Edição 310 - de 5 a 11 de fevereiro de 2009

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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 310

São Paulo, de 5 a 11 de fevereiro de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Mauricio Scerni

Sarney chega pela 3ª vez à presidência do Senado Por 49 votos a 32, José Sarney (PMDB-AP) foi eleito, no dia 2, o novo presidente do Senado. Com a vitória sobre Tião Viana (PT-AC), Sarney retorna ao cargo que já ocupou por duas vezes (de 1995 a 1997 e de 2003 a 2005). Na avaliação do deputado federal Domingos Dutra (PTMA), o ex-presidente perseguirá dois objetivos: “dar sumiço” em um processo contra o seu filho e conseguir recuperar o poder no Maranhão, pressionando pela cassação do governador do Estado, Jackson Lago. Pág. 8

Perseguição a quilombolas na Ilha de Marajó Comunidades de quilombolas estão sendo perseguidas por criadores de búfalos na Ilha de Marajó (PA). As denúncias, apuradas pela reportagem do Brasil de Fato, dão conta da existência de trabalho escravo e do cerceamento do direito de ir e vir dos povos tradicionais da região, marcada por forte desigualdade social. Pág. 11

As dificuldades de se aplicar a Constituição na Bolívia

Representantes indígenas participaram em grande número do Fórum, debatendo, principalmente, questões ligadas ao meio ambiente e à demarcação de terras

Movimentos se articulam pela integração dos povos da AL Reunidos no Fórum Social Mundial, realizado em Belém (PA) entre os dias 27 de janeiro e 1º de fevereiro, os principais movimentos sociais da América Latina organizaram uma agenda de lutas para impulsionar a integração popular do

continente como alternativa à crise financeira internacional. Nesse sentido, o principal pólo aglutinador deverá ser a Alba, em contraponto ao modelo integrador do capital simbolizado pela IIRSA. Págs. 2 a 5 Diego Padgurschi/Folha Imagem

Desmilitarizar as PMs: por uma segurança mais humana

Aprovada pelo povo com 61,45% dos votos, a nova Constituição da Bolívia agora precisa ser posta em prática. Entre os temas mais difíceis de manejar, estão: economia, autonomias, recursos naturais e terra. Em relação a este último, empresários de Santa Cruz asseguraram que não permitirão a aplicação do artigo que impõe limites à propriedade. Pág. 10

Policiais militares reprimem manifestação na favela Tiquatira, em São Paulo Bernardo Londoy

O presidente venezuelano, Hugo Chávez, durante comício pela aprovação da reeleição ilimitada

Organizações sociais e de direitos humanos lançaram, em dezembro, uma campanha pedindo o fim da vinculação das polícias militares (PMs) às Forças Armadas. Para os defensores da proposta, a militarização das tropas de segurança é prejudicial à população, uma vez que os policiais são treinados para lidar com o “inimigo”. O resultado é o alto índice de mortes e arbitrariedades cometidas contra os setores mais vulneráveis, já que prevalece a lógica da estrutura de classe da sociedade. Pág. 7 Douglas Mansur/Novo Movimento

A Revolução Bolivariana em perigo? A dificuldade de se formar lideranças capazes de dar continuidade ao processo de transformações na Venezuela é, para o cientista político Theotonio dos Santos, a principal razão que levou o presidente Hugo Chávez a convocar o referendo sobre a reeleição ilimitada de todos os ocupantes de cargos eletivos do país. Pág. 9 ISSN 1978-5134

Trem da Vale em Carajás não tem passageiros, só minério de ferro Pág. 6


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editorial O CAPITALISMO está abalado por uma crise estrutural que questiona os paradigmas difundidos pelo neoliberalismo e promove sua própria deslegitimação. É uma crise do sistema, que gera superprodução de mercadorias e superacumulação de capitais e, como consequência, o aumento brutal da pobreza, da desigualdade, da exploração, exclusão dos povos, saque, contaminação e destruição da natureza. Os capitalistas pretendem descarregar com maior violência suas crises sobre os trabalhadores, sobre os excluídos, socializando as perdas, socorrendo aos banqueiros e subsidiando as grandes empresas transnacionais com os fundos públicos. Ao mesmo tempo, se agravam as políticas que nestes anos de globalização mundial desenvolveram um silencioso genocídio das comunidades originárias, promoveram a precarização de milhares de homens e mulheres – especialmente jovens e idosos, violando os direitos humanos, trabalhistas, sociais, destruindo as possibilidades de acesso à educação, à saúde, à terra, ao trabalho e à moradia. Esse é o diagnóstico feito pelos movimentos sociais, durante o Fórum Social Mundial, em Belém (PA). Para impor essa lógica, o capital reforça a violência e o controle militar, promovendo guerras, invasões, agressões, assim como o estabelecimento de bases militares, de exercícios militares conjuntos e a criminalização dos movimentos populares, a perseguição dos líderes, assim como

debate

Por uma verdadeira integração latino-americana o desalojamento de povoações. Utilizam os meios de comunicação de massa para manipular o consenso da opinião pública às políticas repressivas, à penalização judicial, e inclusive aos assassinatos de lutadores e lutadoras populares. Neste contexto, os EUA ativaram a Quarta Frota como ameaça para os processos sociais transformadores no continente. E em muitos de nossos países os governos e parlamentos copiam os pacotes de leis “antiterroristas” que os EUA utilizam para combater os povos. A crise representa uma enorme ameaça para os povos, porém, também vemos nela uma nova oportunidade para promover alternativas populares ao sistema, avançando para uma mudança estrutural, cuja vigência e viabilidade se voltam incontestáveis. Saídas Os movimentos populares percebem que o continente está atravessando um novo momento político e social. Estão cientes dos grandes desafios que têm pela frente. Sabem que nova fase de lutas será de recomposição e acumulação de forças, de confrontações com o capital, de construção de nossas organizações

e de formação de militantes com capacidade para assumir os novos desafios. Nesse sentido, é necessário construir coletivamente um projeto popular de integração latino-americana, que reformule o conceito de “desenvolvimento” sobre a base da defesa dos bens comuns da natureza e da vida, que avance para a criação de um modelo civilizatório alternativo ao projeto depredador do capitalismo, que assegure a soberania latino-americana frente às políticas de saque do imperialismo e das transnacionais, e que assuma o conjunto das dimensões emancipatórias, enfrentando as múltiplas opressões geradas pela exploração capitalista, a dominação colonial e o patriarcado, que reforça a opressão sobre as mulheres. Para efetivar uma integração popular, os movimentos sociais avaliam ser necessário: elevar a mobilização de massa contra o capital transnacional e os governos que atuam como cúmplices do sistema; elevar o nível cultural, educacional e a consciência da população; avançar na formação política dos e das militantes populares; promover um debate profundo sobre o modelo de desenvolvimento capitalista e sobre

A crise, o setor elétrico e o Plano Decenal de Energia Gama

é a vantagem de contar com políticas de Estado dedicadas a expandir seus negócios, a lhes garantir “segurança energética” a todo custo. A previsão de alto consumo de energia, 5,5% ao ano a partir de 2008, serve apenas para escorar a lógica “ofertista” em vigor. O terrorismo com a possibilidade de um segundo apagão faz parte do showbusiness, espetáculo de crescimento (caudal) prometido. O PDE elege como prioridade a montagem de uma base de dados que possibilitem o “pleno aproveitamento do potencial hidrelétrico nacional.” Os níveis de expansão pretendidos dependem do aproveitamento de cada gota turbinável dos rios brasileiros, especialmente os da Amazônia. A categorização de avaliação ambiental proposta por nível de impacto (socioeconômico e físicobiótico) dos projetos hidrelétricos serve para sinalizar riscos regulatórios e políticos, não para municiar o planejamento público deles. A evidência da instrumentalidade dessa categorização é a divisão dos projetos em três classes, segundo o grau de previsibilidade de seus cronogramas. Os projetos compatíveis são os que seguem em inabalável linha de montagem, sem atraso. Na sequência, as duas categorias que exigem um maior enquadramento, os projetos com “potencial de pequeno atraso” e com “potencial de atraso”. Esses últimos projetos, “de interesse estratégico para a expansão setorial”, requerem redobrada blindagem política e institucional. A Avaliação Ambiental Integrada que nos oferecem é um Cavalo de Tróia que procura incorporar de roldão bacias hidrográficas inteiras ao mercado de energia, com moni-

Avançar Na avaliação dos movimentos sociais, neste novo contexto latino-

crônica

Luis Fernando Novoa Garzon

A VIABILIDADE do enclave elétrico como pilar de uma série de outros enclaves, com plantas eletrointensivas em expansão no país, exigirá custos de geração decrescentes, maior captura de recursos públicos, além do desmanche do licenciamento ambiental, dos direitos sociais e dos territórios dos povos tradicionais. As agências governamentais do setor elétrico, construídas como chanceladoras dos monopólios privados, procuram encerrar esse horizonte para os próximos 10 anos. O Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE) –2008-2017, posto à “consulta pública” pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), comunica à sociedade o que para o setor elétrico seriam “condicionantes de curto prazo para o crescimento econômico para os próximos dez anos.” Na projeção da demanda de energia, a variável demográfica não seria mais relevante que a setorial. Essa equiparação mal oculta o alvo do planejamento pretendido, o aprofundamento da dinâmica subsidiária para continuar atraindo investimentos externos. No PDE, a população restringe-se a um aglomerado cuja revisão quantitativa se processa em “interações com o IBGE”. Feita tal consideração estatística, a projeção pode se dedicar ao que interessa: “pesquisas junto aos grandes consumidores de energia, principalmente com relação às suas perspectivas de investimento e expansão da produção”. O PDE admite que as alterações trazidas pelo cenário de crise podem produzir “impacto na demanda de energia”. Mas o avanço das reformas estruturais e o sucesso “no enfrentamento das principais questões internas, que obstaculizam a sustentação de elevadas taxas de crescimento,” sustentam a aposta na manutenção de um ritmo de crescimento superior ao da economia mundial. Procura-se contornar a crise da demanda não com a revisão do perfil da demanda, mas com sobreoferta de energia para os mesmos grandes consumidores. Os resultados da liberalização são “diferenciados”, assume o estudo da EPE. A siderurgia, o agronegócio e a celulose são setores dinâmicos “porque se aproveitam das vantagens comparativas que dispõem”. Destas, a mais decisiva

a necessidade de gerar modelos alternativos em todos os planos; promover uma batalha continental pela reforma agrária, contra o uso das sementes transgênicas, os agrocombustíveis industriais e o agronegócio em todas suas fases. Além disso, viabilizar o aporte do trabalho não remunerado das mulheres à economia, e incorporar esse olhar nas lutas e propostas políticas sobre a migração, a soberania alimentar e o modelo de desenvolvimento; desenvolver ações práticas de solidariedade anti-imperialista; defender a livre circulação das pessoas em nosso continente; contribuir com os planos de cooperação que existem entre os governos da Alba, assegurando que beneficiem os setores mais postergados de nossos povos; apoiar as iniciativas e desenvolver ações próprias dirigidas a erradicar o analfabetismo em nosso continente; potencializar a comunicação entre os povos, articulando suas redes existentes e criando novas redes onde seja necessário; e, por fim, criar maiores condições para que os jovens tenham espaço nesse projeto.

toração prévia dos riscos advindos dessa incorporação. A AAI foi convertida em um mecanismo de prevenção contra “fatores que poderão constituir obstáculos significativos ou impeditivos à concretização de determinados aproveitamentos hidrelétricos”. Ou seja, estuda-se e licencia-se todo o potencial de uma só vez para que não se constituam impeditivos “determinados”. Nenhum esforço para vincular esses projetos a um conjunto de programas e políticas de desenvolvimento nacional e regional. Empenho total na viabilização de sua execução, se possível em bloco. Consensos corporativos, devidamente costurados na esfera institucional, prontamente se intitulam projetos de “interesse nacional”. O PDE, como acordoquadro dos conglomerados privados, procura antecipar a aplicação da nova lei de Gerson no setor elétrico, a iniciativa proposta pelo ex-diretor da Aneel, Jerson Kelman, que impõe um licenciamento ágil e diferenciado para projetos assim definidos. Salvo-conduto para negócios bilionários não é pouca coisa a se oferecer. Lobistas em cargos públicos, porta-vozes oficiosos do setor, não iriam se esforçar tanto à toa. A formatação desse Plano Decenal, com foco na melhoria progressiva da razão risco-retorno dos projetos hidrelétricos no âmbito de marcos regulatórios flexíveis que consolidem o controle privado do setor elétrico, é prova suficiente disso. Luis Fernando Novoa Garzon, sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia, é membro da ATTAC, da Rede Brasil sobre IFMs e da REBRIP. E-mail: l.novoa@uol.com.br.

americano, há numerosas oportunidades para ir gestando uma nova ofensiva dos povos. Mas existem também muitas ameaças aos processos em andamento. É impossível enfrentar as políticas do grande capital transnacional e do imperialismo apenas com resistências dispersas de nossos povos. Não é possível também delegar os processos de integração latino-americana aos governos (por mais que estes tenham uma responsabilidade indiscutível em promovê-la). O que se pode avançar desde os governos nesta direção será um estímulo à criação de laços de cooperação solidária, que apoiaremos e sustentaremos como parte das lutas anti-imperialistas. Mas é imprescindível estimular processos de integração baseados em um poder popular criado desde as raízes mesmas da luta histórica de nosso continente. E é necessário avançar agora, superando sectarismos, cálculos estreitos, mesquinharias. É necessário avançar agora, para que se prepare a plataforma de unidade que permita sustentar e defender as lutas, por uma nova façanha de independência latino-americana – dos povos e para os povos –, por uma integração popular, pela vida, pela justiça, pela paz, pela soberania, pela identidade, pela igualdade, pela liberdade da América Latina, por uma autêntica emancipação, que tenha no seu horizonte o socialismo.

