Edição 319 - de 9 a 15 de abril de 2009

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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 319

São Paulo, de 9 a 15 de abril de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br

Adriano Dias

UN Office on Drugs and Crime

Em relação a outros países, Brasil tem um Estado “mínimo” O Ipea realizou um levantamento sobre o “tamanho” do Estado brasileiro, comparando-o com o de outras nações. E, ao contrário do que rezam os analistas mais conservadores, o Brasil figura entre os países com a menor proporção de funcionários públicos, 6% em relação ao conjunto da população. Mesmo países como os EUA, defensores do Estado “mínimo”, possuem mais servidores. Pág. 3

Delegados de vários países participam de sessão da Comissão de Narcóticos da ONU, em Viena, na Áustria

ONU mantém uma política antidrogas reacionária e inócua

O sistema financeiro deveria ser público A crise econômica e a subsequente ajuda de governos para grandes bancos despertaram o debate acerca do caráter do sistema financeiro. Em seminário em São Paulo, o professor Paul Singer defendeu a estatização de tais instituições. Para ele, só assim elas poderiam assumir a sua verdadeira missão, que é redistributiva, financiando a maioria da população. Pág. 4

Baixada Fluminense mantém tradição de

assassinatos

Fortemente influenciada pelos interesses dos EUA, a ONU manteve, em reunião com 130 países realizada em março, sua postura obtusa em relação às drogas, centrada sobretudo na repressão. Números mostram que a estratégia é falha: só a produção de cocaína praticamente triplicou em dez anos. Especialistas apontam que não há real interesse em combater o tráfico, um dos negócios mais lucrativos do mundo, chegando a movimentar 320 bi de dólares ao ano. De quebra, os Estados Unidos ainda usam o combate às drogas como justificativa para intervenções militares, sobretudo na América Latina. Págs. 10 e 11

Pág. 6 Jim Garamone

G-20 propõe velhas receitas para a crise As resoluções do G-20 revelam a distância entre a profundidade da crise e a inconsistência das soluções adotadas pelos governantes, analisa Fátima Mello, ativista da Fase. As medidas mantêm as bases da globalização neoliberal, recolocam o FMI no centro da administração monetária e financeira da crise e anunciam a importância da retomada das negociações da Rodada de Doha da OMC. Pág. 2

Asociación Madres de Plaza de Mayo

Na África, Guantánamo faz escola: prisão ilegal e tortura Quênia e Etiópia seguiram o exemplo (ou orientação) dos EUA e prenderam, em 2007, 150 supostos terroristas sem acusação

formal. Os detidos foram torturados, mantidos incomunicáveis e interrogados por agentes estadunidenses e israelenses. Pág. 12

Em Curitiba, moradores do Caximba contra o lixão falia, problemas renais e respiratórios são casos comuns entre os moradores do Caximba, bairro de Curitiba onde está o maior lixão do Estado. Pág. 7

Plano Decenal de “Exportação” da Energia Pág. 5

Barragem de Sobradinho (BA), no médio São Francisco

Argentina: duas mães, uma ditadura João Zinclar

ISSN 1978-5134

Seres humanos buscam restos de comida no aterro que concentra o lixo da capital e de mais 16 cidades do Paraná. Urubus, mosquitos, fedor. Aborto por anence-

Grupo de Mães da Praça de Maio realizam protesto diante da Casa Rosada

Depois de 32 anos, as duas entidades que reúnem as Mães da Praça de Maio ainda fazem voltas na praça toda quinta-feira, de-

nunciando e perguntando: “Onde estão os nossos filhos?”. Em entrevistas, Nora Cortiñas e Hebe de Bonafini explicam a natureza

do regime ditatorial em seu país e o envolvimento de setores civis e da Igreja Católica na repressão aos opositores. Pág. 9


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de 9 a 15 de abril de 2009

editorial A FOLHA de S. Paulo está realmente empenhada em reescrever a história recente do Brasil. Seus leitores ficaram sabendo, no dia 5 de abril, que a atual ministra Dilma Roussef, ex-militante da organização VAR-Palmares, uma das que promoveram a luta armada contra o regime militar, participou, naquela época, de um plano para sequestrar o senhor Delfim Neto, ex-ministro da ditadura, único signatário civil do AI-5 e um dos arquitetos do “milagre econômico” que gerou a monstruosa dívida externa brasileira. A informação da Folha – um jornal sem dúvida sério, equilibrado, imparcial –, baseou-se numa única entrevista, feita por telefone, com Antonio Roberto Espinosa, também ex-militante da VAR-Palmares, atualmente professor de Política Internacional e doutorando em Ciência Política pela USP. Só tem um detalhe: Espinosa nega que tenha dado tais informações e desafia o jornal a prová-las. Em carta enviada imediatamente à Folha, Espinosa diz, entre outras coisas: “Afirmo publicamente que os editores da Folha transformaram

debate

Quem quer a ditadura um não-fato de 40 anos atrás (o sequestro que não houve de Delfim) num factóide do presente (iniciando uma forma sórdida de anticampanha contra a ministra). A direção do jornal (ou a sua repórter, pouco importa) tomou como provas conclusivas somente o suposto croquis [um desenho esquemático de como se desenrolaria o suposto sequestro] e a distorção grosseira de uma longa entrevista que concedi sobre a história da VAR-Palmares. Ou seja, praticou o pior tipo de jornalismo sensacionalista, algo que envergonha a profissão que também exerço há mais de 35 anos (...).” Mas o falso “furo” da Folha não é um caso isolado. Longe disso. Ainda repercutem as discussões em torno do já famoso editorial de 17 de fevereiro, quando os leitores do jornal – sem dúvida sério, equilibrado e imparcial –, aprenderam que nunca houve uma ditadura no Brasil, mas sim um regime relativamente “brando”. Segundo as explicações dadas pela própria direção da Folha, o edi-

torial quis, simplesmente, mostrar que as coisas não são o que parecem. Assim, enquanto uma ditadura pode conviver com instituições estáveis e até com um certo parlamentarismo (como teria sido o caso do “brando” regime militar brasileiro), outros regimes aparentemente democráticos constituem, de fato, uma avenida para a implantação de uma ditadura (como seria o caso do governo Chávez, na Venezuela). Muito bem: qual o vínculo entre as duas coisas? Parece óbvio, não? Se a ministra Dilma Roussef ganhar as eleições em 2010, o povo brasileiro terá conduzido uma “terrorista” ao poder, alguém potencialmente tão perigoso para a democracia como Chávez e Morales. Ou, na lógica da Folha, Dilma é a ditadura disfarçada de democracia. Eis o ponto: será que queremos para o Brasil um regime como o venezuelano – e, por extensão, como o cubano e o boliviano? Não por acaso, aliás, as ofensas assacadas pelo jornal – sem dúvida sério, equilibrado e imparcial – contra

crônica

Fátima Mello

G-20 e a multipolaridade com sabor de passado

As resoluções adotadas no encontro de Londres revelam a distância entre a profundidade da crise e a inconsistência das soluções adotadas pelos governantes A reunião do G-20 foi o momento de consolidação do fim dos recentes ciclos bi e unipolares. Brasil, China, Índia e outros países chamados emergentes são convocados ao núcleo duro do processo decisório global, visando a dar-lhe maior legitimidade e solidez simbólica, política e econômica, e apontando para a perspectiva de finalmente o sistema internacional entrar em um ciclo marcado pela multipolaridade e pela democratização da governança global. No entanto, as resoluções adotadas ao final do encontro de Londres pelo G-20 revelam a distância entre a profundidade da crise e a inconsistência das soluções adotadas. Apesar da aparente tendência à multipolaridade e à adoção de algumas medidas merecedoras de elogios – como uma

maior regulação do sistema financeiro, o fim dos paraísos fiscais e o aperto aos bônus para executivos financeiros –, a aposta numa institucionalidade caduca para gerir a crise é muito preocupante. Não é de hoje que as instituições de Bretton Woods estão em crise. Essas instituições, criadas no pós-guerra, há muito não refletem as necessidades de desenvolvimento e de governança do mundo atual. O G-20, ao invés de “fechar o caixão” dessas instituições moribundas, decidiu ressuscitá-las, recolocando o Fundo Monetário Internacional (FMI) no centro da administração monetária e financeira da crise e anunciando a importância da retomada das negociações da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Essas medidas não correspondem às necessidades de um mundo que vive uma crise profunda de natureza não apenas econômico-financeira, mas também com dramáticas dimensões climáticas, energéticas, ambientais, alimentar, social, de valores, e que desemboca na esfera da política. A longa crise de legitimidade do FMI, Banco Mundial e OMC têm uma motivação real que o G-20 parece desconsiderar: os princípios e regras que governam essas instituições estão obsoletos e não correspondem ao atual estado do mundo e da correlação de forças na ordem internacional. Por exemplo, FMI e Banco Mundial são governados por um sistema cujo poder de voto de cada país é proporcional a sua contribuição financeira, ao contrário do sistema das Nações Unidas (cada país um voto). Por mais “chique” que seja o Brasil contribuir ao FMI, o peso decisório dos países do Norte sempre será infinitamente maior.

Luiz Ricardo Leitão

Os novos “Adões” de Bruzundanga Gama

A RECENTE reunião do G-20 (Grupo dos 20 países mais industrializados), realizada em Londres, revela as contradições entre a necessidade de transformações profundas na ordem internacional para o enfrentamento da crise global e as soluções que apontam para o “mais do mesmo”. O mundo vive um ciclo de aceleradas transformações. Nos últimos 20 anos temos assistido a rupturas de natureza estrutural no sistema e na política internacionais como não se via desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Em 1989, a ordem internacional passou por uma drástica alteração com o fim da bipolaridade da Guerra Fria. A década seguinte, que alguns denominaram de “fim da história”, marcou o curto período em que parecia que não existiam alternativas à hegemonia estadunidense e ao capitalismo em sua forma neoliberal, batizado de Consenso de Washington. Porém, ao final dos anos de 1990 os protestos de Seattle, EUA, durante uma reunião ministerial da OMC, selaram o término do “fim da história” e inauguraram um novo ciclo de quebra da hegemonia neoliberal e de busca de alternativas ao unilateralismo, que se manifestaram no crescimento do Fórum Social Mundial e na reascensão dos movimentos sociais globais. Hoje, exatos 10 anos depois de Seattle, a crise de paradigmas obriga o sistema internacional a se repensar em profundidade.

os professores Konder Comparato e Maria Victoria Benevides referiramse, equivocadamente, ao seu suposto apoio ao regime cubano, enquanto condenavam o regime militar brasileiro. Eles são, segundo a Folha, cínicos e mentirosos. A Folha sim, fala a verdade. Ora... Tampouco por acaso, isso tudo acontece num quadro mundial de crise sem precedentes do capitalismo, da retomada das lutas dos trabalhadores nos países centrais da Europa e da crescente agitação do movimento de massas na América Latina, com participação significativa de setores inteiros que, tradicionalmente, não se integravam de maneira tão clara e positiva, como é o caso dos povos originários. A burguesia brasileira tem sólidas razões para se mostrar preocupada com a conjuntura internacional, e as ações do jornal revelam isso. É o que explica a grande campanha movida pelo jornal – sem dúvida sério, equilibrado e imparcial – contra o Movimento dos Traba-

lhadores Rurais Sem Terra (MST) e todos os movimentos sociais do país. A burguesia precisa conduzir ao poder alguém de sua estrita confiança, que não hesite na hora de conter o movimento de massas no Brasil, se necessário usando a força extrema. Embora a “elite” brasileira esteja satisfeita com o governo Lula, Dilma Roussef não tem, pelo menos para um setor representado pela Folha, o perfil necessário. Não se trata, aqui, de discutir o programa de Dilma Roussef, nem de saber se ela poderá representar ou não os interesses dos trabalhadores. Trata-se de apontar uma campanha de calúnias, difamações e de um pérfido revisionismo histórico conduzido pela Folha, que hoje se coloca na vanguarda dos interesses das elites, como se colocou em 1984, ao se apresentar como o “jornal da abertura”– sem dúvida sério, equilibrado e imparcial –, no momento em que a ditadura estava historicamente esgotada e a burguesia decidiu mudar a forma de seu governo. Em tempos de crise, a Folha demonstra sua nostalgia ao se recordar da ditadura.

No caso da OMC, não é à toa que a Rodada de Doha se arrasta há anos sem solução. Os países-membros simplesmente não aderem mais às regras liberalizantes e estruturalmente desequilibradas. Os países do Sul não querem mais abrir mão de seu direito a ter espaço para implementarem políticas industriais e agrícolas sem sofrerem retaliações e sanções. Não é condizente com um mundo em transformação que os países do Sul continuem a fornecer matéria-prima e exportar recursos naturais para que os países do Norte mantenham seus padrões insustentáveis de consumo. As negociações e regras da OMC são incompatíveis com a necessidade urgente de se reduzir as distâncias entre produção, distribuição e consumo, economizando assim energia e reduzindo a crise climática. Ao contrário da pressão da OMC pela expansão infinita do comércio global, é necessária a criação de regimes, mecanismos e instituições de natureza regional e local que estimulem a relocalização das economias, dos mercados locais, aproximando e corresponsabilizando produtores e consumidores. É preciso que as grandes corporações parem de dominar a agenda das negociações globais de comércio e que, no lugar delas, vigore a noção de bens comuns da humanidade. Uma nova ordem multipolar deve se pautar pelo reconhecimento de uma gravíssima crise civilizatória em curso, cuja dimensão econômico-financeira é apenas um dos sintomas. Os remédios do passado só piorarão o estado de um planeta em crise generalizada.

O CRONISTA Carlos Heitor Cony acertou em cheio quando classificou o (anti)meritíssimo Gilmar Mendes como o novo Adão desta República. Explique-se: o escritor “homenageia” com o epíteto bíblico aquela personalidade que volta e meia surge na cena pública nacional, destacando-se pela “capacidade de dar palpites sobre qualquer assunto”. Ou seja, aquela figura que, segundo reza a mitologia católica, a pedido do grande Criador terminou por “dar nome às árvores, às galinhas e às nuvens”. Na opinião de Cony, a mídia tem um faro especialíssimo para desencavar esses oráculos, cuja relação incluiria até mesmo personalidades progressistas como o corajoso Dom Hélder Câmara, que, até ser banido do noticiário pelas arapongas do regime militar de 64, era acolhido com grande simpatia pelos meios de comunicação da terrinha. Agora, contudo, em meio à ampla crise – financeira, social e moral – que nos espreita, a aliança conservadora que se locupleta a expensas da distraída pátria-mãe encontra no presidente do Supremo Tribunal Federal a metralhadora giratória perfeita para subscrever suas posições retrógradas e antipopulares. Ocorre, porém, que o egrégio sr. Mendes não é um cardeal, a quem cabe o dever de zelar pelo seu rebanho sobre a face, por vezes demasiado árida, de nossa terra. Ele é um juiz da mais alta esfera do terceiro Poder, a quem a norma recomenda somente manifestar-se nos autos de um processo, isso se a criatura não possuir, como sói acontecer por cá, comprometimento anterior com nenhuma das partes envolvidas no litígio. É claro que um alto magistrado pode expressar opiniões sobre qualquer tema, admite com sarcasmo o escritor, desde a previsão da chuva até o desfecho das novelas da TV, mas tal veleidade não o autoriza a antecipar publicamente “juízos sobre problemas que, mais cedo ou mais tarde, poderão entrar na pauta daquela corte de Justiça”. Quem dera as palavras do prosador lograssem atingir a cega consciência do arrogante cidadão. Desconfio, porém, que não surtirão nenhum efeito sobre o semideus tupiniquim, cuja prodigalidade em pontificar sobre o alheio, sobretudo contra aqueles que se opõem ao regime do latifúndio e do grande capital, já vem de longa data. Conforme tão bem lembrou o jornalista Luis Nassif, referir-se de forma desairosa e agressiva a quem luta por uma sociedade mais justa e democrática tem sido praxe na carreira do caprichoso juiz, que não hesita em se valer de termos como “canalha” e “gângster” para desqualificar seus adversários. Relembra Nassif que, em 2008, ao rebater a divulgação pela PF de dados relacionados à Operação Navalha, Mendes acusou a corporação policial de empregar métodos “fascistas” e de cometer “canalhice”. Um repórter paulista também tratou de descrever-nos o vocabulário incorporado pelo jurista ao seu juridiquês, quando servia com fervor à dinastia de FHC: ao defender “os interesses do governo”, Mendes empregou termos como “manicômio judiciário”, na luta pelo fim da greve nas universidades; “autismo dos juízes”, na privatização do Banespa; e “censura prévia”, quando sugeriu que os ministros do STF não falassem mais em off. O que dizer agora da criatura, em sua cruzada raivosa contra o MST (que, por motivos óbvios, jamais receberá do novo Adão os mesmos “mimos” com que ele afaga o banqueiro Daniel Dantas e sua tchurma). Mas Mendes não está só em Bruzundanga. O presidente do Senado, outra instituição lapidar da tosca República, também se notabiliza por sua ingerência diuturna em nossa vida política. Este, porém, eu até compreendo: depois de cruzar incólume a ditadura, a Nova República e dois mandatos de Lulinha Paz & Amor, o cacique maranhense julgase no direito de dar piteco sobre qualquer tema, inclusive de moral e bons costumes, que, como bem sabemos, são matéria escassa no Maranhão dos filhos do Sir Ney. Apesar de tudo, não se avexe, caríssimo leitor: esses próceres da moralidade quase sempre têm frágeis pés de barro, como bem atesta o boquirroto Pelé, que insiste em palpitar sobre a vida alheia, esquecendo-se de que, em sua ficha corrida, há casos nebulosos como o da filha ilegítima que careceu de recorrer à Justiça para ser reconhecida, a maracutaia muito mal explicada em um evento da UNICEF, sem contar os espetos de pau que guarda em sua própria casa (a espúria relação de seu filho Edinho com o submundo do tráfico em São Paulo é apenas a mais conhecida...). Pois é, conterrâneo, assim prospera o nosso folclore político: se já não bastassem os velhos anões do orçamento, temos agora os novos Adões de Bruzundanga, que, para nosso azar, não se contentam apenas em escalar a seleção do Dunga – aliás, um outro anão sobre o qual nossos cronistas ainda terão muitas laudas para escrever...

