Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 322
São Paulo, de 30 de abril a 6 de maio de 2009 Presidencia de la República del Ecuador
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Crise exige solidariedade e luta dos trabalhadores A onda de demissões e arrocho salarial, oriundas da crise econômica, colocam a classe trabalhadora em uma encruzilhada neste 1º de maio. Ao mesmo tempo em que observam que o patronato tem interesses opostos aos seus, podem enxergar seus pares como adversários que concorrem pela mesma vaga. Essa contradição no seio do proletariado
é inerente à classe trabalhadora, de acordo com o sociólogo Ruy Braga. No entanto, ela tende a aumentar em momentos como o atual. Portanto, cabe às organizações da classe fazerem com que a tendência à associação, originada na exploração comum a todos os trabalhadores, se sobreponha às práticas individualistas. Pág. 3 Eneas De Troya/CC
Gripe suína, uma “invenção” da indústria do setor pecuário Novo mandato para Rafael Correa: momento de corrigir equívocos?
APC/CC
Em entrevista ao Brasil de Fato, o ex-presidente da Assembleia Constituinte e ex-ministro de Energia e Minas do Equador, Alberto Acosta, critica a gestão de Rafael Correa, recém-eleito para um novo mandato. Segundo ele, o presidente equatoriano vem sendo incoerente com as propostas que o levaram ao governo. Pág. 9
Em artigo, o historiador Mike Davis, autor de livro sobre a gripe aviária, analisa as razões do aparecimento da versão suína, que está causando pânico em todo o mundo. Para ele, as principais responsáveis são as grandes indústrias do setor que “amontoam, em gigantescos infernos fecais, dezenas de milhares de animais com sistemas de imunização mais que debilitados”. Por meio de mutações, recombinações e do uso indiscriminado de antibióticos, novos vírus podem ter sido gerados. Pág. 12
Militares distribuem máscaras cirúrgicas para moradores da Cidade do México
MST sofre tentativa de massacre no PA Durante a jornada de abril, militantes do MST acampados no sudeste do Pará na fazenda Espírito Santo, pertencente ao grupo Opportunity, de Daniel Dantas, sofreram uma ten-
tativa de massacre. Como de costume, a imprensa corporativa manipulou os fatos, apresentando os semterra como os provocadores do conflito. A versão, desmentida pelos trabalhado-
res, foi também contrariada pelo próprio repórter da TV Globo local, em depoimento à polícia. Oito camponeses foram feridos, dois gravemente, mas passam bem. Pág. 5 Reprodução
Documentário retrata combate de argentinos contra papeleira Filho de Fernando Lugo fortalece a disputa política no Paraguai
Reprodução
Os casos de paternidade envolvendo o presidente paraguaio vêm sendo aproveitados pela direita, que já ameaça com impeachment. Pág. 10 ISSN 1978-5134
O escritor e cineasta argentino radicado na Bahia Carlos Pronzato lançou em Salvador o filme “Papeleras go home! A luta do povo de Gualeguaychú contra as fábricas de celulose”. A produção expõe a união da população de uma cidade contra a instalação da transnacional finlandesa Botnia, líder mundial do setor de celulose. Pág. 8
PMs torturam e assaltam moradores de Paraisópolis A população de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, segue sofrendo as consequências da implantação, em fevereiro, da operação Saturação pela Polícia Militar (PM). De acordo com os moradores, a repressão aumentou e os policiais estariam, inclusive, usando métodos como a tortura e o roubo. “Os PMs revistaram um menino, pegaram o dinheiro no seu bolso e disseram: ‘você é ladrão, mora em favela, esse dinheiro não é seu’”, denuncia uma líder local. Os habitantes da comunidade, além disso, sofrem pressão da prefeitura e da Camargo Corrêa para que desocupem a área. Pág. 4 José Cruz/ABr
R$ 150 milhões é a fortuna estimada da família Sarney. Caso esse valor fosse distribuído equitativamente aos
60 mil
maranhenses atingidos pelas enchentes, cada um receberia
Nos EUA, esquerda espera da Casa Branca a saída para a crise Fórum realizado em Nova York entre os dias 17 e 19 de abril evidencia a falta de alternativas para a crise da esquerda estadunidense. Pág. 11
R$ 2.500. Se
um trabalhador, que recebe um salário míni-
R$ 465, poupasse todo o seu vencimento, ele demoraria 26.881 anos mo,
para equiparar-se ao patrimônio dos Sarney.
Javier Pedreira/CC copy
AFOGANDO EM NÚMEROS
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editorial ENFIM, ROMPEU-SE o silêncio da Suprema Corte do país, com relação aos desmandos e impunidade do presidente daquela Casa. A dura, firme, legítima e adequada reação do ministro Joaquim Barbosa contra a prepotência de velho “coronel” do presidente do Supremo Tribunal Federal, doutor Gilmar Mendes, abriu as comportas para que jorrasse publicamente o repúdio dos brasileiros, à condução que o doutor Mendes tem dado ao Judiciário. Nosso jornal, até pela posição que desde sempre tem assumido publicamente com relação ao Judiciário e ao seu presidente, não poderia deixar de se congratular com a atitude do ministro Joaquim Barbosa. Alocado na condição de ministro no STF pelo então presidente (também doutor) Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) para cuidar de seus interesses e negócios, e assumindo desde sempre ares de quem não deve prestar contas a quem quer que seja (sobretudo aos dois outros Poderes da República), o doutor Gilmar seria, poucos anos depois, empossado com pompa e circunstância, na condição de presidente do Supremo. Como manda o protocolo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva compareceu à cerimônia. Além dele, os ex-presidentes Fernando Henrique (patrono do
debate
Mendes e seu manicômio de araque Um histórico para “nêgo nenhum” botar defeito... As trapalhadas do doutor Mendes vêm de longe, e começaram a vir a público desde a época em que era advogado geral da União, no Governo do ex-presidente Fernando Henrique. São desta época ainda as acusações de sucessivas apropriações indébitas de fundos públicos, fosse para o financiamento da campanha eleitoral do seu irmão, senhor Francisco Mendes no ano 2000; fossem os contratos sem licitação recebidos pelo Instituto Brasileiro de Direito Público, do qual é um dos proprietários.
Por essas e muitas outras (ler nesta página As 25 perguntas que o doutor Gilmar Mendes precisa responder ao povo brasileiro), quando o seu nome foi proposto para ministro do STF, o jurista Dalmo Dallari publicou um artigo, hoje histórico, no qual só falta nos dizer (ainda que com a elegância e correção que lhe são características) que dar assento a um elemento como o doutor Gilmar em nossa Suprema Corte seria um verdadeiro crime de lesa-pátria. Mais uma vez tinha razão o professor Dallari. Mas, o fato é que não apenas temos hoje o doutor Gilmar presidindo o seu “manicômio”, como cerca de meia dúzia de ministros fingindo-se de loucos, para agradar ao chefe, do qual são assalariados no Instituto Brasileiro de Direito Público.
Um chefe de manicômio e seus loucos por conveniência É ainda dessa época (quando exercia o papel de bombeiro do presidente Fernando Henrique), sua declaração de que o nosso sistema Judiciário é “um manicômio”.
