Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 308
São Paulo, de 22 a 28 de janeiro de 2009
R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Aude Guerrucci/Polaris/Other Images/Folha Imagem
Gershon Knispel
Artista plástico retrata luta de trabalhadores Em comemoração aos 25 anos do MST, o artista plástico de origem judaica Gershon Knispel criou 15 séries de quadros para retratar tragédias e lutas populares da história, como a dos sem-terra (foto). Em entrevista, ele fala sobre arte engajada e os ataques a Gaza. Pág. 8 Ao lado da esposa Michelle, Barack Obama presta juramento durante a sua posse
No Brasil, crise se intensifica com demissões A crise econômica mundial já atingiu o Brasil. E o patronato está contribuindo para piorála. Em dezembro, 655 mil trabalhadores foram dispensados. Como alternativa ao desemprego, os empresários propõem reduzir a jornada de trabalho com diminuição de salários. Pág. 6
Gaza, primeiro teste para avaliar o governo Obama Barack Obama tomou posse no dia 20. Eleito como resultado de uma grande crise do capitalismo, seu governo terá de enfrentar o desemprego, a perplexidade da classe média vitimada pela ganância de banqueiros e a sensação de decadência. Isso contribuiu para
Caso Battisti enfurece a direita
criar um clima de agitação nos EUA. Obama é reflexo desse processo. Resta saber como reagirá às expectativas nele depositadas. A “questão palestina” é um termômetro – o principal, em se tratando da política externa estadunidense. Págs. 2, 9 a 11 Douglas Mansur
Em encontro nacional, MST celebra 25 anos de luta Págs. 4 e 5
Ao conceder refúgio para o ativista político italiano Cesare Battisti, o governo brasileiro desencadeou uma reação entre os porta-vozes da direita nacional, que se curvam claramente aos interesses italianos. O episódio também revela a arrogância de governos europeus. Pág. 7
Militantes chegam a Sarandi (RS) para participar do 13º Encontro Nacional do MST Fernanda Chaves
Na Bolívia, Constituição vai a referendo popular Oposição à Carta Magna faz terrorismo
Emílio Gutierrez Colque, deputado constituinte por La Paz
No dia 25, o novo texto constitucional será votado em referendo nacional. Equanto a campanha pelo SIM – que tem a participação de diversos movimentos sociais, partidos políticos e outros grupos, além de setores independentes – colore a cidade com manifestações bem-humoradas, os defensores do NÃO
divulgam mentiras como as afirmações de que a nova Constituição não defende Deus e confronta o presidente Evo Morales com Jesus Cristo. Pág. 12 ISSN 1978-5134
Belém aguarda 120 mil pessoas para o Fórum Social Mundial Sob o lema “Um outro mundo é possível”, 120 mil ativistas de movimentos sociais de todo o mundo devem participar das 2,6 mil atividades da 9ª edição do Fórum Social Mundial. De 27 de janeiro a 1º de fevereiro, os participantes devem debater os rumos da crise financeira e os danos ao meio ambiente, além de outros temas sugeridos pelas organizações que irão ao Fórum. Para Chico Whitaker, da organização do FSM, o modelo de autogestão, presente desde a primeira edição, é uma “vacina contra o fracionamento da esquerda”. Pág. 3
2
de 22 a 28 de janeiro de 2009
editorial GAZA É A prova dos nove de Barack Obama. Que estratégias o presidente eleito dos Estdos Unidos vai adotar sobre a “questão palestina” e, mais precisamente, sobre o desafio representado pelo governo do Hamas, que conta com aprovação da vasta maioria dos quase dois milhões de habitantes da miserável Faixa de Gaza? Manterá o apoio incondicional ao Estado agressor sionista, como fizeram os presidentes estadunidenses a partir de Ronald Reagan, nos anos de 1980? Não é uma questão menor, muito ao contrário: a relação entre Estados Unidos, Israel e Autoridade Palestina configura o ponto nevrálgico da conjuntura mundial contemporânea, pois reflete, entre outras coisas, a política adotada por Washington para controlar os recursos energéticos do planeta (em particular, o petróleo). Obama já deu sinais de que pretende manter a política de concessões ao lobby sionista estadunidense (representado, em particular, pelo Conselho de Relações Públicas Estados Unidos - Israel). Várias vezes,
debate
Gaza, a prova dos nove de Obama afirmou reconhecer Jerusalém como a capital una e indivisível de Israel, assim descartando liminarmente as reivindicações históricas e religiosas do povo árabe palestino. A nomeação de Hillary Clinton ao cargo de secretária de Estado é um claro aceno a Israel. Em 2006, quando Israel horrorizava a opinião pública mundial, ao lançar todo o seu poderio militar contra a população civil do sul do Líbano (como fez agora em Gaza), a mulher do ex-presidente Bill Clinton, então senadora, chegou a participar de passeatas em apoio ao “direito de defesa” de Israel. O senador Joe Biden, vice de Obama, é conhecido por suas posições francamente sionistas (além der ter sido o autor, em 1999, de uma resolução que autorizava o ataque aéreo dos Estados Unidos ao Kossovo). Mas a história não está escrita. Barack Obama foi eleito como resultado de uma grandiosa crise do capitalismo. Não será necessário, aqui,
analisar detidamente a complexidade da crise, amplamente noticiada e comentada ao longo dos últimos meses. Seu governo será marcado pela transição de uma ordem instituída nas duas últimas décadas, conhecida como neoliberalismo, para uma nova ordem, cujos contornos ainda não estão delineados. Os Estados Unidos terão que enfrentar o funeral de seus sonhos hegemônicos. Obama será obrigado a negociar com outras potências capitalistas, ao contrário do que fizeram os facínoras neoconservadores que ocuparam a Casa Branca sob George W. Bush (que Deus o tenha). Isso tudo se refletirá, necessariamente, na política dos Estados Unidos para o Oriente Médio, pois todas as potências querem o seu petróleo. O jogo se tornará mais complexo. Há, ainda, os aspectos ideológicos e culturais que a eleição de Obama mobilizou. Os eleitores estadunidenses deixaram bastante claro o seu
anseio por mudança (lema principal da campanha de Obama). Não suportam mais a atmosfera opressiva do neoliberalismo, emoldurada pela demencial “guerra ao terror”, fábrica permanente de um pânico artificialmente criado contra um suposto inimigo universal – de preferência, identificado como árabe e/ou islâmico. O desemprego, a perplexidade de uma parte da classe média vitimada pela ganância dos banqueiros e especuladores, a sensação de decadência – tudo contribuiu para criar um clima importante de agitação política e cultural nos Estados Unidos, como não se via desde as grandes mobilizações contra a Guerra do Vietnã. O governo Obama é um reflexo desse processo. O problema é saber como ele reagirá às expectativas nele depositadas, e a “questão palestina” é um bom termômetro – certamente o principal, em se tratando de análise da política externa dos Estados Unidos.
crônica
Beto Almeida
Obama e o complexo militar industrial CERTAMENTE, Obama tem uma popularidade tão grande quanto o volume de problemas socioeconômicos acumulados pelo capitalismo estadunidense ao longo de décadas, mas agudizados fortemente pela nefasta administração delinquente de George W. Bush. Essa popularidade, em fase de crescimento, não é apenas resultado de um jogo midiático cevado pelo poder econômico que o apoiou, cujo leque de participantes vai de segmentos ligados ao complexo militar industrial, a poder sionista composto pela ditadura financeira, indústria bélica e mídia pré-paga. Afinal, eleição presidencial nos EUA é sempre um palco de bilionárias movimentações financeiras em busca de espaço no jogo do poder. E esse poder econômico busca influenciar toda a cena política, os dois grandes partidos, e também controlar por meio das finanças o funcionamento do Congresso. Há idiotas que chamam isso de democracia. Os sindicatos estão sempre reprimidos, ou marginalizados, ou corrompidos. O controle midiático é fortíssimo. Esta é grande contradição que se instala: de um lado houve a operação da forma clássica de se fazer política nos EUA, derramando dinheirama, comprando-se delegados nessa eleição indireta, cooptando a mídia e os jornalistas pré-pagos de sempre. De outro, a novidade, um movimento difuso, de espectro progressista também difuso e programaticamente muito eclético, mas com uma característica que já havia tentado intervir antes, em 1968, quando a candidatura de Bob Keneddy foi destruída com balaços na cabeça. Tiros que também acertaram a todo aquele movimento esperançoso que sonhava em acabar com a guerra do Vietnã, e que apoiava Bob com o mesmo sentido e esperança que uma grande parte dos que se mobilizam agora por Obama. É um apoio difuso e contraditório. Mas é assim que se faz política num país em que, desde o Tacão de Ferro – tão talentosamente descrito e denunciado por Jack London –, os sindicatos, o movimento operário e camponês e os partidos de esquerda foram duramente reprimidos e esmagados para fazer funcionar a democracia do dólar. Evidentemente, os problemas socioeconômicos herdados de Bush são demasiados complexos e gigantescos. O desastre do neoliberalismo ainda está longe de mostrar toda a sua face macabra, mas está cobrando o seu preço, além de espalhar a cobrança por todo o planeta. É provável que os jovens que se mobilizaram, os setores antes avessos a qualquer participação eleitoral que reduziram a crônica e clássica abstenção na eleição presidencial estadunidense desta vez esperam de Obama no mínimo que ele tenha algo de Roosevelt, o presidente que buscou dinamizar o capitalismo na crise de 1929 com uma ação ampla do Estado. Ocorre que o mundo de Obama já não é mais o da era de Roosevelt. E a crise é muito mais drástica e generalizada. A tal ponto que a Inglaterra já fala claramente em criar um banco estatal. Se pensasse em seguir Roosevelt,
que obras públicas Obama poderia fazer agora que não tocassem nos indecentes privilégios orçamentários do Complexo Militar Industrial? Aí está o ponto central. Assim foi para o primeiro Kennedy assassinado, depois para o segundo, e cada vez mais a presença desse Complexo Militar Industrial, considerado o verdadeiro presidente dos EUA, é o fator fundamental na política desse país, cuja principal atividade econômica é a bélica, e que tem bases militares espalhadas por todos os continentes. Certamente os jovens e ativistas que votaram em Obama esperam que os investimentos dirijam-se não ao setor bélico, nem às guerras, nem à economia de papéis especulativos. Há uma vasta faixa de pobreza extrema nos EUA que abrange mais de 50 milhões de cidadãos, segundo estatísticas oficiais. Há ainda uma classe média cada dia mais empobrecida e cada dia mais endividada, que foi conduzida ao endividamento pela ditadura “vídeo-financeira”. Há desemprego galopante, falências generalizadas, e com toda intervenção estatal que teve que começar no próprio governo Bush, as previsões apontam para mais falências, mais crises. No entanto, nos últimos anos o orçamento do Complexo Militar Industrial multiplicou-se várias vezes. Não é muito difícil perceber que será na administração das pressões da indústria da guerra, e aquelas vindas da crise real e da necessidade de dar respostas às legítimas pressões sociais que se avolumarão, que se localizará o epicentro de um governo que, apesar da popularidade, já começa em crise. Até onde pode ir Obama, que foi apoiado pelo poder bélico, pelo poder sionista, finaceiro, midiático, em medidas que eventualmente, em função da profundidade da crise, possam arranhar os privilégios dessa verdadeira casta que manda no poder imperial dos EUA? E como poderá administrar as pressões inadiáveis que vieram de setores jovens, trabalhadores, intelectuais, artistas, que também votaram em Obama, mas esperando paz, esperando que as prioridades sejam colocadas na geração de emprego, de renda, na solução de problemas ambientais. Entres as frases progressistas que
Obama pronunciou na campanha, como por exemplo ao defender investimentos na energia renovável em vez de gastar com guerras por petróleo no Iraque, e a verdadeira estrutura do imperialismo, de suas transnacionais de rapina espalhadas pelo mundo, há toda uma distância, um sinal de tensão e uma contradição que a pouca experiência dos movimentos sociais e sindicais dos EUA deverão enfrentar com alguma dificuldade, porque a pressão imperialista internamente também será implacável. Vale lembrar o legado de demolição de direitos civis que Bush deixou, toda uma série de temas sensíveis que, se não forem enfrentados com clareza, afetarão esta popularidade. Por fim, a possibilidade de Obama fazer uma outra política internacional tem também margens muito estreitas. Haja visto a reiteração de ameaças contra o Irã, a manutenção da guerra no Afeganistão, ainda que tenha que começar a sair do Iraque, assim como a enorme quantidade de bases militares espalhadas pelo mundo, todo um sistema que não se desarticula sem riscos, sem tensões. É por isso que o presidente russo, Dmitry Medvedev, mandou a Obama uma mensagem dura advertindo-o sobre reações vigorosas de seu país caso os EUA mantenham a idéia imperialista de instalar “escudos antimísseis” na Europa. Do mesmo modo, tanto Chávez (Venezuela), quanto Evo (Bolívia), quanto Ahmadinejad (Irã) advertem Obama sobre a necessidade inadiável de revisar toda postura imperial dos EUA e de respeitar os caminhos que outros povos estão escolhendo para construir seu futuro. Definitivamente, não há a menor segurança de que mudanças internas nos EUA sejam feitas em grande alcance, nem que sejam sem tensões. Pode-se apenas afirmar que o desastre Bush para toda a humanidade significa para Obama começar seu governo com a maior crise já vivida por aquele país. Mas o Complexo Militar Industrial segue intocável. De suas ações virão as respostas para os grandes impasses que a política estadunidense terá que atravessar. Beto Almeida é jornalista e membro do conselho político do Brasil de Fato.
Se Obama se inclinar à “esquerda”, rompendo com o establishment absolutamente reacionário que tomou conta de Washington nas duas últimas décadas, cumprirá com o seu programa de reformas sociais, atenderá às demandas de milhões de jovens, trabalhadores e desempregados e, nesse caso, imprimirá uma outra lógica à sua política externa, mais aberta às negociações e ao diálogo, incluindo os palestinos. Claro: não será nenhum Lênin, não é absolutamente disso que se trata, mas poderá abrir espaços para a luta política. Ou poderá, ao conatrário, agir como um John Kennedy da vida: comandou um governo com muito brilho e maquilagem, enquanto promoveu a fracassada tentativa de invasão da Baía dos Porcos e a escalada da Guerra do Vietnã. Será, então, a frustração generalizada de todos os que nele depositaram o voto e a confiança. Em nenhuma outra região do planeta Obama será posto à prova de modo tão explícito, claro e direto: Gaza será sua prova dos nove.
Luiz Ricardo Leitão
No meio do caminho tinha uma pedra MEU PAI era médico numa pequena cidade da Baixada Fluminense. Como em terra de cego quem tem um olho (até com catarata) é rei, o doutor era o cacique da cocada preta em sua aldeia. A bem da verdade, ele era apenas um cidadão de classe média mais avantajado, mas que destoava bastante da vizinhança pobre e desempregada. Já no final da carreira, construiu uma casa confortável, com piscina e churrasqueira, em que reunia os amigos e parentes no final de semana. Quando o visitei pela primeira vez no novo endereço, logo observei que a piscina estava cheia de pequenas pedras no fundo, e ele me respondeu que eram as crianças da vila ao lado que as jogavam, num misto de frustração e inveja por não dispor da mesma “regalia” que o médico famoso. O doutor nunca reagiu ao “bombardeio” dos vizinhos. Ele sabia o que sua bela casa representava naquele mundo desigual e injusto. Por isso, apesar de politicamente conservador (eleitor de Collor & FHC e com franca antipatia por Lula, Chávez, Fidel & Cia), jamais chamou a polícia ou adotou medidas mais violentas contra os moradores da vila, que em realidade era uma velha “cabeça-de-porco” (ou aquilo que os adolescentes que logram cursar o ensino médio conhecerão como um “cortiço”, se porventura lerem a prosa naturalista de Aluísio Azevedo em suas aulas de Literatura). Assim, com o tempo as pedras escassearam e uma espécie de “trégua” permanente se estabeleceu naquele modesto rincão da Baixada. Meu pai não era um Golias, nem tampouco as crianças eram Davis, mas lembrei-me do doutor e de seus vizinhos lendo as notícias sobre a faixa de Gaza, em que as pedras dos jovens palestinos contra as bombas do exército genocida de Israel reeditam, em pleno século 21, a velha alegoria bíblica. A ação israelense, não resta dúvida, visa a massacrar os “incômodos” vizinhos, satisfazendo, em última instância, o projeto imperialista estadunidense para o Oriente Médio, onde se encontram as maiores reservas de petróleo do planeta. Uma parte da burguesia árabe já foi cooptada pelos EUA, mas há setores e grupos mais nacionalistas e “radicais” que não aceitam a presença ianque na região. Para estes, pelo visto, após o fracasso da invasão ao Iraque e ao Afeganistão, talvez seja melhor estimular o velho cão de guarda sionista, cuja existência autocentrada ignora todo e qualquer apelo internacional em favor da paz. Em 2006, Davi – travestido em Hisbollah – infligiu a Golias uma contundente derrota na investida militar de Israel contra o Líbano. As pedras feriram profundamente o orgulho israelita. Agora, às vésperas de uma decisiva eleição, a burguesia judia decidiu dar uma “lição” a um adversário mais frágil, atacando com uma desfaçatez inédita alvos civis e as próprias instalações da ONU. Como escreveu o colunista Janio de Freitas, o bombardeio israelense se dá “a esmo e a granel”: alega-se que os ativistas do Hamas se abrigam em hospitais e escolas, e pronto – lá vão as bombas “cirúrgicas” da armada genocida destroçar a cabeça-de-porco palestina em Gaza. Em suma, inteiramente hostil à criação de um Estado soberano e autônomo em toda a Cisjordânia e na faixa de Gaza, Israel reinventa o Holocausto e promove sua “limpeza étnica”, acirrando ainda mais o regime de segregação ou apartheid que se impôs na região. Ciente de que boa parte da mídia mundial, controlada por poderosos grupos judeus, prefere adotar uma postura de “neutralidade” e condenar, em tom solene e professoral, os ‘excessos’ de ambas as partes (omitindo, aliás, que a primeira ruptura da trégua firmada proveio justamente do Exército israelita), o regime nazi-sionista não demonstra qualquer comoção pelo clamor pacifista dos povos do Oriente e Ocidente. Seu isolamento, porém, já preocupa o poderoso padrinho EUA, que apregoa aos quatro ventos tempos de “mudança” com a posse do bom-moço e bom-crioulo Obama. Afinal de contas, as manifestações mundo afora têm sido impressionantes e revelam uma hostilidade crescente a Israel entre setores que sequer possuem simpatia pelos árabes, como ocorreu na Austrália há poucos dias. As pedras santas dos palestinos estilhaçam a consciência dos povos e servem para nos lembrar que, mais do que lixo, “toda a cultura do Ocidente é um crime”, conforme enunciou Mauro Santayana em sua oportuna paráfrase ao comentário de Adorno sobre Auschwitz. No meio do caminho, ainda há muitas pedras – e os pequenos Davis continuarão a fustigar os Golias em busca de terra, pão, paz e liberdade. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Patrícia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800
de 22 a 28 de janeiro de 2009
3
brasil
Com 120 mil pessoas, Fórum Social Mundial terá a sua maior edição Agência Brasil
ENTREVISTA Ativistas opinam sobre os principais desafios colocados para a nona edição do evento Renato Godoy de Toledo da Redação DE VOLTA ao Brasil depois de cinco anos, o Fórum Social Mundial 2009, em Belém (PA), deve ser marcado por discussões acerca da crise do modelo econômico mundial e dos danos ao meio ambiente causados pela busca incessante pelo lucro. Entre 27 de janeiro e 1º de fevereiro, cerca de 120 mil pessoas participam das 2,6 mil atividades que serão realizadas nas universidades Federal do Pará (UFPA) e Federal Rural da Amazônia (UFRA). Dando sequência à série de entrevistas e reportagens com opiniões de especialistas sobre os rumos do Fórum, o Brasil de Fato entrevistou Chico Whitaker, membro do Secretariado Internacional do Fórum, e o sociólogo Luis Fernando Novoa Garzón, que leciona na Universidade Federal de Rondônia, Estado pertencente à região amazônica.