Fátima Mello é ativista da FASE e da Rede Brasileira Pela Integração dos Povos.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Luís Brasilino • Subeditor: Igor Ojeda • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800


de 9 a 15 de abril de 2009

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brasil

O serviço público brasileiro está aquém do razoável, conclui Ipea ECONOMIA Especialistas propõem fortalecimento do emprego público como saída para a crise financeira mundial Renato Godoy de Toledo da Redação Aqueles que defendem um Estado cada vez menos presente na economia e com um reduzido quadro de funcionários devem considerar-se satisfeitos com a representatividade do serviço público brasileiro. O receituário que indica a necessidade de uma máquina pública diminuta parece ser seguido à risca no país, que detém um dos menores percentuais de servidores do mundo, de acordo com um recente levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Intitulado Emprego Público no Brasil: Comparação Internacional e Evolução, o documento comprova o que o presidente do instituto, Marcio Pochmann, convencionou denominar “Estado raquítico”: os funcionários públicos não chegam a representar 6% da população brasileira. É simbólico o fato de a região com a menor proporção de servidores, o Nordeste (5,15%), ser a mais afetada por mazelas sociais. Em relação ao total de trabalhadores ocupados, o funcionalismo representava 10,7% em 2005. A maior parte dos países centrais relacio-

Economistas com visão mais progressista deram aval ao que o Ipea levantou e criticam duramente a versão do “Estado balofo” nados no estudo apresenta nível maior do que o Brasil. Os EUA, maiores propagandeadores do Estado mínimo, têm 14,8% de seus trabalhadores na esfera pública. Os países escandinavos, onde se encontram os maiores modelos de proteção social dentro do capitalismo, apresentam números muito superiores aos demais. A Dinamarca, por exemplo, tem 39,2% de servidores públicos. Na América Latina, o Brasil está atrás de países como o Uruguai, Argentina e Paraguai. Mas à frente de importantes economias, como Chile

e Colômbia – países que têm adotado diretrizes notadamente neoliberais. Pelo quadro da região, pode ser percebida uma redução do número de funcionários públicos de 2000 até 2006. Exceção notável é a Venezuela, que passou de 14,6% em 2000 para 16,6% em 2006, alcançando a terceira posição, atrás de Panamá e Costa Rica. Estado inchado?

No dia 31 de março, o Banco Central divulgou números do erário público que demonstraram uma redução no ritmo de crescimento do superavit primário – economia para o pagamento de dívidas. Em fevereiro, o setor público brasileiro economizou R$ 4,1 bilhões, equivalente a 3,43%, estando portanto abaixo da meta estabelecida, de 3,8%, para este ano. Expoentes do pensamento macroeconômico conservador alertaram para o fato de a maior parte desse gasto não ter sido em função da crise. As principais despesas “em demasia” teriam sido com a insuflação dos dispêndios com custeio e do “inchaço” da esfera pública. Tal tese deve ser no mínimo questionada após a leitura do estudo do Ipea. Mesmo assim o levantamento do instituto foi criticado por tais setores. No jornal O Estado de S. Paulo, a legitimidade do documento e do Ipea foi colocada em xeque pelo artigo do jornalista Rolf Kuntz, denominado “O Estado balofo e seus defensores”. “O critério seguido nessa avaliação é esquisitíssimo. Coreia, Japão e Suíça não valem. Também não valem latino-americanos com bons padrões administrativos, como Chile e Colômbia, nem a segunda maior economia latino-americana, o México. Mas valem os europeus, em geral com grandes burocracias associadas ao Estado do BemEstar e os Estados Unidos”, afirma o artigo. Economistas com visão mais progressista deram aval ao que o Ipea levantou e criticam duramente a versão do “Estado balofo”. “A pesquisa é rigorosamente verdadeira. Quem acompanha essa questão há anos já sabia disso. O levantamento desses dados é relativamente simples, não precisa de muita sofisticação, é só comparar com outros países”, explica o economista José Carlos de Assis, presidente do Instituto Desemprego Zero.

Instituto aponta medidas contra a crise Emprego público e redução da taxa de juros são iniciativas anticíclicas da Redação Em suas considerações finais, o comunicado da presidência do Ipea recomenda a criação de novos empregos públicos, combinada com a redução da taxa de juros e o incentivo a obras de infraestrutura no setor privado. Tais medidas teriam caráter anticíclico na atual conjuntura de crise econômica. “Além da necessária redução das taxas de juros (com o efeito duplamente benéfico de reduzir os gastos financeiros do orçamento público e de estimular os investimentos produtivos do setor privado), seria interessante reordenar os gastos públicos para atividades intensivas na geração de empregos, quer sejam no se-

tor privado (construção civil, por exemplo), quer sejam mesmo no setor público, nas quais os serviços públicos sociais teriam papel importante”, atesta o estudo. A ampliação do serviço público também é apontada como meio de fortalecimento da democracia e da universalização do bem-estar. “Há espaço para o crescimento do estoque e da participação relativa do emprego público no Brasil. O fortalecimento da democracia, com o consequente aumento da demanda por serviços públicos amplos e políticas sociais universalistas, bem como a necessidade de ampliação e melhoria da infraestrutura urbana são fatores que se somam para mostrar a necessidade de ampliação do emprego público no Brasil”, conclui. (RGT)

Para ele, a resposta ao estudo do Ipea é fruto de uma leitura mais ideológica do que científica. “O problema é que vem sendo feita uma campanha asfixiante sobre o ‘inchaço’ do Estado para pressionar o governo a elevar o superávit. Enfim, uma campanha totalmente ideológica e que não está fundamentada em dados. O Estado de S. Paulo apresentou um artigo sem nenhum dado e falsifica ideologicamente a questão. Esse estudo do Ipea põe uma pá de cal no argumento do ‘Estado inchado’”, define. A pesquisa afirma, mais de uma vez, textualmente que tal argumento não tem validade perante os dados relaciona-

dos. “É preciso antes de tudo destacar que não está havendo, nos últimos anos, um ‘inchaço’ do Estado, medido em termos de emprego público”, pontua. Migração privado-público

Para o economista da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), José Martins, o momento é de ampliação de serviços públicos, por conta dos impactos da crise econômica mundial. “Em momentos como esse, é natural o aumento da demanda por serviços públicos. Grande parte da classe média que tinha filhos na escola particular e plano de saúde privado passa a utilizar os serviços públicos. Esse é mais

um motivo para pensar na ampliação dos serviços e investir na qualidade das instalações e principalmente dos fatores humanos”, analisa. Martins aponta para a necessidade de um plano emergencial. “Duas medidas urgentes: modernização e atualização de treinamento dos servidores existentes e uma grande contratação de novos funcionários diretamente ligados ao atendimento das pessoas”, defende. Outro ponto do ideário neoliberal é alvo de contestação dos economistas ouvidos pela reportagem. As principais críticas de setores da imprensa às destinações orçamentárias da União estão relacio-

nadas ao aumento de gastos com o custeio da máquina pública. Em outras palavras, com o reajuste de salários aos servidores. “Existem dois comportamentos sem base teórica. Um que afirma que o Estado, em momento de crise, não deve gastar com nada. Outro indica que o gasto com investimento deve aumentar, mas deve ser diminuído o com custeio. Os dois argumentos são falsos. O gasto em investimento arrasta o custeio. A não ser que se criem ‘elefantes brancos’, como hospitais sem médicos. Saúde, educação e previdência requerem gente para trabalhar”, contesta José Carlos de Assis.

Emprego público em relação ao total de ocupados (em %) na América Latina

Emprego público em relação ao total de ocupados (em %) 1995

2005

ALEMANHA

15,5

14,7

AUSTRÁLIA

15,2

14,4

BÉLGICA

19,3

19,5

CANADÁ

19,9

16,3

6,6

6,3

DINAMARCA

39,3

ESPANHA

PAÍSES

2000

2002

2004

2006

ordem em 2006

PANAMÁ

21,1

20,4

19,6

17,8

1

COSTA RICA

18,7

17,3

17,0

17,2

2

VENEZUELA

14,6

13,8

15,4

16,6

3

39,2

URUGUAI

17,2

17,3

17,0

16,3

4

15,4

14,3

ARGENTINA

15,9

21,7

19,3

16,2

5

ESTADOS UNIDOS

14,9

14,8

PARAGUAI

12,7

11,5

11,4

13,4

6

FINLÂNDIA

25,7

23,4

FRANÇA

24,6

24,9

REP. DOMIN.

13,8

13,8

11,9

13,2

7

HOLANDA

15,5

14,6

BRASIL

12,7

12,6

12,5

12,5

8

7,0

6,3

9,7

9,7

9,6

10,6

9

PORTUGAL

14,4

15,1

CHILE

13,1

n.d.

11,4

10,5

10

SUÉCIA

33,5

30,9

SUÍÇA

8,3

8,4

EQUADOR

11,0

11,5

10,6

9,7

11

TURQUIA

10,1

10,7

COLÔMBIA

8,7

7,6

7,6

7,5

12

BRASIL

11,3

10,7

11,0

12,0

10,7

n.d.

13

COREIA

JAPÃO

HONDURAS

PERU

Fonte: OCDE e PNADs

Fonte: CEPAL

var. média anual (%)

OCUPADOS NO SETOR PÚBLICO 1995 abs. Brasil

2002 %

abs.

7815144

Centro-Oeste

2003 %

8703045

abs.

2007 %

8815810

abs.

%

19952002

20032007

1,55

3,63

10168680

690346

8,83

785265

9,02

817122

9,27

922896

9,08

1,86

3,09

2176917

27,86

2347787

26,98

2351179

26,67

2691932

26,47

1,09

3,44

525676

6,73

703866

8,09

721961

8,19

883638

8,69

4,26

5,18

Sudeste

3268406

41,82

3601286

41,38

3586977

40,69

4179463

41,1

1,4

3,9

Sul

1153799

14,76

1264841

14,53

1338571

15,18

1490751

14,66

1,32

2,73

Nordeste Norte

Fonte: Elaboração própria a partir das PNADs dos anos selecionados

Deficit não é problema, afirma economista Momento requer investimento público pesado da Redação Diante da retração do superavit primário brasileiro, anunciada no dia 31 de março, a política fiscal do governo passou a ser questionada por economistas ortodoxos. As críticas são endereçadas a uma suposta falta de rigor fiscal e gastos em excesso. Entretanto, o mundo assiste a uma queda do superavit primário e o consequente deficit de diversos países centrais, como os EUA e a França. Enquanto os recursos que o Brasil acumula para o pagamento de juros devem representar 3,8% do PIB, de acordo com a meta

anual, os EUA deverão fechar o ano fiscal com 2 trilhões de dólares negativos. Projetando que o PIB estadunidense seja de 13 trilhões de dólares, o deficit deve representar cerca de 15% do montante.

Para José Martins, economista da Ufal, o Brasil poderia até ser deficitário para investir na ampliação do serviço público Economia desnecessária

Para José Martins, economista da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o Brasil não tem motivos para economizar essa

quantia e poderia até ser deficitário para investir na ampliação do serviço público. No entanto, o economista aponta que a política de deficit aplicada por países centrais tende a ser arriscada. “Os EUA, que gostam muito do liberalismo, vão ter um deficit fiscal de 2 trilhões de dólares. Japão e Alemanha também estão fazendo uma política arriscada, porque estão criando um deficit público muito grande. Acho que isso vai gerar uma crise gigantesca do crédito público”, aponta. Mas, segundo José Carlos de Assis, presidente do Instituto Desemprego Zero, o Brasil necessita de uma balança deficitária para amenizar os efeitos da crise e sair de um quadro de recessão iminente. “Não há porque temer o deficit. A única saída é o aumento do gasto público. No momento de recessão, o setor privado se retrai e diminui o in-

vestimento. O setor público deve tomar empréstimos do privado, por meio de emissão de títulos públicos, e investir. Isso gera um deficit, mas com o investimento, há uma retomada da economia e da arrecadação e o deficit some”, explica. Ideologia

Para convencer a sociedade da necessidade do aumento do gasto público, contudo, seria necessário um enfrentamento ideológico com os defensores do ajuste fiscal. “A melhor maneira de superar esse pensamento é enfrentá-lo, mostrando a verdade. É como no caso da previdência privada. Se formos olhar [os destinos orçamentários previstos] na Constituição, não há deficit nenhum. Superavit para quê? Para pagar aos banqueiros? Eles são improdutivos, não fornecem empréstimos para capital fixo. Isso tem que acabar”, sustenta. (RGT)


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Crise econômica expõe a necessidade de um sistema financeiro público Gervásio Baptista/ABr

ECONOMIA Paul Singer defende estatização de bancos que “emprestam para quem não precisa” Eduardo Sales de Lima da Redação OS BANCOS zumbis, aqueles que se tornaram insolventes após o colapso financeiro mundial, não emprestam. Mas o pior é que, além deles, quase todos os grandes bancos do planeta, por causa da crise econômica, dificultam os financiamentos. Assim, a maior parte é, de certo modo, também insolvente: 90% dos depósitos permanecem neles. Se fossem regidos segundo uma visão pública, isso não aconteceria. A grosso modo, essa é a mensagem que foi transmitida pelo economista Paul Singer, secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE), no seminário “Alternativas à crise: Por uma economia social e ecologicamente responsável”. O debate foi realizado no dia 27 de março na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Para o professor, a lógica do sistema financeiro sempre foi a de “emprestar para quem não precisa”, favorecendo a especulação financeira. “Fatalmente, outra crise virá. Por isso, a necessária mudança nas instituições. Uma oportunidade para, em vez de remediar, dar passos à frente”, defende Singer. Dar passos à frente, de acordo com ele, é estatizar os bancos, já que a missão de um sistema financeiro é ser, sobretudo, redistributivo. “Vai financiar o grande capital, mas principalmente os artesãos, os garimpeiros”, defende Singer, que conclui: “Precisa aplicar o dinheiro a favor da maioria do povo”.

dos nesse setor, visto como público por Singer, o professor da Unicamp cita, entre outras, as práticas exercidas pelo Banco Central (Bacen). Para ele, as suas previsões para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano mudam todo o mês, porque se conformam como um média aritmética de palpites de economistas com interesses e visões de mercado, “uma média de previsões de gente que não sabe o que está falando”. “Se o boletim do Bacen disser que a economia cresce mais, de certo ela crescerá mais. Assim é a forma como a economia capitalista age”, completa. De fato, segundo levantamento feito pelo próprio Banco com analis-

Se no dia 13 de fevereiro o professor Luiz Gonzaga Belluzo afirmava ao Brasil de Fato que a estatização dos bancos já transcorria de “forma não declarada”, o economista Plínio Arruda Sampaio Filho, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também presente no seminário da PUC-SP, afirmou que, até o momento, nos Estados Unidos e na Europa só houve socorro do Estado aos bancos em crise. “E o que é o pior: assume uma forma de estatização, mas que não tem um conteúdo, que é o Estado ter o controle total da política do banco”, pondera. Plininho compreende que houve somente uma socialização dos prejuízos dos ban-