Luiz Ricardo Leitão

Ladrões de marmita EM MEIO a mais uma semana tensa e turbulenta na bela e maltratada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, enquanto os ônibus ardiam nas ruas e o governador provincial, acompanhado do novo alcaide, recebia a comitiva da FIFA cantarolando um sucesso de Tim Maia, a notícia mais insólita desta urbe foi o “arrastão” promovido pelos bichos soltos do tráfico em um bairro da zona norte, cuja “féria” arrecadada ao final de uma violenta madrugada registrava vários guarda-chuvas e uma marmita de trabalhador. O tempora, o mores! Em priscas eras da literatura europeia, os ladrões roubavam dos ricos para dar aos pobres. Hoje, em plena crise do capitalismo neoliberal, já não há sequer espaço para bandidos “românticos” como Robin Hood, o lendário fora-da-lei que, na Inglaterra medieval, lutava contra as arbitrariedades de um príncipe que usurpara o trono do célebre rei Ricardo “Coração de Leão”. Eu já escrevi aqui nesta página sobre a gênese das organizações criminosas (não-legalizadas) da Cidade Maravilhosa, ainda em plena ditadura, quando alguns presos políticos e certos expoentes da bandidagem carioca se aproximaram em presídios como o Frei Caneca e o da Ilha Grande, onde estes aprenderiam com aqueles o bê-á-bá do leninismo e, assim, montariam a estrutura piramidal de seus grupos em moldes similares aos da esquerda armada. O tema já rendeu dezenas de livros e filmes, entre eles o clássico Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, texto escrito pelo jornalista José Louzeiro. É dessa conturbada história dos anos de 1970 que surgiu o Comando Vermelho, clamando por paz, justiça e liberdade, consigna sob a qual se abrigariam bandidos revestidos de um halo quase heroico, como o próprio Lúcio Flávio e o mítico Escadinha, a quem o saudoso partideiro Bezerra da Silva dedicou um sugestivo samba, pedindo ao Senhor Juiz que ouvisse seus versos em defesa do réu antes de “bater o martelo”. Escadinha, ou melhor, José Carlos dos Reis Encina, filho de um notório militante do PT, era o rei da cocada preta no Morro do Juramento, favela localizada numa das áreas mais pobres do subúrbio carioca. Um dos fundadores da Falange Vermelha, mais tarde convertida no CV, o traficante angariou fama de bandido justo e generoso, sob cujo poder a “comunidade” gozava de paz e amparo financeiro. Quem conhece o abandono que as classes populares padecem em Bruzundanga sabe que a lenda é bastante verossímil: afinal de contas, desde os tempos da República Velha o único lema do poder público para os excluídos tem sido a malsinada frase de Washington Luiz – “o caso do povo é no porrete”. De 1980 para cá, no entanto, a delinquência da província assumiu um caráter totalmente distinto. O narcotráfico varejista ingressou de vez na era corporativa do capital e sua única preocupação é acelerar as formas de acumulação e multiplicação do vil metal, a fim de satisfazer um banal horizonte de consumo, restrito a roupas e tênis de marca, pequenas maravilhas eletrônicas e exuberantes artefatos anatômicos (perdão, mas a descrição não poderia ser de outra forma, meu dileto leitor). Nada muito distinto, aliás, daquilo a que aspiram os nossos gênios da pelota, como Ronaldos, Adrianos e Robinhos, que, apesar do efêmero sucesso em plagas europeias, volta e meia aparecem nas páginas policiais dos periódicos, seja por conta de uma pensão alimentícia atrasada, seja por obra de algum reconhecimento de paternidade ou, então, por acusações de estupro, assédio sexual e outros incisos do gênero. Em verdade, essa tropa tupiniquim é apenas uma pálida versão do monumental batalhão de vorazes consumidores que, desde a década de 1990, não para de se reproduzir nos EUA, com um apetite insaciável pelos mais variados artigos que o sistema lhe empulha: TVs de tela grande, carros importados de luxo, festas milionárias para os herdeiros, mansões adquiridas por hipotecas, empréstimos volumosos e, óbvio, infinitos cartões de crédito (mesmo endividados em trilhões de dólares, os estadunidenses têm hoje cerca de 600 milhões de cartões!). Conforme escreveu o historiador Kenneth Serbin, em termos morais, os sobrinhos de Tio Sam “substituíram o cristianismo por uma nova religião do sucesso”, que não crê em vida após a morte nem se preocupa com as gerações futuras, “pois seu credo consiste em consumir o máximo possível aqui e agora”. Para sustentar esse modelo, o poderoso Império promove planeta afora a mais impiedosa pilhagem da história da humanidade; já os nossos bandidinhos, sem bilhete para Brasília, estão a roubar marmitas e guarda-chuvas nos subúrbios de Bruzundanga... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor do recém-lançado: Reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial” (Oficina do Autor).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Patrícia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

Movimentos agendam as lutas de 2009 FÓRUM SOCIAL MUNDIAL Apesar da falta de um documento final,“Assembleia das Assembleias” apresenta resoluções de 22 temas

Com sua maior participação em todas as edições do Fórum, os indígenas foram a marca registrada do encontro no Pará. Além das inúmeras apresentações de suas culturas, o encontro setorial dos povos indígenas foi marcado por reivindicações

Polêmica

A assembleia da Pan-Amazônia marcou posição contra os danos ambientais causados pelas mineradoras, sobretudo pela Vale. O documento também exigiu a demarcação das terras indígenas e o fim dos experimentos transgênicos. Outro ponto importante foi o combate às usinas hidrelétricas, “por desalojar os povos indígenas de sua região”. Esse ponto, aliás, foi motivo de uma polêmica e até de uma animosidade, ainda que efêmera. A Federação Nacional dos Urbanitários, filiada à CUT, defende a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Na Universidade Federal do Pará, a federação montou uma maquete de um projeto do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte, que deve ser apresentado ao governo federal. No dia 31 de janeiro, cerca de 50 pessoas de movimentos ambientalistas e do campo cercaram o stand da FNU e gritavam palavras de ordem, como: “Água e energia não são mercadoria”. Membros da FNU, preocupados com a integridade do projeto, cercaram a maquete.

Mauricio Scerni

Indígenas

FSM volta ao formato original, centralizado, apenas em 2011, na África. No ano que vem, ocorrerão atos dispersos por diversas cidades do mundo, como foi em 2008

FSM 2009 em números 133 mil participantes 15 mil jovens no Acampamento Internacional da Juventude 4.500 jornalistas 5.808 entidades inscritas 2.600 atividades 200 atividades culturais 22 assembleias setoriais 1.000 artistas

Estrutura deixa a desejar Desencontro de informações e trânsito prejudicam encontro

Organizações participantes 489 africanas 491 europeias 6.900 das Américas 334 asiáticas 27 da Oceania

do enviado a Belém (PA)

Mauricio Scerni Mauricio Scerni

Apesar de, numérica e politicamente, o evento ter apresentado bons resultados, a estrutura montada na capital paraense foi insuficiente para comportar o número de visitantes. As universidades Federal do Pará (UFPA) e Rural da Amazônia (Ufra), os dois principais centros de eventos do Fórum, estão localizadas na Avenida Perimetral. Uma viagem de ônibus entre as duas universidades, que distam cerca de 5 quilômetros, chegava a durar uma hora, nos períodos de pico, após o encerramento das oficinas. O Governo do Estado havia prometido duplicar a avenida, que tem apenas uma faixa em cada sentido. Às margens da Perimetral está o bairro Terra Firme, que contabilizou 10 homicídios de dezembro para cá. Durante o Fórum, esse tipo de crime não foi registrado na região. As atividades autogestionadas apresentaram muitos problemas, como cancelamentos e troca de local. Mesmo com algumas erratas sendo publicadas no site oficial do evento, muitos deixaram de participar de atividades pelo desencontro de informações. Como exemplo disso, a reportagem presenciou o cancelamento de uma atividade da Attac Brasil, sobre a crise e o pós-capitalismo. Com o não-comparecimento dos palestrantes, os participantes improvisaram um debate entre si. Mesmo assim, cerca de 100 pessoas não conseguiram se acomodar na sala da UFPA. Tal como na última edição do FSM realizada em Porto Alegre (RS), em 2005, a estrutura do Acampamento Internacional da Juventude deixou a desejar. A Ufra, que recebeu os jovens, é composta por terrenos basicamente de terra batida, que quase tornouse um pântano com as chuvas diárias na capital paraense. Cenas pitorescas puderam ser observadas no acampamento, como uma placa com os dizeres: “Cuidado, animais peçonhentos”. Ao redor da placa, havia barracas de participantes do Fórum. (RGT)

Mauricio Scerni

CINCO DIAS de debates, 133 mil participantes, de 142 países, e cerca de 2.600 atividades autogestionadas. Para que todos esses números não permanecessem apenas no campo do debate, os movimentos sociais apresentaram, no último dia do 9º Fórum Social Mundial, realizado entre 27 de janeiro e 1º de fevereiro em Belém (PA), as resoluções de encontros setoriais. Ao todo, 22 assembleias temáticas foram realizadas no FSM. Essas 22 resoluções finais, de certa forma, respondem às críticas de muitos participantes das nove edições do Fórum: a falta de uma concretização de tudo o que é discutido no encontro. Entre esses encontros setoriais, destacam-se o dos movimentos sociais, indígenas, pan-amazônia, trabalho e crise. No que tange ao momento econômico mundial, o Fórum deu um recado claro: os trabalhadores não podem ser onerados pela provável recessão. “Que os ricos paguem pela crise”, foi uma consigna presente em faixas e camisetas de diversas organizações. Já a assembleia dos movimentos sociais apresentou um programa mínimo que deve ir às ruas de todo o mundo neste ano. Nacionalização dos bancos, sem indenização; fim da dependência financeira por meio das dívidas; redução da jornada de trabalho, sem redução salarial; e soberania alimentar. Essas devem ser as principais bandeiras de uma jornada internacional de luta dos movimentos sociais que, no âmbito do FSM, foi programada para ocorrer entre 28 de março e 4 de abril. No ano que vem, não haverá uma edição centralizada do Fórum, apenas um dia de mobilização global, como ocorreu em 2008. O FSM volta ao seu formato original em 2011, quando será realizado numa cidade do continente africano que ainda não foi escolhida.

João Zinclar

Renato Godoy de Toledo enviado a Belém (PA)

Mauricio Scerni

radicais. Pediram a imediata abolição de programas que destroem as nações indígenas, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), empreendido pelo governo brasileiro, e a Iniciativa de Integração de Infraestrutura Regional LatinoAmericana (IIRSA), planejada por 12 governos da América do Sul (apenas a Guiana Francesa não participa). Para além das demarcações das terras em que vivem hoje, o documento dos povos originários defende o restabelecimento das terras de seus ancestrais. Na apresentação da tese, durante o encerramento do Fórum, um representante quéchua proferiu para uma platéia de 500 pessoas: “A solução para o mundo é adotar a sabedoria de nossos ancestrais”. Os indígenas também foram citados como exemplo de resistência nas resoluções finais de outros setores, como a assembleia das mulheres. O movimento ressaltou a importância do feminismo como uma bandeira que deve ser erguida a fim de conquistar a hegemonia. Mencionaram a importância das mulheres indígenas e da floresta, para a luta feminista.




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brasil

Os trens só transportam o ferro FÓRUM SOCIAL CARAJÁS Todo dia, 13 trens levam o minério de ferro que a Vale extrai da região Fotos: Douglas Mansur

Vinícius Mansur e Silvia Beatriz Adoue de Parauapebas (PA) “COMO SE sente vendo a pátria sendo carregada para fora neste trem?”, perguntou a reportagem a um soldado da Guarda Nacional. “Preocupado pela resposta que vou dar, mas a gente não se sente bem”, foi a resposta. Todos, da comitiva do Fórum Social Carajás – realizado na região de mesmo nome entre os dias 24 e 27 de janeiro – e a forte escolta de soldados, acabavam de observar os 3,9 quilômetros de comprimento de um trem. Um dos 13, cada um com 330 vagões, que todo dia leva o minério de ferro que a Vale extrai da Serra dos Carajás, no sul do Pará, até o porto de São Luís. O destino final está em lugares distantes como China e Japão. Esses trens transportam até 270 mil toneladas de minério. Em 2008, correram por esses trilhos 96,5 milhões de toneladas. Essa riqueza atravessa, por 20 quilômetros, o assentamento da reforma agrária Palmares, conquistado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 11 de março de 1996, depois de quase dois anos de ocupação.

A pedra O assentamento tem 517 famílias e ocupa 15 mil hectares. Produz arroz, milho, feijão, mandioca e farinha, frutas como cupuaçu, açaí, murici e banana. Na praça central da agrovila há brinquedos para as crianças. Em frente à praça, a construção mais importante é a escola “Crescendo na prática”, que atende 1,3 mil crianças e adolescentes de ensino fundamental e médio, equipada com uma bela biblioteca.