Indianos fazem protesto na 7ª edição do Fórum Social Mundial, em Nairóbi, Quênia
Autogestão do FSM é vacina contra fracionamento da esquerda da Redação Brasil de Fato – Quais foram as principais motivações que levaram a se escolher Belém como a sede o FSM 2009? Chico Whitaker – A escolha de Belém foi uma decorrência natural da decisão de vir para uma região do mundo na qual incidem de maneira intensa todas as consequências trágicas da lógica econômica perversa que hoje o conduz: a busca do lucro a qualquer preço, depredando a natureza, explorando os trabalhadores, destruindo culturas originárias. Por outro lado, os olhos de todo o planeta estão voltados para essa região, pelo papel que ela cumpre no seu equilíbrio ecológico. E, ao voltar ao Brasil, em Belém, no extremo norte, depois de vários fóruns realizados em Porto Alegre (RS), no seu extremo sul, a dinâmica desse processo poderá reativar muitas das lutas que se travam no Brasil todo por “um outro mundo possível”, permitindo que as articulações que o Fórum torna possíveis se apoiem em novas convergências nacionais e internacionais que lhes darão mais força transformadora. Por último, ao voltar para o Brasil, se chamará a atenção para o que está ocorrendo na América Latina, continente no qual o voto popular está apontando para mudanças políticas necessárias, alimentando a esperança em todo o mundo. Inicialmente, se falava num fórum com uma característica mais ambiental, pelo fato de o aquecimento global ter imposto uma agenda “verde” até para os mais conservadores. O que a organização do FSM fará para que o tema não seja atropelado pelas discussões acerca da crise financeira internacional? O Fórum Social Mundial é sempre autogestionado, com atividades que são propostas pelos seus próprios participantes, de baixo para cima, e não pelos seus organizadores – que se autointitulam “facilitadores” –, de cima para baixo. E ele sempre aborda o conjunto de problemas que o mundo enfrenta, e não somen-
te uma de suas dimensões. Se, no entanto, alguns deles se sobressaírem no conjunto, é por que a consciência dos participantes dos fóruns o sente como mais importante. No caso concreto, se constatou, pela inscrição de atividades que foi feita, que nenhuma discussão atropelará as demais. E é interessante notar que várias delas apontam para a crise civilizatória que o mundo está vivendo, na qual todos esses aspectos têm que ser considerados em seu conjunto. Como o FSM pretende ligar a crise aos danos ao meio ambiente? O FSM não liga nada a nada. Ele não é um movimento ou uma entidade, com seus programas próprios. São os seus participantes que fazem tais tipos de ligação. E se muitos estão se propondo a discutir a crise civilizatória do mundo atual, é por que estão querendo justamente buscar novos paradigmas nos quais tudo interfere em tudo, com a solução dos problemas exigindo mudanças estruturais. De que forma o Fórum pretende apontar alternativas à crise financeira mundial? De novo tenho que dizer que o Fórum, enquanto espaço aberto de encontro, não aponta nada. Quem o aponta são os seus participantes, nas discussões e intercâmbios que farão durante o Fórum. Temos, portanto, que esperar que ele se realize para ver que alternativas serão apontadas. Qual deve ser o formato do Fórum? Deve haver um documento final? O Fórum de 2009 comportará uma série de inovações metodológicas positivas, como o aumento de um dia na sua duração, para que seus participantes possam tratar nesse dia especificamente da problemática amazônica, além da realização de assembléias no último dia para a formulação de propostas de ação. Na prática, também se avançou bastante no processo de inscrição de atividades, uma vez que quase um mês antes do Fórum o programa geral já se encontra à disposição de todos, para que melhor organizem sua participação e seus contatos e identifiquem mais facilmente as articulações possíveis. Sempre no for-
mato de somente atividades autogestionadas, avançou-se também na integração entre atividades culturais e os debates. Mas, como sempre, não haverá um documento final do Fórum enquanto Fórum. Esse é um dos princípios básicos de sua Carta, que funciona como uma vacina contra a divisão, que é o que destrói os movimentos de esquerda. Em compensação, se espera que se multipliquem ao máximo os “documentos finais” das redes de organizações participantes, a partir das propostas de ação que tenham discutido, engajando plenamente quem as adote. O Fórum ainda pretende firmar-se como um contraponto a Davos ou admite a idéia de trabalhar em conjunto em alguns temas? O Fórum nasceu como um contraponto a Davos e continuará sempre sendo esse contraponto, na medida em que a visão de seus participantes sobre o mundo é antagônica a dos participantes de Davos. Impossível, portanto, trabalhar em conjunto com Davos, inclusive porque ambos são espaços, e não entidades, não tendo portanto cúpulas representativas ou direções que falem ou decidam em nome desses participantes. Por fim, você acha que a crise, de alguma forma, pode afetar a própria realização do Fórum, com redução do número de participantes internacionais ou problemas de estrutura? Já ficou demonstrado, pelo número de participantes e atividades inscritas, que a crise não afetou a realização do Fórum. Se tudo continuar correndo bem como aconteceu até agora, o FSM de 2009 será um dos melhores que já foram realizados. (RGT)
Quem é Chico Whitaker é arquiteto, membro do secretariado internacional do Fórum Social Mundial e foi vereador na Câmara Municipal de São Paulo (SP) entre 1988 e 1996 pelo PT, partido que deixou em 2006.
Desafio: construir uma agenda socialista, democrática e ecológica da Redação Brasil de Fato – Qual é a importância simbólica da capital paraense como sede do FSM? Luís Fernando Novoa Garzón – É o FSM buscando um terreno concreto onde os mercados ainda não são absolutamente hegemônicos, grande parte do território e de seus bens não foram convertidos em mercadoria e ainda existem atores – os povos tradicionais – que mantêm uma relação não-instrumental com seu meio, com predomínio do uso coletivo e do compartilhamento de riquezas somente renováveis por serem comuns. A questão não é preservar a Amazônia como bioma, mais sim fortalecer os povos amazônidas que constroem a Amazônia como ela é: diversa, rica, para todos que nela e dela vivem. Apesar das previsíveis interferências corporativas e governamentais, o que há de promissor no FSM de Belém é a perspectiva de avanço do aprofundamento das alianças dos movimentos sociais da região com os movimentos e redes do país e dos demais continentes contra a continuidade da incorporação da Amazônia pelo grande capital. Alguns ativistas ligados ao Fórum apontam que relacionar a crise financeira internacional com os danos ao meioambiente será o maior desafio desta edição. Como se deve casar essa discussão? Os temas estão interligados. A livre organização e movimentação dos capitais, pavimentada pelos estados da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, composta por 23 países europeus, mais Estados Unidos, Canadá, México, Austrália, Nova Zelândia, Coreia do Sul e Japão] e pelas IFMs [Instituições Financeiras Multilaterais], predam a poupança, o valor-trabalho passado e futuro dos trabalhadores, os direitos sociais, os bens públicos e o dinamismo dos pequenos mercados. São esses mesmos capitais que, em nome da máxima escala de rendimentos no menor prazo possível, degradam recursos naturais para depois postular a administração de sua escassez de forma parasitária. Para agonia dos setores que achavam que era possível tematizar ou setorializar o FSM de Belém de forma a apresentar agendas pragmáticas e palatáveis numa espécie de “Eco-
92 social”, a premissa de racionalidade e sustentabilidade nos marcos do capitalismo implodiu com a crise financeira global, subsequentemente produtiva, e daí sistêmica. O FSM será uma oportunidade preciosa para repolarizar o campo internacional depois do esboroamento do terror unipolar de George W. Bush, que encobriu uma intensiva pilhagem corporativo-financeira global. O império foi ao chão, mas está se reerguendo às nossas custas, com recursos públicos, vampirizando a riqueza social, incluindo o meio ambiente, patrimônio dos povos. O que precisamos fazer avançar nesse FSM é a agenda de uma alternativa socialista, democrática e ecológica à crise sistêmica colocada. Pode se dizer que a crise financeira é um “prato cheio” para o debate sobre as alternativas para o atual modelo? A profundidade da crise fez com que os grandes gestores do capital financeiro, os “fundamentalistas do livre mercado”, se apropriassem rapidamente do instrumental keynesiano para socorrer justamente os “fundamentos” do mercado norte-americano, os grandes bancos, corretoras e agências financeiras. Quem está propondo fórmulas corretivas, agora com muita flexibilidade teórica e senso prático, contribui na verdade para um novo ciclo de centralização e concentração do capital, de forma planejada, sem solavancos, que parece que será a tônica do governo de Barack Obama. O momento é de devassar o fundo do poço, verificar os fatores orgânicos e operacionais que nos levaram a essa situação. Mas a negação do capitalismo e de sua irracionalidade inerente é apenas o ponto de partida. É preciso vislumbrar áreas de descostura e áreas de costura em uma estratégia cumulativa. Para intervirmos na conjuntura de crise, precisamos de um programa imediato que, entre outros pontos, passa pela publicização do sistema financeiro em distintas escalas, o que pressupõe diversas formas de controle – nacionais – regionais e internacionais, sobre os fluxos financeiros. Envolve certamente a soberania social e o uso equilibrado dos recursos naturais, em especial da água e da energia. O FSM ainda deve manter a posição inicial de contrapor-se ao Fórum Econômico Mundial de
Davos ou admitir a idéia de trabalhar em conjunto em alguns temas? Davos nunca teve representatividade além dos estreitos círculos dos conglomerados financeiros. Tentativas anteriores de criar “pontes” entre os dois fóruns só serviram para rebaixar o FSM como espaço consultivo do poder econômico global. Os últimos “temas” de Davos – “confiança” e “transparência” – expunham esquizofrenicamente o reverso das práticas de seus propositores, como todos podem ver agora a olho nu. Desde a primeira edição do FSM até os dias atuais, o que mudou na estrutura do evento, positiva e negativamente? Como não participei diretamente da Secretaria Nacional ou do Comitê Internacional, não poderia fazer essa avaliação em detalhe. Mas a experiência colocou a necessidade de se buscar espaços de aglutinação que dessem conta da enorme diversidade de temas, lutas e processos de resistência. Segue a preocupação, pela sua escala pretendida, social e mundial, com a generalidade de seus resultados. Esperamos que as forças sociais vivas presentes no FSM de Belém possam indicar caminhos de convergência que estejam à altura desse momento histórico. A crise, de alguma forma, pode afetar a própria realização do evento, com redução do número de participantes internacionais ou problemas de estrutura? Se por um lado há um estreitamento das fontes de financiamento internacionais de ONGs e movimentos, agências de cooperação, fundações etc., há por outro uma radicalização da conjuntura que predispõe a mobilização e recursos também são obtidos por meio da mobilização espontânea. Há ainda expectativa de forte continentalização com presença significativa de delegações dos países sul-americanos. (RGT)
Quem é Luis Fernando Novoa Garzón é sociólogo, membro do Fórum Independente Popular do Madeira e da Rede Brasil, professor da Universidade Federal de Rondônia e militante da ATTAC (Associação pela Tributação das Transações Financeiras para ajuda aos Cidadãos)
4
de 22 a 28 de janeiro de 2009
brasil Douglas Mansur / Novo Movimento
MST comemora 25 anos no Rio Grande do Sul LUTA PELA TERRA Cerca de 1,5 mil militantes discutem em Sarandi a situação do campo e os desafios do movimento Dafne Melo e Marcelo Netto Rodrigues enviados a Sarandi (RS) DEPOIS DE mais de duas décadas de a fazenda Anonni, no Rio Grande do Sul, ter sido alvo da primeira grande ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – no ano de 1985 – a área volta a entrar para a história da organização como o palco para as comemorações dos seus 25 anos. Desde o dia 20, cerca de 1.500 militantes, vindos de 23 estados, discutem em Sarandi (RS) os rumos que o movimento deve tomar neste ano. As comemorações vão até o dia 24, quando também se encerra o 13º Encontro Nacional do movimento. Segundo Marina dos Santos, da coordenação nacional do MST, os encontros nacionais, que ocorrem a cada dois anos, têm o objetivo de reunir a militância para discutir a situação da agricultura no país e os desafios e lutas do movimento. “Este ano, o diferencial é que também comemoramos 25 anos, então, além do encontro, haverá uma grande festa no dia 24, na qual iremos reunir uma série de organizações da sociedade civil, personalidades e intelectuais, para também demonstrar o apoio da sociedade à luta do MST”. Logo na entrada do assenta-
mento Novo Sarandi, estão espalhadas cinco lonas pintadas que ostentam os lemas dos cinco Congressos que o movimento já realizou: “Terra para quem nela Trabalha” (1985), “Ocupar, resistir e produzir” (1990), “Reforma Agrária: uma luta de todos” (1995), “Reforma Agrária, por um Brasil sem latifúndio” (2000) e o atual “Reforma Agrária: por Justiça Social e Soberania Popular” (2007).
Brigada Militar tem feito plantão na entrada do assentamento em que se realiza o encontro No local do encontro, três lonas gigantes de circo, armadas num campo de futebol, servem de alojamento às delegações, fazendo com que fronteiras inimagináveis aconteçam: Minas Gerais, por exemplo, está ao lado do Ceará e de Rondônia. Longo caminho Apesar de o encontro ter apenas cinco dias, para muitas delegações, ele começou mais cedo. No caminho até o Rio Grande do Sul, muitas
passaram mais de três dias nas estradas, como a do Ceará, por exemplo, que levou 78 horas para chegar a Sarandi, conforme relata um dos seus delegados, Lindenberg Pereira, que debate com seu grupo como será a mística apresentada pelos estados do Nordeste. Além de convidados nacionais, 55 amigos estrangeiros do MST eram esperados, vindos da Espanha, Noruega, Alemanha, Itália, Venezuela, entre outros países. Mas um convidado inesperado também se fez presente: o frio, que tem sido um problema já que as temperaturas baixaram abruptamente apenas na véspera do encontro, quando quase todas as delegações já haviam partido dos seus Estados de origem com a informação de que o clima estaria muito quente. Esse, entretanto, não é o único imprevisto. Na entrada do assentamento, desde o dia 19, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul tem feito plantão, parando os veículos que entram, conferindo documentos e licenças de viagens interestaduais. Os brigadianos têm permanecido na entrada inclusive durante a noite, com fogueiras acesas. Para além da intimidação desnecessária, há o receio de que se usem os dados recolhidos para criminalizar participantes do Encontro.
“Sabíamos que nada viria de mão beijada” Darci José, um dos fundadores do movimento, relembra as primeiras lutas dos sem-terra do enviado a Sarandi (RS) A ocupação, em 1985, da fazenda Anonni – onde o encontro se realiza – é considerada um marco do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Foi o primeiro grande acampamento organizado pelo movimento, que havia acabado de ser criado um ano antes. Dentre as 8.500 pessoas que passaram anos embaixo da lona, estava Darci José Antunes Maschio, considerado um dos pioneiros do MST. Em entrevista, Darci – que já foi da direção nacional e é um dos personagens principais do documentário O Sonho de Rose, de Tetê Moraes – comenta os 25 anos do movimento. Brasil de Fato – Você imaginava que o movimento duraria 25 anos? Darci José Antunes Maschio – Quando, em 1984, iniciamos o movimento, a gente tinha pouca coisa clara na cabeça nossa. Sabíamos que existia um direito constitucional de que cada trabalhador tinha direito de acesso à terra. Tínhamos consciência, dada a história, de que nada viria de mão beijada, que nenhum governo iria fazer por pura bondade a reforma agrária. Assim, com o
apoio da CPT, nós começamos a nos organizar. Eu participava do movimento de igreja quando ajudei a criar o MST no Estado. Como foram as primeiras ocupações? Em 1982, já existiam acampamentos no Paraná, no Mato Grosso que ainda não eram tratados como acampamentos do MST. No Rio Grande do Sul, em 1981, aconteceu o acampamento da Encruzilhada Natalino, que foi o embrião de tudo. Mas ainda não era uma organização propriamente dita da classe sem-terra. Ainda eram lutas localizadas. A CPT criou condições para que a gente conhecesse esses processos de luta, fazendo encontros, trocas de experiências. E a idéia da criação de uma organização permanente surgiu em 1984. Para que o processo de organização, de luta das famílias, não terminasse com a formação de um acampamento.
