Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 317
São Paulo, de 26 de março a 1º de abril de 2009
R$ 2,50 www.brasildefato.com.br José Cruz/ABr
Chávez tenta controlar áreas estratégicas da economia Classificadas pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, como parte da “radicalização do processo revolucionário”, as expropriações e ocupações em setores estratégicos do país realizadas nas últimas semanas causaram revolta na oposição e na burguesia venezuelanas, que acusam o mandatário de exercer uma política de opressão e centralização de poder em sua figura. No entanto, para cientista político, as recentes medidas estão incluídas em projeto idealizado em 2007: o Plano Socialista de Desenvolvimento da Nação, aprovado pela Assembleia Nacional há pouco mais de um ano. Pág. 9
Na Argentina, justiça boicota punições a ex-torturadores Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel recorda a ditadura na Argentina, critica o lento processo de responsabilização dos crimes cometidos por agentes do Estado e alfineta o Primeiroministro italiano, Silvio Berlusconi. Pág. 11
Há uma década, paraguaios iam às ruas pela sua democracia O assassinato do então vice-presidente Luis María Argaña, em março de 1999, desvelou uma crise política que levou milhares de paraguaios a saírem de casa para tentar impedir o retorno de uma ditadura que haviam derrubado há uma década. O preço da resistência: oito jovens mortos e centenas de feridos. Pág. 10
Diante do STF, indígenas comemoram a decisão, por 10 votos a 1, de manter a demarcação em faixa contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
Apesar das restrições, demarcação da Serra do Sol é vitória histórica A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de manter a constitucionalidade da demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, foi muito comemorada pelos indígenas e significa uma conquista histórica. Depois de mais de 30 anos de disputa com os latifundiários produtores de arroz, a decisão, segundo antropólogo da Unesp, reforça a
confiança dos povos originários sobre seus próprios direitos constitucionais, abalada pela protelação dos processos na Justiça. No entanto, para o líder indígena Júlio Macuxi, as condicionantes impostas pelo STF ferem a Constituição brasileira. Como exemplo, ele cita o veto à ampliação de territórios em processos futuros ou atuais de demarcação. Págs. 6 e 7 Adam Mancini/US Army
Ninguém, além da Bayer, quer o arroz transgênico
Hotspots, a biodiversidade cercada por guerras e ONGs
Em audiência pública realizada pela CTNBio, mesmo entidades do agronegócio se manifestaram contra a liberação comercial de arroz transgênico produzido pela Bayer. A justificativa foi a dificuldade no acesso a mercados e os elevados custos de produção, elementos que vêm sendo levantados há anos por movimentos sociais. “Foi algo inédito”, comentou representante do MDA na Comissão. Pág. 5
Carregado de segundas intenções, estudo da ONG Conservação Internacional (CI) mostra que, entre 1950 e 2000, mais de 90% dos principais conflitos armados em todo o mundo aconteceram em países que abrigam um dos 34 hotspots de biodiversidade, áreas ricas em diversidade vegetal e animal que apresentam grande risco de degradação. Sob outro ângulo, segundo analistas, por trás da preocupação da CI, esconde-se a pretensão desta e de outras ONGs de “mundializar” essas zonas, com o objetivo de lucrar com elas. Pág. 8
ISSN 1978-5134
Crise econômica diminui a arrogância dos EUA e os pressiona a dialogar Pág. 12 Kelly Fonseca
Petrobras enfrenta greve em todo o país Petroleiros causam cortes de produção
400 trabalhadores aderiram à greve na Regap, em Betim (MG)
Depois de 14 anos sem um movimento grevista nacional de grande amplitude, categoria promove piquetes, paralisações e cortes de produção nas suas 17 bases sindicais espalhadas pelo Brasil. Os petroleiros exigem a preservação dos postos
de trabalho nas empresas terceirizadas, melhores condições de saúde e segurança, garantia de pagamento das horas-extras em feriados e estipulação de regras para a justa distribuição da Participação nos Lucros e Resultados (PLR). Pág. 3
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de 26 de março a 1º de abril de 2009
editorial Movimentos sociais de todo o mundo preparam as energias para a Mobilização contra a Guerra e a Crise, entre os dias 28 de março a 4 de abril, com destaque em nosso continente para o 30 de março. Essa é uma das várias jornadas e mobilizações definidas para esse ano, durante o Fórum Social Mundial, em Belém (PA), pelas organizações populares para enfrentar a crise econômica e política do capitalismo. Como temos dito em nossos editoriais, essa é uma crise grave, profunda e que será prolongada. É estrutural e coloca em xeque os paradigmas neoliberais, os quais têm gerado superprodução de mercadorias e superacumulação de capitais. A consequência tem sido um aumento brutal da pobreza, da desigualdade, da exploração e da exclusão dos povos, o saque e a contaminação e destruição da natureza. E, para manter seus lucros e a exploração, os capitalistas pretendem descarregar sobre os trabalhadores as contas dessa crise. O desemprego tem aumentado, há a ameaça de retirada de direitos trabalhistas etc. Portanto, não resta outra alternativa para a classe trabalhadora a não ser lutar para resistir a essa nova ofensiva das elites. Paralisação dos petroleiros As greves, paralisações, protestos e todas as formas de enfrentamento ao capital são fundamentais agora. E, nesse sentido, uma importante mobilização dos petroleiros de todo o país, iniciada no dia 23 de março, serve de estímulo para as demais ca-
debate
Mobilização e luta, únicas alternativas dos trabalhadores tegorias de trabalhadores: mobilizar e lutar para garantir direitos, avançar nas conquistas e resistir à crise. A paralisação, inicialmente prevista para durar cinco dias, até o fechamento desta edição (24 de março) conta com a adesão de 70% da categoria e estende-se a unidades de produção, refinarias, centros administrativos e de pesquisa e terminais de distribuição. Os petroleiros chamam a atenção para o descontentamento diante da redução de empregos, flexibilização de direitos trabalhistas, sobre as condições de trabalho e motivados pela crise econômica. Conforme alerta a Federação Única dos Petroleiros (FUP), o corte de postos de trabalho e a diminuição dos salários atinge hoje principalmente os funcionários terceirizados, que correspondem a cerca de dois terços do atual contingente da empresa. Os servidores também reivindicam condições mais seguras de trabalho. Desde 2000, segundo as entidades petroleiras, já foram registradas 165 mortes na Petrobras, das quais 134 eram de terceirizados e 31 de funcionários diretos da empresa. Este ano, já são dois óbitos. Integram as reivindicações, ainda, o pagamento de horas-extras pelos
feriados trabalhados e negociações sobre o pagamento de parcelas de Participação nos Lucros e Resultados (PLR), que, sob alegação da crise, ainda não foi repassado aos trabalhadores. De acordo com as entidades, em resposta à paralisação, a Petrobras descumpriu todas as exigências da lei de greve, desrespeitando os grevistas e ameaçando os trabalhadores, inclusive com apresentação de cartas de demissão, num momento em que o contrato de trabalho está suspenso. Além disso, os petroleiros alertam para o fato de que as equipes de contingência estão assumindo a produção em vários locais. O procedimento atenta contra o direito de greve e também coloca essas equipes em risco, aumentando as chances de acidentes. Segundo as entidades petroleiras, os grupos são formados por gerentes, coordenadores e supervisores, que não têm capacidade de operar as unidades, sem falar que os efetivos de contingência são reduzidos. Com a greve crescendo nas refinarias, plataformas, centros administrativos e de pesquisa, com a redução de produção de derivados do petróleo, com a diminuição drástica de
crônica
Altamiro Borges
Conferência Nacional de Comunicação gera disputas
Guerra no meio empresarial As divergências também estão acirradas nos meios empresariais. Os barões da mídia temem que a convergência digital acelere a invasão das transnacionais da telefonia no setor. Eles fazem um discurso em defesa da produção cultural brasileira, mas não aceitam tocar nos seus privilégios - no monopólio midiático que manipula corações e mentes. Paulo Tonet, da Associação Nacional de Jornais, expressou bem essa contradição, ao criticar o debate sobre a concentração do setor e ao defender que a conferência discuta apenas “o conteúdo nacional da produção”. Nessa guerra entre as teles e os barões da radiodifusão, a sociedade brasileira está totalmente excluída, alijada. Mesmo com suas diferenças, os dois segmentos do capital se unem para evitar que a conferência se empenhe em democratizar, de fato, os meios de comunicação. A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que expressa os interesses de ambos, recentemente atacou o presidente Lula por suas “críticas desmedidas” à mídia e manifestou temor com o evento. Já os jornalões e emissoras
de televisão destilam veneno contra a participação da sociedade. A Folha de S.Paulo, por exemplo, publicou reportagem marota sobre os gastos públicos com o evento, previstos em R$ 8,2 milhões. Quanto menor a estrutura, mais difícil será o acesso e a participação das organizações da sociedade civil. Limites ao poder incontrolado Como alerta o professor Laurindo Leal, a gritaria indica que “a campanha contra já começou. E a ordem veio de cima, bem de cima: da associação internacional dos donos da mídia no continente, conhecida pela sigla SIP. Ela se diz preocupada “porque os debates serão conduzidos por ONGs e movimentos sociais que pretendem interferir no funcionamento da imprensa”. A expressão pode ser traduzida pelo temor diante da possibilidade de um debate mais sério e aprofundado sobre o pensamento único imposto pelos grandes meios de comunicação. Afinal, debates como o proposto podem conduzir a ações práticas, capazes de impor limites a esse poder incontrolado”. Profundo conhecedor do poder da ditadura midiática, Laurindo adverte que será preciso intensa pressão da sociedade para garantir uma conferência democrática. Do contrário, ela poderá ser manietada. Ele lembra que a divisão entre as teles e a radiodifusão pode servir como brecha aos movimentos sociais. Mas não alimenta ilusões. “Do lado patronal, dificilmente sairia posição diferente, afinal estão defendendo interesses de classe seculares... Daí a
Tempo de oportunidades É fato que essa conjuntura de crise representa uma enorme ameaça para a classe trabalhadora. Mas também pode significar uma nova oportunidade para promover alternativas populares ao sistema, avançando numa mudança estrutural, cuja vigência e viabilidade se tornem incontestáveis. Os movimentos populares têm defendido um projeto de vida, frente ao projeto de morte, no qual a produção não seja destruição, mas parte de um processo criativo, sustentável e com justiça social. Esse momento reforça a necessidade de debater um novo ideal de vida frente ao neoliberalismo e às ordens do capital transnacional, que semeiam a morte em guerras e invasões e o avassalamento da soberania dos povos e das nações em todos os continentes. A tarefa é para já e para todos os setores. Organizar o povo, promover debates sobre a crise, trabalho de agitação e propaganda e mobilização para as jornadas unitárias, lutas corporativas e solidariedade é o caminho para superar as atuais adversidades da classe trabalhadora e avançar na construção de uma sociedade justa, fraterna e solidária. É a hora de avançar rumo ao projeto popular para o Brasil.
Luiz Ricardo Leitão
Mais além de Bruzundanga Gama
A Conferência Nacional de Comunicação nem foi convocada oficialmente e já é alvo de ataques e sabotagens. Ela foi anunciada inesperadamente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Fórum Social Mundial, em Belém, no final de janeiro, sendo motivo de comemoração para todos os que lutam contra a ditadura midiática no país. Na sequência, foram feitas várias reuniões em Brasília para definir o temário e a comissão organizadora, mas o decreto oficial de convocação ainda não foi publicado. Esta demora preocupante se deve à intensa disputa de bastidores sobre os rumos da conferência. No próprio governo, as divergências são visíveis. O ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social, defende que a conferência discuta as concessões públicas, a propriedade cruzada e a concentração da mídia, num processo que sirva para democratizar este setor. Já o ministro das Comunicações, Hélio Costa, afirmou em recente palestra que “a democratização da comunicação sempre existiu no governo Lula”. “Não precisa de uma conferência nacional para fazer a democratização de nada”, polemizou, contrapondo-se ao próprio presidente.
bombeamento de combustível para aeroportos e oleodutos, a direção da empresa precisou abrir negociação. Uma reunião com os 17 sindicatos representativos dos trabalhadores do Sistema Petrobras, tanto os organizados na Frente Nacional dos Petroleiros (FNP) como os da Frente Única dos Petroleiros (FUP), aconteceu no dia 24 de março, no Edifício Sede da Petrobras, no centro do Rio de Janeiro. Embora o lucro da empresa tenha aumentado, a participação nos lucros e resultados, direito assegurado dos servidores, foi reduzida, percentualmente, em relação a 2008. Já o repasse aos acionistas aumentou. A Petrobras também está se negando a repassar a PLR para várias unidades, como para os trabalhadores da Refinaria Alberto Pasqualini (Refap), em Canoas (RS), além da TBG e da Petroquisa. A base do Sindipetro-RJ reivindica que a participação seja paga igualmente para todos os petroleiros. A pauta inclui, também, a retomada do pagamento de horas-extras nos feriados para os que trabalham em turnos, hora-extra curso, “periculosidade pra valer”, extensão da licença-maternidade de seis meses a todas as trabalhadoras, pagamento
do dia de desembarque, aposentadoria especial, melhores condições de saúde e segurança no trabalho, dentre outros. Esse é o caminho. Fazer luta para obter conquistas.