Daniel Dantas, um caso à parte Mas, o mais conhecido e dos mais recentes (portanto, não o único) comportamentos escandalosos do ministro-presidente do “manicômio”, doutor Gilmar Mendes, é a sua relação simbiótica e promíscua com o
doutor Gilmar), e Fernando Collor de Mello. A cereja do bolo, no entanto, foi a presença do presidente das Organizações Globo (também em exercício).
senhor Daniel Dantas. Aqui, a impunidade (de ambos) chega a ponto do deboche. Ainda que sejamos radicais defensores do instituto do habeas corpus (inesquecível o terror ampliado pelo Ato Institucional nº 5, que o extinguiu em 1968), não há como engolir que dois habeas corpus tenham sido concedidos em menos de 48 horas, pelo doutor Gilmar, em sua ânsia (injustificada?) de soltar o senhor Dantas, assim como o ex-prefeito de São Paulo, senhor Celso Pitta e outros colarinhos-brancos. (A propósito, o senhor Pitta, apesar de foragido, acaba de ganhar o direito a prisão domiciliar...). Como consequência da prisão do senhor Dantas, não apenas o doutor Gilmar decidiu legislar sobre o uso das algemas (!) como desencadeou sua ira contra a operação Satiagraha que concordamos que pode e deve ser investigada, desde que não tenha o objetivo de transformar réus em vítimas e vive-versa, que seus membros não sejam pré-julgados e se lhes garanta absoluto direito de defesa e defesa pública. Sim, não é a toa que hoje, em todas as camadas da nossa população, mui-
crônica
O povo brasileiro quer saber
As 25 perguntas que o doutor Gilmar Mendes precisa responder CIRCULAM NA internet 25 perguntas que necessitam ser respondidas pelo presidente da Suprema Corte do nosso país. Elas representam as dúvidas de milhões de cidadãos e cidadãs acerca da probidade do presidente do Supremo Tribunal Federal, a mais alta instância do Judiciário. Quando os cidadãos levantam questões dessa envergadura, a autoridade é obrigada a, mais que fazer declarações a respeito do que lhe é perguntado, é imprescindível que possa provar e prove efetivamente o que fala. Dada a importância e gravidade das perguntas levantadas – que parecem dirigidas mais a um capo mafioso que a um ministro (no caso, com agravante de se tratar do presidente) da mais alta Corte de Justiça de um país – decidimos reproduzi-las para os nossos leitores. Entendemos ainda que, caso o doutor Gilmar não as responda, ele estará transferindo para o conjunto dos demais ministros que compõem o STF a obrigação de se pronunciarem a respeito (sempre com provas do que afirmarem). Ou seja, fica em xeque perante a opinião pública não apenas o presidente, mas todo o colégio de ministros que compõem o STF. 1. O senhor sabe algo sobre o assassinato de Andréa Paula Pedroso Wonsoski, jornalista que denunciou o seu irmão, Francisco Mendes, por compra de votos em Diamantino, no Mato Grosso? 2. Qual a natureza da sua participação na campanha eleitoral de Francisco Mendes para prefeito em 2000, quando o senhor era advogado-geral da União? 3. Qual a natureza da sua participação na campanha eleitoral de Francisco Mendes em 2004, quando o senhor já era ministro do STF? 4. Quantas vezes o senhor acompanhou ministros de Fernando Henrique Cardoso a Diamantino, para inauguração de obras? 5. O senhor tem relações com o Grupo Bertin, condenado em novembro de 2007 por formação de cartel? Qual a natureza dessa relação? 6. Quantos contratos sem licitação recebeu o Instituto Brasiliense de Direito Público, do qual o senhor é acionista, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso? 7. O senhor considera ética a sanção, em primeiro de abril de 2002, de lei que autorizava a prefeitura de Diamantino a reverter o dinheiro pago em tributos pela Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Diamantino, da qual o senhor é um dos donos, em descontos para os alunos? 8. O senhor tem alguma ideia do porquê das mais de 30 ações impetradas contra o seu irmão ao longo dos anos jamais terem chegado sequer à primeira instância?
Elza Fiúza-ABr
9. O senhor tem algo a dizer acerca da afirmação de Daniel Dantas, de que só o preocupavam as primeiras instâncias da justiça, já que no STF ele teria “facilidades” ? 10. O segundo habeas corpus que o senhor concedeu a Daniel Dantas foi posterior à apresentação de um vídeo que documentava uma tentativa de suborno a um policial federal. O senhor não considera uma ação continuada de flagrante de suborno uma obstrução de justiça que requer prisão preventiva? 11. Sendo negativa a resposta, para que serve o artigo 312 do Código de Processo Penal segundo a opinião do senhor? 12. Por que o senhor se empenhou no afastamento do Dr. Paulo Lacerda da ABIN? 13. Por que o senhor acusou a ABIN de grampeá-lo e até hoje não apresentou uma única prova? A presunção de inocência só vale em certos casos? 14. Qual a resposta do senhor à objeção de que o seu tratamento do casoDantas contraria claramente a *súmula 691*<http://www.dji.com.br/ normas_inferiores/ regimento_ interno_e_sumula_ stf/stf_0691a072 0. htm>do próprio STF? 15. O senhor conhece alguma democracia no mundo em que a Suprema Corte legisle sobre o uso de algemas? 16. O senhor conhece alguma Suprema Corte do planeta que tenha concedido à mesma pessoa dois habeas corpus em menos de 48 horas? 17. Por que o senhor disse que o deputado Raul Jungmann foi acusado “escandalosamente” antes que qualquer documentação fosse apresentada? 18. O senhor afirmou que iria chamar Lula “às falas”. O senhor acredita que essa é uma forma adequada de se dirigir ao Presidente da República? O
senhor conhece alguma democracia onde o Presidente da Suprema Corte chame o Presidente da República “às falas”? 19. O senhor tem alguma ideia de por que a Desembargadora Suzana Camargo, depois de fazer uma acusação gravíssima – e sem provas – ao Juiz Fausto de Sanctis, pediu que a “esquecessem” ? 20. É verdade que o senhor, quando era Advogado-Geral da União, depois de derrotado no Judiciário na questão da demarcação das terras indígenas, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem as decisões judiciais? 21. Quais são as suas relações com o site Consultor Jurídico? O senhor tem ciência das relações entre a empresa de consultoria Dublê, de propriedade de Márcio Chaer, com a BrT? 22. É correta a informação publicada pela Revista Época no dia 22/04/2002, na página 40, de que a chefia da então Advocacia Geral da União, ou seja, o senhor, pagou R$ 32.400,00 ao Instituto Brasiliense de Direito Público – do qual o senhor mesmo é um dos proprietários – para que seus subordinados lá fizessem cursos? O senhor considera isso ético? 23. O senhor mantém a afirmação de que o sistema judiciário brasileiro é um “manicômio”? 24. Por que o senhor se opôs à investigação das contas de Paulo Maluf no exterior? 25. Já apareceu alguma prova do grampo que o senhor e o senador Demóstenes denunciaram? Não há nenhum áudio, nada? Nota da Redação Pelo menos seis ministros do STF são assalariados do doutor Mendes no seu Instituto Brasiliense de Direito Público.
tos se refiram ao presidente do STF, como “Gilmar Dantas” (sobre Daniel Dantas, ver pág. 5). A virada de mesa de Barbosa A impunidade do doutor Dantas lhe parecia eterna. Em sua (im)postura imperial, não se furtou nem mesmo de vir a público para admoestar o próprio presidente da República, prometendo “chamar às falas”, o chefe do Executivo. Certamente, foi quando menos esperava, que o ministro Joaquim Barbosa “bateu na mesa”. Naquele momento, o doutor Barbosa fez o exato gesto que milhões de brasileiros esperavam, e com o qual imediatamente se identificaram. Rapidamente a notícia se alastrou pela internet, enquanto as forças da direita, orquestradas pela grande mídia comercial, tentavam minimizar o episódio, psicologizá-lo, atribuindo a atitude do doutor Barbosa a uma suposta “característica temperamental” do ministro. Ora, desde sempre, a grande mídia comercial (parasita que se alimenta dos orçamentos públicos para o setor de comunicação) tem buscado despolitizar, retirar qualquer conteúdo político – esconder os interesses de classe em jogo – dos embates. Para tanto, qualquer argumento é bom.
