Edição 318 - de 2 a 8 de abril de 2009

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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 318

São Paulo, de 2 a 8 de abril de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br

Álvaro/Movimento 27 de março

Lockige Wockige

Lei Rouanet, cultura na lógica mercadológica

França, um país a caminho da explosão social

Marco Antônio Rodrigues, diretor teatral e fundador do grupo Folias d’Arte, analisa o atual processo de mercantilização da cultura e os incentivos através da Lei Rouanet. Pág. 12

Pela segunda vez em menos de dois meses, os franceses saíram às ruas contra a crise. Em entrevista, Stéphane Monclaire prevê uma possível explosão social sem qualquer controle. Págs. 2 e 9

Condicionantes do STF ferem direitos dos povos indígenas

Trabalhadores saem às ruas em todo o mundo contra os efeitos da crise

Apesar da histórica decisão do STF de manter a demarcação contínua da Raposa Serra do Sol, lideranças indígenas estão preocupadas com as condicionantes impostas pelo órgão. Para elas, as restrições limitam garantias dos povos originários e beneficiam latifundiários. Pág. 3

Milhares de trabalhadores se somaram às principais centrais sindicais, partidos de esquerda, movimentos populares, entidades estudantis e pastorais sociais na jornada mundial contra a crise, iniciada no dia 28 de março. A mobilização foi realizada em todo o mundo a partir de uma articulação construída

durante o Fórum Social Mundial de Belém (PA), em janeiro. No Brasil, as principais bandeiras foram o fim das demissões, a redução da jornada sem redução de salários e direitos, a diminuição dos juros, a reforma agrária, por saúde, educação e moradia, em defesa do serviço público e em solidariedade ao povo palestino. Págs. 2, 4 e 5 Felipe Canova

Polícia Federal apura o círculo de corrupção da Camargo Corrêa Investigações da Polícia Federal levaram à prisão, no dia 25 de março, quatro diretores da Camargo Corrêa. Eles fariam parte de um esquema de superfaturamento de obras, remessa ilegal para o exterior e doações via caixa dois para políticos. Mas o quarteto, como os outros seis suspeitos, já está em liberdade. Mesma situação de Daniel Dantas, que em julho de 2008 foi preso pela operação Satiagraha. As acusações, neste caso, agora pesam sobre os autores da investigação, em especial o delegado Protógenes Queiroz. Págs. 6 e 7

Na África do Sul, o ataque ao direito à água potável A prefeitura da Cidade do Cabo, na África do Sul, vem instalando, nas casas de bairros pobres, medidores que limitam o consumo gratuito de água. Os aparelhos permitem que cada domicílio disponha de apenas 6 mil litros do recurso por mês. O restante deve ser pago. Pág. 10

Na avenida Paulista, em São Paulo, cerca de 15 mil trabalhadores participaram de protesto unificado

Greve com ocupações No Paraguai, a hora é do povo Após chegada de Lugo, tendência é aprofundar lutas sociais e cárcere privado Petroleiros descrevem experiência coletiva A Petrobras errou perante seus funcionários. Não pagou a Participação nos Lucros e Resultados no mês janeiro, justamente quando obteve o maior lucro de sua história. Como resposta, um movimento de greve organizado de norte a sul do país.

Entre as experiências pessoais de resistência e solidariedade durante a ocupação dos espaços produtivos, alguns trabalhadores foram obrigados pela empresa a trabalhar por 50 horas seguidas, sob condições de cansaço e pressão. Pág. 8

O começo da gestão do novo presidente paraguaio, Fernando Lugo, encontra barreiras diante de um parlamento notadamente

conservador. Mas o poder também se move na sociedade civil. Charles Quevedo, professor do Instituto Superior de Estudos Humanistas

e Filosóficos, projeta um cenário de avanço nas mobilizações sociais e de polarização entre os setores populares e as elites. Pág. 11 Daniel Cassol

ISSN 1978-5134

Na ponte da Amizade, brasileiros e paraguaios realizam protesto conjunto


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editorial CERTAMENTE HAVERÁ poucos que discordarão do cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) José Luís Fiori quando este afirma que, frente à atual crise econômica do sistema capitalista, “os economistas e as autoridades governamentais de todo o mundo estão num voo cego”. Mas, também, não é menos verdadeira a constatação de que, mesmo não sabendo diagnosticar a crise e, consequentemente, não sabendo que remédios aplicar para sua superação, os detentores do capital não perderam tempo em aplicar as medidas clássicas do capitalismo para amenizar suas perdas econômicas nessa crise. A necessidade de destruir parte do capital acumulado, promovendo contradições entre a própria burguesia, e a utilização de guerras regionais e localizadas – a irracional e criminosa ofensiva do Estado de Israel à Palestina na passagem do ano e, depois, a ajuda de mais de 4 bilhões de dólares dos países centrais do capitalismo para reconstruir o que eles não impediram que fosse destruído, ignorando completamente as vidas que ali foram ceifadas – atestam essa prática do capital. Além disso, procuram acentuar e agilizar a transferência do capital da

debate

A classe trabalhadora se faz ouvir periferia para o centro do sistema capitalista. As privatizações das empresas estatais ocorridas nos anos de 1990 e até o findar do famigerado governo de Fernando Henrique Cardoso servem, agora, como um dos principais mecanismos de transferência de riqueza para as sedes das transnacionais. Com o mesmo objetivo, o capitalismo internacional se utiliza da manipulação da taxa de câmbio do dólar, do pagamento de juros e da manipulação de preços das mercadorias vendidas e compradas na periferia para fazer essa transferência aos países centrais. Aumentar a exploração da classe trabalhadora, buscando baixar os salários médios, retirar direitos trabalhistas já conquistados, fragilizar as organizações sindicais dos trabalhadores (quando não conseguem cooptá-las!) fazem parte, sempre, da estratégia de privatizar os lucros e socializar os prejuízos. A burguesia não hesita, em momentos de crise, em recorrer às tetas

do Estado para ser socorrida. Nada mais irônico do que ver o último Fórum de Davos, na Suíça, templo do neoliberalismo, esvaziado por uma parte dos capitalistas que sempre iam lá e agora, com a crise, estão falidos; e a outra parte, nas antessalas dos palácios de governo, buscando empréstimos para não se juntar aos falidos. Foi assim que a burguesia sempre buscou sair das crises econômicas que ela própria criou; em resumo, repassando para os trabalhadores o custo da crise. Foi exatamente para se contrapor a essa prática da burguesia que a classe trabalhadora, em todos os continentes do planeta, se mobilizou nesse 30 de março. A crise capitalista serviu para dar a ela uma unidade, ainda que frágil. Em torno das bandeiras de lutas, de não aceitar nenhum recuo nos direitos trabalhistas já conquistados e de não aceitar os programas de demissões como mecanismo para amenizar os efeitos da crise, a classe

trabalhadora fez a manifestação de forma unitária na capital paulista. Seria precipitado, a partir do êxito dessa mobilização, cair na euforia de que a classe trabalhadora já está nas ruas. Da mesma forma, será também um erro minimizar o resultado do protesto, as lições tiradas e os desafios que se apresentam a partir de agora. Em nosso país, os trabalhadores vivem um momento em que nenhuma força política detém a hegemonia em torno de um projeto transformador. É sim necessário então ter a humildade de buscar a união como prioridade para interferência na agenda política do país. Não foram renovados, nos últimos anos, os métodos e forma de se comunicar com as massas e com a sociedade em geral. Houve poucos avanços no, imprescindível, processo de renovação das lideranças e dirigentes da classe trabalhadora. Por último, cada vez mais se evidencia a ausência de trabalho de base e de organização dos operários. Se a

crônica

Douglas Estevam - Paris - França

França marcada pela inquietação social A SEGUNDA grande manifestação que ocorreu na França, dia 19 de março, vem despertando a atenção e reflexões sobre a atual configuração política e social deste país neste período de crise. A amplitude dos protestos e o apoio entre os franceses – 78% mostravam-se favoráveis ao chamado das organizações que culminou nas ações e reuniu 3 milhões de pessoas, de acordo com os sindicatos organizadores – despertam interesses. Pesquisa do Instituto de Estudos de Mercado e Opiniões (BVA), publicada uma semana após os protestos, aponta que 59% dos franceses esperam que os sindicatos continuem com as mobilizações. Outro elemento desse cenário é que, contando com um número maior de participantes do que a mobilização que ocorreu no final de janeiro, a manifestação se estendeu também por várias regiões do território francês, totalizando 219 atividades, particularmente nas cidades mais importantes. Essa amplitude é resultado da capacidade organizativa das 8 centrais sindicais que atuam no país: CFDT, CFE-CGT, CFTC, CGT, FSU, FO, Solidaires e UNSA. Mas, apesar desses avanços, as centrais ainda encontram dificuldades para determinar a continuidade das mobilizações. Após os protestos, representantes sindicais se reuniram para definir um calendário comum de luta, mas não chegaram a um consenso. Mas outra reunião foi marcada para acertar uma jornada unitária para o dia 1º de maio, que é um marco histórico no sindicalismo francês, mas que há décadas tem desenvolvido apenas atividades individuais. O mês de abril também foi indicado como período de manifestações. Crise no mundo do trabalho Uma das inquietações que se manifesta na França – assim como em outros países da Europa – é a enorme disparidade entre os planos que os governos vêm implementando para salvar o sistema financeiro e as grandes indústrias, e a ausência ou insuficiência de políticas que contenham o impacto da crise para os trabalhadores. O governo francês anunciou um pacote de 300 bilhões de euros contra 26 bilhões de euros para as políticas sociais. Na França, a crise se revela no aumento do número de desempregados. Em janeiro, 90 mil pessoas perderam o emprego. Em fevereiro foram mais 79.900, totalizando 2.384.800 sem emprego, segundo o Pôle Emploi. A alta do desemprego é contínua há dez meses. De acordo com a União Nacional Interprofissional para o Emprego na Indústria e Comércio (UNEDIC), este ano o número de demissões pode chegar a 450 mil. Desde setembro de 2008, mais de 25 empresas anunciaram demissões mínimas de 500 funcionários. Os patrões também passam a adotar as dispensas temporárias (chômage partiel). Manifestações crescentes O desemprego tem sido a base para as manifestações no país. Alguns casos têm se tornado simbólicos. Um deles é o dos trabalhadores da empresa Renault. A gigante francesa do setor automotivo anunciou cortes de 4.900 funcionários. Na unidade de Sandouville, em outubro do ano passado, um encontro entre o pre-

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sidente Nicolas Sarkozy e um dos diretores da empresa, Carlos Chosn, foi marcado pela invasão de mais de 300 policiais para impedir que grevistas tivessem acesso ao local da reunião. A empresa Continental se configurou como um dos símbolos maiores da última manifestação. Em 2007, os empregados da empresa alemã aceitaram aumentar sua jornada de trabalho semanal para 40 horas como forma de manterem os empregos. Em março deste ano, o diretor Louis Forzy anuncia que “nenhuma decisão havia sido adotada” e declara o fechamento da unidade. O sentimento de traição foi evidente, e os 1.120 funcionários que serão despedidos iniciaram uma grande manifestação, ocupando a empresa e contando com forte solidariedade da sociedade. O encontro com um dos diretores da empresa foi interrompido ao discutirem o 15° ponto de uma pauta de 50. Um grupo de manifestantes atiraram ovos e garrafas contra o diretor. Em uma filial da empresa Sony, instalada em Landes, os trabalhadores foram ainda mais ousados. Com uma barricada de árvores, mais de 300 empregados impediram que Serge Foucher, diretor da Sony, pudesse sair da empresa, depois de confirmado o fechamento da unidade no mês de abril. O diretor dormiu na sala de reuniões e, no dia seguinte, o prefeito da região se dirigiu ao local para negociar com os empregados. Segundo dados fornecidos pelo Le Monde, somente entre as empresas que farão demissões superiores a 500 empregados, os números nos fazem prever um agravamento da situação. No setor eletrônico, a Hewlett-Packard anunciou 580; e a STMicroelectronics, mais 500. Com uma previsão de redução de 30% de sua produção, a PSA Peugeot Citroën anunciou desemprego temporário em todas as suas unidades na Europa (medidas adotadas também pela Renault) e a demissão, na França, de 3.550 funcionários. No setor farmacêutico serão mais de 3.424 postos reduzidos; 1.235 no setor de minas e energia; 1.400 na siderurgia; e 3.492 no comércio. Convergência de forças

crise foi deflagrada a partir de uma bolha especulativa, a fragilidade na organização de base cria uma bolha organizativa tão prejudicial para a classe trabalhadora quanto aquela para o capital. Mas a unidade das centrais sindicais, movimentos populares, entidades estudantis e pastorais sociais, demonstrada na manifestação das ruas paulistanas, pode muito bem motivar e contagiar outras localidades e segmentos populares da sociedade brasileira. É sim possível a realização de plenárias, sejam municipais, regionais ou estaduais, para discutir a crise e, sobretudo, ação política da classe trabalhadora. É possível pensar um 1º de maio que não seja marcado apenas por gigantescos shows musicais e sorteios de apartamentos, e sim pelo resgate de uma data histórica de lutas dos trabalhadores. É preciso engendrar um processo de construção de novas e maiores mobilizações populares. A crise tende a ser prolongada e a se agravar ainda mais. A classe trabalhadora precisará estar mais bem organizada, com maior unidade e com maior capacidade de mobilizar a sociedade, inclusive a parcela que se encontra fora de qualquer organização social e popular, se quiser realmente enfrentar a sanha e a força do capital.