A primeira coisa que me vinha na cabeça à época, eu, como trabalhador sem-terra, era ter o meu pedaço de terra A princípio, era possível prever que o movimento ganharia a dimensão política que adquiriu ao longo desses anos? A primeira coisa que me vinha na cabeça à época, eu, como trabalhador sem-terra, era ter o meu pedaço de ter-
ra. Deixar de ser meeiro. Para que eu pudesse ficar com toda a produção que produzisse. Bom, como seria o futuro? Na época, nem imaginava. Depois, quando o movimento foi se consolidando, começamos a perceber que ele seria forte, viria a ser uma espécie de referência, capaz de apontar caminho para a mudança da sociedade. Agora, quantos anos nós iríamos durar? Tu olhas na história brasileira e o MST é um dos movimentos camponeses que mais durou. Eu não imaginava que hoje, em 2009, eu estaria, com 51 anos, comemorando 25 anos de um movimento que a gente ajudou a criar em 1983, 1984. Como seria a sua vida se o MST não tivesse acontecido? Na época, eu morava no lado brasileiro da costa da Argentina. Como era pequeno agricultor, acredito que eu deveria estar lá, isolado, tentando ganhar a vida miseravelmente ou teria ido para a cidade, quem sabe para uma dessas favelas das grandes cidades. Eu e todos os que da minha época participaram desse processo e que hoje temos nosso pedaço de terra, nossa casa, nossa família, temos uma vida digna. Hoje, eu não consigo nem me imaginar lá onde eu morava. O que representa a escolha do Rio Grande do Sul, especificamente da fazenda Anonni, para ser palco das comemorações dos 25 anos do movimento? É como se tivéssemos num momento de seca, de estiagem, e viesse uma chuva que fizesse com que o verde voltasse a florescer. (MNR)
Militantes do MST celebram a abertura do 13º Encontro da entidade, em Sarandi (RS)
“O maior movimento cívico do Brasil desde a abolição” Para Plinio Arruda Sampaio, atual período é o que mais impôs desafios ao MST da Redação O presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e ex-deputado federal Plinio Arruda Sampaio, hoje membro do Psol, viu o nascimento do MST e sempre apoiou ativamente suas bandeiras. Aliás, Sampaio é um defensor da reforma agrária há décadas. Como deputado federal, propôs a reforma agrária já em 1963. O projeto, como de praxe, foi emperrado pela ação da direita. “Para a direita, a hora da reforma agrária ou não chegou ou já passou”. Para ele, ironicamente, o período do governo Lula tem sido o mais difícil para o movimento. Veja abaixo entrevista com Plínio. Brasil de Fato – Quando e como foi o primeiro contato que o senhor teve com o MST? Plinio Arruda Sampaio – Não tenho mais lembrança da data exata em que entrei em contato com o MST, mas creio que foi bem no começo do movimento, quando eu dirigia o Proter (Programa da Terra), da PUC de São Paulo. Os contatos amiudaram-se quando passei a dirigir a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e me tornei deputado federal. Dentro da história da luta pela terra no Brasil, como o senhor analisa o surgimento do movimento? Celso Furtado considerava o MST o maior e mais importante movimento cívico da história brasileira após a campanha abolicionista. Assino embaixo. Para o senhor, que acompanha o MST desde o início, quais
foram os maiores desafios enfrentados pelos movimento nesses 25 anos? Parece incrível, mas é agora, que, teoricamente, deveria ser o período mais fácil, uma vez que o presidente advogou a reforma agrária a vida inteira. Como ele não fez a reforma agrária e chegou a paralisar o programinha de assentamentos que havia iniciado, o quadro tornou-se muito difícil para o MST. Piorou logo depois que o governo chamou os usineiros de “heróis” e passou a apoiar exclusivamente o agronegócio.
O maior desafio do movimento é deixar claro para a população rural que o Lula não é mais um aliado dos trabalhadores do campo O MST surge no início da década de 1980, num período em que também surgem o PT e a CUT. Para muitos, esse “ciclo PT” se encerrou. Como o senhor vê o MST dentro dessa perspectiva? PT, CPT, Comunidades Eclesiais de Base, CUT, MST – todas essas organizações fazem parte do processo de ascensão de massas que se verificou no início dos anos de 1980. A defecção do PT e da CUT e o cerco às CEBs foram um golpe duro no movimento popular. Obviamente não poderia deixar de causar impacto no MST. Apesar disso, o movimento mantém-se como a principal referência de luta camponesa no país. A direita afirma que o MST não faz mais sentido hoje, pois não há mais necessidade de se fazer a reforma agrária no país. Qual sua opinião sobre isso? Esse argumento é mais ve-
lho que a Sé de Braga. Para a direita, a hora da reforma agrária ou não chegou ou já passou. Quando propus a reforma agrária em 1963, eles diziam: “não está na hora, não dispomos de estatísticas fundiárias confiáveis; vai atrapalhar a produção”; quando o MST reclama a reforma agrária em 2008, eles gritam: “Já passou”. Tudo porque não têm coragem de dizer claramente: “nós, latifundiários, não queremos e nunca aceitaremos a reforma agrária”. Por isso, ela terá que ser feita por obra da pressão camponesa. Como elaborador do 2º Plano de Reforma Agrária, como o senhor vê o seu andamento dela nesses últimos 25 anos? O Lula não teve coragem de aprovar o Plano e chamou de reforma agrária o programinha de assentamentos que o MDA começou a realizar daquele jeito devagar quase parando que o caracteriza. Agora, nem isso. Ainda que a reforma agrária não tenha se concretizado, quais são, na sua opinião, as principais vitórias do MST nos seus 25 anos? A grande vitória do MST é trazer a reforma agrária para a pauta política do país e especialmente para a pauta dos partidos verdadeiramente de esquerda. Esse é um avanço político formidável. Além disso, é importante considerar a contribuição do movimento para a formação de quadros dirigentes no meio rural. Eles estão amadurecendo e, sem dúvida, comandarão a próxima investida contra o latifúndio (que agora chamam de agronegócio). Para o futuro, quais os principais desafios? O maior desafio do movimento é deixar claro para a população rural que o Lula não é mais um aliado dos trabalhadores do campo. Essa população precisa conscientizar-se de que ou vai para a luta ou nenhum pai bondoso lhe dará a terra de mão beijada. (DM)
de 22 a 28 de janeiro de 2009
5
brasil
Reforma agrária, luta de ontem e hoje Douglas Mansur
LUTA PELA TERRA Ariovaldo Umbelino, geógrafo da USP, analisa processo que deu origem ao MST Dafne Melo da Redação O GEÓGRAFO da Universidade de São Paulo (USP) Ariovaldo Umbelino acredita que o nascimento e o fortalecimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) estão relacionados a fatores conjunturais desenhados ainda no início da ditadura militar. No final dos anos de 1970, com o fracasso dos projetos de colonização dos militares – personificados em rodovias como a Transamazônica e a CuiabáSantarém –, os colonos insatisfeitos voltaram aos centros urbanos. Nesse cenário, com o auxílio da ala progressista da Igreja e da crise econômica, criou-se um clima propício para a articulação de camponeses descontentes com a situação. Confira abaixo entrevista com o geógrafo. Brasil de Fato – Qual a conjuntura agrária em que nasce o MST? Ariovaldo Umbelino – A origem do MST remonta a meados da década de 1960. Com o golpe militar, desarticula-se o embrião das organizações que as Ligas Camponesas haviam conseguido construir. Se alteram, no plano legal, os avanços na legislação e na criação de órgãos governamentais, como a Superintendência de Política Agrária (Supra). Também havia o decreto do governo João Goulart, no qual se determinava que os 20 quilômetros ao longo das rodovias brasileiras eram áreas prioritárias para a reforma agrária. O governo militar desarticula tudo isso. Mas em novembro de 1964, contraditoriamente, manda ao Congresso um projeto de lei que cria o Estatuto da Terra, ainda hoje a legislação principal relativa à reforma agrária. Essa aprovação não significou, naturalmente, uma real tentativa de implantar a reforma. Em nenhum momento em que estiveram no poder, os militares elaboraram um plano nacional de reforma agrária. Houve apenas projetos de colonização na Amazônia, que estiveram na mídia com toda uma divulgação e propaganda, e que foram feitos no contexto do programa de integração nacional que construiu a Transamazônica, a CuiabáSantarém e parte da Perimetral Norte, dentre outras rodovias. Esses projetos de colonização foram realizados na Transamazônica, e dois anos depois de implantados já revelavam seu fracasso. Ainda apostando na mesma tática, começaram a fazer projetos de colonização na rodovia Cuiabá-Porto Velho.
A estratégia muda e o campesinato percebe que a organização deve preceder a ocupação Por que esses projetos fracassaram? Nesses projetos da década de 1970, os colonos que migraram ficaram sem apoio e sem políticas agrícolas. Então, retornam para o Estado de origem, particularmente para os do Sul. A partir daí, vamos ter uma continuação do processo migratório para a Amazônia, sobretudo de pessoas do Mato Grosso, o que hoje é o Tocantins e Maranhão. Nesses estados, o conflito sobre a abertura das posses vai se es-
Trabalhadores rurais preparam mística para celebrar a abertura do 13º encontro do MST tabelecer, pois os governos militares, também no marco do projeto de integração nacional, fizeram programas de incentivo fiscal em que renunciavam parte do imposto de renda de empresas que implantassem projetos agropecuários na Amazônia. Quando iam para lá, esses empresários achavam nessas terras os posseiros. Ou seja: o Estado estava alienando terras, a princípio devolutas, para grupos privados sem respeitar o direito desses posseiros que a Constituição brasileira garante. Então, a década de 1970 foi marcada pelo conflito de posseiros, sobretudo na região do Araguaia, inclusive tendo como um dos episódios a presença da guerrilha do PCdoB. Como o fracasso desses projetos se relacionam com o surgimento de organizações no campo, como o MST? Esse quadro de fracasso da colonização e a não-realização da reforma agrária fez com que, no final de década de 1970, os colonos retornassem desses projetos. Isso, aliado a um quadro de urbanização crescente e crise econômica, cria todo um ambiente social, no qual também se encaixam as ações da igreja progressista nas comunidades eclesiais de base. Daí, começam a ocorrer no país – sem que houvesse um processo de organização nacional – ações camponesas em diferentes pontos. Esses processos já ocorriam no Rio Grande do Sul ainda no período militar. Um dos episódios ocorre quando a Funai tira das terras indígenas, sobretudo dos Caigangue no RS e SC, os colonos que haviam ocupado e aberto posses nessas terras indígenas. A partir desse contexto, os colonos vão iniciar um conjunto de ocupação de terras, dentre elas a da Encruzilhada do Natalino [norte do RS]. O governo militar manda o Major Curió com a intenção de levar os acampados para a região amazônica do Mato Grosso. Consegue levar 200 famílias para o assentamento de Lucas do Rio Verde. São levados de avião, de madrugada, justamente para não terem noção do deslocamento a que eram submetidos. Havia lá uma empresa já contratada pelo Incra para fazer os assentamentos. Estive em Lucas no início dos anos de 1980 e, em uma das entrevistas, o colono dizia assim: “Nós passávamos a manhã sentados na porta da sala e a tarde na porta da cozinha, e só mudávamos de lugar porque a sombra mudava de lugar”. Esses colonos caíram numa armadilha que envolvia o executor do Incra em Rio Verde – o gerente do Banco do Brasil em Diamantina –,
o que redundou num escândalo naquela época. A maior parte deles voltou, vendendo, sem que isso pudesse ser feito legalmente, seu lote em troca da passagem de volta para o Sul.
O problema é que as elites brasileiras não querem a reforma agrária sob hipótese nenhuma E são as articulações a partir desse cenário que culminam com o MST? Essa articulação começa em vários pontos. No Paraná, há uma articulação a partir dos colonos que foram atingidos pela construção de Itaipu e que não receberam uma indenização que possibilitasse a compra de uma terra igual a que tinham antes. Então, fizeram acampamentos. Em São Paulo, duas áreas conheceram, nesse período de final dos anos de 1970 e começo dos de 1980, processos de luta pela terra: Andradina, na Fazenda Primavera, em que rendeiros se rebelaram quando houve aumento desses arrendamentos; e também em Sumaré, próximo a Campinas, no início da década de 1980, quando foi articulada uma ocupação de terra e a conquista de Sumaré I. Isso tudo antes do surgimento do MST. Então, essa articulação camponesa está na base da formação do MST. Desde 1974, havia a Lei da Reforma Agrária, mas ela não era feita, e esses movimentos colocavam na agenda política a luta pela terra. Tendo, agora, as ocupações de terras como instrumento político a partir do qual buscavam suas reivindicações. Na medida em que a terra se concentra e a reforma agrária não se realiza, cria-se a base na qual os movimentos sociais vão nascer. E como a ocupação de terras vai se consolidar como instrumento de luta? Há três experiências importantes de organizações camponesas que já revelam o papel dos posseiros e o uso da ocupação de terras como instrumento político. Guerra do Contestado (1912-1916); na década de 1950, a formação de Trombas e Formoso em Goiás, numa ação inclusive articulada pelo PCB; depois, as Ligas Camponeses que vão nascer no Nordeste, na Zona da Mata e Agreste, mas que depois ampliam sua bandeira de luta no período do governo de João Goulart. Nas duas primeiras, estava em jogo o destino de
terras públicas. No Contestado, o Estado queria dar terras onde já havia posseiros a uma empresa de capital internacional que ia construir uma ferrovia. Em Goiás, queria dar a terra para as elites locais. A diferença das duas primeiras experiências para a das Ligas, na década de 1970, é que as ações são individuais, as famílias migram, ocupam, e o conflito surge quando alguém afirma que é o verdadeiro dono daquelas terras. Quando o conflito se instaurava, aí sim criavam mecanismos de articulação comum e ganhavam alguma organização social e política, mas na medida que o conflito se solucionava, para o bem ou para o mal, essas organizações desapareciam. No começo da década de 1980, a necessidade da articulação de caráter político vai se por primeiro, de forma anterior ao processo de ocupação de terra. Ou seja: dá-se o processo inverso do que acontecia antes, onde se fazia a ocupação e a partir daí se organizava algo que logo se extinguia. A estratégia muda e o campesinato percebe que a organização deve preceder a ocupação, o que está nas origens do MST. Uma organização política que vai reivindicar, com uso das ocupações, a reforma agrária. Em relação aos marcos legais, eles por si só garantem a reforma, mas por que ela não ocorreu até agora? Desde o fim da escravidão, com a Lei de Terras de 1850, foi negado aos que não tinham terra o acesso a ela sem que fosse pela compra. Então, a história do campesinato brasileiro é a história dos sem terra. Nunca tiveram terra, sempre tiveram que lutar pelo acesso a ela. A Lei de Terras, no seu artigo segundo, criminaliza a posse. O posseiro ia preso e tinha que indenizar a União por possíveis estragos. Mas os camponeses e os latifundiários não pararam de abrir posses. A Constituição de 1934 teve que garantir o direito de posse, desde que uma parte dela fosse destinada para o mantimento da família. A posse era de 25 hectares. Mesmo os militares, na Constituição de 1977, reconhecem as posses e ampliam a área para 100 hectares. O curioso é que o processo histórico dessa luta pela terra fez com que o Estado ampliasse, do ponto de vista legal a possibilidade, do acesso. O Estatuto da Terra, de 1964, era o reconhecimento do Estado de que o país teria que fazer a reforma agrária mais cedo ou mais tarde. O problema é que as elites brasileiras não querem a reforma agrária sob hipótese nenhuma e querem para si as terras devolutas do país.
Antes do MST, outras organizações promoviam a luta. Qual diferencial que traz o movimento? O MST, no meu entendimento, nasce como instrumento político do campesinato brasileiro, tornando os camponeses cientes dos seus direitos e em processo de luta. E traz uma novidade, que é a idéia de que enquanto existisse um sem-terra todos os camponeses brasileiros seriam sem-terra, ou seja, mesmo os assentados continuam no processo de luta para que todos tenham acesso à terra. São esses instrumentos de consciência política que vão estar na base da força política que o MST tem até hoje. Segundo, vão inaugurar na luta política brasileira a democracia de massa, ou seja, democracia construída na base. Todos seus militantes são sujeitos sociais em processo de luta e capazes de falar em nome da organização que estão criando. Por isso que o MST não nasce como organização formal, mas como movimento socioterritorial. Vai revelar ao Brasil e ao mundo que uma parte das terras não estão sendo usadas produtivamente ou estão ocupadas por pessoas que não têm direito legal de estar nelas. O MST põe a nu a estrutura fundiária brasileira. Ou seja, a presença da terra devoluta e da terra improdutiva. Ao mesmo tempo é um instrumento de luta política.
O MST põe a nu a estrutura fundiária brasileira. Ou seja, a presença da terra devoluta e da terra improdutiva No governo Sarney há o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária e a expectativa de que o Estado possa resolver a questão fundiária. Em seguida, o neoliberalismo. Como se dá a luta nesse processo? Com o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária, que seria realizado entre 1985-89, fica claro que o Estado não fará a reforma agrária. Esse 1º Plano previa o assentamento de 1,4 milhão de famílias, e o Sarney termina seu governo tendo assentado pouco mais de 10 mil. Na realidade, também essa contingência política da nãorealização da reforma agrária vai surgir como instrumento de consciência para que essa luta avance na década de 1990. Claro que todo o conjunto das mudanças impostas pelo neoliberalismo vai estar na base das ações das po-
líticas de Estado. O Collor governou sem plano nacional de reforma agrária, assim como seu vice que assumiu depois. O Fernando Henrique Cardoso vai se eleger e tampouco tem um plano. Então, na década de 1990 o processo de luta vai se acirrar, revelando a consciência de que a reforma agrária só poderá ser obtida pelo processo de enfrentamento político e de ocupação da terra. Desse modo os conflitos de ampliam. O Raul Jungmann, ministro do Desenvolvimento Agrário no governo FHC, sempre afirmou que foram os conflitos de Corumbiara e de Eldorado de Carajás que o tornaram ministro, revelando de forma clara que o FHC só “assumiu” a tarefa da reforma agrária porque era uma imposição dos movimentos camponeses, sobretudo do MST, que até metade da década de 1990 é o único que faz ocupações de terra. Passado o governo FHC, a relação acampamento/assentamento sempre foi desfavorável: mostrava que o governo só faz assentamento quando há pressão política. No governo Lula há o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária e uma nova esperança. Como você o avalia? Nos primeiros anos, houve uma certa espera para ver se o governo Lula levaria a cabo o 2º Plano. Em 2005, ficou mais claro que a reforma não estava sendo feita. É quando há uma espécie de rompimento entre MST, Incra e MDA, quando esses órgãos divulgam os números de assentados e o MST faz uma nota desmentindo-os. Tornou-se claro que o governo Lula estava usando o mesmo expediente do governo do PSDB: incluir no número de assentados os casos de regularização fundiária e reconhecimento de assentamentos antigos. Nos dados divulgados de 2005, por exemplo, incluiuse um assentamento em Barra do Corda, Maranhão, de 950 famílias, que na verdade foi feito no governo de Getúlio Vargas. Mas como foi reconhecido pelo governo naquele ano, entrou na relação para engordar as estatísticas. Isso foi revelando ao MST que a luta pela reforma agrária teria que ter outra dimensão política, não se limitando apenas à disputa de terras em si, e que a luta deveria ser contra o agronegócio, o que se consolidou no seu 5º Congresso, defendendo também o patrimônio público brasileiro em relação a seus recursos naturais. A reforma agrária está longe de ser alcançada, e as disputas pela terra se acirram. Quais os maiores desafios do MST nos próximos anos? Está claro hoje que as elites brasileiras se apropriam de terras públicas de forma ilegal. Diante da legislação de terras que temos, não se pode legalizar essas situações, então há uma grande investida para alterar esses marcos legais. O governo Lula quer permitir essa apropriação ilegal. Um exemplo é a MP 422, já transformada em lei pelo Congresso, que permite a legalização de terras na Amazônia legal até 1.500 hectares, uma afronta à Constituição brasileira. Então, essa postura que o governo tem tomado parece que tende a se ampliar. O ministério ocupado por Mangabeira Unger quer aprofundar essa legalização fundiária na Amazônia, o que é uma afronta e vai ser contestado pela sociedade civil. A ampliação dessas ações de entrega das terras para a iniciativa privada, grandes empresas e transnacionais deverá ser combatida em diversos flancos. A luta contra o agronegócio e as transnacionais revela o papel efetivo que ele tem no Brasil. Quem produz alimento são as pequenas propriedades, isso todos os dados comprovam.