Luiz Ricardo Leitão
Resistir é preciso O FUNCIONÁRIO (contratado, é óbvio) da Prefeitura bate à minha porta, em plena campanha contra a dengue, essa praga quase medieval que assola os grotões de Bruzundanga, em geral, e as plagas cariocas, em especial. Aqui no Rio nós os chamávamos de “matamosquitos”, até que um dia o morcegão José Serra, então Ministro da Saúde (?) e eterno presidenciável tucano, decidiu demiti-los, a bem (?) do Tesouro público – com os resultados que todos nós conhecemos na própria pele, literalmente. Atendo o rapaz com uma blusa trazida de Cuba, e o modesto matamosquito logo se entusiasma ao ler o nome da ilha estampado à sua frente. Quer saber se eu já estive por lá e, enquanto examina vasos e ralos, manifesta sua admiração pela resistência cubana, que, “apesar do bloqueio”, nunca deixou de garantir educação e saúde de boa qualidade à população. O comentário do agente de saúde, filho de um cordelista nordestino cujos libretos ele própria ilustra, fica a martelar-me os ouvidos e ajuda-me a compreender por que Barack Obama, o novo super-herói da mídia ocidental (que, cá entre nós, de bobo não possui nada), tem sido tão cuidadoso com o tema insular em sua atribulada agenda internacional. Cuba, por sinal, continua a ser a principal referência do Império para a definição de sua política externa na América Latina, uma contingência histórica já consignada por Darcy Ribeiro em As Américas e a Civilização, em alusão à famigerada Doutrina Monroe, no século 19, e à maquiavélica criação da “Aliança para o Progresso”, no limiar dos anos 60, uma resposta à estonteante vitória da Revolução em 1º de janeiro de 1959. A declaração mais emblemática de Obama sobre seus vizinhos deu-se há pouco, por ocasião da Cúpula da moribunda OEA, quando, consciente do triste papel ianque ao sul do Rio Bravo, anunciou que a atuação estadunidense na região deveria ir bem além da repressão às drogas. Para pasmo de muitos, o síndico recém-eleito do Império elogiou o trabalho dos médicos cubanos e disse que os EUA deveriam seguir o exemplo do arquipélago, enviando mais do que armas aos países latinos, a fim de consolidar sua ‘influência’ sobre o continente. A chamada “doutrina” do bom-moço e bom-mulato Obama (cujos princípios seriam “saber ouvir”, “liderar pelo exemplo”, “reconhecer interesses alheios” e “conjugar a diplomacia à força militar” – apenas “um braço” do poder ianque) já fora explicitada uma semana antes pela nova Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, que, em visita à República Dominicana, reconheceu que a atual política de Tio Sam para Cuba simplesmente “fracassou”. Por isso, no afã de evitar a dissolução da OEA, pleito quase consensual das nações latino-americanas, o que seria um duro golpe nas pretensões neocoloniais de Tio Sam, a Casa Branca deu sinal verde para a proposta de reintegração do Estado caribenho à instituição. Observando à distância esse curioso xadrez, aprendo mais uma vez com os discípulos de José Martí como é bela a arte da resistência. Desde os tempos do “Apóstolo da Independência”, os maiores líderes cubanos sempre souberam que, entre as três alternativas que a História lhes oferecia – capitular ao poderio ianque, conforme desejava a burguesia açucareira anexionista; associar-se à Coroa Ibérica, como predicavam os autonomistas; ou defender a soberania a todo custo, posição dos autênticos revolucionários –, somente esta última lhes permitiria sobreviver com identidade própria. A aposta ousada de Che & Fidel, portanto, não surge do nada: ela apenas atualiza o famoso Protesto de Baraguá, lançado por Antonio Maceo em 1878, um libelo contra o acordo de deposição das armas que a burguesia criolla firma com a metrópole espanhola. Pátria ou Morte!, conclamou o general; Venceremos!, ecoaram os corajosos combatentes da Sierra Maestra. Assim, em meio a tantos desafios (desde o bloqueio ianque e os impasses da Guerra Fria, que resultaram na delicada aliança com a URSS, até o famigerado Período Especial, marcado por sérios reveses na esfera socioeconômica), a bússola cubana não perdeu o seu prumo, ciente de que, 90 milhas ao norte, o imperialismo está à sua espera, analisando com minúcia cada passo do tabuleiro. Não logro avaliar com precisão todos os movimentos do regime cubano. Sei que há ajustes imprescindíveis a fazer neste período de transição que se instaurou desde a saída de Fidel e até recebo com reservas a notícia da saída de Carlos Lage e Felipe Pérez Roque. Contudo, parabenizo os herdeiros de Martí pela sua tenacidade: derrotar um Império, sem sentar no colo da rainha nem limpar a cadeira do boss, como fazem tantos chefes de Estado, é proeza admirável. O preço pago por seu povo não foi pequeno, mas a escolha já fora feita há quase dois séculos: Pátria ou Morte, os cubanos certamente vencerão. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Luís Brasilino • Subeditor: Igor Ojeda • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Joana Tavares • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil
Gama
No 1º de maio da crise, contradições estão mais expostas TRABALHO Especialistas ressaltam o protagonismo da classe trabalhadora para superação da ordem Renato Godoy de Toledo da Redação SOA CONTRADITÓRIO. E é. A crise estrutural do modelo econômico vigente tende a agravar a situação dos trabalhadores, com demissões, redução de direitos e salários. No entanto, o momento é propício para fortalecer as organizações da classe e realizar a disputa de hegemonia na sociedade, já que o caráter do regime capitalista torna-se mais claro nesse período histórico. Porém, aos trabalhadores não resta a simples tarefa de assistir à ruína das idéias neoliberais para, posteriormente, implementar sua agenda. A história mostra que não há uma associação mecânica entre a falência de um sistema e a construção de uma alternativa. Portanto, a crise econômica mundial traz enormes preocupações aos trabalhadores, bem como desafios e a esperança de emancipação. No 1º de maio, Dia Internacional do Trabalhador, o tema das organizações sindicais deve ser o mesmo no mundo inteiro: os impactos da crise no mundo do trabalho. E, desde o pós-guerra, este deve ser o Dia do Trabalhador com mais menções às análises de Karl Marx sobre a dinâmica da sociedade capitalista. Consultados pela reportagem, especialistas não se furtaram em citar conceitos criados pelo pensador alemão para analisar a situação da classe trabalhadora no Brasil. Capitular ou enfrentar
O sociólogo Ruy Braga, da Universidade de São Paulo
(USP), salienta que não é possível formular uma teoria sobre como o capitalismo se movimenta durante momentos de crise, assim como a dinâmica da mobilização dos trabalhadores. As complicações oriundas da crise não acarretam, necessariamente, numa sublevação do conjunto dos trabalhadores contra a ordem vigente. “Não há uma relação mecânica de passagem automática de um momento para o outro. O que existe é um processo de construção social para isso, que a classe traba-
Como resposta à crise, os sindicatos almejam promover grandes mobilizações, mas suas bases estarão cada vez mais minadas pelo desemprego
ção [diante da crise]”, avalia. De acordo com o também sociólogo Mauro Iasi, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o setor patronal deve apresentar propostas reducionistas aos trabalhadores, restando a estes últimos dois caminhos: o enfrentamento ou a capitulação. “Os trabalhadores podem reagir de duas formas contraditórias neste momento. Podem ficar tentados a aceitar pactos sociais e buscar saídas conjuntas com o capital, caindo no canto de sereia de que com a volta do crescimento seus empregos e salários se recuperariam, ou podem se mobilizar e lutar por seus direitos, recusando-se a arcar com os custos da crise do capital. É bom lembrar que no ciclo de crescimento a acumulação foi privada e se pedia aos trabalhadores que esperassem para repor suas perdas”, explica. Fragmentação
lhadora faz junto aos seus instrumentos, como os sindicatos. Mas, em vez de um aumento das mobilizações, pode acontecer o contrário. O crescimento do desemprego pode desmoralizar a classe trabalhadora e fazer com que o processo retroceda. O que existe é um processo de construção dessa mobiliza-
É sabido que, quando as empresas têm sua margem de lucro diminuída, a saída mais comum é o corte de gastos com pessoal, em nome da competitividade e da sanidade financeira da instituição. E essa tem sido a justificativa mais comum vista diariamente no mundo todo. Assim, está posta mais uma contradição. Como resposta à crise, os sindicatos almejam promover grandes mobilizações, mas suas bases estarão cada vez mais minadas pelo desemprego.
Aliados ou adversários? Movimento sindical tem desafio de unir trabalhadores em momento de fragmentação da Redação O conjunto dos trabalhadores vive um conflito interno permanente, sobretudo em momentos de agravamento de sua situação econômica e social. Enquanto a condição de igualdade entre os trabalhadores os une em prol de um objetivo comum e contra um adversário – o patronato –, a dinâmica competitiva do capitalismo os coloca como oponentes na luta por um posto de trabalho ou por um cargo melhor dentro da empresa. Disso, pode ser dito que a tarefa das organizações de trabalhadores comprometidas com a transformação social tem sido fortalecer a tendência à associação, em detrimento da competição. Para Ruy Braga, sociólogo da USP, essa contradição no seio da classe trabalhadora é inerente à sua própria constituição histórica. “Ela faz parte da classe, que é pressionada por duas tendências. Primeiro, a exploração do trabalho, que produz a associação e faz com que os trabalhadores se reconheçam como aliados. Por outro lado, ela é fragmentada pelo mercado de trabalho. Então, ela vive nessa contradição entre associação e competição. Isso é uma consta-
tação sociológica que independe da análise política”, constata. Desafios
Diante dessa realidade, Braga aponta que as direções operárias têm o desafio de promover a associação num momento de fragmentação. “O grande enigma é como fazer com que as tendências de fragmentação sejam superadas pela associação. No caso brasileiro, nos últimos anos, o que ocorreu foi a tendência para a fragmentação. Houve uma atomização dos trabalhadores e uma desarticulação. E essa tendência não foi revertida no governo Lula, apesar de ter havido uma maior formalização”, analisa.
