades à sociedade. É por isso que somente no final de 2008 apareceram os primeiros resultados de 2007. Como todos se recordam, o II PNRA tinha como meta um implantar em cinco anos 550 mil novos assentamentos, e, como meta dois, regularizar 500 mil posses. Além, é óbvio, da meta três, relativa ao Programa Nacional de Crédito Fundiário (exBanco da Terra do Banco Mundial), que previa assentar mais 150 mil famílias; e da meta sete, que previa reconhecer, demarcar e titular as áreas das comunidades remanescentes de quilombo (http://www.mda.gov.br/ arquivos/PNRA_2004.pdf, acessado em 17/12/2008 às 9h30). Mas, infelizmente, o MDA/Incra insiste em tentar confundir a todos divulgando que assentou, nos 5 anos do II PNRA, um total de 448.954 famílias. Tenho escrito que esses dados divulgados pelo governo Lula sobre a reforma agrária referem-se à Relação de Beneficiários emitidas, as “famosas” RBs. Assim, continuo a tarefa de esclarecer a todos que as RBs não se referem apenas aos assentamentos novos: elas são emitidas também para os assentamentos relativos à regularização fundiária (Resex, PAE etc.). As RBs são também emitidas para regularizar as situações das famílias dos assentamentos antigos reconhecidos pelo Incra para que os já assentados tenham acesso às políticas públicas. Elas são inclusive emitidas para regularizar a situação de assentados em decorrência de herança, daqueles que compraram lotes de boa-fé e daqueles que foram substituídos nos assentamentos antigos por abandono ou outros motivos permitidos por lei etc.
Algumas perguntas para 2009 João Zinclar
Assim, mesmo com muitos limites, é possível começar a fazer o balanço do II PNRA. Mas os dados das RBs divulgados pelo INCRA, em decorrência dos motivos apontados anteriormente, precisam ser desagregados. Feita esta desagregação, entre 2003 e 2007 o governo Lula assentou apenas 163 mil famílias referentes à meta um – novos assentamentos. Portanto, cumpriu somente 30% da meta de 550 mil famílias que ele tinha prometido assentar. Não cumpriu também a meta dois, que referia à regularização fundiária de 500 mil posses, pois regularizou apenas a situação de 113 mil famílias, ou seja, atingiu apenas 23% da meta. Entre os dados restantes estão 171 mil famílias referentes à reordenação fundiária, ou seja, a situação de regularização em assentamentos antigos, e o que é mais absurdo, a inclusão de cerca de 2 mil famílias referentes a reassentamento de atingidos por barragens, que em absoluto trata-se de reforma agrária. Quando se observam os dados relativos às 163 mil famílias de fato assentadas pela reforma agrária, verifica-se que em termos regionais a distribuição do percentual de cumprimento de metas foi o seguinte: região Norte cumpriu 19%; Nordeste, 43%; Centro-Oeste, 31%; Sudeste, 20%; e, Sul, 19%. Há estados que inclusive cumpriram índices baixíssimos, como por exemplo o Rio Grande do Sul, que atingiu apenas 15% das metas; Rio de Janeiro, 16%; Sergipe, 18%; Santa Catarina, 19%; Minas Gerais, 20%; Paraná, 21%; Espírito Santo e São Paulo, 22%; Mato Grosso, 23%. Entre as unidades que cumpriram mais da metade das metas, estão apenas o Maranhão, que alcançou 54%; o Piauí, 58%; e a superintendência do médio São Francisco, 71%. Assim, como tenho afirmado, a política de reforma agrária do governo Lula está marcada por dois princípios: não fazê-la nas áreas de domínio do agronegócio e fazê-la apenas nas áreas onde ela possa “ajudar” o agronegócio. Ou seja, a reforma agrária está definitivamente acoplada à expansão do agronegócio no Brasil. É como se estivesse diante de uma velha desculpa: o governo Lula finge que faz a reforma agrária
cisam renovar seus métodos de trabalho de base. Aumentou a distância entre as organizações populares e a sociedade em geral. Isso é válido para os movimentos estudantis, sindicais, urbanos e rurais e pastorais sociais. É preciso chegar até as pessoas, fazê-las conhecer a mensagem política e motivá-las a participarem de alguma forma de organização social e política. Infelizmente, os movimentos sociais perderam essa capacidade nas duas últimas décadas. Aperfeiçoaram-se os discursos de grandes análises, refinada elaboração teórica e radical combatividade, ao mesmo tempo que se perdeu a capacidade de procurar e falar individualmente com as pessoas ou pequenos grupos. Todos esses percalços de 2008, servem para constar que há muito o que fazer em 2009. A classe trabalhadora deve sim resgatar sua capacidade de pensar um projeto popular de desenvolvimento, de buscar a unidade, de recuperar a força do trabalho de base e de formação política dos seus mi-
litantes e de promover jornadas nacionais de lutas. São objetivos permanentes das forças populares que se dispõem ir além da retórica e realmente querem fazer a transformação da nossa realidade. Essa crise financeira, gerada pelo próprio desenvolvimento do capitalismo, joga um papel instigante para os movimentos sociais. Qual será a capacidade dos movimentos sociais de apresentar saídas para essa crise? A burguesia brasileira, sem um projeto de desenvolvimento nacional para o país e totalmente subordinada aos interesses do capital internacional, é incapaz de apresentar saídas para a crise. Se restringirá a medidas paliativas, que visam apenas amenizar seus efeitos e repassar os custos para a classe trabalhadora. No entanto, os movimentos sociais apenas se farão ouvir se lograrem uma maior unidade das forças populares e progressistas e realmente conseguirem colocar o povo nas ruas com jornadas nacionais de lutas. Os desafios são grandes. Por isso mesmo, há sim perspectivas de grandes vitórias em 2009. Que os movimentos sociais tenham a capacidade de dar respostas à altura desses desafios.
e divulga números maquiados na expectativa de que a sociedade possa também fingir acreditar. Mas a primeira e principal conclusão que se pode tirar do balanço do II PNRA é apenas e tão somente uma: o governo Lula, do Partido dos Trabalhadores, também não fez a reforma agrária. Afinal esperava-se que Lula cumprisse sua histórica promessa de fazer a reforma agrária. A pergunta então deve ser: por que também seu governo não faz a reforma agrária? E a resposta também é uma só: seu governo decidiu apoiar totalmente o agronegócio. Mais uma prova cabal desta aliança com o agronegócio e contra os camponeses e os trabalhadores rurais do país está em muitas páginas do recém-lançado Plano Nacional Sobre Mudança do Clima (PNMC) (www.mma.gov.br). Na ocasião do lançamento, as informações que ganharam divulgação foram aquelas sobre a proposta de diminuição dos indicadores de desmatamento na Amazônia. Mas, entre outras informações sobre a aliança do governo Lula com o capital monopolista mundializado, está a previsão de expansão do setor sucroalcooleiro entre 2008 e 2017 para produzir 52,2 bilhões de litros de etanol para o mercado interno e 8,3 bilhões para exportação. A única questão que o PNMC não cita é: qual a área necessária para se produzir essa quantidade de etanol? Ora, como a produção em 2008 foi de 24,5 bilhões de litros de etanol e a área plantada de cana-de-açúcar ocupa 9 milhões de hectares, será necessário ampliar a área em mais de 13 milhões de hectares, atingindo assim uma extensão de mais de 23 milhões de hectares. É por tudo isso que a palavra de ordem deve continuar sendo: Por um III PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária sob controle político dos camponeses sem-terra. (Artigo publicado na Radioagência NP – www.radioagenciaNP.com.br) Ariovaldo Umbelino é professor titular de Geografia Agrária pela Universidade de São Paulo (USP). Estudioso dos movimentos sociais no campo e da agricultura brasilera, é autor de vários livros.