6
de 22 a 28 de janeiro de 2009
brasil
Demissões e redução salarial aprofundam a crise econômica TRABALHO Reduzir a jornada com diminuição de salários e sem garantia de manutenção do emprego: essas são as propostas dos empresários apenas para piorar a crise Antônio Cruz /Agência Brasil
Eduardo Sales de Lima da Redação EM DEZEMBRO de 2008 foram fechados 655 mil postos de trabalho, o pior resultado desde 1999. E se depender dos grandes empresários, esse número vai aumentar. Como alternativa à crise, o patronato tenta convencer os trabalhadores a reduzir a jornada de trabalho com diminuição de salários e sem garantia de manutenção do emprego. As propostas dos empresários para enfrentar a crise financeira mundial, e que afeta diretamente o Brasil, foram consensuadas em reunião realizada dia 14, na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), entre diversos representantes patronais como o próprio presidente da Fiesp, Paulo Skaf, e Roger Agnelli, presidente da Vale, que no final do ano passado demitiu 1.300 funcionários em todo o mundo. Os patrões querem reduzir a jornada e salário em até 25%. Propõem que os contratos possam ser suspensos em até cinco meses, e que, nesse período recebam somente o seguro-desemprego. Júlio Turra, membro da executiva nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), considera cínica a ação encabeçada por Skaf. “A Fiesp está com uma atitude provocadora ao dizer que a garantia de emprego é o mercado que determina. E é o mercado que determina mesmo, por isso que o mundo está nessa crise ”, ironiza Turra. E os empresários vão além. Não querem aceitar a exigência de contrapartidas por parte do governo que tenha como objetivo a manutenção dos empregos em troca das ações que beneficiaram as empresas neste momento de crise, como a desoneração de impostos e o aumento das linhas de crédito oferecidas por Banco do Brasil, Caixa
Principais centrais sindicais participam da 5ª Marcha da Classe Trabalhadora
Econômica Federal e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “Mão livre” Dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) revelam que em 1998 foram produzidos 1,6 milhão de veículos. Dez anos depois, o número chegou a 3,2 milhões. “Onde ficou esse dinheiro dos lucros das montadoras? Essas empresas, que além de tudo são multinacionais, têm gordura para queimar”, defende Turra. Para o dirigente da CUT não há motivos para que os direitos trabalhistas sejam flexibilizados e haja demissões, sobretudo no setor automobilístico, que só em dezembro demitiu 3.200 trabalhadores. Apesar da queda de produção no final do ano, o setor bateu recorde histórico de carros produzidos. No entanto, segundo Turra, isso não refletiu em melhorias para os trabalhadores. Além disso, acrescenta, nenhuma medida de prote-
“Ameaçou facão, para!” Sindicalistas prometem mobilização e defendem unidade na luta para fortalecer trabalhadores da Redação As negociações entre centrais sindicais e patrões estão suspensas. O ponto que impossibilitou o diálogo foi a proposta dos empregadores de reduzir a jornada mais o salário. Dentre as centrais sindicais, Conlutas e Central Única dos Trabalhadores (CUT) não aceitaram sequer discutir a pauta de redução de salários. A CUT se posicionou rechaçando qualquer demissão e propondo a estabilidade no emprego, liberando a redução constitucional da jornada máxima de trabalho para 40 horas semanais sem redução dos salários e com limitação das horas extras. O advogado especialista em direito trabalhista Magnus Facatti, explica que a redução do salário é permitida pela Constituição Federal, mas apenas mediante um acordo coletivo dos trabalhadores. Ele explica que o artigo sétimo, inciso quinto, fixa como princípio que o salário não pode ser reduzido, salvo disposto em convenção ou acordo coletivo pelo sindicato da categoria e com a aprovação dos trabalhadores em assembléia. Ou seja, qualquer decisão desse tipo só pode ser assinada com a aprovação de uma assembleia geral dos trabalhadores. Facatti, entretanto, diz que após reduzir jornada e salário, “recuperar as condições que foram perdidas é sempre mais difícil. O que não quer dizer que seja impossível, até porque nesse exemplo do acordo e da convenção coletiva há um prazo de validade que não pode exceder a dois anos”, pondera o advogado. Para ele, resta saber se o empregador vai retornar às condições originais ou criar obstáculos para negociar em outras bases essa retomada dos contratos.
Júlio Turra, membro da executiva nacional da CUT, vê a proposta da Federação das Indústria do Estado de São Paulo (Fiesp), de simplesmente reduzir jornada e salários, como contraproducente em relação à crise global. “A própria Força Sindical foi forçada a abandonar essa tentativa de acordo, porque pegou mal”, pondera. Turra reforça que não foram os trabalhadores que fizeram a crise e por isso não podem pagar por ela. “A Força Sindical, lamentavelmente, serviu para eles como balão de ensaio ao aceitar o rebaixamento dos salários”, critica. Por sua vez, o presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Wagner Gomes, considera que o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, “passou de provocador à cara-de-pau”, por ter afirmado que não é possível garantir o emprego, mesmo com salários reduzidos. Mas Gomes afirmou ao Brasil de Fato que, numa conversa entre o presidente da Força Sindical, Paulinho da Força, e o próprio Skaf, no dia 15, o último já teria sido convencido de que a saída não era reduzir o salário do trabalhador. “Se forem reduzidos os salários, põe-se gasolina na crise; produz menos, o trabalhador compra menos e a empresa demite mais”, completa o presidente da CTB. O integrante da coordenação nacional da Conlutas, Luiz Carlos Prates, vê o atual momento como fundamental para articular a resistência em cada empresa. Da CUT, Júlio Turra é categórico: “Ameaçou facão, para!”, referindo-se às demissões em massa praticadas por empresas sob argumentos de crise mundial. Reforçando a tese de unidade dos trabalhadores, o presidente da CTB, Wagner Gomes, conclui: “na unidade a luta já é brutal, imagine divididos”. (ESL)
ção ao emprego ocorreu de fato até agora, porque isso não faz parte da natureza do sistema. “Eles querem ficar com mão livre para demitir e buscar acordos de flexibilização de direitos, para impor banco de horas”, explica. Para Luiz Carlos Prates (Mancha), diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos (SP) e da coordenação nacional da Conlutas, os empresários tentam hoje impor um “arrocho sobre os trabalhadores para garantir a mesma margem de lucro das empresas antes da crise”. O sindicalista defende que a luta contra as demissões e a flexibilização dos direitos trabalhistas precisam estar juntas, porque “o preço do arroz, do feijão, do aluguel, da mensalidade escolar, todos esses, não vão diminuir”. Trabalho e poder de compra Por pensarem a curto prazo, os empresários, além de prejudicar individualmente o trabalhador e sua família, causam danos à so-
ciedade como um todo e, em conseqüência, ao seu próprio negócio, num jogo contraditório e inerente ao próprio sistema capitalista, explica o presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, Paulo Passarinho. Para ele, na crise, a variável do trabalho é logo vista como uma maneira de cortar despesas. “Se isso obedece uma lógica dentro do universo microeconômico empresarial, sob o ponto de vista da macroeconomia e do interesse da sociedade, é muito nocivo, porque ao operar demissões representa a perda de capacidade de consumo por parte daquele trabalhador que perde o emprego e da sua família”, explica o economista. Passarinho acredita que o impacto das demissões, por fim, recai também sobre as próprias empresas, que ficam impedidas de vender mais e auferir lucros. Nesse sentido, o economista defende que a principal ação dos empresários num momento de crise econômica deva ser a manutenção do emprego sem nenhuma flexibilização e a criação de novos postos de trabalho. “Para atacar a crise em suas raízes, exige-se um maior poder aquisitivo dos trabalhadores. Dessa forma, garantir e ampliar os empregos é fundamental”, avalia. Mesmo se declarando pessimista em relação ao governo Lula no âmbito da política macroeconômica, Passarinho acredita que mudanças ainda podem ser operadas. “É necessário, acima de tudo, que se rompa o domínio dos bancos em relação ao sistema financeiro para que o emprego e a produção interna sejam favorecidos. Para tanto, é preciso não somente reduzir a taxa de juros de forma substantiva, mas haver uma redução muito forte do spread bancário”, explica. Além disso, Passarinho vê também como essencial o controle de fluxo de capitais para enfrentar a crise.
Após bater recorde de lucro no Brasil, GM despede 802 Empresa se aproveita da flexibilização dos direitos trabalhistas para demitir da Redação Diante das 802 demissões ocorridas em janeiro, uma das filiais da General Motors no Brasil, a de São José dos Campos (SP), argumenta que a queda nas vendas, sobretudo no mês de dezembro, foi um dos principais fatores para a dispensa em massa de trabalhadores. A empresa não mencionou, entretanto, que viveu em 2008 seu 84º ano e melhor ano no Brasil. De acordo com Luiz Carlos Prates, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos (SP), a GM remeteu boa parte de seu lucro para sua matriz, nos Estados Unidos. A GM do Brasil tem 1,5 bilhão de dólares de investimentos em curso. Por isso, segundo Prates, a empresa teria condições de manter os funcionários mesmo que tivesse uma queda mais acentuada nas vendas. Além disso, Jaime Ardila, presidente da empresa no Brasil e no Mercosul, já informou publicamente que mais 1 bilhão de dólares serão aportados até 2012. Assim, mesmo lucrando e com investimentos a todo o vapor, a montadora se caracteriza, a exemplo de outras, como uma empresa que desrespeita o trabalhador. “Ela condicionou que as leis trabalhistas fossem flexibilizadas para manter os investimentos em sua fábrica aqui em São José dos Campos (SP). Agora, ela demite e mantém ainda os investimentos. Isso é uma contradição e mostra que flexibilização não garante emprego”, argumenta Prates.
Ele afirma que a maioria das montadoras firmam contratos com prazo determinado para parte dos trabalhadores, e criam assim uma mão-de-obra com um custo menor de demissão. Tanto que a maior parte de 802 funcionários demitidos tinham esse tipo de contrato. Prates explica que, pela legislação trabalhista, se a pessoa é demitida sob a vigência desse tipo de contrato, ela só tem direito a Fundo de Garantia e a metade do valor dos salários até a data que compreende o término do contrato. Ilegal Entre os 802 demitidos está Ronaldo Garcia. Afastado desde o dia 12 de agosto de 2008 por acidente de trabalho, adquiriu seis lesões em cada ombro devido ao esforço repetitivo na empresa. “Considero um desrespeito muito grande. Eu conheço outros companheiros que também estavam afastados e foram demitidos por telegrama”, conta Ronaldo, que recebeu o telegrama no dia 13 de janeiro. Ronaldo afirma não esperar mais nada da empresa: “Ela conhece muito bem minha atividade e, sinceramente, não teve nenhum respeito comigo”, completa. Em 2007, por meio do contrato por prazo determinado, foi para o setor de usinagem e a empresa prometeu que após um ano de contrato iria efetivá-lo. “A quantidade de dezes que eu subia na máquina e a quantidade que tinha que descer era o equivalente a 1.500 peças produzidas”, lembra. O advogado Magnus Faccati, especialista na área trabalhista, explica que quando o empregado está afastado para tratamento de saúde, o contrato fica suspenso para todos os fins e efeitos de direito. Para ele, portanto, essa demissão é ilegal. (ESL)
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Banco Mundial Em tese sobre o Banco Mundial, aprovada na Universidade Federal Fluminense, João Marcio Mendes Pereira afirma que “do ponto de vista financeiro, o banco seguirá sendo um ator na gestão da crise, cuja voz ressoará apenas em países da periferia”. Ele lembra que a soma de todos os empréstimos realizados pelo banco desde 1947 (639 bilhões de dólares) é inferior ao primeiro pacote de socorro do Tesouro dos Estados Unidos (700 bilhões de dólares), em outubro de 2008. Haja crise! Ironia cibernética A crise econômica pegou a Google no contrapé: a maior empresa estadunidense que opera na internet anunciou na última semana a demissão de 100 pessoas do setor de recrutamento e seleção – exatamente quem cuida de contratação e demissão de pessoal – e o fechamento de escritórios em várias cidades estadunidenses, no momento em que dava a entender que estava em plena expansão. Agenda burguesa Enquanto o noticiário da grande imprensa fala em demissões, falências, quebra da safra, redução de investimentos, crédito escasso etc, a agenda do empresariado – liderado pela Fiesp – fala em redução dos salários, corte dos encargos trabalhistas, dinheiro barato dos cofres públicos, redução de impostos, privatização de serviços e subsídios para exportações. Tudo para garantir os lucros! Crimes apurados O prêmio Nobel de Economia de 2008, Paulo Krugman, em corajoso artigo publicado no jornal The New York Times cobra do novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, a investigação dos crimes cometidos pelo governo Bush. Ele diz que ocorreram abusos da política ambiental ao direito de voto, além de o ex-presidente ter deliberadamente iludido o país para justificar a invasão do Iraque. Reação direitista Jornalistas e políticos de direita centraram fogo no ministro Tarso Genro, da Justiça, porque ele aprovou a condição de refugiado político ao italiano Cesare Battisti, que nos anos de 1970 foi membro da organização Proletários Armados pelo Comunismo, na Itália. Fica claro que a burguesia brasileira só aceita refugiados como os ex-ditadores Marcelo Caetano, de Portugal, e Alfredo Stroessner, do Paraguai. Eleição presidencial Embora não admitam em público, os principais jogadores da disputa presidencial de 2010 iniciaram 2009 com o esquentamento de seus esquemas de campanha, seja na articulação de alianças, marcação de posição e no cuidado com o marketing. O governo do Estado de São Paulo baixou orientação para a criação de projetos diferenciados do governo federal com ampla propaganda nacional. Evidente, né? Luta permanente O movimento contra a privatização do petróleo e do gás não se abateu com a repressão policial ocorrida nas manifestações de dezembro passado, no Rio de Janeiro, e, em nota distribuída na última semana, manda recado para quem quer entregar a riqueza do Brasil: “Não vamos ficar só na defensiva. Estamos nos preparando para a grande batalha em defesa da soberania nacional, para garantir que o petróleo tem que ser nosso”. Extermínio baiano Várias entidades populares e de defesa dos direitos humanos de Salvador (BA) denunciam a falência da “política” de segurança pública do governo, que, segundo dados divulgados em janeiro, é responsável pelo aumento de 94% do número de homicídios registrados no Estado em 2008, especialmente na região metropolitana, onde a morte em “confronto” com a polícia virou rotina. Carnaval carioca Familiares de vítimas da violência policial e entidades de direitos humanos estão dando todo apoio para o desfile do Grêmio Recreativo Escola de Samba Corações Unidos do Amarelinho, de Acari, que vai apresentar, no dia 24 de fevereiro (terça-feira de Carnaval), na Marquês de Sapucaí, o enredo “Um ato de Amor e Rebeldia por Uma Pátria Livre”, que fala das revoltas populares no Brasil. Força total!
de 22 a 28 de janeiro de 2009
7
brasil
Um terremoto chamado Cesare Battisti SOBERANIA Concessão de refúgio para escritor italiano expõe arrogância de governantes europeus e entreguismo da burguesia Fabio Rodrigues Pozzebom
trangeiro, ignorar nossa soberania, é traição, ainda mais quando essa atitude implica desumanidade e total falta de compaixão e solidariedade.
Rui Martins “ITÁLIA AMEAÇA o Brasil”; “Ministro brasileiro das Relações Exteriores discorda do ministro da Justiça”; “Governador de São Paulo esquece seu passado de exilado”; editorialistas da grande mídia comercial ignoram que o Brasil é uma nação soberana e assumem as dores do governo italiano. Todos esses títulos mostram que a decisão do ministro Tarso Genro de dar refúgio ao ex-extremista italiano Cesare Battisti provocou um verdadeiro terremoto. O caso é quase inédito – um presidente italiano interpela e protesta junto ao nosso presidente contra uma decisão de um ministro brasileiro, enquanto um ministro, também italiano, ameaça o Brasil de “retorsões”, retaliações. Desde a época do presidente Floriano Peixoto (1891-1894), nunca se tinha visto tal quebra de protocolo e afronta. Na época, Floriano respondeu aos embaixadores estrangeiros, apoiados por uma frota ancorada perto da Guanabara, que discordavam da proclamação da República, que os receberia “a bala”. Como o caso não chega a ser tão grave, só motivado pela arrogância de um país europeu que confunde o Brasil com a Abissínia dos anos de 1930, a resposta de Lula à carta do presidente italiano poderia ser apenas um “pro lixo”, depois de devidamente amassada.
Vitória da ala esquerda A decisão de Tarso Genro de conceder refúgio a Cesare Battisti foi justa, digna e corajosa e pode também ser considerada histórica, porque assinala a vitória política da esquerda petista, que compunha o governo sempre de forma subjugada. Apesar das gesticulações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), querendo questionar uma decisão do ministro Genro, ela já foi respaldada pelo presidente Lula, e é definitiva.