Medidas
O sociólogo Mauro Iasi ressalta o fato de o individualismo ter aumentado com a implementação da reestruturação produtiva. Como exemplo de associativismo, Iasi cita o momento de ascensão do movimento operário no final da década 1970 que deu origem ao chamado Novo Sindicalismo. “Em períodos normais de funcionamento do capitalismo, os trabalhadores se veem como indivíduos concorrendo por um lugar na divisão do trabalho. A chamada reestruturação produtiva acirrou essa disputa. No enfrentamento contra o capital, os trabalhadores podem encontrar um ponto de fusão e se enxergar como uma classe além dos interesses imediatos e individuais. Vimos isso na época do fim da ditadura militar no qual a fusão se deu contra o arro-
cho salarial e a própria forma autoritária do governo, produzindo uma unidade da classe”, relembra. Para Iasi, a forma de combater a atomização dos trabalhadores parte da postura que os seus dirigentes devem adotar diante das soluções propostas pelos empresários. “O primeiro passo é recusar a tese do pacto social e buscar uma ação que preze a independência e a autonomia de classe. A classe trabalhadora não age movida por qualquer essência reformista ou revolucionária, mas, em grande parte, é moldada pela ação das organizações e direções que atuam em cada momento histórico”, ratifica. Apesar do cenário de atomização visto no mundo do trabalho, Iasi sustenta que há condições propícias para tomar medidas mais incisivas. “Existe uma base material para retomar as lutas e enfrentamentos que resgatariam a independência de classe e permitiriam um salto na consciência de classe, hoje pulverizada em interesses pessoais e hegemonizada por uma visão marcada pelo entendimento e aliança com a burguesia”, acredita. (RGT)
Para entender Reestruturação produtiva – Processo iniciado na década de 1970 a partir do qual foram introduzidos novos métodos de gestão da produção, que ampliaram a intensificação do trabalho, e tecnologias, como a microeletrônica e a subsequente automação.
“Em período de retração, a tendência é de fragmentação da classe e, com o desemprego, a concorrência aumenta. Independentemente do ritmo da acumulação, a classe tem um grande desafio de construir a sua própria emancipação. E isso depende dos grupos mais organizados. Eles precisam responder a uma série de questões: quem somos nós? Quem são eles? Quem são os aliados e os inimigos?”, esclarece Ruy Braga. Se a recessão da economia implica em fragmentação, o contrário não é sinônimo de acúmulo de forças, segundo o sociólogo. “O processo de acumulação capitalista tem dois momentos: um de expansão e outro de retração. A expansão é, geralmente, seguida pela superprodução. Num momento de acumulação acelerada, os ganhos podem ser transferidos para o salário. Mas isso só é garantido pela correlação de forças. Pode haver um processo de aceleração, mas com contenção salarial, como na década de 1990”, exemplifica.
Nova classe trabalhadora pode ter papel fundamental Mudanças na economia inflaram setor de serviços, estruturalmente calcado na concorrência da Redação O crescimento do setor de serviços mudou o caráter da classe trabalhadora brasileira. Hoje o segmento é o que mais gera empregos formais no país. De acordo com o Cadastro Geral de Emprego e Desemprego do IBGE, em 2008, o setor foi o que mais criou postos de trabalho (648 mil), seguido pelo comércio (382 mil), construção civil (197 mil) e a indústria de transformação (178 mil). Os dois primeiros são segmentos que não apresentam uma tradição de luta sindical no país. Com a mecanização da produção, ultrapassaram os setores clássicos do operariado. Esse quadro tem forçado o movimento sindical a dialogar com essa nova classe trabalhadora que vive num quadro de exploração e uma competitividade inerente ao modelo desse trabalho. “O novo proletariado de serviços é muito importante do ponto de vista sociológico. Ele se desenvolveu muito na década de 1990 e precisa ser organizado e construído como sujeito”, afirma Ruy Braga, sociólogo da USP.
Por se tratar de uma classe nova e com um ambiente de trabalho que repulsa a prática sindical, a maneira de lidar com esses trabalhadores deve ser diferenciada, de acordo com Braga. “Esse processo [de organização desses trabalhadores] esbarra nas características estruturais do setor, que são anti-sindicais. Esse setor tem a característica de estimular a concorrência entre os próprios trabalhadores. A única solução é organizar esses trabalhadores fora dos seus locais de trabalho. Tem que se apostar em sua composição cultural, ideológica e fortalecer o vínculo desse novo proletariado com a luta contra a discriminação racial e de gênero e, a partir daí, retornar
“Solução é organizar esses trabalhadores [dos serviços] fora dos seus locais de trabalho. Tem que fortalecer o vínculo com a luta contra a discriminação racial e de gênero e, a partir daí, retornar ao local de trabalho mais forte”, defende Ruy Braga
ao local de trabalho mais forte”, defende. Ampliação da classe
Para Mauro Iasi, o crescimento do setor de serviços tem uma implicação subjetiva no olhar do trabalhador sobre sua condição de pertencente a uma classe. “A classe trabalhadora mudou de forma, se desconcentrou, se fragmentou e aprofundou-se a divisão social e técnica do trabalho. Tudo isso gera dificuldades maiores para que os trabalhadores se reconheçam como uma classe. No entanto, a centralidade do trabalho e a própria contradição do capitalismo que suga o trabalho coletivo transformando-o em acumulação privada geram as condições para que a classe se conforme novamente como classe”, esclarece. Apesar de fragmentar os trabalhadores, o crescimento dos serviços tem contribuído para aumentar a formalização do emprego no Brasil, já que este tem sido o setor que mais gera postos com carteira assinada. “Esse crescimento aumenta a fragmentação, mas, ao mesmo tempo, amplia a classe e generaliza o assalariamento. Cada vez mais consolida-se a subordinação do trabalho ao capital, ou seja, não dá para viver a não ser vendendo sua força de trabalho em troca de salários e comprando os produtos do trabalho como mercadorias. Ao descentralizar a produção capitalista, generalizou-se o capital para toda a sociedade e tornou possível que a classe trabalhadora encontrasse um ponto de identidade no assalariamento”, conclui. (RGT)
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brasil Fernando Stankuns/CC
PM intensifica tortura contra moradores de Paraisópolis REPRESSÃO Comunidade paulistana continua sofrendo com investida policial e campanha de criminalização da pobreza
Márcio Zonta de São Paulo (SP) OS RELATOS FAZEM lembrar as torturas cometidas pelos agentes da ditadura civil-militar no Brasil. Os moradores de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, alegam que a repressão só aumentou desde a implantação, em fevereiro, da operação Saturação pela Polícia Militar (PM). A medida veio em decorrência de confrontos entre as forças de segurança e a população local, que protestava contra a morte, pelos policiais, de um habitante da comunidade. Segundo vários moradores, as cenas de violência passaram das ruas para os becos, onde
“Se alguém for revistado, a polícia rouba o salário, como aconteceu com um jovem da comunidade. Eles revistaram o menino, pegaram o dinheiro no seu bolso e disseram: ‘você é ladrão, mora em favela, esse dinheiro não é seu’” homens da polícia, sem identificação em suas fardas, estariam operando com requintes de crueldade, como relata um jovem, que não quis se identificar: “estava voltando do trabalho por volta das 23h e presenciei um amigo, estudante de Educação Física, amarrado por uma corda, suspenso e preso em alguma coisa, de onde tomava pauladas de vários policiais”. Outro rapaz, que a PM suspeitou que tivesse gravado em seu celular um vídeo que registrava uma operação violenta contra um morador, foi colocado debaixo de uma porta enquanto um dos policiais pulava em cima por longos minutos. A vítima ficou gravemente machucada. Uma das líderes de Paraisópolis denuncia ainda que a população local, quando volta do trabalho, dá falta de eletrodomésticos: “a polícia espera as pessoas saírem para trabalhar e invadem suas casas, principalmente para roubar computadores e televisão”, relata. Ela diz orientar os moradores a tomarem cuidado em dia de pagamento, pois, “se alguém for
revistado, a polícia rouba o salário, como aconteceu com um jovem da comunidade. Eles revistaram o menino, pegaram o dinheiro no seu bolso e disseram: ‘você é ladrão, mora em favela, esse dinheiro não é seu’”. Por fim, a mulher denuncia que, agora, a PM ataca também os líderes que organizam protestos contra essa violência e contra as desocupações ocorridas de maneira irregular na área. “Invadiram minha casa em meados de abril e quebraram tudo. Isso vem ocorrendo com algumas lideranças”, conclui.