Participantes do Fórum observam a mina da Vale sob a mira da Força Nacional de Segurança Pública (detalhe)

No dia 25 de janeiro, foi inaugurado na praça o “Ernesto Che Guevara”, um campinho de futebol para as crianças. Na apresentação da mística, as crianças fizeram embaixadinhas e Aleida Guevara, médica pediatra e filha biológica do homenageado, convidou-as para uma ciranda. Ela cantou com as crianças uma breve música com a letra de um poema da chilena Gabriela Mistral: “Dá-me a mão, dançaremos/ Dá-me a mão e me amarás/ Como uma só flor seremos, como uma flor e nada mais”. No Palmares, os assentados ofereceram 50 hectares para a instalação do Instituto Latinoamericano de Agroecologia (Iala) da Amazônia. No mesmo domingo, 25, e na mesma praça, foi colocada a pedra fundamental do Instituto. O Iala já funciona desde março de 2006 em Barinas, no Estado do Llano

Uma cratera na floresta No alto dos morros, nenhuma vegetação é possível de Parauapebas (PA) Subimos a serra atravessando uma floresta densa. Aos poucos, aqui e ali, clarões com montes de “material estéril”, rejeitos da primeira fusão do minério, nos montes que a vegetação teima em se impor. Essa mata baixa é típica da “savana metalófila” que prospera nos terrenos ricos em ferro. A vida insiste. Lá em cima, nenhuma vegetação é possível, só uma praia onde manobram as máquinas. Um pequeno planalto pelado e triste. Mas, andando um pouco, chega-se à borda de uma imensa cratera, de vários hectares. Mais parecia resultado da queda de um asteróide do que um canteiro de extração de mineral. A visão era tão assustadora que os militares da Guarda Nacional pararam de tirar fotos da gente para tirar fotos do enorme buraco. Tal a desolação da paisagem que, sem termos combinado, os primeiros minutos foram de um silêncio compungido, só cortado pelo barulho das hélices do helicóptero da Guarda Nacional, que pairava, perto de nós, sobre a cratera. A Vale, autora do buraco, devasta 6 mil hectares que já foram floresta, produzindo na casa dos 300 milhões de toneladas de ferro-gusa, por ano. E o estrago é maior: em 2005, só para abastecer as siderúrgicas do Pólo Carajás, que abrange parte do Pará e do Maranhão, foram gastos 3 milhões de toneladas de carvão vegetal. Segundo o Ibama, seria preciso derrubar 550 mil hectares de selva para gerar esse carvão. Para colocar em andamento o Pólo Carajás foi necessária a convocação de contingentes de trabalhadores de todo o país. A grande maioria provinda do Nordeste, especialmente do Maranhão. Uma população que atraída pela promessa de emprego, provocou um aumento demográfico de quase 23% de 2000 a 2005. E a projeção do aumento para o período de 2005 a 2010 é de quase 93%. Terminadas as obras de instalação, grande parte dessa população ficou desempregada, se comprimindo nas periferias das cidades, sem serviço de água encanada, esgoto, moradia, educação, transporte e nem saúde. Os investimentos de infraestrutura, feitos pelo Esta-

do para produzir redes de energia e transporte para os complexos siderúrgicos, não foram acompanhados por investimentos na infraestrutura necessária para a vida da população crescente. Mas também aqui a vida insiste. Colada à mina da Vale, encontramos a área de proteção ambiental sob responsabilidade do Instituto Chico Mendes. Na beira do caminho de entrada, placas comemorativas assinalam a visita de mandatários durante o período da ditadura. Uma árvore de fruta-pão, por exemplo, foi plantada durante a vinda ao país do primeiro-ministro português Mário Soares (ele teve três mandatos: 1976-1977; 1978; 1983-1985). Quando a ditadura declinava, as homenagens passaram dos chefes de Estado para os empresários. Alheios às formalidades, queixadas desconfiadas, araras barulhentas, tamanduás preguiçosos, jaguatiricas dengosas, onças de uma elegância soberba reinam indiferentes aos megaprojetos de “desenvolvimento”. Durante a nossa visita à área pública, funcionários do setor de comunicação da Vale nos escoltam com jeito de donos-de-casa que mostram suas dependências. Sua presença é mais ostensiva do que a dos soldados armados que acompanham a comitiva. Na descida, atravessamos a zona residencial onde moram os altos e médios funcionários da Vale. Uma vila que parece com esses bairros suburbanos dos filmes estadunidenses, com grama na frente da casa e grandes janelões. As mulheres molhando as calçadas com esguicho no final da tarde. Nesse bairro não faltam bancos, hospital e vários colégios particulares. A zona tem todos os serviços necessários para os seus moradores não precisarem ir à cidade. Desse bairro, no meio da área de preservação ambiental, não dá para enxergar a vida que se agita na periferia da cidade, na qual se aglomeram as famílias da maioria dos migrantes que construíram a vila. Dois projetos de futuro estão em jogo. Como disse a comandante da Revolução Sandinista, Mônica Baltodano, lembrando Rosa Luxemburgo, na leitura da declaração final dos participantes do Fórum Social Carajás, o dilema é entre “barbárie e socialismo”. Entre a cratera e a vida que insiste. (SBA)

venezuelano, como resultado de um acordo entre a Via Campesina e o governo de Hugo Chávez. Nele, estudam 64 jovens da América Latina. Com a abertura do Iala da Amazônia, serão criadas novas vagas para camponeses do continente, acolhidos pela comunidade de assentados que ainda não tem seus próprios problemas resolvidos. O trem Todo mês acontecem acidentes nos trilhos do trem. A composição só pode brecar se diminuir a velocidade 10 quilômetros antes. Além disso, o barulho que afeta a vida da comunidade e o gado. Já o compromisso para a construção de uma passarela sobre os trilhos não foi cumprido. Em 2008, os assentados fizeram, junto com outros movimentos sociais também afetados pela Vale, um

acampamento de 31 dias nas proximidades, interrompendo o tráfego da ferrovia duas vezes. Por essa ação, três militantes foram indiciados por danos e condenados a pagar uma multa de R$ 5 milhões cada. O processo tramitou na vara local. No entanto, radicou-se uma denúncia numa vara do Rio de Janeiro, onde os casos têm maior repercussão. Seria possível colocar uma cerca ao longo dos trilhos por 26 quilômetros, o que amenizaria os problemas. Mas nem isso é feito. É preciso lembrar que o trem servia a Vale desde antes da privatização, mas pertence à rede ferroviária estatal. No entanto, ele é tratado pela empresa como próprio, já que é ela, na prática, a única usuária dos trilhos que rasgam a selva a partir do Programa Grande Carajás, implantado no final da ditadura, e que têm de 1,5 mil quilômetros.

Dezenove castanheiras para os sem-terra Comitiva do Fórum planta árvores no local do massacre de Eldorado dos Carajás de Parauapebas (PA) A comitiva do Fórum Social Carajás percorreu uma estrada, de Parauapebas para Eldorado, bordada de pastagens. Aquilo tudo era floresta. Os pecuaristas desmataram. As castanheiras sucumbiram nessas áreas. Mas, mesmo assim, e a despeito da motosserra, a palmeira de babaçu se espalha por onde pode. É generosa, completamente aproveitável. As quebradeiras que o digam. Foram elas, as mulheres das cooperativas de babaçu, que conseguiram a “lei do babaçu livre”, que vigora em muitos municípios do Pará e do Maranhão. Qualquer um pode entrar numa propriedade para retirar o coco do babaçu. É preciso de um machado para quebrá-lo e retirar a polpa. Mas, para os pecuaristas, o babaçu é praga. Cada um vê as coisas do seu jeito. Chegamos na Curva do S, em Eldorado dos Carajás. Antes distrito de Marabá, Eldorado se emancipou menos de duas décadas atrás. 19 castanheiras queimadas marcam o local onde 19 sem-terra foram mortos em 17 de abril de 1996, pela Polícia Militar do Pará. A comitiva internacional do Fórum foi convidada a plantar junto a esses troncos calcinados 19 mudas de castanheiras. Visitamos o assentamento 17 de abril, onde 560 famílias, sobreviventes do massacre, produzem macaxeira, farinha, arroz, milho, feijão, fava e frutas regionais como manga, abacaxi, açaí e cupuaçu. As famílias plantam em seus lotes de 10 alqueires, usando para a agricultura apenas 20% dessa área, já que 80% de cada lote faz parte da reserva ambiental. O terreno pertencia à fazenda “Macaxeira”, da família Pinheiro, e tinha uma serraria na sede. Hoje, a agrovila conta com uma

praça e, em torno dela, a escola, a rádio comunitária e um templo da Assembleia de Deus. A memória No assentamento, todos se lembram do dia do massacre. Cada um tem uma imagem gravada na memória, uma marca no corpo, uma apreensão renitente. Todos lembram daqueles que tombaram e compõem com retalhos de recordações um relato das vidas dos 19. Todos recordam, também, os primeiros anos, difíceis, para preparar o roçado. A luta para que o Estado ressarcisse os mutilados. Todos têm sequelas. Mas o que predomina no assentamento não é a tristeza. E não há timidez perante a comitiva que veio de lugares tão distantes. Há um orgulho. Mostram a escola. Mostram as danças dos grupos de crianças e de jovens: carimbó e reggae. E oferecem um jantar com a comida farta produzida no assentamento. A refeição é servida no pátio do templo da Assembleia de Deus, em frente à praça. No começo, plantava-se para comer e os vizinhos trocavam produtos para não ter que depender do mercado de fora. Hoje, já abastecem a cidade de Eldorado. Uma das jovens assentadas descreve assim sua agenda anual, com a filha mais nova puxando a sua saia: “Temos casa aqui, na agrovila e lá no nosso lote. Passamos três meses lá, que é quando tem mais trabalho, voltando para a agrovila, no final de semana. No resto do ano, ficamos aqui, na agrovila e meu marido vai para o lote todo dia”. Tanto as casas da agrovila quanto as do lote são de alvenaria. Da estradinha que adentra no assentamento dá para ver enormes casas no meio da roça, de telhado cuidado. Para se deslocar dentro do assentamento, o meio de transporte mais usado, contam os assentados, é a moto. Deixamos Eldorado dos Carajás já tarde de noite, rumo a Marabá. Ficam o assentamento 17 de Abril e as 19 mudas de castanheira na Curva do S. Torcemos para elas vingarem. (SBA)

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Quem manda? O manifesto assinado por centrais sindicais de trabalhadores e federações patronais, no dia 26 de janeiro, ataca diretamente a política financeira do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Como ele é apenas o executor de uma política que favorece os bancos e o capital financeiro – constituído também por empresas industriais e comerciais –, fica a expectativa de quem vai ganhar a parada. Até agora, em seis anos de governo petista, Meirelles ganhou todas! Protesto geral Mais de 2 milhões de trabalhadores marcharam pelas ruas das principais cidades francesas, no dia 29, em protestos contra a crise econômica e as demissões. Na França, a greve de 24 horas paralisou os transportes, as atividades industriais e comerciais e os serviços públicos. Uma onda de manifestações toma conta de vários países na Europa. A maioria defende a mudança do modelo econômico. Novas regras Duas reações à crise econômica aparecem cada vez mais fortes na Europa e nos Estados Unidos: uma é a adoção de medidas protecionistas no comércio internacional e outra é a defesa de emprego para cidadãos nacionais; as duas contrariam a pregação neoliberal dos últimos 20 anos. É ingenuidade imaginar que o mundo vai continuar seguindo a cartilha da globalização. Acorda, Brasil! Exploração total O consultor jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), José Eduardo Duarte Saad, defendeu em artigo na Folha de S. Paulo (31.01.2009) nova lei para a terceirização da mão-de-obra, na qual esteja previsto que as maracutaias da empresa contratada não sejam de responsabilidade da contratante. Ou seja, a fina flor do empresariado brasileiro quer mais selvageria nas relações de trabalho. Pode? Bateu pesado Pode ser apenas uma jogada de marketing de início de governo, mas o novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, bateu pesado no combalido Fórum Econômico Mundial de Davos. A sua enviada especial Valeria Jarret deu o recado: disse que a crise econômica atual é fruto de “profunda irresponsabilidade tanto do governo como dos homens de negócio, nos Estados Unidos e no mundo”. Não precisou dizer mais nada. Cidade “limpa” Nos dias que antecederam o Fórum Social Mundial, em Belém, as polícias civil e militar realizaram operações para constranger os moradores dos bairros de Guamá e Terra Firme, próximos da Universidade Federal Rural da Amazônia, visando a afastá-los dos participantes do evento. A Sociedade Paraense de Direitos Humanos denunciou a ação “espanta pobre” diretamente para a Secretaria de Segurança do Estado. Ficção real O livro “Te Pego Lá Fora”, de Rodrigo Ciríaco, reúne 25 contos supostamente ficcionais, mas baseados em histórias reais ocorridas nas escolas públicas da zona leste de São Paulo, onde o autor é professor de História. Um retrato cruel do descaso do Estado com a educação e a ação do tráfico de drogas na cooptação dos estudantes. O livro pode ser encomendado pelo blog www.efeito-colateral.blogspot.com. Os insaciáveis Apesar de o ProUni transferir recursos públicos para o ensino superior privado, com a contrapartida de bolsas de estudo para estudantes sem recursos, as universidades privadas criam todos os tipos de dificuldades para o fornecimento de tais bolsas. Se não houver rígida fiscalização do governo federal, o programa continuará sendo fraudado pelos mercenários da educação. A Unip de São Paulo comanda a sabotagem. Mudança social Ao assumir a presidência da Venezuela, em 1999, Hugo Chávez encontrou o salário mínimo de 47 dólares e mais de 20% da população vivendo em pobreza extrema. Dez anos depois, o salário mínimo da Venezuela é de 371 dólares (quase o dobro do brasileiro) e a parcela da população na pobreza extrema caiu para 9,5%. É o dinheiro do petróleo com finalidade social.