COMECEMOS PELOS deuses do futebol, que, cansados de tanta bandalheira em Bruzundanga, talvez tenham decidido punir com o rebaixamento, desde o final de 2007, os clubes da Série A campeões das jogadas mais escusas no submundo da bola. Primeiro foi o Corinthians, do falso mosqueteiro Dualib, cujo acordo com a “empresa” MSI (uma laranja do bilionário mafioso russo Roman Abramovich) é objeto de investigação pela Polícia Federal. A maracutaia envolveu remessa de dólares para o exterior e o misterioso sumiço de R$ 16 dos R$ 65 milhões que os investidores europeus teriam enviado à MSI Brasil, cujo principal porta-voz era o iraniano Kia Joorabchian. Ela rendeu um polêmico título nacional ao time paulista (com direito a escândalos de suborno de juízes e otras cositas más), mas terminou de maneira melancólica, com a queda para a Série B e manchetes nas páginas policiais. Depois foi a vez do Vasco da Gama, cuja caravela era comandada há décadas por um mafioso genuinamente nacional, o quitandeiro Eurico Miranda, dublê de cartola e deputado federal, célebre por ter sofrido um inusitado assalto quando voltava para casa com toda a renda de um jogo de seu clube... Pois a folclórica e periculosa criatura, além de ser destituída de seu cargo pela Justiça e pelas urnas, será lembrada em 2008 como o principal responsável pelo rebaixamento do Vasco, agora presidido por outro deputado (estadual, diga-se de passagem), o que, cá entre nós, não é o melhor prenúncio para a gloriosa agremiação fundada pela colônia portuguesa. Cabe ao cronista, portanto, indagar: e em 2009, quem serão os punidos pela corte celestial da bola? Sobram candidatos, bem sabemos, mas o leitor e o escriba decerto já possuem seus favoritos. Se pudesse interferir nos desígnios divinos, recomendaria aos orixás que rebaixassem, de uma só vez, toda a turma da CBF e seus aliados na monumental tramóia da Copa de 2014, graças à qual Ricardo Teixeira & Cia. amealharão milhões de reais subtraídos do povo brasileiro. De quebra, enviaria para as calendas gregas a gangue do COB, com Arthur Nuzman (aquele que se reelegeu em uma assembléia secreta ao final do ano) à frente, outra quadrilha que promete bater todos os recordes de “ouro” olímpico com a malsinada campanha da candidatura Rio-2016... Mas deixemos a esfera desportiva de lado e tratemos da política, cujas perspectivas, ao menos, são bem mais sugestivas e promissoras, não obstante – ou, quiçá, por sua causa – a crise que Tio Sam exportou para o mundo globalizado. A atual conjuntura, de fato, é das mais propícias para quem possui propostas alternativas às torpes diretrizes do Consenso de Washington. Não é à toa que o mundo inteiro se divertiu com as sapatadas do jornalista iraquiano contra George W. Bush, para desespero de certos colunistas brasileiros, que escreveram pesarosos nos pasquins da grande imprensa que a agressão ao presidente dos EUA e a atenção concedida a Raúl Castro na recente cúpula da América Latina e Caribe são a prova definitiva de que “o mundo está de pernas pro ar” (!). Imagine, meu caro leitor, o que deve ser um mundo “ordenado” para esses lacaios do capital. Aliás, não é preciso muito esforço para tanto: olhe à sua volta, amigo, e veja a ordem e progresso de Bruzundanga... Você poderá ler as declarações de Darly Alves da Silva, o assassino de Chico Mendes, a um blog da Internet, eximindo-se de culpa no hediondo crime contra o líder seringueiro e declarando-se “um mártir na última instância do sofrimento”. De quebra, se está preocupado com a questão ambiental e a voracidade do capital, apreciará a última medida de Lulinha Paz & Amor na matéria, adiando a punição dos madeireiros que devastaram nossas florestas nos últimos anos. Por falar em (in)justiça, o presidente do STF continua impávido e colossal, assegurando a Daniel Dantas e sua tchurma todas as regalias a que um solerte megaespeculador faz jus na República. Quanto às perguntas, elas continuam a ser feitas mundo afora, mas creio que algumas somente serão respondidas por Papai Noel e alguns duendes. Os otimistas de plantão, por exemplo, crêem que o “bom moço” Barack Obama (apenas uma oportuna opção midiática para a crise de credibilidade do poder imperial) suspenderá o bloqueio estadunidense contra Cuba, ao passo que Sarkozy investe em um nebuloso projeto de “refundação do capitalismo”. O leitor jogaria suas fichas nessas apostas, como os loucos corintianos à espera dos gols de Ronalducho? Bom, de minha parte, recomendo apenas que não sejamos espectadores, e sim atores, nesta efervescente etapa da história latino-americana e mundial, para que 2009 nos traga respostas menos adversas do que o finado 2008. Feliz Ano Novo, caro leitor! Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800
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No Rio Grande do Sul, a necessidade da construção de um projeto popular CONJUNTURA Depois de um ano de repressão policial, movimentos apontam necessidade de uma nova agenda para 2009 Leonardo Melgarejo
Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS) APESAR DA Forte repressão policial contra os movimentos sociais e do endurecimento das políticas neoliberais no Rio Grande do Sul, os trabalhadores gaúchos encerram 2008 com um saldo positivo. No campo político, o ano iniciou turbulento, com a proposta da governadora Yeda Crusius (PSDB) de reajuste tributário – contrariando a própria campanha eleitoral da tucana em 2006 – e passando pelo reajuste salarial zero aos funcionários públicos; fechamento de escolas públicas e de turmas de estudantes; desrespeito das leis ambientais para beneficiar empresas privadas, principalmente do setor da celulose; e a proposta de prorrogação dos pedágios gaúchos por mais 15 anos sem licitação. O governo também ficou marcado pela corrupção desbaratada pela Polícia Federal na Operação Rodin, que investigou o desvio de R$ 44 milhões do Departamento Estadual de Trânsito (DetranRS), envolvendo inclusive secretários de Estado; a fraude na Lei Estadual de Incentivo à Cultura (LIC); e a suspeita sobre a compra de uma mansão pela governadora. No campo social, a repressão policial foi a resposta do governo Yeda às mobilizações. Sem-terra, pequenos agricultores, moradores de rua, professores, sindicalistas e bancários foram presos e feridos pela Brigada Militar, que não se incomodou
Gaúchos se mobilizam contra a monocultura de Porto Alegre (RS)
Policial da Brigada Militar gaúcha aponta arma na direção de trabalhador sem-terra
em utilizar balas de borracha, bombas de gás e cassetetes contra qualquer manifestação reivindicatória ou de crítica à governadora. O diferencial em 2008, como bem analisa o presidente da Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul, Milton Viário, é que a violência do Estado atingiu outros setores da classe trabalhadora que não estão organizados. “É o caso dos caminhoneiros, que em novembro protestaram contra a prorrogação dos pedágios em Porto Alegre e foram multados”, relembra.
Aliança campo-cidade O sindicalista analisa que o governo neoliberal de Yeda Crusius e a repressão policial de certa forma contribuíram para que a aliança entre os trabalhadores do campo e da cidade fosse bastante fortalecida. “Conseguiu-se ter uma articulação que há muitos anos não se tinha. Nos últimos tempos, a fragmentação da esquerda, resultando no surgimento de mais partidos políticos e de diferentes tendências ideológicas, foi fundamental para a desarticulação da classe trabalhadora”, diz.
Polícia Militar e Poder Judiciário unem-se contra movimentos Antonio Paz/Palácio Piratini
de Porto Alegre (RS) Em 2008, as lutas sociais no Rio Grande do Sul ganharam mais um inimigo: o Poder Judiciário. Se, num geral, juízes e promotores deixam subentendido em suas decisões o preconceito aos movimentos sociais, neste ano, o Conselho Superior do Ministério Público do RS se posicionou publicamente contrário às manifestações e ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Um documento do próprio MP divulgado em junho pelos movimentos sociais mostra a articulação de integrantes do órgão com a Brigada Militar para sufocar protestos. A partir de relatórios da polícia militar, o Conselho Superior determinou uma série de ações articuladas com a Brigada e o Ministério Público Federal contra os sem-terra, como a proibição de qualquer marcha ou protesto, intervenção em escolas e indiciamento de lideranças, pedidos de busca e apreensão em acampamentos, ordens de prisão e de reintegração de posse, chegando até a pedir a dissolução do MST. Também criou quatro “zonas de segurança” nas cidades de São Gabriel (Fazenda Southall), Nova Santa Rita (granja Nenê), Coqueiros do Sul (fazenda Guerra) e Pedro Osório, onde estavam localizados acampamentos semterra que pressionavam fortemente pela desapropriação de áreas. Nessas “zonas de segurança”, os acampados estavam proibidos de se movimentar e até mesmo órgãos do governo federal, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), encontravam dificuldade em transitar na região.
Yeda recebe homenagem da Casa Militar
De acordo com o advogado Jacques Alfonsín, “o Ministério Público foi criado para proteger e cuidar dos pobres, mas está contaminado, como todo o Poder Judiciário. A Justiça é feita somente para os ricos, e geralmente está baseada em injustiça para os pobres”. Saudosismo da ditadura Em setembro, descobriu-se a existência da Instrução Operacional nº 6 da Brigada Militar. O documento, entregue a todos os comandos regionais da corporação, determina que os policiais devem fazer a identificação dos integrantes dos movimentos sociais urbanos e rurais, o monitoramento de suas sedes, evitar protestos e ocupações e, quando for preciso, usar a força. A instrução operacional relembrou táticas usadas pelo Exército durante a ditadura civil-militar brasileira e comprovou a tentativa da gestão Yeda Crusius de neutralizar sindicatos e movimentos sociais.
A constante repressão policial e a divulgação dos documentos do MP e da Brigada Militar trouxe ao RS a investigação da comissão especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, ligada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Na visita, ocorrida em setembro, o vice-presidente do conselho Percílio de Sousa Neto taxou a ação da polícia gaúcha como um atentado ao Estado Democrático de Direito. “Em 1964/1965, eu passava na rodoviária de Brasília e via a foto de colegas meus sendo procurados [pela ditadura militar]. E eu me assustei com esse documento da Brigada Militar e com essas fotos. As pessoas que participam de manifestações, em qualquer daqueles movimentos sindicais, estão sendo reprimidas, fotografadas, identificadas e fichadas pela Brigada Militar. Isso não pode continuar”, argumentou. (RC)
A desapropriação da fazenda Southall em São Gabriel, na Fronteira Oeste gaúcha, é a principal conquista da aliança campo-cidade em 2008, acredita Milton Viário. Movimentos sociais do campo e da cidade reivindicavam a área para a reforma agrária desde 2003. Naquele ano, as organizações realizaram uma marcha que durou dois meses, período de rigoroso inverno gaúcho, além de um ato público com dez mil apoiadores que foram a São Gabriel para pressionar pela área, que teve sua desapropriação anulada na
época pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Depois de cinco anos de luta, no dia 5 de dezembro, parte da fazenda, conhecida por Estância do Céu, foi entregue a 300 famílias sem terra, dando lugar ao Assentamento Conquista do Caiboaté. “A conquista da Fazenda Southall deixa 2008 com um saldo positivo. No entanto, mesmo que as alianças tenham sido fortalecidas neste ano, as lutas sociais em conjunto, para ‘além das corporações’ de trabalhadores, estão ocorrendo de forma muito lenta”, analisa o metalúrgico.