Dar passos à frente, de acordo com Paul Singer, é estatizar os bancos, já que a missão de um sistema financeiro é ser, sobretudo, redistributivo cos pela compra de ativos podres e conclui que “estamos a léguas de distância de qualquer processo que de fato mude o sentido do financiamento no capitalismo”. Lógica privada Como exemplo da ingerência de interesses priva-

O economista Paul Singer

“O problema não é exatamente o ‘Lula’; é o equívoco nosso [esquerda] de sempre pensar em reformar o capitalismo”, analisa Plinio Arruda Sampaio

“Dominar a cadeia produtiva” “O lixo reciclável teve seu preço muito rebaixado após a crise econômica internacional. Se não houver um rápido plano que gere oportunidades aos trabalhadores desse setor, que são, em grande parte, moradores de rua, eles voltarão a viver nos lixões, inclusive se alimentando lá, de forma desumana”, defende o secretário Nacional de Economia Solidária, Paul Singer. De acordo com ele, se a crise “acelera” a procura por novos caminhos na cadeia produtiva, “um plano de médio prazo para os catadores é trabalhar com a ideia de eles cobrirem a cadeia produtiva inteira, até a transformação dos novos produtos originados do material reciclado”. Ele recorda que uma outra experiência, mais ampla, já está sendo implementada no setor agrícola junto aos pequenos agricultores. “Eles produzem alimentos in natura, oriundos de um processo que ocorre dentro dos próprios assentamentos da reforma agrária ou nas cooperativas”, lembra Singer. (ESL)

tas e empresas no país em janeiro, a taxa de expansão do PIB deve ser de apenas 2%. Em março, a previsão caiu para 1,2%. Mas o Bacen é só um dos exemplos. Singer lembra que, no Brasil, metade do sistema financeiro é estatal, embora trabalhe com as metas de bancos privados. “Eles agem como os bancos privados para gerar lucro ao tesouro federal”, explica. A taxa de juros que incide sobre o crédito de capital de giro flutuante ilustra tal análise. Entre os dias 12 e 18 de março, as taxas do Itaú eram de 1,43%; as do Banco do Brasil, de 1,5%. Para Singer, “banco público é para dar prejuízo mesmo; vai dar prejuízo no sentido de cobrar menos juros que gerar gastos, não no sentido de especular errado”. Disputa Segundo o secretário, a cúpula do governo está forçando pouco para que os bancos diminuam os juros. Ele relatou no seminário uma disputa entre essa cúpula e o chamado setor “social”, que viria lutando pelo acesso ao crédito das pequenas e médias empresas. “Dentro da estrutura [governamental], tem gente que quer mudar, até mesmo muitos dos gerentes desses bancos estatais”, afirma Singer. Desapontado, ele categoriza sua visão sobre o presidente da República. “Nesse sentido, o presidente Lula tem o seu direcionamento”, lamenta. Convencido há mais tempo, Plinio Arruda Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e membro do Psol, também presente no seminário, diminuiu um pouco as luzes sobre Lula e a espalhou: “O problema não é exatamente o ‘Lula’; é o equívoco nosso [esquerda] de sempre pensar em reformar o capitalismo”.

Projeto para habitação foca emprego e esquece moradias Roosewelt Pinheiro/ABr

MORADIA Para especialistas, plano do governo federal é mais uma resposta “keynesiana” de geração de emprego do que uma política habitacional da Redação Propagandeado como ação de combate à crise econômica e ao deficit habitacional no país, o programa para construção de 1 milhão de moradias destinadas à população de baixa renda foi lançado pelo governo federal no dia 25 de março. Ao todo, a União lançará mão de R$ 34 bilhões em empréstimos e subsídios, que abarcarão desde pessoas físicas até as construtoras, a partir deste mês. Especialistas entendem o plano como um conjunto de medidas keynesianas clássicas, descoladas de uma política habitacional efetiva. Denominado “Minha Casa, Minha Vida”, o pacote prevê a redução da carga tributária que incide sobre o setor da construção civil. Um dos carros-chefes será um subsídio de R$ 16 bilhões, por parte do governo federal, para as famílias que tiverem renda mensal de até três salários mínimos. Estas poderão pagar uma parcela mensal de R$ 50 ou 10% de seu rendimento, no decorrer de 10 anos. O economista Paul Singer, secretário Nacional de Economia Solidária, destaca o caráter funcional do pacote: “É uma medida anticíclica da crise econômica, principalmente por gerar postos de trabalho na indústria de constru-

número que o deficit habitacional do país. Para os dois, “é perigoso confundir política habitacional com política de geração de empregos”, que, embora tenham relações óbvias, “não são sinônimas”. “Na prática, sem regulação no mercado de terras, o subsídio será integralmente engolido pelos proprietários de terrenos (inclusive pelas incorporadoras que fizeram grandes estoques nos últimos anos)”, diz o artigo.

ção”. Na mesma linha, o plano também é visto pelos arquitetos urbanistas Raquel Rolnik e Kazuo Nakano como um conjunto de medidas keynesianas clássicas, por mobilizar investimentos públicos com o fim de impulsionar a geração de emprego e a indústria de construção civil. Rolnik é relatora internacional do Direito à Moradia da Organização

“É perigoso confundir política habitacional com política de geração de empregos”, que, embora tenham relações óbvias, “não são sinônimas”, dizem urbanistas das Nações Unidas (ONU). Nakano é técnico do Instituto Pólis. Bom para empresários Aliás, o setor de construção ficou mais que satisfeito com a elaboração do pacote, tendo sido até mesmo consulta-

Lula e Dilma Rousseff durante o lançamento do programa Minha Casa, Minha Vida

Quanto

2/3 do deficit habitacio-

nal brasileiro poderiam ser resolvidos com a ocupação dos imóveis atualmente ociosos

do durante o processo de confecção. O presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Paulo Safady Simão afirmou recentemente que “o plano traduz, em grande parte, muito do que o nosso setor vem defendendo nos últimos anos”.

É fácil compreender porque eles vêm defendendo a política do governo federal. No artigo “As armadilhas do pacote habitacional”, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, Rolnik e Nakano salientam que 2007 foi um excelente ano para o setor imobiliário. Das 500 mil unidades financiadas no país, 50% foram para famílias com renda superior a cinco salários mínimos mensais. Da parcela financiada com recursos do FGTS, 61% foram para famílias de baixa renda. Porém, eles argu-

mentam no artigo que metade dos financiamentos acessados por essas famílias foi para compra de materiais de construção usados em loteamentos precários e favelas, sem assistência técnica que pudesse garantir edificações seguras e de qualidade. O resultado, segundo os urbanistas, foi o adensamento nas favelas e periferias e uma sobreoferta de unidades habitacionais para a demanda de renda média que permanecem “encalhadas”, engrossando o número de imóveis vazios, hoje quase em mesmo

Descolados Uma política de ampliação do direito à moradia deve ser focada nas necessidades habitacionais das populações de baixíssima renda e na reabilitação de edifícios localizados em espaços urbanos consolidados, em especial nos centros das cidades, aproveitados para moradias populares, evitando a criação de guetos nas periferias e enormes impactos ambientais e na mobilidade urbana. Embora se configure como um pesadelo para construtoras, o Estatuto das Cidades poderia funcionar como um importante componente para a realização do sonho da casa própria junto à população de baixa renda. A quantidade de imóveis vazios no Brasil corresponde a mais de dois terços do deficit habitacional, e no Sul e Sudeste esses valores são quase equivalentes. Por não cumprirem a sua “função social”, muitos estariam sujeitos a uma série de ações do poder público, como o IPTU progressivo no tempo e utilização compulsória. (ESL)


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Plano Decenal reproduz modelo de alto consumo e exportação João Zinclar

ENERGIA Projeto que prevê o incremento de 54 mil MW na matriz energética do país atenderá principalmente a indústria eletrointensiva

da, do financiamento público para a construção de barragens via recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o que permite que os consórcios tenham cada vez menos despesas. Célio Bermann refuta o argumento de que as indústrias eletrointensivas precisam de mais incentivos por serem responsáveis pela geração de emprego e renda. De acordo com ele, há outros setores que contribuem mais para o crescimento do país, sem, com isso, demandar tanta energia.

Patrícia Benvenuti da Reportagem Reforçar um modelo energético que favorece as empresas transnacionais e onera a população e o meio ambiente. Essa é a lógica que permeia o Plano Decenal de Expansão de Energia (20082017) do governo federal, que prevê, nos próximos dez anos, um incremento de 54 mil megawatts (MW) na matriz energética brasileira. A questão foi o tema central de um seminário promovido pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema (SP), no dia 1º de abril, e que contou com a participação de movimentos sociais, entidades ambientalistas, pesquisadores, estudantes e representantes do governo. Com uma potência atual de 107 mil MW, a previsão é de que, com o Plano, a produção de energia alcance até 2017 cerca de 161 mil MW. Dos 54 mil MW que serão acrescidos, 16 mil MW correspondem a empreendimentos de geração já contratados e 38 MW ainda a contratar. Esse aumento se dará especialmente por meio de usinas hidrelétricas e termelétricas movidas a óleo combustível, carvão mineral e gás. O restante – uma quantidade irrisória – será preenchido por energia nuclear e as chamadas energias alternativas, como a eólica e a solar. Para a consolidação do Plano, estão previstos R$ 142 bilhões. Alto consumo A demanda de energia elétrica para um determinado período de tempo é calculada de acordo com a projeção de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB); no caso

A barragem de Itaparica, em Pernambuco, no submédio São Francisco

Da energia consumida hoje no Brasil, 30% correspondem a apenas seis setores industriais, os chamados eletrointensivos: produção de aço na siderurgia, alumínio primário, ferroligas na metalurgia, cimento, indústria química e o ramo de papel e celulose do Plano, em um período de dez anos. A lógica do cálculo é praticamente a mesma para todos os países, segundo o professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP) Célio Bermann. No entanto, ele ressalta uma diferença do Brasil em relação aos países mais ricos: projetar mais energia do que o crescimento econômico necessita. Até 2017, o Plano Decenal de Expansão de Energia prevê para o Brasil uma elevação de 4% do PIB, com um aumento de 4,8% na geração de ener-

gia. Já no Japão e nos Estados Unidos, por exemplo, para cada ponto percentual de crescimento da economia, se utiliza menos de 1% de incremento de energia disponível. O motivo da diferença, de acordo com Bermann, está no tipo de desenvolvimento que caracteriza cada país. “Eles [países ricos] conseguem fazer isso principalmente porque grande parte das indústrias que consomem energia elétrica está nos países do Terceiro Mundo, nos países subdesenvolvidos; entre eles, o nosso”. Da energia consumida hoje no Brasil, 30% correspon-

Projetos marcados por irregularidades Para Ministério Público Federal (MPF), empreendimentos previstos no Plano devem causar impactos sociais e ambientais da Reportagem As críticas ao Plano Decenal de Expansão de Energia partem também do Ministério Público Federal (MPF), que verificou uma série de irregularidades no documento. Ausência de participação da sociedade em todas as fases de elaboração e falta de acesso às informações, segundo a gerente jurídica da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão, Maria Rita Reis, estão entre as principais falhas do Plano, o suficiente para comprometer sua viabilidade.

“Sem esses requisitos, é impossível tratar esse tema realmente como um tema de governo, porque não tem qualquer regulamentação; as decisões que estão lá não são fundamentadas”, afirma. A análise socioambiental dos empreendimentos, por exemplo, baseou-se somente em informações das empresas que aceitaram repassar os dados (apenas 16), cuja pesquisa ficou restrita à aplicação de questionários. Mesmo com a quantidade reduzida de informações, segundo Maria Rita, é possível detectar que, dos 71 projetos hidrelétricos planejados, 11 interferem diretamente em Unidades de Conservação e quatro impactam esses locais de forma indireta. Incompatibilidade Para Maria Rita, isso ilustra bem o que ela denomina de incompatibilidade do Plano em relação a outras políticas setoriais, como o reconhecimento e a demar-

cação de terras indígenas e quilombolas, demanda por reforma agrária e ampliação de áreas de proteção ambiental e, inclusive, de Unidades de Conservação. “As opções tomadas pelo Ministério de Minas e Energia contradizem compromissos que o governo assinou em relação a outras políticas públicas”, avalia. O MPF destaca, ainda, impactos relacionados à utilização das usinas termelétricas. A previsão é de que, com elas, haverá um aumento de 172% nas emissões de gás carbônico, elemento que contribui diretamente para o aquecimento global. Em função disso, o órgão expediu, no dia 9 de março, uma recomendação ao Ministério de Minas e Energia (MME) para que sejam revistas todas as falhas. O prazo para este apresentar um posicionamento era até o dia 29 de março, mas, até o fechamento desta edição (em 7 de abril), o MPF não havia obtido resposta. (PB)

dem a apenas seis setores industriais, os chamados eletrointensivos: produção de aço na siderurgia, alumínio primário, ferro-ligas na metalurgia, cimento, indústria química e o ramo de papel e celulose. Portanto, é o mercado, de acordo com o professor, que dita esse ritmo acelerado da geração de energia no Brasil, a fim de atender essencialmente a essas indústrias cuja produção é voltada quase que em sua totalidade para a exportação. Energia para quê? O problema começa, para Bermann, na falta de um questionamento sobre a finalidade da energia gerada. Sem essa reflexão mais crítica, a consequência é um planejamento energético baseado exclusivamente na demanda do mercado em curto prazo. O Plano não leva em consideração, por exemplo, a carência de energia que atinge ainda um grande número de domicílios no país. Ao ignorar essa demanda social e apostar somente nas exigências do mercado, reproduz-se a visão “ofertista” que, segundo Ber-

mann, predomina no atual modelo. “Como não se discute o destino da energia elétrica, se toma a quantidade de energia que vai ser demandada como base inquestionável”, argumenta. Gilberto Cervinski, da coordenação nacional do MAB, estende a necessidade desse questionamento principalmente em relação à energia das hidrelétricas, que, além de limpa, seria mais barata, por ser gerada a partir da água. Ele lembra, por exemplo, da diferença paga pela população e pelas grandes indústrias em relação à energia gerada pelas barragens. Empresas como Vale do Rio Doce e Alcoa gastam, em média, 5 centavos pelo quilowatt (KW) – praticamente a preço de custo. O trabalhador, porém, desembolsa cerca de 60 centavos pelo mesmo KW – um valor que corresponde, no mercado internacional, ao da energia gerada nas termelétricas. Cervinski recorda, ain-

Outro desenvolvimento “A quantidade de empregos que esse tipo de indústria cria é muito menor do que outros setores industriais, que são mais intensivos em mão-de-obra, como o têxtil e de alimentos”, explica. Bermann defende, por isso, mais investimento nesses segmentos, que poderiam reorientar, inclusive, uma nova política de desenvolvimento nacional. “Temos que mudar essa forma de produção e de inserção do país no mercado internacional como mero produtor de bens primários, com baixo valor agregado, mas com alto conteúdo energético e de problemas ambientais”, afirma. A necessidade de um novo modelo energético e de desenvolvimento também é destacada por Luiz Dalla Costa, da coordenação nacional do MAB. De acordo com ele, situações como a crise econômica, o destino dos recursos da camada do pré-sal e as mais recentes denúncias contra a construtora Camargo Corrêa são importantes para reacender os debates. As discussões, para Dalla Costa, devem ser o primeiro passo para criar articulação e unidade entre os trabalhadores, essenciais para construir um modelo que atenda aos interesses da população. “Nós queremos que o recurso gerado pela produção da energia sirva aos interesses da maioria do povo, não como é hoje, em que ele fica na mão das multinacionais, das grandes indústrias, só sobrando para o povo pagar a conta e os problemas sociais e ambientais”, afirma.