Há mais de oito semanas, pesquisadores e professores das principais universidade do país, apoiados por uma parte dos estudantes, estão em greve. Na semana passada, as manifestações reuniram mais de 15 mil pessoas contra a reforma proposta pelo ministro da Educação, Xavier Darcos. Conhecida como Reforma Darcos, ela propõe a redução de postos nas universidades, que será da ordem de 1.030 para este ano. Os professores pesquisadores teriam que cumprir uma carga horária de 192 horas de ensino por ano, mas, com a redução do número de quadros, eles têm feito no mínimo 230 horas, o que compromete a pesquisa. O sistema de formação de professores, que atualmente passa por um ano de curso de master, dividido entre estágios e formação, seria suprimido, tendo como consequência o início de atividades de professores que não teriam feito um estágio mínimo de formação. A reforma fiscal imposta por Sarkozy tem gerado críticas mesmo entre os setores do seu partido. Estipulando um teto para o montante dos impostos pagos, essa medida acabou privilegiando principalmente aqueles que têm rendimentos mais altos. Em 2008, 834 contribuintes receberam um montante de 368 mil euros, o que corresponde a 30 anos de salário mínimo na França. No plano fiscal, Sarkozy também implementou um sistema de redução de impostos sobre as horas-extras, o que, segundo os sindicatos, tem contribuído para a redução da criação de novos postos de trabalho. As novas lutas marcadas para o 1º de maio são mais um passo na articulação entre os sindicatos e setores da sociedade, que se mostram cada vez mais preocupados com a crise e suas consequências. Este Dia do Trabalho – com a presença de todas as centrais sindicais, depois de mais de 50 anos de atividades autônomas – pode contribuir para que os protestos ganhem ainda mais fôlego e, assim, tenham força suficiente para intervir e exigir transformação. Douglas Estevam é correspondente do Brasil de Fato em Paris (França).

Marcelo Barros

Nossa cruz de cada dia TODA PESSOA, religiosa ou não, é ferida por uma carência. No mais íntimo do seu ser, se insinua o desejo de algo indefinível e que a própria pessoa não traduz. De um lado, se pensa na consciência da própria fragilidade e, do outro, não há como negar: o coração humano permanece inquieto em busca de uma espécie de infinitude. De fato, muita gente procura expressar ou saciar essa sede na fé, ou em algum grupo religioso. Na história, os grandes líderes espirituais se consagraram em responder a esse anseio da humanidade por uma plenitude nunca alcançada. Muitas outras pessoas preferem expressar sua busca através de uma vida ética e baseada na solidariedade. Jesus de Nazaré consagrou sua vida a fazer desses valores maiores da humanidade os sinais do que ele chamava “o reinado de Deus”, mesmo fora do âmbito religioso. O templo de Deus é o ser humano, e o mais sagrado da vida é o amorsolidariedade pelo qual ele deu a vida. Nessa próxima semana, os cristãos celebram a Semana Santa. Quem não é de Igreja pode se espantar com a linguagem ainda violenta com a qual a tradição interpreta a paixão de Jesus. Ainda se escuta que é o sangue de Cristo que salva e que o sacrifício dele na cruz foi necessário e bom para a salvação do pecado. É uma linguagem que isola a paixão do resto da vida de Jesus e a restringe à violência e ao seu valor no plano moral. Como diz o teólogo Jon Sobrino: “toda a vida de Jesus, tudo o que ele fez, disse, todos os seus conflitos e sua fidelidade ao projeto divino da solidariedade é que salva a humanidade da sua mediocridade e dá o seu Espírito a toda pessoa que quer continuar este caminho”. Leonardo Boff completa: “O que é redentor em Jesus não é propriamente a cruz, nem o sangue, nem a morte, tomados em si mesmos. Mas é a sua atitude de amor, entrega e perdão”. A morte na cruz foi arquitetada pelas autoridades religiosas judaicas que não suportaram sua profecia, e a execução foi decidida e posta em prática pelos romanos que tratavam com a cruz os escravos rebeldes. Nada tem de santo, nem de positivo. Não foi do agrado de Deus, que, por outro lado, acolheu a fidelidade do Filho e sofreu com ele o suplício de uma morte violenta, fruto do mal e da iniquidade do mundo. Essa rejeição ao amor e à solidariedade se expressou daquele modo no tempo de Jesus e se encarna, hoje, em mil cruzes que as pessoas preparam para outras pessoas humanas, de modo que, no mundo, continuam a existir milhões de crucificados. Cada pessoa, vítima do desamor, do egoísmo e da crueldade do mundo, assim como das discriminações de todos os tipos, pende em uma cruz que recorda e atualiza a cruz de Jesus. Esta nos faz rever nossa imagem de Deus. Se Deus é amor, é porque assume o sofrimento da humanidade. Não intervém diretamente na história, mas seu Espírito inspira e dá força aos que trabalham pela paz, pela justiça e pela transformação deste mundo. A Semana Santa, com seus ritos antigos e suas práticas tradicionais, recorda a entrega de Jesus, não para retirá-la da história e transportá-la para o nível de um acontecimento transcendente, e sim para convidar todos os cristãos e não-cristãos ao seguimento da proposta de Jesus, e fazer de sua vida uma existência consagrada à justiça, ao amor e à solidariedade. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 26 livros, dos quais o mais recente é O Espírito vem pelas Águas. Ed. Rede-Loyola, 2003.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Subeditor: Igor Ojeda • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Antonio David, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil Valter Campanato/ABr

Raposa de Tróia LUTA INDÍGENA Condicionantes do STF à homologação do território em RR podem trazer sérios problemas aos demais povos originários do país Vanessa Ramos de São Paulo (SP) A LENDA É Famosa. Mais ou menos entre 1300 e 1200 a.C., um grande cavalo de madeira foi deixado como “presente” aos troianos. No entanto, seu interior, oco, escondia soldados gregos, que aproveitaram o fator surpresa para dominar e destruir a cidade de Tróia. A guerra estava vencida. Milênios depois, a expressão “Cavalo de Tróia” segue atual. Pode ser usada, por exemplo, para definir a decisão de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS) em área contínua, fato que marca uma conquista histórica para os povos indígenas de Roraima, após três décadas de luta e resistência. Porém, o que seria motivo de comemoração tornou-se um momento de apreensão para as demais nações originárias e entidades de apoio. Isso porque, em vez de julgarem apenas a homologação da TIRSS, ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal (STF) foram além do pedido judicial feito pelos autores, originado de uma ação popular, e determinaram 19 condicionantes que deverão afetar diretamente todas as terras indígenas do Brasil. Dentre elas, algumas repetem o que já está previsto na Constituição Federal de 1988 e não trazem novidades, mas outras “atropelam o processo legislativo em curso no Congresso Nacional”, aponta a advogada, professora da Universidade Federal de Brasília e assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rosane Lacerda, que acompanhou ao vivo, com os povos de Roraima, a decisão do Supremo, em Brasília. Segundo ela, as condicionantes poderão repercutir de modo muito negativo na realidade dos povos indígenas em todo o país, significando um retrocesso. A advogada aponta que elas desconsideram princípios fundamentais re-

conhecidos na Constituição de 1988 ou no Estatuto do Índio de 1973, como, por exemplo, o direito à consulta, consagrado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – que dispõe sobre a proteção às populações indígenas e tribais de países independentes –, normativa inserida no ordenamento jurídico brasileiro em 2005. “Ela é clara ao reconhecer aos povos indígenas o direito de serem consultados em todas as questões que lhes dizem respeito”, diz a assessora. Favorecimento

No entanto, a condicionante que proíbe a ampliação de terras já demarcadas (a de número 17) é apontada como uma das mais problemáticas. “Ela favorece abertamente os setores econômicos ligados ao agronegócio, aos agrocombustíveis, às empresas geradoras de energia elétrica, mineradoras, empreiteiras, empresas de celulose, em síntese, todos os grupos que exploram ou desejam explorar as riquezas das terras indígenas”, opina Roberto Liebgott, vice-presidente do Cimi. Na avaliação do coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Dionito José de Souza, da etnia Macuxi, a condicionante 17 traz sérios problemas para a luta dos povos indígenas no Brasil. “É uma decisão muito ruim para os povos que têm terra pequena e já fizeram a demarcação, porque as populações tendem a aumentar. Sem terra, como irão se desenvolver? Faltará condições dignas de trabalho para essas comunidades, que, na verdade, devem ter o que é seu por direito”, afirma o líder. Paulo Daniel, médico no setor de saúde do CIR, aponta como exemplo justamente a TIRSS, onde existem quase 20 mil habitantes em 195 aldeias. Com uma das maiores densidades demográficas da área rural de Roraima, seu crescimento populacional é de 5% ao ano; ou seja, sua população poderá dobrar em me-

Índios festejam o resultado do julgamento na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima

nos de 20 anos. “A proibição de ampliação das terras indígenas já demarcadas é absurda e inconstitucional. Como ficarão tantos povos indígenas do Brasil, e também aqui de Roraima, que estão confinados em terras exíguas que não permitem sequer uma sobrevivência digna nos dias atuais, quanto mais uma perspectiva viável de reprodução física e cultural?”, questiona. Demarcações injustas

Para a antropóloga da PUCSP Lucia Helena Rangel, hoje há muitas comunidades de um mesmo povo reivindicando a ampliação de uma determinada área ou novas demarcações, porque não se levou em conta, na época em que foram feitas, o aumento da população em áreas projetadas para um número determinado de pessoas. Além disso, era um período em que “se considerava que os índios iriam se integrar à comunhão nacional, isto é, iriam desaparecer enquanto categoria indígena”. “Os povos indígenas do Nordeste, do Sul e do Mato Grosso do Sul, que foram expulsos à força de suas terras, tiveram-nas retalhadas,

invadidas e demarcadas apenas em parcelas diminutas, sem porém nunca terem deixado de reclamá-las de volta. Mas, agora, encontrarão na condicionante 17 um grande obstáculo ao seu desejo de uma demarcação que reveja esses erros e abusos”, salienta Rosane. A demarcação é um dos pontos nevrálgicos da questão de terras no Brasil. Lucia Helena aponta a grave situação do Mato Grosso do Sul, onde esse procedimento foi adotado em áreas nas quais, supostamente, todos os Guarani Kaiowá que vivem na região caberiam. “A intenção era limpar a zona de índios para implantar fazendas de gado”, denuncia. As populações foram, então, compulsoriamente levadas para dentro dessas áreas, tendo como consequência muita tensão interna, pois o espaço se mostrou insustentável para a sobrevivência das mesmas, que hoje reivindicam novas demarcações. “Então essa restrição diz respeito a quê? Que não se pode mais atender às necessidades da população atual? Seria uma ideia de que a demarcação se tornaria um fa-

to consumado para um “povo x”, em “ área x”, sem levar em conta seu modo de vida, suas necessidades sociais e principalmente a reprodução”, defende Rangel. Para ela, pedir a ampliação de área demarcada não é apenas uma vontade desses povos. “É uma necessidade para corrigir erros que foram cometidos no momento da demarcação. Muitas delas ocorreram no Brasil para evitar conflitos, em locais que tinham fazendeiros em volta e que possuíam terras griladas”, pontua. Reflexos

Para a antropóloga, a restrição imposta pelo STF vem atender, em outros Estados, aos grandes empreendimentos, que não querem mais ser incomodados com a presença indígena, “trancafiando todo mundo onde já está demarcado e não se falando mais nisso. Todo o processo e essas condicionantes vêm mostrar o quanto o Brasil não quer fazer uma distribuição de terras. Nosso país, que construiu uma estrutura fundiária baseada no latifúndio, desde o período colonial até hoje, não quer abrir mão desse pri-

José Cruz/ABr

Direitos em risco

sa por cima do processo, dos debates e define quais as hipóteses e quais os equipamentos públicos a serem implantados em terra indígena em nome da União”, denuncia.

Restrições podem minar garantias como autonomia sobre o território e direito de consulta sobre obras em terras indígenas de São Paulo (SP) Em 19 de março, ao término das etapas do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS), a determinação de 19 condicionantes pelo Supremo Tribunal Federal (STF) levantou debate entre movimentos indígenas e indigenistas. Para Rosane Lacerda, professora da Universidade Federal de Brasília e assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as restrições podem ser divididas em dois grupos. Um deles, embora atropele atribuições do Congresso Nacional, repete resoluções já previstas na Constituição Federal de 1988 sobre o uso das riquezas do solo, minerais, rios e lagos; o aproveitamento de recursos hídricos e energéticos; o arrendamento da terra; a proibição de ações como pesca e caça por não-índios nas terras originárias; e a garantia dos direitos (inalienáveis e indisponíveis) dos indígenas sobre seus territórios.