Precursor no movimento ambiental, o Rio Grande do Sul se renova em 2009 para enfrentar as políticas da governadora Yeda Crusius. Em dezembro, estudantes, pesquisadores, sindicatos de trabalhadores e movimentos sociais reuniramse em torno do Movimento Gaúcho em Defesa do Meio Ambiente (Mogdema). A articulação já conta com entidades cadastradas do interior do Estado e principalmente em Porto Alegre. O desrespeito à legislação ambiental pelo governo do Estado, principalmente em relação ao Zoneamento Ambiental da Silvicultura, que limita as monoculturas de pínus e eucalipto no RS, foi o que motivou a criação do Mogdema. No entanto, há outros desafios, como a construção das megabarragens no rio Pelotas – previstas no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal. (RC)
A obsessão pelo deficit zero e as derrotas do governo Yeda de Porto Alegre (RS) Na área político-econômica, a administração de Yeda Crusius ficou marcada pelo chamado deficit zero do Rio Grande do Sul. Por conta do equilíbrio das contas gaúchas, servidores públicos não tiveram nenhum reajuste salarial e orçamentos das secretarias foram cortados, refletindo na precariedade dos serviços públicos prestados pelo Estado. Além de fragilizar o Estado gaúcho, o líder da bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) na Assembléia Legislativa, deputado Raul Pont, avalia que a política econômica de Yeda é imprudente para enfrentar a crise financeira, que já atinge o Rio Grande do Sul. “A nossa crítica é pela paralisia, por essa submissão programática e ideológi-
ca ao deficit zero. O deficit zero é alcançado pelo desmonte dos serviços públicos, das mais de 120 escolas fechadas, diminuição de recursos da saúde, não-aplicação dos mínimos constitucionais, ausência absoluta de política habitacional, de assistência social, precarização da segurança pública. Então, qual é a vantagem?”, questiona O deputado também diverge da política de desenvolvimento da governadora, que escolheu investir na grandes empresas, principalmente do setor da celulose. Alegando perdas com a crise, as papeleiras Aracruz Celulose e Votorantim Celulose e Papel já demitiram cerca de mil trabalhadores gaúchos, anunciaram redução de investimentos e suspenderam as obras nas fábricas de celulose – além dos prejuízos ambientais já provocados pelas monocul-
turas de pínus e eucalipto no Estado. “O governo sempre alega o deficit zero, sendo que não há nenhum problema de um governo coexistir com algum déficit, desde que ele seja pensado para garantir o aumento da produção, uma melhor distribuição de renda. É necessário haver mais investimento nas pequenas e médias empresas com a garantia de empregos na agricultura familiar”, avalia. A paralisação das empresas de celulose está entre as principais derrotas do projeto neoliberal da governadora Yeda Crusius. Outra perda significante foi a suspensão do projeto da prorrogação das praças de pedágio por mais 15 anos sem licitação, que não teve o aval do Ministério dos Transportes – já que está envolvida a renovação de contratos em estradas federais. (RC)
Para 2009, o desafio de superar a fragmentação da esquerda de Porto Alegre (RS) Os efeitos da crise financeira, apesar de prometerem ser profundos, podem estimular a construção de um projeto popular de desenvolvimento não somente no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil. Para que isso ocorra, o presidente da Federação dos Metalúrgicos do RS, Milton Viário, considera fundamental o fortalecimento das alianças na classe trabalhadora assim como a superação da
fragmentação das forças de esquerda. “Acredito que no próximo ano, vamos entrar em uma nova fase produtiva. Com a crise financeira, que nada mais é do que a crise da perda de lucro, as empresas irão investir ainda mais em tecnologia, aumentando o desemprego, pressionando pela flexibilização dos direitos trabalhistas, levando à perda de renda da população. O desafio é termos um projeto popular, anti-neoliberal e antiimperialista, para propormos como alternativa”, diz.
Em sua avaliação, ao mesmo tempo que a crise é empecilho para os trabalhadores, ela também trouxe benefícios, como o retardo da expansão das papeleiras no Estado. Já na política, Viário não crê em mudanças nas medidas neoliberais da governadora Yeda Crusius, e antevê ainda mais arrocho nas áreas sociais. “Em 2009, a governadora Yeda irá seguir tentando construir sua reeleição, mas não irá abrir mão das políticas neoliberais. Temos que seguir unidos contra esse projeto”, defende. (RC)
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A violência da Rota, também na internet Reprodução
DIREITOS HUMANOS Página da divisão de elite da Polícia Militar de São Paulo na internet resgata, com saudosismo, violência praticada durante ditadura civil-militar
“SUFOCADO O foco da guerrilha rural no vale do Ribeira, com a participação ativa do então denominado Primeiro Batalhão Policial Militar ‘Tobias de Aguiar’, os remanescentes e seguidores, desde 1969, de ‘Lamarca’ e ‘Marighella’ continuam a implantar o pânico, a intranqüilidade e a insegurança na Capital e Grande São Paulo. Ataques a quartéis e sentinelas, assassinatos de civis e militares, seqüestros, roubos a bancos e ações terroristas. Estava implantado o terror”. O trecho acima, que mais parece ter sido retirado de um documento escrito pelos responsáveis pelo golpe de 1964, que instaurou uma ditadura civil militar no Brasil, faz parte da página institucional na internet do 1º Batalhão de Polícia de Choque Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, (Rota), divisão de elite da Polícia Militar de São Paulo. Passadas mais de duas décadas após o fim da ditadura civil-militar, em pleno Estado Democrático de Direito, a página da Rota resgata, com saudosismo, uma série de acontecimentos que envolveram a Polícia Militar e a própria Rota a partir de 1970, quando foi criada. São citadas, por exemplo, a participação das forças do Estado na Guerra de Canudos, 1897, na Bahia; na Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo; no que chamam de “Revolução” de 1964; e na “Campanha do Vale do Rio Ribeira do Iguape, em 1970, para sufocar a Guerrilha Rural instituída por Carlos Lamarca”. A página também recorda a unidade de policiamento que deu origem à Rota, a Ronda Bancária, que nasceu com o intuito de “coibir os roubos a bancos e outras ações violentas praticadas por criminosos e por grupos terroristas”. Atualmente, informa a página, são as principais atribuições da Rota, em todo o Estado, o “controle de distúrbios civis” e de “contraguerrilha urbana”, conforme o Decreto nº 44.447, de 24/11/99.
“É significativo que estas mensagens estejam, justamente, na página da Rota, divisão da polícia que, ao longo dos anos, é associada a uma série de denúncias de execução, especialmente nas áreas mais pobres do Estado” Denúncias de execução Na avaliação do secretário-geral do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe/SP), Ariel de Castro Alves, é significativo que essas mensagens estejam, justamente, na página da Rota, divisão da polícia que, ao longo dos anos, é associada a uma série de denúncias de execução, especialmente nas áreas mais
pobres do Estado. “Boa parte dos homicídios de civis são atribuídos à Rota, que é um grupo da Polícia Militar de São Paulo que tem um histórico de violência, de assassinatos. Então, também não surpreende essa exaltação do regime militar na página deles”, avalia. A página seria uma prova, portanto, de que o comportamento dos policiais militares não sofreu alterações significativas com a transição da ditadura para o regime democrático. “Apesar de falarem que têm cur-
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Patrícia Benvenuti da Redação
sos de direitos humanos e que estão se atualizando, esses textos mostram, na prática, que eles continuam seguindo e mantendo os mesmos métodos”, argumenta Alves. Para ele, as conseqüências disso “são uma polícia violenta, uma polícia que mata, uma polícia que vê a população como inimiga, que está atuando dentro da doutrina da Segurança Nacional”. Um pensamento ainda tão autoritário, acredita, resulta em grande parte na não responsabilização criminal dos agentes do Estado que cometeram crimes durante a ditadura. “Persiste a atuação violenta, com assassinatos, e a impunidade tem prevalecido. Essa herança do passado também fortalece a certeza de impunidade”, analisa. Visão obscurantista A diretora do Observatório de Violências Policiais em São Paulo (OVPSP) e historiadora Angela Mendes de Almeida tem opinião semelhante e considera que, dentro da Polícia Militar, não houve a ruptura necessária durante a passagem da ditadura para o Estado Democrático de Direito. Exemplo disso, para ela, é o fato de a Rota se “vangloriar” de ações cometidas pelas forças de segurança da época, como o episódio de Canudos, que matou cerca de 25 mil camponeses. “A história do Brasil já definiu a vitória imperial sobre o povoado de Canudos, conduzido por Antonio Conselheiro, como um dos mais vergonhosos massacres executados pelo Estado. Reivindicar o golpe com o nome de ‘revolução’ e o esmagamento de Canudos dá a medida exata da ideologia que move esse destacamento da Polícia Militar”, acusa. E, assim como Ariel de Castro Alves, a historiadora destaca o peso da impunidade. “A mesma opinião pública obscurantista que considera que as torturas e assassinatos da ditadura são coisas do passado – reprováveis, é claro, mas que já passaram, e o que interessa é o futuro – , é a mesma que hoje justifica as execuções sumárias pela necessidade de en-
frentamento ao ‘crime organizado’ e ao tráfico de drogas”, alerta. Polícia que não evoluiu O ouvidor em exercício das Polícias do Estado de São Paulo, Julio Cesar Fernandes Neves, admite que, dentro da polícia, ainda há um segmento simpático ao autoritarismo e à ditadura militar, e que alimenta esperanças de que o Brasil, um dia, retorne ao regime ditatorial. “Existem órgãos do Estado que não prosperaram, não evoluíram, para isso foi instituída a Ouvidoria, o Condepe, para que esses órgãos venham a prosperar e entender que nós estamos já em um Estado Democrático de Direito, e não mais na ditadura”, explica. Na sua opinião, não basta apenas retirar o “entulho autoritário” da página, que denigre a imagem da Polícia Militar, mas mudar a concepção dos policiais militares. “Todos os policiais têm que se adaptar à democracia, não existe mais a perspectiva de se voltar a um Estado ditatorial agora. Então isso tem que ser adaptado, mesmo para aqueles que não gostariam”. E complementa: “Se existem pessoas que têm saudades disso aí, essas pessoas têm que ser banidas de uma corporação”. Pensamento militar Na avaliação do promotor de Justiça Carlos Cardoso, a manutenção desses termos na página da Rota é um dos reflexos da militarização da polícia ocorrida durante a ditadura, quando os agentes de segurança foram transformados em instrumentos de controle social. “A Polícia Militar ainda tem uma concepção militarista muito acentuada. E isso, dentro de uma democracia, caracteriza um desvio de função”, explica.