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brasil

Campanha pede desmilitarização das PMs Rivaldo Gomes/Folha Imagem

SEGURANÇA Aprovada na última Conferência Nacional de Direitos Humanos, proposta que pede o fim da vinculação das polícias militares às Forças Armadas vem recebendo o apoio de diversas organizações Patrícia Benvenuti da Redação A LUTA em favor da desmilitarização das polícias estaduais foi intensificada no final do último ano e promete continuar forte em 2009. Em dezembro do ano passado, durante a XI Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em Brasília, foi aprovada uma proposta que pede o fim da vinculação das polícias militares (PMs) às Forças Armadas. O texto, elaborado pelo Centro Santo Dias de Direitos Humanos, da Arquidiocese de São Paulo, em conjunto com outras entidades da sociedade civil, virou diretriz da Política Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e vem recebendo o apoio de diversos grupos, organizações e até mesmo de alguns setores do poder público. O esforço das entidades, agora, está concentrado em recolher assinaturas via internet para pressionar pela aprovação da proposta, que depende de alterações na Constituição. De acordo com a petição, “a desmilitarização é um passo fundamental para a reforma estrutural das polícias em nosso país, e constitui-se um novo paradigma no trato da segurança pública”. Para assinar o documento, que será enviado à Presidência da República, à Secretaria Especial de Direitos Humanos, ao Ministério da Justiça, ao Senado e à Câmara dos Deputados, basta entrar no endereço eletrônico www.petitiononline.com/ DESMILIT/. Sociedade prejudicada

A ligação das polícias às Forças Armadas tem raízes bem antigas, mas foi durante a ditadura civil-militar, em 1964, que essa vinculação se estreitou, derrubando ideias que pretendiam desmilitarizar de vez a polícia, como um projeto do então governador de São Paulo Jânio Quadros, na década de 1950. O Estado chegou, inclusive, a manter por alguns meses uma comissão na Inglaterra para estudar a organização da polícia inglesa, a fim de instaurar, em São Paulo, uma polícia única e civil, com um segmento uniformizado que realizaria o trabalho nas ruas. “Essa foi uma ideia que não prosperou porque depois veio o golpe, que acabou com a Força Pública e com a Guarda Civil e criou a Polícia Militar. Então, ficou a Polícia Militar e a Civil”, recorda o jurista Hélio Bicudo. Para ele, diversos aspectos da militarização da polícia contribuem para torná-la prejudicial à segurança pública. O próprio treinamento dos policiais, segundo o jurista, é um ponto problemático. Preparados para confrontos bélicos e para lidar com o “inimigo”, os PMs não estão aptos para ações junto à população. “Eles são treinados para a guerra. Então, quando vão à rua para os problemas da segurança pública, eles saem para a guerra. É o que acontece no Rio de Janeiro, é o que acontece em São Paulo também, na periferia”. Humilhação

Esse treinamento, que conjuga fortes regras hierárquicas e um tratamento repressor, muitas vezes humilhante, resulta, na opinião de Bicudo, em um policial mais violento nas ruas e, por consequência, em um aumento do número de mortes e arbitrariedades cometidas por agentes. A tese de uma crescente aproximação entre as ações das polícias militares com as Forças Armadas foi corroborada pelo próprio ministro da Defe-

sa, Nelson Jobim. Em 2007, ele admitiu que a experiência das tropas brasileiras no Haiti era necessária para que a polícia do Brasil adquirisse prática em operações de combate em ambientes urbanos, como as incursões nas favelas cariocas. E são mesmo os setores mais vulneráveis da população os maiores prejudicados com esse processo, segundo Marcelo Freixo, deputado estadual (Psol-RJ) e pesquisador da organização não-governamental Justiça Global. “Em qualquer guerra e em qualquer combate você necessita de um inimigo interno. E quem é esse inimigo? Sobre ele, sempre paira uma lógica de classe, o que não é percebido pela corporação, mas que é algo politicamente muito construído. Então, se você olhar para as principais vítimas da ação policial no Brasil, isso tem uma relação direta com uma estrutura de classe da sociedade. São, fundamentalmente, jovens, pobres, negros, vítimas da lógica da guerra que a segurança pública precisa vencer.” Desafios

Apesar dos bons argumentos para a desvinculação das polícias estaduais do Exército, eles acabam por esbarrar nos interesses que estão por trás da militarização. O próprio jurista Hélio Bicudo foi testemunha deles. Durante seu mandato como deputado federal, na década de 1990, apresentou à Câmara um projeto para desmilitarizar e unificar as polícias. A proposta, no entanto, não passou por uma Comissão Especial. “A PM tem um lobby muito forte no Congresso. No meu tempo, tinha até uma sala onde eles trabalhavam. Era o lobby da Polícia Militar. Como essa comissão especial era comandada por deputados ligados ao organismo, evidentemente o projeto não passou”, relembra o jurista, para quem falta vontade política para reorganizar o atual sistema policial do país. Já o subtenente Luiz Gonzaga Ribeiro, secretário-executivo da Associação Nacional de Entidades de Praças Militares Estaduais (Anaspra), aponta os interesses que as diferentes esferas do governo mantêm em uma polícia militarizada. “Os governadores e os chefes de Estado também não querem a desmilitarização porque é a força pronta para atuar em nome do governo, em qualquer lugar do país. Haja visto a Força Nacional”, explica o policial. “Tem que conter um grupo de manifestantes? É a Polícia Militar. A Polícia Militar tem a doutrina e a formação do cumprimento de ordem. O governador não quer abrir mão de ter uma força que ele possa dar ordens e ela vá cumprir”, avalia. E, a esses interesses, somase também, além do “lobby” das organizações policiais, que não querem perder poder e influência, a pressão de setores mais conservadores da sociedade, que ganham com a manutenção da ordem social atual. “Essa ordem de classe, desigual, interessa a um setor da economia, da política, que não tem interesse de vêla questionada por um outro modelo de segurança”, explica Marcelo Freixo. Esses desafios, na opinião de Freixo, só serão vencidos quando o controle das ações policiais for devolvido à sociedade. “O Congresso tem que fazer os debates que são caros à sociedade, não pode se furtar disso. Agora, isso depende também da pressão popular, dos movimentos colocarem isso em pauta, de fazerem esse debate nos estados”, completa.

Policial militar durante ação recente realizada na favela de Paraisópolis, em São Paulo

Militarização prejudica, também, os policiais de baixos escalões PMs sofrem com forte hierarquia, assédio moral e negação de direitos constitucionais da Redação As consequências da militarização atingem também os policiais, especialmente aqueles que pertencem aos escalões inferiores. Tanto que a Associação Nacional de Entidades de Praças Militares Estaduais (Anaspra) já se pronunciou, publicamente, em favor da desmilitarização. Na avaliação do subtenente Luiz Gonzaga Ribeiro, secretário-executivo da entidade, o sistema de policia-

mento militar existente hoje no Brasil não condiz mais com as necessidades da população. “Ele é oriundo de um modelo de infantaria, de guerra, em que você precisa de uma formação que viabiliza o combate e a guerra. Para o policiamento preventivo, que é a função constitucional do policial militar, isso é ultrapassado”, analisa. Segundo Ribeiro, é necessário um sistema mais flexível, com mais autonomia para os policiais, de forma a maximizar forças e recursos humanos. Exatamente o contrário do que acontece atualmente: “Em um modelo militar hierarquizado, o soldado deixa de tomar a decisão porque ele tem que reportar ao superior, que reporta a outro, que reporta a outro. Chega lá na frente e você perdeu muita força e mão-de-obra por conta de uma decisão.

O exemplo europeu da Redação Enquanto, no Brasil, parte de seu efetivo policial está atrelada às Forças Armadas, no resto do mundo a realidade é diferente. Marcelo Freixo, deputado estadual (Psol-RJ) e pesquisador da organização não-governamental Justiça Global, lembra que na Europa, por exemplo, a formação das polícias é civil, e não militarizada. Para ele, é fundamental ficar atento às experiências que ocorrem em outros países, especialmente àquelas que propõem uma maior participação popular, como é o caso da polícia irlandesa. “Na Irlanda, por exemplo, você tem um trabalho de reformulação policial recente bastante interessante, inclusive com muito investimento nas corregedorias e nas ouvidorias de polícia. Ou seja, o controle da polícia nas mãos da sociedade civil organizada”, diz. Ao contrário dos países que pretendem uma maior integração entre suas polícias e a população, os Estados Unidos continuam a fazer jus à tradição de repressão crescente. A novidade estadunidense, este ano, ficará por conta da ca-

pital do país, Washington DC, que decidiu pela militarização de sua polícia, baseada, justamente, no modelo brasileiro das polícias militares estaduais. Estado policial

Atualmente, forças de segurança dos Estados Unidos são, via de regra, municipais e civis e com uma hierarquia que não é militar. De acordo com as autoridades locais, a militarização das polícias propiciará um comando mais firme e uma disciplina mais rígida aos agentes, o que deve agilizar o atendimento das ocorrências. Na avaliação de Freixo, o Brasil precisa se distanciar da concepção estadunidense de segurança, que aposta em um Estado policial máximo. “É semelhante o caso do sistema penitenciário. A gente acaba seguindo muito o modelo norte-americano, das penas privativas, de penas longas, um contingente muito grande de pessoas presas; e não o modelo europeu, das penas alternativas. Essa influência norte-americana é muito forte, e a gente precisa romper com ela, mas aí depende de qual modelo de desenvolvimento de país você quer”, analisa. (PB)

Nós precisamos preparar esse policial melhor para que, tecnicamente e legalmente, ele tenha condições de tomar a decisão”. Sem direitos

O subtenente também alerta para a legislação rigorosa que regula a conduta dos policiais militares e não lhes dá, por exemplo, direito a habeas corpus ou liberdade provisória em casos de insubordinação ou desacato. “É um modelo em que você impõe o chamado assédio moral, institucionaliza o assédio moral. Você tem uma ferramenta de manutenção do poder. E o poder está a serviço de quem? A serviço do Estado, e não da cidadania”, argumenta. Os policiais militares também não podem realizar greves e nem mesmo ser sindicalizados, conforme deter-

minação constitucional. Em Santa Catarina, mais de 20 PMs estão com processo de demissão por terem participado de mobilizações por melhores salários. Para Ribeiro, fatos como esse demonstram a desigualdade dentro da corporação. “Vários países admitem a sindicalização dos policiais, o processo de reivindicação, e o Brasil com essa história, de que militar não pode fazer greve... Não pode fazer greve porque não pode reivindicar, é a lógica de que o comandante é o único soberano para poder reivindicar”, acusa o subtenente, que também ressalta uma grande incoerência: “Você tem um profissional sem direitos constitucionais para garantir direitos constitucionais da sociedade. É um profissional sem direitos para garantir o direito dos outros”. (PB)

A saída: reformulação e unificação das polícias da Redação Para o subtenente Luiz Gonzaga Ribeiro, secretário-executivo da Associação Nacional de Entidades de Praças Militares Estaduais (Anaspra), a desmilitarização das polícias estaduais deve ser seguida de uma reformulação dos órgãos de segurança e de uma maior integração, pois a divisão institucional atual entre a Polícia Civil e a Militar, segundo ele, serve sobretudo para atrapalhar o trabalho de ambas. “Hoje você vê Polícia Militar fazendo serviço de investigação que é da Polícia Civil, fazendo serviço de inteligência que a Polícia Civil fala que é só dela. E vai ver Polícia Civil fardada na rua, pondo viatura na rua e fazendo um papel que é da Polícia Militar”, diz. Essa integração poderia garantir não apenas mais comunicação, mas também uma redução de gastos públicos, como o uso de estruturas físicas e de ferramentas

comuns, como um banco de dados único. Na avaliação do deputado estadual Marcelo Freixo (Psol-RJ), a reformulação das polícias também precisa prever, necessariamente, mais investimentos nas ouvidorias, instrumentos ainda incipientes no Brasil. Ele lembra que, apesar de haver recursos previstos em planos como o Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania (Pronasci), tais órgãos não têm sido, até agora, encarados como prioridades. “Na verdade, há muito mais investimento e estrutura voltados às corregedorias e ao controle interno burocrático do que às ouvidorias, ou seja, mecanismos que facilitem a participação e o controle da sociedade sobre as polícias. O que é muito ruim, porque de alguma maneira essa segurança pública não é sentida pela população como algo que pertença ao interesse da maioria da sociedade”, analisa. (PB)


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Sarney é eleito presidente do Senado de olho em recuperar poder no MA POLÍTICA Para deputado federal, ex-presidente também tentará “dar sumiço” em um processo existente contra o seu filho Wilson Dias/ABr

Patrícia Benvenuti da Redação POR 49 votos a 32, José Sarney (PMDB-AP) foi eleito no dia 2 o novo presidente do Senado. Com a vitória sobre Tião Viana (PT-AC), Sarney retorna ao cargo que já ocupou por duas vezes (de 1995 a 1997 e de 2003 a 2005), substituindo agora o senador Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN). O ex-presidente da República gerenciará um orçamento de R$ 2,7 bilhões, além de ter direito a outros benefícios como direito a carro, residência oficial e a contratação de até 38 cargos comissionados. O presidente do Senado tem a atribuição de controlar a pauta de votação da Casa, decidir o que será votado pelo plenário, orientar as discussões e, ainda, resgatar projetos que estiverem parados em comissões. Além disso, poderá influir na instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) e na impugnação de proposições, além de comandar as sessões conjuntas das duas Casas, pondo em votação medidas provisórias e vetos presidenciais. No mesmo dia, também foi definido o nome de Michel Temer (PMDB-SP) para a presidência da Câmara dos Deputados. Arena e PDS Na avaliação do deputado federal Domingos Dutra (PTMA), Sarney deve usar a influência que terá a partir de agora para alcançar seus objetivos pessoais e os de sua família, como derrubar as acusações sobre seu filho, Fernando Sarney, principal executivo do Sistema Mirante de Comunicação (empresa retransmissora da Rede Globo no Maranhão) e vice-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Sessão de abertura dos trabalhos do Congresso Nacional com a presença dos novos presidente do Senado, José Sarney, e da Câmara, Michel Temer

Investigado pela Polícia Federal por lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, fraude em licitação, entre outros crimes, o filho de Sarney chegou a ter a prisão decretada pelo Ministério Público Federal (MPF), mas entrou com habeas corpus preventivo. Mas a principal meta de Sarney deve ser mesmo a retomada do poder no Maranhão. “O Sarney chega à presidência do Senado com dois objetivos claros: um é dar sumiço nesse processo contra o filho, e outro é conseguir recuperar o poder aqui no Maranhão”, explica Dutra. Além disso, o deputado critica a concentração de poder nas mãos de apenas um partido (o PMDB) e o fortalecimento de apoiadores de Sarney en-

volvidos em diversas denúncias, como Renan Calheiros (PMDB-AL). Dutra condena ainda a eleição de uma figura historicamente ligada a setores conservadores da sociedade. “Eu só lamento que, em pleno século 21, em plena democracia, o Congresso Nacional seja dirigido por um expresidente da Arena, ex-presidente do PDS, que deixou o país, quando largou a presidência, com 86% de inflação, e que agora é o manda-chuva do Congresso Nacional, com poder enorme”, analisa. Maranhão O esforço pela recuperação do poder no Maranhão, segundo o subchefe da Casa Civil do Estado, Emilio Azevedo, começa pela tentativa de

cassação do atual governador do Estado, Jackson Lago (PDT). “Com esse cargo, ele [Sarney] vai tentar, de todas as formas, pressionar, chantagear autoridades no sentido de conseguir o que ele quer, porque ele sempre fez isso na vida. Ele sempre jogou na base da pressão, da chantagem”, lembra. Jackson Lago é acusado de compra de votos e abuso de poder econômico e de comunicação nas eleições de 2006. Entidades da sociedade civil, porém, denunciam que a cassação é uma tentativa de golpe da família Sarney, que está movendo o processo, pois, se Lago deixar o cargo, quem assume é a filha de Sarney, a senadora Roseana, que foi segunda colocada. O julgamen-

to de Lago foi suspenso em dezembro do ano passado, e não há previsão de quando será retomado. Durante a última edição do Fórum Social Mundial (FSM), realizada este ano em Belém (PA), foram realizados vários protestos contra a tentativa de cassação de Jackson Lago. Para o subchefe da Casa Civil, a mobilização popular será ainda mais importante para frear os interesses da família Sarney. “Agora a gente crê que é necessária uma mobilização tão grande quanto houve, ou até maior”, afirma, referindo-se ao apoio que Jackson Lago vem recebendo de vários movimentos e organizações sociais. Nos 42 anos em que governou o Maranhão, a família