Autonomia usurpada

Segundo advogada do Cimi, o discurso sobre a segurança nacional defendido nas condicionantes não leva em conta o que a Constituição estabelece Garantias em risco

A professora, porém, chama atenção para as demais condicionantes. Para ela, estas são ainda mais delicadas, por tratarem de questões como a segurança nacional, a autonomia dos povos indígenas em relação a suas terras e a especulação do agronegócio. Na opinião de Roberto Liebgott, vice-presidente do Cimi, com tais determinações, serão colocadas em risco garantias como o usufruto exclusivo das terras ocupadas

vilégio que só os grandes ou os grileiros têm”, conclui. O exemplo mais uma vez vem do Mato Grosso do Sul. “A Federação da Agricultura local está anunciando que se utilizará das condicionantes apresentadas para ampliar suas demandas judiciais contra os procedimentos de demarcação de terras indígenas naquele Estado”, alerta Saulo Feitosa, secretário-adjunto do Cimi. Além disso, preocupa-se, “tememos que, agora, a pressão política do governo estadual sobre o federal se intensifique ainda mais, na perspectiva de inviabilizar a conclusão dos trabalhos de demarcação já iniciados pela Fundação Nacional do Índio [Funai]”. Para Feitosa, uma reivindicação forte do governo estadual é assegurar a participação de seus técnicos nos Grupos de Trabalho (GTs) de identificação de terras indígenas, o que, na prática, significaria emperrar seu andamento. “Tememos, ainda, que haja um recrudescimento nos números de assassinatos e outras formas de agressão contra os índios no Estado”, ressalta.

Na Praça dos Três Poderes, em Brasília, indígenas comemoram a decisão do STF

pelos indígenas, o direito das comunidades de serem consultadas sobre obras planejadas e a reivindicação da revisão dos limites de terras demarcadas de maneira insuficiente ou o pleiteamento de demarcação de áreas tradicionais usurpadas desses povos. “[As condicionantes] inauguram uma nova forma de relação do Estado com as

terras e com os direitos indígenas”, denuncia. Segundo Rosane, o discurso sobre a segurança nacional defendido nas condicionantes, por exemplo, não leva em conta o que a Constituição estabelece. A determinação da relevância do interesse público para a instalação de bases, unidades, postos e demais intervenções militares está a

cargo de um quórum qualificado para a aprovação, junto ao Legislativo, através de uma lei complementar, e não de uma lei ordinária. “Acontece que essa lei não existe”, declara. De acordo com ela, existem propostas sobre o assunto tramitando no Congresso Nacional, mas sem nenhuma definição. “Agora, vem o STF e pas-

Uma das questões mais delicadas diz respeito à autonomia dos povos indígenas em seu território. Por exemplo, a condicionante sobre o tema diz que o usufruto, pelas nações originárias, da terra localizada no Parque Nacional do Monte Roraima, bem como a administração dessa área e a determinação da entrada de não-índios com intuito de visita e pesquisa, estaria sob responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICM). Porém, a mesma determinação admite que, em relação ao trânsito de não-índios nas demais áreas da TIRSS, é necessário apenas respeitar as normas da Funai. “A condicionante não fala sequer que os índios deverão ser consultados pela Funai”, protesta a assessora jurídica do Cimi. Para Dionito José de Souza, liderança indígena do Conselho Indígena de Roraima (CIR), isso é um desrespeito. “Estamos em nossa casa, não é possível que ocorram ações como essas, em que não se dialoga com a comunidade”, questiona. (VR)




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brasil

De novo uma empreiteira: PF acusa Camargo Corrêa POLÍTICA Quatro diretores da empresa são presos sob suspeita de superfaturamento e caixa dois Gama

Luís Brasilino da Redação Uma empreiteira empresta dinheiro, via caixa dois, para a campanha de certos políticos. Depois de empossados, estes manipulam licitações de obras para beneficiar seus financiadores. Na sequência, a companhia superfatura as construções, destina uma parte dos recursos para contas de seus diretores no exterior e a outra para fazer novo caixa dois, à espera das eleições seguintes. Essas são as linhas gerais do esquema de corrupção, supostamente envolvendo a construtora Camargo Corrêa e sete partidos políticos, que veio à tona na operação Castelo de Areia da Polícia Federal (PF), deflagrada no dia 25 de março. Um clássico. Claudio Weber Abramo, diretor executivo da ONG Transparência Brasil, ironiza, afirmando que esse modelo existe desde o tempo dos antigos egípcios. As investigações, baseadas em escutas telefônicas, apontam para os crimes de remessa ilegal de dólares, superfaturamento de obras públicas e doações ilegais para campanhas eleitorais.

Investigação aponta para o envolvimento dos seguintes partidos: DEM, PDT, PMDB, PP, PPS, PSB e PSDB O círculo Não se pode apontar ao certo com qual dos crimes o esquema de corrupção começou. Arbitrariamente, para ilustrar, diga-se que o processo teve como ponto de partida o direcionamento fraudulento de licitações. Esta se segue com o superfaturamento de obras. Nesse aspecto, as suspeitas mais fortes da PF recaem sobre a construção da Refinaria Abreu de Lima, no Recife (PE). Em 2008, o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou um superfaturamento de R$ 71 milhões no projeto da Petrobras, que é realizado por um consórcio que inclui a Camargo Corrêa. Em seguida, esse dinheiro é repartido. Com o uso de doleiros – sendo o principal deles Kurt Paul Pickel –, uma parte dos recursos seria enviada para o exterior e lavada. Segundo a investigação, foram retirados do país cerca de R$ 20 milhões. Os demais valores seriam remetidos, via caixa dois, para os seguintes partidos: DEM, PDT, PMDB, PP, PPS, PSB e PSDB. Dentre os políticos já citados na operação, estão os senadores Agripino Maia (DEM-RN) e Flexa

Fraude fiscal alimenta a corrupção da Redação Os recursos que compõem o caixa dois das empresas vêm da sonegação fiscal. A análise é de Claudio Weber Abramo, da Transparência Brasil. Ele acredita que, por isso, o combate à corrupção não passa por alterações na legislação eleitoral. “Uma lei não muda interesses. Existe oferta de políticos sobre suas decisões e uma demanda dessas decisões por parte das empresas”, descreve. Sendo assim, Abramo entende que o combate à corrupção passa pelo aperto da fiscalização tributária. “Quando se fala em financiamento eleitoral via caixa dois, está se falando em caixa dois de empresas. E como a empresa acumula caixa dois? Subdeclarando aquilo que recebe. Então, você tem que fechar a origem”, conclui. (LB)

Os grampos Confira a seguir alguns trechos dos diálogos captados pela Polícia Federal:

O caixa dois Marcelo – Aquela tulipa [transação, de acordo com a PF], lembra? Chegou a ver? Pietro Francesco Giavina Bianchi – Não... Marcelo – Então... Pietro – O que que é isso? Marcelo – Eram algumas coisas para acontecerem ontem... Pietro – Sim... Mas o que é, campanha política? Marcelo – É... Pietro – Por dentro? Marcelo – Não... Marcelo é um interlocutor não identificado pelos federais. Pietro é diretor da Camargo Corrêa

O doleiro Kurt Paul Pickel – Então, você poderia dar uma olhada lá na garagem? Pietro Francesco Giavina Bianchi – O Prisco Viana tava lá... Kurt – Como? Pietro – O Prisco Viana está esperando eles lá na portaria. Kurt – Sim, mas ele me disse, aparentemente, passaram na portaria e disseram pra eles irem pela garagem. Pietro – Sim, isso... isso... isso... Kurt – Então, tem “uma” Vectra e “uma” Gol vermelha. Segundo a PF, na ocasião, o doleiro Kurt e o diretor da empreiteira Pietro estariam discutindo como entregar R$ 450 mil para o ex-deputado federal Prisco Viana (PSDB) Gama

Ribeiro (PSDB-PA), e o deputado federal José Carlos Aleluia (DEMBA). Todos negam as acusações. Na operação deflagrada no dia 25 de março, foram presos os diretores da Camargo Corrêa Pietro Francesco Giavina Bianchi, Fernando Dias Gomes, Dárcio Brunato e Raggi Badra Neto; e as secretárias da empreiteira Marisa Berti Iaquino e Darcy Flores Alvarenga; além dos doleiros Kurt Paul Pickel, José Diney Matos, Jadair Fernandes de Almeida e Maristela Brunet. Para completar, a PF aponta a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) como uma das responsáveis pela decisão sobre quais candidatos receberiam os recursos. Assim, Fernando de Arruda Botelho, vice-presidente da entidade e sócio da Camargo Corrêa, também está sendo investigado. Antigos egípcios Claudio Weber Abramo, que analisa o caso a partir de um patamar mais geral e não específico, afirma que esse tipo de esquema é prática comum, disseminada em todo o mundo. “O que explica é o interesse”, pontua. De acordo com ele, os governantes têm um poder muito grande para tomar decisões que impactam fortemente sobre as empresas. Assim, as companhias têm a motivação para influenciar na política, de forma legal ou não. O diretor da Transparência Brasil garante que isso é mais comum em setores nos quais há grande quantidade de dinheiro e que possuem grande interface com o público – no caso brasileiro, bancos e empreiteiras. Com relação às obras públicas, além de mobilizar enormes volumes de recursos, a fiscalização torna-se mais complicada pelo fato de se tratar de um serviço. De acordo com ele, é mais simples verificar a prestação de contas da compra de um equipamento: “Agora, num serviço, como a construção de uma estrada, que tem coisas enterradas no chão, fica fácil de corromper o fiscal”, compara. Má administração Para Abramo, o que está acontecendo na política brasileira são sinais claros de que a administração está sendo muito malfeita. “Em particular, estão destruindo a legitimidade do processo legislativo”, completa. Segundo o diretor da Transparência Brasil, isso tem uma causa clara: a elevada quantidade de cargos de confiança. “A primeira coisa que os governantes fazem após serem eleitos é chamar os partidos e construir, em troca de cargos, uma maioria. É uma usina de corrupção. Por qual razão um partido quer uma superintendência do INSS, do Dnit ou da Funai? Boa coisa não é. E a contrapartida do Executivo é não olhar muito de perto, pois, senão, se destroem as bases do negócio”, analisa.

Acusados já foram soltos Fábio Pozzebom/ABr

Para desembargadora, ordem de prisão foi baseada em afirmações vagas e genéricas

Crimes suíços Pressionados por vários países a colaborar com a identificação das contas secretas de pessoas processadas por crimes do colarinho branco, os bancos suíços refutam a acusação de que constituem um paraíso financeiro para ladrões, corruptos, sonegadores, traficantes e outros criminosos. Cinicamente, alegam que a Suíça só é procurada porque as pessoas não confiam no sistema financeiro de seu próprio país. Será mesmo? Tião Camargo No final dos anos de 1960 e início dos de 1970, a construtora Camargo Corrêa contribuiu financeiramente com a Operação Oban e os aparelhos repressivos da ditadura militar (1964-1985). É uma empresa que tem as mãos sujas de sangue dos que foram vítimas da tortura e das violências do Estado. Sempre esteve ligada aos políticos que superfaturaram obras públicas. Só agora está sendo investigada. Ética profissional A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi convidada a acompanhar a Polícia Federal na operação de busca e apreensão de documentos na sede da Camargo Corrêa, mas recusou o convite. Ao mesmo tempo, executivos da construtora, donos da Daslu e doleiros presos – por algumas horas – contrataram os mais caros escritórios de advocacia de São Paulo, alguns deles, coincidentemente, de ex-diretores da OAB. Crimes israelenses Durante os covardes ataques do Estado de Israel contra a população da Faixa de Gaza, em dezembro e janeiro, todo mundo percebia que as ações bélicas tinham cara de massacre e genocídio. Entidades internacionais denunciaram o uso de armas químicas e a prática de crimes de guerra. Agora, os próprios soldados israelenses que participaram da invasão de Gaza reconhecem as atrocidades contra a população civil. Contrafluxo O ambiente de crise do modelo neoliberal também proporciona ações positivas: no dia 26 de março, o Parlamento Europeu aprovou, por 481 votos a 25, que o acesso à internet deve ser considerado semelhante ao acesso à educação, um direito que não pode ser bloqueado nem por governos nem por empresas privadas. Falta agora garantir que o acesso à educação e à internet seja mesmo universal e gratuito. Posição classista O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, em entrevista na Folha de S. Paulo, reproduz sua visão preconceituosa e de classe sobre os movimentos sociais de sem-terra. Para esses trabalhadores, ele antecipa o julgamento e os condena por violência; mas silencia totalmente sobre os crimes de grileiros e latifundiários que assassinaram centenas de lideranças e jamais foram punidos. Ação incompleta A Polícia Federal até que tem tentado se tornar uma instituição republicana, na medida em que incluiu nas suas ações o combate aos crimes de evasão de divisas, sonegação fiscal, corrupção, superfaturamento de obras públicas e doações ilegais – típicos de grupos empresariais e grandes fortunas. Mas as instâncias superiores do Poder Judiciário continuam protegendo os crimes do colarinho branco. Patronato unido Sabotada pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, a proposta da Conferência Nacional de Comunicação Social também não interessa aos empresários do setor. Em recente encontro, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que congrega a fina flor dos oligopólios de mídia, considerou “preocupante” a realização de tal evento. Afinal, quem vai bancar uma conferência contra a vontade do patronato?

da Redação No dia 28 de março, três dias após a deflagração da operação Castelo de Areia, a Justiça mandou soltar todos os dez acusados pela investigação da Polícia Federal. A medida foi tomada pela desembargadora Cecília Mello, da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Na sua decisão, ela criticou a sentença do juiz Fausto De Sanctis (o mesmo que ordenou a prisão de Daniel Dantas e seu grupo, em julho de 2008, com base nos dados da operação Satiagraha), responsá-

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Lula pediu à PF menos “pirotecnia”

vel pelo mandado de prisão, por entender que ela foi baseada “em afirmações genéricas e extremamente vagas”. De seu lado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu me-

nos “pirotecnia” nas ações da PF. Já o Palácio do Planalto teria sugerido o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos para defender a Camargo Corrêa no caso. (LB)

Política pública Em artigo no Jornal do Brasil (29/3/2009), o sociólogo Fábio Alves de Araújo, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, defende política pública para cuidar da dor. Diz ele: “A principal marca das políticas de segurança pública baseadas na repressão, na morte e no extermínio, como tem sido a do governador Sérgio Cabral e do secretário Beltrame, é o medo e o trauma”.