A página seria uma prova, portanto, de que o comportamento dos policiais militares não sofreu alterações significativas com a transição da ditadura para o regime democrático Ele também defende uma reformulação dos fundamentos e princípios da PM, necessários para sua atuação em um regime democrático e não mais autoritário. “A Polícia Militar deveria fazer uma revisão do seu papel ao longo da história, reconhecendo eventuais equívocos, reconhecendo as manipulações de que foi vítima pelos detentores do poder, sobretudo durante a ditadura militar”, afirma o promotor. Outra mudança fundamental, para Cardoso, é a aproximação do trabalho da Polícia Militar com a Polícia Civil. “Já que não há vontade política de unificar as duas polícias, você tem que trabalhar pela integração das duas. Para isso, a Polícia Militar tem que ser menos militarista e mais civil, até para poder se aproximar mais da população e desenvolver um trabalho policial de melhor qualidade”, propõe.
1º Batalhão de Policiamento de Choque Tobias de Aguiar
A defesa da polícia de SP: “Foi um grande equívoco” da Redação O Brasil de Fato procurou a Rota para ouvir os argumentos da corporação sobre a página. O oficial de Planejamento e Operações da Rota, 1º Tenente Gerson Pelegatti, explicou que as expressões de exaltação à ditadura militar não correspondem mais ao pensamento dos policiais, e que sua publicação tratou-se de um grande equívoco. “A gente elaborou uma página meio a ‘toque de caixa’, e tem coisas que realmente a gente tem que consertar, ela não está totalmente pronta. Tem alguns erros, de fato, porque o solda-
do ou o cabo que faz isso para a gente colocou lá e acabou passando despercebido por nós”, justifica. De acordo com o tenente, estão sendo tomadas providências para tirar a página do ar, a fim de substituir os termos necessários, e também investigar quem escreveu e publicou os textos. Limpeza geral “Estamos todos correndo aqui atrás do prejuízo, vamos ver essa página, ler tudo, item por item, e corrigir o que está errado. E já vamos fazer uma limpeza geral, ver o que não pode estar lá, quem colocou, direitinho, identificar e fazer os consertos que tiver de fazer”, afirma.
O policial não soube informar quando a página será retirada do ar e o tempo necessário para a manutenção, mas garante que os procedimentos serão feitos o mais rápido possível. O tenente também explicou que, atualmente, são missões da Rota o chamado controle de distúrbios civis - rebelião de presos, por exemplo -, patrulhamento tático motorizado, especialmente em locais de maior incidência de crimes, e vários tipos de escoltas, como de detentos considerados perigosos, do presidente e do vice-presidente da República, de somas do Banco Central ou ainda de armas, quando houver necessidade. (PB)
A história dos boinas negras O surgimento da Rota ocorreu logo após o fim da guerrilha no Vale do Ribeira, durante a ditadura civil militar, inicialmente com o nome de Ronda Bancária. O objetivo era reprimir os grupos opositores ao regime que passaram a atuar nas cidades. Em 15 de outubro de 1970, ganhou o nome que hoje ostenta e com o qual ficaria famoso, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. Em 1º de dezembro, data do aniversário do 1º Batalhão, foi adotada oficialmente a boina negra, símbolo que caracteriza os soldados da Rota. Na década de 1980, a Rota ficou conhecida como “a polícia que mata”, em função de denúncias de assassinatos cometidos
por seus soldados, principalmente contra jovens pobres, pardos e negros. A Rota, atualmente, é formada por quase 800 policiais militares e 93 viaturas. A unidade integra o Comando de Policiamento de Choque, que é constituído, além do próprio 1º Batalhão, dos 2º e 3º Batalhões de Choque e do Regimento de Cavalaria. O nome do Batalhão é uma homenagem a Rafael Tobias de Aguiar, considerado o patrono da Polícia Militar de São Paulo. Conhecido como “Brigadeiro Tobias de Aguiar”, foi um dos chefes da Revolução Liberal de 1842, em São Paulo, juntamente com o padre Diogo Antônio Feijó. (PB)
Veja alguns trechos da página da Rota Participação em campanhas de guerra: - Guerra de Canudos, em 1897, sendo responsável pelo último combate que derrubou o Reduto de Canudos, comandado por Antônio Conselheiro, que lutava contra a República. - Revolução Constitucionalista de 1932, quando o povo paulista lutou pelo retorno do Brasil à Constitucionalidade, aclamando Pedro de Toledo como governador; - Revolução de 1964, quando participou da derrubada do então presidente da República João Goulart, dando início à ditadura militar com o Presidente Castelo Branco; - Campanha do Vale do Rio Ribeira do Iguape, em 1970, para sufocar a Guerrilha Rural instituída por Car-
los Lamarca, onde o então Tenente Alberto Mendes Júnior, comandando um pelotão desta Unidade, foi vítima de uma emboscada, oferecendo-se em troca da liberdade de seus subordinados, quando foi assassinado, sendo promovido post mortem a Capitão, e hoje considerado o herói símbolo do heroísmo e mais um marco histórico da Polícia Militar.
a bancos e ações terroristas. Estava implantado o terror.
- Sufocado o foco da guerrilha rural no Vale do Ribeira, com a participação ativa do então denominado Primeiro Batalhão Policial Militar “TOBIAS DE AGUIAR”, os remanescentes e seguidores, desde 1969, de “Lamarca” e “Mariguela” continuam a implantar o pânico, a intranqüilidade e a insegurança na Capital e Grande São Paulo. Ataques a quartéis e sentinelas, assassinatos de civis e militares, seqüestros, roubos
- Assim surgiu a ROTA, um policiamento especializado, criado para atender todo tipo de ocorrência, em especial as que o policiamento comum não tinha condições de fazê-lo; um policiamento com doutrina e características peculiares; uma jornada até nossos dias por entre esta guerra diária nas ruas de São Paulo, em qualquer circunstância ou em qualquer situação, norteada pelo lema de “Dignidade”.
- Mais uma vez dentro da história, o Primeiro Batalhão Policial Militar “TOBIAS DE AGUIAR”, sob o comando do Ten. Cel. SALVADOR D’AQUINO, é chamado a dar seqüência no seu passado heróico, desta vez no combate à Guerrilha Urbana que atormentava o povo paulista.
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O funk no contexto da criminalização da pobreza ARTE E PERIFERIA A cultura emerge como arena da luta de classes, como um espaço de disputa por hegemonia e de formulação de visões de mundo contra-hegemônicas. E se hoje há um lugar de onde é possível pensar construções culturais contra-hegemônicas, esse lugar é a periferia
Adriana Facina e MC Leonardo A PRODUÇÃO cultural é hoje uma área da atividade humana que atualmente experimenta, em níveis inéditos, o avanço do capital. O termo indústria cultural aponta para esse vínculo entre cultura e produção capitalista e para a necessidade de fomentar uma práxis que se contraponha a esse poderoso instrumento do capital para garantir sua hegemonia. Assim, longe de se apresentar como uma esfera neutra e distante dos conflitos sociais, a cultura emerge como arena da luta de classes, como um espaço de disputa por hegemonia e de formulação de visões de mundo contra-hegemônicas. A tarefa de criticar a indústria cultural torna-se, nesse cenário, fundamental para projetos políticos que se definam como anticapitalistas. No entanto, ela não deve se limitar a uma negação dessa indústria, mas também incluir a formulação de propostas e iniciativas que possam apresentar alternativas à cultura hegemônica ditada hoje pelo capitalismo. E se hoje há um lugar de onde é possível
A tarefa de criticar a indústria cultural torna-se, nesse cenário, fundamental para projetos políticos que se definam como anticapitalistas pensar construções culturais contra-hegemônicas, esse lugar é a periferia. Das artes que hoje emergem das periferias brasileiras, existe um fenômeno de massas que já deixou de ser somente carioca e se tornou nacional. Grito da favela, voz do morro cantando a liberdade, som da massa, o funk é um dos ritmos mais malditos da cultura popular brasileira. Seus detratores afirmam que o funk não é música, que seus cantores são desafinados, suas letras e me-
lodias são pobres e simples cópias malfeitas de canções pop ou mesmo de cantigas tradicionais populares. Há ainda os que demonizam o batidão, associando-o à criminalidade, à violência urbana ou à dissolução moral. Ao criminalizarem o funk, e o estilo de vida daqueles que se identificam como funkeiros, os que hoje defendem sua proibição são os herdeiros históricos daqueles que perseguiam os batuques nas senzalas, nos fazendo ver, de modo contraditório, as potencialidades rebeldes do ritmo que vem das favelas. A história do funk carioca tem origem na junção de tradições musicais afrodescendentes brasileiras e estadunidenses. Não se trata, portanto, de uma importação de um ritmo estrangeiro, mas sim de uma releitura de um tipo de música ligado à diáspora africana. Desde seu início, mesmo cantado em inglês, o funk foi lido entre nós como música negra, mais próxima ao samba e aos batuques nacionais do que a um fenômeno musical alienígena. Fenômeno massivo desconhecido da classe média da zona sul e da mídia corporativa, a notoriedade midiática do funk veio nos anos de 1990 e ocupou não as páginas dos elitizados cadernos culturais dos jornais cariocas, mas sim o noticiário policial. Num início de década tristemente identificado com as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, foram os arrastões ocorridos no Arpoador e em outras praias da zona sul que deram visibilidade aos funkeiros. Criação midiática, os arrastões foram apresentados ao amedrontado público como assaltos realizados por bandos de funkeiros favelados. Na verdade, se tratava de embates entre galeras oriundas de bairros como Vigário Geral, encenando, na parte “nobre” da cidade os rituais já bastante conhecidos nos territórios além-túnel. A poesia da favela Enquanto os bailes de corredor organizados por algumas equipes oficializavam os confrontos entre galeras, dividindo os bailes em lado A e lado B, fazendo da violência uma mercadoria lucrativa, fruto de uma sociedade profundamente desigual e opressora com os de baixo, um outro movimento sur-