importância da mobilização, necessária para impedir que os interesses empresariais da mídia se sobreponham aos da sociedade”. Ilusões e avanços do governo Essas disputas explicam a demora na convocação da conferência. Apesar da guerra de bastidores, tudo indica que ela será oficializada. O governo Lula sofreria enorme desgaste se recuasse agora. A realização de um debate democrático, com ampla participação da sociedade, é anseio e demanda dos movimentos sociais brasileiros. A proposta da conferência fez parte da plataforma de Lula nas eleições de 2002, mas o governo preferiu conciliar com a oligarquia midiática, num misto de ilusão de classe e de tentativa pragmática de neutralizar os veículos privados. A manipulação da mídia na eleição presidencial de 2006 fez com que o governo Lula acordasse, parcialmente, para este desafio estratégico. Uma iniciativa positiva foi a da criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), responsável pela TV Brasil. O presidente também passou a polemizar mais com a mídia privada, o que irritou a SIP. O anúncio da conferência em Belém foi outra iniciativa positiva. A questão agora é garantir que o processo seja realmente democrático, garantindo a ampla participação da sociedade num debate cada vez mais candente. Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, autor do livro Sindicalismo, Resistência e Alternativas
Inspirado pelo grande Lima Barreto, um rebelde mais do que imprescindível, este cronista que vos fala habituou-se a comentar, com pitadas do humor que se cultiva aqui na província independente de Vila Isabel, a desfaçatez das elites de Bruzundanga. Para quem ainda não sabe, Bruzundanga era o nome da nação imaginária que o escritor satiriza em uma de suas obras, cujas mazelas e absurdos eram descritas exatamente à feição do Brasil republicano ao início do século 20. A fim de que o leitor que ainda não conhece a verve do prosador carioca tenha uma ideia de sua ficção mais do que ferina, cito abaixo um trecho em que ele nos apresenta um perfil do curioso “país”: “Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. / No entanto, a terra vive na pobreza; os latifúndios abandonados e indivisos; a população rural, que é a base de todas as nações, oprimida por chefões políticos, inúteis, incapazes de dirigir a cousa mais fácil desta vida. / Vive sugada, esfomeada, maltrapilha, macilenta, amarela, para que, na sua capital, algumas centenas de parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios, duplicados e triplicados, afora rendimentos que vêm de outra e qualquer origem, empregando um grande palavreado de quem vai fazer milagres.” Não é difícil entender por que Lima Barreto ficou na “geladeira” de nossas letras durante tantas décadas. Sua prosa é de uma lucidez estarrecedora, e a atualidade de suas observações salta aos olhos de qualquer leitor, não importa o quão distraído ele esteja. Além do mais, o modelo de modernização sem ruptura que norteia a evolução capitalista de nossa terra patrocinou o surgimento de uma nação “cronicamente inviável”: enquanto os velhos coronéis do latifúndio, em permanente conluio com o capital estrangeiro, tornavam-se capitães de indústria e banqueiros, as classes populares eram alijadas do jogo democrático, servindo apenas à construção de uma das mais excludentes sociedades do planeta azul. Assim, falar do atraso em nossa vida pública virou um lugar comum. Em certas instituições, aliás, o nepotismo e as maracutaias prosperam à larga. Que o diga o Congresso presidido por Zequinha do Sir Ney, em que as “gordas pensões pagas pelo Tesouro” cevam centenas de apadrinhados dos nobres senadores e deputados. E o que dizer de nossas Confederações desportivas, com seus mirabolantes projetos de Copas e Olimpíadas, sempre abençoados por ministros de Estado, que não se incomodam em aliar-se às sanguessugas de plantão? De fato, figuras como Carlos Nuzman, Ricardo Teixeira e o sr. Orlando Silva se sentiriam muito à vontade em Bruzundanga, tomando o chá das cinco ao lado de gente como Alberto Dualib, Márcio Braga, Eurico Miranda e outros menos cotados, como o Presidente do Santos F. C., que, instalado em um camarote vip (?) do Pacaembu, hostilizou como um bad boy os torcedores corintianos ao final do clássico no último domingo. Não pense, porém, o caríssimo leitor que tamanha bandalha é uma prerrogativa exclusiva destas plagas. A começar pela própria crise financeira, a maioria dos flagelos que padecemos está longe de ser invenção tupiniquim. Se formos um pouco mais além de Bruzundanga, aterrissando na Europa ou nos EUA, veremos que as maracutaias acompanham a história do capital desde o início da Era Moderna – que o diga aquele “mulato fino” e politicamente correto que assumiu o condomínio ianque, em meio ao escândalo dos bônus da AIG (mais de 170 bilhões de dólares de dinheiro público sugado dos contribuintes estadunidenses foram desperdiçados pela instituição em pagamentos a seus parceiros de jogatina, em especial os grupos Goldman Sachs e Citigroup, o Societé Générale e o Deutsche Bank). Aliás, perto dos executivos financeiros do Big Brother, cujos salários alimentariam boa parte dos famintos deste mundo, os políticos e magnatas da terrinha ainda são autênticos pés de chinelo. Abstraindo o sotaque, porém, formam todos uma grande família, gozando, tanto lá quanto cá, de subsídios duplicados e triplicados, afora rendimentos que vêm de outra e qualquer origem – isso para não falar do grande palavreado de quem vai fazer milagres, que, pelo visto, seja Lula ou Obama, todos empregam sem o menor pudor... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Subeditor: Igor Ojeda • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Antonio David, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil
Depois de 14 anos, trabalhadores da Petrobras fazem nova greve nacional Kelly Fonseca
MOBILIZAÇÃO Categoria promove piquetes, paralisações e cortes de produção nas suas 17 bases sindicais espalhadas pelo país Aline Scarso de Campinas (SP) DEPOIS DE 14 anos sem um movimento grevista nacional de grande amplitude, os petroleiros dão uma resposta a altura aos constantes cortes de direitos e à precarização das condições de trabalho imposta pela Petrobras. Espalhados do Rio Grande do Sul ao Amazonas, operários de todas as unidades brasileiras estão mobilizados e em greve desde o dia 22 de março. O quadro de greve nacional divulgado até o fechamento desta edição (dia 24) pela Federação Única dos Petroleiros (FUP) e pela Frente Nacional dos Petroleiros (FNP), que controlam onze e seis bases sindicais, respectivamente, é sólido. Por todo o país há piquetes, cortes de rendição, paralisação e diminuição da produção nas refinarias, terminais e plataformas. Na pauta de reivindicações da greve nacional estão questões mínimas e que ainda assim não são atendidas pela empresa. Os tópicos principais exigidos pelos trabalhadores são a preservação dos postos de trabalho nas empresas contratadas pela Petrobras, melhores condições de saúde e segurança no trabalho, com o fim dos acidentes, a garantia de pagamento das horas-extras dos feriados trabalhados, extensão da licença-maternidade de seis meses a todas as funcionárias, pagamento do dia de desembarque, aposentadoria especial e regras para uma distribuição justa da participação nos lucros e resultados (PLR).
Os trabalhadores assumiram a sala de controle e estão reduzindo em 30% o querosene de aviação enviado ao Aeroporto de Guarulhos Estopim
A greve nacional foi impulsionada pela paralisação dos trabalhadores da Refinaria de Paulínia (Replan/ SP), que, entre os dias 2 e 8 de março, diminuíram a produção e impediram a entrada de produtos estratégicos, como gás nitrogênio, comida e limpeza. A mobilização radicalizada foi, mais uma vez, embargada pela Justiça, que cobrou multa de R$ 50 mil do Sindicato por veículo ou pessoa barrada pelos piqueteiros e, contraditoriamente, R$ 1 mil da Petrobras por funcionário que mantivesse por cinco dias operando, sem poder voltar para casa. Por ironia, a empresa divulgou na mesma semana em seu site oficial lucro recorde de R$ 36 bilhões em 2008. Produção controlada
As unidades de Guarulhos (SP), Pólo de Guamaré (RN) e Terminal de Solimões (AM) estão operando sob o controle dos trabalhadores desde o dia 23. Na planta da Grande São Paulo, por exemplo, os trabalhadores assumiram a sala de controle e estão reduzindo em 30% o querosene de aviação enviado ao aeroporto de Guarulhos, um dos mais movimentados do país. Nas unidades de Suape (PE), operários controlam totalmente o bombeio de gás.
A greve também conta com o apoio dos trabalhadores terceirizados. Nas unidades de Suape (PE) e Campos Terrestres (RN) e na Refinaria Landulpho Alves (RLAM/ BA), os terceirizados pararam em solidariedade aos petroleiros, mesmo não sendo contemplados na pauta montada pela FUP e FNP, e correndo o risco, inclusive, de demissão em razão dos contratos precarizados. Os campos de Jandaia, Sertres e Rou, localizados nos municípios de Entre Rios e Esplanada, ambos na Bahia, pararam a produção. Nas plataformas PPR–1 e P34, no Espírito Santo, o movimento grevista entregou a produção parada para o grupo de contingência enviado pela Petrobras.
Uma prática antissindical comum é o cárcere privado dos operadores, sendo que alguns trabalhadores ficaram presos dentro das refinarias por mais de 24 horas Práticas antissindicais
Equipes de contingência assumiram a operação na Bacia de Campos, no Norte Fluminense, e nas plataformas PPR-1 e P34, no Espírito Santo. Houve denúncias de que a gerência estava cerceando a comunicação dos embarcados com familiares e o restante do movimento grevista. Nas plataformas do Espírito Santo, por exemplo, o acesso à internet e os telefones foram cortados. Medidas como essas são consideradas antissindicais e ficam sob responsabilidade de um setor específico da empresa, que tem como meta furar a greve dos operários. A mais comum entre essas práticas é a formação de equipes de contingência, compostas basicamente por gerentes e supervisores que, para garantir a produção, assumem funções diferentes das que executam normalmente, colocando em risco as próprias vidas e das comunidades próximas às unidades. Estratégia semelhante foi usada na Replan na greve do início de março. Em razão dos fortes piquetes, a Petrobras fretou oito helicópteros para colocar um grupo de contingência dentro da Refinaria. Cerca de 150 funcionários trabalharam por cinco dias sem poder retornar para suas casas para não comprometer a produção. Outra prática comum é o cárcere privado dos operadores. Na greve atual, 120 trabalhadores da Refinaria Presidente Bernardes (RPBC/ Litoral Paulista) estão sendo impedidos pela gerência de encerrar o turno que começou às 7 horas da manhã do dia 23. Na Replan, os trabalhadores do Grupo 1, que iniciaram suas atividades às 7h30 do dia 23, estão já há mais de 24 horas na refinaria. O Sindicato acionou o Ministério Público (MP) sob a alegação de que o cansaço físico e a tortura psicológica colocam em risco a vida dos funcionários. Até o fechamento desta edição, não obtivemos respostas sobre o posicionamento do MP.
Minas Gerais – Os trabalhadores da Refinaria Gabriel Passos (Regap), unidade da Petrobras em Betim (MG), entraram em greve no dia 22, em mobilização articulada nacionalmente. Cerca de 400 pessoas aderiram à paralisação. A estatal tentou manter os funcionários dentro da planta. “Ultrapassadas as 16 horas, a empresa criou um esquema de forma a fazer cárcere privado com
os trabalhadores, colocando colchão, cama, roupa, comida, o que eles precisarem, forçando-os a ficar lá dentro. Pois, caso eles saiam, são ameaçados de demissão”, afirmou Robert Clay, da diretoria do Sindicato dos Petroleiros de Minas Gerais (Sindipetro/ MG) (as informações são de Vivian Neves Fernandes e Kelly Fonseca, de Betim).
Em 1995, a histórica e última paralisação No dia 3 de maio de 1995, os trabalhadores da Petrobras iniciavam aquela que seria, até o dia 23 de março deste ano, sua última greve nacional. A conjuntura era de repressão aos movimentos sociais e avanço do neoliberalismo, impulsionados pela recente vitória de Fernando Henrique Cardoso nas eleições de 1994. Os petroleiros cobravam a reposição salarial e um reajuste, negociados ainda no governo de Itamar Franco, e conseguiram unificar o setor público, incorporando à paralisação eletricitários, telefônicos, carteiros, entre outros. A greve teve a adesão de mais de 90% dos funcionários da Petrobras, que incorporaram um conteúdo político à mobilização: o repúdio à quebra dos monopólios do petróleo e das telecomunicações. Os trabalhadores revezavam-se para manter o abastecimento básico para a população em geral, mesmo assim houve uma repressão brutal. A imprensa corporativa alarmava a população com a possibilidade de desabastecimento. Ainda no sétimo dia de mobilização, o Tribunal Superior do Trabalho julgou a greve abusiva. No dia 26 de maio, a corte impõe multa
de R$ 100 mil por dia parado aos sindicatos e à FUP. Já a Petrobras demite 73 pessoas e envia contracheques zerados aos servidores. Por fim, o governo federal manda o Exército ocupar as refinarias do Paraná (Repar), Paulínia (Replan), Mauá (Recap) e São José dos Campos (Revap). Com o passar dos dias, o movimento unificado foi perdendo força e os petroleiros ficaram isolados, apesar de contarem com apoios difusos da sociedade. A paralisação durou 32 dias. A categoria aceitou encerrar a paralisação depois que a direção da estatal concordou em suspender as punições e pagar pelos dias parados. Entretanto, as entidades dos petroleiros tiveram as contas bloqueadas e os sindicatos receberam multas de R$ 2,1 milhões. Além dos 73 demitidos, outros mil funcionários foram penalizados com suspensões. Para alguns analistas políticos, o momento marcou o fim do ascenso do movimento de massas iniciado no final da ditadura militar. Entretanto, o movimento foi fundamental para impedir a privatização da Petrobras.
ANÁLISE
Crônica de um piquete petroleiro Achille Lollo Na noite do dia 23 de março, a chuva batia com força na rodovia Washington Luiz, inundando o caminho para a Refinaria de Duque de Caxias (Reduc). No local, à meia-noite, realiza-se a mudança de turno na produção de gasolina e óleo diesel. Para uma greve, esse é o setor mais importante. Da produção ativa (refino de gasolina e óleo diesel), 60% não podem ser estocados. Na Reduc, 70% da gasolina e do óleo diesel são logo retirados pelas distribuidoras. Paralisar esse setor significa provocar a descolagem de todo o ciclo de produção da Petrobras. A estatal tem condição de estocar nessa refinaria apenas produtos de segunda linha, como a parafina. Não por acaso, João Antônio de Moraes, coordenador da FUP, afirma que, se a greve dos petroleiros paralisar esse setor da Reduc, os diretores da estatal devem pensar seriamente no pacote de reivindicações dos trabalhadores. Por outro lado, parar a refinaria – já com o primeiro turno da noite – significa dar o sinal político claro e decisivo para toda a categoria, às centrais e à sociedade. Pois, ape-
sar da mídia tentar minimizar o peso político dos petroleiros, essa greve é para valer. Mosquitos e piquete
A chuva finalmente parou e a entrada principal da Reduc – Porta 01 – aparece iluminada com centenas de lâmpadas para mostrar seus guardas, enquanto milhares de mosquitos voam debaixo das faixas de luzes dos refletores. A seguir, o enxame tenta fazer com os grevistas o que a turma do Sergio Gabrielli, presidente da Petrobras, não conseguiu: romper o piquete. Eles picam tudo o que cheira a carne fresca, isto é, os militantes do Sindicato dos Petroleiros de Duque de Caxias (Sindipetro-Caxias), da FUP e da CUT, que pacientemente esperam os 27 ônibus que levam os trabalhadores do turno da meia-noite diretamente para o interior da refinaria. O piquete é pequeno, mas compacto. Nada de violência, vulgaridades ou ameaças. Apenas uma longa faixa: “Estamos em Greve”. O som de Paulinho da Viola rompe a monotonia e a tensão noturna. Chegam os primeiros carros de trabalhadores especializados em operações especiais e logo o coordenador do Sindi-
petro-Caxias, Simão Zanardi, explica o porquê da greve, convidando-os a aderir. Aos poucos, os carros recuam e seus ocupantes se juntam na praça em frente à Porta 01, diante da raiva – muito bem dissimulada – dos vigilantes e dos gerentes que foram todos convocados, inclusive aqueles que estavam em férias. Chegam os 27 ônibus
De longe, a fila dos ônibus que vêm para a Reduc se parece uma grande cobra coral, cujas cores resplandecem com a luz da lua. Saem da rodovia Washington Luiz e vêm em direção à Porta 01. Já no último desvio aparece um grupo de vigilantes que faz sinal para ir em frente e não parar. O encontro com o piquete é sempre dramático, porque as expectativas de alguém querer furar a greve ou, pior, alguém ter sido orientado a provocar confusões com o pessoal do piquete é um perigo que existe. O pessoal do sindicato respira fundo e, segurando a faixa, levanta os braços para que os motoristas dos ônibus vejam. Simão Zanardi está no meio da rua pedindo ao primeiro ônibus para parar. Finalmente o motorista para e abre a porta. O sindicalista sobe e explica aos tra-
balhadores o motivo do piquete. A seguir, um se levanta e sai. Depois outro, seguido por mais dois. A única mulher também pega sua mochila e é seguida por três, quatro, cinco, seis, sete, oito operários que se vão para a praça em frente à Porta 01. O primeiro ônibus entra vazio na Reduc. O segundo avança, o motorista encara Zanardi e solta um alegre: “Companheiro, não veio ninguém trabalhar, o ônibus está vazio”. E, assim, o tempo passa com ônibus literalmente vazios e outros com poucos trabalhadores. A maioria, que havia votado a favor da greve até o dia 20 preferiu ficar em casa, inclusive em uma noite cheia de trovões, relâmpagos e chuva. Quando o 27º ônibus descarrega seus poucos ocupantes, Zanardi e seus companheiros respiram fundo. A greve iniciou, e bem. No turno da noite, apenas um pelego foi trabalhar. Aliás, foram dois, mas este, ao ver sua seção deserta, deve ter tido um escrúpulo de consciência e logo voltou atrás, juntando-se aos outros que agora enchiam a praça da Porta 01. Achille Lollo é jornalista italiano.
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brasil Marcello Casal Jr./ABr
Empresas exploram população carcerária TRABALHO Mão-de-obra presidiária enfrenta falta de direitos trabalhistas, serviços repetitivos e baixa remuneração Márcio Zonta de São Paulo (SP) A POPULAÇÃO carcerária cresce em ritmo acelerado no Brasil. Segundo o Ministério da Justiça, em janeiro de 2007, havia 373 mil presos no país. Este ano, o número já subiu para 423 mil. A cada dia, entram cerca de 200 pessoas a mais do que as que saem das 1.150 cadeias brasileiras. Já a taxa de reincidência é uma das mais altas do mundo: a cada dez que são soltos, pelo menos sete voltam. Só o Estado de São Paulo abriga sozinho quase a metade da população prisional do país, com uma taxa de encarceramento que é praticamente o dobro da nacional. Assim, possui dois órgãos que respondem pela questão: a Secretaria de Administração Presidiária (SAP) e a Fundação de Amparo aos Presos (Funap). Esta, diante desse cenário em crescimento, vem aumentando o emprego de mão-de-obra carcerária. Estima-se que 51,3% dos presos condenados laboram dentro ou fora das unidades penais. Superexploração Francisco Sales Gabriel Fernandes, vice-presidente da Fe-
deração dos Trabalhadores Metalúrgicos do Estado de São Paulo, conta que, fora o preso, muitos ganham com “a industrialização dos presídios”.