Tarso: alvejado pela Itália, STF e direita, mas com respaldo de Lula O que os editorialistas brasileiros, entreguistas, funcionários de uma imprensa sem brio e sem cheiro de patriotismo, não perceberam, ao tomar as dores italianas no caso Cesare Battisti, é que a decisão do ministro da Justiça, Tarso Genro, é soberana. O Brasil tem de ser tratado pela Itália com o mesmo respeito com que foi a França, quando seu presidente Nicolas
Sarkozy perdoou, “numa decisão humanitária”, Marina Petrella, ex-membro da Brigada Vermelha que participara de diversos atentados e mortes. A Itália não gostou mas não piou, engoliu em seco, apesar de Sarkozy haver, anteriormente, praticamente prometido essa extradição ao atual premiê italiano, Silvio Berlusconi, especialista em driblar a Justiça do seu país.
Por que mostrar agora os dentes ao Brasil, que no passado acolheu tantos imigrantes italianos e outros considerados anarcosindicalistas indesejáveis por suas posições políticas? Aliás, hoje a Itália, dirigida por Berlusconi, rejeita nossos trabalhadores imigrantes numa prova indecente de retorno a valores do período do Duce.
Recado ao governo italiano: a época dos colonizadores já passou, e o Brasil (como qualquer país) tem de ser respeitado. Nesse caso, respeitado também como um grande país emergente. Recado aos coleguinhas entreguistas, travestidos em inspetores Javert “sedentos de Justiça”: podem discordar do ministro da Justiça, mas assumir as dores de um país es-
É claro que algumas rachaduras vão ficar – por que o ministro Celso Amorim, um dos mais ativos e respeitados do governo, queria a extradição de Battisti, como já havia demonstrado no Comitê Nacional para os Refugiados (Conare)? Para contar com o apoio futuro, mas duvidoso, da Itália, mesmo se tivesse de entregar na bandeja um homem cuja culpa não foi provada? E por que o governador José Serra, ex-exilado, também se distanciou da decisão de Genro? Mera tática política e eleitoreira, mas que implicaria no sacrifício de um antigo militante que clama inocência? Rui Martins é jornalista brasileiro radicado em Berna, na Suíça.
Reprodução
Sem Fred Vargas, Itália já teria o escritor A mídia brasileira pouco falou de Fred Vargas, mas sem ela não teria havido o “caso Cesare Battisti”. Incansável combatente, foi ela quem criou o primeiro comitê de defesa, na França, e buscou o apoio de políticos, intelectuais e da imprensa francesa para Cesare Battisti. A missão não foi fácil – a maioria dos líderes do Partido Socialista, envolvidos numa séria luta interna, preferiu se manter à distância, visto ser uma questão que poderia provocar controvérsia e funcionar de modo negativo do ponto de vista eleitoral; o jornal Le Monde, logo depois de alguns artigos favoráveis, deu marcha-à-ré. Do mesmo modo agiu a revista Nouvel Observateur. Mas Fred pôde contar com o apoio do cotidiano Libération, do jornal l´Humanité, do filósofo Bernard-Henri Levy e da ex-candidata à presidência da França Segolène Royal. Embora pouco conhecida no Brasil, Fred Vargas, de 51 anos, é escritora do gênero policial, bastante conhecida entre os franceses. Seus livros estão entre os dez mais vendidos na França, com mais de 1 milhão de exemplares, a maioria deles premiados e transformados em roteiros de filmes. Cientista, arqueóloga do prestigioso Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS), seu nome verdadeiro é Frédérique Audouin-Rouzeau e foi por acaso que começou a escrever romances policiais. Assim ela conheceu Cesare Battisti, que, nas horas vagas de zelador de um prédio em Paris, escrevia também romances policiais, atividade que já começara quando clandestino no México, depois de ter fugido da Itália. Ser minuciosa, ela aprendeu com a Arqueologia. Assim, quando a Itália pediu a extradição de Battisti, em 2004, Fred se interessou pelo caso, estudou o processo, foi às fontes e concluiu serem verdadeiras as declarações de inocência de Battisti. Fazia 11 anos que o italiano vivia modesta-
mente em Paris e temia, já naquela época, por sua vida, caso fosse extraditado. Além disso, Battisti constituíra família e já era pai de duas filhas. O então presidente francês François Mitterrand (19811995) tinha dado asilo a todos os italianos, antigos extremistas dos anos de 19601970 que tivessem abandonado a luta armada e se integrado na sociedade. Para Battisti, sua participação durante dois anos no movimento Proletários Armados pelo Comunismo era coisa passada, da qual se desligara havia tempo. Mas sua fuga e ausência, deixando folhas em branco assinadas com o advogado, tiveram um preço – um dos dirigentes do movimento lançou sobre ele (ausente) a responsabilidade e a autoria de quatro crimes. Em consequência, julgado à revelia, foi condenado a prisão perpétua. Com base nessa condenação, o governo Jacques Chirac ignorou a proteção dada por Mitterrand e iniciou o processo de extradição. Faltavam apenas dois meses para Battisti adquirira nacionalidade francesa, pois havia iniciado um processo de naturalização.
Fred Vargas pediu a Carla Bruni que intercedesse junto ao marido em favor de Battisti Battisti foi obrigado a fugir pouco antes de ser extraditado e desapareceu. Para Fred Vargas, que se tornara líder do movimento em favor de Battisti, começou um longo período de tortura psicológica. Sua casa foi visitada diversas vezes por agentes secretos franceses para instalação de microfones, seus telefones e computadores foram grampeados. Como suspeitasse de um carro sempre parado na sua rua, Fred mudou de apartamento, mas logo reapareceu, no seu novo endereço, o mesmo furgão de an-
tes, provavelmente equipado para todo tipo de escuta. O que antes escrevia enquanto tramas de ficção passava a se concretizar enquanto vida: a polícia achava que Fred sabia onde se escondia Battisti e fazia de tudo para encontrar uma pista. Até a prisão de Battisti no Rio de Janeiro, foram três anos sentindo-se todo tempo seguida e vigiada, o que só agora, com o estatuto de refugiado a Battisti, deve terminar. Fred esteve cinco vezes no Brasil, entre março de 2007 e dezembro de 2008, quando constituiu Luiz Eduardo Greenhalgh como seu advogado, encontrando-se com políticos, juristas e procurando sensibilizar a mídia para o caso. Se o senador Eduardo Suplicy, o deputado Fernando Gabeira e o jurista Dalmo Dallari lhe deram apoio desde o primeiro momento, novas adesões à causa foram muito difíceis de conseguir. Apoiar Battisti – e o ministro Tarso Genro experimenta hoje essa incômoda situação – poderia ter como consequência se tornar impopular, visto as acusações feitas pela Itália, facilmente exploradas pela mídia comercial e de direita. O papel da revista Carta Capital, dirigida por Mino Carta, foi bastante negativo, pois uma grande reportagem por ela publicada, em julho de 2007, mostrava Battisti como um frio assassino. Ora, considerada como o único veículo com expressiva influência defensor de uma posição política diferenciada, num país em que toda a grande mídia comercial é de direita, a Carta Capital circula nos meios de esquerda e chega mesmo a orientar alguns setores desse campo. Sua reportagem criou a dúvida e provocou uma indecisão em setores de esquerda e, praticamente até a decisão do Conare, era certa a extradição de Battisti. Foi quando a internet se revelou novamente, como na primeira eleição de Lula, um instrumento de grande importância e penetração, difundindo textos por redes, blogs e si-
No Rio, o sequestro programado de Vargas
Fred Vargas: mobilização pela liberdade de Battisti tes favoráveis a Cesare Battisti. Celso Lungaretti era ponta de lança, Laerte Braga, Luiz Carlos Azenha e Amyra El Khalili foram extremamente ativos. A página inteira do Brasil de Fato, em meados de dezembro, justificando a necessidade do apoio a Battisti, logo depois de um encontro nacional do PT adiando a discussão do tema, teria também fortalecido a linha esquerda do partido. Mesmo porque num congresso sobre direitos humanos, em Brasília, definiu-se, nesse mesmo mês, o apoio a Battisti. Ao mesmo tempo, Fred Vargas, no Brasil, se encontrou com a esposa do presidente francês Clara Bruni, em visita oficial ao país, em companhia do seu marido. Fred pediu à senhora Sarkozy para que intercedesse junto ao marido em favor de Battisti, do mesmo modo como fizera com Marina Petrella, a brigadista perdoada in extremis pelo presidente francês. Com efeito, Sarkozy transmitiu a Lula a mensagem de que a França se desinteressava do caso Battisti, colocando-o no mesmo plano que Marina Petrella, assegurando que o governo fran-
cês não reagiria se o Brasil acolhesse Battisti. Do lado italiano, a pressão era forte. O embaixador em Brasília pediu e obteve seis audiências com o ministro Tarso Genro e não baixava guarda ao perceber que a ala esquerda do PT abandonava a indecisão e começava a assumir uma posição firme no sentido de garantir refúgio para Battisti. Um argumento era forte em favor de Battisti: a Itália não reagira quando a França de Sarkozy perdoara a brigadista Petrella e, por certo, não iria ser diferente com Battisti, que pertencera a um grupo pequeno, não envolvido em mortes de personalidades. Esperavase uma decisão de Tarso Genro durante as festas do Natal e Fim de Ano. Como nada foi anunciado, pensou-se o pior. Foi quando Fred recebeu um e-mail de Marco Aurélio Garcia, secretário especial da presidência para Assuntos Internacionais, informando que o ministro ia lhe comunicar sua decisão no dia 15 de janeiro, mas que acabou sendo tomada no dia 13. Quando Fred Vargas soube da boa notícia, já era madrugada em Paris. (RM)
Esta informação é ainda inédita – teria sido um plano preparado por bandidos interessados em ganhar dinheiro com o caso Battisti ou alguma coisa mais séria, envolvendo serviço secreto de algum país interessado em tumultuar o caso Battisti e evitar uma decisão do ministro Tarso Genro? Como num autêntico romance policial, um membro do Comitê de Defesa de Battisti foi contatado, nos últimos dias de dezembro, por um advogado que propunha um rápido habeas corpus para Battisti, aproveitando o recesso do STF e alegando contatos infalíveis, mas que seria necessário bastante sigilo. Se fosse paga uma certa importância (a soma não era astronômica), Battisti seria libertado no fim de semana e Fred Vargas deveria ir ao Rio de Janeiro para se encontrar, já na manhã de segunda-feira, com Battisti. Fred percebeu a cilada, mas quis pagar para ver. Assim, entregou ao seu advogado Luiz Eduardo Greenhalgh nome e conta bancária autênticos e ainda o CPF do estranho contato, cujo número de OAB era falso. Inclusive um documento falsificado, com o nome de uma alta funcionária do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A tentativa de sequestro era evidente. Se Fred tivesse ido ao Rio de Janeiro na segunda-feira de manhã, dia 12, teria sido sequestrada. Resta saber a mando de quem. Certamente isso deverá ser apurado. (RM)
8
de 22 a 28 de janeiro de 2009
cultura credito
Da esquerda para direita: “A solução final, 1943-1945”, “Olga Benário entregue aos nazistas e assassinada” e “Chacina dos palestinos”
Arte para “não deixar esquecer” MEMÓRIA E RESISTÊNCIA Artista plástico produz séries de gravuras sobre tragédias e lutas populares históricas Patrícia Benvenuti da Redação EM COMEMORAÇÃO aos 25 anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o artista plástico Gershon Knispel criou 15 séries de quadros intituladas Os Camaradas. Compostas por 24 obras de 1,20 m de altura por 1,80 m de largura cada, as séries retratam tragédias e lutas populares ao longo da história, como o massacre dos beduínos, o Holocausto, a ditadura militar no Chile e a questão do desemprego, entre outros acontecimentos. As obras, que também têm assinatura do arquiteto Oscar Niemeyer, devem ser expostas nas galerias de arte mais famosas de todo o mundo. Em entrevista ao Brasil de Fato, o artista plástico, de origem judaica, fala sobre a ofensiva israelense na Faixa de Gaza, a inspiração para as séries, a importância do MST e o papel da arte para reformar o mundo. Brasil de Fato – Qual sua relação política com os palestinos e com o governo de Israel? Gershon Knispel – Como cidadão de Israel, uso meus esforços para fazer de tudo para mudar a situação injusta dos cidadãos árabes no país, que são diferentes dos palestinos, mas também estão enfrentando situações bem chatas. Por exemplo, quando houve um massacre em 1976 no qual foram mortas seis crianças – duas eram minhas alunas –, um companheiro e eu decidimos fazer um monumento que se chama Dia da Terra. Esse massacre aconteceu em 30 de março e, desde essa data, são feitas celebrações que se chamam “Dia da Terra”, com milhares e milhares de árabes. Depois, foi feita uma grande exposição dedicada a esse monumento. São exemplos de como trabalhamos junto a palestinos e árabes. Nós fizemos isso como dois artistas plásticos que representam dois povos e acreditamos que o povo palestino também merece o seu Estado, ao lado do Estado de Israel. Em 1980, eu encabeçava a União dos Artistas Plásticos em Israel e três artistas plásticos palestinos me falaram que as autoridades militares na Cisjordânia ocupada não deixavam eles fazerem exposições. Daí decidimos que eles fariam essas exposições em nossas galerias em Tel Aviv e Jerusalém. E foi realmente um ato muito forte, como um grande protesto, que virou uma coisa simbólica. De-
pois disso, começamos, 15 artistas plásticos, pintores, poetas de Israel, junto com 15 dos mais importantes artistas plásticos e expositores palestinos, a fazer encontros, a cada duas semanas, uma vez em Tel Aviv, outra em Jerusalém oriental, para fazer um documento que fincasse a base da paz entre os dois povos. Esse documento está comigo, nós o assinamos em 1988, e ele foi a base do acordo que depois foi levado a Oslo e também assinado em Camp David.
Eles têm medo das coisas que atingem também a massa. Queriam que as coisas ficassem fechadas nos museus O que é ser um artista hoje? E, sobretudo, o que é ser um artista assumidamente engajado? Você fala em artista engajado, mas eu não posso me dividir. Desde os meus estudos na Academia de Artes em Jerusalém, entre 1949 e 1954, eu realizava a grande ideia do meu famoso professor Ardon Mordechai. Tinha relações muito especiais com ele, que sempre me pediu para pintar e desenhar tudo que eu estivesse vendo em torno de mim. Ardon falava: “Veja as pessoas nas ruas, veja a diferença das classes, veja os diferentes grupos étnicos, uma parte tem vida melhor, outra parte tem vida pior”. Isso me acompanha até hoje. Ele sempre queria ver os resultados. Daí até ser um pintor engajado é uma coisa natural, porque você está aberto a qualquer acontecimento social em torno de si. É evidente que, nessas últimas décadas, museus em grandes capitais, como Nova York, Paris e, ultimamente, também Berlim, estão fazendo de tudo para esquecer todos esses grandes artistas plásticos engajados, que realizaram obras sobre este mundo injusto que a gente está encontrando. Eles preferiam dar força para esses pintores formalistas, conceptualistas, artistas do vídeo ou até mesmo minimalistas. Hoje, por exemplo, a gente fala de Diego Rivera como o marido da Frida Kahlo, por exemplo. E a Frida Kahlo fica como a grande estrela, e o Diego, completamente esquecido.
Por que esse esforço das galerias para esconder esse tipo de obra? Porque eles têm medo dessas pinturas. Lembram que Diego Rivera fez um grande afresco no Centro Rockfeller dedicado a Lênin, Marx, e eles tiraram isso. Eles têm medo das coisas que atingem também a massa. Queriam que as coisas ficassem fechadas nos museus, para as camadas sociais mais ricas. E os outros vão ser esquecidos. O que você acha mais importante, enquanto mensagem, para todos aqueles (especialmente os jovens) que se dedicam às artes plásticas? Lembre a fala do Niemeyer que aparece em cada gravura, dedicada a acontecimentos mundiais: “O mais importante não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar”. Quer dizer que, seguindo essa ideia de Oscar, eu acho que a gente vai achar o mundo inteiro. Por exemplo, Goya fez esta pintura enorme, O Massacre, que vai viver para a eternidade. Picasso fez Guernica, que foi a sua mais importante pintura. Nós já tínhamos condições de esquecer completamente esse massacre dos alemães que ajudaram Franco a bombardear essa aldeia basca. Só que a pintura de Picasso levou esse período da Guerra Civil a uma altura que ninguém mais vai esquecer. Eu acho que essas são coisas às quais devemos nos dedicar. Não sei se alguém vai chegar à altura do Picasso, mas tentar fazer coisas que mudem o seu mundo, em qualquer lugar onde a gente esteja. Eu quero dar a ideia a cada um de nossos jovens que não esqueça de apontar o lápis, pegar o pincel e a tinta e pintar, desenhar tudo que encontrar. Aí você vai pegar o caminho certo. Você fez essa série de trabalhos com o título
geral de Os camaradas para o MST. Nela aparecem os mais diversos assuntos, como o massacre dos beduínos, massacre dos palestinos, o Holocausto, o desemprego, a ocupação da USP etc. Qual o motivo dessa escolha de subtemas? Oscar fala em modificar este mundo injusto. Essa foi a fala dele, e eu utilizei isso e os desenhos dele que estavam na parede do seu escritório na avenida Atlântica, no Rio de Janeiro. Utilizei tudo isso nessas gravuras, junto com ele. Então, para modificar este mundo injusto, é preciso saber, realmente, que mundo a gente quer modificar. Por isso nós escolhemos eventos que foram significativos, como massacres e coisas terríveis que quebram todos os direitos humanos. Então peguei a entrega da Olga Benário pelo Getúlio nas mãos da Gestapo, toda essa 2ª Guerra que foi terrível, o Holocausto de um lado, a defesa formidável dos soviéticos em Stalingrado, que foram os únicos que conseguiram parar os nazistas de continuar a guerra deles.