Prejuízo também para a Amazônia Para analista, Plano aprofunda dependência do Brasil em relação aos países ricos e consolida internacionalização da região amazônica da Reportagem O potencial e a posição estratégica da Amazônia a tornam um caso emblemático de subserviência aos interesses do capital transnacional e de uma economia de exportação de riquezas. A opinião é do professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir) Luis Fernando Novoa Garzon. Segundo ele, isso pode ser comprovado pelo fato de que os estudos para o aproveitamento hidrelétrico das bacias amazônicas foram encomendados pelo Ministério de Minas e Energia (MME) ao programa Estal, do Banco Mundial, que aposta no aumento da geração de energia para atrair in-

vestimentos estrangeiros. Em contrapartida, o banco sugere a flexibilização do licenciamento ambiental, tido como “obstáculo” para esse desenvolvimento. Tais estudos também serviram como base para a elaboração do Plano Decenal de Expansão de Energia, fato que permite compreender, segundo Novoa, a lógica que está por trás de suas metas, especialmente na região amazônica. Dependência “Essas grandes obras, grandes intervenções que estão previstas para a Amazônia, vêm e virão com um sentido de aprofundar a dependência do Brasil em relação às grandes cadeias produtivas internacionais. Essas obras são pensadas para o escoamento, a transferência de riqueza”, explica. Novoa destaca, ainda, a responsabilidade do poder público sobre a exploração e a espoliação da Amazônia, oferecida como área para novas fronteiras de investimento. “O problema vem embutido nos próprios programas de planejamento governamentais, aos quais as

empresas transnacionais se associam, na forma de concessões e de parcerias público-privadas, e têm toda a legitimidade fornecida por esses mecanismos públicos de decisão e de planejamento”, afirma ele. Consequências Ainda que a perda da soberania e dos recursos naturais da Amazônia atinjam todos os brasileiros e, em boa parte, os sul-americanos, o maior prejuízo fica com os povos que habitam a região amazônica, como ribeirinhos, indígenas e quilombolas, que perdem seu território para reservatórios de água e têm ignorados seus modos de vida e de cultura. “O que está se tratando aqui é de um retrocesso político e institucional, depois de anos de conquistas dessas comunidades e desses movimentos, para que se possa transformar as bacias hidrográficas da região da Amazônia em áreas completamente privatizadas, a serviço do fornecimento energético de baixo custo às grandes transnacionais”, lamenta. (PB)


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brasil

Nova onda de homicídios na Baixada Fluminense

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Paraíso banido

VIOLÊNCIA Quatro anos após a maior chacina do Estado, assassinatos políticos voltam a preocupar Adriano Dias

Leandro Uchoas de Nova Iguaçu (RJ) APÓS PASSAR uma tarde bebendo no bar Aza Branca, no Centro de Nova Iguaçu (RJ), quatro policiais saíram num gol prata, na companhia de um quinto colega de corporação. No trajeto até a vizinha Queimados, mataram 29 inocentes, sendo oito crianças. Nesse dia, 31 de março de 2005, aconteceu a maior chacina da história do Estado do Rio de Janeiro. A data completa quatro anos em clima de preocupação. Nos últimos meses, intensificou-se a ocorrência de homicídios políticos na região. A Baixada Fluminense tem a fúnebre tradição de assassinatos – políticos ou não – e desaparecimentos. Faz parte da cultura de conflitos sociais e políticos da região, onde historicamente prevalece a impunidade quase absoluta. Recentemente, a sucessão de prefeituras progressistas em algumas das cidades havia reduzido levemente a tendência de homicídios. Entretanto, em Campo Belo, bairro afastado de Nova Iguaçu, uma série de assassinatos recentes tem criado um clima de medo. Na madrugada do dia 19 de março, o presidente da Associação de Moradores de Campo Belo, Oséias Carvalho, foi morto dentro de sua casa. Quatro ocorrências se deram na mesma noite na região. Duas delas no mesmo bairro. Os outros dois aconteceram no assentamento de Linha Velha, também na região. Um dos quatro havia sido testemunha em julgamento da ocupação 17 de maio, quando uma imobiliária reivindicou terras dos assentados. Em protesto, moradores de toda a Baixada e do Rio de Janeiro enviaram fax ao secretário de Segurança do Estado, José Mariano Beltrame. Ainda não se tem informações precisas sobre a razão dos assassinatos, mas há muitos indícios de crime político. Embora muito pobre, a área é a única onde a expansão imobiliária ainda é possível na região. Desconfia-se que esse seja um fator motivador. Além da costumeira violência gerada pelas tensões sociais, soma-se a da disputa pelo solo urbano. Poder paralelo O surgimento, em 2003, da ocupação 17 de maio intensificou nessa área o aparecimento de grupos de extermínio que se intitulam milícias – muito embora seu funcionamento seja muito diferenciado das milícias da capital carioca, já que não cobram por serviços ou por proteção (modelo que ficou conhecido por “eu te protejo de mim

Evasão punida

Acordo do governo dos Estados Unidos com o banco suíço UBS permite àquele país identificar clientes que desviaram recursos públicos e da sociedade, sonegaram impostos e enriqueceram ilicitamente. Lá, as prisões já começaram. Ao todo serão investigados 52 mil cidadãos que fizeram depósitos nas contas do UBS na Suíça e em outros países. Aqui o Banco Central e a Receita Federal não estão nem aí.

Bode expiatório

Familiares de vítimas e militantes dos direitos humanos protestam na Via Dutra, no Rio de Janeiro

“O medo é um estrago ainda maior do que os assassinatos”, observa subsecretário de Segurança Pública de Nova Iguaçu mesmo”). A ação desses grupos tem sido a de extermínio gratuito, um modelo tradicional da Baixada Fluminense. A situação ainda é agravada pela ação do tráfico de drogas. No afã de retaliar a milícia, os traficantes terminam por eliminar inocentes que julgam ser informantes. O mercado de drogas na Baixada Fluminense organiza-se de forma diferente se comparado ao da capital. Enquanto no Rio existe um modelo de negócios claro, com controle político e econômico de favelas, na Baixada ele é menos estruturado. Dessa forma, torna-se mais complicado conceber as disputas de poder de certas localidades. Na noite do dia 30 de março, Maurício Campos, da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, recebeu um telefonema assustado de uma moradora da região de Campo Belo. Salomão, vice-presidente de Oséias, que assumira a Associação de Moradores, teria sido assassinado. Os militantes mais próximos a ambos, com medo, saíram imediatamente da comunidade. Estão desaparecidos. Devido à distância dos as-

Manifestação lembra os quatro anos da chacina Apenas dois, dos cinco policiais que cometeram os assassinatos, estão presos de Nova Iguaçu (RJ) Na manhã do dia 31 de março, familiares de vítimas da violência e militantes dos direitos humanos percorreram a via Dutra com flores nas mãos, em memória às vitimas da chacina de 2005 na Baixada Fluminense. O ato refez o itinerário dos cinco policiais, no dia do aniversário dos 29 assassinatos. Em clima de emoção, alguns integrantes da marcha manifestaram sua preocupação com os casos recentes e com a suposta omissão do governo estadual. A marcha recebeu mais manifestantes do que as dos anos anteriores, em decorrência das novas mortes. “Viria ainda mais gente se as famílias não tivessem medo. Mas o estado psicológico desses familiares é tão negativo que muitos não vêm”, explica Luciene Silva, da Associação de Familiares e Amigos de Vítimas de Violência. A manifestação começou no lo-

O G-20 decidiu aumentar a fiscalização dos paraísos financeiros, nome dado aos países que facilitam a movimentação de capitais sem identificar os proprietários e a origem do dinheiro, seja fruto de crime ou não. Só falta agora o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, deixar que a polícia e a justiça consigam investigar, processar, condenar e punir os “banqueiros” e outros operadores brasileiros em paraísos fiscais.

cal da via Dutra onde foi assassinado Rafael da Silva, filho de Luciene e primeira vítima, e prosseguiu até a Igreja da Posse; no local foi realizada uma missa em memória às vítimas de violência. Em seguida, prosseguiu até o ponto no qual ocorreram os últimos assassinatos. Dos cinco policiais envolvidos na chacina e denunciados pela Justiça em 2005, apenas Júlio César Amaral e Marcos Siqueira estão presos. Ivonei de Souza aguarda julgamento em liberdade. Fabiano Gonçalves também está solto, e teria sofrido tentativa de homicídio em Queimados. O cabo Gilmar Simão foi assassinado quando ia prestar depoimento, em 2006. Participaram do ato familiares de vítimas de casos de bastante repercussão. Daniela Duque, mãe de Daniel Duque, e Roberto Soares, pai de João Roberto, caminharam lado a lado durante todo o tempo. Daniel foi brutalmente assassinado na boate Baronetti e João foi morto por policiais na Tijuca. (LU)

sentamentos e ao medo dos moradores de falar, informações como essa levam muitos dias para serem confirmadas. De 2007 a 2008, embora o número de homicídios oficialmente registrados na Baixada Fluminense tenha aumentado apenas 2,7%, o de desaparecidos cresceu 24,7%. É um índice quase cinco vezes maior do que o da cidade do Rio de Janeiro (5,1%). Os números em Nova Iguaçu são mais estáveis, devido à atuação da prefeitura local nas áreas social e de segurança pública. Entretanto, segundo Adriano Dias, subsecretário de Assistência Social e Prevenção da Violência da cidade, os índices apontariam para uma subida neste ano. “A prefeitura de Nova Iguaçu conseguiu reduzir em 25% os índices de homicídio. A atuação de delegados novos, somada a algumas políticas públicas implantadas no município, auxiliaram nesse sentido. Mas agora parece que há, infelizmente, uma reversão”, diz. Dano psicológico Adriano lembra ainda o custo psicológico e econômico de ondas de homicídios como essa. “As pessoas costumam se preocupar apenas com as vítimas de violência. O estrago do entorno em geral não é considerado. E ele é enorme. O dano aos familiares e aos vizinhos é muito grande. O medo é um estrago ainda maior do que os assassinatos”, constata. Segundo Luciene Silva, da Associação de Familiares e Amigos de Vítimas de Violência (Afaviv), pelo menos quatro mães de vítimas teriam morrido nos últimos meses, devido a problemas causados provavelmen-

te pelas alterações psicológicas. “As mães são sempre as maiores vítimas. As consequências podem ser de dois tipos diferentes. Ou a mãe se torna uma militante ativa dos direitos humanos ou fica debilitada, depressiva”, comenta. Segundo a psicóloga da prefeitura de Nova Iguaçu, Ligia Marques dos Santos, “o estado da família após as mortes é deplorável. Medo de represálias, medo de morrer, angústia, depressão, doenças físicas. Há consequências graves em irmãos, que demonstram alteração de personalidade. O tratamento psicológico é para o resto da vida. Além disso, há muita diminuição de renda também, devido aos problemas”. Maurício cita ainda a consequência para a região no que se refere à organização em movimentos sociais. “Quando lideranças como Oséias são assassinadas, a militância deixa de atuar. Infelizmente, o objetivo dos grupos de extermínio é alcançado. Os movimentos sociais ficam fragilizados. Isso mostra que a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais hoje em dia estão entrelaçados”. O enfraquecimento dos movimentos sociais explicaria a leniência com que o Estado enfrenta o aumento de casos de homicídio, como tem ocorrido. Protagonizados por grupos de extermínio, os assassinatos de lideranças, supostamente adversárias da “ordem pública”, terminariam sendo convenientes a alguns governos.

RECONHECIMENTO

Prêmio lembra vítimas de violências cometidas pelo Estado brasileiro Grupo Tortura Nunca Mais homenageia 17 defensores dos direitos humanos do Rio de Janeiro (RJ) O Grupo Tortura Nunca Mais condecorou, no dia 1º, 17 personalidades ligadas à defesa dos direitos humanos e à justiça social com a medalha Chico Mendes de Resistência. Entre os homenageados estiveram: o professor Abdias Nascimento, o músico Sérgio Ricardo, a ativista de direitos humanos Márcia Jacintho e os cinco presos políticos cubanos detidos nos Estados Unidos. A cerimônia ocorreu no dia de aniversário de 45 anos do golpe militar. O instante de maior emoção ocorreu durante o discurso da ex-vereadora Márcia

Jacintho, que investigou, quase sozinha, o assassinato covarde do filho Hanry Siqueira pela polícia carioca. Seis anos após a morte do jovem, em 2002, os culpados foram presos. “É muito difícil, para uma mãe que está esperando seu filho vir da escola, ouvir um tiro. A tortura ainda existe. Apenas mudou de nome. Agora é extermínio”, disse Márcia, sob aplausos de uma plateia de pé. O também homenageado cartunista Carlos Latuff, reconhecido por retratar violências contra minorias, pediu desculpas ironicamente por ser homenageado: “Quando eu vejo uma mulher dessas, sinto que não sou ninguém. Estou aqui por engano”. (LU)

Primeiro, nos anos de 1990, as agências internacionais – FMI, Banco Mundial, BID, OMC – impuseram o modelo neoliberal aos países da América Latina, com consequências danosas para os trabalhadores (aumento do desemprego, perda de direitos e rebaixamento salarial). Agora, com a crise do modelo, o BID prevê que 12 milhões de trabalhadores perderão o emprego na região. Quem paga sempre?

Papel estatal

O pensador marxista britânico David Harvey afirmou ao IHU Online: “Sou a favor de estabilizar o capitalismo através de medidas keynesianas que se transformem em possibilidades marxistas. Um colapso do capitalismo sem nenhuma alternativa pronta para tomar seu lugar causará miséria e sofrimento incalculável para a massa da população, enquanto que a classe capitalista escapará relativamente incólume”.

Futuro sombrio

O pensador marxista estadunidense James Petras alerta: “O Brasil será profundamente afetado pela crise financeira. Sei que o país tem mais de 250 bilhões de dólares em reservas, mas elas acabarão sendo gastas. O financiamento da falta de liquidez não é uma solução a longo prazo, nem uma solução estrutural; é simplesmente ficar injetando dinheiro para protelar o colapso iminente da economia”.

Crime oficial

Militante da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, José Luís da Silva teve a sua casa invadida por policiais militares na manhã do dia 1º, em Acari, no Rio de Janeiro. Não havia ninguém na residência, mas tudo foi revirado. Pior: José Luís tentou registrar queixa contra os policiais do 9º BPM, mas o delegado do 39º DP se recusou a fazer o BO. Como acabar com a arbitrariedade?

Puro extermínio

Será realizado nos dias 9 e 10 de maio, em São Paulo, o encontro de mães e familiares dos “crimes de maio de 2006”, quando 494 pessoas foram executadas – pela polícia e por grupos de extermínio – no Estado de São Paulo, logo após os ataques atribuídos à organização criminosa PCC. Esses casos de execução, na maioria de jovens e negros da periferia, jamais foram investigados e levados à Justiça.

Independência

Os partidos de esquerda que dão sustentação ao presidente Fernando Lugo, do Paraguai, continuam apostando na mobilização popular para acelerar as transformações sociais. No dia 2, uma nota assinada pelo Partido do Movimento ao Socialismo, Partido Popular Tekojoja, Partido Convergência Popular Socialista e Partido Comunista Paraguaio criticou as autoridades que tentam criminalizar o movimento camponês. Nada de oficialismo!

Ego vaidoso

Tempos atrás, num encontro internacional, o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, na hora da foto, apoiou as duas mãos, por trás, nos ombros do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A foto serviu como prova da intimidade entre os dois e da docilidade de FHC diante do poderoso presidente dos Estados Unidos. No último encontro do G-20, Barack Obama também explorou a vaidade dos interlocutores. Muito esperto!


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brasil Reprodução

Pedro Carrano de Curitiba (PR) SERES HUMANOS buscam restos de comida em meio ao aterro sanitário que concentra o lixo da capital e de mais 16 cidades do Paraná. Outros comercializam os alimentos que chegam por ali com prazo de validade vencido, vendidos para os comércios da região. Urubus, mosquitos, fedor. Aborto por anencefalia, problemas renais e respiratórios; casos comuns entre os moradores do Caximba, bairro de Curitiba onde está instalado o maior aterro sanitário do Estado. A região é habitada por trabalhadores e proprietários de quarenta olarias, fábricas de cimento e grameiras. É o pólo industrial cerâmico da capital. Descendentes de italianos vivem por lá há décadas. Mas hoje o Caximba está associado apenas com o aterro sanitário, que existe há 20 anos, embora sua vida útil fosse de apenas 11. Desde 1989, houve duas ampliações emergenciais. O prefeito Beto Richa (PSDB) sinaliza nova ampliação do aterro e a criação de uma indústria de reciclagem, o Sistema Integrado de Processamento e Aproveitamento de Resíduos (Sipar).

ra a coleta do lixo, chamada Cavo, pertence ao Grupo Camargo Corrêa, envolvido em recentes denúncias de corrupção e compra de políticos país afora. De acordo com fonte do Brasil de Fato, a prefeitura de Curitiba tem interesse eleitoral em construir a nova indústria no Caximba. A resistência dos moradores aponta para a construção na cidade de Mandirituba, onde a Camargo Corrêa possui terreno, mas esbarra no momento com lei municipal que impede a instalação. Não é má jogada para ninguém: as cidades teriam direito a 3% da arrecadação do lixo. Pelo caixa 1, a empreiteira patrocinou a campanha dos dois principais candidatos à prefeitura em 2008, Beto Richa e Gleisi Hoffmann (PT), com R$ 300 mil e R$ 500 mil, respectivamente. O tema do lixão não apareceu nas eleições municipais. “Há muitos interesses políticos, a receita do lixo é alta, Richa quer ganhar politicamente com isso, para se lançar como governador”, denuncia a mesma fonte. Em outras áreas analisadas para instalação do aterro, como a cidade de Fazenda Rio Grande, também houve denúncia de moradores. “O problema são as nascentes da região e o trânsito de caminhões”, critica o técnico em meio ambiente, Eriberto Werner.