“Seja um trabalhador dócil lá fora, aceite as regras do mundo em que a gente vive” é a mensagem que pretendem transmitir O fato de a legislação laboral que rege os presídios ser subordinada à Lei de Execução Penal (LEP) e não à Consolidação das Leis dos Trabalho (CLT) implica em vários benefícios para os empresários. Segundo a socióloga e professora da Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG) Isabella Jinkings, o detento não tem acesso aos direitos trabalhistas mais básicos. “Aliás, sem vínculo empregatício para o empresário, ele pode encerrar aquele contrato unilate-
Celas brasileiras: mão-de-obra farta e sem acesso a direitos trabalhistas
ralmente sem que por isso tenha que pagar quaisquer tipos de indenizações aos detentos”, observa. Outra grande vantagem, de acordo com ela, é o fato de não haver licitação pública para contratação de mão-deobra presidiária por parte das empresas. “O empresário não precisa entrar numa concorrência para usar força de trabalho penitenciária, basta ele entrar em contato com a Funap, preencher alguns requisitos e está resolvido”, diz. Jinkings ainda destaca o tipo de serviço que as empresas oferecem nos presídios: “É um trabalho extremamente repetitivo, extremamente cansativo, como costurar bola, montar grampos de prender roupas no varal, entre outros”. Simone Cristina Santos, so-
Mão-de-obra chega a ser 30% mais barata Gerente da Funap reconhece que investimento dos empresários passa longe da responsabilidade social
Por isso, as empresas deixam claro o porquê dos contratos de trabalho com as penitenciárias. Para um diretor de empresa, que prefere não ser identificado, o custo com a mão-de-obra presidiária realmente é menor do que os gastos com os funcionários da empresa. “O que nos levou a contratar é a vantagem em termos econômicos, ele significa 30% menos do que nós pagamos na empresa”, enfatiza.
de São Paulo (SP) O governo de São Paulo, que defende a ferro e a fogo a venda da força de trabalho dos detentos para as empresas, tem um discurso pronto enfatizando a mão-de-obra presidiária como a principal forma de ressocialização do preso diante da sociedade. Assim, ele legitima a exploração capitalista. A situação fica evidente quando a diretora do presídio feminino do Butantã, Giselda Cotas Morato, que ocupa em sua unidade cinco empresas, afirma: “A exploração existe em toda sociedade que é capitalista, então nós somos explorados o tempo todo, vocês, eu, elas”. Engrossando o discurso de Morato, o diretor do Departamento de Reintegração Social da Secretaria de Administração Presidiária, Mauro Bittencourt, também defende o trabalho nos moldes atuais implantados nos presídios. “Você não tem uma mão-de-obra tão barata como se fala por aí ou como as pessoas pensam. Certamente você tem uma mão-de-obra que não é no mesmo valor de um profissional aqui fora”, comenta.
“[O preso] significa 30% menos do que nós pagamos na empresa”, reconhece executivo Outro diretor de empresa, que também não quis ser identificado, discorda apenas nos números: “Os custos saem 20% mais baratos do que fora de um presídio”, confirma. Ambas as empresas, no entanto, não empregam ex-presidiários. Essa parece ser uma prática habitual das empresas que contratam mão-de-obra presidiária, segundo afirma o ex-detento Clau, como pediu para ser identificado, ao relatar um caso ocorrido quando prestava serviço no presídio para uma empresa. “Eu fui procurar o gerente da empresa que atuava no presídio e perguntei se quando eu saísse teria condições de conseguir um emprego registrado, fora do
presídio, na empresa. Ele disse que ia conversar com o diretor. Quando ele foi falar com o diretor, eu estava próximo e acabei escutando a conversa deles. Ele perguntou para o diretor se tinha como conversar comigo e o diretor disse não ter condições, que ele não dava essas oportunidades porque o compromisso com os presos era apenas dentro da penitenciária”. Responsabilidade social A afirmação de Clau condiz com a declaração da gerente comercial de alocação de mãode-obra da Funap, Maria Solange Rosalem Senese, a única representante do governo paulista que falou com a reportagem, explicitando o interesse das companhias em contratar a força de trabalho dos detentos: “as empresas que buscam esse tipo de atividade estão passando por dificuldades financeiras e necessitam de redução de custos para sobreviver, geralmente não o fazem pela chamada responsabilidade social”. Nesse sentido, até projeto de lei de cunho conservador surge visando à privatização da lei penal, com interesses meramente corporativos, e não sociais. Um exemplo é o projeto de lei nº 7.530/06, do empresário e deputado federal Sandro Mabel (PR-GO). De acordo com a proposta, “as empresas que admitirem esses presos teriam um pagamento, receberiam um salário mínimo para que ela admitisse esse preso, nós precisamos dar incentivos às empresas, assim, vão pegar essa mãode-obra porque tem um incentivo, vão ficar recebendo um ano, dois anos de incentivo”. (MZ)
cióloga da Pastoral Carcerária, denuncia um fato que ocorreu com as presas em Pernambuco. “Elas eram obrigadas a fazer 100 rodas de bicicleta diariamente. É um caso de exploração, ainda mais pelo motivo de existir mais de 12 grávidas, que dormiam no chão”, revela.
ficando seis meses montando gaiolas de geladeira”. Jinkings diz que o objetivo dessa situação de trabalho humilhante e degradante é só um: “essa estrutura toda é montada como elemento de persuasão: ‘você está vendo como você se comportou,
Punição As declarações das sociólogas ganham vida no relato do ex-presidiário que prefere ser identificado como Clau. “Eles me colocaram num serviço que tinha que ficar dando martelada em tubos de ferro no chão, eu acabei machucando o pulso, fiquei dois dias nesse serviço, depois, por estar com o pulso machucado, eles me colocaram num serviço mais leve, onde eu acabei
não faça mais isso, porque é isso que você recebe se comportando dessa forma, seja um trabalhador dócil lá fora, aceite as regras do mundo em que a gente vive, porque se você não aceitar é isso que você vai ter aqui’, nada mais do que isso”, desabafa.
Por pouco mais de R$ 300 R$ 465, um salário mínimo, é o valor que recebem os trabalhadores presos. O total ainda é descontado em 10%, para uma conta pecúlio a ser utilizada quando saírem, e em até
25%, que são rateados para garantir pagamento aos
presos que trabalham nas cozinhas, lavanderias e manutenção das unidades prisionais.
A tragédia dos jovens brasileiros Reportagem acompanha o almoço de detentas em um presídio paulista de São Paulo (SP) Cercadas de muros altos ao extremo, de grades e cercar elétricas de extensões longínquas, moças aparentando ter de 19 a 30 e poucos anos, bonitas, vaidosas, algumas maquiadas, outras não, semblantes fechados ou sorrisos estampados, deixam uma incógnita no ar: que rumo tomou suas vidas. O advogado criminalista e autor do livro A prisão, Luiz Francisco Carvalho, tem a resposta: “Elas fazem parte da tragédia social brasileira. A cadeia, além de não exercer nenhum papel educativo para essas pessoas, vai estigmatizar uma massa de jovens, um exército de pessoas que ficará absolutamente sem perspectiva de vida”, relata.
“Trabalhei em outras penitenciárias e ganhava só R$ 50 por mês como cozinheira”, relata presa Ao adentrar uma penitenciária feminina do Estado de São Paulo e almoçar com as presas, a reportagem, que não pode divulgar nem o
nome da penitenciária, tampouco o das presidiárias por motivo de sanções judiciais, já que o Estado proíbe qualquer manifestação de presos, obteve uma série de informações e pôde constatar que as palavras de Carvalho fazem pleno sentido. O almoço com as presas Por volta das 11h30, as presas formam uma fila na porta do refeitório. Munidas de apenas uma colher, são servidas em bandejões pelas próprias colegas de cárcere que executam trabalhos dentro do presídio. A comida é fria e oferecida em pouca quantidade. Sentada à mesa, uma das presas diz que chegou ali há aproximadamente oito anos, aos 19. Hoje, ela tem dois filhos e trabalha oito horas por dia no presídio, num serviço pesado, segundo ela: “Tenho que carpir junto a outras presas o entorno dos muros internos do presídio”. Ganhos com esse serviço: R$ 250 mensais, que, com os descontos, fica por volta de R$ 180. Mas ela diz: “Já trabalhei em outras penitenciárias e ganhava só R$ 50 por mês como cozinheira”, denuncia. Outra detenta, na mesma mesa, diz que a vida no cárcere é dura e quase sem assistência médica nem jurídica, já que o advogado do Estado demora muito para atender as reivindicações das presas, médicos ginecologistas só aparcem de vez em quando e dentista, só para extrair dentes. “Tem muita gente de pena vencida na cadeia ou sem uma assessoria jurídica, também não passamos por médico sem-
pre e os dentistas, quando ficam aqui, é só para tirar dentes, ele não tratam”, declara. Sempre com ares de arrependimento, o que mais se escuta falar entre as jovens é sobre os medos e anseios da volta à sociedade em relação ao trabalho, estudo e relacionamento com os familiares, como relata uma delas. “A dificuldade que vou passar quando sair é voltar a ter uma vida normal, porque eu não tenho estudo, não tenho uma formação e as portas vão se fechar para a gente trabalhar”, lamenta. A socióloga da Pastoral Carcerária Simone Cristina Santos observa que esses medos são reflexos das consequências sociais que levam tantos jovens a lotar as cadeias. “Há um índice muito grande de jovens presos nos últimos dez anos, a juventude pobre está nos presídios, pois não teve acesso à educação, cultura, trabalho e muitos deles encontraram na criminalidade um trabalho”. Fim de almoço e a sensação de opressão é constante, tanto para aqueles que sabem que vão sair – a reportagem – como para muitas daquelas meninas que ficarão ali por muito mais tempo. Estas, talvez mesmo soltas, continuarão sentindo a opressão. A professora de psicologia da Universidade Metodista de Piracicaba, Cleuza Pio, explica: “os ex-detentos são vistos pela sociedade como inadequados, desvalidos, delinquentes e marginais. A prisão é usada apenas como forma de vingança a alguém que infringiu alguma lei dentro da sociedade civil”. (MZ)
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brasil
Até agronegócio rejeita arroz da Bayer Rogério Tomaz Jr.
SEGURANÇA ALIMENTAR Grandes rizicultores e Embrapa se opõem à liberação do grão elaborado pela Bayer Dafne Melo da Redação APÓS A soja, o milho e o algodão, agora é a vez do arroz correr o risco de ter sua versão transgênica liberada para o comércio. Mas, a julgar pelos resultados de audiência pública realizada no dia 18 de março pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), dessa vez, a aprovação irá encontrar muito mais obstáculos. Até entidades do agronegócio se colocam contra a liberação, assim como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), geralmente favorável aos transgênicos. A Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz), Estado responsável por 62% da produção nacional, declarou-se contra a liberação, assim como a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul). “Foi algo inédito, essas entidades estavam lá praticamente com a mesma posição dos movimentos da Via Campesina”, pontua Leonardo Melgarejo, agrônomo e representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio. Rafael Cruz, cientista social e coordenador da campanha de engenharia genética do Greenpeace, também se declarou surpreso com a nova posição dessas entidades. “No passado, a Farsul defendeu a soja transgênica, assim como a Embrapa. Claro que os argumentos que trazem não são novos, mas esse posicionamento abertamente contrário, ainda que por questões mais econômicas, é algo novo”, avalia. Prejuízos Cultivos transgênicos encontram dificuldades de comercialização em diversos mercados, mas, no caso do arroz, a rejeição é quase total.
Somente nos Estados Unidos a comercialização foi liberada; porém, após um caso grave de contaminação em 2006 (ver ao lado), os agricultores estadunidenses têm ignorado a semente da Bayer. Segundo Cruz, muitos países já estão procurando se defender de uma eventual investida da empresa alemã. A Tailândia, por exemplo, um dos principais produtores mundiais do grão, colocou regras muito duras para a aprovação e, nas Filipinas, um pedido de liberação foi embargado judicialmente. Além das complicações para exportar, agricultores têm sentido no bolso o que movimentos sociais e as entidades ambientalistas alertavam desde o início: a produção transgênica é menos custosa apenas a curto prazo. No Brasil, por exemplo, os produtores de soja geneticamente modificada já começaram a ter prejuízos. Isso porque as ervas daninhas criaram resistência ao herbicida da Monsanto, vendido de forma casada com a semente. Assim, além dos royalties que são pagos a cada safra, o uso de agrotóxicos não diminuiu e em alguns casos até aumentou, ou seja, os custos de produção subiram. De acordo com Melgarejo, um representante da Bayer declarou, durante a audiência, que o herbicida de sua empresa teria uma vida útil de dez anos. Isto é, após esse período, já não seria mais eficiente. Saúde Para além de questões econômicas, os organismos geneticamente modificados (OGMs) são rejeitados por entidades ambientalistas e de direitos do consumidor, além de movimentos sociais, por conta dos efeitos que podem causar na saúde humana e no meio ambiente e também por serem parte de um projeto de dominação das transnacionais sobre os recursos naturais e a agricultura. No caso do arroz, o herbicida utilizado, o glufosinato de amônio, é considerado altamente nocivo. O parlamento europeu o qualifica como cancerígeno, mutagênico e tóxico e não permite seu uso. Testes feitos em ratos mostraram que a ingestão da substância gerou alterações no sistema
Audiência pública da CTNBio realizada no dia 18 de março, em Brasília
nervoso, reações alérgicas e convulsões. Andrea Salazar, do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que esteve presente na audiência, acredita que as informações ali apresentadas pela empresa são falhas e insuficientes. A advogada e consultora aponta que isso, entretanto, não é uma surpresa quando se leva em conta os casos da soja, milho e algodão. “Fica evidente a deficiência e a precariedade das informações apresentadas pelas empresas quando entram com pedido de liberação; há um espectro de avaliação de risco muito limitado, tanto no aspecto da saúde como de meio ambiente”, pontua. Ela critica a atuação da CTNBio, que, na sua opinião, mantém um método de análise “precário e irresponsável, o qual põe a população – no caso do arroz, ainda mais – em risco”. Leonardo Melgarejo explica que, infelizmente, muitos conselheiros afirmam que analisam a questão apenas do ponto de vista da biossegurança, e não político ou comercial. “A ciência não é neutra, e nossas escolhas têm implicações políticas e econômicas”, contesta.