Clima de periculosidade
Jozé Maria, líder comunitário e morador há mais de 20 anos de Paraisópolis, acredita que toda essa repressão por parte da polícia tem uma finalidade: “eles querem dizer para a sociedade que somos bandidos, que tem que acabar com isso daqui urgentemente para tomar o nosso espaço”, observa. Ele acrescenta que, em reuniões do Conselho de Segurança da região, em que participa moradores de Paraisópolis, empresários e habitantes do bairro vizinho do Morumbi – conhecido por abrigar parte da classe alta paulistana –, as ofensas contra a comunidade são constantes. “Em um encontro recente, um empresário disse que todas as dez empregadas domésticas que já teve (moradoras de Paraisópolis) o tinham roubado. Isso é um absurdo. Agora, quando nossa gente vai pedir emprego, tem que mentir onde mora, senão, sofre preconceito”, desabafa. O sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) Tiarajú D’Andrea alerta sobre o futuro da comunidade, ameaçado pelo clima de periculosidade que, segundo ele, é criado propositalmente. “Com a realização da Copa de 2014, muitas obras virão por aí, e maior serão as ameaças de remoção e a repressão sobre a população pobre”, diz. Andrea chama a atenção, ainda, para o fato de que, na região, sempre serão atendidos os interesses do setor imobiliário, que exerce, por meio de “mecanismos políticos, econômicos e até ideológicos“, um grande poder sobre o Estado, induzindo-o a atuar a seu favor. A repressão policial seria uma dessas formas de atuação, pois parte dos moradores do Morumbi “induz a imprensa e a sociedade a classificarem Paraisópolis como um lugar ‘perigosíssimo’. Neste momento, prega a ação dura e repressora da polícia, e Paraisópolis deixa de ser ‘comunidade’ para virar ‘favela’, com toda a implicação estigmatizadora que esse discurso produz”, complementa Andrea.
O novo alvo da Camargo Corrêa Junto com a prefeitura de São Paulo, empreiteira pressiona moradores de Paraisópolis a deixarem suas casas, que estão no caminho de grandes obras de São Paulo (SP) Moradores e entidades ligadas à Paraisópolis lançaram, no dia 25, a campanha “Paraisópolis Exige Respeito”, que denuncia as desapropriações irregulares que vêm sendo tentadas pela prefeitura da cidade de São Paulo para que a empreiteira Camargo Corrêa efetive suas obras na região: a construção de prédios – segundo a empresa, para própria comunidade – e uma avenida que, até agora, não demonstrou sua funcionalidade. Ambos empreendimentos estão em andamento. Um vídeo feito por um morador em uma reunião realizada no canteiro de obras da própria empreiteira entre uma funcionária da Secretaria Municipal de Habitação, conhecida como Maria Tereza, e 80 integrantes da comunidade, revela como a mulher tenta persuadir seus interlocutores. Ela argumenta que, após estes terem recebido, em meados de abril, intimação da prefeitura paulistana para imissão de posse do terreno – o que lhes dá um prazo de 20 dias para a desocupação – seria melhor que eles aceitassem a proposta das autoridades. Ou seja, um apartamento e uma dívida a ser quitada em 25 anos. Caso contrário, a alternativa seria o recebimento de uma indenização de R$ 5 mil, quantia que, segundo a funcionária, traria um destino incerto aos moradores, que poderiam ser obrigados a ir a um albergue ou alojamento cedidos pela administração municipal. José Maria, líder comunitário de Paraisópolis, indaga: “só conseguirão pagar esses apartamentos aqueles que ganharem cerca de seis salários mínimos. Por que não realizam um plano de moradia popular?”. Marisa Ferfferman, representante do Tribunal Popular, explica que a prefeitura é, efetivamente, a dona dos terrenos, e que obteve suas posses por meio de um processo de desapropriação. No entanto, segundo ela, a Viela Passarinho (a área mais afetada pelas obras Camargo Corrêa até o momento), não foi desapropriada.
“Para caracterizar isso, precisaria de um decreto de utilidade pública, mais o pagamento do valor de mercado dos imóveis da zona, com indenização prévia, e em dinheiro. Entretanto, foram os processos de desapropriação dos terrenos vizinhos, que nem contêm moradias, que foram utilizados para solicitar ao juiz a ordem de desocupação, em uma atitude clara de má-fé”, explica.
Negociação São 6h da manhã do sábado, 25 de abril, as casas e barracos começam a tremer. São os tratores e as escavadeiras da empreiteira Camargo Corrêa que começam a trabalhar próximo às moradias, intimidando os moradores que resistem em sair do local. Maria José Pereira de Araújo teme não completar, em outubro, seus 67 anos de idade e 31 na Viela Passarinho, em Paraisópolis. Já está quase cedendo às pressões da empresa: “Cortam minha água, minha luz, jogam pedras no meu telhado e mandam pessoas seguirem minhas filhas quando voltam à noite do trabalho. Estou até sentindo vontade de sair, pois estou com medo”, denuncia. Sua residência, que Maria José divide com duas filhas e dois netos, está no caminho da avenida em construção. Um vizinho conta que, no dia 24 de abril, percebeu a movimentação de oito homens da Camargo Corrêa nas imediações. “Eles se comunicavam por rádios e, quando suas filhas saíram para trabalhar, foram até lá e começaram a pedir para ela assinar um documento que passava a posse da casa para a empreiteira”. O vizinho, então, aproximou-se e solicitou à senhora, analfabeta, que não assinasse nada sem a presença de suas filhas. De imediato, foi interpelado por um dos homens, que disse: “a Camargo Corrêa já pagou R$ 1 milhão a um grileiro pelas terras. Em 20 dias, ela sai daqui sem direito nenhum. Ela tem que se virar com a pessoa que tem o documento de proprietário do local”. Maria José confirma que recebeu a visita do grileiro que possui o documento de posse de sua casa. “Ele tentou nego-
ciar comigo, minha saída, me oferecendo dinheiro, mas não aceitei”, conta.
Usucapião Para Feffermann, a prefeitura esconde a verdade dos moradores ao reconhecer os documentos apresentados pelos grileiros. “Esse procedimento fere as normas legais, na medida em que a comunidade que mora nessa região [Viela Passarinho] por tantos anos [mais de 15] já adquiriu o direito de ser proprietária desse lugar, através do instituto do usucapião. Sendo assim, os proprietários desse terreno são seus próprios moradores”, revela.
São 6h da manhã do sábado, 25 de abril, as casas e barracos começam a tremer. São os tratores e as escavadeiras da empreiteira Camargo Corrêa Num clima de terra de ninguém, onde a prefeitura, a Camargo Corrêa e grileiros negociam a área, os verdadeiros donos, os moradores, são os principais prejudicados. Ferffemann pontua: “não levam em conta as resoluções do Conselho Nacional das Cidades, que exigem participação popular na elaboração, implementação e gestão das políticas urbanas, e garantem o direito da população de baixa renda de morar junto a áreas urbanizadas, e não apenas em suas periferias”. Além disso, segundo a representante do Tribunal Popular, essa área pertence a Zonas Especiais de Interesse Social. “Portanto, há um desvio de finalidade de um Plano Diretor, de um Plano de Urbanização. Desse modo, as políticas públicas continuarão seguindo no caminho errado, transformando em letra morta direitos sociais e democráticos previstos na Constituição Federal”, conclui. (MZ)
A atuação obscura das ONGs na comunidade de São Paulo (SP) Das 54 ONGs presentes em Paraisópolis, apenas uma participa da campanha “Paraisópolis Exige Respeito”: a Associação em Defesa da Moradia, que não é ligada a nenhuma empresa. As demais permanecem inertes diante da violência praticada pela polícia e das desocupações irregulares na comunidade. Alguns relatos de moradores apontam para a preocupação das ONGs em não terem seus nomes atrelados às causas e reivindicações locais. Para o líder comunitário José Maria, as entidades estão a favor do Estado e do mercado imobiliário. Ele cita o caso envolvendo uma enfermeira do Albert Einstein. Escondida da associação bancada pelo hospital para atuar junto às crianças de Paraisópolis, ela prestou atendimento contínuo ao rapaz que teve sua perna completamente ferida por uma bomba de efeito moral jogada pelos policiais (como relatado na edição 311 do Brasil de Fato). “Um dia, fui visitálo e encontrei a enfermeira, que pediu pelo amor de Deus para que eu não contasse a ninguém que ela estava lá, pois, do contrário, perderia seu emprego”.