Sarney acumulou uma série de denúncias, entre elas o recebimento ilegal de um prédio público por uma fundação controlada pela família, em 1990, e o uso de caixa dois na campanha de Roseana, em 2006. A família também é proprietária do maior conglomerado de mídia do país, além de ser ligada aos maiores proprietários de terra do Estado. Seis por meia dúzia Para o diretor-executivo da organização Transparência Brasil Claudio Weber Abramo, eleições como a da presidência do Senado não representam qualquer tipo de mudança para a sociedade brasileira. Esse tipo de pleito, segundo ele, visa apenas a atender interesses dos próprios congressistas, que procuraram obter, para si, o máximo de proveitos. “Essas eleições foram, como todas, conduzidas como uma campanha eleitoral, em que os candidatos oferecem vantagens aos seus eleitores, facilidades, dinheiro. Isso não é realmente em favor do eleitor, é em favor deles. Frequentemente, contra nós. A última coisa que eles têm em mente é o interesse do eleitor que o elegeu”, afirma. Em consequência disso, para Abramo, não existe diferença entre José Sarney e qualquer outro candidato. “O Senado já teve presidentes ‘extraordinários’, como Renan Calheiros”, ironiza. “A Câmara dos Deputados também, presidentes que tiveram de se retirar da função, como Severino Cavalcanti. Isso é o retrato do Legislativo brasileiro, simboliza o Legislativo brasileiro. Ele não é melhor nem pior do que seus colegas, é igual”, avalia ele, lembrando que, do total de congressistas, cerca de 40% possuem processos na Justiça ou punições por Tribunais de Contas.

DIPLOMACIA

Caso Battisti: um debate à italiana Marcello Casal Jr-Abr

Apesar de alarde do governo italiano, endossado pela imprensa corporativa brasileira, refúgio deverá ser mantido Dafne Melo da Redação Apesar da incessante manifestação de insatisfação do governo italiano, tudo indica que o escritor e ex-militante da organização Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), Cesare Battisti, não será extraditado para a Itália. Ainda que a imprensa corporativa brasileira mantenha o assunto em pauta, como se a possibilidade de extradição ainda estivesse totalmente em aberto, do ponto de vista jurídico, é bastante improvável que a decisão tomada pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, seja revertida. Isso porque, de acordo com a legislação brasileira, cabe ao Executivo conceder ou não o asilo. Ao Supremo Tribunal Federal (STF) não cabe discutir o mérito (conteúdo) da decisão de Tarso Genro, mas apenas seus aspectos formais. E, a julgar pela forma como o STF tem avaliado casos semelhantes, a decisão do Executivo não deve ser contrariada. “Se o Supremo fizer jus à jurisprudência que já assumiu em casos como este, não vai declarar a inconstitucionalidade. Se mudar de posição, não considero um agravo ao meu despacho, mas será o reconhecimento pelo Supremo de que a lei vigente aplicada pelos demais ministros,

com a mesma autoridade que eu apliquei, era uma lei inválida e que já era para ser declarada inconstitucional antes”, argumentou o ministro. Jurisprudência Reitera essa definição o parecer da Procuradoria Geral da União, encaminhado ao STF, que pede o arquivamento do processo de extradição. Na opinião de Valter Pomar, secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores (PT), não há falhas jurídicas na decisão de Tarso Genro, tampouco motivações políticas. “A tradição do Estado brasileiro é dar o asilo político, não tem nada a ver com o fato de o presidente ser o Lula e o ministro ser o Tarso Genro”, diz Pomar, que lembra que o país deu asilo ao ditador paraguaio Alfredo Stroessner, que viveu no Brasil até sua morte, em 2006. Nos últimos anos, o Brasil também concedeu o benefício a ex-militantes italianos contemporâneos de Cesare Battisti, também acusados pelo Estado europeu de crimes semelhantes, e no mesmo período – os chamados “anos de chumbo”. Para Pomar, portanto, a grita por parte do governo de Silvio Berlusconi apenas reforça o quanto a perseguição a Cesare tem fundo político e não criminal. “Essa reação desmedida só evidencia que ele não terá o tra-

O advogado de Cesare Battisti entrega carta feita pelo escritor

tamento adequado. Há um desequilíbrio do governo italiano. Se ele fosse apenas um criminoso comum, o caso não estaria sendo politizado como está”, avalia Pomar. Já o jurista Fábio Konder Comparato se manifestou contrário à decisão de Tarso Genro, cuja decisão qualificou de “desastrosa”. Ao seu ver, a Itália tem o direito de julgar e condenar, de acordo com suas leis, aqueles que cometeram crimes contra a pessoa humana em seu território. O jurista também apontou que a decisão brasileira preocupa muito aqueles que “estão querendo trazer para os tribunais os assassinos, estupradores e torturadores do regime militar que gozam de uma liberdade escandalosa”. Anos de chumbo Antonio Mazzeo, professor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade Es-

tadual Paulista (Unesp), e também membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), acredita que a decisão do Executivo foi acertada e aponta que não se pode esquecer o contexto histórico em que Battisti atuou e em que foi julgado. Entre 1968 e 1980, o país europeu viveu períodos de grande instabilidade política, num contexto que misturava pós-guerra e pós-fascismo. Ainda que governos reconhecidos pelo Ocidente como democráticos tenham se estabelecido, eram profundamente corruptos (não raro, ligados à máfia) e, em muitos momentos, governaram com diminuição das liberdades constitucionais. A descrença na institucionalidade gerou não apenas o surgimento de inúmeras organizações políticas armadas de esquerda, mas também de direita, deixando o país em cli-

ma de convulsão social. “No momento em que se deu o julgamento de Battisti, a Itália vivia o clímax dos anos de chumbo”, afirma Mazzeo. O país, entretanto, nunca cogitou realizar uma anistia em relação ao período, tampouco as forças hegemônicas aceitam discutir a questão a fundo. Não só não o faz Berlusconi, como também não fez o governo anterior de Romano Prodi, considerado de centroesquerda, e que, inclusive, pediu a extradição de Battisti ao Brasil em 2007. Bode expiatório Para Mazzeo, o preso político transformou-se em bodeexpiatório de uma direita raivosa e xenófoba que tem apenas o objetivo de colocar “o conjunto da esquerda italiana contra a parede, para legitimar sua política de ‘tolerância zero’ com a imigração e, principalmente, com os movimentos sociais”. Valter Pomar tem opinião semelhante. “É uma operação político-midiática para criar uma polarização e um sentimento político antiesquerda e anti-América Latina. Cria um clima de que a soberania italiana está sendo supostamente ferida por um país latino-americano e que Berlusconi é o defensor”, opina. Pomar acredita, porém, que o governo italiano tem o direito de reclamar e dar declarações contrárias à decisão brasileira, sem que isso se enquadre como um ataque à soberania do Brasil. “Eles extrapolam quando ameaçam retalhações, mas têm direito de falar o que quiserem. Outro assunto é a direita brasileira, que aproveita a reação histérica da Itália para impor constrangimento e derrota ao governo Lula. O nosso problema

maior é que a própria direita brasileira fere a soberania do país”, pontua. Em tempo: no fim do ano passado, a França de Nicolas Sarkozy concedeu asilo à Marina Petrella, militante das Brigadas Vermelhas e acusada de participação no sequestro de Aldo Moro, além de homicídios e assaltos. A Itália acatou a decisão, sem maiores demonstrações de insatisfação. Contradições Cesare Battisti afirma ter sido militante do PAC entre 1976 e 1978. Na clandestinidade, é preso em 1979 e condenado, dois anos depois, a 12 anos de prisão por ocultar armas e formação de bando armado. Foge, então, para a França e em 1993 é acusado e condenado por quatro homicídios. Battisti, em entrevista à revista Istoé, defende-se das acusações e diz que não era um “militante militar”, ainda que tenha participado de assaltos à mão armada para financiar as atividades de sua organização. Mazzeo aponta uma série de contradições e irregularidades que põem em perspectiva a legitimidade de seu julgamento. “Ele foi condenado somente a partir dos depoimentos de ex-companheiros de organização que se transformaram em colaboradores da Justiça, utilizando o recurso da ‘delação premiada’”. Segundo o cientista político, não houve provas concretas, e o réu foi julgado à revelia. O mais contraditório é que Battisti foi condenado por dois homicídios que ocorreram no mesmo dia, um em Milão, às 15h e outro em Mestre, às 16h50. A distância entre as cidades é de 275 quilômetros, aproximadamente.


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A mais nova batalha de Chávez VENEZUELA O cientista político Theotonio dos Santos analisa, à luz da Revolução Bolivariana, referendo sobre a reeleição ilimitada Bernardo Londoy

Igor Ojeda da Redação A VENEZUELA passa por mais um processo eleitoral. No dia 15, a população do país decidirá, em referendo, se os ocupantes de cargos que sejam eleitos mediante o voto poderão candidatar-se indefinidamente ao mesmo posto. Obviamente, os debates sobre a proposta, que vêm tomando conta do país, concentram-se na possibilidade do presidente venezuelano, Hugo Chávez, manter-se no governo por mais tempo – no dia 2, ele completou dez anos no comando da chamada Revolução Bolivariana. Na campanha pelo “sim”, o mandatário vem insistindo na promessa de que, caso o “não” saia vitorioso, ele apenas esperará o cumprimento de seu mandato para dedicarse a seu projeto pessoal de vida. Ou seja, deixará a política. Nos seus discursos, Chávez dá a entender que o processo de transformações liderado por ele está em jogo na consulta sobre a reeleição ilimitada. “Ele quer ficar um período a mais no governo para poder terminar o projeto que apresentou ao povo venezuelano. É um projeto que exige um cumprimento de longo prazo. E também há a dificuldade de se formar uma liderança forte como a dele”, analisa o cientista político Theotonio dos Santos, um dos formuladores da Teoria da Dependência. Para ele, a falta de tradição de poder dos setores populares dificulta a construção de lideranças preparadas, capazes de administrar processos tão complexos como o da Venezuela. “Então, temos que preservar a liderança que a gente tem”. Leia, a seguir, a entrevista com Theotonio. Brasil de Fato – O senhor acha que, de alguma forma, pode-se explicar a convocação desse referendo como parte de uma nova etapa da Revolução Bolivariana? Acredita que o presidente Hugo Chávez pensa nesse sentido? Theotonio dos Santos – Isso já estava proposto no plebiscito anterior [o referendo constitucional realizado em dezembro de 2007, com derrota do governo]. Então, não vai nesse sentido. Chávez quer ficar um período a mais no governo para poder terminar o projeto que ele apresentou ao povo venezuelano. É um projeto que exige um cumprimento de longo prazo. E também há a dificuldade de se formar uma liderança forte como a dele, porque não surgem líderes revolucionários assim, todo dia. Realmente, não é fácil formar. Há uma certa preocupação de que uma nova liderança tenha dificuldade de comandar um processo tão complexo. Essa é a preocupação básica de Chávez, já que o processo venezuelano está se aprofundando. A reforma agrária já avançou bastante nos últimos anos. A nacionalização de empresas importantes também. Tanto o projeto de desenvolvimento econômico como a parte social, igualmente. Por exemplo, a educação: teve a alfabetização, as universidades também estão avançando muito... a ideia é ter uma em cada cidade. Na parte de saúde, por exemplo, 90% da população já é atendida gratuitamente, e com alta qualidade. Porque você tem atenção imediata na sua casa, e no seu bairro, há, normalmente, uma clínica. O problema mais complicado, a habitação, tem avançado também, mas isso exige mais recursos e é um processo um pouco mais complexo. Então, existe uma grande preocupação com o plano da consciência, o que o Fidel Castro chamou de “batalha de ideias”. E há muito investimento nisso. E um grande desenvolvimento da capacidade

Para Chávez, a vitória do “não” colocará em perigo as mudanças conquistadas pela Revolução Bolivariana

“A classe dominante, que já tem séculos no poder, ainda necessita de lideranças fortes para manter a dominação delas. Imagine no caso dos setores populares” da população de compreender e participar da política do país. Tudo isso foi parte do programa que Chávez apresentou durante as eleições e que foi aprovado por 60% do povo venezuelano. Então, a questão, agora, é dar continuidade a isso. E, para tal, é necessária uma liderança forte, e é o que ele pretende ser durante pelo menos uma ou duas eleições mais.