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A pergunta sobre o paradeiro de Dantas não parece central neste momento Mas o banqueiro conseguiu voltar para as coxias do mundo político, de onde sempre esteve operando. “Está claro que a investigação da Satiahagra vai revelar centenas ou milhares de ‘investidores’ (caixa 2 de empresas, dinheiro de propina, rendimentos não-declarados), entre os quais, empresários, executivos, políticos, altos funcionários do Estado. O Opportunity desvia milhões de reais de impostos não-declarados e esconde o enriquecimento ilícito de muita gente. Esse é o centro da investigação da Polícia Federal”, comenta Octavio de Souza.

Satiagraha sob ataque POLÍTICA Daniel Dantas mantém sua influência, enquanto parlamentares, mídia corporativa e Judiciário perseguem o delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz A virada Certo é que a pergunta sobre o paradeiro do dono do Opportunity não parece central neste momento. Ao menos para a mídia corporativa, parlamentares, Poder Judiciário e governo. O delegado Protógenes Queiroz, o investigador do caso, está intimado a prestar depoimento, no dia 1º (após o fechamento desta edição), na CPI das escutas telefônicas, conhecida como CPI dos Grampos. O ministro da Justiça, Tarso Genro, apoiou essa apuração da condução da Satiagraha. Supostos documentos enviados à comissão indicam que o policial pode ter vazado informações e, ademais, interceptado ligações de uma série de nomes da política, como o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes. Também recai sobre o delegado a acusação de intervenção da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na Satiagraha. Paulo Lacerda, ex-diretor da Polícia Federal e da Agência Brasileira de Inteligência, também foi convocado para o depoimento.

Os papéis foram invertidos? Os acusadores passam a ser os acusados? Ao lado do delegado Protógenes, o juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Criminal de São Paulo, que ordenou as prisões de Dantas e seu grupo, também teve a sua atuação no caso posta em suspeita. A reportagem escutou fonte próxima ao magistrado na 6ª Vara Criminal de São Paulo. Ela informou que, neste momento, De Sanctis não concede entrevistas e que ele prestou esclarecimentos ao deputado federal Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), presidente da CPI dos Grampos, sobre o caráter sigiloso da operação. O parlamentar não se convenceu. De acordo com a mesma fonte, esse tipo de investigação não caberia aos deputados. De Sanctis é o mesmo juiz que autorizou o operativo que revelou as ligações do grupo Camargo Corrêa e partidos políticos. A tendência, então, é que a pressão aumente sobre ele, por parte da construtora e dos sete partidos institucionais denunciados no caso.

José Cruz/ABr

POR ONDE Anda Daniel Dantas, do banco Opportunity? No dia 18 de julho de 2008, o banqueiro teve decretada sua prisão preventiva por suborno, depois de ter sido incriminado pela operação Satiagraha, conduzida pela Polícia Federal de São Paulo. À época, foi denunciada a prática de crimes como evasão de divisas, lavagem de dinheiro, corrupção, sonegação fiscal e formação de quadrilha. No histórico de Dantas estão desde operações com 83 empresas fictícias, remessas ilegais para paraísos fiscais no exterior, obtenção de lucros sem pagamento de impostos e internalização e legalização desses recursos para “investidores”. “É algo mais completo que a operação do Banestado”, lembra o jornalista Hamilton Octavio de Souza, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O banqueiro segue livre, assim como o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta e o investidor Naji Nahas, presos na mesma operação, ao lado de outras 13 pessoas. Em julho de 2008, quando as denúncias da Satiagraha estouraram, Dantas e os demais foram soltos pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, por meio de habeas corpus – duas vezes no caso do banqueiro. A influência de Dantas, originada na década de 1990, estende-se até hoje. Na época da implantação do modelo neoliberal no Brasil, ele foi decisivo para a privatização das telecomunicações, peça oculta no leilão da companhia Vale e ligado a inúmeros fundos de pensão.

O delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz

Outro foco

Na verdade, os ataques contra a operação Satiagraha acontecem desde que ela foi deflagrada. Na mesma semana da prisão de Dantas, Protógenes Queiroz foi afastado,

À direita, o banqueiro Daniel Dantas

Imprensa não tem vontade Lula: entre a omissão política de desvendar os fatos e a perseguição Para jornalista, se a imprensa estivesse empenhada em desvendar a quadrilha de Dantas, colocaria seus melhores jornalistas no caso

Políticos acreditam que Dantas também influencia o atual governo federal de Curitiba (PR)

de Curitiba (PR) A revista Veja já lançou às bancas três edições consecutivas, com direito a matéria de capa, para levantar suspeitas contra a operação Satiagraha, com o alvo na figura do delegado Protógenes Queiroz. A revista afirma ter acessado documentos da investigação enviados à CPI dos Grampos. As acusações contra o policial federal são expostas como comprovadas, e a publicação sugere, inclusive, a imagem de um ególatra, preocupado em construir a própria imagem. Na análise do jornalista Altamiro Borges, secretário de comunicação do PcdoB, a mídia corporativa trabalha com o que se conven-

ciona chamar de “presunção de culpa”. A acusação é um pressuposto da revista, apesar de a Constituição

“Nem entrevistar os envolvidos [citados] nos inquéritos a imprensa faz” falar em inocência até que se prove o contrário. Nesse sentido, de acordo com Borges, a Veja presta o papel de advogado de defesa de Dantas. Mas não é só o semanário: colunistas como Ricardo Noblat, de O Globo, esme-

ram-se na acusação constante ao delegado. Para Hamilton Octavio de Souza, da PUC-SP, se a imprensa estivesse empenhada em desvendar a quadrilha de Dantas, teria posto seus melhores quadros no caso. “Colocaria seus melhores jornalistas para ir atrás, investigar as empresas, os doleiros, os paraísos fiscais, todos aqueles que foram relacionados e envolvidos com esses esquemas nos últimos anos. Mas não, nem entrevistar os envolvidos [citados] nos inquéritos a imprensa faz. E fica mais na cobertura da CPI dos Grampos do que nos escândalos revelados pela Polícia Federal. A imprensa brasileira não tem cumprido o seu papel diante da sociedade”, analisa. (PC)

ao lado de outros dois investigadores, Carlos Eduardo Pelegrini e Karina Souza, por uma razão pouco convincente: um curso de aperfeiçoamento para delegados com dez anos de serviço, de acordo com a PF. Senadores, como José Nery (Psol-PA), Pedro Simon (PMDB-RS) e Eduardo Suplicy (PT-SP), prometem acompanhar Protógenes Queiroz durante o depoimento na CPI dos Grampos, frente à possibilidade de prisão decretada pelo presidente da CPI.

Os ataques contra a operação Satiagraha acontecem desde que ela foi deflagrada. Na mesma semana da prisão de Dantas, Protógenes Queiroz foi afastado

Raimundo Paccó/Folha Imagem

Pedro Carrano de Curitiba (PR)

O Estado brasileiro segue com influência do grupo, com nítido interesse de classe, encabeçado por Daniel Dantas. Essa é a opinião do deputado federal Ivan Valente, que acusa o governo Lula de posição omissa no caso deflagrado pela Satiagraha. “Certamente esse grupo teve peso no governo Fernando Henrique Cardoso e estenderam seus tentáculos para o de Lula”, comenta. Já Valter Pomar, secretário de relações exteriores do PT, enxerga na reação por parte do presidente do STF, Gilmar Mendes, justamente a intenção de prejudicar o governo federal. “É mais do que um advogado dos interesses de Daniel Dantas. Ele é um advogado

dos interesses da quadrilha da privataria e dos esquemas neoliberais da era FHC; e é também um porta-voz da direita contra o governo Lula, contra o PT, contra os movimentos sociais, contra a esquerda como um todo”, comenta. Ivan Pinheiro, secretáriogeral do PCB, defende que o freio de mão imposto à operação Satiagraha, desde o seu início, tem a ver com a chance de o grupo de Dantas, notadamente ligado a FHC, também possuir relações com o governo Lula. “A continuidade da apuração das denúncias do delegado certamente levaria ao elo de ligação da corrupção do governo FHC com a do governo Lula. A continuidade entre os dois governos não foi só na política econômica, mas na corrupção. Mudaram os gerentes”, aponta. (PC)

Na análise do deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), a reação da mídia e Judiciário questionando a condução da Satiagraha tem um sentido “agitativo”. Ela buscaria ofuscar o processo de criminalização de Dantas. O parlamentar defende a apuração de ilegalidades ou abusos no interior das investigações da operação, mas isso sem perder o foco nos resultados e, sobretudo, nos nomes de peso que os quatro anos de trabalho apontaram. O caso deveria ser analisado com distinção entre o que foi o resultado da Satiagraha e as possíveis ilegalidades da investigação, de acordo com Valente. Para ele, as acusações já atingiram um objetivo imediato: a prorrogação da CPI dos Grampos. O deputado do Psol aponta o paradoxo de que o próprio presidente da comissão tenha sido financiado por um dos braços ligados a Dantas. Valente reforça que, até o momento, não há prova concreta de que as escutas usadas na Satiagraha tenham sido ilegais. Certo é que, na hora de sua prisão, o banqueiro havia prometido denunciar “todo mundo”. Um conteúdo altamente inflamável, em todos os departamentos de Brasília. No caso da colaboração da Abin com a PF, o deputado aponta que ainda não surgiu irregularidade. “Tentar inferir que a colaboração entre os órgãos é delituosa pode ser uma forma de tentar travar esse processo”, comenta.

Gilmar Mendes e seus cavalos de batalha Na opinião do deputado federal Ivan Valente, o Judiciário brasileiro opera com dois pesos e duas medidas: complacente com os crimes de Daniel Dantas e do Opportunity, ao passo que trata de criminalizar o movimento social, com alvo preferencial nos sem-terra. Na análise de Ivan Pinheiro, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a crise econômica acelera o saqueio das elites sobre os recursos do Estado. “A burguesia vai precisar saquear os cofres públicos e ser cada vez mais corrupta. Vem daí a tentativa de amordaçar a Polícia Federal e flexibilizar as leis que tratam da prisão preventiva, por exemplo. O Brasil oficial está se movendo para a direita. O líder da direita é o presidente do STF; a agenda legislativa está nas mãos de [José] Sarney e Michel Temer. Se continuar assim, o PMDB vai escolher o próximo presidente. Para Lula, restou o papel de garoto propaganda do capitalismo produtivo, de cabo eleitoral de Dilma Rousseff e de administrador da partilha de cargos da eclética base de sustentação de seu governo”, comenta. (PC)


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Ocupação, cárcere privado e iniciação João Zinclar

Aline Scarso de Campinas (SP) ERAM OITO horas da manhã da segunda-feira, 23 de março, primeiro dia de greve dos petroleiros. Em Guarulhos (SP), trabalhadores discutiam e votavam, em assembleia, se ocupavam ou não a sala de controle do terminal. A ocupação significaria controlar o envio de querosene de aviação para um dos aeroportos de tráfego mais intenso do país – o de Cumbica, na mesma cidade – fato que poderia pressionar a Petrobras a abrir as negociações. A ideia era boa e sempre debatida em momentos de greve no terminal. Todas as vezes, desencorajada. Agora, parecia ser diferente. Ao fim da assembleia, deu-se o aval: os petroleiros estavam dispostos a avançar. De modo pacífico, operadores, com a ajuda de dirigentes do sindicato, tomaram o controle da sala de gerenciamento da produção e, durante os dois dias, cortaram em 70% o bombeio do combustível ao aeroporto. O corte, o máximo permitido por lei, preocupou gerência e supervisores, apesar das afirmações incessantes da Petrobras na imprensa de que a greve estava sob controle e não afetava a produção. O técnico de operação João Silveira*, com 23 anos de casa, foi um dos trabalhadores que ocuparam a unidade. Ele conta que se sentiu satisfeito. “A produção da Petrobras vem do trabalho dos operários. O dinheiro da empresa também. Já a chefia achou que ocupar o terminal era um abuso”, afirma.