Os palestinos têm somente mísseis primitivos, de fabricação caseira, que quase sempre não atingem seu alvo Do seu ponto de vista, qual a importância do MST hoje? E o fato de estar completando 25 anos? Cheguei ao Brasil pela primeira vez em 1958 e tive sorte, porque vim justamente quando Fidel e Che Guevara entraram em Havana. E nós achamos que, enfim, chegava o momento no qual o sonho da América Latina iria se realizar. E que as reformas agrárias – que começaram no início do século com líderes famosos no México, como Zapata e Pancho Villa – iriam se espalhar em todos os países da região. Nós nunca entendemos essa pobreza pela qual passa o povo brasileiro. Daí começamos a trabalhar dentro do Centro Popular de Cultura (CPC), com todos os meios de expressão que a gente tinha, mas chegou o golpe de 1964, quando Oscar e eu fugimos. Por isso, eu acho que nesses 25 anos de atividade do MST, ele virou o principal mo-
vimento e o mais importante do Brasil. Precisamos cuidar dele com todos os meios que temos para que consiga realizar todo o sonho que tínhamos de reforma agrária. Na série Os camaradas é recorrente (e quase onipresente) a mão espalmada com as veias abertas – escultura de Niemeyer que se encontra no Memorial da América Latina, em São Paulo (SP). Mais do que isso, o Niemeyer também assina essa sua série de gravuras. Por quê? A série foi inspirada em fichas de desenhos que Oscar fez na parede dele e já desapareceram. Esse é o único meio de lembrar isso, incluindo o símbolo dos sem-terra, junto com os dois membros da família e uma criança do lado, e embaixo a fala “A terra é nossa”. Essa foi a idéia do Oscar, de pôr esses desenhos que eu fiz em Jerusalém no tempo que eu estava lá, em 1964. Ele me pediu para fazer um desenho da velha Jerusalém oriental, e eu fiz uma série. Daí ele lembrou e disse: “Leva essa série de Jerusalém e põe em cima dela esse monumento meu dos sem-terra, aí a gente vai entender que o monumento não só se justifica como sendo do movimento sem-terra, ele significa a mesma coisa no mundo inteiro”. E, assim, a gente faz a conexão dessa famosa e brilhante luta da terra em paralelo com essa luta terrível. Olha o quanto ela custou ultimamente. Nessas últimas três semanas, são mais de 1,3 mil mortos na Palestina. É natural que a mão que se levanta protestando, do Oscar, no Memorial, vá se levantar contra qualquer crime contra a humanidade. Por que a escolha da gravura enquanto linguagem? Qual o papel, em sua obra e em sua concepção, da gravura e das técnicas possíveis de reprodução?
Gostamos desse meio de expressão, a gravura, porque ela simplifica a difusão de nossas ideias para todo mundo. Também há a possibilidade de fazer uma obra de arte que qualquer um possa receber. Nós não queremos que nossos trabalhos sejam enterrados dentro de um museu, dentro de galerias, porque somente pouca gente vai conseguir manter contato com eles. Queremos que tudo isso fique como um patrimônio do público inteiro. Como artista, decidi me dedicar a essas formas de expressão para manter contato com camadas sociais diferentes. Algumas camadas sociais querem esquecer certos eventos, mas nós queremos que eles sejam lembrados para sempre, como esse “Dia da Terra”, em Israel. Fale um pouco sobre a atual ofensiva do governo de Jerusalém contra Gaza. Junto com seu aliado George W. Bush e os governos europeus que aceitaram considerar o Hamas como uma organização terrorista e através de provocações mútuas, conseguiram criar áreas de conflito e Israel aproveita seu exército armado, com armamento do mais sofisticado do mundo, contra 1,5 milhão de palestinos que se encontram em uma panela de pressão, num espaço que não passa de 30 quilômetros quadrados. Jogam bombas de fósforo branco e mísseis, atacam de navios pelo mar e os palestinos têm somente mísseis primitivos, de fabricação caseira, que quase sempre não atingem seu alvo – são arremessados para áreas abertas. Quiseram se adiantar à entrada de Barack Obama na Casa Branca e iniciar o massacre, que matou, na maior parte, cidadãos inocentes – até agora, foram mortos 45 guerrilheiros do Hamas, na sua maioria refugiados das guerras de 1948 e 1967 que fugiram ou foram retirados de suas terras e, já há algumas gerações, vivem uma vida de cachorro, em habitações precárias muito piores do que as favelas que conhecemos.
Quem é Gershon Knispel, radicado no Brasil, nasceu em Koln, na Alemanha, em 1932. Aos três de idade, foi com os pais para a Palestina, fugindo do nazismo. É artista plástico e militante na luta contra a ocupação da Palestina pelo exército de Israel.
de 22 a 28 de janeiro de 2009
9
internacional
“Escolhemos a esperança acima do medo”, afirma também Obama Reprodução
ESTADOS UNIDOS Semelhança entre o discurso do novo presidente estadunidense com o de Lula é marcante Danilo Dara da Redação “SIM, NÓS podemos”, o slogan da campanha de Barack Hussein Obama para a presidência dos Estados Unidos talvez tenha sido a frase mais escutada no país – e no mundo – ao longo dos últimos meses, completamente impregnado pela bilionária disputa eleitoral na nação mais rica e poderosa do planeta. E a posse do primeiro presidente negro dos EUA, depois dos 43 brancos (!) que o antecederam, não poderia ser diferente: talvez a mais espetacular da história das chamadas democracias modernas. As cerca de 2 milhões de pessoas que estiveram em Washington, e os bilhões que a acompanharam ao redor do globo, seguiram sendo bombardeados, com excesso de pirotecnias, pela mesma mensagem da campanha. Agora, após o entreato de novos bombardeios israelenses contra o território palestino – apoiados pela Casa Branca –, de maneira renovada. Com destaque para duas palavraschaves repetidas e reiteradas inúmeras vezes durante todo o evento: “esperança” de “mudança”. Tendo como principal pano de fundo os profundos impactos da crise econômica mundial – impulsionada justamente pelo colapso do mercado financeiro e imobiliário estadunidense –, o novo presidente, alçado a popstar, transformou o seu primeiro discurso em uma verdadeira conclamação patriótica para o longo enfrentamento de “mais essa dificuldade” colocada às novas gerações dos Estados Unidos. “Hoje, eu lhes digo que os desafios que enfrentamos são reais. São sérios e são muitos. Eles não serão resolvidos facilmente ou em um curto período de tempo. Mas saiba disto, América, eles serão resolvidos […]. O mundo mudou e precisamos mudar com ele”, afirmou o presidente recémempossado. Slogan de Lula E, por falar em “mudança”, uma das coisas que deve ter chamado a atenção dos brasileiros no primeiro discurso de Barack foram as semelhanças, algumas vezes literais, com o discurso de posse de Luiz Inácio Lula da Silva, há mais de seis anos, num país periférico como o Brasil. Dizia o atual presidente brasileiro na ocasião, de maneira involuntariamente antecipadora: “Mudança; esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade […] nas eleições de outubro. A esperança finalmente venceu o medo, e a sociedade decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos. Diante do esgotamento de um modelo que, em vez de gerar crescimento, produziu estagnação, desemprego e fome; [...] diante do impasse econômico, social e moral do país, a sociedade escolheu mudar e começou, ela mesma, a promover a mudança necessária. Vamos mudar, sim. Mudar com coragem e cuidado, humildade e ousadia”. Um discurso construído milimetricamente por marqueteiros também desde a campanha eleitoral, que caiu como uma luva para o primeiro retirante nordestino eleito para o cargo máximo da nação. Mas que no caso periférico brasileiro não foi exatamente o que se concretizou nos anos seguintes. Obama, o primeiro presi-
dente afro-americano dos EUA, chegou a utilizar o mesmo jargão de Lula, quase literalmente: “Neste dia, estamos reunidos porque escolhemos a esperança acima do medo, a unidade de objetivos acima do conflito e da discórdia”. E, assim como o presidente brasileiro, ressaltou muito a importância da criação de empregos e de novas condições para a economia crescer: “Para todo lugar aonde olharmos há trabalho a ser feito. A situação da economia pede ação ousada e rápida, e vamos agir – não apenas para criar novos empregos, mas depositar novas bases para o crescimento”. Veremos se o filme se repetirá, agora em escala imperial. Liberalismo Seguindo a longa tradição estadunidense, Obama exaltou muito as figuras dos “pais fundadores” da nação e os valores liberais que fundamentalmente a movem: “nossa jornada nunca foi de tomar atalhos ou de nos conformar com menos. Não foi um caminho para os fracos de espírito – para os que preferem o lazer ao trabalho, ou buscam apenas os prazeres da riqueza e da fama. Foram, sobretudo, os que assumem riscos, os que fazem coisas – alguns célebres, mas com maior frequência homens e mulheres obscuros em seu labor – que nos levaram pelo longo e acidentado caminho rumo à prosperidade e à liberdade”. Ao mesmo tempo, diante da crise, teceu críticas à atuação desmedida e desregulada dos mercados, sinalizando que deverá aumentar relativamente os mecanismos de controle dos capitais. No entanto, sempre de uma perspectiva fundamentalmente liberal: “Tampouco enfrentamos a questão de se o mercado é uma força do bem ou do mal. Seu poder de gerar riqueza e expandir a liberdade é inigualável, mas essa crise nos lembrou que, sem um olhar vigilante, o mercado pode sair do controle – e que uma nação não pode prosperar por muito tempo quando favorece apenas os prósperos”. Nesse contexto, Bush não poderia ser poupado. Nem pelo seu sucessor, de maneira um pouco mais comedida, nem pela massa presente à posse, esta que o vaiou bastante. Ao menos no que se refere à atual situação dos serviços e seguridade social do país; à postura (religiosa e fundamentalista) frente a certas pesquisas científicas – como a utilização de células-tronco; e, sobretudo, a violação de direitos humanos sob pretexto de questões de segurança (como no Patriot Act), Obama foi enfático: “quanto a nossa defesa comum, rejeitamos como falsa a opção entre nossa segurança e nossos ideais. Nossos pais fundadores, diante de perigos que mal podemos imaginar, redigiram uma carta para garantir o regime da lei e os direitos do homem, uma carta expandida pelo sangue de gerações. Aqueles ideais ainda iluminam o mundo, e não vamos abandoná-los em nome da conveniência”. E, realmente, um de seus primeiros atos administrativos foi cancelar as chamadas “regulações pendentes” determinadas, de última hora, pela gestão anterior. O jogo real entre as mensagens midiáticas, slogans construídos e as medidas efetivas de seu governo apenas começava...
Legenda: Cartaz em Washington divulga a posse de Obama. “A mudança começa agora”, diz o anúncio
Confira trechos do discurso de Obama em sua posse Autocrítica “Nossa economia está gravemente enfraquecida, uma consequência da cobiça e da irresponsabilidade de alguns, mas também de nosso fracasso coletivo em fazer escolhas difíceis e preparar o país para uma nova era. Lares foram perdidos; empregos, cortados; empresas, fechadas. Nosso sistema de saúde é caro demais; nossas escolas falham para muitos; e cada dia traz novas evidências de que os modos como usamos a energia reforçam nossos adversários e ameaçam nosso planeta.” Sobre as guerras “Vamos começar de maneira responsável a deixar o Iraque para sua população e forjar uma paz duramente conquistada no Afeganistão. Com antigos amigos e ex-
Grotesca despedida “Prendam Bush” é o grito de guerra de uma minoria valente que se expressa lá dentro, nas entranhas do império Elaine Tavares O presidente George W. Bush deixa a Casa Branca depois de oito anos de uma desastrosa (para nós) atuação. É claro que para os banqueiros, milionários, megaempresários e os mercenários de plantão não houve presidente melhor. Ao longo desses tristes anos ele provocou guerras, empanturrou as burras da indústria de armas, manipulou o tabuleiro da geopolítica ao bel prazer das armas, da violência e do que o estadunidense John Perkins chamou de assassinos econômicos. Assim, o que não conseguiu com seu exército armado, garantiu na dependência econômica. Tudo isso, é claro, com a conivência das elites entreguistas dos países onde meteu o nariz. Os traidores estão sempre prontos a entregar suas almas a troco de algum punhado de dólares. Não bastasse isso, no interior dos Estados Unidos também aprontou das suas. Em nome da segurança nacional, depois do 11 de setembro – que muita gente boa diz ter sido provocado pelas agências secretas do próprio país – aboliu direitos individuais, acabou com o habeas corpus, instituiu a caça às bruxas e
anunciou uma guerra sem trégua contra o “terrorismo”, leia-se aí, qualquer povo que não aceite o domínio dos Estados Unidos. Destruiu países, matou gente, tudo baseado em mentiras. Assim, o encerramento de seu mandato não poderia ter sido mais paradigmático. Para agradecer aos chacais que garantiram seu domínio sobre os “de abajo”, ofereceu a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta condecoração do país, a três dos seus mais importantes aliados: Tony Blair, da Inglaterra; John Howard, da Austrália; e o latino-americano Álvaro Uribe, da Colômbia. Para os latino-americanos essa medalha é uma provocação. Condecorar o presidente colombiano – responsável pela ocupação do país por tropas estadunidenses, terrorismo de Estado, violência, crimes de toda ordem – com uma medalha que leva o nome de “liberdade” é tripudiar sobre todo um povo. “Esses homens foram responsáveis por levar esperança e liberdade aos povos”, disse Bush. Sim, é verdade. Esperança e liberdade para os empresários da construção civil que estão “re-construindo” (?) o Afeganistão e o Iraque. Esperança e liberdade para os
inimigos, trabalharemos incansavelmente para reduzir a ameaça nuclear e reverter o espectro do aquecimento do planeta. Não pediremos desculpas por nosso modo de vida, nem vacilaremos em sua defesa, e aos que buscam impor seus objetivos provocando o terror e assassinando inocentes, dizemos hoje que nosso espírito está mais forte e não pode ser dobrado; vocês não podem nos superar, e nós os derrotaremos.” Papel dos EUA “Para todos os outros povos e governos que nos observam hoje, das maiores capitais à pequena aldeia onde meu pai nasceu: saibam que a América é amiga de toda nação e de todo homem, mulher e criança que busque um futuro de paz e dignidade, e que estamos prontos para liderar novamente.”
donos das indústrias de armas, de alimentos, e até de filtro solar. Enfim, esperança e liberdade para os mesmos de sempre, que têm dominando o planeta apoiados na força dos canhões. No caso da América Latina, a presença maciça dos marines e dos treinadores de soldados na região amazônica é uma clara ameaça para a segurança das gentes. O governo da Colômbia foi, nesses anos de Bush, um fiel servidor, um vassalo escrupuloso que não hesitou em assas-
O ex-presidente dos Estados Unidos aboliu direitos individuais, acabou com o habeas corpus, instituiu a caça às bruxas e anunciou uma guerra sem trégua contra o “terrorismo”, leiase aí, qualquer povo que não aceite o domínio estadunidense sinar e desalojar sua gente para garantir o domínio estadunidense na região. Serve de base para a espionagem à Venezuela, à Bolívia e ao Equador, o qual atacou numa ação de guerra, com a desculpa de buscar “terroris-
tas” das Farc. Assim, do ponto de vista do poder, nada mais justo do que espetar o peito desses criminosos com medalhas de mérito. Agora, os Estados Unidos terão um novo presidente. Mas, pelo que se vê, nada de novo acontecerá. A política imperialista seguirá seu curso, e os servos de plantão já preparam suas bajulações. O ataque genocida à Gaza, o silêncio dos governantes – com raras exceções – mostra que nada mudou. A única esperança de liberdade para os que estão sob as botas continua sendo a organização e a luta renhida. No mundo dos “felizes”, como diria Wittgenstein, as medalhas vão para os assassinos. Já no nosso mundo, o único metal que nos chega ao peito é a bala dos matadores. Por isso há que recuperar o ódio, “o ódio são, aos vilões do amor”, como dizia o poeta Cruz e Souza. Não é à toa que uma organização de direitos civis dos Estados Unidos, a Washington Peace Center, promete exigir, durante a posse de Obama, a prisão de Bush como criminoso de guerra. “Prendam Bush” é o grito de guerra de uma minoria valente que se expressa lá dentro, nas entranhas do império. Mas não há dúvida de que o presidente Obama fará ouvidos moucos. O que resta é a luta. Com sapatos, poemas e balas. Para acompanhar a batalha dos estadunidenses pela prisão de Bush, basta acessar a página na internet http:// arrestbush2009.com. Elaine Tavares é jornalista.
10
de 22 a 28 de janeiro de 2009
internacional
Origens da guerra entre Israel e Palestina ENTREVISTA Para o historiador Christian Karam, a questão religiosa muitas vezes serve como pretexto para encobrir fins políticos Patrícia Benvenuti da Redação O RECONHECIMENTO do Hamas por parte de Israel como o governo democraticamente eleito dos palestinos e o direito de retorno dos refugiados são alguns dos principais desafios postos atualmente para a criação do Estado palestino. A avaliação é do historiador Christian Karam, estudioso da História do Islã, do Oriente Médio e do conflito palestino-israelense. Em entrevista, ele explica como se deu o Estado de Israel e como a influência de outros países tem prejudicado o processo de paz entre os dois povos. Brasil de Fato – O mundo assistiu estarrecido o terror que o Estado de Israel impõe ao povo palestino. Para entender melhor a origem desse conflito, o senhor poderia recuperar como se deu a criação do Estado de Israel?
Christian Karam – O termo “Sionismo” foi criado em 1885 pelo escritor judeu-austríaco Nathan Birnbaum como uma alusão a “Sion”, um dos nomes bíblicos de Jerusalém (Al-Quds para os árabes e muçulmanos). Nessa época, “Sionismo” basicamente significava uma resposta ao problema nacional judeu que advinha de dois fatos principais: da dispersão judaica em vários países e regiões do mundo; e da sua constituição, em cada um desses países, como uma minoria populacional, onde inclusive muitos judeus eram perseguidos, como era o caso da Europa antissemita do século 19. Assim, a solução sionista pretendia acabar com essa situação, através do retorno a “Sion”, onde conformariam uma maioria populacional e uma entidade político-estatal independente. É nesse espectro que surge o sionismo político internacional, fundado pelo jornalista judeu-húngaro, Theodor Herzl, na Europa de fins do século 19, como um movimento nacionalista preponderantemente laico e secular que visava à fundação de um Estado nacional judaico. Após o término da guerra, diante do impacto do Holocausto nazista, a Inglaterra propôs à Organização das Nações Unidas (ONU) a divisão da Palestina entre árabes e judeus. Assim, uma vez aprovada a partilha da Palestina britânica em novembro de 1947, ficou estabelecido que o Estado judeu deveria ocupar 56% do território, enquanto ao Estado árabe competiria controlar os restantes 43%. Já o 1% remanescente de Jerusalém e seu entorno seria colocado sob mandato internacional da ONU. Essa divisão respeitava muito pouco dois fatores essenciais: a ocupação das terras e a maioria populacional, já que grande parte do território seria controlada pela minoria judaica, que somava apenas 30%. Qual o porquê da localização geográfica, do lugar escolhido para o Estado de Israel?