Nos últimos discursos de Chávez, ele vem insinuando que o futuro do processo estaria em jogo nesse referendo. O senhor acha que a consulta define o futuro da Revolução Bolivariana? É verdade que existe a preocupação de que a população não dê ao governo esse instrumento da reeleição. Isso pode ser realmente um fator bastante negativo. A preocupação é correta. O que o senhor acha que pode acontecer caso Chávez saia derrotado? A direita está organizada, combativa. É uma massa importante que se apresenta. Ademais, tem apoio internacional. Possui os recursos. O que está faltando é uma estratégia, porque não tem muito o que oferecer. Ela tem a oferecer para uma classe média, esses 30% da população que perdem um pouco com o avanço das políticas de distribuição de renda, com a aplicação de maiores recursos no setor social, com o desaparecimento de certas vantagens que sempre usufruíram. Então, realmente, esse setor se sente afastado, retirado do poder, e reage. Mas é um setor bastante pequeno. Então, se o outro lado se mantiver unificado, eles não têm muita chance não. Mas essa preocupação do Chávez mostra que a

Revolução Bolivariana não está consolidada o suficiente? Esse movimento de oposição ainda é grande, com muitos recursos, com muito apoio, inclusive de setores da intelectualidade, de profissionais. Então, não é brincadeira. É um processo em curso. Um processo revolucionário não deveria prescindir da figura de um único líder? O senhor acha que, nesse ponto, ainda se tem muito o que caminhar para o surgimento de lideranças novas e para que a própria população se aproprie do processo? Esse assunto foi discutido muito, desde o século 19. A classe dominante, que já tem séculos no poder, ainda necessita de lideranças fortes para manter a dominação delas. Imagine no caso dos setores populares, que não têm nenhuma tradição de poder. É muito difícil, para eles, construir lideranças novas todos os dias. Não temos faculdades, escolas, todo um fortíssimo instrumental de comunicação, de formação, ou as religiões que formaram essa gente... Não é fácil formar lideranças. Então, temos que preservar a liderança que a gente tem.

“Nós temos ainda muitos problemas, dentro do movimento popular, para poder dispensar uma liderança do tipo da do Chávez” Mas o que fazer para que esse processo revolucionário não dependa, nessa proporção, da figura do Chávez? Precisamos de escolas. Formar gerações de intelectuais

marxistas, por exemplo. Isso não é coisa fácil não. Inclusive com a deformação que o marxismo teve, por exemplo, no processo soviético. Grande parte dessa liderança política soviética não tinha nenhuma noção de marxismo. Afastouse realmente, apesar de usar oficialmente o marxismo como uma referência. Os chineses, por exemplo, estão preocupadíssimos com isso. Eles também têm problemas de formação marxista. Mas têm a vantagem de possuir uma experiência burocrática de gestão muito grande. Há o sistema de gerações. Cada geração tem um período de dez, doze anos no poder, e já abre caminho para outra. Há um acordo entre eles nesse sentido, mas isso é produto de uma experiência histórica milenar. Não é fácil formar a liderança. Nós tivemos, na América Latina, várias experiências nesse sentido. Emiliano Zapata e Pancho Villa, os líderes da Revolução Mexicana, por exemplo, quando chegaram no poder, o abandonaram. Porque queriam reforma agrária e pronto. Não estavam preparados para gerir realmente uma economia nacional, muito mais ampla. Nós temos ainda muitos problemas, dentro do movimento popular, para poder dispensar uma liderança do tipo da do Chávez. Desde que ele tomou posse, um dos maiores méritos do seu governo foi ter incentivado a politização do povo venezuelano e ter fortalecido a organização e a democracia no âmbito comunitário: ou seja, fortalecendo a democracia participativa. O referendo da reeleição não é contraditório com essas conquistas? A democracia comunitária ainda não está tendo instrumentos para chegar à direção nacional. Esse foi um dos pontos que foi derrotado na proposta do referendo anterior. Chávez propôs que o Parlamento cedesse poder para as

Quem é O economista e cientista político Theotonio dos Santos foi, junto com intelectuais como Ruy Mauro Marini, Vania Bambirra e André Gunder Frank, um dos formuladores da Teoria da Dependência, que considerava o subdesenvolvimento dos países do Sul parte funcional da economia mundial, e não um estágio econômico menos avançado de capitalismo. Mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília, doutor em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais, atualmente é professor da Universidade Federal Fluminense e coordenador da Cátedra da Unesco sobre economia global e desenvolvimento sustentável.

direções comunitárias. Essa foi, também, uma das razões para ele perder. O Parlamento entrou na questão, refez muitas coisas, ampliou... foi um dos fatores que dificultou, inclusive, a compreensão da reforma constitucional. Na verdade, esse passo teria ajudado para que as comunidades tivessem um peso maior na política nacional, mas isso ainda não foi devidamente aceito. E há ainda muitos setores, inclusive da própria esquerda, que têm muitas restrições à ideia de que as comunidades tenham um poder realmente maior. Eles prefeririam se fosse um poder de partido, de gente que já está, digamos, dentro do controle político, em vez de entregá-lo realmente à comunidade, e lutar dentro dela por uma hegemonia. Isso não é nada fácil. O Chávez sempre esteve do lado de uma solução no sentido de fortalecer a comunidade, mas, digamos, os políticos locais não se sentem muito atraídos por essa visão. As últimas pesquisas têm apontado que o “sim” vai sair vitorioso em 15 de fevereiro. O que o senhor acha que vai acontecer caso isso se confirme? A tendência é o governo Chávez radicalizar sua proposta rumo ao que ele chama de socialismo do século 21? Eu acho que sim. Se ele triunfar, vai começar a avançar mais, no sentido de retomar grande parte dos objetivos do plebiscito anterior, que estavam dentro dessa ideia de uma socialização maior, mais poder à comunidade. Há algo que muitos pensam que é contraditório: ao mesmo tempo que Chávez queria aumentar o poder na comunidade, queria aumentar o poder do Estado, para fazer planejamentos mais globais da economia. Mas não há, necessariamente, contradição nisso, porque as comunidades têm compreensão de que certas coisas devem ser decididas num plano mais geral. O que tem que haver é uma fórmula em que elas possam intervir nesse plano geral, mas de uma outra forma que não seja diretamente em representação das comunidades. Enfim, são questões que ele pretende ainda avançar. Além disso, Chávez quer a centralização do planejamento do Estado sobre toda uma região [a faixa do Rio Orinoco] que pode converter a Venezuela na detentora da maior reserva de petróleo do mun-

do. Está previsto que essa região vai se converter no grande centro da economia venezuelana. E ele quer que, junto com grandes investimentos, exista um projeto social, político, que permita que essa área já se organize sob uma inspiração socialista mais avançada. Isso não é nada fácil também, mas é parte de uma luta por uma perspectiva mais avançada.

“Acho que a criação desse partido [PSUV] foi uma iniciativa precipitada” E o senhor acha que, nesse contexto, ele pode ter mais força para realizar uma ruptura, mesmo que gradual, com os marcos institucionais, políticos e econômicos da democracia burguesa? Ele pretende. Quer desenvolver mais o papel do planejamento na economia e pretende muito que as próprias empresas, com os trabalhadores, participem desse processo. Empresas dirigidas pelos próprios trabalhadores. Já há experiências nesse campo, mas são, ainda, pilotos. Não é uma lei geral, uma fórmula geral. Ele está sendo aplicado em alguns casos, na busca desse tipo de empresas, que ele chama de empresas socialistas. E qual pode ser o papel do recém-criado PSUV [Partido Socialista Unido da Venezuela] nesse processo? Acho que a criação desse partido foi uma iniciativa precipitada. Deveriam, antes, ter passado por uma experiência de frentes, até se chegar realmente ao partido. Porque a necessidade de formá-lo tão imediatamente assim começa a facilitar o surgimento de quadros intermediários, que não são devidamente formados para liderar um processo desse e que começam a se aproveitar da situação de poder. Então, realmente, a ideia do partido precisava ter amadurecido mais. Mas, se já existe, o que tem que ser feito é um processo de formação de quadros e de educação política muito forte. E a criação de mecanismos de participação direta dos trabalhadores na gestão do partido. Tudo isso não é nada fácil de fazer, mas tem que ser feito.


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Na Bolívia, as dificuldades de se pôr em prática a Constituição APÓS O REFERENDO Entre os temas mais difíceis de manejar estão: economia, autonomias, recursos naturais e terra Fotos: Gonzalo Jallasi/ABI

Fernanda Chaves Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia) UMA VEZ aprovada a Nova Constituição Política de Estado, agora os bolivianos discutem como colocá-la em prática. No dia 7 de fevereiro, o presidente Evo Morales Ayma vai promulgar a Carta Magna durante um ato público a ser realizado na cidade de El Alto, vizinha da capital La Paz. De acordo com o artigo 411 da nova Constituição, aprovada pelo povo com 61,45% dos votos, o Congresso da República tem um prazo de 60 dias para ratificar a promulgação da presente Constituição e sancionar um novo regime eleitoral para as eleições de 6 de dezembro, quando serão eleitos presidente, vice-presidente e os novos integrantes da Assembleia Legislativa Plurinacional. Entre os temas mais difíceis de manejar na nova Constituição estão: economia, autonomias (departamentais, regionais e indígenas), recursos naturais e terra. Pode-se dizer, inclusive, que esses tópicos serão objeto de muita disputa – e provavelmente motivo de conflitos – entre as forças da oposição (tanto de direita quanto de esquerda) e do governo, além, é claro, dos interesses estrangeiros que continuam presentes na Bolívia.

Em flagrante desrespeito à vontade da maioria, empresários de Santa Cruz asseguraram que não permitirão a aplicação do artigo que impõe limites à propriedade de terra, e ameaçaram cortar a produção Na semana passada, inclusive, duas regiões de Santa Cruz protagonizaram disputas entre camponeses e latifundiários. Em San Julián e Guarayos foram registrados conflitos que motivaram a seguinte declaração do governador Rubén Costas: “Vamos formar um Comitê Interinstitucional de Segurança Cidadã, para evitar mais invasões no Estado”. Nesta reportagem, vamos tratar de como serão trabalhadas as atividades econômicas e o que se pode esperar do controle agrário. Na próxima semana, abordaremos os temas autonomias e recursos naturais.

Evo Morales fala em reunião de gabinete para estabelecer estratégias de gestão pública que atendam à nova Constituição Política de Estado

Terra

No referendo do dia 25 de janeiro, os bolivianos votaram maciçamente contra a concentração de terras. Entre escolher 5 ou 10 mil hectares como área máxima permitida para o latifúndio, mais de 80% dos votantes optaram pela alternativa mais baixa. Em flagrante desrespeito à vontade da maioria, empresários de Santa Cruz asseguraram que não permitirão a aplicação do artigo 398 da Nova Constituição Política de Estado, justamente o que impõe limites à propriedade de terra, e ameaçaram cortar a produção. De acordo com a socióloga Ximena Soruco, pesquisadora da Fundação Terra, com essa atitude a direita sai perdendo. “Há que se aceitar a derrota. Não importa se 20% votaram contra. O fato é que 80% escolheram 5 mil. Isso é um dado histórico! Não podem fazer como crianças donas da bola, que, se perdem o jogo, levam a bola embora. Se um município se nega, sofrerá sanções, não receberá repasses de verbas etc.” No entanto, Ximena acredita que o movimento separatista de Santa Cruz pode se fortalecer na atual conjuntura, o que pode ser medido pelo peso dos meios de comunicação nessa região do país. “Há um cerco midiático em Santa Cruz fortíssimo. A programação de TV, por exemplo, não é a nacional, é local. Nem sequer as emissoras consideradas opositoras têm vez lá. Todas as informações são localizadas. Há um projeto separatista muito intenso e bem-feito, que de fato tende a crescer.” A pesquisadora da Fundação Terra relembra que houve um acordo antes do referendo para que não fossem afeta-

das as propriedades rurais adquiridas até a promulgação da Carta, mas “a intenção a partir de agora é que se forme uma barreira contra novos latifúndios que poderiam surgir com o agronegócio”. O vice-ministro de Terras, Alejandro Almaraz, concorda com a pesquisadora. De acordo com ele, o maior objetivo é impedir a formação de monopólios que dificultem ainda mais o processo de refor-

ma agrária. Nos três primeiros anos do governo Evo Morales Ayma, foram desapropriados 22 milhões de hectares que não cumpriam com sua função social e econômica, contra 9 milhões de hectares redistribuídos nos 10 anos anteriores. Para 2009, Almaraz afirma que serão entregues outros 10 milhões de hectares para a produção comunitária. O vice-ministro acredita que, agora, o principal empe-

cilho à reforma agrária será o sistema judiciário. “O caso de San Julián é um exemplo disso. Aquela área já foi declarada improdutiva pelo INRA [Instituto Nacional de Reforma Agrária, órgão do Poder Executivo], se não me engano, há dois anos, mas o judiciário não complementa o processo. Aí chega uma hora que o povo tenta resolver com as próprias mãos”, sustenta. Segundo ele, o conjunto de juristas que formam o poder judiciário é historicamente ligado aos interesses latifundiários: “são parentes, filhos e aqueles que se acostumaram a essa prática que favorece as elites”. De acordo com a nova Constituição, os juízes passarão a ser eleitos por voto direto, o que implicaria num grande avanço contra o fisiologismo em questão. Mas a medida só será concretizada em dois anos, até que os novos juízes sejam eleitos e empossados. Até lá, outros mecanismos deverão dar conta das novas regras. De acordo com Almaraz, equipes de fiscais formados pelo INRA já fazem vistoria em terrenos com o propósito de regulamentá-los ou medilos e, principalmente, constatar se há cumprimento da função econômica social da terra. De fato, medidas antimonopólicas já existiam, porém agora se institucionalizaram e, com isso, esses procedimentos de fiscalização serão mais efetivos. Economia

Em La Paz, homem lê manchetes sobre o referendo

No campo econômico, é visível a maior participação do Estado. O artigo 306 afirma que a Economia Plural se organizará em quatro tipos: comunitária, estatal, privada e social cooperativa. Segun-

do o advogado Rodolfo Illanes, especialista em atividade econômica e fluente na língua aymara, “a grande novidade em relação à Constituição anterior é o resgate da economia comunitária. O resgate de saberes e conhecimentos dos povos ancestrais. Reciprocidade, cooperação, ajuda etc. Isso significa que a economia comunitária que pratica nosso povo pode ser um elemento-chave para o desenvolvimento do país”. Rodolfo Illanes ressalta ainda o poder indutor do Estado no desenvolvimento da economia interna, o que, acredita, poderá ser impulsionado pelo aumento do número de empresas estatais. “As empresas do Estado têm a obrigação de reinvestir o lucro na própria empresa, para que ela siga crescendo; e de atender as demandas sociais do povo, como a Renda Dignidade e o Bono Juancito Pinto [bolsa concedida a crianças que frequentem regularmente a escola].” Um dos exemplos oferecidos por Illanes são as empresas estatais de distribuição de alimentos, como a Sementobol. “Há mercados controlados pelo Estado que vendem alimentos diretamente à população por um menor preço. A carne de uma loja que pertence ao Estado tem o preço mais barato e a mesma qualidade do que a das outras lojas”, explica. Esse modelo de economia estimula a concorrência e de uma maneira geral força os preços para baixo. No final das contas, quem ganha é o povo. O advogado acredita que as formas populares de organização fortalecem a economia e ainda combatem os diversos tipos de agressão por parte da direita, como a ocultação de artigos para fomentar a elevação artificial dos preços para atingir o governo. Como a economia solidária, por exemplo, muito presente em La Paz e El Alto, e em menor quantidade em Cochabamba e Santa Cruz. Essa forma de atividade é representada por “pequenas e médias empresas, geralmente familiares, que estão gerando fonte de trabalho que inclusive superam algumas empresas privadas”. Illanes ressalta o investimento que já vem sendo feito nesse tipo de economia, e que agora tem o reconhecimento da Constituição. “Os produtos são de tal qualidade que países vizinhos vêm para levar essa gente ou seus artigos. Então, a ideia do presidente Evo Morales Ayma é fortalecer esse tipo de produção pequena, baseada na reciprocidade, na ajuda entre eles, porque geralmente nesse tipo de empresa trabalha gente de origem aymara, quéchua. Por isso foi criado o Bandepro, um banco destinado a fornecer crédito para essas empresas familiares sem juros ou com juros muito pequenos”, assinala o advogado.