Nos EUA, experimentos da Bayer geraram contaminação e prejuízo da Redação Em agosto de 2006, o Ministério da Agricultura estadunidense emitiu um relatório em que admitia a contaminação de sua produção de arroz pela variedade transgênica da Bayer, cuja liberação foi debatida em reunião realizada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). A descoberta foi feita somente porque um dos navios que chegou à Europa com arroz estadunidense passou por uma inspeção de rotina. Detectada a contaminação, foram exigidas explicações do governo dos Estados Unidos, que admitiu a falha e iniciou uma pesquisa que, após 14 meses, continuou inconclusa. Em 2007, o Greenpeace decidiu fazer seu próprio relatório sobre o caso. De acordo com o documento, o evento foi o “maior desastre comercial e financeiro na história do setor de arroz dos Estados Unidos” e gerou prejuízos globais que podem variar de 741 milhões de dólares – na melhor das hipóteses – e 1,285 bilhão de dólares. Estima-se que 63% das expor-
tações foram afetadas; 30 países confirmaram o recebimento de grãos contaminados e fecharam seus mercados ao produto estadunidense, incluindo toda a Europa. Com o episódio, a Bayer acumula centenas de processos judiciais. Em larga escala Rafael Cruz, cientista social e coordenador da campanha de engenharia genética do Greenpeace, chama atenção para o fato de que toda essa contaminação ocorreu por meio dos campos experimentais. “Se um plantio experimental já gerou uma contaminação desse tamanho, imagine se o plantio em larga escala para comercialização ocorrer”, argumenta. Andrea Salazar, do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), conta que técnicos presentes na audiência defenderam que o potencial de contaminação no caso do arroz pode ser avassalador. “A maioria da produção é feita em áreas irrigadas, e como você vai separar a água? Em plantações diferentes corre a mesma água. Isso quase impossibilita a separação das lavouras”, comenta. (DM)
ARTIGO
Audiência pública expõe distorções da “ciência” e CTNBio Rogério Tomaz Jr. Na audiência em que se discutiu a liberação do arroz transgênico da Bayer, mais uma vez foram expostas as enormes contradições e fragilidades da CTNBio. Os problemas começaram já na escolha do local, o auditório Freitas Nobre, no subsolo da Câmara dos Deputados. O espaço comporta menos de 70 pessoas sentadas. No mesmo horário, a poucos metros dali, o auditório Nereu Ramos, com capacidade dez vezes maior, estava vazio. Walter Colli, presidente da Comissão, justificou: “foi esse que nos deram”, disse, lacônico e pouco incomodado com as dezenas de pessoas que ficaram em pé, sentadas no chão ou simplesmente desistiram de assistir à audiência. Questionado pela advogada Andréa Salazar, do Idec, a respeito da decisão sobre o pedido de confidencialidade para boa parte das informações do processo em discussão, solicitado pela Bayer, Colli foi ríspido ao afirmar sua própria autoridade: “Quem pauta a CTNBio não é a senhora, sou eu!”, em atitude que não é inédita. A postura recorrentemente arbitrária do seu presidente reflete em boa medida o excesso de poder conferido à co-
missão. Um colegiado formado por cerca de 50 pesquisadores, em grande medida financiados ou vinculados de alguma forma às empresas de biotecnologia (com algumas exceções, entretanto), toma decisões praticamente soberanas com relação a questões que influenciam a vida de toda a população brasileira. Durante a audiência, a grande surpresa foi a posição do agronegócio, representado pela Federarroz. Falando também em nome da Farsul, principal entidade gaúcha dos ruralistas, Renato Rocha, presidente da Federarroz, foi enfá-
tico ao afirmar que o setor é contrário à liberação do arroz transgênico. A posição, obviamente, se deve à inviabilidade do produto no mercado local e internacional. A forte rejeição do mercado, porém, não foi suficiente para conter algumas defesas exacerbadas em favor dos organismos geneticamente modificados. Foi o caso do professor Marcelo Gravina de Moraes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele se valeu de um raciocínio guiado menos pela razão do que pela vontade própria para afirmar, empolgado: “o mun-
do quer o arroz transgênico!”. As provas, segundo sua lógica única, são a quantidade de experimentos e pedidos para autorização de plantio comercial por parte... das empresas de biotecnologia. O professor endossa um manifesto feito sob medida para os interesses de empresas como Bayer, Monsanto, Dow Química, Cargill, Syngenta e outras. A carta, divulgada no final de 2003, propõe, entre outros itens: “Desobrigar a CNTBio da convocação de audiências públicas quando da liberação comercial de OGM (Art. 13º), uma vez que Rogério Tomaz Jr.
Apenas 70 pessoas puderam acompanhar a audiência no pequeno auditório
a sociedade terá representantes com direito a voto nas decisões da CTNBio”. Ou seja, pelo desejo de Marcelo e seus colegas cientistas, todas as informações relativas à liberação de transgênicos ficariam confinadas às reuniões dessa comissão, que, segundo eles, teria inegável natureza democrática e inquestionável respeito aos interesses maiores da sociedade brasileira. Durante a audiência, Sarah Agapito, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na área de genética, demonstrou em poucos minutos os equívocos e métodos primários – e altamente inseguros quanto à confiabilidade – dos testes de composição química e molecular contidos no relatório apresentado pela Bayer à CTNBio para justificar o pedido de liberação comercial. Após a breve exposição de Sarah, era visível o constrangimento dos representantes da Bayer e dos cientistas pró-transgênicos presentes. Ao final, foi possível ouvir as lamúrias de um membro da CTNBio, Francisco Gorgonio da Nóbrega, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Visivelmente irritado e desgostoso com a linha predominante na audiência, amplamente desfavorável à liberação do arroz transgê-
nico, saiu do pedestal da neutralidade científica e vaticinou sua opinião: “A resistência aos transgênicos não é pouco irracional. É completamente irracional”, comentou em tom provocativo enquanto passava ao lado de representantes das entidades que questionam as práticas da Comissão e das empresas. A irritação do professor era compreensível. Pouco antes, até mesmo a Embrapa, contumaz apoiadora dos OGMs, havia expressado sua posição contrária à liberação do arroz da Bayer. Entre outros motivos, a empresa estatal avalia que ele representa um sério risco à segurança alimentar e à biodiversidade do cereal no Brasil, uma vez que não há garantias de que as espécies nativas e silvestres não se cruzem com a variedade transgênica, o que poderia gerar consequências imprevisíveis sob as dimensões ambientais, econômicas e sociais. E ele sabe que não pode acusar de irracionais os pesquisadores da Embrapa. Rogério Tomaz Jr. é jornalista, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e militante do direito humano à alimentação adequada. (A versão na íntegra do artigo está disponível em: www.direitos.org.br)
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brasil José Cruz/AB
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Ditadura presente Está claro que a transição da ditadura civil-militar (1964-1985) para o regime de democracia burguesa não conseguiu resolver conflitos sobre os crimes praticados pelo Estado e os resquícios autoritários impregnados em setores da direita, os quais atuam influenciados pela cultura escravocrata e oligárquica ainda presente nas elites brasileiras. Por isso os frequentes ataques contra as tentativas de democratização. Alerta cancerígeno Em seu livro sobre a transnacional estadunidense Monsanto, a jornalista francesa Marie-Monique Robin comprovou a relação entre os produtos químicos da empresa e o crescimento dos casos de câncer em várias partes do mundo. A maior parte dos governos continua omissa diante dos danos causados pela Monsanto, em especial os agrotóxicos usados nas plantações transgênicas. Mais uma tragédia anunciada.
Na Praça dos Três Poderes, indígenas comemoram a decisão de manter a demarcação em faixa contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
Em Roraima, uma conquista histórica dos povos indígenas RAPOSA SERRA DO SOL Para antropólogo, decisão do STF devolve aos indígenas a confiança sobre seus direitos constitucionais Patrícia Benvenuti da Redação
“ISSO É uma vitória e o povo está comemorando”. A afirmação é do cacique Dejacir Melchior da Silva, da Aldeia Maturuca, localizada na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de manter a constitucionalidade da demarcação contínua da reserva. Logo após o fim do julgamento, na noite do dia 19 de março, indígenas da Vila Surumu, na entrada da área, agradeciam com música e dança a decisão dos ministros – por dez votos a um. O aval do STF promete dar fim a uma disputa iniciada há mais de 30 anos na região, opondo indígenas e latifundiários produtores de arroz. Além disso, na avaliação do antropólogo Paulo Santilli, da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), a decisão serve para reforçar a confiança dos povos indígenas sobre seus próprios direitos constitucionais, abalada pela protelação do processo na Justiça. “Essa confiança vem respaldar as iniciativas e as lutas pelo reconhecimento desses direitos”, considera.
O cacique Dejacir Melchior acredita que, agora, os latifundiários não devem mais exercer qualquer pressão sobre os indígenas. Segundo ele, os arrozeiros já retiraram toda sua produção e até mesmo o que haviam plantado. O antropólogo também assegura que a demarcação foi a melhor saída para resolver os problemas
de uma região marcada, desde o século 19, por conflitos de extrema violência, sobretudo cometida contra os indígenas. “Finalmente, estão dadas as condições básicas para uma convivência menos violenta entre os povos originários e a sociedade regional. Essa era a base do próprio ordenamento jurídico do país, que ainda não se fazia observar e respeitar nessa região”, pontua. Após as festividades, uma das primeiras medidas das comunidades indígenas, conta Dejacir, será pôr em prática algumas de suas resoluções para a área, como a ocupação plena das terras e a recuperação ambiental de trechos degradados. Saída dos arrozeiros O processo sobre a demarcação da reserva, que reúne 1,7 milhão de hectares e abriga cerca de 18 mil indígenas de várias etnias, levou sete meses para ser concluído pelo STF, com sessões em agosto e dezembro de 2008 e março deste ano. No julgamento do dia 19, os ministros também acertaram que o prazo para a saída dos grandes produtores de arroz e de 50 famílias que permanecem no local será definido pelo relator do processo, Carlos Ayres Britto, e pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), responsáveis por supervisionar a execução da sentença. No dia 25 de março (após o fechamento desta edição, no dia 24), Britto e o ministro da Justiça, Tarso Genro, deveriam realizar uma reunião para definir detalhes sobre a saída dos latifundiários do local. A decisão final deverá levar em conta um levantamento do Ministério da Justiça sobre a situação da ocupação da área pelos produtores de arroz. De acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), devem ser destinados R$ 12 milhões em indenizações. O cacique Dejacir Melchior acredita que, agora, os latifundiários não devem mais exercer qualquer pressão sobre os indígenas. Segundo ele, os arrozeiros já retiraram toda sua produção e até mesmo o que haviam plantado. “Acho que eles estão cientes da situação, porque dependia só do Supremo”, considera. “Com certeza já se decidiram [em retirar a produção] para não terem prejuízo”. Juntamente com a decisão de manter a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o STF estabeleceu 19 condicionantes (ver entrevista na página 7) que servirão de base para futuras demarcações e para aquelas que já estão em andamento. Entre as condições, estão a proibição da
ampliação de terras indígenas já demarcadas, mesmo de áreas reconhecidas antes da Constituição de 1988; o acesso da Polícia Federal e do Exército à área sem necessidade de autorização da Funai; e a garantia de acesso de visitantes e pesquisadores ao Parque Nacional do Monte Roraima, dentro da reserva. Povos afetados De acordo com o cacique, os indígenas ainda não realizaram uma avaliação a respeito dessas condicionantes, discussão que deve ser realizada, em breve, junto aos seus assessores. No entanto, já é possível prever que a proibição de ampliar as áreas deve afetar alguns povos. “Roraima mesmo tem uma comunidade que foi demarcada em uma ilha, e hoje ela está sofrendo, vendo que não dá mais para ampliar”, lamenta. Já o antropólogo Paulo Santilli ressalta que a maioria das condições repetem artigos da legislação, o que reforçou ainda mais uma decisão em favor dos índios da Reserva Raposa Serra do Sol. Ele alerta, no entanto, para a definição de um marco legal no STF para processos de demarcação. No entendimento dos ministros, devem ser reconhecidas as ocupações indígenas que ocorriam em outubro de 1988, quando foi promulgada a atual Constituição.
Santilli, porém, recorda que, em vários momentos da história, os indígenas foram impedidos de permanecer em suas terras tradicionais. “Nas áreas de colonização mais antigas, na faixa litorânea, como é o caso do Nordeste e do Sul do país, temos uma colonização ocupadora, que promoveu o desterro de vários grupos e povos que, nos últimos anos, vêm reivindicar as terras das quais foram retirados”, destaca.
Para os indígenas, já é possível prever que a proibição de ampliar as áreas deve afetar alguns povos Para ele, tal interpretação do STF deve dificultar a demarcação desses territórios e a luta das comunidades em favor de reconhecimento. “Esse é um efeito complicador, porque vai exigir um esforço historiográfico maior de demonstrar que esses povos estiveram lá e que, em alguma medida, foram retirados ou impedidos de permanecer nos seus territórios tradicionais”, argumenta.
COOPERATIVA CENTRAL DE CRÉDITO RURAL DOS PEQUENOS AGRICULTORES E DA REFORMA AGRÁRIA – CREHNOR CENTRAL CNPJ: 05.879.577/0001-39 / NIRE: 43400088547 DE 28/08/2003 ADENDO DE ALTERAÇÃO AO EDITAL DE CONVOCAÇÃO PARA ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA e ORDINÁRIA publicado no Jornal BRASIL DE FATO, edição nº 316, de 19 a 25 de março de 2009
O Coordenador Geral da Cooperativa Central de Crédito Rural dos Pequenos Agricultores e da Reforma Agrária – CREHNOR CENTRAL, no uso das atribuições que lhe confere o Estatuto Social, vem retificar / alterar o EDITAL DE CONVOCAÇÃO publicado no Jornal BRASIL DE FATO, edição nº 316, de 19 a 25 de março de 2009, fl. 06, no que se refere ao item 2 da AGO, no qual se lê: “2) Eleição dos membros do Conselho de Administração e Diretoria”. Realizada a presente alteração do item 2 da Assembleia Geral Ordinária, no restante, ratificamos o Edital de Convocação publicado na edição de 19 a 25 de março de 2009, em todos seus termos. Sarandi – RS , 26 de março de 2009. Valdemar Alves de Oliveira Coordenador Geral
Diretoria ampla Toda vez que “estoura” na mídia algum “escândalo” nas esferas públicas ou privadas, a sociedade fica sabendo de situações inacreditáveis que eram totalmente desconhecidas do grande público. No último “escândalo”, que envolve altos funcionários do Senado Federal, foi tornado público que aquela casa legislativa tem “apenas” 181 diretores com salários acima dos 18 mil reais por mês. Os senadores não sabiam? Pesos diferentes Fazendeiros de várias partes do Brasil invadiram as terras públicas da reserva indígena de Roraima para plantar arroz, ganharam dinheiro durante anos e agora querem indenização de R$ 80 milhões para sair da reserva, mesmo com transferência garantida pelo governo para outras áreas daquele Estado. Por que o mesmo tratamento não é estendido para os sem-terra e os sem-teto que ocupam áreas para morar e trabalhar? Ladrão revisado Na mesma linha da revisão histórica da Folha de S. Paulo, a TV Brasil, órgão do governo federal, deu uma boa ajuda para recuperar a imagem pública do presidente cassado Fernando Collor de Mello, agora senador pelo PTB-AL. A emissora estatal colocou no ar entrevista em que Collor diz se arrepender do confisco da poupança, em 1990. Só falta esquecer que ele e PC Farias cobravam comissões nas obras públicas. Democratização A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, acaba de propor a reforma da Lei da Radiodifusão, que limita a concentração dos meios, reduz o número de concessões de rádio e TV por empresa (máximo 10) e estabelece que 33% dos canais em funcionamento devem ser de entidades sem fins lucrativos. Já é um avanço no rumo da democratização, o que tem sido ignorado pelos governos brasileiros. Acordo senatorial Preocupados com o noticiário sobre desmandos administrativos, mordomias e empreguismo no Senado Federal, alguns senadores se reuniram em jantar, na semana passada, e fizeram um acordo para desviar a agenda dessa onda “desmoralizante”. Além de Heráclito Fortes (DEM), Renan Calheiros (PMDB) e outros caciques da casa, participaram do acordo os senadores Aloízio Mercadante e Ideli Salvatti, do PT. Execução política Conhecido militante da luta por moradia em Nova Iguaçu, no Estado do Rio de Janeiro, Oséias José de Carvalho, de 43 anos, foi brutalmente assassinado na manhã de 19 de março, perto de sua casa. O crime é semelhante ao que vitimou outras lideranças de movimentos sociais recentemente em favelas e bairros populares do Rio. Tudo indica que se trata de morte encomendada por motivos políticos. Agenda combativa Só para lembrar, no Fórum Social Mundial realizado em Belém, no Pará, os movimentos sociais aprovaram uma agenda de luta para 2009, a qual inclui, entre outras, as mobilizações para a Ação Mundial Contra o Capitalismo e a Guerra (28 de março a 4 de abril), Dia Internacional de Luta pela Terra (17 de abril) e Dia Internacional dos Trabalhadores (1º de maio). Vamos às lutas!