Dissipação
Para Marisa Ferffemam, representante do Tribunal Popular na campanha, as ONGs também dissipam a comunidade. “A grande dificuldade de organização política e social dos moradores de Paraisópolis se dá por que os grupos estão ligados a diferentes entidades e, em vez de uma atuação passageira, elas acabam por tornar a população dependente, eternamente, de seu auxílio”, conclui. Outra acusação dá conta do envolvimento das ONGs com a Polícia Militar (PM). Uma líder comunitária, que prefere não se identificar por já ter sofrido represálias das forças de segurança, diz que, um dia, um tenente da PM a procurou e propôs: “se você parar de protestar contra o que está acontecendo na comunidade, arrumo uma vaga para seus filhos entrarem num projeto social de uma ONG daqui”. O sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) Tiarajú D’ Andrea, opina: “há que se ressaltar que essas organizações são também uma expressão dos tempos neoliberais de diminuição do Estado e das políticas públicas que se desdobram numa certa privatização das soluções”. (MZ)
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Por pouco, Pará não é palco de mais um massacre de sem-terra Edinaldo Sousa/Folha Imagem
LUTA PELA TERRA Para coordenador do MST, ação foi premeditada; jornalista da Globo desmente versão da emissora para a polícia Dafne Melo da Redação VIOLÊNCIA DE milícias privadas, morosidade na realização da reforma agrária, favorecimento da elite latifundiária, criminalização e manipulação dos grandes meios de comunicação e complacência do poder público com a violência. Todos esses clássicos e tristes elementos da luta pela reforma agrária no país estiveram presentes nos últimos capítulos da tentativa de massacre de acampados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pará. No dia 18 de abril, oito trabalhadores foram pegos em uma emboscada por milícias armadas da fazenda Espírito Santo, pertencente à empresa Agropecuária Santa Bárbara que, por sua vez, pertence ao grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas. Dois foram gravemente feridos, mas passam bem. O MST denuncia que há quatro anos o grupo vem comprando terras griladas. Em entrevista, Charles Trocate, integrante da coordenação nacional do movimento, no Pará, comenta a disputa de interesses no Estado: de um lado, o projeto popular, que defende a reforma agrária e a soberania sobre os recursos naturais. De outro, a exploração – nada sustentável – desses recursos por grandes grupos econômicos. Trocate também comenta a recente tentativa de massacre, vendida pela imprensa corporativa como uma ação provocada pelos sem-terra. A versão foi desmentida pelo próprio repórter da TV Liberal, afiliada da TV Globo no Estado, Victor Haor. Ele prestou depoimento à polícia dia 27 de abril e negou que os jornalistas tenham sido usados como escudo humano ou mantidos reféns pelos trabalhadores, desmentindo a própria empresa para a qual trabalha. Brasil de Fato – Quando e por que o MST começou a ocupar as fazendas do grupo Santa Bárbara? Charles Trocate – Nos últimos quatro anos, a agropecuária Santa Bárbara comprou aproximadamente 800 mil hectares de terras. São 52 fazendas em 11 municípios do sul e sudeste do Pará, onde criam meio milhão de cabeças de gado; dizem eles que é o maior projeto de criação de gado do mundo. O problema é que essas terras são públicas, portanto, foram griladas; o verdadeiro dono é o Estado do Pará, quando não a União. Aí há dois fatores: primeiro que, independentemente de ser ligada ao Daniel Dantas ou não, é latifúndio e é da natureza do MST fazer enfrentamento ao latifúndio. Segundo, houve nesses quatro anos uma reconcentração fundiária e da exploração dos recursos naturais. E já está provado que o modelo econômico baseado na mineração e na grande fazenda é incapaz de resolver os problemas sociais que a região vive. Logo, nossa postura foi começar um grande mutirão de ocupações dessas terras, em especial da agropecuária Santa Bárbara, pois sim-
Trabalhadores sem-terra se aproximam da fazenda Espírito Santo onde foram pegos em uma emboscada de milícias armadas
“Alugaram um avião em Belém, em nome do grupo Santa Bárbara, convocaram os jornalistas da região e desceram na pista da própria fazenda” boliza a concentração fundiária, além de que são terras reconhecidamente públicas. Esse mutirão começou pela fazenda Maria Bonita, a 22 quilômetros do município de Eldorado de Carajás, em julho do ano passado; no dia 28 de fevereiro de 2009 ocupamos a fazenda Espírito Santo e no dia 1º de março ocupamos a fazenda Cedro, todas pertencentes ao Dantas. Em relação ao episódio da jornada de abril, na fazenda Espírito Santo, o que de fato aconteceu? Desde a ocupação da fazenda Maria Bonita, em 25 de julho de 2008, tivemos três reuniões com o Instituto de Terras do Pará [Iterpa] e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária [Incra]. Pedimos as vistorias, mas todas as tentativas que o MST e esses órgãos fizeram não foram aceitas pelo grupo Santa Bárbara, portanto, continua esse impasse. Por meio de seus advogados, a empresa agropecuária vem afirmando que vai até o fim para tirar os trabalhadores dos acampamentos, “dentro dos limites do Estado de Direito”, dizem. O agravante foi uma reunião, no dia 6 de abril, em Marabá [PA], convocada pela subcomissão mista de agricultura, presidida pela senadora e presidente da Confederação Nacional da Agricultura [CNA] Kátia Abreu [DEM-TO] e com a presença de parlamentares, como o deputado estadual Asdrúbal Bentes [PMDB], Giovani Queiróz [PDT-PA] e o senador Flexa Ribeiro [PSDB-PA]. Eles criticaram a morosidade do Estado em cumprir as liminares de reintegração de posse e, evocando a violência de classe, afirmaram que, se elas não fossem agilizadas, os fazendeiros e proprietários deveriam se armar, constituir milícias e desocupar pela força as fazendas e que eles fariam a defesa dos fazendeiros. Mais de 500 grandes fazendeiros da região estiveram nessa reunião. No dia 18 de abril, começaram a executar esse plano e para isso construíram uma grande cilada. Então, isso faz parte da filosofia que está se estruturan-
do no sul e sudeste do Pará: eles reivindicam a força policial do Estado para o despejo e, diante da negativa, colocam em marcha uma ofensiva armada. De janeiro para cá, foram 21 ocupações coordenadas pelo MST, Federação dos Trabalhadores da Agricultura [Fetagri] e Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar [Fetraf] e outros grupos espontâneos. Isso ocorre porque a grave crise social, econômica e ambiental que vive a região não se resolve nem com o modelo agrário baseado no latifúndio e nem o modelo mineral da Vale. A única saída é a reforma agrária. Do nosso ponto de vista, há uma tendência de agudização da tensão social, pois de um lado está a defesa de um modelo que inviabiliza a sociedade e, do outro lado, os trabalhadores, que buscam outras saídas. E como se deu o ataque das milícias? Na jornada de abril, decidimos concentrar forças em duas atividades. Uma na “curva do S” [onde ocorreu o Massacre de Eldorado do Carajás] e outra na capital. Em momento algum decidimos ocupar latifúndios ou sedes de fazendas. Nossa avaliação é que havia uma pretensão por parte da Santa Bárbara, uma espécie de plano para criar um fato que pressionasse o Estado a fazer o despejo. Isso porque a juíza de Marabá declarou que pediria a reintegração de posse, mas que não havia nenhuma excepcionalidade no caso e que havia uma fila de outras 43 reintegrações para fazer antes. Então, eles tentaram criar uma situação em que a única saída fosse o despejo das famílias. Dessa forma, o plano foi bem montado: alugaram um avião em Belém, em nome do grupo Santa Bárbara, convocaram os jornalistas da região e desceram na pista da própria fazenda. Ali emboscaram os trabalhadores, que recuaram. Um deles, porém, ficou nas mãos dos seguranças da fazenda. Os outros foram pedir ajuda aos acampamentos vizinhos e decidiram ir buscar o trabalhador que estava preso pelos seguranças. Foi aí que houve o ataque.