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reportagem especial Fotos: João Zinclar

Quilombolas sofrem cerco de fazendeiros na Ilha de Marajó CORONELISMO Pecuaristas fecham estradas e fazendeiros são acusados de manter trabalhadores sob regime de escravidão

O SOFRIMENTO dos anos de fuga dos quilombos no período colonial e imperial ainda não acabou. Sob um ângulo, a Ilha de Marajó é um paraíso econômico para uma minoria de pecuaristas criadores de búfalos; sob outro, um território com forte desigualdade social, onde comunidades quilombolas estão cercadas por fazendas improdutivas, sem o direito de ir e vir, e ainda testemunham ou mesmo possuem integrantes que trabalham em condições análogas à da escravidão. O território da Ilha de Marajó (PA) possui a maior criação de búfalos do país, contabilizando 1 milhão de cabeças. São quatro cabeças de gado para cada habitante. E se alguns poucos fazendeiros lucram com a criação de búfalos, a maior parte da população vive na miséria. Marajó reúne os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Pará. Para comparar, em Belém, o IDH chega a 0,81; já na Ilha de Marajó, a cidade de Chaves marca 0,58; e em Cachoeira do Piriá, alcança 0,55 (de acordo com o índice, quanto mais perto de 1,0, mais desenvolvido é o local). Pontos extremos O integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) Nelson Bastos exemplifica a questão da concentração de terras citando o fazendeiro Liberato de Castro. “Suas cercas vão da cidade de Chaves a Ponta de Pedras”, exemplifica. Tais cidades estão em pontos extremos da ilha e contrários um ao outro. Liberato é um dos fazendeiros que enfrenta mais processos por perseguição à população quilombola e ribeirinha de Marajó. O prefeito em exercício da cidade, Fernando Tobias (PT), reconhece o problema agrário na ilha, mas desvencilha a política local de qualquer culpa ou omissão em relação à situação. “Aqui, como em todo o Brasil, há a falta de reforma agrária; entretanto ainda há terras para camponeses”, argumenta. Lei Áurea? Os problemas para os quilombolas da Ilha de Marajó vão além da conivência governamental em relação ao latifúndio improdutivo e da lentidão em relação à titularização de suas terras. Eles passam também por duas realidades que remetem às velhas práticas coronelistas do Nordeste. Na região, ainda é possível ouvir denúncias de escravidão e também testemunhar o impedimento do direito constitucional de ir e vir. Ao conversar com a reportagem, Margarida Marinho, da comunidade quilombola de São Veríssimo, localizada na região de Salvaterra, denunciou a prática empregatícia exercida por um fazendeiro conhecido simplesmente por Piolho. Durante quatro anos, o filho de Margarida, Raimundo Damião Gomes, 49, vigiava búfalos e moía capim no Sítio Altamira, propriedade de Piolho. Ela conta que o filho se endividou com o patrão e era impedido de sair da fazenda. Em quatro anos de trabalho, Raimundo Damião saiu da fazenda somente quatro vezes. Despedido, o filho de Margarida recebeu de Piolho somente R$ 500 e a oferta de uma casa de pau-a-pique, a qual Raimundo não aceitou.

Piolho, entretanto, não está sozinho no exercício dessa prática. Em junho de 2007, o grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) libertou 30 pessoas da escravidão na fazenda Santa Maria, no município de Soure. O grupo cuidava da criação de búfalos e alguns dos trabalhadores moravam no local há 20 anos. O proprietário, Ovídio Pamplona Lobato, é médico e reside em Belém (PA). Os trabalhadores estavam escravizados por endividamento adquirido junto ao patrão. Eles compravam tudo o que precisavam na fazenda e, em muitos casos, a dívida ultrapassava o valor de seus salários. O MTE verificou que eles residiam em locais que não tinham nem energia elétrica, nem condições sanitárias mínimas.

As 16 comunidades quilombolas vivem num lugar onde “a criminalidade é amparada pela lei”, como afirma Nelson Bastos, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) Segundo Beth Alcântara, líder quilombola da Ilha de Marajó, a prática de escravidão é comum entre os criadores de búfalos da região. Ela conta que os fazendeiros, além de se tornar credores de seus funcionários, ainda apadrinham muitos vaqueiros quilombolas, “para que estes sejam coniventes e não os denunciem, nem os pressionem”. Direito de ir e vir Não bastasse o exercício do regime de escravidão levado a cabo por alguns criadores de búfalos, parte desses fazendeiros ainda impedem que seja respeitado o direito de ir e vir dos quilombolas. As 16 comunidades quilombolas, concentradas sobretudo em Soure e Salavaterras, vivem num lugar onde “a criminalidade é amparada pela lei”, como afirma Nelson Bastos, do MPA. A figura de Eva Abufaiad parece nos dar o melhor exemplo. Ela possui uma das maiores criações de búfalos da Ilha de Marajó e está entre os que possuem as maiores extensões de terras na ilha. Uma de suas propriedades, a fazenda Bom Jesus, possui mais de 6 mil hectares. A propriedade recebe visitas de turistas, que,

além dos búfalos, podem ver preguiças, macacos-guariba, quatis, tamanduás e garças. Do centro de Soure até o portão da fazenda Bom Jesus, são cerca de 5 quilômetros. Entretanto, para lucrar com a beleza natural do local, Abufaiad fechou a rodovia estadual PA-154, que liga Soure ao vilarejo de Caju-Una. “Se alguém adoece em CajuUna, tem que vir pela praia para Soure”, conta a quilombola Maria Elizabeth Vilhena de Moraes, da comunidade de São Veríssimo. Segundo ela, não só Eva, mas muitos outros fazendeiros impedem que se façam estradas e pontes para as comunidades. Quilombolas relataram que Abufaiad impede até mesmo que alguns rios que estão na sua propriedade sejam utilizados para a pesca de subsistência. Segundo relatos, ela lança mão da violência para manter os quilombolas longe da fazenda Bom Jesus. “Um pai de família levou um tiro na perna por pescar camarão numa região que pertence a Eva”, relata uma mulher quilombola. A reportagem foi até o portão de entrada da fazenda Bom Jesus. Notando a presença da imprensa, um dos funcionários responsáveis pela entrada e saída de pessoas se aproximou com desconfiança e reclamou das fotografias que estavam sendo tiradas. Em outra comunidade, agora na região de Salvaterras, as pessoas estão literalmente cercadas. No vilarejo de Bacabal existe um outro portão, agora da fazenda São Macário. Segundo os moradores, a propriedade também pertence a Eva Abufaiad. Tal portão e a cerca, que se situa rente às casas, impedem que os quilombolas transitem entre Bacabal, Pau Furado e Bairro Alto. Os quilombolas são impedidos de visitar seu cemitério, que fica dentro da fazenda. A proibição que Eva e outros fazendeiros impõem aos quilombolas, de transitarem entre suas comunidades, é um forte motivo que impede o desenvolvimento da região, pois além de não poderem produzir alimentos por causa da não titularização de suas terras, os moradores não realizam trocas comerciais entre suas comunidades. “Principalmente para a gente que vive da pesca e da agricultura fica muito difícil”, diz Aurino José da Conceição, que nasceu na comunidade de Bacabal. Eva Abufaiad é irmã de uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Eliana Abufaiad. Recentemente, a fazendeira compareceu para “dialogar” com as comunidades quilombolas. Mas havia um detalhe: ela queria conversar com as pessoas ao lado de um delegado e um policial.

Barreira do mar No período colonial, o primeiro nome dado ao território foi o de Ilha Grande de Joannes. Os religiosos pertencentes à ordem dos Capuchinhos receberam, entre os séculos 17 e 18, as terras do império português, de acordo com a política de sesmarias. A ilha carrega o nome de Marajó – que significa “barreira do mar” – , devido ao fato de o território se situar entre o oceano Atlântico e a cidade de Belém (PA). Os Aruãs, já dizimados pela colonização portuguesa, eram seus povos originários. O território de Marajó se localiza ao nordeste do Estado do Pará e é compreendido por cerca de 500 ilhas. Considerando somente a Ilha de Marajó, a extensão de suas terras é de 40.100 km2 (o equivalente ao tamanho do Estado do Rio de Janeiro). Existem 12 municípios dentro dela. As principais cidades são Soure, com 20 mil habitantes, e Salvaterras, que possui 17 mil. Geograficamente, a Ilha de Marajó pode ser classificada em duas regiões: a região dos Campos e a região dos Furos, onde se concentram rios e riachos. Todo o território é habitado por 250 mil habitantes e abriga 1 milhão de cabeças de búfalos. (ESL)

No alto, ao centro, Aurino José da Conceição; abaixo, entrada da fazenda Bom Jesus

Resistência negra na ilha dos búfalos Na ocupação São Veríssimo, quilombolas lutam pela titularização de suas terras enviado à Ilha de Marajó (PA) Concentradas nos limites dos municípios de Soure e Salvaterras, pertencentes à Ilha de Marajó, 16 comunidades reivindicam a titularização de suas terras junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). “As comunidades estão lutando para que as pessoas não saiam mais de suas terras e acabem indo para as cidades”, diz a líder quilombola Beth Alcântara. A ocupação quilombola São Veríssimo ilustra a luta citada por Beth. A comunidade se localiza dentro de uma propriedade improdutiva que, segundo os moradores, pertence a um estadunidense que não vive no Brasil. Integrante da comunidade, Telma do Socorro, 24, solteira e mãe de duas crianças se vê muito ansiosa para que o processo de titularização das terras onde vive caminhe com mais rapidez. O título possibilitaria construir uma infra-

estrutura digna para Telma e sua família morarem. Seu desejo é que sua rua fosse pavimentada e que tivesse água encanada. Com a regularização da situação da comunidade, até mesmo uma escola poderia ser construída, o que impediria que outras crianças vivam a realidade que seu filho de sete anos vive. Ele só fica junto da mãe nos finais de semana, porque estuda na cidade de Soure. Além dos filhos, Telma vive com sua mãe e seu padrasto. Todos são agricultores, e ela pratica o artesanato. Outro sujeito da história da São Veríssimo é Maria Elizabeth Vilhena de Moraes. Ela chegou na comunidade em 2004. Maria denuncia a truculência das autoridades locais, que, segundo ela, enviaram até mesmo a tropa de choque da Polícia Militar para intimidar a comunidade. “Somos pobres e humildes, mas temos forças para lutar”, afirma. Segundo ela, enquanto os quilombolas são criminalizados por políticos e fazendeiros da Ilha de Marajó, crianças estão morrendo por doenças que são consequência da falta de infraestrutura, como calazar e hepatite. Maria também critica a omissão do Incra. “Cansamos de ficar indo e voltando ao Incra”, reclama. Além do título, os morado-

res também reivindicam um crédito de R$ 5 mil para produção agrícola. As cerca de 50 famílias da ocupação estão registradas no Incra, e o processo de titularização das terras se encontra na Vara Agrária de Castanhal (PA). Direito Segundo Beth Alcântara, somente a partir de 1999, com o auxílio do Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa), que os moradores de vilarejos da Ilha de Marajó que concentravam descendentes de ex-escravos começaram a ser considerados, de fato, integrantes de comunidades quilombolas. No país, o número de comunidades quilombolas que detém o título de suas terras representa 5% do total existente no país. De acordo com dados da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), existem 240 comunidades quilombolas no Estado. Segundo a organização, o Pará é o ente federativo que congrega o maior número de terras quilombolas já titulado: 46 do total de 96. Os quilombolas marajoaras, entretanto, ainda não desfrutam de tal direito constitucional. Isso fica claro ao considerar a realidade de Maria Elizabeth, que luta, mas também se cansa. “Estamos pedindo socorro”, clama, em tom de desespero. (ESL)

João Zinclar

Eduardo Sales de Lima enviado à Ilha de Marajó (PA)

Telma do Socorro: maior desejo é rua asfaltada e água encanada


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de 5 a 11 de fevereiro de 2009

cultura Gama

A fabricação mitológica do Brasil

ARTIGO Não precisamos de explicadores do Brasil a partir dos vencedores, como intelectuais que leem o já escrito e que a partir do já escrito escrevem a história; necessitamos de histórias contadas pelos vencidos Francisco Josivan de Souza