Em momentos de fechamento e abertura de válvulas, “vigilantes faziam papel de polícia. Estavam nervosos e ficavam nos pressionando, com medo de que nós sabotássemos. Mas tudo foi feito com muita ordem e critério”, conta operador da Petrobras “Calote institucional” Abuso, para os petroleiros, é o comportamento da Petrobras, que em janeiro não pagou o adiantamento da Participação nos Lucros e Resultados (PLR) e ainda previa um pagamento menor ao dos anos anteriores; e justamente no período em que foi anunciado lucro recorde (relativo a 2008), na casa dos R$ 33 bilhões, 60% superior ao obtido em 2007. Calote institucional, segundo os sindicatos. A alegação, mais uma vez, é a crise. O trabalhador, portanto, precisava reagir. A greve nacional veio como resposta. A estratégia de ocupação foi adotada para além de Guarulhos. Trabalhadores cortaram e assumiram a produção em várias unidades, como o

Terminal de Manaus (AM), o gasoduto de Paratibe (PE), o Terminal de São Francisco do Sul (SC) e as plataformas do Rio Grande do Norte. Os piquetes foram adotados em terminais, plataformas, gasodutos e refinarias. Camilo Canezin Leão, diretor de base de São Paulo, também participou da ocupação em Guarulhos. Segundo ele, práticas de intimidação coexistiram durante todo o tempo em que estavam no controle. “Eram constantes os telefonemas da Petrobras para que se aumentasse o bombeio de querosene”. Em momentos de fechamento e abertura de válvulas, conta Silveira, “vigilantes faziam papel de polícia. Estavam nervosos e ficavam nos pressionando, com medo de que nós sabotássemos. Mas tudo foi feito com muita ordem e critério”. A ocupação no terminal seguiu forte, com o amplo apoio das demais unidades e trabalhadores até terça-feira, 24, à noite. No dia seguinte, deu-se o embargo da Justiça, com a imposição do interdito proibitório e multa no valor de R$ 100 mil ao sindicato. Segundo o setor jurídico do Sindicato Unificado dos Petroleiros de São Paulo (SindipetroSP), “o interdito proibitório é uma ação de Direito Civil, que garante a propriedade ou posse de um bem que se encontra ameaçado”. Na prática, como explica Leão, “é sempre a última cartada da empresa. Um instrumento jurídico para inviabilizar a luta, a greve”. Com ele, a ocupação tornou-se legal e financeiramente inviável. Chegara ao fim. Cárcere Os trabalhadores de Guarulhos não foram os únicos tolhidos em seu direito de greve. Na Refinaria do Planalto (Replan), em Paulínia, também no Estado de São Paulo, a exemplo do que havia acontecido em greve de sete dias no início do mês de março, um grupo de 70 operadores foi obrigado a trabalhar sob condições de cansaço e pressão. Os petroleiros compunham o Grupo 1, que iniciou o turno na segunda-feira, 23, às 7h30. Passadas as oito horas de expediente, os operadores deveriam ser liberados e voltar para suas casas, fato que aconteceu somente na quarta-feira, 25, às 10h, totalizando cinquenta horas intermináveis. O recurso do cárcere é utilizado por empresas para que a produção não pare. Em momentos de greve, como não há a entrada dos trabalhadores dos próximos turnos, os operários são impedidos de abandonar seus postos. A produção é mantida, mas não sem traumas para o trabalhador. Junior Bezerra* é um dos operadores do Grupo 1 da Replan. Ele conta que, durante o cárcere, eles fizeram corte de rotinas e tentavam descansar em colchões espalhados precariamente pelos setores e vestiários. Nas cinquenta horas em que ficou preso na refinaria, conseguiu dormir somente cinco. “Não dá para descansar direito, você não dorme bem, o nível de estresse é muito alto, sua cabeça vai a mil. Queríamos todos ir embora, mas não podíamos sair. A tensão era muito grande”. Não havia o que fazer. Caso abandonassem os postos, os petroleiros poderiam ser demitidos. E por justa causa. Se não bastassem o cansaço físico e a tensão, Bezerra afirma que supervisores começaram a pressionar o grupo: “Vinham todos de uma vez ao setor, cinco ao todo, e ficavam em cima, controlando o nosso trabalho”. Com o passar do tempo, é natural que o estado de alerta dos operários diminua. A responsabilidade e a tensão aumentam invariavelmente. O grupo só foi liberado depois que gerentes e supervisores foram convocados pela empresa para formar uma equipe de contingência pa-

Trabalhadores parados na Replan, em Paulínia (SP): operários foram obrigados a trabalhar sob cansaço e pressão

ra assumir a operação. Assim como na Replan, esses grupos (“pelegos”, para os grevistas) mantiveram as operações por todo o país, em razão da ampla adesão dos operadores na maioria das unidades. Os trabalhadores das unidades de LUBNOR (CE), Rlam (BA), Terminal Madre de Deus (BA), UTGC (ES), Reduq (RJ), Recap (SP) e Repar (PR) também viveram situações de cárcere. Em alguns locais, funcionários que estavam em turno desde domingo, 22, foram liberados somente na sexta-feira, 27, último dia da greve nacional. Primeira vez Para muitos petroleiros, essa paralisação foi a primeira oportunidade de atuação. A categoria fez sua última grande greve nacional em 1995, há 14 anos, em tempos de ataques ferrenhos ao direito dos trabalhadores devido à consolidação do neoliberalismo no país, durante o governo FHC. “Uma greve é sempre positiva porque coloca a categoria em movimento. Muita gente nova parou pela primeira vez e, com isso, surgem novas lideranças”, explica Itamar Sanches, coordenador do Sindipetro-SP. “Participar de um movimento grevista pela primeira vez é um momento de tensão e ansiedade, ao mesmo tempo em que envolve expectativa, esperança e solidariedade. Aumenta-se a convivência com os companheiros e companheiras que diariamente trabalham conosco e dos quais pouco ou nada conhecemos”, relata Breno Silva*, há dois anos na Petrobras. A presença dos trabalhadores “novos”, os contratados nos últimos concursos – especialmente os técnicos – foi fundamental, pois houve uma ampla adesão ao movimento por parte deles. Em muitas unidades, por exemplo, os novatos eram os primeiros a chegar para os piquetes. Silva diz que, da greve, aprendeu algumas lições. Uma delas é de que a categoria é de luta; a outra é sobre a necessidade vital de se organizar. Ainda mais em tempos de crise. *nomes fictícios para resguardar a identidade dos trabalhadores, apesar da gerência da Petrobras ter garantido, em acordo verbal, que não haverá punições (houve recusa em se documentar o acordo).

Greve nacional traz avanços Trabalhadores firmaram acordos com a Petrobras em itens fundamentais da pauta de reivindicações da categoria da Redação A greve nacional dos petroleiros, realizada entre os dias 23 e 27 de março, serviu para que a categoria, após longa negociação com a Petrobras, fosse atendida em reivindicações importantes. Dentre os pontos divergentes entre os sindicatos e a empresa, houve avanço nos

A FUP foi a primeira a aceitar os termos da negociação, já a FNP continuou negociando com a Petrobras até o dia 28 seguintes itens: o comprometimento da empresa em não perseguir nenhum dos trabalhadores envolvidos na paralisação; não instalar uma comissão que apuraria o que a Petrobras chama de

“excessos” cometidos pelos petroleiros; retirar todos os interditos proibitórios instalados nesses cinco dias de greve; e o pagamento da Participação nos Lucros e Resultados (PLR), estendido a todos os funcionários do Sistema Petrobras, incluindo Refap, TBG e Petroquisa. Houve divergências, no entanto, entre as bases da categoria na decisão de finalização da greve. A Federação Única dos Petroleiros (FUP), que representa 11 sindicatos, foi a primeira a aceitar os termos da negociação com a Petrobras e declarar o fim da paralisação, no dia 27. Já a Frente Nacional dos Petroleiros (FNP), que representa seis sindicatos, continuou negociando com a estatal até o dia 28, quando decidiu encerrar a greve.

“Adesão total” Segundo o coordenador da (FUP), João Antonio de Moraes, os trabalhadores conseguiram aumento de 12,5% da Participação nos Lucros e Resultados (PLR), o mesmo valor da gratificação paga no ano passado. Sobre o pagamento de horas-extras

nos feriados, a Petrobras não foi favorável à proposta, mas aceitou conceder o benefício pelo menos no dia 1º de maio, Dia do Trabalhador. “Não foi aceita a totalidade dos nossos pleitos, mas houve avanços significativos”, disse Moraes. Já o diretor do Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro (Sindipetro-RJ), Edson Munhoz, que integra a FNP, afirmou que a Frente Nacional considera insuficiente a proposta apresentada pela Petrobras, e só decidiu encerrar a greve porque considerou que não poderia sustentar a mobilização sozinha, já que a FUP já tinha decidido indicar o fim da paralisação no dia 27. A greve nacional durou cinco dias e, de acordo com nota da FUP, teve adesão total nas unidades operacionais da empresa e adesão parcial em demais setores, como na administração da estatal, além do apoio de outras empresas, como foi o caso da paralisação de 24 horas dos funcionários da BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras (com informações da Agência Brasil).

João Zinclar

LUTA Quatro funcionários da Petrobras contam suas experiências pessoais durante a greve nacional dos petroleiros, realizada no fim de março

Sindicalistas apontam adesão total nas unidades operacionais


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internacional

França está “à beira da explosão social”, afirma cientista político

Lockige Wockige

CRISE ECONÔMICA O analista francês Stéphane Monclaire alerta sobre a defasagem cada vez maior entre as elites políticas e a população do país Lamia Oualalou do Rio de Janeiro (RJ) PELA SEGUNDA vez em menos de dois meses, os franceses saíram às ruas, no dia 19 de março, para protestar contra as respostas do governo às consequências da crise econômica. As previsões são cada vez piores: o governo estima uma queda de 1,5% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2009, além de deficit superior a 5% do PIB e dívida pública de 72% do PIB. Isso significa que a França, como a maioria dos países da zona do euro, não vai cumprir os chamados critérios de Maastricht, que assinou com a entrada em vigor da moeda: deficit inferior a 3% e dívida pública inferior a 60%. Em entrevista concedida durante viagem ao Rio de Janeiro, Stéphane Monclaire, professor de Ciências Políticas na Universidade Sorbonne, em Paris, alerta sobre a defasagem cada vez maior entre as elites políticas e a população francesa. Monclaire, lembrando a tradição de contestação violenta no país, avalia, ainda, que uma explosão social faz parte dos cenários plausíveis. Brasil de Fato – A França foi paralisada no dia 19 de março pela maior mobilização social desde a posse do presidente Nicolas Sarkozy, em maio de 2007. Como interpretar esse movimento? Stéphane Monclaire – De fato, a mobilização foi considerável, e podemos apreciála de muitas maneiras. Em primeiro lugar, quem manifestou, e onde? O que chama a atenção é que a mobilização não foi apenas em Paris e nas grandes cidades de sempre, mas também em lugares onde ninguém saía nas ruas há anos. É um movimento geograficamente muito amplo. E existe uma clara correlação com as zonas em que o desemprego está aumentando ou zonas em que grandes empresas têm projetos de demissões massivas. O que é notável, também, é a popularidade do protesto: 75% dos entrevistados apoiaram a greve do dia 19. É uma proporção enorme, sem precedentes nas últimas duas décadas. Isso significa que o movimento vai bem além da oposição. Muitas pessoas que votaram em Sarkozy e apoiam o governo estão a favor da greve. Esse apoio é ainda mais impressionante quando se lembra que a jornada não tinha nenhum slogan claro. É uma multidão de reivindicações diversas, às vezes contraditórias, com a ideia que algo tem que mudar. Isso dá uma ideia do nível de ansiedade. O que está por trás desse mal-estar? É uma agregação de descontentamentos e exigências, algumas antigas, outras novas. A preocupação antiga é com a queda do poder aquisitivo, contínua nos últimos dois anos. Ela não afeta toda a população, mas a classe popular e a classe média. Há um aumento real do preço dos produtos de primeira necessidade que não é refletido pelos números da in-

“E aqui, você nos vetem?”, pergunta faixa carregada em Paris em 19 de março, na maior paralisação desde a posse de Sarkozy

“A preocupação antiga é com a queda do poder aquisitivo, contínua nos últimos dois anos. Ela não afeta toda a população, mas a classe popular e a classe média.” flação. Claro que o preço das TVs de tela plana diminuiu muito, mas não é o que importa para as famílias humildes. A realidade é que o preço das massas, do leite, da manteiga e outros produtos desse tipo subiu. A classe média, que representa a maioria, percebe que, com o mesmo dinheiro, consegue cada vez menos comida. A isso se junta uma nova angústia, relacionada ao desemprego. Houve uma melhoria do mercado de trabalho nos últimos anos, mas, a partir de novembro, tudo mudou. A crise financeira se transformou em crise econômica com uma violência que não dá para perceber ainda no Brasil. As previsões oficiais são de cerca de 500 mil novos desempregados em 2009. Essas estimativas duplicaram no espaço de seis semanas. Ou seja, podem até mesmo piorar. Isso afeta as pessoas que já perderam seus empregos, mas também todas aquelas que se encontram numa precariedade psicológica frente a esse risco.