A periferia como cesto de lixo QUESTÃO URBANA Moradores do bairro do Caximba, em Curitiba, se organizam contra o lixo, pelo direito ao território e pelo meio ambiente

A prefeitura admite vazamento, mas afirma ser algo “não suficiente para alterar a poluição atual” Os moradores são contrários à continuação do lixão e da indústria no território. Denunciam o risco de desmoronamento desse aterro lotado, o acúmulo de gases com poucos fornos para queimá-los e a concentração de compostos como o metano. O chorume (líquido que escorre a partir do lixo) desemboca no rio Iguaçu. A prefeitura admite vazamento, mas afirma ser algo “não suficiente para alterar a poluição atual”, como disse José Antônio Andreguetto, secretário de meio ambiente, em entrevista a uma rádio local. De acordo com os moradores, o novo prolongamento do lixão deve desapropriar 100

Urubus procuram alimento nas montanhas de lixo do aterro sanitário localizado no bairro do Caximba (PR)

hectares de área, o que pode atingir cerca de 30 mil pessoas. A luta dos moradores é para que o aterro seja lacrado (veja abaixo a pauta do movimento). A instalação do aterro é estudada para outros dois municípios da região metropolitana de Curitiba – Fazenda Rio Grande e Mandirituba. Segundo Adélcio Ângelo Bazzo, morador e integrante do movimento de defesa do Caximba, os estudos sobre o destino do lixão “consideram os impactos ambientais, mas não levam em

Reivindicações dos moradores ✓ O selamento do aterro do Caximba com a máxima urgência. O ambiente e a saúde dos moradores estão cada vez mais comprometidos pelo gás metano, pela chuva ácida, pelos vetores produzidos pelo lixo etc.

✓ Não à ampliação do lixão por imprudência do poder público. ✓ A população da região sul de Curitiba: Caximba, Tatuquara, Campo Santana, Rio Bonito, Pompéia, Jardim da Ordem etc. não aceitará a instalação de mais um aterro sanitário na região, isso seria a conclusão do processo de destruição total de suas tradições, culturas e famílias que se encontram no local há mais de 100 anos.

Discurso do marketing e o deserto do mundo do trabalho

de Curitiba (PR) A prefeitura de Curitiba, desde os anos de 1990, apresenta um sonoro discurso de que a cidade é um modelo de coleta, separação e tratamento do lixo. Enquanto isso, a realidade indica que apenas 1% do lixo é tratado na capital. A população paranaense produz 20 mil toneladas de dejetos por dia e 40% desse volume poderia ser reciclado. Os moradores denunciam

também que funcionários de dentro do pátio do aterro não usam equipamentos de proteção para o aparelho respiratório. De acordo com o padre José Antônio da Cunha, uma das lideranças locais, “a ameaça à vida e à saúde não é apenas para os moradores que convivem há 20 anos com o mau cheiro e doenças causadas pelo lixão, mas também aos trabalhadores da empresa operadora. Temos conhecimento de que eles se alimentam dentro do próprio local e não usam equipamentos adequados, o que os deixa doentes”, comentou em entrevista ao site do Partido dos Trabalhadores de Curitiba. Na luta dos moradores do Caximba, a pauta foi ampliada para pensar a região sul de Curitiba: região de bacia hidrográfica, onde

Brasil possui 5 mil lixões a céu aberto

são obrigados a viver trabalhadores, migrantes e carrinheiros, sujeitos a despejos forçados, enchentes e acusações de “ocupações irregulares”, devido ao projeto de urbanismo excludente da capital e da reserva de valor imobiliário. Por ora, moradores do Caximba fazem questão de chamar o aterro sanitário como lixão simplesmente. Isto porque, em um aterro sanitário ideal, o chorume (líquido acumulado) é enviado a um sistema de tratamento e os gases são queimados. No estado atual, o chorume polui córregos e cavas da região, desaguando no rio Iguaçu. O encontro do material poluente com o rio é uma imagem forte. Nascentes limpas correm ao lado dos dutos de chorume. (PC)

de Curitiba (PR) A situação dos aterros sanitários e lixões no Brasil é uma bomba-relógio. Até 2012, a vida dos aterros controlados deve se esgotar. Na verdade, representam uma minoria, uma vez que 5 mil lixões estão a céu aberto – o que contraria os acordos de eliminação da ECO-92 desse tipo de prática. No bairro do Caximba, em Curitiba, a empresa que realiza a coleta e o transporte é paga por tonelada de lixo. “Qual é o interesse em continuar produzindo cada vez mais lixo? On-

de nós vamos parar, já que a cobrança é feita por tonelada de lixo entregue no aterro?”, questiona manifesto de moradores da região. O projeto da prefeitura de Beto Richa, de uma indústria e um sistema integrado de processamento de resíduos, buscou a concorrência internacional para prolongar a agonizante vida do lixão. O modelo prevê a usina de reciclagem de 85% do li-

xo. Interessado na licitação, está o grupo Camargo Corrêa. Outro possível concorrente é o Estre, de má fama: tem negócios de lixo em Buenos Aires (Argentina) e buscava dar cabo do lixo na região da Patagônia. Mas ainda falta definir o local do novo aterro. E, nisso, ainda pode haver resistência da população (PC, com informações do jornal O futuro do lixo no Brasil, produzido pelos moradores do Caximba).

Estourou em São Paulo O exemplo de que a luta é urgente está na zona leste e ABC paulista, quando, em agosto de 2007, milhões de toneladas de lixo desabaram no aterro São João Batista. O montante possuía a altura de um edifício de 40 andares, com 500 mil metros quadrados de diâmetro. Com o desabamento, uma nuvem de poluição pairou sobre a região, interrompendo as aulas. (PC)

Mercadoria vira lixo e lixo, mercadoria Da fabricação até a eliminação dos produtos, lógica do lucro impera de Curitiba (PR)

Para moradores do bairro, aterro sanitário é somente lixão

Fortes interesses Interesses econômicos em cena: a empresa licenciada pa-

Os moradores da região ainda não têm uma solução para o lixo. Defendem que o processo deve ser debatido por meio de um fórum com os trabalhadores de outras cidades e bairros que possam ser afetadas. “A prefeitura não incentiva a redução do lixo, fizemos caminhada que parou o lixão por uma hora e meia, manifestação com faixas e braços dados em frente ao lixão. Vamos nos articulando, se o projeto não foi aprovado ainda é pelo barulho das pessoas”, conclui Ana Cristina.

País não tem políticas públicas para o setor

Moradores do Caximba

Ao contrário da propaganda da prefeitura, apenas 1% do lixo de Curitiba é reciclado

conta a população local”. Durante o feriado da Páscoa, várias cruzes vão ser pregadas ao longo de toda a estrada no entorno do aterro, como forma de protesto. “Temos um passivo de 20 anos, casas há 50 metros do lixão. A creche fica há 50 metros do portão do aterro, com o teto cheio de moscas”, acrescenta Ana Cristina Juzcok, moradora há oito anos do local.

“Se o projeto [de ampliação] não foi aprovado ainda, é pelo barulho das pessoas”

A intensificação da produção de mercadorias, em menor tempo e com maior descarte, para poder manter a taxa de lucro das empresas, de acordo com o economista holandês Win Dierckxsens, é uma característica marcante no modo de produção capitalista a partir da década de 1970. O produto transforma-se rapidamente em lixo. Este alimenta

a economia e empresas do ramo, que desenvolvem tecnologias e lucram por tonelada vendida. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2002 apontam que cerca de 230 mil toneladas de lixo domiciliar e comercial são coletadas a cada dia – sem contar grande parte dos resíduos da construção, lixo industrial, de estabelecimentos de saúde, lixo perigoso e lixo rural. Dos 230 milhões de quilos diários coletados em 5.471 dos 5.507 municípios, pouco mais de 40% chegam a aterros sanitários. “Para demonstrar a gravidade da situação, basta relembrar que a cidade de São Paulo está com seus aterros esgotados e terá de definir, em curtíssimo pra-

zo, onde depositará as pelo menos 14 mil toneladas diárias de lixo domiciliar e comercial que gera. Curitiba também esgotou seu aterro. Belo Horizonte tem de mandar seu lixo para dezenas de quilômetros de distância”, descreve em artigo o jornalista e ambientalista Washington Novaes. Soluções até agora são frágeis, sobretudo dentro da lógica de mercado e fora da questão do controle popular e das comunidades nos territórios. A questão do lixo não é tratada como política pública. No caso de Curitiba, a crítica ao sistema integrado de reciclagem é a de buscar retirar os catadores de papel – cerca de 15 mil – da parte central da cidade. Afinal, a Copa de 2014 está no horizonte. (PC)


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cultura

Do heroísmo de Henri Alleg à legalização da tortura Reprodução

CINEMA O filme de Christophe Kantcheff provocou mal-estar no governo de Sarkozy por recordar que a tortura foi uma prática rotineira durante a Guerra da Argélia Miguel Urbano Rodrigues

COM POUCAS exceções, os grandes meios ignoraram a iniciativa, porque o tema é incômodo para os detentores do poder, conscientes de que as novas gerações assimilaram, da história das guerras coloniais da França, a visão distorcida que dela apresentam os manuais escolares. O filme Henri Alleg, o homem de “La Question”, de Christophe Kantcheff, muito belo, é mais literário do que político, mas provocou malestar no governo de Sarkozy e no Alto Comando do Exército por recordar que a tortura foi uma prática rotineira durante a Guerra da Argélia. Para avivar a memória dos franceses deste início do século 21, Kantcheff funde passado e presente, numa obra em que a leitura de passagens de La Question, num cárcere imundo, por um grande ator contemporâneo, alterna com o testemunho de Alleg, que, ao responder a jovens que o cercam numa sala de conferências, evoca hoje as torturas a que foi submetido. Publicado no auge da Guerra da Argélia, em 1958, La Question – palavra que a Inquisição utilizava na Idade Média para designar a tortura – foi apreendido, mas a vaga de emoção e escândalo desencadeada pelo livro varreu a França. Dois Prêmios Nobel, Roger Martin du Gard e François Mauriac, e dois grandes escritores, Jean Paul Sartre e André Malraux, assinaram então

um documento, exigindo do governo francês uma resposta às gravíssimas denúncias de Alleg, torturado pelos paraquedistas do general Massu. Traduzido em 30 línguas, o livro correu pelo mundo, e a indignação suscitada pelas revelações nele contidas, ao enlamearem a imagem de honra cultivada pelo Exército francês, contribuíram para apressar o fim da guerra suja e criminosa na Argélia. Mas numa época como a nossa, de desinformação e perversidade midiática, em que jovens franceses, na resposta a inquéritos de opinião, afirmam que a URSS foi aliada da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial, não é surpreendente que ignorem os crimes cometidos nas guerras coloniais do seu país. Torturas

É, portanto, compreensível a emoção suscitada pelo filme de Kantcheff. Milhares de telespectadores ouviram, com um sentimento de angústia, Henri Alleg, ao lado do edifício do antigo centro de terror de El Biar, onde foi torturado barbaramente pelos oficiais da 10º Divisão de paraquedistas, contar histórias de horror que se diria terem ocorrido numa terra inimaginável. E, contudo, elas foram bem reais. Essas coisas aconteceram há 50 anos. Henri Alleg, preso por defender, como diretor do diário Alger Republicain (já então proibido e encerrado), o direito do povo muçulmano argelino à autodeterminação,

Henri Alleg, preso por defender o direito do povo muçulmano argelino à autodeterminação, foi tratado como um animal por oficiais franceses, que o submeteram a torturas que figuravam nos manuais da Gestapo hitleriana foi tratado como um animal por oficiais franceses, que o submeteram a torturas que figuravam nos manuais da Gestapo hitleriana. E a tudo resistiu. Não falou quando lhe aplicaram choques elétricos na boca e no sexo, e calado permaneceu quando o penduraram de cabeça para baixo, como se fora um porco depois de abatido. Resistiu inclusive à injeção do pentotal, o mal-chamado “soro da verdade”. Nesse tempo de crise de civilização, em que os detentores do poder glorificam a religião do dinheiro e tudo fazem para reescrever a histó-

ria, é reconfortante escutar a palavra de Henri Alleg. Como revolucionário e comunista, ele sentiu, depois de transferido de El Biar para a prisão Barberousse, que era seu dever levar ao conhecimento do povo francês o que se passava naquele centro de horrores. E decidiu escrever não um simples folheto sobre a sua experiência pessoal, mas La Question, o livro que se tornaria, com os anos, best-seller mundial. Utilizando um caderno em que teoricamente preparava a sua defesa, conseguiu fazer sair do presídio, por mãos de advogados vindos de Fran-

ça (alguns assassinados pelos fascistas da OAS), quatro folhas de cada vez, em letra miudinha, o texto que pouco a pouco ia redigindo, iludindo a vigilância dos guardas. Heroísmo

Não foi, aliás, por acaso que o Partido Comunista Português, então na clandestinidade, distribuiu o livro aos seus militantes, em edição copiografada, por ver em Alleg exemplo de comportamento de um comunista preso e torturado. O filme de Christophe Kantcheff procura, sobretudo, iluminar o homem e a sua coragem, como paradigma do heroísmo individual. O combatente revolucionário aparece abatido, o que é uma pena. Não creio que qualquer dos canais portugueses de televisão inclua a película na sua programação. O tema da guerra colonial, também em Portugal, continua a incomodar aqueles que aqui exercem o poder econômico e político.

É difícil esquecer que nem um único dos oficiais paraquedistas que torturaram Henri Alleg em El Biar foi punido pelos seus atos criminosos. Posteriormente, todos foram promovidos de acordo com a antiguidade, enquanto alguns foram condecorados por serviços à pátria. Sucessivos governos da França e o alto comando do seu Exército não reconheceram, até hoje, a prática da tortura durante a Guerra da Argélia. É útil esclarecer que, no filme, Alleg, estabelecendo uma ponte entre o passado e o presente, sublinha, dirigindo-se aos jovens que o ouviam, que a tortura no mundo atual não somente permanece como em alguns países tem cobertura institucional. E cita os casos dos EUA e de Israel. No primeiro, o Congresso, com base em proposta do ex-presidente George W. Bush, aprovou uma lei que autoriza certas formas de tortura (algumas foram rotineiras em Guantánamo e no presídio iraquiano de Abu Ghraib). No tocante a Israel, generais sionistas reconheceram que, em 2006, durante a guerra de agressão ao povo do Líbano, utilizaram, com aprovação oficial, manuais das SS nazis. Senti que deveria escrever estas linhas ao ver Henri Alleg, o homem de “La Question”. Para mim, é motivo de orgulho que o autor de Mémoire Algérienne me inclua entre os seus amigos. Uma longa vida abriu-me a possibilidade de conhecer e por vezes trabalhar com grandes revolucionários do século 20. Em Henri Alleg, identifico um dos mais puros e autênticos comunistas que conheci. Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português.

CONTO

Nós que moramos no esquecimento da lembrança não temos tristeza Uma casa desamparada de frente pro canavial. Com seu isolamento. E agora com sua desgraça, com seu pesar, com sua ruína, com sua morte. A morte de Telma Augusto Juncal Quando chegaram com o corpo de Telma estendido nos braços de uma pequena multidão, seu pai engoliu um vácuo seco que desceu rasgando sua garganta e sua mãe soltou um gemido lancinante, pio de coruja que agoniza. Telma vinha numa paixão de cristo com seu sangue ressumando de sua saia. Pálida. Mortalmente pálida. Todo seu sangue na saia. E pingado pelo caminho que vinha desde dentro do canavial até a porta da casa. A casa. Uma casa desvalida, de tudo escassa. Árida. Uma penúria só. Uma casa desamparada de frente pro canavial. Com seu isolamento. E agora com sua desgraça, com seu pesar, com sua ruína, com sua morte. A morte de Telma. Uma casa de taipa, com suas gengivas de sarrafos em al-

guns pontos expostas. Lugar onde o barro não ficou tão lisinho, tão agarradinho. E se foi com a primeira chuva. Uma casa de tudo escassa, mas que tinha uma poltrona. A beleza que a casa apresentava fora Telma quem criara: malvas perfumadas circundando-a em latinhas de extrato de tomate. Da mesma latinha que eram feitos os copos. Para cada um da família, Telma diversificara um copo. De extrato, de salsicha, de ervilha, de milho. Eram oito irmãos e irmãs, todos para o mesmo quarto, mas para cada qual o seu copo. E isso era uma riqueza. Nessa tapera faminta, o luto fez pouso.