Houve, então, uma tentativa de massacre? Como está o estado de saúde dos sem terra atingidos? Nossa constatação é que as milícias e jagunços tinham ordem de executar um massacre. Quando os trabalhadores se deram conta que os seguranças estavam com armamento pesado e atirando, recuaram e oito ainda se feriram, dois ficaram em estado grave. Um companheiro levou um tiro na barriga que perfurou o pulmão e o baço; uma outra bala ficou alojada no coração. Passou por cirurgia e está se recuperando. Outro companheiro, de aproximadamente 60 anos, levou dois tiros na boca, um na barriga, um na coxa e outro na canela. Também já está se recuperando. Os outros foram atingidos por estilhaços e passam bem, estão em seus acampamentos e assentamentos já. No depoimento que deu para a polícia, o jornalista da afiliada da TV Globo desmentiu a versão dada pela própria emissora. Como você avalia a cobertura da grande imprensa sobre o ocorrido? O discurso da imprensa – a TV Liberal, Diário do Pará e outros –, a partir desse fato, é de que os trabalhadores teriam provocado o conflito e colocado sob cárcere privado todos os jornalistas. Agora, porém, já está claro que houve uma tentativa de criminalizar, com apoio da grande imprensa, o acampamento e o MST. O depoimento do jornalista mostra que foi produzido um fato que não existiu para criminalizar o MST a nível nacional, tirando a credibilidade da ação dos trabalhadores. Mais uma vez fica clara a tentativa de criminalização, pela grande imprensa, das nossas ações, para desqualificar a própria reivindicação da reforma agrária. Foi a empresa de segurança que manteve três trabalhadores em cárcere privado. Tivemos que fazer uma retirada do local para que mais trabalhadores não fossem atingidos pela chuva de balas, como íamos manter jornalistas, gerente e seguranças presos? É uma grande mentira nacionalizada pelos meios de comunicação para provocar uma reação contrária aos apoiadores da reforma agrária.
O Pará é o Estado com maior índice de violência do país. Como isso se relaciona com o modelo de desenvolvimento adotado para a região? O Pará é um Estado de barbárie social. Dos 7 milhões de habitantes, 4 vivem abaixo da linha da pobreza. Como se explica que uma área tão rica em recursos naturais possa produzir uma desigualdade dessas? Isso explica a natureza do conflito. Hoje, o modelo de desenvolvimento econômico atua no Pará em três grandes frentes. A da agropecuária, que utiliza a terra para criação de gado. Há o triplo de cabeças de gado em relação ao número de habi-
“O Pará é um estado de barbárie social. Dos 7 milhões de habitantes, 4 vivem abaixo da linha da pobreza. Como se explica que uma área tão rica em recursos naturais possa produzir uma desigualdade dessas?” tantes. Há a frente da madeira, responsável por boa parte dos desmatamentos; a frente mineral, que gera uma massa de trabalhadores atingidos por projetos nessa área, desalojando trabalhadores assentados, indígenas e quilombolas. Há ainda a frente da biodiversidade, com os que se apropriam das riquezas natureza da floresta. A natureza do Felipe Canova
Charles Trocate, do MST
conflito está na escolha desse modelo que utiliza fortemente os recursos naturais da região para uma elite, em detrimento do povo e dos trabalhadores da região. E sempre que os trabalhadores reagem, a resposta é a violência, seja pelo uso da repressão do Estado por meio da ação policial – há dois dias [esta entrevista foi concedida em 28 de abril] foram presos 18 militantes que ocuparam o canteiro de obras da hidrelétrica de Tucuruí –, seja pela cooptação dos movimentos e suas lideranças, destituindo a pauta de reivindicação dos trabalhadores, ou ainda – a mais perigosa – com a eliminação física dos militantes e dirigentes desses movimentos. A reação do capital é essa e está colocada na conjuntura da região. Nos últimos 30 anos, foram assassinados 832 trabalhadores no campo paraense. Há uma verdadeira guerra civil no Estado em que só uma parte tem perdido, e tem sido os trabalhadores. O Estado não produziu nenhuma condenação satisfatória desses assassinatos. Há uma cultura da violência e um apelo à violência de classe como meio de manutenção dos interesses do grande capital e da burguesia agrária e conservadora da região.
Qual projeto alternativo do MST e outros movimentos do campo para a região? Exercer soberania popular sobre os recursos da região. Aí está o epicentro da disputa. Essas riquezas devem servir aos interesses do povo. Mas para isso temos que combater três elementos que estão articulados: primeiro, o imperialismo ambiental, que expolia os recursos naturais. A segunda tarefa é desalienar a sociedade que está cooptada e embrutecida por esse modelo de desenvolvimento. Terceiro: nos próprios movimentos, desmistificar a ideologia do desenvolvimento auto-sustentável que, na prática, dá tudo às transnacionais, e para a sociedade local prega o uso controlado e regulado. Em contrapartida, propomos usar os recursos naturais da região a favor dos interesses do povo. O atual modelo não viabiliza a sociedade, mas apenas o lucro e o capitalismo. Queremos construir uma plataforma em que o povo seja guardião da floresta, da terra e da biodiversidade. Essa é nossa luta na região, ainda que tenhamos que enfrentar a violência.
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A defesa dos direitos humanos é hoje eixo da luta de classes
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Quiproquó supremo Não tem a menor importância quem seja de verdade o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal. O que importa é que ele falou ao presidente do STF, Gilmar Mendes, o que precisava ser dito há muito tempo. Por isso mesmo caiu imediatamente na graça do povo. A revista Veja, porta-voz da canalhada de direita e das oligarquias atrasadas, condenou Barbosa e defendeu Mendes. É coisa de capanga!
VIOLÊNCIA Marcelo Freixo diz que agenda política dos movimentos deve incluir a segurança pública Reprodução
Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) FLUMINENSE DE Niterói, o professor de história Marcelo Freixo (Psol-RJ) tem mais de duas décadas de ativismo na área de direitos humanos. Como deputado estadual em primeiro mandato, tem atuado fortemente no combate ao crime organizado e à corrupção. Apenas em 2008, presidiu a CPI das Milícias e suas denúncias levaram à cassação de três deputados. Neste ano, comanda a Comissão dos Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) com uma preocupação. Desde dezembro, quando terminou a CPI, as milícias crescem e sofisticam-se a olhos vistos, com a leniência do setor público.
Meia verdade Pressionado por entidades de direitos humanos de todo o mundo, o presidente dos Estados Unidos Barack Obama determinou para a CIA o fim dos interrogatórios que usam métodos de tortura, como a simulação de afogamento. Além disso, prometeu divulgar os casos ocorridos durante a gestão de George W. Bush. Mas, para compensar, não vai revelar e nem processar os agentes envolvidos. Juventude perdida A ausência de cursos profissionalizantes, de universidades gratuitas e de políticas públicas para a ocupação dos jovens nas cidades do interior paulista é apontada como a causa principal do aumento da formação de gangues, delinquência e envolvimento com o tráfico de drogas. A situação é tão grave que alguns municípios decretaram o toque de recolher às 23 horas para os menores de 18 anos.
Brasil de Fato – Você tem uma longa trajetória em direitos humanos. E o seu mandato, de certa forma, ganhou esse perfil.
Marcelo Freixo – É. A gente brigou para ter um mandato porque seria um instrumento útil na luta por direitos humanos. Como isso se dá num momento em que a conjuntura é tão negativa?
E a composição dentro da Alerj é mais negativa do que em outros tempos.
Também não é casual. É a desqualificação proposital da política. Hoje, os guetos eleitorais, as milícias e os esquemas estruturais de corrupção vão formando o parlamento. São interesses criminosos por dentro do Estado. Um processo de privatização do interesse público.
“Quantas operações foram feitas contra a milícia? Nenhuma. Por que as mílicias vão aumentar? Dá lucro, ninguém atrapalha, dá voto. Cresce” Como surgem as milícias?
No Rio de Janeiro, hoje, as milícias representam a maior ameaça concreta. E já começou a se espalhar pelo Brasil. Veja os ingredientes que levam à milícia. Curral eleitoral, clientelismo político, despolitização da política, falta de controle sobre a polícia, péssima remuneração dos policiais. Não são ingredientes cariocas, são nacionais. Recentemente, a Polícia Federal prendeu 26 pessoas em Olinda [PE]. O chefe era um vereador. Crime de milícia. No interior do Estado já existem milícias?