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brasil José Cruz/ABr
Para liderança, condicionantes do STF ferem Constituição
Índia olha para prédio do STF durante intervalo do julgamento da legalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima
DIREITOS INDÍGENAS Em entrevista, Júlio Macuxi discute as consequências das restrições impostas aos indígenas brasileiros e as futuras batalhas dos povos no reconhecimento de suas terras e de seus direitos Patrícia Benvenuti da Redação AINDA QUE A demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, seja considerada uma vitória para os povos indígenas, as condicionantes impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do dia 19 podem representar uma ameaça aos direitos indígenas já conquistados. Válidas não somente para a Raposa Serra do Sol, mas também para futuros processos demarcatórios ou para aqueles já em andamento, as 19 condicionantes determinam, entre outros pontos, a impossibilidade de ampliação de áreas indígenas demarcadas e a liberação da implementação de projetos de infraestrutura sem consultar as comunidades. Na avaliação do líder indígena Júlio Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), várias dessas condi-
ções descumprem os direitos dos povos indígenas expressos na Constituição brasileira. Ele recorda, porém, que o desrespeito do poder público às nações originárias existe desde que a Carta Magna está em vigor. Macuxi lembra que a Constituição brasileira prevê a demarcação de todas as terras indígenas brasileiras em até cinco anos após sua promulgação. “Isso foi dito, mas o poder público, o Ministério Público, o governo, o Congresso, o Supremo e a Justiça não obedeceram esse prazo”, avalia. Na entrevista a seguir, Macuxi fala sobre as consequências das restrições impostas pelo STF aos indígenas brasileiros e as futuras batalhas dos povos no reconhecimento de suas terras e de seus direitos.
O que será feito com demarcações que já foram feitas em ilhas? Como vai ficar a situação delas, uma vez que o Supremo decidiu que o formato das terras indígenas tem que ser contínuo? Brasil de Fato – Qual o significado da demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol?
Júlio Macuxi – A demarcação contínua abrange e garanJosé Cruz/ABr
te a cultura dos povos da Raposa Serra do Sol e também de outras terras indígenas. Ela garante não só a cultura, mas a sobrevivência física dos povos indígenas e também a possibilidade de crescimento em relação à pecuária, à produção agrícola, de hortaliças, sítios, pomares, e com a possibilidade de colocar seus produtos 100% naturais no mercado. Por exemplo, no município de Normandia, em Roraima, a economia funciona com recursos das comunidades indígenas. Esses investimentos geram um crescimento econômico e contribuem com o Estado. Lamentavelmente, o governo estadual se colocou na posição de anti-indígena e aí, consequentemente, excluiu os povos indígenas de Roraima, não só da Raposa Serra do Sol, de seu plano de desenvolvimento econômico, social e ecológico. Junto com a decisão sobre a reserva, o STF estabeleceu 19 condicionantes válidas não só para esse caso, mas para processos demarcatórios futuros ou já em andamento. De que forma essas condicionantes podem ser um entrave às conquistas indígenas?
O primeiro ponto é a decisão da demarcação das terras indígenas ser contínua, e não em ilhas. Mas, ao mesmo tempo em que ele define que deve ser contínua, veta a ampliação de terras indígenas. O que será feito com demarcações que já foram feitas em ilhas? Como vai ficar a situação delas, uma vez que o Supremo decidiu que o formato das terras indígenas tem que ser contínuo? Como as comunidades vão viver, se há ausência do poder público, de políticas públicas tanto no Congresso como nos governos estadual e municipal? Falta essa política pública.
Em relação à condicionante que prevê que áreas já demarcadas não podem mais ser ampliadas, inclusive aquelas que tiveram demarcação antes da Constituição de 1988, como essa restrição prejudica os direitos indígenas?
Ministros do STF durante o julgamento
Ela prejudica bem concretamente. No início das demarcações, o próprio órgão indigenista foi, em certos momen-
tos, contra os povos indígenas. Ou seja, na época em que estavam demarcando, os povos não tinham instrução para lutar pelos seus direitos. Assim, demarcaram terras pequenas. E hoje essas terras pequenas são um agravante, como no caso dos povos Guarani, pois entra a questão da cultura, da sobrevivência cultural, que não existe mais. Essas terras indígenas têm que ser ampliadas, é um direito originário das comunidades. O caso dos Guaranikaiowá, no Mato Grosso do Sul, é um exemplo disso?
Isso, essas terras têm que ser ampliadas. Agora, se há outro mecanismo de ampliação, deve ser colocado claro para se seguir essas regras. Essas terras que foram demarcadas em áreas pequenas tem que ser ampliadas. A não ser que queiram, de fato, acabar com aquele povo.
Vai construir uma hidrelétrica, ocorrem consultas, audiências públicas, tem tudo isso. E para os povos indígenas? Não? É um absurdo O STF também estabeleceu um marco temporal para processos de demarcação que determina que devem ser reconhecidas as ocupações indígenas que ocorriam em outubro de 1988, quando foi promulgada a atual Constituição. Mas como fica a situação dos povos que, por alguma razão, não puderam mais continuar em suas terras tradicionais?
O Supremo e o próprio poder público não cumpriram com a Constituição, porque ela prevê que, a partir de sua promulgação, todas as terras indígenas do Brasil têm que ser demarcadas em até cinco anos. Isso foi dito, mas o poder público, o Ministério Público, o governo, o Congresso, o Supremo e a Justiça não obedeceram esse prazo. O segundo ponto é que os povos
indígenas já habitavam e habitam o Brasil há muito tempo. Culturalmente, eles foram nômades, e só pararam porque o Brasil foi invadido, não descoberto. Esses povos têm seu direito, e nós vamos lutar por ele, para que seja de fato respeitado. E a Constituição, quando diz que é o direito originário, tem que ser respeitada. Uma das condicionantes, a de número 17, determina que a implantação de projetos de infraestrutura, como alternativas energéticas e de malha viária, não precisarão mais da consulta das comunidades indígenas envolvidas – o que contraria uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Isso não compromete os direitos indígenas?
Isso contraria a própria Constituição e outras leis brasileiras. Por exemplo, os povos indígenas não têm direito a consulta, mas outros cidadãos brasileiros têm direito. Vai construir uma hidrelétrica, ocorrem consultas, audiências públicas, tem tudo isso. E para os povos indígenas? Não? É um absurdo. É um direito de livre expressão que os povos indígenas têm, mas, se não for respeitado, nós vamos questionar essa decisão.
Há mais alguma condicionante considerada prejudicial aos povos indígenas?
Tem a questão das Forças Armadas, a construção de bases militares. Nós nunca fomos contra as Forças Arma-
das, principalmente o Exército Nacional. Acontece que o próprio Exército está errando muito, e ele ignora as comunidades. Vai lá e constrói uma base próximo ou dentro de uma comunidade indígena e acha que está tudo legal. Isso é um ponto. O outro é que [o Exército] vai contra suas atribuições, porque sua atribuição não é abusar de mulheres indígenas, não é invadir comunidades. E por que hoje o Brasil tem a ausência do poder público na fiscalização de drogas e armas na nossa fronteira? Porque o Exército está ausente. Na sua opinião, como essa demarcação deveria ter sido feita? Haveria necessidade, por exemplo, dessas condicionantes?
Foram abertos novos precedentes que não estavam dentro do pedido da ação, e colocaram alguns pedidos que nenhuma das partes fez. Acho que isso é uma ilegalidade. A Raposa Serra do Sol foi julgada contínua, trabalhamos para isso e conseguimos, mas acho que o Supremo, nesse sentido, teria que esperar a manifestação do Congresso, que estaria discutindo as leis que dizem direito aos povos indígenas, no caso do Estatuto. Então, o STF legislou e atropelou o poder no Brasil.
O que deve ser feito em relação a essas condicionantes contrárias aos interesses indígenas?
Nós estamos estudando. Se houver algo grave, vamos recorrer para reverter questões que não condizem com a realidade ou que atropelam as comunidades indígenas. Valter Campanato/ABr
Na reserva, indígenas acompanham o julgamento pela tevê
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brasil
Violência de natureza exploratória RECURSOS NATURAIS Últimas reservas de biodiversidade do mundo se transformaram nos principais palcos de conflitos armados Reprodução
Eduardo Sales de Lima da Redação ENTRE 1950 e 2000, mais de 90% dos principais conflitos armados (definidos como aqueles resultantes em mais de mil mortes) em todo o mundo aconteceram em países que abrigam um dos 34 hotspots de biodiversidade. As informações constam do estudo Guerra nos Hotspots de Biodiversidade, ligado à ONG Conservação Internacional e publicado em fevereiro na revista científica Conservation Biology.
Analista ressalta que o processo histórico de exploração em localidades com rica biodiversidade fez com que as populações locais perdessem a capacidade de gerar unidade, identidade e autoorganização Hotspot é a denominação dada por alguns cientistas a áreas repletas de diversidade vegetal e animal que correm risco de degradação ambiental. O sociólogo Luiz Fernando Novoa Garzon, da Uni-
Patrulha das Farc, na Colômbia: se o país fosse democrático e pacífico, a riqueza ficaria com o povo
versidade Federal de Rondônia (UNIR), considera tais regiões como “depósitos de matérias-primas” que ainda testemunham conflitos resultantes de um processo histórico de exploração e onde a maioria de seus habitantes vive na pobreza. Durante os 50 anos estudados, 81% dos conflitos ocorreram diretamente na região específica dos hotspots, como a Guerra do Vietnã (1965-
1975), ocorrida na área da Indo-Birmânia. Na ocasião, os Estados Unidos utilizaram o elemento químico “agente laranja” para destruir a cobertura florestal e os mangues da costa do país atacado. Não tão distante, no hotspot que compreende as florestas da África Oriental, a extração de madeira foi um dos principais motivos que impulsionaram a violência em zonas como o leste da República De-
mocrática do Congo (ou Congo-Kinshasa). O relatório também traz informações adicionais em relação ao século 21, e aponta que, somente no ano de 2004, ocorreram 14 conflitos em hotspots. “Divide et impera” Os hotspots abrigam mais da metade de todas as espécies de plantas do planeta e pelo menos 42% de todos os
ONGs estrangeiras querem “mundializar” ecossistemas
“Intervenção militar na Amazônia não é hipotética” Para analistas, algumas ONGs funcionam como braços de países hegemônicos, sobretudo dos Estados Unidos
Agências também pregam o conceito neoliberal de “desenvolvimento sustentável” da Redação O estudo Guerras nos hotspots de biodiversidade, realizado pela ONG Conservação Internacional (CI), termina com a conclusão de que “os grupos internacionais de conservação precisam manter programas em regiões abaladas pela guerra se quiserem ser eficazes na conservação da biodiversidade mundial”. À primeira vista, um discurso politicamente correto. Mas o que está por trás da oratória dessa e de outras ONGs é um desejo velado. O sociólogo Luiz Fernando Novoa Garzon, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), ressalta que há, nessa identificação dos hotspots, a pretensão que eles se transformem em regiões “mundializadas”. “O que essas organizações fazem é uma antecipação, um exercício, um ensaio do que seria um governo mundial, que não questiona de forma mais pesada a privatização dos meios produção”, explica. Ele vê essas agências funcionando como uma espécie de braço inteligente de um governo mundial do capital, e que vai se legitimando gradativamente, se valendo até de aparentes atritos com os países hegemônicos e contando com a participação de universidades locais dentro de seus quadros decisórios. O exemplo mais próximo é a presença de Gustavo Fonseca, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no Conselho Deliberativo da CI.
“Processo refinado” A “boa intenção” não ofusca o que está por trás. Como o clássico processo de exploração neocolonial não funciona
mais devido à escassez dos recursos naturais do planeta, as empresas transnacionais desenvolveram formas mais “refinadas” de se apoderar deles. Nesse contexto trabalham algumas agências que operacionalizam uma das etapas desse processo mais cauteloso. “Para os Estados hegemônicos, é preciso fazer um controle com maior precisão para que se possa estabelecer apropriações mais refinadas, o que exige administrações no próprio local, dentro das florestas e perto dos recursos hídricos”, explica Novoa. De certo modo, essa mundialização dos hotspots já está acontecendo, na avaliação de Ana Esther Ceceña, socióloga da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). Quando conversou com a reportagem do Brasil de Fato, por ocasião do Fórum Social Mundial realizado em Belém (PA), ela denunciava que ONGs como a CI, a “The Nature Conservancy” e outras vêm implantando, ao redor do mundo, “modelos de conservação extrema”, com o fim de cercar um território e pesquisá-lo. O objetivo, segundo conta, é mercantilizar e patentear descobertas junto a grandes empresas farmacêuticas. Sobre isso, o comportamento dos acionistas dos laboratórios farmacêuticos diante da atual crise econômica já deram o sinal de que a violência em busca de recursos poderá aumentar. No começo de março deste ano, houve uma fusão histórica entre as empresas farmaco-químicas Merck e sua maior rival, a Schering-Plough, ambas estadunidenses, posicionadas entre as maiores do mundo. “Essas fusões, decorrentes de grandes crises do sistema capitalista, trazem seus efeitos; en-
tre eles, a concentração de capital e o maior poder de intervenção planetária”, analisa Elder Andrade de Paula, sociólogo da Universidade Federal do Acre (UFAC). Esses laboratórios têm influência, inclusive, na região amazônica.
Concepção insustentável Mundializar para explorar não basta. É preciso que as populações dos hotspots estejam integradas a uma concepção de exploração da biodiversidade. “Elas [algumas ONGs] não fazem nenhuma crítica ao modelo [neoliberal]”, atesta Luiz Fernando Novoa. Pelo contrário: segundo ele, mesmo a crise econômica tendo mostrado o fracasso do neoliberalismo, essas organizações ainda consideram a disputa pelo mercado como o farol que guia as estratégias de desenvolvimento; e que só a partir delas é que se pode pensar nas diretrizes que visam à conservação da natureza. O sociólogo se refere à apologia que elas fazem do desenvolvimento sustentável, ideário que, segundo ele, é re-
vertebrados. Além disso, a maior parte do grupo de 1,2 bilhão de pessoas mais pobres do mundo, que dependem dos recursos dos ecossistemas naturais para a sua sobrevivência diária, vive nessas regiões. Novoa ressalta que o processo histórico de exploração em localidades com rica biodiversidade fez com que as populações locais perdessem a capacidade de gerar unidade, iden-
tidade e auto-organização, “o que agora facilita esse novo ciclo de ocupação mais inteligente, sem a agressividade do sistema de exploração clássico, colonial”. Ao longo desse processo, as populações mais desprotegidas socialmente foram se deslocando para a maior parte desses hotspots. “Historicamente, ficou o resíduo populacional que perdeu toda a identidade ao longo de vários séculos de exploração, a escória que sobra de um processo histórico de saque dos recursos naturais”, explica Novoa. Para o jornalista austríaco Klaus Werner-Lobo, pesquisador da ação de empresas transnacionais ao redor do mundo, o princípio maquiavélico exercido sobre os pobres pelos ricos cai como uma luva nesse caso. Para ilustrar, ele cita a situação colombiana. “Divide et impera: se a Colômbia fosse um país democrático, pacífico e com estabilidade social, a riqueza ficaria com o povo e não seria tão fácil explorá-la”, cita o jornalista, lembrando os confrontos entre as elites e as guerrilhas colombianas, em grande parte alimentados pelo governo estadunidense. Com a atual crise econômica mundial, os conflitos, seja na Colômbia ou na África, tendem a aumentar. De acordo com Elder Andrade de Paula, sociólogo da Universidade Federal do Acre (UFAC), se, a médio prazo, for confirmada uma saída “por cima” do capital, a partir deste ano as tensões vão se multiplicar nos hotspots. “São as últimas reservas”, lembra ele.
gido por práticas comerciais fundadas no neoliberalismo. Para seu colega da UFAC, essa hegemonia do pensamento neoliberal construiu “seus laços” de forma tão bem articulada e sólida, “que mesmo tendo sua base já completamente negada, o castelo permanece de pé, e é sobre ele e com ele que as ONGs atuam”, critica Elder. A manutenção de práticas que visam ao desenvolvimento sustentável ocorre por pressão do discurso dominante, mas também por ações corporativistas. Há, na região amazônica, o chamado Grupo de Trabalho da Amazônia (GTA), composto por mais de 600 organizações, desde cooperativas de pescadores até sindicatos. Criada por iniciativa do Banco Mundial, ainda na década de 1990, a rede atua na ratificação dessas políticas direcionadas ao desenvolvimento sustentável. “Só vai ter apoio de organizações aquele que aceitar entrar nesse esquema de produção”, pontua Elder. (ESL) US ARCWEB
Soldado estadunidense durante a guerra do Vietnã
da Redação A conclusão do estudo Guerras nos hotspots de biodiversidade (ver matéria nesta página) cumpre, pelo menos, duas funções: uma, clara, de “puxar a sardinha” para o protagonismo das ONGs na questão da proteção da biodiversidade mundial; outra, nem tanto: a de servir aos interesses intervencionistas dos países hegemônicos, sobretudo dos Estados Unidos.