gia no meio do funk. Em meados dos anos de 1990, donos de equipes e DJs começaram a organizar festivais de galeras, buscando canalizar em outras direções nãoviolentas as rivalidades territoriais. Entre suas várias etapas que se assemelhavam às gincanas, os festivais passaram a incluir a etapa dos raps, músicas que deveriam falar sobre as comunidades
Não se trata, portanto, de uma importação de um ritmo estrangeiro, mas sim de uma releitura de um tipo de música ligado à diáspora africana de origem das galeras e também pedir paz nos bailes. O que surgiu daí foi mais um passo no processo de nacionalização do funk, que agora passava a contar com a poesia da favela, feita por aqueles que curtiam o ritmo e se identificavam com seus estilos de vida. Não há um pai ou mãe do funk nacional. Ele foi produto dos próprios funkeiros, veio diretamente do chão dos bailes. Em cima das batidas vindas dos EUA, como o voltmix e o hassan, juntando melodias de samba, cantigas de roda ou outras oriundas da música pop nacional ou internacional, os raps valorizavam as favelas e também denunciavam os problemas sociais e políticos do Brasil. Muitos deles vão também falar de amor e do próprio baile, da importância deste principal local da sociabilidade funkeira no processo de conquista da mulher amada. Devastação neoliberal A criminalização do funk, que resulta no fechamento da maioria dos bailes dos clubes no final da década, gerando dificuldades econômicas para seus artistas e o desaparecimento de grande parte das centenas de equipes de som que balançavam os funkeiros em todos os cantos da cidade, é parte de um processo histórico mais amplo. É o pe-
ríodo de imposição da devastação neoliberal, que tem como uma de suas faces mais perversas a substituição do Estado de Bem Estar Social pelo Estado Penal, destinando aos pobres a força policial ou a cadeia. Abandonados os sonhos de uma incorporação à sociedade de consumo via emprego, restou à classe trabalhadora o lugar de humanidade supérflua e, portanto, menos humana do que aqueles que são considerados a “boa sociedade”. Quanto maior a desigualdade social, mais perigo para a ordem essa humanidade supérflua representa. A criminalização da pobreza e o Estado Penal são respostas a isso. Mas criminalizar a pobreza requer que se convença a sociedade como um todo de que o pobre é ameaça, revivendo o mito das classes perigosas que caracterizou os primórdios do capitalismo. E isso envolve não somente legitimar o envio de caveirões para deixar corpos no chão nas favelas, mas também criminalizar seus modos de vida, seus valores, sua cultura. O funk está no centro desse processo. Empurrado de volta para as favelas e condenado à ilegalidade, no final da década de 1990 e no início dos anos 2000, o funk se dedicou a cantar o cotidiano neurótico de seus moradores, seja fazendo das facções criminosas sua inspiração, seja cantando o sexo num estilo papo reto, sem romantismo nem meias palavras. Mais uma vez, de volta a polêmica. Cunhado de
Criminalizar a pobreza requer que se convença a sociedade como um todo de que o pobre é ameaça probidão, rótulo que mistura desde a apologia ao crime até músicas que simplesmente relatam uma realidade indigesta de forma nua e crua, esse tipo de funk rendeu inquéritos policiais, reportagens e muita polêmica. No tempo presente, se a paz reina nos bailes e os chamados “corredores da morte” são
coisa do passado, o funk está distante de ser um movimento cultural aceito e respeitado, sobretudo pelo poder público. Hoje, a determinação legal de que a realização dos bailes funk depende da aprovação dos comandantes de batalhões da polícia militar responsáveis pela área faz com que seja praticamente impossível a organização desses eventos, com exceção dos espaços favelados nos quais essas regras não se aplicam. Monopólio Além desses fatores que poderíamos chamar de externos, dentro do próprio mundo do funk há elementos que impedem a expressão e a veiculação da cultura funk em toda a sua riqueza e diversidade. A indústria funkeira é um mercado fortemente monopolizado por poucos empresários, que dominam gravadoras, produtoras de DVDs, programas de TV e rádio na grande mídia. São eles que ditam a moda, usando do seu poder para não respeitar leis de direitos autorais, estabelecer contratos lesivos aos artistas (que, em sua maioria, iniciam suas carreiras quando são muito jovens e com pouco estudo) e descartando artistas que, ao construírem carreiras mais sólidas, se negam a se submeter a essas regras. Com isso, esse mercado passa a se pautar por uma lógica do descartável e da mesmice, evitando a construção de uma tradição musical funkeira mais sólida e, portanto, mais forte política e culturalmente. Cultura popular Apesar desse cenário, novos horizontes surgem no funk. Movimentos reivindicando leis que assegurem o funk como expressão cultural de caráter popular, impedindo sua criminalização; associações profissionais de MCs e DJs buscando assegurar os direitos desses artistas; discussões sobre raízes que tornem o funk menos refém do mercado e mais autônomo nos seus circuitos de criação e divulgação musical; organização de rodas de funk que, à semelhança do samba, busquem unir gerações, criando espaços de trocas de experiências e de sociabilidade entre os artistas; criação de circuitos alternativos de festivais, sobretudo nas favelas,
buscando estimular a criação musical e fortalecimento do diálogo com outras tradições musicais populares, como o samba e o hip hop. Todas essas e muitas outras não mencionadas aqui são algumas das iniciativas que estão postas na cena funk e que apontam para um futuro no qual o potencial de comunicação popular do batidão possa se expressar livremente. É preciso fazer aqui uma referência a Walter Benjamin em suas “Teses sobre o conceito de história”: “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não
Criação midiática, os arrastões foram apresentados ao amedrontado público como assaltos realizados por bandos de funkeiros favelados o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialismo histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo”. Essa tarefa requer reviver no presente a tradição dos vencidos, daqueles que foram derrotados no processo histórico, mas que deixaram como herança suas lutas para os oprimidos de hoje. Trazer a cultura que vem das favelas e periferias para o centro da reflexão e da práxis militante é ir na contracorrente da história dos vencedores e não acreditar em movimentos políticos ditos revolucionários que apostem numa visão elitista da cultura, compartilhando valores com a classe dominante e se recusando ao diálogo com essas formas contraditórias e potentes de expressão artística da classe trabalhadora. Adriana Facina é do Observatorio da Indústria Cultural e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF); MC Leonardo é funkeiro e da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (APAfunk).
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cultura Fotos: NelyRosa
Zefinha foi à feira e misturou tudo MÚSICA Banda cearense mescla música universal, regionalismo nordestino e teatro de rua
Gabriela Santana e Eduardo Sales de Lima de Fortaleza (CE) ZEFINHA É engraçada. Bela atriz e cantora. Quem estiver mais perto, leva até uma cuspida na cara; mas entra na brincadeira. Ela é cearense da cidade de Itapipoca. Imersa no caos da grande cidade, não deixa de valorizar suas raízes regionais. Romântica e politizada, se inspira na espontaneidade dos camelôs da praça José de Alencar, em Fortaleza, para mostrar a sua arte. Se fosse, de fato, uma mulher, a banda Dona Zefinha apresentaria essas características. Originada do teatro de rua e idealizada por Orlângelo Leal, a banda está há oito anos na estrada. Atualmente, seus integrantes se dedicam ao espetáculo Zefinha vai à feira. Em paralelo, se desdobram em mais dois espetáculos: o infantil Os Bufões e O casamento de Tabarim.
Que a pessoa que esteja na Índia, mesmo não sabendo do que está se falando, se identifique quando escutar o som do marimbau. E que isso possa ajudar as pessoas a pensar o mundo de hoje, com objetivos de mudar o futuro Presente na Bienal do Livro do Ceará, ocorrida em novembro de 2008, Leal, letrista e diretor musical da banda, conversou com a reportagem do Brasil de Fato e destacou que o trabalho de todos os integrantes do grupo fica muito mais rico com a participação direta do espectador. Um dos motivos que, particularmente a ele, o faz preferir cantar para o público a ficar horas no estúdio gravando músicas. Brasil de Fato – Como surgiu a banda Dona Zefinha? Foi a partir de
apresentações, em estilo mambembe, feitas nas ruas? Orlângelo Leal – Tem isso que você está falando, mas de uma forma bem mais organizada profissionalmente. Começamos a fazer teatro de rua em Itapipoca, interior do Ceará. O grupo se chamava “Trupe Metamorfose”. Nos anos de 1990, fizemos muitos espetáculos. Quando começamos a fazer teatro em Itapipoca, ele não existia enquanto espaço físico. A gente fazia em escolas, nas praças. A partir daí, iniciamos um estudo de quais instrumentos se adequavam para a rua e que tinham a ver com a música brasileira. Fomos estudar rabeca, marimbau; diversos instrumentos de percussão e outras artimanhas do teatro que ajudaram a complementar a cena. Em 2000, a gente montou um espetáculo chamado Cantos e Causos, que era uma coletânea de músicas e cenas de vários espetáculos. Aí, surge a banda Dona Zefinha. Mas a banda só vai aparecer porque teve o teatro de rua. Em 2001 a gente gravou um disco ao vivo com o nome “Cantos e Causos”. As pessoas gostaram do show e da banda, e continuamos a fazer esse trabalho, mas sem parar o teatro.