Penso que pela simbologia histórica e religiosa que a região da Palestina histórica representa no imaginário dos judeus (por mais que isso tenha sido uma construção histórica idealizada dos séculos 19-20), herdeiros da última grande diáspora que os expulsou dali, aquela perpetrada pelos romanos no século primeiro. Em fins do século 19, os sionistas haviam proposto a colonização judaica da Palestina otomana, apesar de terem cogitado outras regiões, como Uganda (na África oriental) e a bacia do rio da Prata, na Argentina. Assim, se em algum momento do período entre-Guerras (1918-1945) especulou-se sobre outro território que não
Fotos: Amir Farshad Ebrahimi
o da província turca da Palestina e, após 1920, aquele da Palestina colonial britânica para a fundação de um Estado hebreu, a imigração e a colonização em curso comprovaram que a decisão pela Palestina turca já havia sido tomada, especialmente quando, a partir de 1917, a Declaração Balfour britânica passou a “ver com bons olhos” a criação de um “lar nacional judaico” na Palestina turco-otomana (de maioria populacional árabe e islâmica). Isso denota o claro apoio à causa nacional sionista por parte do imperialismo inglês, que planejava beneficiar-se da presença de uma terceira força político-nacional na região, principalmente em um contexto de guerra contra os alemães e seus aliados na região, os turcos. Qual território deveria ser ocupado pelos palestinos?
Se fossem cumpridas as resoluções da ONU, o território que o Estado hebreu hoje teria de ocupar seria aquele anterior às fronteiras de 1967, quando, com o fim da Guerra dos Seis Dias, Israel invadiu e passou a ocupar ilegalmente a Faixa de Gaza (então parte do Egito), a Cisjordânia e Jerusalém Oriental (então pertencentes à Jordânia) e as colinas de Golã (eram da Síria). Desse modo, o território que hoje constituiria o Estado de Israel seriam aproximadamente 70% da Palestina britânica. Em torno de 13% a 14% dessa área foram conquistados ao território árabe-palestino e anexados como resultado da primeira guerra árabeisraelense de 1948-9. Desse modo, hoje não se fala dos territórios que a partilha da ONU de 1947 determinara para a constituição do Estado árabe-palestino (43%) e do Estado judeu (56%), mas, no caso de Israel, deste percentual, acrescido da parcela acima mencionada, que foi conquistada na chamada “primeira guerra árabe-israelense” de 1948-9, quando inclusive Jerusalém, que, pela proposta original, seria uma área internacional, teve sua porção ocidental anexada por Israel, que a declarou como sua capital em 1950, embora sem obter reconhecimento internacional. Por outro lado, o território que o Estado palestino ocuparia, caso hoje fosse declarada sua criação, não seria mais de 20 a 22% da área da Palestina britânica, se fossem mantidos os enclaves de colonos sionistas na Cisjordânia e a ocupação de Jerusalém Oriental. Porém, se ocorresse uma completa desocupação por parte de Israel dessas regiões, então ambos territórios, somados à retirada unilateral israelense da Faixa de Gaza ocorrida em 2005, teríamos os 30% de terras palestinas correspondentes aos outros 70% de território israelense. Em suma, o Estado da Palestina estaria formado pela Cisjordânia, Faixa de Gaza e por Jerusalém Oriental, que o nacionalismo palestino quer ter como sua capital.
A criação do Estado de Israel foi uma proposta da Organização das Nações Unidas. E agora a ONU parece ter perdido o controle sobre a questão. Qual seria a causa dessa “perda de autoridade” ao longo dos anos?
Parece-me que a ONU nunca foi um ator politicamente muito ativo na questão, uma vez que suas principais resoluções, como a que obriga Israel a retirar-se dos territórios invadidos durante a Guerra dos Seis Dias, nunca foram implementadas. Além disso, durante a Guerra Fria, quem realmente deu as cartas do jogo político foram, em nível internacional, os EUA e a URSS e, em nível regional, além de Israel, o Egito, a Síria, o Iraque e as chamadas “monar-
Cenas da destruição na Faixa de Gaza
quias árabes conservadoras” lideradas pela Arábia Saudita. Após a revolução islâmica de 1979, outro importante ator político que entra em cena é o Irã. E, com o fim da Guerra Fria e a dissolução da URSS, os EUA reafirmam-se enquanto potência internacional hegemônica no Oriente Médio, que é apoiada, importante dizer, não somente por Israel, mas cada vez mais, pelos árabes conservadores do Golfo Pérsico, pelo Egito e, em menor medida, pela ala mais centrista da OLP, a Fatah, que, na época, dava sua guinada à direita. Os discursos da Fatah e do Hamas parecem denotar diferenças entre os próprios palestinos a respeito da criação de um Estado. Como podem ser resumidas essas diferenças e como elas interferem no processo de paz na região?
Não me parece que os discursos e ações políticas de ambos partidos caracterizam diferenças a respeito da criação do Estado palestino, mas sim demonstram a diversidade política, ideológica e econômica que permeia a questão, ou seja, que tipo de Estado e de sociedade se deseja para a população palestina. No que se refere à adoção de determinado modelo econômico e programa político-ideológico e à formação de alianças regionais e internacionais, Fatah e Hamas divergem em vários aspectos. Aquela, oriunda de uma tradição da esquerda nacionalista e terceiro-mundista dos anos de 1960-70, que flertou com o nasserismo e o socialismo árabe, porém sem nunca ter sido comunista, sofreu
uma guinada à direita após o fim da Guerra Fria nos anos 1990 e, hoje, não contesta o liberalismo econômico e político dominantes. O Hamas, por outro lado, surgiu de uma conjuntura de crise política: a Intifada palestina de 1987-90. Expulsa do Líbano em guerra em 1982, a OLP, desacreditada e politicamente enfraquecida para lidar com a questão nacional palestina e para lutar contra a ocupação israelense de Gaza e da Cisjordânia, verá nascer um importante adversário, porém, à época, ainda informal e secundário. O próprio Estado de Israel fomentou e armou o Hamas contra a OLP de Arafat e suas facções nacionalistas laicas de tradição esquerdista, a fim de dividir o movimento nacional palestino, e também para tentar lidar com um novo grupo político que fosse mais fraco e, portanto, menos exigente quanto às demandas nacionais palestinas. Inicialmente, o Hamas se absteve de realizar ataques abertos contra Israel. Porém, em pouco tempo, isso mudou, e o Hamas assumiu um importante protagonismo na resistência e no nacionalismo palestinos, ainda numa fase em que sua ideologia e ação política poderiam ser consideradas conservadoras ou “fundamentalistas”. Porém, especialmente após as primeiras crises do processo de paz dos anos 1996-2000, o Hamas vem assumindo grande parte da ação política e social entre as classes sociais mais pobres e marginalizadas da sociedade palestina, que a Fatah, quando no poder, relegou ao segundo plano, em parte devido ao próprio “aburguesamento” liberal e à corrupção de vários de seus quadros.
Garoto palestino observa estrago feito por ataque israelense
A respeito da interferência dessas divergências políticas e econômicas que existem entre a Fatah e o Hamas no processo de paz com Israel, costuma-se afirmar que um dos principais empecilhos seria o não-reconhecimento ao direito de existência de Israel por parte do Hamas. De fato, em algum momento o Hamas terá de repensar a questão e emitir uma declaração formal que reconheça o Estado hebreu, embora já tenha havido vários posicionamentos informais nesse sentido por parte de algumas lideranças. Por outro lado, inimigo que não se reconhece é aquele contra o qual não se luta. E, nesse sentido, a experiência histórica prova que, embora informalmente, Israel e o Hamas têm se relacionado, mesmo que na maioria das vezes seja para divergir e combater entre si. Da mesma forma, Israel, assim como os EUA e a União Europeia, precisam reconhecer formalmente o Hamas como partido político e movimento social legítimo da sociedade palestina, que o elegeu democraticamente como seu representante no parlamento e no governo, a fim de que se possa partir de um diálogo em um nível pelo menos política e juridicamente igualitário. Que outros desafios poderiam ser citados para a criação de um Estado palestino?
Outros importantes desafios, que preferiria chamar de direitos palestinos inalienáveis, são: a questão dos refugiados (de três a quatro milhões) espalhados em diversos países do Oriente Médio; a declaração de Jerusalém Oriental (uma vez desocupada por Israel) como sede da capital palestina; a determinação precisa das fronteiras da Palestina, tanto com Israel quanto com os demais países vizinhos (Egito e Jordânia); a suspensão da construção e a posterior destruição do muro que Israel hoje constrói na Cisjordânia, inclusive anexando território palestino, mais conhecido por “Muro da Vergonha”, que somente serve para semear mais segregação entre os dois povos; e, o principal de todos, a retirada total e incondicional de Israel e de suas tropas e colonos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, que
seria o retorno às fronteiras de 1967. Nesta questão, é preciso mencionar Gaza, pois, embora tenha havido, em 2005, a desocupação unilateral de que falávamos, Israel seguidamente viola o espaço aéreo de Gaza e realiza incursões militares terrestres na região. Da forma como a imprensa e a mídia burguesas têm abordado esta última crise ocorrida em Gaza, parece que o Hamas resolveu pôr um fim à trégua e atacar Israel sem quaisquer motivos, quando, na verdade, Israel se retirou apenas formalmente da Faixa de Gaza em 2005, pois nunca deixou de invadir a região e, inclusive, imiscuir-se nos assuntos de política interna do governo do Hamas, isso sem falar no fato de que nunca o reconheceu como representante político legítimo dos palestinos de Gaza, pois foi democraticamente eleito por estes em 2006. Em relação ao tema dos refugiados e seu direito de retorno, a solução da questão é bem mais complexa, uma vez que estes reivindicam retornar para as áreas que suas famílias ocupavam quando da criação de Israel em 1948, o que poderia acarretar numa incursão em massa de palestinos ao atual território israelense. Ainda que essa solução fosse implantada, não creio que a maioria dos palestinos que vive na diáspora exerceria esse direito de retorno, pois muitos já possuem laços sociais, familiares e profissionais em outros países. Porém, se esse direito de retorno fosse concedido, ele deveria ser conferido a todos os descendentes dos refugiados de 1948 sem restrições. Pareceme que uma solução diplomática intermediária seria que se procedesse à retirada incondicional de Israel da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental e, assim, através da proclamação de um Estado palestino, o direito de retorno talvez pudesse ser exercido nessas regiões e em Gaza. Na sua avaliação, qual é o peso da questão religiosa nesse conflito?
A questão religiosa muitas vezes serve como pretexto para encobrir fins políticos e econômicos. Para mim, está muito claro (e a maioria dos pesquisadores do tema afirma isso) que o problema é de ordem nacional e, portanto, requer soluções políticas e econômicas de ambos os lados. Assim, volta-se à questão sobre em que tipo de Estado a sociedade palestina quer viver. E a resposta dada nas últimas eleições, que conduziram o Hamas ao poder, parece ser a rejeição do projeto político-econômico liberalizante da Fatah e de parte da OLP, bem como a desaprovação de práticas de corrupção na condução da Autoridade Nacional Palestina, associadas ao fracasso do processo de paz dos anos de 1990 e à irrupção da Segunda Intifada em 2000. A tese equivocada de que o “fundamentalismo islâmico” – e, no caso palestino, o Hamas seria, segundo o senso comum, seu representante – abriga os ideais da maioria das sociedades muçulmanas do mundo é um profundo erro. Em termos político-ideológicos e econômicos, talvez ainda não seja possível determinar com precisão aquilo que o Hamas e seu programa político realmente representam, porém a estratégica política de luta e alguns de seus ideais os fazem assumir um papel dissonante daquele da globalização neoliberal. Em geral, hoje se diz que o dilema político dos EUA e da Europa no Oriente Médio é ter de escolher entre o apoio a muitas ditaduras militares de direita ou esquerda (porém laicas e seculares) e o respaldo a governos adeptos de um programa político-religioso islamista/fundamentalista (porém cada vez mais eleitos democraticamente).
de 22 a 28 de janeiro de 2009
11
internacional
O atual conflito na Faixa de Gaza e a reação dos judeus amantes da paz MASSACRE NA PALESTINA A resistência aos ataques também parte de partidos e organizações de dentro do Estado de Israel Reprodução
o escritor conhecido internacionalmente Amos Oz escreveu – ainda em fevereiro 2008 – um artigo premonitório, no qual afirma: “Raiva, impaciência e frustração estão cada dia mais presentes entre o povo de Israel. No entanto, não podemos cair na armadilha que nos preparam os dirigentes do Hamas – de que deveríamos mandar nossos soldados a Gaza...”.
Clara Politi A PRIMEIRA vez que me deparei com uma barreira que dizia “Não pode, você é judia” foi ainda nos primeiros anos do curso primário, numa escola pública de um vilarejo chamado Hernandarias, no Estado de Entre Rios, na Argentina. Em meados dos anos de 1950, era uma tradição nas pequenas cidades do interior que, na comemoração do fim do ano escolar, o/ a melhor aluno/a da classe levasse a bandeira nacional para que o padre da paróquia local a benzesse. Eu tinha sido naquele ano designada para levá-la e me aprontei para isso. Ao chegar à porta da igreja, no entanto, o diretor da escola aproximou-se de mim e, tirando a bandeira de minha mão, pediu que esperasse fora do recinto da igreja. Meu pai era comunista, nunca havia sequer falado conosco de religião ou de judaísmo. Apenas sabíamos que éramos judeus porque nosso sobrenome era diferente dos demais. Desde aqueles dias, não parei de pensar na discriminação como um fator de isolamento entre as pessoas e os povos. Como não tive explicações em casa, comecei a ler sobre o que era o “povo judeu” de que tanto se falava, e ao qual as pessoas se referiam quando olhavam para mim. A primeira coisa que vi é que havia alguma distinção fundamental, e que era preciso estudar. Percebi que os que nasciam num “lar judeu e religioso” não tinham a mesma inquietação: eles não tinham o que explicar a si mesmos, iam às sinagogas durante as festas religiosas e isso, para eles, era “ser judeu”. O difícil era poder dizer: “sou socialista/comunista, sou ateu e também sou judeu”. E a partir dos anos de 1970, mais difícil ainda era poder afirmar: “sou judeu, sou socialista/comunista e sou a favor da paz entre árabes e judeus”. A questão nacional e a luta de classes Lendo os ideólogos da criação do Estado de Israel (Theodor Herzl, Meir Dizengoff, A. D. Gordon, entre outros) encontrei a clara evidência de que aqueles que ideologicamente se identificavam com os partidos socialistas falavam claramente da formação de um Estado onde pudessem conviver judeus e árabes. Também me tranquilizou saber que muitas discussões sobre a “Questão Judaica” tiveram como protagonistas grandes líderes da Segunda Internacional, como Lênin, Rosa de Luxemburgo e outros que publicaram ensaios a respeito. Dov Ber Borojov, talvez o mais consequente dos intelectuais socialistas que lidaram com esse problema, foi o primeiro a conceber, no seu livro editado em 1905 A questão nacional e a luta de classes, o povo judeu como uma nação em pé de igualdade com as demais nações do mundo e sua necessidade de autodeterminação, para o que era imprescindível um território onde se estabelecer. A esse respeito, Borojov nos diz que as classes trabalhadoras árabes e judias tinham interesses comuns na luta contra o colonialismo inglês e a exploração nas terras da Palestina, e podiam (e deviam) conviver em paz. Ele escreve: “Quando as terras improdutivas forem preparadas para o cultivo, quando comecemos a aplicar novas técnicas de produção e quando ambos os povos desenvolvam a terra da Palestina, haverá suficiente terra para que judeus e ára-
Judeus realizam manifestação na cidade de Londres, Inglaterra
bes nela habitem: nesse momento as relações normais entre judeus e árabes prevalecerão”. (Eretz Yisrael in our Program and Tactics, editado em 1917). A guerra fria joga por terra a Declaração de Balfour Como acontece muitas vezes na história, a natural e gradual evolução política-ideológica dos povos judeus e árabes acabou sendo “atropelada” por fatores externos. A complexidade da colonização da Palestina por dois povos e duas nações distintas (tal como havia sido previsto na Declaração Balfour, de 1917) acabou sendo levada de roldão pelas trágicas consequências de uma guerra mundial que não somente ceifou a vida de milhões de pessoas de todas as raças e credos, fruto de uma ideologia racista e discriminatória, como também deu origem a uma nova divisão do mundo. A criação do Estado de Israel em 1948 é fruto dessa nova partilha entre Oriente e Ocidente que caracterizou o mundo pós-guerra e deu início ao que se conheceu como a “guerra fria”. Apesar disso, e certamente ainda movidos pela doutrina “borojoviana”, os partidos de esquerda (Mapam e Mapai), que assumem a vanguarda do novo Estado durante os primeiros 30 anos de sua existência, insistiam na tese de que “‘Os palestinos’ não existe. Somos todos palestinos”. Desde os tempos dos filisteus e depois durante o Império Otomano, a Palestina era uma parte do Oriente Médio onde sempre conviveram judeus, árabes cristãos e árabes muçulmanos. A criação da OLP e a virada de 1964 Esse conceito utilizado até 1964 muda quando se cria, pela Liga Árabe, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). No seu documento de criação, a OLP usa, pela primeira vez, o termo palestino referindo-se somente aos árabes que vivem na região e não aceitam ter documentação israelense, distinguindo-os daqueles árabes que, também vivendo na região, aceitaram a nacionalidade israelense. Uma situação nova e complexa. Essa situação se agrava ainda mais quando o reino da Jordânia, criado quase ao mesmo tempo que o Estado de Israel, não aceita que
aqueles palestinos que não optaram pela cidadania israelense se transfiram para o seu território. Como se isso não bastasse, no momento em que a OLP decide invadir pela forca o território jordaniano, ocorre uma guerra que termina com o grande massacre que se conheceu como “Setembro Negro” (em 1971). Não se pode esquecer que, nessa guerra entre jordanianos e palestinos, a Jordânia é ajudada pela Síria e pelo Iraque. Como resultado desse massacre, e diante da passividade dos governos árabes da região, o povo árabe palestino não tem outra alternativa senão a de se refugiar na faixa entre a Jordânia e Israel (que passa a se chamar Cisjordânia), na Faixa de Gaza e no sul do Líbano. Enquanto isso, os dirigentes e líderes da OLP se refugiam no Marrocos. Depois da chamada Guerra de Yom Kipur (1973) e dos sucessivos conflitos bélicos na região, começam a surgir grupos pacifistas e de esquerda que começam a pensar que, para pôr termo ao conflito que produz vítimas quase que constantemente, de ambos os lados, era necessária a criação de um Estado palestino, que deveria conviver pacificamente ao lado do Estado de Israel. A ideologia que move esses grupos, se bem que não seja a mesma que moveu os adeptos da teoria borojoviana do início do século 20, trata de adequar-se a uma nova realidade não somente geográfica e política, mas também subjetiva/ psicológica dos povos envolvidos no conflito. Dos anos de 1980 até o presente, uma nova virada de página Não podemos esquecer que entre os anos de 1980 e o início do século 21, novamente fatos históricos atropelaram as idéias da paz para a região e mudaram a realidade do diaa-dia dos povos que ali vivem. Se, por um lado, a assinatura dos acordos de Camp David tinha dado um alento para a perspectiva da paz e da coexistência pacífica de dois Estados, outros fatos – tais como o surgimento de organizações mais radicais que a OLP e os ataques terroristas nos anos de 1980; a invasão sangrenta do Líbano pelas forças militares de Israel em 1982; ou ainda o fracasso da gestão de Yasser Arafat como presidente da entidade palestina reconhecida como única inter-
locutora resultaram na situação de hoje. A liderança da OLP, mergulhada em práticas corruptas, viu-se rapidamente desafiada por uma nova força política, bem mais radical, que ganhou as eleições na Faixa de Gaza – o Hamas. Israel desocupou em 2005 os territórios de Gaza e Cisjordânia, isolandose, construindo muros e estabelecendo novos controles em fronteiras para impedir que os palestinos passem ao seu território. O Hamas, não reconhecendo o Estado de Israel, estabeleceu como prioridade sua eliminação, lançando foguetes a partir de Gaza contra as cidades do sul israelense. Em resposta, Israel decretou para os habitantes de Gaza um severo bloqueio econômico. Como os palestinos, devido à exiguidade do território em que vivem e a situação econômica de total dependência, têm poucas fontes de trabalho, a maioria da população começou a ver minguar o suprimento de suas necessidades vitais, como trabalho, saúde e alimentação. Isso só alimentou o círculo vicioso que leva à miséria e, desta, ao desespero, fonte de recrutamento para os fundamentalistas radicais do Hamas. Não se pode esquecer que Gaza sobreviveu, nos últimos anos, com base na ajuda de outros países árabes e do Irã, assim como da ajuda humanitária internacional. Todo esse panorama termina com a atual agressão de Israel contra os líderes do Hamas, e contra os habitantes da Faixa de Gaza, ação que pareceria ter o beneplácito ou pelo menos a conivência de todos. “Israel tem que proteger seus habitantes e o Hamas é um agressor” – para tanto, não importa a que preço. As vias e mecanismos diplomáticos são interrompidos e só se escuta o som dos bombardeios. Uma notável resistência dentro e fora de Israel No entanto, é preciso notar e não esquecer que, apesar de toda a censura da mídia israelense, existe uma notável resistência por parte de grupos dentro e fora de Israel com relação à ocupação de Gaza pelo Estado de Israel. Essa resistência é levada a cabo tanto por civis – em importantes manifestações dentro e fora do território israelense, como por soldados que, negando-se a servir em Gaza, preferem enfrentar a prisão a participar da matança indiscriminada de inocentes.