Segundo socióloga, algumas ONGs e agências atuam “como diretórios nos quais participam membros do departamento de Defesa e de Saúde dos Estados Unidos” Segundo o sociólogo Luiz Fernando Novoa Garzon, ONGs como essa levantam informações de distúrbios sociais ou de degradação ambiental de determinado hotspot (região rica em biodiversidade) e apresentam a demanda de uma necessidade de processos de intervenção denominada, no senso comum, de humanitária ou ambiental; mas que, na prática, é militar. “Essa é a perspectiva dessas ONGs, a de demonstrar que há uma situação crônica de conflitos, de miséria,
de abandono; com áreas, portanto, que, em nome da questão ambiental, precisariam de intervenção militar, que depois vão desembocar em privatizações dos meios de produção nacionais” explica Novoa. Ana Esther Ceceña, socióloga da Unam, aponta a CI, a Usaid e outras agências “como diretórios nos quais participam membros do departamento de Defesa e de Saúde dos Estados Unidos. A Usaid está intrinsecamente ligada ao Pentágono e também está presente na Amazônia”. Sugestão Mesmo não considerada um hotspot no estudo, a região amazônica une dois dos principais ingredientes para uma intervenção “ambiental”, ou “humanitária”. Novoa pondera, entretanto, que qualquer tipo de militarização na região passa necessariamente pela decisão dos Estados Unidos. Para ele, o fato de o governo estadunidense estar muito presente na Colômbia e na região Amazônica mostra que essa não é possibilidade hipotética. “A questão é encontrar um cenário justificador que permita a extensão dessa militarização para o conjunto da Amazônia, com caráter pacificador”, afirma o sociólogo. A incidência do narcotráfico seria uma bom motivo para que algumas agências pudessem reclamar intervenção na região. Na fronteira do Peru com o Paraguai, com Rondônia (BR) e com a Bolívia, existem ações de grupos de narcotraficantes. Está aí uma “sugestão” para a CI ou Usaid. (ESL)
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américa latina Bernardo Londoy
Chávez conduz retomada do controle estatal REVOLUÇÃO BOLIVARIANA O presidente venezuelano iniciou série de expropriações e ocupações em setores estratégicos do país, que chama de “radicalização do processo revolucionário”
EXPROPRIAÇÕES E ocupações em setores estratégicos do país feitos nas últimas semanas pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, causaram desconforto em setores da burguesia venezuelana e em membros da oposição, que o acusam de exercer uma política de opressão e centralização de poder em sua figura. O mandatário defende que a política adotada na Venezuela trata-se da “radicalização do processo revolucionário”, e que as mudanças que vem realizando levarão a uma “busca mais intensa de suas raízes revolucionárias e bolivarianas”. Na avaliação da economista e educadora popular Roberta Traspadini, as medidas adotadas por Chávez e o modo como ele tem conduzido a política governamental podem ser incluídos no contexto de resistência ao imperialismo na América Latina, encabeçada por ele e outros presidentes. “A gente tem que inserir toda essa política implementada pelo Hugo Chávez, pelo Evo Morales e pelo Correa, em certa medida, como uma política que tenta reverter a situação de subimperialismo vivido no continente”, defende. Para Roberta, o que Chávez tem feito é “implementar pouco a pouco uma política internacional de retomada da força do Estado sobre o capital”. A economista explica que a capacidade que o capital – nacional e transnacional – teve de promover uma política de favorecimento de seus interesses na América Latina vem sendo rompida por meio de medidas como as que Hugo Chávez tem tomado. “O que no continente se apresentava como hegemônico e onipotente agora está podendo ser rompido a partir de uma política mais nacionalista e menos antineoliberal”, resume. Intervenções Dia 28 de fevereiro, Chávez iniciou uma série de expropriações de terras de grandes propriedades, segundo ele, ociosas e ocupou fábricas produtoras de arroz acusadas de estocar o produto a fim de promover uma alta no valor de mercado e burlar o sistema de regulação de preços dos itens da cesta básica utilizado pelo governo. Dentre as intervenções feitas pelo governo, militares da Guarda Nacional ocuparam a fábrica de arroz Primor, em Calabozo, pertencente à empresa Polar, a maior produtora de alimentos da Venezuela. Tam-
bém foi expropriada uma unidade de produção de arroz da norte-americana Cargill. Complementarmente, no dia 15 de março, Chávez determinou a ocupação pela Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) dos portos e aeroportos nos Estados governados pela oposição. Segundo ele, a decisão foi tomada para combater as máfias e o narcotráfico nesses locais, pontos estratégicos para a segurança do país. A ordem começou a ser cumprida no último dia 21, quando militares ocuparam o aeroporto e o porto da capital do Estado de Zulia (norte); Maracaibo, cidade administrada pelo opositor Manuel Rosales; o Porto Cabello, no Estado de Carabobo (centro), do governador opositor Enrique Salas Feo; e o aeroporto da capital do Estado, Valência.
“O que Chávez tem feito é “implementar pouco a pouco uma política internacional de retomada da força do Estado sobre o capital” Na avaliação de Marcelo Buzzeto, professor de Geopolítica da Universidade de São Paulo (USP) e membro do setor de relações internacionais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tais ações não foram tomadas individualmente pelo presidente Chávez, mas fazem parte de um projeto de desenvolvimento nacional idealizado em 2007, e configurado através do Plano Socialista de Desenvolvimento da Nação, aprovado pela Assembleia Nacional do país (ver box). “Acho que as medidas são uma reação das forças democráticas populares e de esquerda que dão sustentação ao Chávez”, afirma. Já em 2007, Chávez havia iniciado uma série de estatizações dos setores considerados estratégicos, com a nacionalização de companhias de telecomunicações e de eletricidade, da faixa petrolífera do rio Orinoco, da maior indústria siderúrgica do país e de três empresas de cimento. Processo revolucionário Para Marcelo Buzzeto, contudo, o termômetro para medir a “radicalização do pro-
cesso revolucionário”, como defende o mandatário venezuelano, será o acompanhamento da “velocidade, intensidade e quantidade de expropriações que serão realizadas daqui para frente”. Isto porque, de acordo com ele, não existe um socialismo na Venezuela. “O país continua sendo capitalista. Quem tem o poder na Venezuela não é o Chávez, mas sim quem controla os meios de produção”, enfatiza. No entanto, a opinião de Osvaldo Coggiola, professor titular de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP), sobre o processo venezuelano não é a mesma. Ao contrário do que pensa Marcelo Buzzeto, Coggiola acredita que a política na Venezuela está fundamentalmente baseada na figura de Chávez. Para haver de fato um processo revolucionário, pontua, ele deve ser protagonizado pelo povo, e não pela figura do presidente. “Não é isso que acontece atualmente, a população venezuelana não faz suas próprias batalhas, mas faz as batalhas de Chávez contra a oposição”, alega.
Com medida, Chávez afirma combater máfias locais
Oposição questiona legitimidade das ações do presidente Para opositores, Chávez exerce política de centralização de poder e, com suas ações, fere a Constituição venezuelana da Redação A conduta do presidente venezuelano, Hugo Chávez, de tomar o controle de setores estratégicos na Venezuela, iniciada com a ocupação de portos e aeroportos e que seguirá com a tomada do controle de estradas e rodovias, tem sido duramente criticada por seus opositores, que consideram uma medida para fustigar a oposição e concentrar poder em suas mãos. Marcelo Buzzeto, professor de Geopolítica da Universidade de São Paulo (USP) e membro do setor de relações internacionais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), afirma que é de se esperar que a oposição lute contra o governo nessas medidas: “Com essa iniciativa o governo defende o interesse da classe trabalhadora,
Efeitos da crise O historiador acredita que, para os trabalhadores terem controle sobre os meios de produção, é necessário haver uma mudança na natureza do Estado, “deixando de ser totalmente subordinado ao direcionamento político do Chávez para se tornar um Estado onde efetivamente os próprios trabalhadores organizados farão parte do poder político”. Para Coggiola, as medidas que Chávez vem tomando nas últimas semanas, sobretudo a ocupação dos portos e aeroportos, servem para desarticular a oposição e estão diretamente relacionadas aos efeitos da crise econômica mundial na economia venezuelana, através da queda do preço do petróleo. O combustível é responsável por metade da receita do país. O orçamento, que previa para este ano o preço do barril em 60 dólares, teve de ser revisto e hoje o projeta em 40 dólares. Devido a isto, o governo venezuelano apresentou no último dia 21 um pacote de medidas anticrise. Entre as ações a serem realizadas para conter os efeitos, está o corte de 6,7% no orçamento e o aumento do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) de 9% para 12%. Em contrapartida, Chávez anunciou o aumento em 20% do salário mínimo, a fim de manter aquecida a economia interna, e garantiu que as medidas anticrise não afetarão o emprego, nem os investimentos sociais.
então é certo que a oposição vai querer resistir. Mas acho que a resistência da oposição vai ser derrotada pelas forças populares democráticas e de esquerda”, supõe. Legalidade A decisão de ocupação dos portos e aeroportos foi realizada no contexto da aprovação pela Assembleia Nacional, no dia 13 de março, da modificação na Lei Orgânica de Descentralização, Delimitação e Transferência de Competência do Poder Público, conferindo ao Executivo o poder de retirar dos governos locais o controle de portos, aeroportos e estradas. Dessa forma, Estados e municípios não podem mais recolher impostos sobre essas atividades. A oposição venezuelana tem acusado o presidente Chávez de tentar asfixiar economicamente os governadores e pre-
feitos contrários a ele com essa ação e, de acordo com alguns especialistas, a alteração na lei fere a Constituição, porque deveria ter sido submetida à aprovação em uma Constituinte. Segundo o professor titular de História Contemporânea da USP Osvaldo Coggiola, é natural que a oposição questione as ações de Chávez, porém, isso mostra apenas sua falta de força política. “A oposição se limitar a argumentar a ilegalidade [das ações] demonstra que é uma oposição que está quase morta”, completa. O historiador explica que o fato de a oposição não ter conseguido mobilizar a população contra Chávez em outras ocasiões, como na tentativa de golpe em 2002, revela que não será fácil desestabilizá-lo. “Neste momento, Chávez tem um controle muito grande da situação pública”, afirma. (MA)
Governo deve garantir produtos básicos Especialistas avaliam positivamente a ação de intervenção militar nas fábricas de arroz, ordenada por Hugo Chávez da Redação
A fim de controlar o preço do arroz no mercado venezuelano, o presidente Hugo Chávez determinou a intervenção militar em várias fábricas arrozeiras no dia 28 de fevereiro. O mandatário acusou os produtores de tentarem burlar o sistema de regulação de preços dos principais produtos da cesta básica vigente no país ao destinarem o arroz para outros fins, retirando-o do mercado comum e pressionando assim uma alta no preço do produto. A justificativa do governo venezuelano para a ação é garantir que não falte um produto básico à alimentação da população. “Este goOniblis
Michelle Amaral da Redação
verno está aqui para proteger o povo, não a burguesia rica”, disse Chávez ao anunciar a intervenção. Para a economista e educadora popular Roberta Traspadini, mais do que intervir em uma determinada questão, Chávez demonstra que é necessário romper com a política econômica estabelecida pelo capital da agricultura ou industrial, que visa a privilegiar somente seus interesses. “O que ele está dizendo é que é impossível o Estado continuar sendo regulador dos grandes negócios e não ser o Estado do bem, pensado para uma política econômica que subsidie os interesses sociais”, defende. Marcelo Buzzeto, professor de Geopolítica da USP,
acredita que, se a medida for implementada da maneira como está sendo proposta, será uma grande vitória do governo venezuelano. No entanto, pondera que esta “é uma luta difícil”. “Não acredito que essas empresas vão aceitar sem reação. A oposição já está reagindo”, alerta. Dentre as empresas ocupadas por forças militares venezuelanas, a estadunidense Cargill e uma das fábricas da Empresa Polar, maior produtora de alimentos da Venezuela, foram expropriadas. A Polar entrou com processo no Supremo Tribunal de Justiça, argumentando que a intervenção do governo nas fábricas produtoras de arroz viola os direitos da empresa. (MA)
Plano Socialista de Desenvolvimento da Nação O Plano Socialista de Desenvolvimento da Nação – Plan Simon Bolívar 2007-2013 – foi aprovado pela Assembleia Nacional venezuelana em 14 de dezembro de 2007. Entre seus pontos principais, estão o desenho de um modelo produtivo socialista, a nova ética socialista e mudanças na geopolítica nacional e internacional. O objetivo do governo venezuelano é implementar as sete diretrizes do Plan Simon Bolívar até 2013. As diretrizes tratam dos seguintes temas: – Ética socialista com a construção de uma estrutura social inclusiva; – Suprema felicidade social como uma visão de longo prazo que tem como ponto de partida a construção de uma estrutura social inclusiva; – Democracia protagonista revolucionária, procurando a consolidação da organização social; – Modelo produtivo socialista, buscando a eliminação da divisão social do trabalho; – Nova geopolítica nacional, que propõe uma modificação da estrutura territorial do país; – Conversão da Venezuela em potência energética mundial, tendo o petróleo como decisivo na captação de recursos do exterior;
Embarcação chega a Puerto La Cruz, agora sob o controle federal
– Nova geopolítica internacional, com a presença da Venezuela no mundo e sua participação na construção de um mundo multipolar, que quebre a hegemonia unipolar.
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américa latina Daniel Cassol
Há dez anos, paraguaios resistiam a outro golpe PARAGUAI Em março de 1999, o assassinato do vice-presidente Luis María Argaña desencadeava uma crise política que levou a população às ruas em defesa da democracia Daniel Cassol correspondente do Brasil de Fato em Assunção (Paraguai) O QUE A mulher toca é uma foto, mas sua mão passa sobre a imagem de um jovem ensanguentado como se acariciasse o próprio filho, morto há exatos dez anos no massacre que ficou conhecido como Março Paraguaio. Gladys Bernal, mãe de Henry, o rapaz da fotografia, alvejado por francoatiradores quando iria completar 21 anos, tem vivo na memória o dia em que a notícia do assassinato do vice-presidente Luis María Argaña levou toda sua família às ruas, a lutar por democracia. “Fomos à praça porque queríamos um país livre, vínhamos de uma ditadura de 35 anos e temíamos outra”, diz Gladys, uma das mães de vítimas do Março Paraguaio, e que hoje lidera a organização Memória Viva. Naqueles dias de março, elas e os filhos juntaram-se à população que aos poucos ia ocupando as praças do Congresso paraguaio. O marido ficou
em casa para cuidar da filha menor, mas só nos primeiros dias. “Sempre fomos de luta, não somos de ficar de braços cruzados vendo televisão”, fala Gladys. Gladys Bernal examina fotos dos protestos de março de 1999, quando seu filho foi morto
“Já não era briga com pedras. Desde alguns edifícios, começaram a atirar. Numa praça cheia de pessoas, um tiro pega alguém”, relembra um padre jesuíta O assassinato de Argaña, na manhã de 23 de março de 1999, escancarou uma crise política que levou milhares de paraguaios a saírem de casa para tentar impedir o retorno de uma ditadura, com a qual conviveram por 35 anos e que haviam derrubado há apenas dez. A luta teve seu preço: oi-
to jovens mortos e centenas de manifestantes feridos. Planos de Oviedo
De acordo com todos os indícios, quem estava por trás da morte de Argaña era o general Lino César Oviedo, padrinho político do então presidente Raúl Cubas Grau. A intenção de Oviedo, líder de uma dissidência interna do Partido Colorado rival do “argañismo”, seria candidatar-se à vaga de vice, que deveria ser preenchida com eleição, e tornar-se presidente após eventual renúncia de seu “afilhado”. “Esse senhor tem um caráter muito autoritário e nós não queríamos outro ditador. E Lino Oviedo representava um perigo de ditadura”, afirma o padre jesuíta Francisco de Paula Oliva, conhecido como Pa’i Oliva, uma das lideranças mais ativas na socie-
dade civil durante e depois do Março Paraguaio. Logo após as primeiras notícias sobre o assassinato do vice-presidente, as praças em frente ao Congresso Nacional foram sendo tomadas por cidadãos, militantes ou não. “Foi algo muito espontâneo”, conta Clyde Soto, ativista de direitos humanos que esteve presente nas manifestações. Na mesma época, estavam em Assunção cerca de 10 mil camponeses, integrantes da Federação Nacional Campesina (FNC), reivindicando o perdão de dívidas com o banco nacional. Aos poucos, os trabalhadores rurais engrossaram a manifestação pró-democracia. Enquanto a Polícia Nacional e defensores de Oviedo, municiados pela própria polícia, investiam contra os manifestantes, o processo de
impedimento do presidente Raúl Cubas era negociado no Congresso. O controle territorial da praça em frente significava a continuidade dos trabalhos no parlamento e, aos poucos, a violência do grupo oviedista foi se radicalizando. “Violência organizada”
“Houve um dia em que a violência foi muito organizada. Isso tomou de surpresa as pessoas que estavam na mobilização”, relembra Clyde. Na noite do dia 25 de março, Pa’i Oliva foi convidado a rezar uma missa, para preparar os manifestantes para o que estava por vir. “Acabou a missa e começou algo novo”, relembra. “Já não era briga com pedras. Desde alguns edifícios, começaram a atirar. Numa praça cheia de pessoas, um tiro pega alguém”.