Vocês fazem questão de que o público participe de seus espetáculos, seja no próprio palco ou interagindo com suas músicas. Isso veio do teatro de rua? O teatro de rua, para nós, foi a grande escola, porque na rua você está fazendo o espetáculo e as pessoas estão sentindo o seu cheiro. Você cospe na cara das pessoas. Não tem como ignorar, não existe uma quarta parede. Essa relação do toque, da intervenção desse cara do público para se tornar um brincante e contribuir, isso eu aprendi muito na praça José de Alencar. Artistas de rua, como o Quebra-Côco, o Coloral e tantos outros camelôs famosos, que vendem seus produtos e fazem isso de forma espetaculosa. Vocês têm certas músicas que nos remetem a um passado mouro. A gente pesquisou os instrumentos em feiras populares. Dois instrumentos são instrumentos universais, que é o caso da rabeca e do marimbau. A rabeca é um instrumento que vem do
Oriente Médio. O marimbau é aquele monocórdio feito com uma lata e uma corda. É o princípio de uma guitarra. Esse instrumento é universal e pode ser encontrado em diversas culturas. Ele vai receber nomes diferentes e também formas diferentes de se utilizar. Tem o pífano, que é um instrumento também de feira que a gente utiliza. No espetáculo Zefinha vai à feira, nós trabalhamos música brasileira, por isso utilizamos instrumentos presentes no universo popular do Brasil, nos folguedos, e a gente faz uma transformação contemporânea desses instrumentos nesse trabalho. O objetivo não é só fazer um trabalho regional, mas é também fazer música urbana contemporânea, que tem essa sonoridade. Quanto aos ritmos, nosso show tem frevo, baião, samba. Qual a diferença na formação de palco da Dona Zefinha em relação a outros espetáculos, como Os Bufões? Cada espetáculo tem um universo próprio. Nós temos um núcleo formado por três irmãos e minha esposa. Eu, o
Quais as influências no teatro e na música de vocês? Temos influências do circo, muito presente em nosso trabalho, principalmente a parte dos palhaços. Temos influências dos folguedos brasileiros, como o reizado, a nau catarineta, o bumbameu-boi e todas essas grandes manifestações do Brasil. Isso nos ajudou muito a compormos nossa cena. Os folhetos do cordel também influenciaram e influenciam você e sua banda? No meu caso não foi muito o cordel. O meu pai é muito amigo do Geraldo Amâncio, que é um cantador de viola famoso aqui no Ceará. Ele ia muito à minha casa e ouvia a cantoria. Inclusive a forma que eu componho tem uma estrutura que remete à cantoria de viola. Desde a infância eu ouvia. Mas também meu pai gostava de contar causos, de ler poesia para nós de literatura de cordel. Acabou que isso vai influenciar na nossa forma de se expressar no palco.
Espetáculo critica o consumismo
Márcio, o Paulo, e a minha esposa, que é a Joélia Braga. No espetáculo teatral O casamento de Tabarim, somos apenas nós quatro. Na Dona Zefinha, somos oito. E nos Bufões, somos 29 pessoas junto com a orquestra. Como a relação de vocês com o escritor cearense Flávio Paiva? Flávio Paiva é, para mim, um mestre, um tutor com quem eu sempre conversei. Além disso, somos parceiros. Nesse show dos Bufões, tem duas músicas que são parceria, que é o “Maribordo azul” e “A festa do Saci”. Mas antes disso já existia “Os Bufões”, com músicas autorais nossas e também com músicas já conhecidas do universo infantil, que passa por Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Chico Buarque. Os Bufões é um espetáculo infantil, e o Flávio estava precisando de um grupo para interpretar as canções dele. Como tem sido para a Dona Zefinha trabalhar sem uma gravadora, de forma independente? A gente começou a perceber que, independente de tudo, nós temos que fazer. Acredito que existe esse mercado para as bandas independentes. Elas precisam trabalhar, ter contatos e compreender como é que funciona o mercado; saber se projetar. Tem possibilidade de você ser independente. Há vários exemplos. O Mombojó, o MV Bill. O próprio Teatro Mágico tem uma realidade similar. Acho que depende do grupo. É um trabalho mesmo de formiguinha, operário. Você não pode ficar esperando que um dia virá uma gravadora e que ela vai te catar. A realidade do país não é mais essa e nem da indústria da música. Nós estamos com um ano com esse disco “Zefinha vai à feira”; nesse período a gente vendeu o disco em duas lojas aqui em Fortaleza, mas a maior parte foi vendida em nossos shows. Estamos terminando o ano de 2008 com a venda de 3 mil discos. Eu faço uma análise de que foi bom. Nosso disco não é barato, custa R$ 20. Tem encarte, tem um ensaio fotográfico bonito, por isso que ele é caro. Pensamos que no próximo álbum a gente vai fazer um disco de R$ 5 e continuar com esse de R$ 20. O importante é que as pessoas possam ouvir. Na verdade, nós investimos muito no nosso show. A gente
Quem é Orlângelo Leal foi premiado em 2004 pela Funarte pelo “As Prosopopéias de Casimiro Côco”, resultado de pesquisas relacionadas ao circo brasileiro.
quer que as pessoas venham assistir o show. E por acaso comprem o disco. Se gostarem, fiquem ouvindo a música. Sou artista de palco, gosto de estar em cena, como ator, como diretor. Gosto de ver o processo do contato com a platéia, da música acontecendo ao vivo, é isso que me interessa. Particularmente eu não gosto muito de gravar disco. Tanto que a gente, em oito anos, só tem dois discos, um ao vivo e outro no estúdio. Qual a intenção final de suas letras? A poesia é urbana e contemporânea e o espetáculo Zefinha vai à Feira é um espetáculo de denúncia. Tem uma música que se chama “Eu penso”, que o cara fala que está sem tempo para pensar. Tem outra que é “A ladainha”, que é um cara que fala que não tem nem grana para pagar o aluguel, o cartão de crédito, o plano de saúde. No geral, há uma crítica forte ao consumismo. A Dona Zefinha consegue fazer um regionalismo que consegue ser universal? Eu realmente não sei, mas espero que isso possa vir a ser. Que a pessoa que esteja na Índia, mesmo não sabendo do que está se falando, se identifique quando escutar o som do marimbau. E que isso possa ajudar as pessoas a pensar o mundo de hoje, com objetivos de mudar o futuro. Mas eu faço também música brasileira e me aproprio das possibilidades das sonoridades do Brasil. O site da banda é www.donazefinha.com.br.
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américa latina
“Abaixo e à esquerda” com os zapatistas Gilad Liberman
MÉXICO O historiador mexicano Carlos Antonio Aguirre Rojas analisa o movimento que surgiu há 14 anos num dos Estados mais pobres do país
res brasileiros, valeria a pena repensar esse vínculo, à luz da experiência neozapatista. Qual é sua opinião em relação ao protagonismo do Subcomandante Marcos dentro do zapatismo?
Esse “protagonismo” é mais uma criação dos próprios meios de comunicação mexicanos e internacionais que um fato real. O Marcos insistiu muitas vezes que ele é só subcomandante, e que obedece as ordens dos 23 comandantes indígenas, que, por sua vez, mandam obedecendo o mandato das comunidades. Por isso, não existe tal protagonismo.
Waldo Lao e Anna Feldmann da Cidade do México (México) FAZ 14 anos que os zapatistas surgiram em um dos Estados mais pobres do México: Chiapas. Desde então, eles se organizam e resistem aos contínuos embates, mentiras e traições dos governos neoliberais. Desde o ano passado, as bases militares se reorganizam na área rebelde com a finalidade de destruir a autonomia das comunidades zapatistas. A seguir, uma entrevista sobre a Outra Campanha e uma análise sobre os anos de existência do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), realizada com o historiador mexicano Carlos Antonio Aguirre Rojas. Brasil de Fato – “Abaixo e à esquerda” foi o lema com o qual os zapatistas começaram a Outra Campanha, que propõe um outro olhar, outra forma de fazer política. Organizar uma nova resistência nacional ao constante assédio do neoliberalismo. Você poderia fazer uma breve análise da Outra Campanha?
Carlos Antonio Aguirre Rojas – O movimento da Outra Campanha representa uma nova etapa da digna luta dos companheiros indígenas zapatistas e, ao mesmo tempo, o esforço de transformar essa luta que, até 2005, foi predominantemente por direitos e pelo respeito à identidade indígena, em uma luta mais ampla, pelas demandas centrais anticapitalistas de todas as classes e grupos subalternos do México, desdobrada agora na escala de toda a nação mexicana. Assim, podemos falar de três etapas na luta dos companheiros zapatistas: a do fogo, que vai de 1983 a 20 de janeiro de 1994;
Podemos falar de três etapas na luta dos companheiros zapatistas: a do fogo, a da palavra e a atual, a da Outra Campanha, que arranca com a Sexta Declaração da Selva Lacandona e que se afirma claramente até hoje a da palavra, que abarca desde janeiro de 1994 até junho de 2005; e a atual, a da Outra Campanha, que arranca com a Sexta Declaração da Selva Lacandona e que se afirma claramente até hoje. Nessa terceira etapa, o neozapatismo mexicano convoca duplamente: primeiro a todos os setores, grupos, coletivos, partidos e indivíduos que já se assumem aberta e conscientemente anticapitalistas; em segundo lugar, a todos os grupos, setores e classes subalternas de nosso país, que não suportam mais os múltiplos efeitos do capitalismo e do neoliberalismo e que es-
Em Chiapas, dois zapatistas sob as bandeiras do México e do EZLN
tão dispostos a lutar pacífica e inteligentemente, e até as últimas conseqüências, contra esse sistema social capitalista, que é a origem central de nossos problemas. A proposta da Outra Campanha é fazer uma rede ou um diagnóstico das lutas populares, de visibilizar antigos e novos conflitos que o governo sempre se negou a olhar, uma busca de criar um novo programa anticapitalista (uma nova força política). Como você viu a participação da sociedade civil e de outras organizações nesse processo?