“Fia, fia, de onde vem todo esse horror? Quem te rasgou essa maldade? Quem te barbarizou dentro do canaviá?” Apesar da dor, apesar do desamparo, apesar da uma única poltrona, fez-se um velório para Telma. A madeira de seu caixão foi coberta com algum papel crepom azul claro, que alguém trouxe, e com de-

coração de estrelas e corações recortados de papel alumínio. E as malvas retiradas das latinhas de extrato. Era um velório pouco de gente pouca. Mais de irmãos e irmãs que de gente. De gente eram cinco. Os das casas mais próximas e das famílias mais perto. Uma delas, uma senhora muito gorda, lembrou de pôr um pano preto na janela. Ocupava mais a sala o choro de sua mãe, que se esvaía pela porta e janela, espraiando-se pelo canavial, como um choro primordial, de uma dor antepassada, deixando a cana mais verde, mais viçosa. Adubo, alguém haveria de pensar. Gemido de mãe é pergunta que não se responde: “Fia, fia, o que aconteceu? De onde vem todo esse sangue? Que maldade te fizeram? Quem te rasgou dessa maneira bárbara? Que horror você encontrou dentro desse canaviá?”. Ninguém sabia. Encontraram Telma flácida no canavial. Seu sexo abria sulcos de sangue na terra esgotada da cana. Em silêncio de pedra e cal, seu pai enchia uns copos de lata de aguardente. Em outros ia café. O pouco café que tinha. Que de cadeira, só a poltrona. E esta era para para a senhora muito gorda. A mãe de Telma não arredava pé, nem sentava, nem comia, grudada ao caixão da filha: “Fia, fia, de onde vem to-

do esse horror? Quem te rasgou essa maldade? Quem te barbarizou dentro do canaviá?”. O terço da velha mãe era infinito e tinha sempre as mesmas contas de perguntas. Ave-marias repetidas, padrenossos desgastados. Até de reza pode um ser muito pobre, que para a pobreza parece não haver limite. A senhora muito gorda da poltrona tirou para Telma uma ladainha que a aproximasse de Deus. Os prantos de Nossa Senhora das Dores somavam-se aos prantos da mãe. Seu pai aproximou-se de Telma morta. Olhou bem o rosto da filha, seus olhos sem luz que não se fecharam. Suas pernas fraquejaram. Apoiouse no caixão, quase caindo e levando o caixão junto. Uma das cinco gente, um senhor, segurou, dando-lhe apoio. A senhora muito gorda levantou-se muito solícita e, generosa, ofereceu a poltrona para que o pai sentasse. Sentado, com as mãos trêmulas cobrindo os olhos, chorou: “Quisera lembrar alguma coisa. Quarquer coisa. Uma palavra. Uma hora que fosse. Mas não consigo me lembrar de nada. Esse canaviá todo. Essa vida. Nóis tudo. É um esquecimento só”. Lá fora, emparedando a casa, o canavial era uma miragem. Uma vertigem. A monotonia e a tristeza da casa se elastecia. Um rapaz,

chegando do corte da cana, postou-se na janela, com os braços cruzados sobre o pano preto, e ficou um tempo em silêncio olhando. E sem querer ser mensageiro de nada, mas sendo, esticou o braço, estendendo até o pai na cadeira uma embalagem de citotec: “Achei perto do lugar donde acharam o corpo dela”.

Sentado, com as mãos trêmulas cobrindo os olhos, chorou: “Quisera lembrar alguma coisa. Quarquer coisa. Uma palavra. Uma hora que fosse. Mas não consigo me lembrar de nada. Esse canaviá todo. Essa vida. Nóis tudo. É um esquecimento só”. A mãe teve uma conta a mais de pergunta no seu terço: “Fia, fia, quem te engravidou? Que maldade você se fez? Não precisava. A gente ia cuidar do seu

filho. Nem eu nem seu pai haverá de te desamparar”. Se Telma pudesse dizer, se Telma pudesse contar: “Ah mãe! Ah pai! São muitos os perigo desse canaviá”. A notícia do engravidamento de Telma se espalhou com o vento. Todos tentavam pensar quem tinha sido o malfeitor. Mas Telma nunca fora vista com nenhum rapaz. Nunca tinha tido namorado. Poderia até ser virgem. Logo, uma história começou a correr de terreiro em terreiro: a pobre Telma, cortando suas toneladas de cana, foi, sem se dar conta, adentrando cada vez mais dentro do canavial. Chegando até o olho, onde habita a Cana Caiana que a todo ser vivente devora. Ali a Cana Caiana teria engravidado a Telma à força. Outros rumores falaram da Cana Caiana transmutada em homem bonito, vestindo paletó brando e chapéu panamá, saindo de dentro do canavial e seduzindo Telma, bem ali no terreiro de casa. Com a verdade vinda pela metade na embalagem do citotec, pai, mãe, irmãos, irmãs e cinco gente enterram Telma. E dia seguinte, com metade da verdade, todos, com exceção de Juliano, guardaram luto por Telma. Juliano retornou pro canavial. Augusto Juncal é militante do MST.


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américa latina

A ditadura na Argentina foi civil-militar-clerical

Nora Cortiñas Brasil de Fato – Por que a Argentina, que hoje é uma democracia consolidada, ainda não consegue se livrar da dramática herança da ditadura?

Eu nasci em 1920, quando aqui em Buenos Aires houve uma revolução, e, até 1970, os militares sempre foram o braço armado da oligarquia. Porém, durante o governo de Isabelita Perón, houve uma mudança histórica, visto que os militares, os empresários e a oligarquia atuaram juntos, como se fossem sócios, para a conquista do poder e a divisão dos lucros provenientes do grande saque do Estado e de toda a economia argentina.

Achille Lollo de Buenos Aires (Argentina) A BELEZA arquitetônica de Buenos Aires e o charme de seus restaurantes repletos de endinheirados turistas europeus e estadunidenses nada têm a ver com o mapa dos

horrores que ainda divide os argentinos. Por um lado, temos uma parte pequena, mas poderosa, que não quer que o mundo saiba o que aconteceu com os opositores e com as riquezas do Estado durante a ditadura. Outra – a maioria, mas sem uma representatividade política consisten-

te – luta, ainda, pela verdade e contra a legitimação da impunidade. De fato, depois de 32 anos, as duas entidades que reúnem as Mães da Praça de Maio (a de Nora Cortiñas e a de Hebe de Bonafini), a cada quinta-feira, ainda fazem sua histórica volta na praça,

em função disso, descobrimos as diferentes características e potencialidades das ditaduras em implantar seus tremendos modelos repressivos. É verdade que a Igreja Católica argentina, como a chilena, colaborou com a repressão, a ponto de os capelães serem oficialmente escalados para dar “assistência espiritual” aos pilotos e soldados que realizavam os vôos da morte, nos quais os presos sequestrados na ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada) eram atirados no mar, ainda vivos ou drogados com o Pentotal?

denunciando e perguntando: “Onde estão os nossos filhos? Onde estão os nossos netos?”. Em entrevistas para o Brasil de Fato, Nora e Hebe explicam a natureza do regime ditatorial em seu país e o envolvimento de setores civis e da Igreja Católica na repressão aos opositores. Achille George Teles Lollo

Em todas as famílias tradicionais da dita oligarquia havia, sempre, um filho que era bispo, outro juiz e outro militar. Esse é um triângulo que funcionou perfeitamente na implantação da ditadura. Em oposição à Igreja conservadora, havia a chamada Igreja do Povo, liderada pelo bispo Pallotino, que os militares assassinaram juntamente com outros três bispos, enquanto 150 padres e várias freiras – todos originários de países do Terceiro Mundo – literalmente desapareceram. É verdade que a Igreja Católica apoiou o golpe mandando, para as unidades do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, um número considerável de padres, cuja tarefa era convencer os soldados e os oficiais de que as matanças que realizavam eram para salvar a pátria, e que, por isso, lhes era dada a absolvição. Repito: havia padres ou bispos com a específica função de consolar os militares que haviam atirado no mar nossos filhos, ainda vivos. Um papel terrível que foi desempenhado até o fim. Havia, por exemplo, um que, quando nos recebia, consultava sempre um arquivo enorme onde estava anotado o paradeiro dos nossos familiares sequestrados. De fato, um dia ele me disse: “Teu filho desapareceu juntamente com um padre que era um organista famoso; bom, fique sabendo que, se nada fizeram, você o terá de volta. Do contrário, nunca mais o verá”. Quer dizer, eles sabiam tudo o que acontecia nos centros de torturas. Usavam seus próprios arquivos e, depois, com a volta da democracia, nada disseram sobre os desaparecidos, porque a cumplicidade com a ditadura foi total. No início de nossa luta, começamos a nos reunir em igrejas, mas quando os padres descobriam quem éramos, apagavam as luzes da sacristia e chamavam a polícia. Foi mesmo terrível! Imagine que houve até freiras-espiãs. Por exemplo, anos atrás, descobrimos que uma freira de Mar de la Plata delatou todos os companheiros psicólogos que trabalhavam no hospital psiquiátrico, enquanto outra entrava na prisão com a missão de consolar os presos, mas, na realidade, procurava informações sobre a atividade política de cada um deles. Às vezes, íamos falar com um padre e ele nos recebia com uma pistola calibre 38 na mesa! Essa é a verdade, triste, mas real.

Mas quem preparou o golpe durante o confuso e reacionário governo de Isabelita Perón e López Rega?

Houve um planejamento realizado conjuntamente. Os grupos oligárquicos começaram a financiar a Triplo A [Aliança Anticomunista Argentina], com vista a alimentar a instabilidade política. Os empresários apimentaram o clima de crise econômica. Nesse contexto, os militares começaram a reprimir duramente as vanguardas do movimento popular recorrendo a todas as técnicas de tortura e de luta antissubversiva aprendidas na então Escola das Américas, no Panamá. Por isso, hoje, dizemos que houve um regime de ditadura civil-militar no qual tudo o que aconteceu foi planejado e decidido em conjunto. Por isso, quando foram definidas as formas de saquear o Estado, foi também estabelecido que este devia calar a boca de todo tipo de oposição. Por isso, a repressão foi maior que nunca. Fundamentalmente, o golpe serviu para implantar um novo modelo econômico que demolia o Estado, mas que, ao mesmo tempo, se utilizava dele para enriquecer a maioria das famílias que representam a oligarquia argentina: os banqueiros, as transnacionais, os políticos profissionais, o latifúndio, e uma nova burguesia que se preocupava somente com a manutenção de seus privilégios de classe.

Madres realizam ato na Praça de Maio, diante da Casa Rosada, sede do governo argentino

Na Argentina, os militares e a oligarquia procuraram controlar com violência a oposição do movimento popular. Entretanto, em 1972, durante o governo “democrático” de Isabelita, já havia cerca de 1.500 presos políticos e já se falava em 500 desaparecidos, sendo que a maior parte deles não era militante de organizações revolucionárias. Pode falar desse fenômeno político?

Achille George Teles Lollo

Na Argentina sempre houve pobres, pobreza e fome. Por isso, desde o governo do general Onganía, em 1966, militares e grupos oligárquicos operavam um estreito controle

Quem é Nora Cortiñas é psicóloga social e ativista de direitos humanos na Argentina. Seu filho, Carlos Gustavo Cortiñas, militante do Partido Peronista, foi detido e “desaparecido” em Buenos Aires no dia 15 de abril de 1977. É cofundadora da Associação das Mães da Praça de Maio, Linha Fundadora, dissidência da organização criada nos anos de 1970. Como professora da Faculdade de Ciências Econômicas da capital, realizou estudos sobre a relação entre a ditadura, a dívida externa e a crise econômica no país.

sobre o movimento popular, que exigia uma maior justiça social. Não podemos esquecer que, nos anos de 1950, toda a Argentina foi sacudida pelo movimento justicialista de Perón. A geração dos anos de 1970 – como é conhecida aqui na Argentina – era um perigoso empecilho para o projeto neoliberal, e não se pode saquear um Estado se há uma oposição que se manifesta na rua, mobilizando o povo. Meu filho, bem como a maioria dos 30 mil desaparecidos e dos 10 mil presos políticos, lutava para desmascarar um governo que fazia concessões absurdas às transnacionais, enquanto a classe política elaborava as leis para desmantelar o Estado. O golpe veio porque a maioria dos argentinos rejeitava o modelo neoliberal e porque os componentes do movimento popular estavam demonstrando uma grande capacidade de mobilização. Praticamente, o golpe de Estado legitima, aprofunda e amplia a repressão. As estatísticas indicam que durante a ditadura desapareceram 160 bilhões de dólares do Tesouro do Estado. Foi por isso que houve 30 mil desaparecidos?

Exatamente! Há uma profunda ligação entre saque e re-

pressão, em função da qual, hoje, é muito difícil saber o que de fato aconteceu com os 30 mil desaparecidos ou com os 500 bebês que foram tirados de suas mães “subversivas”, detidas nos centros de torturas, e oferecidos, quase como prêmio, a juízes, policiais, mas, sobretudo, a empresários. Devemos ter claro que, para saquear o Estado, era preciso, por um lado, ter a certeza absoluta de que ninguém teria capacidade organizativa e presença física de ir denunciar nas ruas as operações do saqueio. E, por outro, ter um sistema de “regalias” capazes de silenciar eventuais escrúpulos de consciência. Então, o filme de Fernando Pino Solanas, Memórias do Saqueio, não é ficção, mas pura verdade!

É sim. O filme explica de forma pedagógica como se deu o saqueio, como os governos militares começaram a estrangular as empresas públicas com empréstimos pedidos ao FMI, ao Banco Mundial, ao Clube de Paris e, sobretudo, a bancos privados, para implementar falsos programas de modernização infraestrutural. O filme não diz onde foi parar o dinheiro porque esse é o grande mistério da ditadura. Empréstimos que nunca chegavam nos cofres das estatais, que ficaram com o ônus do pagamento. Isso tudo abriu o caminho para a voracidade do menemismo, que fatiou e vendeu a preços de banana todas aquelas empresas públicas que haviam contraído dívidas com o exterior durante a ditadura. A maneira como Carlos Menem as descentralizou permitiu que se apagassem suas memórias financeiras, de forma que, hoje, é quase impossível reconstruir as operações financeiras relacionadas com o valor dos empréstimos recebidos. A dívida externa argentina está manchada com o sangue dos 30 mil desaparecidos e dos 10 mil presos políticos.

Hebe de Bonafini Brasil de Fato – Na Argentina, a repressão teve um período de “ensaio técnico” durante o governo dito democrático de Isabelita Perón. Depois, com o golpe, começaram os horrores. Foi nesse dramático contexto que nasceram Las Madres de la Plaza de Mayo?

Em 1974 e 1975, apareceu com força a Triplo A [Aliança Anticomunista Argentina], que perseguia os simpatizantes das organizações “vermelhas”, e, em particular, os militantes do movimento estudantil. Nesses anos, já se haviam registrados cerca de 500 sequestros de militantes e outros 1.500 estavam oficialmente presos. Porém, foi a partir de 1976, quando o golpe de Estado solidificou sua estrutura institucional e repressiva, que os sequestros e as prisões nos centros de tortura clandestinos se multiplicaram como nunca. Por isso, em seguida, começamos a nos mover para saber, junto com os juízes, os paradeiros de nossos familiares raptados. Em 1977, fizemos nossa primeira aparição na Plaza de Mayo (que repetimos há 32 anos todas as quintas-feiras), porque haviam descoberto que o número dos desaparecidos estava crescendo em ritmos impensáveis. Por outro lado, havíamos descoberto que muitos estrangeiros que viviam na Argentina, de repente, apareciam presos nas prisões do Chile, do Uruguai, da Bolívia, do Paraguai, ou eram declarados mortos em seus países de origem depois de terem sido sequestrados pelo homens do Exército, da Marinha, da Aeronaútica ou da Gendarmeria aqui na Argentina. Diante desse quadro de horrores, decidimos nos organizar e fomos à luta para descobrir a verdade. Durante os primeiros três anos, nossas ca-

“É verdade que a Igreja Católica apoiou o golpe mandando um número considerável de padres, cuja tarefa era convencer os soldados e os oficiais de que as matanças que realizavam eram para salvar a pátria, e que, por isso, lhes era dada a absolvição”

sas se transformaram em escritórios, onde realizamos todo o trabalho de investigação, uma vez que recebíamos todo tipo de cartas e muitas informações denunciando sequestros e torturas. Foram vocês que denunciaram, publicamente, a existência da Operação Condor. Pode contar como isso aconteceu?