O que o governo está fazendo para responder? O governo aumentou o valor do seguro-desemprego, que passou de 60% do salário perdido para 70%. É uma boa decisão, mas ainda insuficiente. Também aumentou os subsídios para as famílias mais modestas. Sarkozy decidiu isentar as pessoas com renda baixa (entre um e dois salários mínimos) de dois terços do imposto anual em 2009. É uma decisão de alto custo para o Estado, mas que vai aumentar em várias centenas de euros a renda de muitas famílias. Mas, em termos gerais, todo o pacote do governo parece ridículo se comparado com o que foi gasto para salvar o sistema financeiro: mais de 300 bilhões de euros emprestados, uma fortuna. A população entende o porquê desse investimento nos bancos? Nem um pouco! As somas são tão grandes que as pessoas que não entendem o funcionamento do sistema financeiro (mais da metade da população) nem conseguem decorá-las. Durante anos, todos os governos disseram que não tinham orçamento para aumentar os funcionários públicos, ou melhorar os sistemas de saúde, educação e Justiça. De repente, o governo solta bilhões para os bancos, sem nenhuma pedagogia. Isso gera incompreensão, que vira exasperação. Especialmente quando, ao mesmo tempo, grandes executivos de bancos seguem exigindo bônus e dividendos astronômicos, enquanto estão à frente das instituições responsáveis pela crise. Até o Medef (Movimento das Em-

presas da França, representante do empresariado) admite que não sabe mais o que fazer para impor decência a esses executivos. Recentemente, a companhia petrolífera Total anunciou lucro recorde de 14 bilhões de euros e, ao mesmo tempo, a demissão de 400 pessoas. Essas cenas chocam muito a população. Pouco a pouco, as pessoas começam a duvidar do sistema econômico inteiro. Como é que essas perdas financeiras abismais foram possíveis? Qual é a legitimidade dessas elites que querem ganhar cada vez mais ignorando o desespero dos outros? Uma série de perguntas está surgindo, e parece que os políticos não têm nenhuma resposta. Os partidos de esquerda estão capitalizando sobre esse questionamento? Nada disso. O Partido Socialista está atolado em disputas pessoais desde seu último congresso, provocando cansaço inclusive do próprio eleitorado. O Partido Comunista não consegue impedir seu próprio declínio. A extrema esquerda tem um capital de simpatia – há anos que denuncia o capitalismo, e a realidade parece mostrar que tinha razão. Mas isso não significa que o público gosta das soluções expostas. Dessa vez, os sindicatos estão unificados, o que é muito raro. Mas eles não têm qualquer reivindicação comum, e não estão atraindo novos membros. A taxa de sindicalização nunca foi tão baixa na história da França (8%, e apenas 5% no setor privado). A popularidade do governo está cada vez mais baixa, à medida que o país mergulha na crise. Reprodução

Franceses na rua: tradição de contestação violenta

Quais são os atores políticos que se aproveitam da crise? Estamos em um vácuo político. O sistema representativo está perdendo a legitimidade. Os partidos viraram máquinas profissionais cuja única preocupação é eleger mais pessoas, ganhar cargos. Os programas são apenas ideias vagas para obter votos. Não há renovação do pessoal político, isso é muito claro no Partido Socialista. Gera uma defasagem em relação à população.

“Estamos em um vácuo político. O sistema representativo está perdendo a legitimidade. Os partidos viraram máquinas profissionais cuja única preocupação é eleger mais pessoas, ganhar cargos. ” A mídia também tem uma responsabilidade. Ultimamente, a única coisa que fazem os jornais é perguntar aos políticos como eles pensam em compor as listas para as eleições europeias de junho. Esse assunto não interessa a ninguém, apenas aos candidatos. Nós estamos enfrentando a pior crise econômica dos últimos 60 anos – talvez mais, ainda não se sabe – e os telejornais não mudaram. Para evitar uma explosão social, seria urgente explicar para a população o que está realmente acontecendo. Uma explosão social é possível na França? Absolutamente. A França tem essa tradição de contestação na rua. Não existe uma tradição de sindicalismo pragmático, ou de social-democracia como na Alemanha ou nos países escandinavos. Aqui, é sempre um confronto de forças que resolve. É por isso que a imprensa mundial, inclusive a brasileira, deu uma grande repercussão à jornada de mobilização. Estamos numa situação de transbordamento. O nível de descontentamento é muito alto, comparado ao que o sistema político pode aceitar. Parece que o governo não

consegue tomar conta da velocidade, da acumulação, da violência, da distribuição geográfica das mobilizações. Alguns donos de grandes empresas foram sequestrados durante horas por seus funcionários. Outros executivos foram bombardeados com ovos podres. E não são extremistas ou radicais que fazem esses atos, mas simplesmente funcionários exaustos, exasperados. Todo mundo pensa no exemplo de Guadalupe. O território francês no Caribe ficou paralisado durante semanas, no começo do ano, por um movimento social muito duro. Acabaram ganhando, obrigando o governo a ceder aumentos de 200 euros por mês. É considerável. Na França, muitos estão começando a pensar que sair à rua é a única forma de ser ouvido. Qual é a resposta do governo para conter as tensões? Acho que está fazendo um cálculo. Um governo pode se beneficiar com um conflito violento. Se chegar a ameaçar a segurança pública, uma parte da população começa a ficar com medo, e o governo pode usar isso para recuperar o papel do ator legítimo que restabelece a ordem e impõe as reformas que quiser. É o que aconteceu em 1968. Porém, é um jogo perigoso, até porque a situação econômica não é comparável com a de 1968. Hoje, você pode ver surgir uma série de crises no país. Greves relacionadas com o emprego, mas também grandes problemas no mundo agrícola, já que os agricultores entenderam que podem perder muitos subsídios. E não falta muito para haver de novo uma situação muito crítica nas periferias, como aconteceu nos últimos anos. Dá para imaginar uma explosão social que não seja controlada nem pelo governo, nem pela oposição, nem pelos sindicatos. Vão aparecer novamente as falsas boas soluções, tal como o protecionismo, ou a rejeição dos trabalhadores estrangeiros. Numa visão otimista, essa situação pode ajudar a repensar todo o sistema econômico, integrando pela primeira vez a questão ambiental (www.operamundi.net).

Quem é Especialista também em Brasil, Stéphane Monclaire é professor e pesquisador na área de Ciências Políticas da Universidade Sorbonne, em Paris.


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áfrica

Medidores de “destruição em massa” Adgild Hop

ÁFRICA DO SUL Contadores de consumo de água instalados em casas de bairros pobres da Cidade do Cabo limitam uso do recurso

ENQUANTO MUITAS comunidades pobres da África do Sul lutam para ter reconhecido o seu direito à água potável, a prefeitura da Cidade do Cabo recebe uma série de críticas por instalar medidores que limitam seu consumo. Os chamados “artefatos de manejo hídrico” (conhecidos popularmente pela sigla em inglês WMD – Water Management Devices) são contadores de consumo programados para fornecer uma quantidade de água diária previamente acertada. As autoridades esperam que isso reduza o desperdício e ajude as famílias mais pobres a administrarem o recurso. Os medidores permitem que cada domicílio disponha, gratuitamente, de 6 mil litros de água por mês. Após consu-

Juiz avalia que a instalação em caráter obrigatório desses medidores nas casas constitui um descumprimento do direito universal à água, reconhecido pelas leis nacionais mir essa quantidade, fechamse automaticamente. Os usuários devem pagar pelo consumo adicional. O juiz M. P. Toska, de Joanesburgo, avalia que a instalação em cará-

ter obrigatório desses medidores nas casas constitui um descumprimento do direito universal à água, reconhecido pelas leis nacionais. O magistrado também acredita que a destinação básica gratuita de 25 litros diários por pessoa é insuficiente. “Os WMD são medidores pré-pagos disfarçados”, lamenta Elias Mkhwanazi, coordenador da Convenção Hídrica de Cabo Ocidental (WCWC), rede que representa várias organizações não-governamentais, comunitárias e sindicais. Cabo Ocidental é a província onde fica a Cidade do Cabo. Funcionários do Departamento de Água e Saneamento local rechaçam as queixas dos moradores. Insistem que os WMD são uma boa solução, pois fornecem a quantia diária de água acertada de antemão. Quando chega ao limite, o fluxo é interrompido até a manhã seguinte. Alguns líderes comunitários como Sulyman Stellenboom consideram que os WMD “são armas de destruição em massa”, e destacam que a sigla é a mesma usada em inglês (Weapons of Mass Destruction). “Isso nos leva de volta aos dias do apartheid, quando usávamos o sistema de baldes”, explicou Stellenboom, referindo-se à institucionalização da segregação racial contra a maioria negra que existiu na África do Sul até 1994. Nesse período, os moradores de comunidades irregulares e sem acesso à água corrente tinham de caminhar vários quilômetros para recolher em baldes a água que utilizavam para beber, cozinhar e se higienizar. Contraste

Segundo a Convenção Hídrica do Cabo Ocidental, a Cidade do Cabo gasta oito vezes mais no fornecimento de água a subúrbios de população predominantemente branca e de classe média, como Durbanville, do que com bairros de maioria

Mulher lava roupa em tanque na periferia da Cidade do Cabo; abaixo, modelo de medidor

negra, como Khayelitsha. “Nos negamos a pagar antecipadamente pela água, mas estamos dispostos a receber a conta no fim do mês”, afirmou. O Departamento de Água e Saneamento local alega que os medidores somente são instalados em domicílios sem condições financeiras para pagar um serviço convencional. Porém, moradores de áreas mais pobres acreditam que, em última instância, o WMD os obriga a pagar mais no fim do mês. Mkhwanazi disse saber de numerosos habitantes, considerados “indigentes” por estarem desempregados ou ganhar menos de 100 dólares mensais, que recebem contas superiores a 200 dólares por oito meses de consumo, quando vivem em casas onde existe apenas uma torneira. O diretor do Departamento de Água, Lungile Dhlamini, atribui essas contas exorbitantes à má construção das casas, que apresentam infiltrações. “Então, a prefeitura intervém, conserta as infiltrações e cancela as dívidas”, fazendo uma conta nova, assegurou.

Reprodução

Raffaella Delle Donne da Cidade do Cabo (África do Sul)

Mas, segundo Stellenboom, esse não é o caso em Mithchell’s Plain, cujos moradores recebem reiteradamente “cartas vermelhas”, ou intimações. Uma habitante do bairro, Tanya Smith, compartilha sua pequena casa com outras seis pessoas da família, entre elas um tio doente. Smith se queixa de que o sistema de WMD causa frequentes cortes de água, às vezes por semanas, sem razão aparente. “Como podemos viver assim? Como posso criar meu filho sem água?”, pergunta. Suas objeções foram apoiadas por moradores dos distritos de Atlantis, Delft e Mfuleni, que disseram estar sofren-

do cortes no serviço após o consumo de apenas 20 litros. As declarações vão contra a informação da prefeitura da Cidade do Cabo, que alega fornecer 25 litros diários por pessoa. Dhlamini, do Departamento de Água, admite que houve ocasiões em que os WMD não foram adequadamente instalados, o que, segundo ele, pode ter causado os cortes. Violação

Ativistas e líderes comunitários dizem que os WMD constituem uma clara violação do direito à água gratuita, estabelecido na Lei Sul-africana da Água, segundo a qual ninguém deveria carecer desse elemento por mais de sete dias. Em média, uma pessoa necessita de 94 litros de água por dia para atender a necessidades básicas como beber, cozinhar e tomar banho. Embora tenha começado como um projetopiloto, a prefeitura da Cidade do Cabo está, agora, em pro-

cesso de instalar o WMD em vários bairros, supostamente sem realizar nenhuma consulta às comunidades. Tal instalação se tornou obrigatória nas casas pobres. Além disso, apesar de as autoridades alegarem que esses contadores são colocados gratuitamente, Mkhwanazi, da WCWC, mostrou à reportagem recibos provando que os moradores são cobrados em 80 dólares por um aparelho que não desejam. A entidade exige que o governo deixe de castigar os pobres, que nem sempre podem pagar serviços básicos como o da água, e consulte as comunidades a respeito. O líder comunitário Sulyman Stellenboom, que se sente cada vez mais frustrado pela má qualidade do serviço, disse que, se a prefeitura não começar a levar a sério os problemas da população, a WCWC fará mobilizações: “Por que não colocam esses medidores em áreas ricas? Eu disse à prefeita Helen Zille que, se necessário, os arrancaremos”, ressaltou. (IPS/ Envolverde)