A primeira etapa da Outra Campanha se propôs a percorrer o país inteiro, numa atitude sobretudo de “escutar” atenta as experiências, os problemas, as situações e os pontos de vista de todos os companheiros que aceitaram lutar desde baixo e à esquerda contra o capitalismo mexicano e mundial. Em termos gerais, essa etapa foi muito exitosa, pois, após percorrer todo o país, a Comissão Sexta conseguiu realmente elaborar um mapa geral do estado dos conflitos sociais e das lutas e experiências de todos os movimentos sociais que hoje existem no México. Seu êxito foi tão grande e tão rápido que, na metade do caminho, provocou o pânico e o ódio das classes governantes e dominantes no México, que se expressou na repressão sangrenta e criminal do digno povo de Atenco. Essa repressão tentava deter o crescimento da Outra Campanha, e seu êxito cada vez maior, algo conseguido apenas de maneira momentânea. Como resultado dessa primeira etapa da Outra Campanha é que o movimento tem, hoje, presença realmente nacional, contando com grupos de 32 Estados e territórios do México, concentrando, além disso, os mais nobres e mais conscientes setores anticapitalistas de todo o país.
Como vem sendo a organização dessas entidades, como suas ações são realizadas?
É difícil responder essa pergunta de maneira geral. Porque a presença da Outra Campanha varia em cada Estado do México. Ela é uma rede de redes locais, compostas por movimentos sociais tão variados e múltiplos quanto o leque de setores, grupos e classe subalternas do país. E, juntamente com essa enorme variedade, está também a riqueza e diversidade de suas ações.
Diante da contínua onda de assédio encabeçada pelo governo, os grupos militares e paramilitares sobre as
comunidades zapatistas, desenha-se uma clara estratégia que desafia e tem por finalidade a desarticulação da autonomia das comunidades e suas Juntas de Bom Governo. Qual é sua opinião? A atual ofensiva do governo de Felipe Calderón contra as comunidades zapatistas de Chiapas expressa duas coisas: primeiro, que o crescimento da Outra Campanha foi tão rápido e tão exi-
A primeira etapa da Outra Campanha se propôs a percorrer o país inteiro, numa atitude sobretudo de “escutar” atenta os pontos de vista de todos os companheiros que aceitaram lutar desde baixo e à esquerda contra o capitalismo mexicano e mundial
Além disso, as políticas selvagemente neoliberais que leva a cabo estão alimentando a passos acelerados o descontentamento social, o que faz que, no imaginário popular, a data de 2010 esteja cada vez mais presente na consciência de todas as classes subalternas do país. Por isso, nos muros de Oaxaca, no dia seguinte da brutal repressão de 25 de novembro de 2006, podia-se ler: “nos vemos em 2010”. E se, a tudo isso, somamos a atual situação de crise terrível do capitalismo estadunidense e, com isso, de uma boa parte do capitalismo mundial, podemos ser otimistas em relação ao fracasso dessas políticas repressivas. Nesses 14 anos de luta, quais os avanços que você considera que houve dentro das comunidades autônomas zapatistas?
toso que causou um grande medo nas classes dominantes mexicanas. Por isso, decidiram assediar essas bases de apoio do EZLN em Chiapas. Segundo, o governo de Felipe Calderón – que não tem nenhuma legitimidade política, pois é fruto de uma fraude eleitoral monumental – não exclui a possibilidade da “saída militar” ao conflito nessa região, e joga com a idéia absurda de que é possível acabar com o EZLN ou com a Outra Campanha por meio da força. Daí, entre outras coisas, que vem sua política aberta de criminalizar toda forma de protesto social, e seu claro projeto de militarizar o país inteiro, sob o pretexto ridículo da luta contra o narcotráfico.
Acho que foram realmente enormes, o que se pode constatar quando se visita os Caracóis zapatistas. Nessas comunidades, apesar da grande escassez de recursos materiais e do cerco constante do Exército mexicano, se está construindo um mundo novo, com uma novíssima economia e um novíssimo comércio, que não estão baseados na lógica de acumulação do capital na obtenção do maior lucro possível. Também estão sendo criadas relações de gênero muito diferentes às patriarcais e capitalistas, e uma sociedade solidária, fraterna e não individualista, onde o “nós” prevalece sobre o “eu”, e onde os vínculos e o espírito comunitários dominam o conjunto da vida social. Lá se desenvolve uma nova educação e uma nova pedagogia, muito avançada desde todos os pontos de vista, além de uma nova cultura, uma nova forma de saber e formas também distintas de conhecer. E está sendo gestada também outra política, outro governo, outra democracia, tão diferentes aos do capitalismo, e que, na minha opinião, não deveriam chamar-se política, governo ou democracia, mas sim ter outros nomes igualmente novos e distintos. São conquistas fantásticas e fundamentais das comunidades, pois seu valor, além disso, possui um caráter universal.
O que será do conflito durante o governo conservador de Felipe Calderón?
Qual vem sendo a atuação dos meios de comunicação mexicanos diante do conflito em Chiapas?
Sou otimista a esse respeito. Acho que o Felipe Calderón vem fracassando em suas diversas tentativas de reprimir e destruir a Outra Campanha e o EZLN. Sua saída militar não encontra consenso nem sequer na maioria da própria classe dominante mexicana. O que não exclui que ele pudesse, desesperadamente, tentála, mas acredito que isso só agudizaria sua própria e galopante deslegitimação total.
No México, existem dois grandes grupos de televisão que deformam a informação e desinformam as pessoas. Mas, ao lado deles, existem, no âmbito comercial, alguns poucos meios de comunicação mais críticos, que vêm difundindo, em diferentes momentos e de maneira desigual, as conquista e avanços do neozapatismo e, mais recentemente, da Outra Campanha. Falo do jornal La Jornada e da revista
Proceso, além de alguns poucos jornalistas independentes como Carmen Aristegui, por exemplo. Através deles, quebrou-se essa desinformação sistemática dos grandes meios de comunicação, e foi possível a difusão de versões mais realistas e adequadas desses movimentos. Mas, além disso, existem os meios alternativos, que têm jogado um papel essencial, principalmente nessa etapa da Outra Campanha. Pois são eles, sobretudo, que vêm cobrindo e continuam cobrindo esse leque vasto e cada dia maior do protesto social, em Oaxaca, na Cidade do México, em Atenco, em Chiapas, em Jalisco, no norte do país, em Jalapa etc. Qual a relação que o EZLN tem com os movimentos da América Latina, especialmente com o MST? E qual a diferença do movimento zapatista com as outras organizações latinoamericanas?
Faz tempo que há uma simpatia mútua entre os membros do MST e do EZLN. Mas, mais recentemente, em 2007, e a partir do Primeiro Encontro dos Povos Zapatistas com os Povos do Mundo, estabeleceu-se uma relação mais direta, cujo primeiro fruto foi a or-
Faz tempo que há uma simpatia mútua entre os membros do MST e do EZLN. Mas, mais recentemente, em 2007, e a partir do Primeiro Encontro dos Povos Zapatistas com os Povos do Mundo, estabeleceu-se uma relação mais direta ganização, em julho de 2007, de uma mesa redonda sobre a luta pela Terra e Território. Seria longo fazer o balanço das semelhanças e das diferenças entre o EZLN e o MST, ou outros movimentos da América Latina, mas acho que uma diferença importante, que valeria refletir sobre ela com mais cuidado, é a atitude dos movimentos frente ao Estado. Os zapatistas rechaçam toda ajuda do Estado, pelo risco de cooptação e de limitação que implica esse vínculo com as instituições estatais, enquanto o MST não rechaça essa conexão. Assim, a partir da experiência com o governo Lula, que não cumpriu nenhuma de suas promessas ao MST nem aos movimentos popula-
Desde o processo eleitoral de 2006, notou-se um distanciamento entre alguns intelectuais que apoiavam o EZLN. Por que se deu essa ruptura? É um processo que deve ser explicado, em parte, pela própria mudança de dimensão que representa a iniciativa da Outra Campanha. Enquanto o movimento neozapatista estava, basicamente, em Chiapas e lutava principalmente pelas demandas indígenas, ele foi apoiado por certos intelectuais que haviam trabalhado esses temas indígenas, ou a história ou a situação em Chiapas. Mas, ao se tornarem um movimento nacional, os problemas e as exigências de um apoio ou um acompanhamento intelectual do movimento se complicam e crescem. E nem todos os intelectuais que antes apoiaram o neozapatismo têm sido capazes de dar esse salto rumo a problemas maiores e mais complexos. Daí derivam alguns desses desencontros. Outra razão foi a decisão de alguns desses intelectuais de apoiar a candidatura de Andrés Manuel López Obrador, pensando que ela poderia representar uma verdadeira mudança social, o que, na minha opinião, é uma ilusão e um erro total de apreciação. Em outros casos, os intelectuais que, depois de haverem apoiado o movimento por vários anos, optaram, diante dessa mudança de tarefas e dimensão, por se dedicar a sua própria carreira acadêmica. Em que medida as comunidades autônomas zapatistas poderão resistir frente ao contínuo embate com o governo e grupos militares. Qual pode ser o panorama ou suas possibilidades nos próximos anos?
Como eu dizia antes, sou otimista a respeito disso. Estamos falando de centenas de milhares de indígenas, dignos, conscientes e dispostos a lutar até as últimas conseqüências, como nos demonstraram em janeiro de 1994, e como reiteraram nesses 15 anos de luta. Além disso, existe agora o movimento nacional da Outra Campanha, que a cada dia é maior e mais forte, e que também está disposto a lutar, de maneira pacífica e inteligente, e até as últimas conseqüências, contra essa repressão do governo e dos grupos paramilitares apoiados por ele. Então, sou otimista em relação ao futuro, principalmente se penso a cada dia no histórico 2010 que mencionei antes. Acho que, em breve, será realidade esse lema: nos vemos em 2010.
Quem é Carlos Antonio Aguirre Rojas é doutor em Economia pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e pós-doutor em História pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Atualmente, é investigador pela UNAM no Instituto de Investigações Sociais e docente na Escola Nacional de Antropologia e História (ENAH).