Em 1979, eu fui na reunião da OEA [Organização dos Estados Americanos], que se realizava na Bolívia, em Santa Cruz de la Sierra. Uma mulher paraguaia, Lidia Centurion, me passou a primeira informação sobre a Operação Condor, que, até aquela época, era praticamente desconhecida por todos nós. Ingenuamente fizemos a denúncia na própria OEA, mas nada aconteceu, visto que a entidade era praticamente controlada pelos EUA. A partir desse momento, começamos a dirigir nossas investigações para o sistema repressivo criado no Cone Sul com a Operação Condor e,

Asociación Madres de Plaza de Mayo

“Devemos ter claro que, para saquear o Estado, era preciso ter a certeza absoluta de que ninguém teria capacidade organizativa e presença física de ir denunciar nas ruas as operações do saqueio”

Quem é Ativista de direitos humanos na Argentina, Hebe de Bonafini é uma das fundadoras da Associação das Mães da Praça de Maio, entidade que preside desde 1979. Possuindo apenas o nível de educação primário, era dona-de-casa até o desaparecimento de seu filho, Jorge Bonafini Pastor. Em 1999, recebeu o Prêmio Educação para a Paz, da Unesco. Desde 2004, difunde a luta de sua organização por meio de programas de rádio.


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internacional

ONU aposta em política falida UN Office on Drugs and Crime

DROGAS Nações Unidas aprofunda política repressiva contra drogas ilícitas, mesmo após o fracasso das últimas décadas Dafne Melo da Redação “Utopia totalitária”. Assim é a política antidrogas preconizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) há quase cinco décadas, de acordo com o professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) Henrique Carneiro. Guiada pela repressão à produção, tráfico e consumo, ela ainda estabelece como meta máxima a erradicação das drogas no mundo. Entretanto, ainda que duramente criticada por países europeus, latino-americanos e organizações não-governamentais – sobretudo nos últimos anos –, a ONU não dá sinais de que pode ceder. De 12 a 20 de março, representantes de 130 países se reuniram em Viena (Áustria) para reavaliar essa política. A posição de setores progressistas presentes na 52ª Sessão da Comissão de Narcóticos da ONU é que a organização não só não reconheceu a ineficácia e impertinência de sua política, como ainda retrocedeu no pouco que tinha de avançado. No documento final, a expressão “redução de danos” (ver ao lado), presente em declarações anteriores, foi retirada, mesmo com a insistência de 26 países – a maioria da União Europeia, mais Bolívia e Austrália. Esse termo abria uma brecha para a atuação de alguns países que não concordam com a política puramente repressiva das Nações Unidas, que, na verdade, é a defendida historicamente pelos Estados Unidos. O termo “redução de danos” foi aprovado pela maioria esmagadora das nações, mas saiu do documento final da reunião após veto estadunidense. Japão, Vaticano, Rússia, Itália e Colômbia foram os outros países contrários à manutenção do termo. Fracasso

Antes e durante a reunião da comissão, a ONU liberou uma série de relatórios sobre o tema. Em todos preva-

lecem o tom eufemístico de que a “guerra contra as drogas”, ainda que com tropeços, é bem-sucedida. Os números, contudo, são desanimadores. A produção de cocaína, por exemplo, aumentou de 362 toneladas para 994 toneladas, de 1986 a 2007, período que coincide com o endurecimento das políticas antidrogas (ver box).

Para Ana Esther Ceceña, é contra a própria natureza do capitalismo erradicar uma atividade econômica de tamanha envergadura, seja ela ilegal ou não O documento também aponta para o aumento do consumo de substâncias sintéticas e de maconha, embora não forneça novas estimativas. De acordo com o relatório de 2008, a produção da erva aumentou de 33 mil toneladas em 1986 para 41 mil toneladas em 2007, mantendo o status de droga mais consumida do mundo. Porém, a própria ONU reconhece que esse número deve ser ainda maior, já que é uma planta que pode ser mais facilmente cultivada, di-

Delegados participam da 52ª Sessão da Comissão de Narcóticos da ONU, realizada entre os dias 12 e 20 de março deste ano

ficultando o monitoramento dos plantios. Quanto à papoula (usada para fabricar heroína), a produção tem aumentado vertiginosamente nas últimas duas décadas, sobretudo – e paradoxalmente – após a ocupação estadunidense no Afeganistão, país que cultiva 92% da papoula do mundo (ver

matéria). A produção ilegal da planta (há produção legal para fabricação de morfina, usada como medicamento) passou de pouco mais de uma tonelada em 1980 para 8,8 toneladas em 2007. Lucros

Para a socióloga mexicana Ana Esther Ceceña, um

Redução de danos Em linhas gerais, pode ser definida como uma estratégia de saúde pública que visa a reduzir os danos decorrentes do uso de drogas a partir de uma perspectiva de não-criminalização do usuário. Um dos princípios é lutar pelos direitos humanos dos usuário de drogas, reduzindo danos, sejam eles biológicos, sociais, econômicos ou culturais, sem necessariamente incentivar o abandono do uso, pois levam em consideração a liberdade de escolha das pessoas e a liberdade de uso do

seu próprio corpo. No caso de drogas, uma das medidas mais comuns e antigas é a distribuição de seringas descartáveis para evitar disseminação do HIV e hepatites. Educação de profissionais, ampliação do debate sobre o tema – também no sentido de prevenção –, incentivo a programas públicos de saúde para tratamento de dependentes químicos e a defesa de flexibilizações na legislação proibitiva (ou até apoio à legalização das drogas) são outras bandeiras defendidas pelos militantes da redução de danos. (DM)

Contenção social e justificativa para intervenções militares são outros dos inúmeros interesses em manter paradigma proibitivo

A lista de interesses que fazem do tráfico de drogas um mal necessário ao mundo de hoje não para nos lucros astronômicos. De acordo com especialistas, há inúmeros outros que vão de contenção social a interesses comerciais da indústria bélica, passando pela manutenção da estrutura jurídico-policial montada há décadas pelos países de todo mundo para combater o narcotráfico. Para Henrique Carneiro, professor do Departamento de História da USP, não à toa os Estados Unidos continuam defendendo o paradigma proibitivo e manteve-se firme nessa tarefa em Viena. Ele explica que essa política serve a diversos interesses do país, interna e externamente. Um deles é a contenção social, o que também ocorre no Brasil. “Isso é muito útil ao Estado contemporâneo, sobretudo para o estadunidense, que tem o maior número de prisioneiros do mundo e a metade deles presa por crimes relacionados às drogas. Faz com que a população, sobretudo negra, seja encarcerada continuamente nos EUA”. Aos negros, hoje também se somam os latinoamericanos: depois da imigra-

ção ilegal, o tráfico é o principal delito que os levam para a cadeia. O número de homicídios ligados ao tráfico também cumpre esse papel. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 70% dos assassina-

“É impossível colocar toneladas de cocaína nos EUA sem a cumplicidade de algumas autoridades norte-americanas”, disparou presidente mexicano tos estão ligados ao narcotráfico, de acordo com dados de 2006 da Organização dos Estados Ibero-Americanos. Armas

Luiz Paulo Guanabara, psicólogo e diretor da ONG Psicotropicus, que esteve presente em Viena, lista outros motivos para manter a estraté-

gia da guerra contra as drogas. “A indústria bélica sempre está interessada em ‘guerras’, em conflitos”. O ativista observa que não entra nessa conta somente as armas compradas pelo aparelho repressivo de cada Estado, mas também as usadas pelo narcotráfico. “Nos morros cariocas já se encontrou armamento estadunidense e alemão”, pontua Guanabara. Na prática, isso mostra que o tráfico de drogas está intimamente ligado a outra atividade ilegal bilionária: o tráfico de armas. De acordo com a ONU, ele movimenta entre 300 e 400 bilhões de dólares por ano, tal como o de narcóticos. Recentemente, antes da última reunião do G-20, o presidente mexicano Felipe Calderón, pressionado a dar explicações acerca do crescimento do narcotráfico no seu país, mesmo após o lançamento do Plano Mérida (ver matéria ao lado), afirmou que 90% das armas usadas pelos cartéis mexicanos são fabricadas nos Estados Unidos. O presidente – um tradicional aliado do país vizinho – ainda rejeitou o discurso hegemônico estadunidense que culpa os latino-americanos pelo tráfico. “Existe o tráfico no México porque existe corrupção no México. Mas usando o mesmo

a própria ONU, aqueles que produzem a droga embolsam apenas 4% dos lucros. A venda direta para o consumidor final fica com a maior fatia, 71%. O restante, 25%, vai para os exportadores e importadores do produto. Só nesta última fase, a movimentação é de 94 bilhões de dólares, mais do que a soma anual das exportações de carne e cerais. Como a fabricação de matérias-primas para as drogas está nos países pobres e o consumo é mais alto nos ricos, na prática, revela a ONU, 76% do lucro das vendas ficam nas nações desenvolvidas. A América do Norte responde, sozinha, por 44% do faturamento no varejo dessas drogas. A Europa aparece como segundo maior mercado, com 33%. A América do Sul representa apenas 3%, percentual menor do que o da Oceania, de 5%.

Cronologia

Para além dos lucros da Redação

dos principais motivos para o “fracasso” dessa política é o fato do narcotráfico ser uma atividade altamente lucrativa, que movimenta, segundo dados de 2005 da ONU, 320 bilhões de dólares por ano. Para ela, é contra a própria natureza do capitalismo erradicar uma atividade econômica de tamanha envergadura, seja ela ilegal ou não. “O tráfico de drogas é a atividade econômica mais dinâmica do capitalismo contemporâneo; e altamente rentável, por ser ilegal, livre de impostos”. Na sua avaliação, o único objetivo das políticas atuais é mantê-la simplesmente sob controle. Legalizar significaria diminuir em muito os lucros, uma vez que seria necessário criar uma série de controles e impostos. E são justamente os países ricos que mais ganham com esse negócio. De acordo com

critério, se existe tráfico nos EUA é porque existe corrupção por lá. É impossível colocar toneladas de cocaína nos EUA sem a cumplicidade de algumas autoridades norteamericanas”, disparou. Violência

Outro motivo, aponta Carneiro, é todo o aparato de Estado já montado, durante décadas, sob esse paradigma proibitivo e repressivo. O professor conta que, só nos Estados Unidos, são gastos 1.400 dólares por segundo na guerra contra as drogas. “O fato de existir esse aparato crescente interessa a muitos setores. Há toda uma burocracia estatal que existe por conta da guerra contra as drogas”, pontua. “Nos Estados Unidos existem, inclusive, incentivos em dinheiro para aqueles que apreendem drogas ou prendem traficantes”, completa Luiz Paulo Guanabara. Essas medidas, entretanto, não se limitam aos EUA, mas acabam sendo exportadas para outros países, como México, Colômbia e também o Brasil. “Essa política militarista tem sido posta em prática aqui no Rio de Janeiro nos últimos anos, e a sensação geral da população é que a violência ligada ao narcotráfico só tem aumentado”, observa o psicólogo. (DM)

Neste ano, a ONU comemora 100 anos de combate às drogas; embora só a partir de 1945, após sua criação, ela tenha passado a acompanhar de perto o tema. Abaixo, um resumo das políticas nesses 100 anos: 1909 – A primeira conferência de representantes de Estado ocorre em Shangai, na China. O objetivo era conter o tráfico e o consumo de ópio, trazidos pelos ingleses ao país no século 19. 1914 – Nos anos que se seguem à Primeira Guerra Mundial, o consumo de drogas cresce rapidamente em diversos países. 1936 – A Convenção pela Supressão do Tráfico Ilícito de Drogas Perigosas é a primeira tentativa de criminalizar e reprimir o uso de drogas. 1946 – A recém-criada ONU passa a cuidar das políticas contra as drogas. Várias substâncias começam a integrar a lista de drogas ilícitas, como maconha e ópio. 1961 – Uma nova convenção define que países devem participar e submeter-se às definições únicas estabelecidas pela ONU. Uma série de tratados são feitos e substituem as ações individuais de cada país. Na prática, as nações perdem autonomia para lidar com o tema. 1971 – Respondendo à criação de novas drogas sintéticas, lança plano de ação de combate aos psicotrópicos, tornados ilegais. 1988 – Convenção se foca em aumentar os mecanismos de combate e repressão à produção, tráfico e uso de drogas ilícitas. 1998 – Reafirma as posições de 1988 e adota a meta de alcançar “a eliminação ou uma redução significativa do cultivo ilícito de coca, cannabis e ópio” até 2008. 2008 – Reafirma o paradigma proibitivo e joga a nova meta de erradicação do uso de drogas para 2019.


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internacional

“Combate” ao narcotráfico justifica presença militar na América Latina Adam M. Stump/US Air Force

DROGAS Plano Colômbia e Plano Mérida, no México, são desculpas para reprimir e controlar movimentos sociais, dizem especialistas

Drogas em números •

5% da população mundial com idade entre 15 a 64 anos – ou seja, 200 milhões de pessoas (3,4% da população mundial) – usam drogas ilícitas com alguma regularidade. Destes, apenas 0,6% são considerados dependentes químicos (0,4% da população mundial). De acordo com dados de 2005, o tráfico mundial de drogas movimenta 320 bilhões de dólares. Os países ricos ficam com 76% do lucro obtido a partir da venda de drogas ilícitas. A produção de papoula aumentou de 1 tonelada em 1980 para 8 toneladas em 2007. O Afeganistão é responsável por 92% do cultivo. A produção de cocaína aumentou de 362 toneladas para 994 toneladas de 1986 a 2007. A Colômbia é o maior produtor de folhas de coca e cocaína, com 55% e 60%, respectivamente. O continente americano produz 55% de toda maconha do mundo. Nos Estados Unidos, onde em 13 Estados é legalizado seu uso medicinal, pesquisadores defendem que ela é o produto agrícola mais rentável do país.

Dafne Melo da Redação PARA UM país que se mostra tão preocupado em erradicar o uso de drogas no mundo, os Estados Unidos não têm feito um bom trabalho. Hoje, Afeganistão e Colômbia são os maiores produtores de ópio e cocaína, respectivamente. O primeiro viu sua produção de papoula crescer vertiginosamente após a ocupação em 2001 (ver matéria abaixo); o segundo tem mantido estável sua produção de cocaína nos últimos dez anos, que coincidem com a execução do Plano Colômbia. Posto em prática em 2000, o governo do país mais poderoso do mundo prometeu acabar com o narcotráfico na Colômbia e, de quebra, atacar as guerrilhas que, acusam ainda hoje, detêm o controle da produção da droga. “Essa fiscalização é útil para as ambições geopolíticas e de dominação em relação ao continente”, aponta Henrique Carneiro, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). “Todo sistema de operações militares de investigação e espionagem, como a Base de Manta, que faz todo monitoramento da Amazônia e do espaço aéreo, é exemplo disso”, completa. A Base de Manta, localizada no Equador, foi cedida aos EUA em 1998, por um período de dez anos. O pedido foi feito em função da guerra contra o narcotráfico na região. Em 2008, o presidente equatoriano Rafael Correa resolveu não renovar o acordo e declarou que os soldados devem deixar a base até novembro deste ano. México A exemplo do Plano Colômbia, o presidente mexicano Felipe Calderon aceitou, em 2006, dar início à guerra às drogas, logo após assumir seu mandato. Com George W.

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O general colombiano Freddy Padilla, o almirante estadunidense Mike Mullen e o embaixador dos EUA na Colômbia, William Brownfield

Gerardo Ruiz Mateos, ministro da Economia, chegou a declarar que os cartéis mexicanos se tornaram tão poderosos que “o próximo presidente do México será um narcotraficante” Bush firmou o Plano Mérida, acatado pelo Senado dos EUA em 2008. Até agora, tem dado tão certo como seu modelo colombiano. Em fevereiro, o ministro da Economia, Gerardo Ruiz Mateos, chegou a declarar que os cartéis mexicanos se tornaram tão poderosos que “o próximo presidente do México será um narcotraficante”. O número de mortes relacionadas ao comércio de drogas também vem atin-

gindo dimensões preocupantes. Em 2008, foram 5.600 mortes, e estima-se que cerca de 70% das vítimas fatais não tinham nenhuma ligação com o tráfico. Neste ano, já foram mortos 1.501 mexicanos. O jornalista e sindicalista estadunidense Shamus Cooke, em artigo para o Global Research, afirma, entretanto, que essas recentes notícias que apontam para aumento da violência e do poder dos car-

Evo Morales defende folhas de coca UN Office on Drugs and Crime

Durante reunião em Viena, presidente boliviano pede que ONU respeite tradição milenar dos povos andinos

Terrorismo e drogas Cooke lembra que Felipe Calderón entrou na presidência bastante enfraquecido, após ter sua vitória con-

testada e em um momento no qual os levantes de Oaxaca ainda estavam frescos na memória dos mexicanos. Por isso, anunciar uma “guerra ao tráfico” foi a estratégia perfeita para usar as forças policiais e militares na manutenção da ordem. “A política antidrogas é, em realidade, uma política contrainsurgente; o que busca fundamentalmente é o disciplinamento das populações às regras do jogo estabelecidas e legalizadas pelo sistema de poder”, define a socióloga mexicana Ana Esther Ceceña. Ela destaca que há um esforço de vincular o narcotráfico ao terrorismo ou a grupos insurgentes, para então justificar a repressão. No próprio relatório em que avalia seus

100 anos de políticas de combate às drogas, após reconhecer que Colômbia e Afeganistão lideram a produção de coca e ópio, a ONU decreta, nas linhas seguintes, que “a maioria dos cultivos se dá em áreas afetadas por insurgentes”, sem, no entanto, comprovar sua afirmação. Para Ceceña, esse discurso tem como objetivo justificar a “polarização/militarização da sociedade e da política, às custas dos interesses dos movimentos sociais latino-americanos, vistos como terroristas. Termo ambíguo que se refere a qualquer ação de protesto, a qualquer tentativa de organização autônoma, a qualquer manifestação de discordância em relação às políticas e práticas do poder.”