A FORMAÇÃO do Brasil não é matéria de Geografia, de História, de Economia e das demais ciências apenas. Ao contrário, à formação do Brasil responde também, como matéria e como conditio sine qua non de fabricação deste país, a tarefa do imaginário. Para alcançar os seus objetivos, os fundadores tiveram sempre às suas mãos engenho e arte, com o que criaram os mais variados mitos e as mais variadas aventuras e o forjamento de uma nação “grande e livre”. O processo de fabricação mitológica do Brasil obedece, como boa narrativa, aos mais requintados padrões das mais variadas formas literárias: texto teológico, literatura épica, poesia romântica, trovadoresca, humanista, modernista. Sem, necessariamente, obedecer à ordem de estilos literários conforme mencionados acima. A primeira tentativa de fabricar a terra chamada Brasil mito-literariamente, após a documentação oficial e o registro de posse (pela Carta de Caminha), é a teológica. A grande disputa de então é acerca da bondade ou da maldade inerente(s) aos povos aqui residentes (por acaso) quando da faustosa ocupação de direito das terras. Eram os povos daqui dotados de alma? Sim ou não? Por detrás da resposta – não importando qual fosse – estava a certeza de que a explicação era teológica. Bons, os residentes das terras recém-ocupadas seriam certamente advindos de Deus tanto quanto os homens da Europa; se maus, tinham como origem o demônio, sendo, portanto, necessitados da catequização para realizar, ao menos, a salvação de suas almas. Em qualquer das respostas, a explicação teológico-cristã dava conta da origem, do destino e da explicação da necessidade da catequização: eram maus – por isso a catequese; eram bons, mas sem deuses – por isso, a catequese. Mitológicas explicações Assim, pois, a primeira experiência de explicar o Brasil, nas mãos dos detentores do sagrado e de seus textos (os sacerdotes), fundamenta a necessidade de uma religião forte e monoteísta aqui; uma religião que fosse capaz de desbestializar os selvagens aqui residen-

tes e fazer, das terras do Brasil, posse de Deus, geridas espiritualmente pela Igreja e, temporalmente, por aqueles que, “tementes a Deus e por Ele guiados”, descobriram essas terras maravilhosas e as gentes daqui para o bem da Igreja. De forma que os descobridores seriam, também, por Deus escolhidos como os gerentes, com registro em cartório, das terras da Santa Cruz. Havia que explicar o Brasil para os residentes, por acidente, no Brasil. Mais que isso: explicar a existência do mundo a partir de um criador macho, único, onipotente, onipresente e onisciente para aqueles que, embora bons, não conheciam a verdadeira forma de agradar a Deus e sequer tinham conhecimento do Deus verdadeiro; era a obra de primeira necessidade entre os “explicadores-do-sagrado”. Assim, pois, conhecer as línguas dos residentes, bem como as suas crenças e os seus costumes, é fundamental para dizer-lhes que todo esse tempo estão agindo errado. No entanto, por obra da bondade de Deus, os “explicadores-do-sagrado” cá estavam justamente para corrigir esse problema. Cidade de Deus

Conhecendo a língua dos residentes cá, usariam os métodos advindos de além-mar para comunicarem com mais facilidade e eficácia: nada como o teatro maravilhoso europeu; entendendo os nomes dos seus pseudo-deuses, lhes garan-

A primeira tentativa de fabricar a terra chamada Brasil é a teológica. Eram os povos daqui dotados de alma? Sim ou não? Bons, os residentes das terras recémocupadas seriam certamente advindos de Deus tanto quanto os homens da Europa; se maus, tinham como origem o demônio tiriam que esses a quem eles clamavam eram, na verdade, demônios maus e, felizmente, sem força diante do grande Deus que agora conheceriam; analisando a sua forma de organização política, lhes provariam que não era correta, posto que o rei de além-mar, nomeado por Deus e d’Ele representante, é que na verdade sabe governar como ninguém, na justiça vinda dos céus, em vista da construção da “Cidade de Deus”; observando a divisão do trabalho, lhes garantiriam que por aquela forma não chegariam nunca a lugar nenhum, de forma que deve-

riam aprender a trabalhar o máximo possível para a realeza que “sabia-mais-que-eles”, esperando o favorecimento de Deus, presente nas bugigangas que nunca veriam não fossem os povos de além-mar. O problema foi que nem todos entenderam o projeto: alguns advindos (ou filhos de advindos com as mulheres de cá) decidiram que não seriam os “detentores-do-sagrado” os possuidores da terra (um engano semântico), mas eles, pois trabalharam muito mais. E essa posse deveria ser contra os que cá moravam antes dos advindos, pois que eram preguiçosos e não mereciam estas terras, posto que não sabiam trabalhar. Havia que, pois, provar a nescidade e a selvageria dos habitantes de cá e lhes tomar as terras (mesmo que às custas de guerras, pois as guerras têm como objetivo algo grandioso: uma grande pátria). Outro problema ainda maior: alguns residentes cá, não tendo compreendido a proposta dos advindos, ou mesmo selvagens “pela própria natureza”, decidiram guerrear contra os advindos, contra o projeto de Deus e a proposta do rei (por tabela). Foi preciso muita tinta para explicar as façanhas épicas dos grandes lutadores por parte dos advindos: muita selvageria tiveram de enfrentar os “filhos-bem-nascidos” destas terras que se tornaram Brasil graças aos povos advindos do Norte de além-mar. Outros povos, vindos do Sul de além-mar, também chegaram cá e, pela benevolência dos povos do Norte de alémmar que aqui residiam ou dos filhos destes, fizeram parte da fabricação faustosa deste Brasil. Evidentemente, nunca tiveram condições intelectuais ou humanas de fazer deste um país pelo qual poderíamos nos ufanar. Por isso, lhes foi bondosamente reservado o lugar de escravos, posto que era uma posição muito melhor que trabalhador em países como a Alemanha. Resistência

Houve quem se rebelou contra a bondade dos benfeitores desta nação, desafiando a grandeza do Brasil e demonstrando o quanto o animal feroz vindo do Sul de alémmar tinha ainda de aprender a ser humano. A saída da nação foi usar as suas forças, para o bem do Brasil, contra os rebeldes, que fugiam para altas serras ou longínquas florestas, prometendo uma divisão do país. Derrotados, tiveram de pagar o preço de não se encaixarem no projeto Civilizacional da nação. Mais tarde, com uma já partejada característica nacional, percebeu-se a grandeza dos homens aqui residentes desde sempre. É verdade a força dos vindos de “além-mar-Norte”, mas é mais verdade ainda a grandeza hercúlea dos indígenas Tupi. Tinham, claro, entre os residentes desta nação, alguns que eram preguiçosos e que nunca fariam deste um país faustoso. No entanto, a figura da terra, da selva, conhecedora dos rios, das

plantas, das artes nativas; rica em conteúdos culturais nativos e sabedoria do seu lugar, de forma que não se metia onde não era chamada; essa figura era o herói nacional. Diante dela, reconheceríamos a nobreza de Robespierre, a sabedoria dos Césares, a indestrutibilidade de Hércules, a paixão de Orfeu... Peris, Tupãs, Tibiriçá são os nomes gloriosos desta terra. Tomar as rédeas

O Brasil era “gigante por sua própria natureza”. As suas maravilhosas matas explicavam o futuro desta nação sem limites. Entretanto, a nação tinha de descobrir com mais clareza a sua missão e precisava criar uma característica que fosse grande como a sua natureza e respondesse ao crescimento mundial: precisava ter um caráter puro brasileiro, de um povo nascido a partir das grandes navegações e da coragem dos povos do norteatlântico. Ainda selvagem, o Brasil precisava entrar na era da evolução positiva. Os advindos do sul-atlântico e os aqui residentes antes das ocupações do além-mar, inferiores naturalmente, deixariam lugar a um grande povo: firme, dotado de valores republicanos, branco, aberto ao conhecimento científico e para ele capacitado, dotado da riqueza cultural das belas artes, amante do amor racional e cristão e base para uma nação com as características das nações europeias, exemplos da civilização. O caminho, pois, era investir no enriquecimento cultural do povo. Por isso, nada mais natural que criar escolas para os filhos dos homens nobres desta nação, possuidores de grandes bocados de terras e, portanto, somente quem poderia fazer do Brasil um país rico. Os filhos dos homens da fazenda não abandonariam, em momento algum, os incapacitados e, se estes não se rebelassem contra o país, lhes dariam o “que-viver” cotidiano: panem et circenses. Ia ficando evidente, pouco a pouco, que o Brasil somente não era ainda a primeira grandeza mundial por causa da preguiça inerente aos advindos e filhos dos advindos do sul-atlântico e aos residentes cá antes da ocupação (por Deus querida) dos advindos do norte-atlântico. A solução era, com certeza, tomar as rédeas do desenvolvimento e dá-las a quem de direito, distribuindo os poderes entre os explicadores do Brasil. Àqueles que teimavam em fazer do Brasil um país ainda sem crescimento (situação presente apenas em localidades nas quais a cultura superior não tinha ainda conseguido ser priorizada) deviam ser explicados os motivos do Brasil estar “em vias de dar certo”, quando “já teria dado certo” se fossem apenas considerados os elementos da cultura superior como fundamentais para a nação. Desta forma, ainda, fundamental era considerar prioridade as riquezas culturais de la culture des beauxarts, des sciences, nascidas nas

localidades nas quais a civilização foi mais benevolente com o homem: a Europa. Assim, não mais poderiam ser tolerados movimentos que levassem ao atraso do Brasil, sobretudo que tais movimentos entrassem em choque com a vocação civilizacional brasileira. Tupi or not Tupi

Houve quem decidiu mastigar as beaux-arts, comendo-as e fazendo uma arte que, queriam, fosse nacional: Bach, Debussy, Monet, Eliot, Shakespeare, Voltaire... foram devorados, e desses ritos de devoramentos – quiseram os devoradores – nascia o Brasil Moderno - “Tupi or not Tupi/ That is the question”. Porém, as explicações do Brasil ainda lhe colocavam como um “país do futuro”. “O caminho é a indústria!” Massas de humanos saíam de ca-

As fabricações do Brasil fizeram deste um país no qual milhões trabalham para alguns poucos lucrarem. O suor de milhões alimenta as garrafas de vinho de alguns poucos; o alimento de milhões não pode ser oferecido aos animais de estimação de alguns poucos, sob risco de os animais se recusarem à tamanha baixeza sa, agora, não mais para a roça ou para o boteco, mas para o emprego. Sem isso, o Brasil seria pobre para sempre! Havia que formar a massa para o trabalho técnico e explicar-lhe a importância do seu trabalho: o Brasil era como uma grande locomotiva, sendo todos os vagões muito importantes para a nação, e cada vagão era um trabalhador; assim, ninguém poderia querer abandonar o seu posto, de forma que, se assim fosse, o Brasil descarrilaria. A grande locomotiva havia? Sim, mas todos os vagões deviam constantemente ficar em seus devidos lugares, posto que todos os vagões caminhariam juntamente com a grande locomotiva, fazendo do Brasil a grande nação do século 20. Houve quem decidiu fazer diferente... A explicação? Exploração do trabalho humano. Um mito implantado por um judeu de que a mais-valia é exploração e de que o operário nunca conquistará o que constrói. Como não, se tudo o que se constrói é para todos e todos participam de tudo? Como dantes, contra os atrasadores do Brasil, um gru-

po se levantou e fez dele um grande canteiro de obras por décadas. Reclamava-se da fome? Sim, mas era impaciência de crianças que estão prontas para comer o bolo de aniversário antes mesmo que esteja ele assado. A solução era deixar o bolo crescer... E que venha a Copa do Mundo de futebol... Uma nova imaginação

As fabricações do Brasil, bem como de sua história, obedecem às normas cultas da linguagem e às lógicas do desenvolvimento civilizacional do mundo. Não somente quem ocupa um terreno e nele trabalha tem direito à posse do terreno (como queria o filósofo empirista inglês John Locke , posto que ele foi superado), mas, mais ainda, quem inteligentemente lidera os trabalhadores do terreno deve possuir o terreno e mais ainda os corpos dos produtores do terreno, em nome do Mercado (que tem uma mão que não sabemos onde está). No entanto, as fabricações do Brasil fizeram deste um país no qual milhões trabalham para alguns poucos lucrarem desse trabalho. O suor de milhões alimenta as garrafas de vinho de alguns poucos; o alimento de milhões não pode ser oferecido aos animais de estimação de alguns poucos, sob risco de os animais se recusarem à tamanha baixeza. Ao final das contas, porém, não é possível fabricar (de ficção, mesmo – com referência ao antropólogo estadunidense Clifford Geertz) um país sem um imaginário. Move-se o povo (“um ovo”, segundo o poeta, ensaísta e cronista do Estado de Minas Gerais, Affonso Romano de Santanna) a partir de um imaginário, e “precisamos de um novo imaginário” (Cornelius Castoriadis – filósofo grego (1922-1997), autor de A instituição imaginária da sociedade). Um imaginário que faça dos povos que habitam a região geográfica que hoje denominamos Brasil potências de vidas e “re-vidas” constantes, a partir de suas riquezas culturais próprias (religiões, mitos, ritos, jogos, práticas educacionais...). Não precisamos de explicadores do Brasil a partir dos vencedores, como intelectuais que leem o já escrito e que a partir do já escrito escrevem a história. Necessitamos de histórias contadas pelos vencidos, leitores (obrigatoriamente, em bancos escolares) dos escribas vencedores e desses críticos, forjando uma nova história e um novo imaginário, possibilitador de uma nova realidade (sempre insatisfatória, mas processualmente vital). Não queremos evoluir (como queria Edward Tylor – antropólogo britânico (18321917), maior expoente do chamado evolucionismo cultural e autor da obra Primitive Culture, de 1871), mas vitalizar o humano – ou “re-vitalizar”. Como a Caetano, não nos basta Pátria, ousamos querer Mátria e, mais ainda, Frátria. Francisco Josivan de Souza é mestre em Educação pela PUC-SP.


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