ANÁLISE

Obama envia mais mercenários ao Afeganistão Adam Mancini/US Army

EUA Os militares estão oferecendo novos contratos a empresas de segurança para conseguir homens dispostos a defender as bases estadunidenses Jim Hightower – Meus meninos valentes, vamos à guerra! Enquanto o presidente Barack Obama começa a reduzir pouco a pouco a guerra de Bush no Iraque, está intensificando outra mais a leste. Dizem que será uma nova e grande aventura estadunidense no Afeganistão, que envolverá uma vigorosa estratégia de grandes proporções para “estabilizar” um país perpetuamente instável. De início, a operação agregará 17 mil soldados aos 36 mil que já estão lá. Em breve, ainda durante este ano, haverá uma segunda operação de mais 17 mil militares. Espera-se que essa massa se some a uma série de novas equipes que se instalarão em vastas regiões desse Estado empobrecido, rural, formado majoritariamente por analfabetos, governado por líderes tribais fortemente armados e agressivos. Não nos dizem quanto custará essa escalada, mas ela irá, pelo menos, duplicar os 2 milhões de dólares por mês que os contribuintes estadunidenses já estão desembolsando para a guerra afegã. A parte extraespecial desse esforço virá de uma “operação civil” simultânea, de centenas

de especialistas estadunidenses em desenvolvimento econômico. “O que não podemos fazer,” disse Obama em uma entrevista no dia 21 de março, “é pensar que somente um enfoque militar no Afeganistão conseguirá solucionar nossos problemas”. Para conquistar os corações (e a cooperação) do povo afegão, esse aspecto desenvolvimentista da operação tratará de construir infraestrutura (rodovias, escolas etc.), criar novas alternativas para que os agricultores miseráveis abandonem o cultivo de papoula e, em geral, melhorar o nível de vida no país, gerando condições para subsistência. Mercenários O que Obama não menciona é que, além de soldados e civis, há uma terceira operação em seu plano: contratar militares privados, ou seja, mercenários. Sim, outro exército privatizado, como os que já existem no Iraque. Ali, proliferaram as Halliburton, Blackwater e outros aproveitadores da guerra, explorando o trabalho dos soldados estadunidenses, extorquindo contribuintes, matando civis e provocando danos profundos ao bom nome dos EUA. Já existem 71 mil mercenários atuando no Afeganistão, e muitos outros estão se pre-

parando para atacar enquanto o Pentágono aumenta seus gastos com a guerra, agora, de Obama. Os militares estão oferecendo novos contratos a empresas de segurança para conseguir homens dispostos a defender as bases estadunidenses. Apesar dos crescentes casos de abuso nos contratos, o chefe do Pentágono, Robert Gates, defende a adoção dos mercenários: “O uso deles é vital para apoiar as bases operantes em determinados pontos do país”, declarou, em fe-

Já existem 71 mil mercenários atuando no Afeganistão, e muitos outros estão se preparando para atacar vereiro, em uma nota ao comitê do Senado para assuntos de guerra. O que Gates de fato está dizendo é: “Nós não temos um plano; e também não vejo a possibilidade de muitos jo-

Obama quer mergulhar país em aventura no Afeganistão

vens americanos toparem ir à guerra. Vamos ter que pagar os olhos da cara para conseguir soldados que topem ir defender os Estados Unidos naquele lugar”. A maioria das empresas contratadas pelos EUA não são estadunidenses. A agência de notícias Associated Press divulgou que, dos 3.847 contratos para o Afeganistão, somente nove são de empresas nacionais, que, além de tudo, não são nada bem-vistas aos olhos dos afegãos, já que estes tiveram tantas más experiências com elas. Contratos bilionários Vide o caso da DynCorp,

uma empresa da Virgínia que obteve quase 1 bilhão de dólares em 2006 para treinar a polícia da nação do Oriente Médio. O que os afegãos receberam foi um monte de assessores estadunidenses altamente remunerados que não estavam qualificados e não sabiam nada do país. Treinaram uns 70 mil policiais, mas menos da metade terminou o ridículo programa de treinamento de oito semanas, que não incluía nenhum treinamento de campo. Um relatório estadunidense de 2006 sobre os policiais treinados pela Dyncorp considerou-os “incapazes de realizar trabalho rotineiro de ma-

nutenção da ordem”. Ninguém sabe quantos daqueles que passaram pelo programa se apresentaram para cumprir com suas tarefas, nem o que aconteceu com os milhares de caminhões e outros equipamentos usados na ocasião. O pior de tudo é que a DynCorp obteve outro contrato (de 317 milhões de dólares), em agosto passado, para “seguir treinando forças policiais civis no Afeganistão”. Desculpemme, mas o Obama está a ponto de nos colocar – e também sua presidência – em uma bela confusão (AlterNet.org). Jim Hightower é comentarista de rádio e escritor estadunidense.


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américa latina

No Paraguai, tendência é de polarização Daniel Cassol

GOVERNO LUGO Para o analista Charles Quevedo, apesar das contradições, chegada do ex-bispo ao governo criou condições para o fortalecimento dos setores progressistas do país Daniel Cassol Correspondente em Assunção (Paraguai) AO ANALISAR o processo político paraguaio, Charles Quevedo projeta um cenário de avanço nas mobilizações sociais e de polarização entre os setores populares e as elites do país. “Estamos vivendo um novo ciclo de ação coletiva no Paraguai”, analisa. Engenheiro de formação e funcionário do Ministério da Fazenda, Quevedo é professor de Filosofia e mestrando em Sociologia. De formação gramsciana, ele acredita que, apesar das contradições, a chegada de Fernando Lugo à presidência criou condições para o fortalecimento dos setores progressistas da sociedade civil, o que pode redundar num processo de aprofundamento das lutas sociais. “Isso vai exigir do governo tomar o rumo com o qual iniciou o processo eleitoral”, avalia nesta entrevista ao Brasil de Fato. Brasil de Fato – Desde a posse de Fernando Lugo, em agosto do ano passado, quais foram suas principais dificuldades enfrentadas até agora? Charles Quevedo – As origens do governo Lugo têm a ver com uma aliança em que entraram setores muito heterogêneos, de esquerda, de centro-esquerda e mesmo setores conservadores que não estavam no governo anterior. Esse é o cenário dentro do qual se movimenta o governo. E a dificuldade que se projeta no começo da gestão é justamente a impossibilidade de se avançar com a aprovação de leis, porque o parlamento está ocupado pelos partidos tradicionais, que basicamente são todos conservadores. Essa tem sido a principal dificuldade enfrentada para se realizar mudanças mais fortes.

“Há ministérios, instituições, com a presença de pessoas progressistas. Por isso, acho que o cenário mais promissor é que ocorra, a médio e longo prazo, um fortalecimento dos movimentos populares na luta por hegemonia” Nesse cenário em que o governo encontra dificuldades no Congresso e também não consegue promover reformas no Poder Judiciário, você acredita que a saída de Lugo será uma composição mais à direita ou contar com a mobilização dos movimentos sociais?

Movimentos do Brasil e do Paraguai defendem a reforma agrária nos dois países, em ato realizado no dia 26 de março sobre a Ponte da Amizade

Diferentemente dos processos na Bolívia e na Venezuela, em que Evo Morales e Hugo Chávez chegaram ao poder apoiados por um amplo movimento popular, no Paraguai não houve esse panorama. Assim, Lugo não conseguiu escapar do esquema institucional que estava montado. Ele não tem muitas opções e tem que negociar com os setores conservadores, o que significa que está se acomodando em um espaço de centro. Mas há uma questão. O poder não se concentra somente no Estado; tomá-lo não é simplesmente ocupar o governo. O poder também se move na sociedade civil, espaço no qual se luta pela hegemonia. Nesse sentido, o crescimento dos setores progressistas nesse âmbito tem sido um dos avanços mais importantes. Eu creio que há condições, dentro do governo, para apoiar tal crescimento. Há ministérios, instituições, com a presença de pessoas progressistas. Por isso, acho que o cenário mais promissor é que ocorra, a médio e longo prazo, um fortalecimento dos movimentos populares na luta por hegemonia. A presença de quadros da esquerda no governo não pode gerar uma apatia nos movimentos sociais? Por minha experiência pessoal, já que trabalho no Ministério da Fazenda, considero positiva a presença de progressistas nas instituições do Estado. Porque, dentro das instituições, há possibilidade de revisar as políticas, fazer as coisas. Obviamente que existem situações de pessoas que mudam de posição ao entrar em contato com o poder. É um risco que sempre existe em qualquer processo popular. Mas eu considero positivo. Os setores progressistas podem reorientar as políticas do governo rumo a posições mais interessantes. Intelectuais como John Holloway costumam criticar os processos bolivianos e venezuelanos por essa questão. De um ponto de vista gramsciano, isso estaria totalmente em contraposição ao que pensa John Holloway. A postura de Holloway, nesse sentido, é esperar o grande dia. O dia em que tomaremos o Palácio de Inverno [local tomado pelas forças bolcheviques durante a Revolução Russa, em 1917]. Coisas que não ocorrem. Tomar o governo não é tomar o poder. O poder se conquista antes de tomar o Estado, ele se cons-

trói na sociedade civil, criando uma nova hegemonia, que inclui a participação em processos parlamentares e em instituições do Estado, que são campos da luta de classe.

“Tomar o governo não é tomar o poder. O poder se conquista antes de tomar o Estado, ele se constrói na sociedade civil, criando uma nova hegemonia, que inclui a participação em processos parlamentares e em instituições do Estado, que são campos da luta de classe” E que movimentos da sociedade civil você destacaria como mais promissores? Historicamente, o movimento camponês teve um papel importante. É um movimento que passa por momentos de latência, nos quais não aparece, mas segue trabalhando em sua organização, na capacitação dos militantes, formando redes, mantendo contatos com outros setores. Eu creio que estamos vivendo um novo ciclo de ação coletiva no Paraguai, e o principal componente é o movimento camponês. E como você avalia a resposta do governo em relação à reforma agrária? O movimento camponês no Paraguai é o mais forte, e também possui o inimigo mais poderoso. As elites agroexportadoras são as mais fortes no rol do poder. Por isso, a médio prazo, deve acontecer um processo de luta muito intenso. Acho que vão ocorrer avanços, mas o movimento camponês precisa buscar aliados. O movimento sindical está completamente afastado do camponês. Não se consegue criar uma agenda de temas comuns, e isso é fundamental para o avanço do movimento social no Paraguai. Além das mobilizações de camponeses, as

centrais sindicais estão anunciando uma greve geral, em razão do não-reajuste do salário mínimo. O que isso representa para o governo Lugo? Desde o começo, a maioria das centrais sindicais apoiou a candidatura de Lugo, assim como a maioria das organizações camponesas, à exceção da Federação Nacional Campesina, que defendeu o voto em branco. Basicamente, todos os movimentos camponeses e sindicais apoiaram Lugo, mas sempre se disse que seria um apoio crítico. No momento em que o governo tomasse medidas diferentes do que se imaginava, os movimentos reclamariam. E é isso o que está acontecendo agora. Por isso eu digo que estamos vivendo um novo ciclo de ação coletiva que é muito singular, porque vai exigir do governo tomar o rumo com o qual iniciou o processo eleitoral. Ou seja, não serão protestos contra o governo Lugo, e sim pressões para que ele tome certas medidas e adote certas posições. Porém, se as mobilizações sociais devem aumentar, também se percebe pressões cada vez mais fortes dos setores conservadores. Essa é a questão mais complicada que se apresenta para o governo. Vai requerer muita habilidade política do presidente Lugo e da equipe de governo. É difícil antecipar qual seria o desenlace dessa situação, mas se pode prever um cenário de polarização entre os setores. O que tampouco é negativo, porque isso vai facilitar a consolidação de movimentos de resistência nos setores populares, que anteriormente não podiam manifestar suas posições. Nas eleições, a esquerda esteve muito fragmentada. Se ela tivesse conseguido unificar mais as candidaturas, a composição parlamentar hoje seria muito diferente, porque o crescimento dos votos nos setores progressistas foi muito grande em relação à eleição passada. Houve um aumento de 55% no eleitorado que vota em candidatos progressistas e de esquerda. No início do ano, os movimentos sociais iniciaram uma série de protestos exigindo a saída dos ministros da Corte Suprema, em consonância com o projeto do governo Lugo. No entanto, vem ocorrendo o processo inverso, com os

ministros se tornando inamovíveis até os 75 anos. Por que isso aconteceu? Eu creio que houve uma precipitação dos movimentos, um certo erro estratégico. Uma mobilização como essa requereria uma unificação mais forte dos setores populares. A unidade dos movimentos progressistas deveria estar mais consolidada antes de uma proposta assim tão ousada. No entanto, mesmo com esse erro estratégico dos movimentos, eu creio que, cedo ou tarde, ocorreria essa situação. Porque o Poder Judiciário é o último reduto do Partido Colorado, que agora está fora das instituições que eram a base de seu poder – um poder baseado no clientelismo –, e já não tem recursos das estatais.