Produção de papoula dobra no Afeganistão após invasão dos EUA ONU avalia que 92% de toda heroína que circula no mundo é feita a partir da planta afegã da Redação

O presidente boliviano, Evo Morales

da Redação Com três folhinhas de coca na mão, o presidente boliviano, Evo Morales, pediu mais uma vez às Nações Unidas que retire a planta da lista de entorpecentes proibidos pelas convenções internacionais. “A folha de coca não é cocaína, não é nociva para a saúde, não provoca males físicos nem dependência”, declarou Morales – ex-líder cocaleiro – que, em seguida, mascou as folhas. “Esta folha de coca é medicina para os povos. Não é prejudicial para a saúde humana em seu estado natural”, complementou. Além das propriedades medicinais, a planta é considerada sagrada no mundo indígena andino. Desde a convenção de

téis do México, “prestes a virar um narco-Estado”, devem ser vistas com cuidado, pois justificam o aumento das políticas militaristas do EUA em relação ao vizinho. Ele aponta que lideranças têm acusado o Exército mexicano de usar a “guerra contra as drogas” para reprimir sistematicamente os movimentos sociais mexicanos, que vêm colecionando denúncias de violações dos direitos humanos por parte da força policial e Exército, como prisões arbitrárias, desaparecimentos, torturas e assassinatos.

1961, a folha entrou na lista de substâncias entorpecentes, pois é usada como matéria-prima para a produção de cocaína. A Bolívia tem a menor produção mundial da droga, atrás do Peru e Colômbia, que produzem 10, 30 e 60%, respectivamente. Morales também mandou uma carta ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, na qual explicou a importância de se retirar a planta da lista. Como contrapartida, comprometeu a estabelecer planos para os agricultores de coca – os cocaleiros – para industrializar seus derivados para fins nutritivos, medicinais e benéficos, inibindo a produção de cocaína no país. Já de volta a La Paz, Mora-

les afirmou que a luta contra o narcotráfico representa um “negócio” para a Agência Central de Inteligência Americana (CIA) e o Departamento Antidrogas dos Estados Unidos (DEA). Esta última foi expulsa da Bolívia em novembro de 2008, acusada de incentivar a ação de separatistas, em setembro daquele ano, que deixaram 19 mortos no país. O presidente afirmou que, para os EUA, a luta contra o narcotráfico é “um instrumento de controle político” e que as agências antidrogas usam como desculpa o fracasso no combate às drogas para “conseguir mais verbas do seu governo” e incrementar sua ingerência no país. (DM)

Desde que as tropas estadunidenses chegaram ao Afeganistão, a produção de papoula, matéria-prima para o ópio, morfina e heroína, passou de pouco menos de 4 toneladas para 7,7 toneladas, de 2002 a 2008. Os EUA afirmam que a produção é controlada pelos “terroristas” do Talibã e o dinheiro obtido com a produção é usado para financiar suas ações. O que não é muito divulgado é que o grupo, quando no poder (1996-2001), proibiu o cultivo da planta em 1997 e, a partir de 2000, iniciou um programa para erradicar seu plantio que se mostrou altamente bem-sucedido, alcançando uma queda de 94% da produção. O resultado é que, em 2001, a produção foi para 1 tonelada. No ano seguinte, após a invasão, os cultivos já passaram para

4 toneladas e não têm parado de crescer desde então. De acordo com a ONU, estima-se que 92% de toda a heroína que circula no mundo são feitos com papoula afegã. A droga segue principalmente para o mercado europeu, embora também esteja sendo traficada de forma crescente para os EUA. Retomar comércio O narcotráfico, porém, é uma das justificativas usadas pelo governo dos EUA para manter a ocupação do país e, inclusive, mandar mais tropas, conforme recentemente anunciado pelo presidente Barack Obama. Junto à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), ele conseguiu o envio de mais 5 mil homens e promete também mais 34 mil mercenários até o fim do ano. A berrante contradição faz com que muitos acreditem que acabar com o tráfi-

co de opiácios no país não é uma prioridade, muito pelo contrário. Jornais da grande imprensa estadunidense, como o Washington Post, já fizeram matérias apontando que o Exército dos EUA não coopera com as agências antidrogas internacionais. O historiador canadense Michel Chossudovsky vai além e defende que recuperar a produção da papoula e obter o controle das rotas da heroína fazem parte da agenda estadunidense para a região e eram um dos objetivos da ocupação. O canadense também ressalta que, até a invasão do país pela União Soviética (1979-1989), não se produzia papoula. Com o objetivo de desestabilizar a presença soviética, a Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA teve um papel central no desenvolvimento da produção da droga, cujo dinheiro alimentava forças rebeldes. (DM)


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áfrica

Na África, um outro Guantánamo Jim Garamone

DIREITOS HUMANOS Quênia e Etiópia, aliados dos EUA, encarceram suspeitos de terrorismo em prisão secreta e sem acesso a advogados Isabel Coello de Mombasa e Nairobi (Quênia) FAZ SÓ quatro meses que Salim Awadh Salim voltou para casa. Quando chegou, depois de passar cerca de dois anos detido, sem acusação, em prisões do Quênia e da Etiópia, sua casa no bairro de Mwenbeleza, na cidade costeira queniana de Mombasa, havia sido saqueada. “Com a venda de um carro velho, comprei 300 pintinhos para criá-los. Aos 37 anos, tenho que começar do zero”, disse ele, junto a um pequeno criadouro tampado com chapa de aço. Sua mulher, Fatima Ahmed Chande, presa e deportada com ele, mas liberada antes, está com sua família na Tanzânia, de onde é originária. “Ela estava grávida quando nos prenderam. Passou por muito estresse. Perdeu o filho. Não posso ir vê-la porque, até hoje, não me devolveram o passaporte. E ela não quer ouvir falar de voltar ao Quênia”, diz. Salim e Fatima formam parte do grupo de até 150 pessoas que as autoridades quenianas detiveram, em janeiro de 2007, quando fugiam dos combates que ocorriam na Somália contra a União dos Tribunais Islâmicos, cujos vários membros estão na lista de terroristas buscados pelos EUA e pelos soldados somalis apoiados por tropas etíopes que haviam entrado no país dias antes.

Na Etiópia, foram submetidos a tratamentos cruéis, interrogados por agentes do FBI, da CIA e do serviço secreto de Israel e privados do contato com a família e com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que tem mandado internacional para visitar presos em todo o mundo Trasladados a delegacias de Nairobi, a capital do Quênia, os detidos ficaram incomunicáveis durante semanas, sem acesso a advogados nem familiares, antes de serem levados de volta à Somália e entregues à Etiópia. Lá, foram submetidos a tratamentos cruéis, interrogados por agentes do FBI, da CIA e do serviço secreto de Israel e privados do contato com a família e com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que tem mandado internacional para visitar presos em todo o mundo. Pouco se sabe desse Guantánamo africano. Os governos implicados têm se dedicado a negar as denúncias. “Eu trabalhava com celulares”, relata Awadh. “Fomos para a Somália para tentar a sorte, mas, depois de quatro meses, decidimos voltar. Na fronteira, encontramos um grupo de mulheres e crianças,

Soldados etíopes durante cerimônia de graduação de treinamento dado por militares estadunidenses

e cruzamos todos juntos. Fomos detidos e levados a Nairobi. Depois, nos inteiramos de que, nesse grupo, estava a esposa de Fazul”. Fazul Abdullah Mohammed é um dos supostos terroristas mais procurados pelos EUA, que o acusa de ser o chefe da Al Qaeda na África e de estar por trás dos atentados às embaixadas do Quênia e da Tanzânia, em 1998. Detidos de 19 países

“O Quênia prendeu centenas de pessoas que tentavam cruzar a fronteira a partir da Somália. A polícia tinha instruções de não deixar que ninguém visse os detidos”, explica o responsável pelo Fórum Muçulmano de Direitos Humanos, Al Amin Kimathi, que acompanhou os casos. “Através de pequenos subornos, recarregando os celulares dos guardas, conseguimos contar 150 presos, de 19 nacionalidades”. As condições, diz, eram deploráveis. “Havia uma grávida de seis meses que tinha sido ferida por bala enquanto fugia da polícia antes de ser presa. Nunca recebeu assistência médica”. Com a exceção de quatro, todos estiveram detidos por mais tempo que os períodos legais que a lei queniana permite: 24 horas para crimes menores e duas semanas para delito capitais. Como a polícia queniana se negava a ter os suspeitos sob sua custódia, Kimathi apresentou, aos tribunais, 34 casos de violação do habeas corpus. “No dia da sessão, o Estado alegou que não podia trazer os presos porque não estavam no país, e apresentou três planilhas de voo com os nomes de todos os entregues. Foi a primeira confirmação que tivemos sobre o número e identidade dos presos, e sobre a participação das autoridades quenianas na entrega deles à Somália.” O nome de Salim Awadh está em uma das listas de passageiros. Saiu do Quênia em 27 de janeiro de 2007. O voo era da companhia African Air Express. O destino: Mogadiscio, a capital somali. Awadh figura no posto 26 da lista. Sua mulher é a seguinte. Houve mais três voos. No total, 85 passageiros, dos quais 19 mulheres e 15 crianças. Outras fontes falam de mais de 100 entregues. “Da Somália, nos levaram para a Etiópia. Lá, me interrogaram, durante três semanas, um homem e uma mu-

lher estadunidenses e um israelense”, recorda Awadh. “Me acusavam de participar dos atentados de Mombasa. Quando lhes dizia que não sabia nada, gritavam que eu mentia. Gritaram muito comigo. Durante um tempo, perdi um pouco da audição”. Em uma entrevista telefônica, um funcionário do FBI confirmou à Human Rights Watch (HRW) que tanto agentes do FBI como da CIA haviam interrogado os detidos em Adis Abeba, capital da Etiópia. O governo etíope só reconheceu ter 41 pessoas sob custódia. Chantagem

De acordo com o Fórum Muçulmano de Direitos Humanos, em muitas fases dos interrogatórios, esposas e filhos foram usados para exercer influência sobre os detidos, quando os policiais ameaçavam feri-los ou sugeriam que as mulheres haviam admitido que eram terroristas. “Trouxeram uma máquina para ver se eu dizia a verdade”, continua Salim. “No fim, me disseram que sentiam muito, que eu era inocente e que me soltariam em duas semanas. Mas me mantiveram preso por mais um ano e meio, até 2 de outubro de 2008, quando fui liberado com outros sete quenianos”. Durante grande parte desse tempo adicional, Awadh esteve incomunicável. Pensava que seus companheiros tinham voltado para casa e que só restava ele encarcerado. “Às vezes, queria me matar e pensava que ia ficar louco”.

Nas contas do Fórum, pelo menos 77 pessoas foram liberadas ao longo dos últimos dois anos. “Sobre o resto”, diz Kimathi, “não sabemos nada. Há seis quenianos cujos paradeiros continuam desconhecidos”. Numa cafeteria de Nairobi, Mariam Alí não tira o véu que cobre toda sua cara (menos os olhos) até que se senta em um cantinho. Tem um rosto amável. “Esse governo não protege seus cidadãos. Os vende”, diz a alterada viúva de 32 anos, mãe de três filhas e um filho e que sobrevive vendendo sapatos de segunda mão. “Meu irmão nunca foi levado perante um juiz. Se tinham algo contra ele, deveriam tê-lo julgado aqui”, assinala. Chora e relata que seu irmão era uma pessoa amável, que tinha negócios e ensinava, a domicílio, as lições do Corão. Mohammed Abdulmalik, o irmão de Mariam, foi preso em Mombasa em 13 de fevereiro de 2007. Trasladado a Nairobi e interrogado por agentes quenianos, as autoridades o mantiveram detido sem acusação e incomunicável durante um mês. Depois, foi entregue às autoridades estadunidenses. Negação de cidadania

Em 26 de março de 2007, os EUA informaram, de maneira oficial, que Abdulmalik estava na prisão de Guantánamo, em Cuba. “Ele admitiu sua participação nos atentados de 2002 contra o hotel Paradise, de Mombasa”, assinalava o comunicado.

“Sabemos que está vivo. Nos comunicamos através do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Recebemos três cartas em dois anos. Uma advogada que o visitou nos disse que as provas demonstraram que não era o que acreditavam”. Mas Abdulmalik não pode ser devolvido ao Quênia porque, desde sua detenção, as autoridades locais vêm negando que ele seja um de seus cidadãos. Mariam reza para que o irmão volte, agora que o presidente estadunidense, Barack Obama, ordenou o fechamento de Guantánamo. “Mas, se o governo queniano não o reconhece, para onde ele vai? Estará a salvo se voltar? Meus pais já morreram. Meu marido também. Minha família são meus filhos e meus irmãos”, diz, entre soluços. O Fórum Muçulmano de Direitos Humanos apresentou uma ação na Justiça para demonstrar que Abdulmalik é queniano. Kimathi acredita que o Quênia se nega

De acordo com o Fórum Muçulmano de Direitos Humanos, em muitas fases dos interrogatórios, esposas e filhos foram usados para exercer influência sobre os detidos, quando os policiais ameaçavam feri-los a admitir sua nacionalidade porque teme ser demandado por tê-lo entregado aos EUA, violando as normas internacionais. Segundo o relatório do Fórum, a detenção, os interrogatórios e a entrega “carregam a marca de uma estreita colaboração entre as autoridades do Quênia e dos EUA. O mais preocupante é até que ponto as agências de segurança quenianas abdicaram de sua soberania em favor dos interesses estadunidenses”.

Para a HRW, os EUA “não são diretamente responsáveis” pelas prisões, detenções e entregas. “Mas, definitivamente, tinham conhecimento deles, e aproveitaram os abusos do Quênia e da Etiópia para interrogar os suspeitos, o que desperta sérias dúvidas sobre sua cumplicidade em relação a esses abusos”, assinala a organização em um relatório. Além disso, a HRW acusa a Etiópia de ter usado a operação de entregas ilegais “para seus próprios objetivos: concretamente, reprimir as insurgências nas regiões de Ogadén e Oromo”. “Os militares etíopes submeteram os detidos a torturas brutais. Os presos dizem que lhes arrancaram as unhas, esmagaram seus genitais e lhes deram coronhadas na cabeça enquanto as armas estavam carregadas. Também os forçaram a assinar papéis que não podiam ler”, indica o informe. Ajuda financeira dos EUA

No ano fiscal de 2007, os EUA deram à Etiópia 12 milhões de dólares em ajuda relacionada à “segurança”. A assistência ao Quênia foi de 5 milhões de dólares. “Há tanta ajuda financeira dos EUA para o antiterrorismo que as autoridades locais têm que demonstrar que estão trabalhando duro”, diz Kimathi. “Os EUA financiam uma unidade antiterrorista de elite na polícia queniana e não viam grandes resultados”. “É evidente que não apoiamos o terrorismo, mas acreditamos que, se for dado poder a esses governos africanos, eles abusarão dele e o usarão para reprimir a dissidência. É lamentável que os EUA tolerem isso. É a contratação externa do abuso. Um cenário muito perigoso”, pontua. Pouco antes de serem liberados, Awadh e seus companheiros quenianos receberam a visita de alguns funcionários de inteligência do Quênia. “Eles disseram que nosso governo havia se equivocado, que todo mundo comete erros, que devíamos ser razoáveis, esquecermos tudo e não falarmos com a imprensa.” Enquanto vê crescer seus pintinhos, Salim Awadh espera que a demanda judicial contra o Estado queniano dê frutos: “Quero dinheiro. Perdi tudo. Até minha esposa, que está perdendo a cabeça. E quero justiça. Que seja uma lição para eles” (Rebelión - www.rebelion.org).


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