Sete jovens que estavam em frente ao Congresso morreram, vítimas de tiros disparados de edifícios localizados nos arredores, na madrugada do dia 26. Um oitavo jovem morreria meses depois, em consequência de ferimentos. Levantamento realizado pelo Centro de Documentação e Estudos (CDE), iniciado dias após os acontecimentos, enumerou mais de 700 pessoas feridas durante os dias de conflito; entre elas, 92 por arma de fogo. Após o massacre, o presidente Raúl Cubas se viu obrigado a renunciar ao cargo. Tanto ele como Oviedo, acusado de ser o mandante da morte de Argaña e mentor do massacre dos jovens, fugiram do país. A presidência foi ocupada pelo então senador Luis Ángel González Macchi.
Tempo de completar o sonho A guerra de versões Embora fundamental para impedir a volta da ditadura, Março Paraguaio não significou a consolidação da democracia no país de Assunção (Paraguai) “Não se justifica nenhuma morte. Mas valeu a pena, porque hoje vivemos livres, coisa que não iria ocorrer se esses jovens não saíssem às ruas”. Quem fala é Gladys Bernal, mãe de um rapaz assassinado no Março Paraguaio que chora a morte do filho, mas reconhece a importância da luta da qual ela própria participou, marcando uma data importante nesta linha do tempo da política paraguaia que parece dar passos de dez em dez anos. Em 1989, cai o ex-ditador Alfredo Stroessner. Em 1999, a população civil defende a democracia. Agora, em 2009, é tempo de “completar o sonho” daqueles dias de março, como vem defendendo o padre jesuíta Pa’i Oliva.
“Perguntam se o Março Paraguaio valeu a pena. Valeu a pena. Porque impedimos a subida de um projeto de ditador. Mas o custo foi muito grande”, diz o religioso. Na sua opinião, porém, o acomodamento da classe política paraguaia após a renúncia de Raúl Cubas impediu a consolidação democrática e estancou as esperanças de um novo Paraguai. Principalmente porque a sociedade civil, protagonista daquela semana de lutas, ficou alijada do processo de reconstrução da institucionalidade. “Onde estava a classe política, que pedia um país novo? Vendo pela televisão, fazendo seus planos egoístas para depois. O Março Paraguaio é um sonho incompleto da juventude, dos campesinos, dos cidadãos. Agora, pode-se completar o sonho. O Partido Colorado fracassou. Há uma abertura”, afirma Pa’i Oliva. Daniel Cassol
Para o padre Pa’i Oliva é tempo de “completar o sonho”
Oposição neutralizada
Clyde Soto, do Centro de Documentação e Estudos (CDE), concorda. “Esse movimento não foi capitalizado pela cidadania”, diz. Na sua opinião, nada tira a importância da resistência cidadã a uma ameaça de ditadura, mas é preciso reconhecer que a consequência do Março Paraguaio foi o fortalecimento do Partido Colorado, que permaneceu no poder por mais dez anos e neutralizou a oposição, cooptando-a, no esteio do governo de coalizão formado após a posse de Luis González Macchi. Para ela, o vazio criado com a renúncia de Cubas não foi aproveitado pelos partidos de esquerda, tampouco pelos movimentos sociais. “Esse impasse institucional não significou o triunfo de uma alternativa ao Partido Colorado. Pelo contrário, significou um respaldo de dez anos mais”, diz. “E os setores organizados e partidos de esquerda não tiveram nenhuma incidência no que foi o desenlace institucional que se seguiu”, completa Clyde. Por isso, mas também porque a memória sempre não é valorizada, pouco se celebra nesses dez anos do Março Paraguaio. A inauguração de uma exposição de fotos, que abriu a semana de atividades promovidas pela organização Memória Viva, esteve quase vazia. Apenas o jornal Última Hora, um dos poucos que em 1999 não amplificaram as teses oviedistas, publica matérias diárias sobre o tema. Já a família de Argaña organizou um ato para lembrar a morte do vice-presidente. (DC)
Deputado diz que incriminação de Oviedo é parte de plano orquestrado pela família Argaña; ativista refuta argumento de Assunção (Paraguai) Entre os condenados pela morte do então vice-presidente paraguaio, Luis María Argaña, e pelo massacre de oito jovens no centro de Assunção, apenas um está preso. É Walter Gamarra, na época funcionário do governo, flagrado por uma câmera de TV atirando contra a multidão. Os sentenciados pelo assassinato de Argaña estão todos em liberdade. O major Reinaldo Servín, condenado a 25 anos de prisão, seria a ligação entre os executores do atentado e o mentor, Lino Oviedo.
“Isso foi orquestrado pela família Argaña”, defende deputado seguidor de Oviedo Mas há uma disputa de narrativas em relação aos acontecimentos de 1999. “O Março Paraguaio foi um teatro montado para tirar Oviedo do poder”, sustenta o deputado federal José López Chávez, membro do partido oviedista União Nacional dos Cidadãos Éticos (UNACE), e advogado do político. “Isso foi orquestrado pela família Argaña e por alguns detratores do general Oviedo naquela época. Eles bus-
caram um bode expiatório”, afirma em entrevista concedidaao Brasil de Fato em seu gabinete na Câmara dos Deputados. A tese de que Argaña já estava morto e que o atentado foi uma armação para atingir Oviedo é difundida desde os momentos seguintes ao assassinato. Em agosto de 2003, a revista brasileira IstoÉ publicou uma reportagem sustentando a tese de que o vice-presidente havia morrido na companhia de uma amante e que o atentado fora armado para evitar prejuízos à imagem da família e, ao mesmo tempo, para atacar Oviedo, adversário de Argaña. “Foi uma investigação brilhante, que não deixa dúvidas”, atesta Chávez, para quem os disparos contra a multidão presente na praça também foram efetuados por argañistas, do prédio do Congresso. Aliás, em tempos em que, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) discute o processo de extradição do italiano Cesare Battisti, é o próprio deputado oviedista quem relembra: “Quando o Brasil negou a extradição ao general Oviedo, o STF disse que era uma perseguição política disfarçada”. Tradição de impunidade
“É normal que isso ocorra porque é o que fazem todos os acusados de crimes”, rebate Félix Argaña, vereador do Partido Colorado em Assunção e filho do ex vice-presidente. No último dia 23, a família organizou um ato em memória do político. Clyde Soto, investigadora
do Centro de Documentação e Estudos (CDE), acredita que a tese oviedista se apresenta na esteira de um histórico de impunidade na nação sul-americana. “O Paraguai é um país com uma tradição de impunidade muito grande em relação aos crimes da ditadura, à corrupção. Para muita gente, é normal dizer que aconteceu outra coisa. Atuam respondendo a um costume antigo de acomodar a realidade aos interesses próprios”, avalia. De acordo com a ativista, o partido oviedista logrou tornar-se um fiel da balança na política paraguaia, influenciando em decisões importantes. “Assim, os setores políticos foram fazendo sucessivas concessões aos crimes do Março Paraguaio, em acordo com o oviedismo, para obter determinadas vantagens”, acredita. Preso ao retornar ao Paraguai, Lino Oviedo anunciouse candidato à presidência e foi solto, num acordo com o então presidente Nicanor Duarte Frutos, que esperava assim retirar votos que seriam depositados em Fernando Lugo. A estratégia, como sabemos, não deu certo. Em dezembro do ano passado, a Corte Suprema de Justiça do Paraguai suspendeu o processo contra Oviedo no caso da morte de Argaña. “Houve um pacto político, uma traição feita pelo ex-presidente Nicanor Duarte Frutos, que o liberou simplesmente por conveniência política”, acusa Félix Argaña. “Liberou o principal responsável pelo assassinato”, completa. (DC)
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“Berlusconi ofendeu a memória dos desaparecidos pois sofre de paranóia” ARGENTINA Em entrevista exclusiva, o prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel analisa declaração do primeiro-ministro italiano e o atual estágio da responsabilização dos crimes da ditadura no país sul-americano Reprodução
“DE MIM, os senhores da esquerda disseram de tudo, que fui como Hitler, como Mussolini, ou como o ditador argentino que eliminava os opositores, levando-os em um avião. Davam a eles uma bola de ferro, abriam a porta e diziam ‘tenha um bom dia, vá ver o que tem lá fora’. Isso faz rir, mas é dramático”. A declaração do primeiroministro italiano, Silvio Berlusconi, dada em 14 de fevereiro, na Sardenha, deixou indignados os defensores dos direitos humanos na Argentina. A referência era aos chamados “voos da morte”, expediente que os agentes da ditadura no país (1976-1983) utilizavam para sumir com os corpos dos militantes da oposição. Em entrevista ao Brasil de Fato, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz em 1980, critica duramente o mandatário europeu, relembra os anos de repressão em seu país e explica porque os processos levados a cabo contra os torturadores e seus cúmplices poderiam avançar ainda mais. Brasil de Fato – Na sua opinião, por que Silvio Berlusconi, primeiroministro da Itália – país onde estão tramitando processos contra três torturadores da ditadura na Argentina –, ofendeu, publicamente, a memória dos militantes desaparecidos do país sul-americano com uma macabra piada que tenta desvirtuar as responsabilidades criminais dos golpistas da época? Adolfo Pérez Esquivel – Em primeiro lugar, Berlusconi é o dono dos principais meios de comunicação da Itália e esse fato é muito significativo. Em segundo lugar, ele deve sofrer alguma paranoia, pois não pode ignorar ou considerar isso um jogo ou uma brincadeira quando ele é também responsável pelos sequestros que a CIA realizou em território italiano [ações ilegais realizadas no âmbito da “guerra ao terrorismo”] . Que tipo de resposta ele deu ao povo italiano sobre essa acusação? Então, na realidade, essa ofensa que ele fez à memória dos desaparecidos atingiu todos os povos da humanidade. Ofendeu diretamente o povo argentino, mas também o povo italiano, pois não podemos esquecer que cerca da metade dos argentinos é descendente de italianos. Berlusconi é um sujeito político que não conhece a ética, tanto que muitos se perguntam se ele ganharia uma eleição caso não fosse o dono dos principais meios de comunicação italiana! Durante os governos de Néstor Kirchner e Cristina Fernández, foram revogadas as leis de anistias que garantiam a impunidade aos torturadores. Jorge Rafael Videla, Emilio Eduardo Massera e outros antigos oficiais foram presos e investigados. Porém, os Kirchner nada fizeram para abrir os arquivos do terror e, assim, desvendar o paradeiro dos desaparecidos e tantos outros crimes da ditadura. Essa é apenas uma contradição política da presidente Cristina Fernández ou uma forma para manter vigente o Pacto do Silêncio dos militares?
policiais realizarem os sequestros clandestinos e o transporte dos corpos. Então eu pergunto: o que vamos fazer com essas histórias? Se quisermos, de fato, impedir que o que aconteceu nunca mais volte a se repetir na Argentina ou em outra parte do mundo, é necessário aclarar a história das cumplicidades. Mas, além da Igreja Católica e dos empresários, não podemos esquecer o papel dos meios de comunicação, que, além de saber e silenciar sobre os massacres praticados nos centros de tortura clandestinos, manipulavam a chamada luta subversiva para justificar os militares diante da sociedade. Mesmo assim, houve 100 jornalistas entre os desaparecidos. Na Argentina, aconteceu o mesmo que na Alemanha, onde a maioria da população apoiou o projeto do nazismo. A diferença é que aqui não havia a câmara de gás e os fornos crematórios, mas havia a mesma disposição metodológica em torturar seus opositores e, depois, fazer desaparecer seus corpos. É preciso avaliar o que se passou na sociedade durante a repressão.
“Nem sequer os nazistas destruíram as provas de seus campos de extermínio. Na realidade, esses arquivos [da ditadura] estão escondidos para não serem de domínio público” O governo fala muito na abertura de novos processos, investigações, mas nenhum julgamento ainda tem uma sentença definitiva, pois surgem novos recursos em função de outros processos. Afinal, por que o governo não intervém e fixa prazos? Com respeito aos julgamentos, mesmo se os últimos dois governos tomaram a decisão política de anular as leis de anistia [Ponto Final e Obediência Devida], os juízes resolveram desqualificar os julgamentos. Para tal, disfarçam as causas e, em vez de centralizar as responsabilidades criminais dos réus, eles as descentralizaram, de forma que, no século 22, ainda teremos processos. Por isso, as entidades de direitos humanos já se reuniram com a presidente Cristina e com a Corte Suprema de Justiça para pedir que os julgamentos contra os torturadores sejam unificados com base territorial ou por setores das Forças Armadas, de forma a poderem acelerar os veredictos finais. Outro grave problema que temos aqui na Argentina é o poder dos juízes, que continua inalterado, não obstante o atual governo tenha conseguido reformar a Corte Suprema de Justiça. Quero lembrar que alguns juízes que recentemente abriram novos processos judiciais contra os torturadores eram obrigados a trabalhar em condições artesanais, ou seja, sem secretários, sem coordenador e até sem computadores! Isso demonstra que há uma falta de vontade, e a manutenção dessa política impede que o conjunto dos processos avancem. Por isso, surge a pergunta: por que um repressor como o capitão Alfredo Astiz, que tem muitos antecedentes criminais e já foi condenado à revelia na França e na Suécia, aqui na Argentina não é julgado? Por que ele continua preso há quatro anos sem ser julgado? Então, eu pergunto se, de fato, há uma decisão jurídica e se existe vontade política em realizar os julgamento dos torturadores.
Você é um dos poucos sobreviventes dos campos de torturas clandestinos. Depois de 30 anos, de que forma contaria aos jovens aqueles terríveis e longos momentos de sofrimento? Sim, sou um sobrevivente porque fui sequestrado e levado ao centro de tortura da Superintendência de Segurança Federal, no segundo andar da Rua Moreno, nº 1.500, onde, durante 32 dias, fui violentamente torturado, para depois ser finalmente legalizado como preso político. Então, me lembro que, ao entrar naquele local, esbarrávamos em uma grande cruz nazista pintada com o rolete de tinta com o qual eles pegavam nossas impressões digitais. E, no meio dessa cruz, estava escrita em grandes caracteres a palavra nacionalismo, só que com “Z” no lugar do “C”. Esse fato me fez entender, logo, qual era a referência e a concepção ideológica que alimentava as ações dos militares. Porém, é preciso também entender como essa concepção conviveu com as outras que circulavam na sociedade, pois havia também os franceses e os norte-americanos, que pretendiam não só saquear o país, mas também impôr um novo modelo político, econômico, educativo e até religioso. Então, é preciso fazer uma reconstrução de como os mecanismos da repressão conviveram com tudo isso e que tipo de integração foi realizada.