Vamos relatar alguns exemplos dentro do território de Israel. Para o Partido Comunista, o importante é que existe uma oposição interna O Partido Comunista de Israel (PCI) manifesta que todos os dias existem atividades nas ruas das grandes cidades de Israel e da Cisjordânia em protesto contra a guerra. Dov Khenin, membro do Parlamento pelo partido Hadash e dirigente do Partido Comunista, em entrevista à jornalista Amy Goodman, no programa Democracia Agora, declarou: “Bom, o mais importante é que estamos percebendo que existe uma oposição dentro de Israel que se manifesta contra a guerra e contra tudo o que acontece atualmente em Gaza. Essa posição é Judio-Árabe. Na noite do sábado, dia 3, uma mobilização em Tel Aviv reuniu 2 mil jovens, a maior parte judeus, e há muitas manifestações em todo o território de Israel, de judeus e árabes, contra a atual política de guerra do governo. Essa oposição está crescendo constantemente. É muito importante saber disso e entender que existem outras vozes na sociedade israelense que se opõem à guerra e acreditam que outra situação entre israelenses e palestinos é possível” (para assistir, acesse: http://www.fuerzasoci alistaantv.org/fuerzaantv/ index.php?option=com_ content&view=article&id= 3:en-israel-salieron-150mil-personas-a-las-callespara-protestar-contra-lamasacre-en-gaza).
O socialista Meretz e os ativistas do Paz Agora O partido político Meretz (http://www.meretzusa.org) expressou também seu repúdio à guerra e condenou a perseguição aos parlamentares árabes por expressarem no Parlamento a oposição à invasão da Faixa de Gaza. O grupo pacifista Paz Agora pede uma solução diplomática para o conflito e alega que essa nova guerra não elimina a insegurança no sul de Israel, nem debilita as forças do Hamas. Ao contrário, intensificam os bombardeios e as matanças indiscriminadas de adultos e crianças e fazem a população odiar cada vez mais fortemente o Estado de Israel. Um de seus principais ativistas e fundador do grupo,
O Bloco da Paz e seu professor Ury Avnery Finalmente, vejamos o que pensa um outro grupo que tem grande participação nas manifestações de protesto contra a invasão de Gaza, o Gush Hashalom (Bloco da Paz). Um de seus principais ativistas é Ury Avnery, professor universitário e exmembro do Parlamento israelense. Seus integrantes, tanto em suas declarações escritas como durante as manifestações que promovem, afirmam claramente estarem convencidos de que a atual invasão de Gaza se deu exclusivamente em função das próximas eleições em Israel, no mês de fevereiro. No dia 3, em manifestação na cidade de Haifa, o professor Ury Avnery leu um longo poema, do qual extraímos algumas estrofes: Eles nos chamam de traidores Eles nos acusam de destruir Israel Eles nos qualificam de criminosos Mas nós dizemos a eles: Criminosos são aqueles que começaram Esta guerra criminosa e desnecessária Uma guerra desnecessária Porque era possível parar os Quassams (*) Se o governo parasse o bloqueio De um milhão e meio de habitantes de Gaza Uma guerra criminosa porque, acima de tudo, É aberta e desavergonhadamente Parte de Ehud Barak e Tzipi Livni Campanhas eleitorais Acuso Ehud Barak De explorar os soldados do nosso Exército Para obter mais assentos no Knesset Acuso Tzipi Livni De querer matanças indiscriminadas Para tornar-se Primeira Ministra Acuso Ehud Olmert De encobrir Podridão e Corrupção Com uma guerra desastrada Conclamo desta tribuna Em nome de toda esta corajosa e decente multidão Parem a Guerra de imediato! Cessem com o derramamento de sangue Dos nossos soldados e de civis sem sentido Parem com o derramamento de sangue Dos habitantes de Gaza (...) Milhões de pessoas ao redor do globo estão com vocês, agora, Observando-os e saudando cada um de vocês. Como Ser Humano, Com israelense Como um amante da paz Estou eu também Orgulhoso de estar hoje aqui (*) Foguetes disparados a partir de Gaza. Clara Politi é administradora de ONGs, judia, socialista e lutadora pela paz mundial.
12
de 22 a 28 de janeiro de 2009
américa latina
Desesperada, oposição à nova Constituição faz terrorismo BOLÍVIA No dia 25, novo texto constitucional será votado em referendo nacional. Defensores do NÃO divulgam mentiras como as afirmações de que a Nova Carta Magna não defende Deus e confronta o presidente Evo Morales com Jesus Cristo Fotos: Marcelo Salles
Fernanda Chaves Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia) PRAÇA Triangular, domingo, dia 18, por volta de meio-dia. Após uma manhã de chuva forte, com direito à granizada, que lavou o céu de La Paz e abriu passagem para um sol escaldante, aos poucos surgem dezenas de carros enfeitados com adesivos e bandeiras, além de milhares de manifestantes que caminharam cerca de 20 quilômetros, desde as proximidades de El Alto até esta zona central da capital boliviana, mais precisamente no bairro de Miraflores. Uníssonos pelo SIM, os manifestantes pertenciam a diversos movimentos sociais, partidos políticos e outros grupos, além de setores independentes que defendem a aprovação do novo texto constitucional, que será votado no domingo, 25 de janeiro, em referendo nacional. Socialização
Socializar o conteúdo da nova Carta tem sido esforço prioritário do governo e de movimentos que apoiam o SIM. Até nas farmácias a Nova Constituição é exposta na vitrine em sua versão integral e vendida pelo equivalente a R$ 1 ou R$ 2, dependendo do tipo de encadernação. Pelas ruas, o texto compatibilizado, impresso em papel jornal, é massivamente distribuído e debatido. Emilio Gutierrez Colque foi deputado constituinte por La Paz e esteve na manifestação da Praça Triangular. Em sua opinião, a aprovação do novo texto constitucional significa o fim da exploração do povo boliviano. “Todas as políticas anteriores foram manejadas pelo Banco Mundial, pe-
Manifestações em prol da nova Constituição; no alto, à direita, Emílio Gutierez e seu famoso fusca
las grandes empresas e pelo setor fascista radical de Santa Cruz, com o apoio dos Estados Unidos. No dia 25 vamos acabar com esse Estado corrupto, excludente e expulsar a máfia que vive em nosso país”, afirma o pequeno empresário que faz campanha pelo SIM com seu fusca coberto com as cores da Bolívia. Direita raivosa
Enquanto a campanha pelo SIM colore a cidade com manifestações bem-humoradas, é difícil perceber o mesmo entre os partidários do NÃO. Segundo o geógrafo brasileiro
João Laguens, que percorre a Bolívia para acompanhar o momento político da região, o que existe é uma diferença estética: “Enquanto a esquerda é movida pelo sentimento de desejo real, a direita atua por dever, um dever raivoso”. Isso pode ser observado nas campanhas televisivas promovidas por entidades como Iglesias Re-Unidas, Basta Ya, Jovenes por Bolívia e Comisión Nacional de Defensa de Valores y Princípios Cristianos. Há menos de um mês do referendum, foram divulgadas peças a partir de premissas falsas, como as afirmações de que a
nova Constituição não defende Deus e confronta o presidente Evo Morales com Jesus Cristo. Ao final a mensagem afirma: “Não seja cúmplice do pecado, vote NÃO”. Isso apesar de o artigo 4o garantir que “O Estado respeita e garante a liberdade de religião e de crenças espirituais”. O tema da propriedade privada também foi bastante manipulado em emissoras de rádio e televisão. As mensagens falsas diziam que o novo texto permitirá ao Estado expropriar casas e automóveis de quem possua mais que um desses bens. Tanto repetiram
que certa vez um taxista comentou: “Vou votar NÃO porque minha única fonte de renda depois que me aposentar será o aluguel de uma segunda casa que tenho”. Entretanto, o artigo 56o afirma, textualmente: “A propriedade urbana imóvel não está sujeita a reversão”. Agressões
O caráter raivoso da oposição de direita também fica explícito nas agressões aos partidários do SIM. Somente na semana anterior ao referendo foram relatados pelo menos dois casos em La Paz. Um de-
les teria acontecido em El Prado, quando dezenas de simpatizantes do NÃO agrediram um militante do SIM que estava sozinho, segundo um gerente bancário que trabalha na região. Outro caso foi o de Rolando Rea, carpinteiro de 31 anos que protestou na Praça Murillo, em frente ao Congresso e ao Palácio de Governo. Ele afirma ter sido vítima de agressão por integrantes da União Juvenil Cruceñista no departamento Santa Cruz quando fazia campanha pelo SIM na Praça 24 de Setembro. “Cerca de 400 rapazes chegaram em caminhonetes, inclusive da prefeitura, armados com paus e pedras. Éramos um grupo de vinte manifestantes apenas. Sofri agressão na própria carne por manifestar uma opinião, isso é crime”, afirma o militante que reside no Plan 3000, bairro de maioria evista e por isso mesmo bastante alvejado pela oposição de direita. As campanhas deverão se encerrar em 22 de janeiro, três dias antes do referendo. Desde o início do mês as sessões eleitorais têm estado lotadas de cidadãos dispostos a participar do processo eleitoral como fiscais de mesa ou que simplesmente desejavam renovar/validar seus registros. Além disso, tendas de informação foram espalhadas pela capital para que o eleitor pudesse esclarecer suas últimas dúvidas. Na cédula de papel, duas perguntas deverão ser respondidas: “Qual o tamanho máximo da propriedade rural: 5 ou 10 mil hectares? E “Você está de acordo com o texto do projeto de Constituição Política de Estado: SIM ou NÃO?” Apesar de ninguém arriscar um resultado definitivo, a maioria aposta na vitória do SIM, com aproximadamente 70% dos votos.
Bolívia, avanços e desafios do governo Evo Morales Marcelo Salles
Em 2008, o governo boliviano demarcou uma expressiva vitória sobre a oposição interna, investiu pesadamente em ações sociais e expulsou do país a CIA, a DEA e o embaixador dos Estados Unidos de La Paz (Bolívia) 2008 foi, definitivamente, um ano positivo para os bolivianos. Neste período, o governo Evo Morales Ayma demarcou uma expressiva vitória sobre a oposição interna, investiu pesadamente em ações sociais e expulsou do país a CIA, a DEA e o embaixador dos Estados Unidos. Com a expulsão dos agentes estadunidenses, o governo boliviano rompeu um histórico domínio imperialista sobre o país. Philip Goldberg, embaixador expulso, teve participação decisiva no movimento separatista nos Bálcãs. Na Bolívia, junto com a CIA, fechava com a a oposição de direita, enquanto a DEA exercia forte influência sobre as Forças Armadas e a Polícia Nacional. De acordo com o sociólogo Eduardo Paz Rada, “em muitos casos, durante as últimas décadas, os Ministros de Governo deveriam receber o ‘visto bueno’ do embaixador dos Estados Unidos e ‘ter visto’ de ingresso ao país do Norte para serem nomeados oficialmente pelo presidente da República. Somente na gestão do atual presidente da Bolívia essas práticas mudaram de maneira radical a partir do questiona-
mento que fez e faz Evo Morales em relação às ações de dominação regional dos Estados Unidos na América Latina”, avalia. Avanços sociais
No plano interno, o governo boliviano anunciou a conclusão do Plano Nacional de Alfabetização, que erradicou o analfabetismo no país. Resultado do trabalho de 30 meses em associação com os governos de Cuba e Venezuela: mais de 800 mil pessoas aprenderam a ler e escrever e a Bolívia passou a ser o terceiro país latino-americano livre desse mal. No campo da saúde, a presença dos médicos cubanos resultou em 250 mil atendimentos, 3 mil cirurgias de vista, além de terem entregado cerca de 210 mil óculos de grau para a parte mais pobre da população. As medidas motivaram inscrições como “Saúde: antes para poucos, agora para todos”, espalhadas pelos muros de La Paz e El Alto, chegando também em áreas rurais como nos vilarejos em torno de Tihuanaco. A terceira medida de grande impacto social foi chamada Renda Dignidade, espécie de aposentadoria que remunera em Bs 200 (cerca de R$
Saldo de 2008: rompimento com o imperialismo e avanços sociais
70) mais de 730 mil anciãos maiores de 60 anos, mensalmente, desde fevereiro de 2008. Desses, mais de 600 mil não tinham qualquer fonte de renda até então, de acordo com o Centro de Documentação e Informação da Bolívia. O investimento na Renda Dignidade, de 205 milhões de dólares, é produto da nacionalização dos hidrocarbonetos. Derrota da oposição
O ano de 2008 também demarca a expressiva vitória do governo sobre a oposição de direita, que durante anos teve a iniciativa política. O ícone maior dessa alteração na correlação de forças aconteceu em setembro, com a prisão do então prefeito de Pando. Leopoldo Fernandez
é acusado de ser o principal mandante do massacre que deixou 20 pessoas mortas e dezenas de feridos, no episódio em que Evo Morales obteve amplo respaldo da Unasul e a intenção golpista da direita foi neutralizada. Desse modo, a oposição representada pelas prefeituras de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija, os denominados Comitês Cívicos, o Senado Nacional com maioria opositora, o Poder Judiciário e os meios de comunicação de massa foram derrotados. Segundo Eduardo Paz Rada, “esses instrumentos obedecem aos latifundiários, às transnacionais petroleiras e mineiras e aos poderosos grupos financeiros, em coordenação com a embaixada dos Estados Unidos. Essa oligarquia utilizou todos os mé-
todos para debilitar o governo do Movimento ao Socialismo (MAS), de Evo Morales, desde bloqueios e ocupação de instituições até ações armadas com forte conteúdo racista”. Respaldo popular
Um mês antes, em 10 de agosto, o governo obteve importante vitória no referendo para ratificar o mandato do presidente e dos governadores (prefectos). Além de o povo boliviano ter confirmado Evo com 67,4%, foram mandados para casa três governadores oposicionistas: José Luiz Paredes (La Paz), Manfred Reyes Villa (Cochabamba) e Alberto Aguilar (Oruro) garantindo assim ao governo do MAS o controle de mais três departamentos, sendo um deles a capital política, La Paz
(Sucre sedia o Poder Judiciário). Por outro lado, Rúben Costas, de Santa Cruz, maior opositor de Evo, foi ratificado com mais de 70%. Em outubro, o Congresso Nacional se reuniu para discutir o texto da nova Constituição. As sessões vararam madrugadas de um final de semana. Uma grande marcha saída de Oruro, há 200 quilômetros de La Paz, chegava com 25 mil pessoas, depois de uma semana de caminhada, às portas do parlamento, para pressionar a favor do novo texto. A mobilização popular surtiu efeito e os congressistas aprovaram a convocação do referendo em que a população vai decidir, no dia 25, se a nova Constituição entra em vigor ou não. O texto tem avanços importantes, como a proibição de se privatizar os recursos básicos como energia e água; reconhecimento pleno dos povos indígenas originários; direitos das mulheres e garantia da administração dos recursos minerais pelo Estado boliviano em benefício de seu povo. Mas, apesar de ter sido um ano extremamente positivo, não se pode dizer que foi perfeito. A oligarquia ainda teve força para negociar a permanência, no novo texto constitucional, da propriedade privada de grandes latifúndios. Além disso, a direita ainda controla as finanças do país, cujas reservas avaliadas em 7,7 bilhões de dólares seguem depositadas em bancos e instituições financeiras dos Estados Unidos e Europa. (FC)