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de 8 a 14 de janeiro de 2009
internacional Carlo Marras
Europa: recessão, presidencialismo conservador e crise BALANÇO Pela primeira vez, após oito anos de bonança, fábricas européias voltaram a agitar o fantasma do desemprego num clima de recessão Achille Lollo EM JANEIRO de 2008, os países da União Européia viviam uma relativa tranqüilidade econômica e financeira, que permitia aos governos europeus – sobretudo aos da centro-esquerda – esbanjar otimismo sobre o futuro político de suas coligações. Uma consideração que virou certeza em função da unânime implementação de políticas neoliberais, através das quais foi possível modificar grande parte das relações sociopoliticas tradicionais para impor, no seu lugar, a lógica do mercado e a força do capital. Por sua parte, o movimento sindical e as entidades do movimento popular que eram os principais eleitores dos governos de centro-esquerda foram cooptados ou silenciados no âmbito do novo controle social, que, na realidade, foi a única moeda de troca para o capital abrir as salas do poder. Aliás, essa governabilidade “progressista” foi logo exportada para os países do Terceiro Mundo, uma vez que em muitos destes países os componentes da esquerda sempre tiveram dificuldades em gerenciar a “governança” segundo os ditames da Casa Branca e do FMI. Porém, em apenas dois meses, este cenário de bucólica, eficiente e honesta globalização capitalista desmoronou de forma impiedosa, demonstrando aos mais incrédulos as nefastas facetas deste modelo. E, pela primeira vez após oito anos de bonança, todas as fábricas européias voltaram a agitar o fantasma do desemprego, tanto que hoje, Grã-Bretanha, França,
Itália e Alemanha vivem um clima de recessão progressiva que ninguém sabe até quando continuará e com qual intensidade. Nesse contexto, a solução ideal foi reformular o papel do Estado e dos trabalhadores, no sentido de que o Estado – anteriormente desprezado por não ter a dinâmica do mercado – agora passa a ser o principal financiador do grupos financeiros e in-
Para limitar o aumento da superprodução excedente a maior parte das indústrias européias vai dar em janeiro 30 dias de férias antecipadas para depois começar a desempregar alíquotas proporcionais em cada setor do ciclo de produção dustriais que no passado haviam lucrado com as privatizações das empresas estatais e dos serviços públicos. Por sua parte, o trabalhador – diante dessa crise – é chamado a assumir, cada vez mais, o consumo para poder garantir a manutenção de seu emprego, o que na realidade significa que o mesmo trabalhador vai dar continuidade as novas regras de exploração
fixadas pelo mercado dentro da lógica neoliberal. O drama disso tudo é que nenhum líder ou teórico dos governos da centro-esquerda européia propôs alternativas a esta falsa ação de salvamento do capitalismo europeu. Todos apoiaram as medidas de Bush e de Sarkozy. De fato, a maior parte dos economistas sabem que a expansão do capitalismo europeu, estadunidense e japonês, na procura de lucros cada vez mais fáceis, de commodities cada vez mais desvalorizadas e de mão-deobra cada vez mais barata gerou um incalculável excedente de superprodução que somente um consumo generalizado em termos mundiais poderia absorver. Porém, a maior parte dos países do Terceiro Mundo ainda não têm os necessários conhecimentos para usar os produtos dos países centrais e portanto não os pode comprar. Desta forma, para limitar o aumento da superprodução excedente a maior parte das indústrias européias vai dar em janeiro 30 dias de férias antecipadas para depois começar a desempregar alíquotas proporcionais em cada setor do ciclo de produção. A resposta sindical
Apesar dos erros políticos cometidos no passado e das opções confusas assumidas nos últimos tempos, o movimento sindical europeu continua sendo o único sujeito político capaz de expressar sentimentos de oposição ao status quo e, também, de socializar uma ampla crítica anticapitalista e anti-neoliberal. A recém greve nacional proclamada pela CGIL, Onda Estudantil, Cub e Cobas no
Jovens italianos protestam nas ruas de Bolonha
A recém greve nacional na Itália e os protestos na Grécia representam o ponto de encontro heterogêneo dos diferentes grupos de oposição, cuja desilusão partidária, alimenta sua recomposição política dentro da reconquista do chamado território social dia 12 de dezembro, na Itália, e as manifestações de protestos na Grécia representam o ponto de encontro heterogêneo dos diferentes grupos de oposição, cuja desilusão partidária alimenta sua recomposição política dentro da reconquista do chamado território social. Um território que é bastante móvel, vis-
Cai o reformismo como um verdadeiro gigante de barro O social-neoliberalismo foi a fórmula política que introduziu um novo relacionamento entre o poder e o mundo do trabalho no momento em que os elementos determinantes da nova lógica de produção industrial eram a flexibilização, a precarização e a transformação da mão-de-obra em um produto cujo valor agregado não é mais definido pela sua capacidade de produzir, mas sim pela possibilidade de se tornar, cada vez mais, uma mercadoria substituível e rotativa através do uso indiscriminado dos imigrantes e com a transferência das fábrica para países onde as faixas salariais são baixíssimas. Por outro lado, o gerenciamento de programas tipicamente neoliberais por parte de governos de centro-esquerda salvou a própria doutrina do neoliberalismo thatcheriano, que, na virada do século, começava a falhar, sobretudo nos países em via de industrialização que – diferentemente da Grã-Bretanha – não tinham uma poderosa estrutura econômica e financeira de tipo imperial, capaz de interferir diretamente no sistema financeiro mundial e na definição
Reprodução
Em Bréscia, manifestação contra o racismo
dos parâmetros de globalização industrial. Uma diferença que acelerou a relação de “irmandade estratégica” entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. De fato, trabalhistas britânicos, socialistas franceses, portugueses e gregos, socialdemocratas alemães, holandeses, dinamarqueses, suecos e austríacos, ex-comunistas italianos, franceses e espanhóis, social-cristãos belgas e irlandeses pegaram o barco da Terceira Via porque as teses do ex-primeiro ministro britânico Tony Blair permitiam, finalmente, à esquerda reformista ascen-
der ao poder capitalista sem nenhuma ruptura. Uma mera e simples inserção nos mecanismos centrais do poder que, na Europa, durante muitos anos, foi ensaiada com a participação dos partidos de centroesquerda na administração dos poderes locais (prefeituras e governos regionais). E foi nesse contexto que surgiram novas lideranças, totalmente desligadas do processo histórico das lutas dos trabalhadores, que vieram representar uma nova classe política desejosa, antes de tudo, de uma ruptura ideológica com os conceitos da luta
de classes e do socialismo e assim poder, com mais facilidade, construir alianças para ser o novo administrador da sociedade de mercado. O governo italiano de Romano Prodi – cuja coalizão política juntava todo tipo de grupos de esquerda e de centro-esquerda – é o exemplo mais evidente da afirmação política do social-neoliberalismo, que, na Itália, inicialmente, obteve dois grandes sucessos eleitorais com ampla legitimação popular para depois sofrer duas derrotas eleitorais inesperadas para uma nova direita conservadora. (AL)
to que para o sindicalista, é a fábrica; para o estudante, é a faculdade ou o instituto secundarista; para o homossexual, são as relações discriminatórias; para o imigrante é o gueto suburbano; para o ambientalista, é a descarga clandestina, e assim por diante. Cada movimento, cada grupo de protesto vai de-
finir seu território de luta e se comunicar com os demais no âmbito de um movimento cada vez mais heterogêneo e livre. Um processo lento, mas que pode no fim substituir a legitimidade dos partidos da esquerda reformista e começar a propor alternativas coletivas. É evidente que, neste contexto, o peso político do movimento sindical e em particular dos sindicatos que tradicionalmente foram vanguardas nas lutas do passado, hoje, na Europa, seja cada vez mais determinante. Achille Lollo é jornalista italiano, diretor do filme América Latina: Desenvolvimento ou Mercado?, também em DVD, em www.portalpopular.org.br.
Uma direita mais reacionária e um novo tipo de fascismo Por qual motivo Gianfranco Fini, secretário nacional da neofascista Alleanza Nazionale, aceitou visitar Israel e, em seguida, criticar as leis raciais implantadas na Itália pelo governo fascista de Mussolini em 1939? Por que Gianni Alemanno, prefeito neofascista de Roma que leva no colo uma cruz céltica, aceitou visitar o Museu do Holocausto em Auschwitz? Não se trata de uma improvisada conversão religiosa, mas, sim, de uma operação política e midiática que hoje procura criar uma nova imagem para os “neofascistas” no momento em que muitos deles participam ativamente em governos e, sobretudo, em quase todos os níveis das administrações locais e até no Parlamento Europeu. De fato, no lugar de continuar a atacar a comunidade judaica que na Europa, como nos EUA, é uma das tantas elites da sociedade de mercado, os neofascistas e os neonazistas concentraram suas atividades ameaçadoras contra os imigrantes e os homossexuais, não pelo fatos deles serem potenciais comunistas, mas simples-
mente porque na Itália de Berlusconi, por exemplo, a violência se tornou um produto midiático que serve para estimular os grandes setores do proletariado e da burguesia para que acreditem que existe um novo perigo social que somente um presidencialismo mais eficaz e um regime com tolerância zero poderá parar. Trata-se, então, de convencer os amplos setores populares, os da pequena e da média burguesia, de que o confuso gerenciamento do social-neoliberalismo e as conseqüências da crise mundial são o mal principal da sociedade, que precisa de uma “nova ordem” e de um “novo líder”. Conceitos que, na prática, visam alcançar as condições para a implementação de uma forma de governo autoritária a qual podemos também chamar de novo fascismo, mas que na realidade garante a perpetuação das leis e da lógica do mercado com a prática da exclusão violenta dos grupos de opositores. Um processo que infelizmente está em curso, sobretudo na Itália, que parece ser o novo banco de ensaio dos estrategistas conservadores. (AL)