Desfile militar realizado na Argentina em meados da década de 1970
“Na Argentina, de fato, estamos avançando com dificuldade. Porém, para avançar mais, teremos que resolver, através de uma nova dinâmica política, o problema do poder dos juízes e da unificação dos processos” As entidades que lutam pelo respeito aos direitos humanos pretendem fazer algo para que a luta contra a impunidade continue? Esse é o ponto central da questão que chamamos de “Nunca Mais”, uma vez que a Argentina é o país do Cone Sul onde foram iniciados mais processos criminais e julgamentos contra os antigos agentes da repressão. De fato, se algo foi feito no Chile e no Uruguai, no Brasil estamos no nível zero. Eu me lembro que, quando falei da impunidade na OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] do Rio de Janeiro, fui levado preso para São Paulo, tanto que o arcebispo Paulo Evaristo Arns teve que pedir minha libertação. A questão da impunidade é um problema continental. Vejam na Guatemala, onde tu-
do permanece suspenso. Mas também no resto da América Latina, onde os repressores responsáveis por crime de lesa-humanidade não foram investigados nem tampouco julgados e condenados. Na Argentina, de fato, estamos avançando com dificuldade. Porém, para avançar mais, teremos que resolver, através de uma nova dinâmica política, o problema do poder dos juízes e da unificação dos processos. Caso contrário, será muito difícil superar a impunidade jurídica. Outra questão em aberto é a cumplicidade das empresas com os crimes da ditadura. O que está sendo feito a esse respeito aqui na Argentina? Apesar de a Alemanha ter uma legislação que não aceita os processos realizados à revelia, nós estamos pressionando para que seja realizado o julgamento contra a Mercedes Benz, que foi cúmplice da ditadura militar. De fato, quando falamos em cúmplices, nos referimos não só aos setores da Igreja Católica, mas, sobretudo, àquelas empresas que pactuaram com a ditadura e se tornaram cúmplices da repressão. Temos que lembrar alguns casos emblemáticos, como o da Ford e da Mercedes Benz. Por outro lado, é necessário sublinhar que os militares, sozinhos, nunca teriam conseguido concretizar o golpe e, depois, cometer inúmeras atrocidades sem a cumplicidade e o apoio de uma parte da sociedade civil. É verdade que os militares foram o instrumento físico do terror repressivo, mas quem formulou
a ideia de uma repressão aberta contra o movimento popular e os trabalhadores foram, sobretudo, as empresas filiais de transnacionais. Muitos executivos dessas corporações tinham montado um sistema de controle para denunciar seus trabalhadores mais sindicalizados e fazê-los desaparecer. Quando estive preso, meu companheiro de cela era um ex-dirigente da Ford, que me contou que a diretoria da montadora havia combinado com o Exército manter na fábrica um presídio militar
“É verdade que os militares foram o instrumento físico do terror repressivo, mas quem formulou a ideia de uma repressão aberta contra o movimento popular e os trabalhadores foram, sobretudo, as empresas filiais de transnacionais” permanente com 70 homens. A Leeds-Mann fez mais: além de manter, na sua planta, os homens da Gendarmeria e da Polícia, doou os caminhões e as viaturas para os militares e
Presidencia de la República de Ecuador
Achille Lollo de Buenos Aires (Argentina)
Vamos por ordem. Os militares argentinos disseram que haviam queimado os arquivos. Antes de tudo, eles nunca destroem seus documentos, mas sim os ocultam. Nem sequer os nazistas destruíram as provas de seus campos de extermínio. Na realidade, esses arquivos estão escondidos para não serem de domínio público. Por sua parte, o governo de Cristina Fernández não consegue obrigar os chefes das Forças Armadas a entregar os referidos documentos. Porém, o Vaticano tem cópia destes, assim como algumas embaixadas, como a da Alemanha e a da Itália, por exemplo. Elas também receberam cópias daqueles arquivos, mas não os entregam.
Quem é O argentino Adolfo Pérez Esquivel é um defensor histórico dos direitos humanos na América Latina. Em 1980, ganhou o Prêmio Nobel da Paz, devido à sua luta contra a ditadura militar em seu país. É presidente da Fundação Latinoamericana pela Paz e Justiça e da Liga Internacional pelos Direitos Humanos e Libertação dos Povos.
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internacional
Pé no chão na política externa dos EUA ANÁLISE Até mesmo os incrédulos admitem que Barack Obama chegou com vontade de melhorar a imagem belicista do país Adam Mancini/US Army
Memélia Moreira AS MUDANÇAS ainda são quase imperceptíveis aos mais céticos, mas Cuba, Irã, Afeganistão, Iraque, Rússia e outros países mais visceralmente impactados pela política externa dos Estados Unidos já até respiram um pouco aliviados, depois dos oito sangrentos anos de governo do ex-presidente George W. Bush. Há dois meses, quando Barack Obama tomou posse da presidência dos EUA, o torniquete começou a ser afrouxado. Até mesmo os incrédulos admitem que o novo presidente chegou com vontade de melhorar a imagem belicista do país que vai governar, no mínimo, até 2012. Essa mudança se reflete principalmente no Oriente Médio, região onde, há décadas, a política estadunidense é, numa avaliação generosa, um absoluto desastre, e onde Israel se comporta como a donzelinha sob constante ameaça de estupro. A donzelinha agora deve aprender a se defender. Ou, então, parar de provocar. O reflexo imediato se deu em 16 de março, quando o Líbano abriu, pela primeira vez desde a independência desses dois países, na primeira metade do século 20, sua embaixada em Damasco, capital da Síria. Se esse é um primeiro passo para a soberania plena dos países do Oriente Médio, sempre acossados por diferentes potências (notadamente Inglaterra, França e Estados Unidos), só a história vai responder. Mas não há nenhuma dúvida de que é o início de uma nova era numa das áreas mais conflituosas do planeta.
Pelo belicismo demonstrado inúmeras vezes (...) e escorada no apoio do próprio partido que a fez secretária de Estado, volta e meia, Hillary Clinton ensaia voo próprio na política externa Secretária belicista
Parece até que foi de propósito. Derrotada por Obama na convenção que escolheu o candidato dos democratas à Casa Branca, a ex-senadora Hillary Clinton, hoje secretária de Estado (cargo correspondente a ministro de Relações Exteriores no Brasil e posto mais importante do governo, depois do presidente), é favorável, ao contrário de seu chefe, a uma política internacional agressiva, que não deixe dúvidas sobre a supremacia dos Estados Unidos. No exercício de seu mandato de senadora, votou, em várias ocasiões, pelo reforço de tropas e recursos à guerra do Iraque e, principalmente, pelo endurecimento contra as resistências tribais do Afeganistão, onde esteve mais de uma vez para visitar os soldados estadunidenses que ocupam aquele país desde 2001. Pelo belicismo demonstrado inúmeras vezes, inclusive em relação a Cuba e Venezuela, e escorada no apoio do próprio partido que a fez secretária de Estado, volta e meia, Hillary ensaia voo próprio na política externa. Apesar de todo o apoio do Partido Democrata e da aparente harmonia entre a secretária e o presidente, Hillary tem sido, aos poucos, obrigada a “vestir a camisa” (que parece muito apertada) da nova realidade internacional, que exige a cada dia mais diálogo e cada vez menos arrogância,
Chad J. McNeeley/USN
Criança caminha em rua de vila na província de Zabul, no Afeganistão; abaixo, Obama visita o Pentágono
diante de uma crise econômica que virou todas as relações internacionais de cabeça para baixo. Difícil pensar em punição mais severa para ela. Mas a secretária, de vez em quando, dá suas escapadas. Usando o velho artifício de vazar informações via assessores, Hillary Clinton se diz pessimista quanto a um entendimento com o Irã. As declarações do assessor, que obviamente pediu anonimato, informa que Clinton, após encontro com o sheik Abdullah bin Zayed alNahayan, ministro de Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos, disse que os Estados Unidos “não guardam ilusões quanto ao Irã e, por isso, mantêm os olhos bem abertos”. É possível que as ideias do sheik tenham contaminado a poderosa secretária de Estado, pois, logo depois do encontro, ele mesmo declarou que os países do Golfo Pérsico “estão alarmados com o crescimento do poder de Teerã, ocorrido durante o governo Bush, em consequência da invasão do Iraque. Esse poder se reflete na ousadia de movimentos como o Hezbollah, no Líbano, e o Hamas, na Faixa de Gaza”. Síria como aliada
Se ouviu as queixas do sheik ou a notícia sobre o pessimismo de sua secretária, Barack Obama não deu sinais de preocupação. Pelo contrário, o presidente dos Estados Unidos já avisou que a Síria será a ponte da nova política dos EUA para o Oriente Médio. A escolha chega às raias de uma aposta, porque a Síria guarda muita proximidade com o governo iraniano e com os movimentos de resistência da Palestina. Obviamente, Israel, o aliado e cão de guarda dos Estados Unidos no Oriente Médio, não viu com bons olhos essa escolha, mesmo que tenha sido informal. O fato é que o Irã,
a onipresente pedra no sapato dos Estados Unidos, interfere nos negócios internos até mesmo de países que não são do Oriente Médio. O exemplo mais recente, já da era Obama, é a Rússia. Outrora o inimigo mais temível, praticamente capitulou, mesmo prejudicando seus próprios interesses políticos e, principalmente, comerciais. A história é curta. Hillary esteve em Moscou e levou uma geringonça para ser apertada simultaneamente por ela e pelo ministro de Relações Exteriores daquele país, Sergei Lavrov. Na pecinha, um botão amarelo indicava “apagar”. Era o simbolismo com o qual os Estados Unidos mostravam que os tempos de negociações frias e ameaças veladas entre os dois países acabaram. Tudo isso, em pleno Kremlin. Foi o que bastou!
Outro a chamar a atenção de Obama sobre Israel foi o filósofo judeuestadunidense Noam Chomsky. Ele também vê com ceticismo qualquer perspectiva de mudança nessa área A partir daí, a Rússia mudou seu discurso em relação ao Irã, que há muito tenta convencer a ex-grande rival do Império capitalista a vender o sistema S-300 de defesa aérea, mas enfrenta o discurso de Israel contra a operação e, agora, a pressão dos Estados Unidos para que essa negociação seja abortada. O sistema pode servir de escudo para um possível ataque de Isra-
el contra o Irã. Moscou não quer uma nova polêmica com Washington e, publicamente, afirma e reafirma que não pretende vender essa tecnologia para o “bicho-papão” da Casa Branca. Mas há quem diga que o contrato de venda do sistema S300 foi assinado, já começou a ser entregue, e que Teerã teria pago 800 milhões de dólares por ele. Se vendeu ou não, poucos sabem, mas a verdade é que os discursos das autoridades russas em defesa do Irã começaram a desbotar. A exigente Tel-Aviv
Auxiliar direto de sete secretários de Estado desde o governo de Jimmy Carter, nos anos de 1970, Aaron Miller, que não pode ser classificado de antissemita, escreveu uma carta ao presidente Barack Obama – em pleno período do massacre do povo palestino, iniciado nos últimos dias de 2008 – sugerindo a este que fosse menos flexível com as exigências de Israel, pois “a destituição de Gaza não ajudará Tel-Aviv a assegurar seus objetivos principais”. Em recente entrevista, Miller disse não acreditar em mudanças nas relações entre Israel e Estados Unidos, mas aconselha o presidente Obama a “assegurar que as entradas de Gaza na fronteira com Israel permaneçam abertas porque, sem esse simples ato, sufoca-se economicamente a região. E Israel quer usar esses postos de fronteira como elemento fundamental de barganha, para conseguir o que quer, incluindo o fim da entrada de armas pelo mercado negro”. Outro a chamar a atenção de Obama sobre Israel foi o filósofo judeu-estadunidense Noam Chomsky. Ele também vê com ceticismo qualquer perspectiva de mudança nessa área, porque “os Estados Unidos veem Israel como sua base militar, uma cabeça de ponte além-mar, que podem utilizar e ocupar para ameaçar e
promover intervenções militares em toda região. Por isso, não há muita esperança de que um presidente decida, de uma vez por todas, acabar com relações que se sedimentaram nessas bases”. É verdade que o Estado de Israel, sabendo de seu poder geopolítico, está cada dia mais exigente e sequer deu atenção aos pedidos de Obama para cessar o bombardeiro, mas, antes que os leitores mergulhem em desencanto, é bom deixar claro que, apesar de toda lucidez, Noam Chomsky, que embora judeu, já foi acusado de antissemitismo, carrega um pessimismo incurável e já errou algumas de suas previsões. A mais recente delas aconteceu poucos antes das eleições do ano passado. Em artigo publicado em vários jornais e reproduzidos inclusive no Brasil, o filósofo garantia que “o racismo não permitirá que Barack Obama seja eleito”. Menos de um mês depois, as urnas o traíram. Retirada antes do fracasso
Em 26 de fevereiro, ainda se dançava o carnaval no Brasil (ou pelo menos na Bahia) quando os jornais e televisões dos Estados Unidos trombetearam a intenção do presidente Barack Obama de iniciar a retirada das tropas de ocupação estadunidenses no Iraque, país que foi invadido pelo presidente George W. Bush em março de 2003. Dos 140 mil soldados que hoje se encontram no Iraque, 12 mil voltarão para casa em setembro. A retirada será feita em doses homeopáticas, e Obama pode até reconsiderar a decisão, caso “a violência piore naquele país”, segundo suas próprias palavras. Na verdade, essa foi a maneira menos desonrosa que o presidente encontrou para não dizer que está batendo em retirada porque os Estados Unidos perderam mais essa guerra insana, argumentando que a saída foi programada com antecedência e que
se deve ao “restabelecimento da democracia” naquele país. Portanto, melhor sair agora do que se submeter a acordos de paz duvidosos, deixando claro que perdeu mais uma, a exemplo do que aconteceu na guerra do Vietnã. Obama sabe da impossibilidade de vitória nas areias e cidades do Iraque, onde 80% da população apoiam a resistência à invasão estadunidense e, por isso, sai de mansinho. Além disso, o presidente sabe também que uma outra derrota está à espreita do maior exército do mundo. A próxima se dará nas montanhas do Afeganistão, para onde o governo dos Estados Unidos pretende deslocar parte da soldadesca que será dispensada do Iraque. Numa declaração que passou quase desapercebida, Obama admitiu a derrota política de seu país. Apesar disso e, basicamente, para não criar mais pontos polêmicos com os republicanos – que não se conformam com a retirada do Iraque e de quem depende para aprovar seus pacotes contra a crise econômica –, determinou o envio de mais 17 mil soldados para essa guerra esquecida. O Afeganistão não tem petróleo, poucos se importam com aquela sociedade tribal e, portanto, os EUA podem ficar por lá, alimentando os bolsos dos que lucram com os conflitos armados e mantendo a opinião pública ocupada com outras informações além da crise que vem devastando os Estados Unidos e o mundo. Mas, antes mesmo de tantas reviravoltas no cenário internacional, Barack Obama proibiu a tortura nos interrogatórios dos presos políticos e prisioneiros de guerra feitos pelos Estados Unidos mundo afora. Não houve reação imediata, mas a decisão foi recebida com ranger de dentes pelo ex-vice-presidente, Dick Chenney, um dos maiores entusiastas da ocupação no Iraque e um dos que mais faturam com todas as guerras dos Estados Unidos. Em 16 de março, no mesmo dia em que era divulgado o relatório das torturas e abusos na prisão de Abu-Ghraib, em Bagdá, um Chenney quase possesso fez uma declaração que resume todo o governo de Bush: “O presidente Obama tornou o país mais inseguro, pois sua política de detenção e interrogatório prejudica os serviços de inteligência dos Estados Unidos”. No cenário, faltava apenas sangue de inocentes escorrendo da boca do ex-vice-presidente. E nós?
Para a América Latina em geral, e para Cuba em particular, a nova política externa dos Estados Unidos foi anunciada em 11 de março. Naquele dia, por 62 a 35 votos, o Senado estadunidense aprovou o projeto que ameniza as restrições contra a nação socialista, facilitando as viagens dos exilados e refugiados cubanos em direção a seu país. A lei vai além, flexibilizando o envio de alimentos e remédios. O entusiasmo com a nova política internacional do presidente Obama tem levado alguns jornalistas do país a exageros. O editor da seção “Internacional” da revista Newsweek, Fareed Zakaria, escreveu em sua coluna que o presidente dos Estados Unidos começa a extinguir “a política internacional imperialista”. Não é bem assim. Trata-se apenas de uma política mais pé no chão, adequada a uma realidade de crise na qual os Estados Unidos mergulharam, o que lhes impede de exercer seus instintos guerreiros e que exige, para enfrentála, mais parceria e menos autoritarismo. Memélia Moreira, é jornalista e correspondente do Brasil de Fato em Orlando (EUA).