“O Poder Judiciário é o último reduto do Partido Colorado, que agora está fora das instituições que eram a base de seu poder – um poder baseado no clientelismo –, e já não tem recursos das estatais” Neste sentido, como você vê a rearticulação dos setores de oposição ao governo Lugo? Há divergências entre as classes dominantes. Elas já não estão unidas como antes; também possuem interesses distintos. A direita não está conseguindo formar um bloco organizado, o que também significa uma chance para os setores progressistas. Isso não acontece também porque o governo Lugo vem sendo, de algum modo, favorável aos interesses econômicos das classes dominantes? Provavelmente. Lugo foi acompanhado, na campanha, por empresários que agora ocupam ministérios. O ministro da Indústria e Comércio pertence a uma elite capitalista tradicional no país. Isso significa que eles fizeram algum cálculo estratégico para verificar as vantagens com a saída do Partido Colorado.

Durante a campanha eleitoral, defendiase muito o combate à corrupção como forma de quebrar o eixo de sustentação da oligarquia paraguaia. Como você avalia esse processo atualmente? Na minha opinião, o tema da corrupção funciona como um mito na política paraguaia. Ela explica tudo. A pobreza, o poder do Partido Colorado... a corrupção explica qualquer coisa no Paraguai. E, na verdade, não explica nada. É um mito no sentido de que se exagera o impacto real que ela tem. O Paraguai podia funcionar com muito menos corrupção, no entanto, ainda existiria pobreza e exploração. Essas questões são explicadas por outras causas, como a concentração de terra, o modelo produtivo agroexportador, a relação com nossos vizinhos, ou seja, uma série de questões estruturais dentro das quais a corrupção é apenas um elemento a mais. Como você avalia, então, as políticas do governo Lugo em relação ao modelo econômico? Somente chegar ao governo não dá força suficiente para realizar transformações estruturais que afetem o modelo em si. É preciso uma hegemonia muito forte para realizar mudanças de políticas públicas através do Parlamento. Portanto, o governo necessita de muito mais força do que a que dispõe atualmente. Você gostaria de mencionar algo para finalizar a entrevista? Parece-me importante o tema das relações entre os movimentos sociais de diferentes países. Historicamente, os movimentos sociais, intelectuais, os setores progressistas do Paraguai estiveram muito ilhados do contexto regional. É uma questão a ser superada. Estamos vivendo uma oportunidade histórica para isso.

Quem é Intelectual ligado aos movimentos sociais paraguaios, Charles Quevedo, 33 anos, é engenheiro de formação e funcionário do Ministério da Fazenda. Leciona Filosofia no Instituto Superior de Estudos Humanistas e Filosóficos (ISEHF), em Assunção, e atualmente cursa mestrado em Sociologia na Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (FLACSO).


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cultura

Lei Rouanet: a cultura como negócio POLÍTICA CULTURAL Diretor teatral explica o histórico da lei e analisa como as grandes corporações são as que mais se beneficiam dela Álvaro/Movimento 27 de março

Dafne Melo da Redação “A POBREZA do imaginário definido por uma arte que não tem perspectiva crítica condena as relações sociais à impossibilidade de cidadania”, alerta Marco Antônio Rodrigues, diretor e autor teatral e um dos fundadores do grupo Folias d’Arte, de São Paulo. Para ele, é exatamente esse o cenário cultural do Brasil de hoje, situação decorrente, em grande parte, da manutenção do modelo de financiamento da Lei Rouanet, mecanismo sancionado em 1991 que garante isenção fiscal para as empresas que investirem em uma determinada produção cultural. Justamente a necessidade de se debater o atual processo de privatização da cultura no Brasil e a lógica mercadológica presente nos meios de fomento à área que levou cerca de 300 pessoas, pertencentes a 55 grupos de teatro, a ocupar, no dia 27 de março, a sede da Fundação Nacional de Artes (Funarte), localizada em São Paulo. A ação, coordenada pelo Movimento 27 de março (formado pelos movimentos Roda de Fomento, Redemoinho e Teatro de Rua de São Paulo), serviu para debater a alteração da Lei Rouanet. Em entrevista ao Brasil de Fato, Rodrigues critica o paradoxo da norma, “que desmentiu a velha ladainha de que somos um país com muitos problemas sociais mais urgentes do que a promoção cultural. Está aí para todo mundo ver: R$ 1 bilhão são reservados anualmente à renúncia fiscal. Seria muito dinheiro, se bem aplicado, para fazer uma revolução gigantesca”. Confira a entrevista abaixo:

“A memória que tenho da Lei Sarney é que, embora se apoiasse no mesmo falso princípio de que é possível mobilizar o empresariado nacional para algum objetivo nobre que não seja a obssessiva perseguição do lucro, ela era mais democrática” Brasil de Fato – A Lei Rouanet foi sancionada em 1991, durante a gestão Collor (1990-1992). Qual era o objetivo daqueles que a implementaram?

Marco Antônio Rodrigues – A Lei Rouanet é filha de uma outra lei de incentivo implementada no governo Sarney [José Sarney, presidente entre 1985 e 1990] por ninguém mais, ninguém menos que Celso Furtado, então ministro da Cultura. A memória que tenho da Lei Sarney é que, embora se apoiasse no mesmo falso princípio de que é possível mobilizar o empresariado nacional para algum objetivo nobre que não seja a obssessiva perseguição do lucro, ela era mais democrática. Era possível, por exemplo, participar de um projeto cultural com serviços, com produtos, enfim, não ficava reduzida à destinação de recursos financeiros. Também não eram necessários lucros astronômicos para que o incentivo fiscal tivesse qualquer efeito, de forma a interessar pequenos empresários na aplicação da lei. Pensava-se que, num eventual processo de aperfeiçoa-

Cerca de de 300 pessoas, pertencentes a 55 grupos teatrais, participaram da ocupação da Funarte

mento, ela poderia ter efeitos comunitários, fazendo com que, por exemplo, o comércio local participasse da “produção” de um espetáculo, cedendo materiais, apoio e até dinheiro, podendo abater do pagamento de seus impostos. Bem, talvez a memória me traia e eu esteja tendo um delírio polianesco. Qual era o objetivo do Celso Furtado ao elaborar a lei?

Acredito que o Celso Furtado, percebendo a dificuldade que teria para conseguir mais recursos orçamentários diretos para a Cultura, optou, à época, por uma estratégia indireta e de longo prazo. Acreditava que, com o tempo, se criaria um ambiente de exuberante produção artística, que acabaria por pressionar um quadro em que não houvesse saída política para a manutenção vergonhosa de uma participação tão ínfima da cultura na vida nacional. Quadro que aliás permanece, a despeito dessas supostas boas intenções (interpretação minha) do mestre Celso Furtado. Como foi a mudança com o governo Collor?

Collor, como sabem todos, entrou rasgando. Aliás, os primeiros órgãos a serem destruídos foram aqueles da cultura: a Fundação Nacional de Artes Cênicas, a Funarte... enfim, terra arrasada. Acabou com o cinema nacional. E como era o rei da moralidade, atingiu de cara a Lei Sarney, inventan-

“Collor agradou as estrelas, que até hoje se mobilizam para manter intocados os seus privilégios, agradou a empresa que o levou à presidência da República (a famigerada Rede Globo) e outras mídias em geral, e agradou as grandes empresas e seus diretores de marketing” do, no seu lugar, a Lei Rouanet, que entrega ao empresariado os destinos da produção artística e da cultura nacional. Acabou com a Lei Sarney dizendo que havia muitas distorções na sua aplicação, com gente se locupletando com os recursos da renúncia fiscal. O discurso pegou fácil, como qualquer discurso pretensamente moralista, policialesco e de retórica revisionista pega desde sempre, à direita e à esquerda. O escopo da Lei Rouanet é o seguinte: só podem se beneficiar dela as empresas que

pagam imposto de renda pelo regime de lucro real. Ou seja, os grandes lucros. Estão excluídas as empresas que pagam imposto por lucro presumido ou lucro arbitrado, ou seja, de lucros menores. Também se excluem benefícios sobre operações de capital, vendas de empresas, impostos sobre heranças. Apenas o lucro real: grandes corporações, bancos etc. É claro que os artistas que têm poder de acessar esses recursos são também os mais conhecidos, com projetos sem qualquer perspectiva crítica. Ou seja, matou vários coelhos com uma porrada só: agradou as estrelas, que até hoje se mobilizam para manter intocados os seus privilégios, agradou a empresa que o levou à presidência da República (a famigerada Rede Globo) e outras mídias em geral, e agradou as grandes empresas e seus diretores de marketing, que têm mais poder na formulação de políticas de fomentos às artes do que o próprio presidente da República. Para não falar dos ministros da Cultura, que, desde aí, são apenas fantoches na manutenção dessa política pública de cunho fascista, privatizante e altamente alienada. Por último, fomentou a organização das grandes fundações, como Roberto Marinho e Itaú, que, sendo as maiores captadoras, legitimam uma operação política que transfere recursos públicos de um bolso para o mesmo bolso, camuflados por uma aparência de preocupaÁlvaro/Movimento 27 de março

ção cívica e cultural. Goebbels [membro do governo de Adolph Hitler famoso por sua habilidade em manipular a opinião pública] vira no túmulo de inveja. Na sua opinião, quais são as maiores problemas que esse modelo de financiamento traz?

A maior distorção é que esse modelo atravessou os governos ditos democráticos de Fernando Henrique Cardoso [1995-2002] e Lula sem nenhum retoque. No atual governo, houve algumas tentativas pontuais de maquiagem da lei, que foram imediatamente soterradas pela resposta imediata das organizações Globo. Celso Frateschi, ex-presidente da Funarte, caiu, na minha opinião, porque sinceramente tentou fazer com que a lei fosse, digamos, submetida a controle público. Uma reportagem no jornal O Globo sugerindo prevaricação foi o suficiente para que o ambiente em que trabalhava ficasse infernal, levando-o à renúncia. Ou seja, a maior distorção é que, da direita mais canina à esquerda mais radical (se é que isso ainda pode se aplicar como adjetivo), a visão sobre cultura é a mais provinciana, estúpida e leviana que se possa imaginar. É um beco quase sem saída, porque a compreensão da sociedade, ou das forças sociais mais progressistas, é exatamente igual: para elas, cultura e produção artística é uma matéria cosmética que deve ser tratada da forma mais subalterna possível.

É possível, por meio dessa reforma na lei, melhorar seu funcionamento, ou ela tem um problema de fundo e deve ser extinta?

Manifestantes debateram a privatização da cultura no país

Na minha opinião, a única forma de ser realmente funcional é que metade do bilhão de recursos destinados ao incentivo fiscal por ano constitua um fundo público regido por editais com participação, em seu julgamento, dos setores organizados da sociedade civil. Segundo, que o empresário arque com parte dos recursos, não como funciona agora, em que o recurso utilizado é exclusivamente público. Terceiro, que os recursos captados pelos que se beneficiam desse estelionato legalizado sejam submetidos a controle público: ou seja,

qual a relevância do projeto para a sociedade? Tem qualidades artísticas? Necessita realmente do dinheiro público ou não passa de uma jogada mercadológica espúria, como a primeira temporada do Cirque du Soleil no Brasil, que captou R$ 9 milhões pela Lei Rouanet e vendeu seus ingressos à razão de R$ 200? Quarto, que o dinheiro captado pague um pedágio de pelo menos 20% ao Fundo Público, que será destinado a projetos que não têm instrumentos para captação, como constituição de bibliotecas públicas, apoio a novos artistas, investimento em projetos de pesquisa de linguagem etc.

“A lei fomentou a organização das grandes fundações, que, sendo as maiores captadoras, legitimam uma operação política que transfere recursos públicos de um bolso para o mesmo bolso, camuflados por uma aparência de preocupação cívica e cultural” Além dos empresários, quais outros segmentos da sociedade se beneficiam desse modelo de incentivo fiscal?

A cultura é a forma que as pessoas vivem, se relacionam e se manifestam. E, mais do que isso, é o sonho coletivo. A produção artística é a forma concreta com que a cultura se manifesta. A pobreza do imaginário definido por uma arte que não tem perspectiva crítica condena as relações sociais à impossibilidade de cidadania. A quem isso interessa: à manutenção de um programa econômico e político que se baseia justamente nisso, na ignorância, na exclusão, na competição mais violenta como forma de exercício de poder.

Por fim, qual seria um modelo alternativo de política pública e financiamento para a área cultural?

Há inúmeros exemplos em todo o mundo, de países inclusive conservadores em seu exercício democrático: financiamento público movido pelos interesses genuínos de desenvolvimento da população. Orçamento público. O paradoxo da Lei Rouanet é que ela desmentiu a velha ladainha de que somos um país com muitos problemas sociais mais urgentes do que a promoção cultural. Está aí para todo mundo ver: R$ 1 bilhão são reservados anualmente à renúncia fiscal. Seria muito dinheiro, se bem aplicado, para fazer uma revolução gigantesca. Da forma que é, destinando recursos públicos para quem deles não precisa, atende precisamente aos interesses de uma política cultural fascista e excludente.

Quem é Marco Antônio Rodrigues é diretor e autor teatral e um dos fundadores do grupo Folias d’Arte, que existe há 11 anos. É, também, professor do Teatro-escola Célia Helena, e funcionário da Fundação Nacional das Artes (Funarte) desde 1987, como profissional de Artes Cênicas.


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