Começa a aparecer, mas ainda muito embrionário. Isso vai se estender, porque o poder público não prioriza o enfrentamento. Isso interessa. Eu tenho dito que o grande ano para se enfrentar as milícias é 2009. Em 2010, o interesse eleitoral vai falar mais alto e as milícias serão úteis.
O que caracteriza a milícia?
Fomos muito cuidadosos com essa questão conceitual. Se você diz que tudo é milícia, então, nada é. Grupo de extermínio não é. As milícias têm um histórico de oito anos. São formadas por agentes públicos da área de segurança: policiais militares e civis, bombeiros ou agentes penitenciários. Sua mão-de-obra é formada inclusive com ex-traficantes, ex-garotos do movimento [tráfico] e pessoas da sociedade. Mas as lideranças são sempre da área de segurança e falam em nome da ordem. Os gru-
Curiosos observam carro crivado de balas por milícia em subúrbio carioca
pos de extermínio são contratados por quem tem um poder econômico para solicitar determinado serviço. As milícias têm um largo leque de negócios. Dominam a distribuição de gás, fazem a grilagem de terra, trabalham com a especulação imobiliária e cobram taxas de segurança. O transporte alternativo é um grande negócio. Agora começam a trabalhar com pirataria também. É muito lucrativo. Só em uma milícia, em Jacarepaguá, eles movimentavam, só com as vans, R$ 170 mil por dia. Essa riqueza, evidentemente, financia a corrupção por dentro do poder público. De um tempo pra cá, a novidade é que eles pararam de apoiar políticos. Passaram a se candidatar. Você tem uma dimensão da abrangência disso?
Até dezembro, eles dominavam aproximadamente 171 áreas no Rio. Não são favelas, são áreas. Campo Grande, por exemplo, não é uma comunidade, é o maior bairro da Zona Oeste. Não dá pra saber quantas pessoas estão envolvidas.
Mas você tem dito que isso aumentou.
Isso vem aumentando desde dezembro, porque não há ação. Quantas operações foram feitas em Campo Grande contra a milícia? Nenhuma. Por que as milícias vão aumentar? Dá lucro, ninguém atrapalha, dá voto. Cresce. Não tem mistério.
Você também costuma dizer que não existe mal menor entre milícia e tráfico. Mas a primeira é mais perigosa, não é?
Acho ruim qualquer tipo de comparação nesse sentido, pois esse foi o discurso que legitimou a milícia até um ano e meio atrás. O então prefeito do Rio de Janeiro [César Maia, DEM] veio a público dizer que a milícia é um mal menor. E com candidatos a vereadores do DEM envolvidos com milícia. Ele chegou a definir milícia como “auto-defesa comunitária”. Por que mal menor? Porque são policiais? É a lógica da criminalização da pobreza. Esse discurso foi muito importante para o crescimento político e econômico das milícias. Então, também acho ruim a gente fazer o contrário agora. Mas estou dizendo que a milícia é a maior ameaça ao Estado Democrático de Direito. Não estou dizendo que você pode ser tolerante com o tráfico. Crime é crime, Estado é Estado. Mas milícia tem projeto de poder. Essa é a grande diferença. É um embrião das máfias tão conhecidas na Europa.
Vocês apontaram 58 propostas concretas de ações possíveis. O que existe de avanço?
A gente propôs a criação da Câmara de Repressão ao Crime Orga-
nizado, que pudesse envolver, permanentemente, Ministério Público, Judiciário e Executivo, via Polícia Civil. O novo chefe da Polícia Civil [Allan Turnowski] assumiu [no dia 22 de abril] comprometendo-se. O Ministério Público criou um setor para trabalhar especificamente com o crime organizado. E tem vitórias que são pedagógicas. Hoje é muito difícil você encontrar alguém que defenda a milícia publicamente. Essa vitória na opinião pública nós tivemos. Você tem tido uma inserção razoável na mídia. Como acha que ela se comportou nessa discussão?
Ela foi muito irresponsável. Só mudou quando um grupo de jornalistas foi barbaramente torturado por uma milícia, na favela do Batan. A partir dali, a mídia passou a agir de outra forma. Enquanto as vítimas eram pobres e negras, a milícia podia ser um bom negócio. Quando passou a ser um grupo de jornalistas, acabou. Foi o que me fez aprovar a CPI aqui. Senão não teria aprovado.
Você fez referências à política de segurança do governo estadual. Isso alimenta esse sistema?
O Estado tem o monopólio da força. Isso não se discute. Não direi nunca que é preciso desarmar o Estado. Mas daí a ele se transformar num Estado bélico é um erro muito profundo, porque quando você faz uma opção calcada na guerra, é necessário escolher quem é seu inimigo e eliminá-lo. Tem que haver um vencedor. Há quanto tempo o Rio de Janeiro opera nessa lógica? Qual a eficácia? Esse debate da segurança pública do Rio precisa estar nos meios sindicais, nos movimentos: é o grande debate da luta de classes hoje. Os trabalhadores não perderam somente o emprego. Perderam o direito à dignidade, de estar vivo. Assim, a lógica da relação capital-trabalho sofisticou-se e ganhou um nível alto de perversidade. Os movimentos precisam acompanhar esse debate para entender que o eixo da luta de classes é a defesa dos direitos humanos. Senão, a gente perde a capacidade de mobilizar os oprimidos. Morrem mais crianças por armas de fogo aqui do que no conflito de Gaza. O dobro. De 2000 a 2006, foram 1859 jovens mortos no Rio de Janeiro. No conflito Israel-Palestina foram 729. E lá é uma guerra discutida na ONU. Aqui, o genocídio contra a juventude pobre e negra não entra nem na pauta dos sindicatos.
Nesse sentido, quando os governos anunciam projetos em favela – o PAC por exemplo – está se combatendo o real problema?
Isso tem problemas de forma e
de conteúdo. Que bom que o Estado quer gastar dinheiro em favelas. Agora, o mínimo que se espera é que o Estado saiba ouvir os moradores. Eu conversei muito no Complexo do Alemão. Nunca ouvi ninguém dizer que a prioridade ali era um teleférico. De onde o Estado tirou isso?
Produção ilegal Pesquisas realizadas pelo geógrafo e professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, da USP, comprovam que o Incra dispõe de informações precisas sobre a produção de soja em municípios onde predominam as terras devolutas do Mato Grosso. Tudo indica que os maiores produtores do cereal não têm qualquer titulação das terras, são grileiros apoiados por autoridades municipais, estaduais e federais.
Você citou o discurso da ordem. Isso está muito claro no nome da política municipal, o “choque de ordem”. O que você pensa a esse respeito?
O discurso da ordem, historicamente no Brasil, acompanha o movimento conservador. Sempre. Se você pegar o discurso de Dom João, chegando ao Brasil, é excludente. Durante as ditaduras no Brasil republicano, sempre a justificativa para o domínio é a da ordem. No texto do AI-5 está lá, o tempo inteiro, a palavra ordem. Esse discurso determina, pedagogicamente, quem é o desordeiro, quem atrapalha a vida urbana, quem precisa ser retirado. E aí há uma inversão. Essa pessoa deixa de ter um problema e passa a ser o problema. O discurso do “choque de ordem” provoca esse efeito na opinião pública. Então, a luta política hoje é pedagógica.
Obra tucana Uma viagem de 200 quilômetros pelas estradas paulistas custa ao usuário no mínimo R$ 30 na ida e R$ 30 na volta. Esses valores absurdos – verdadeiro assalto aos cidadãos – são decorrentes das privatizações realizadas nos seguidos governos do PSDB no Estado de São Paulo. Não se sabe até hoje porque o Poder Judiciário não anulou contratos tão lesivos à economia popular. A Justiça é tucana?
Você paga um preço caro por algumas opções que fez como parlamentar?
Assalto diário Durante audiência pública realizada na Comissão de Defesa do Consumidor, na Câmara dos Deputados, vários depoimentos confirmaram o que já foi denunciado pela União Internacional de Telecomunicações – que as tarifas da telefonia fixa e móvel cobradas no Brasil estão entre as mais altas do mundo, graças, evidentemente, à omissão da Anatel e das autoridades brasileiras. Quem paga é o povo!
Eu já tinha recebido algumas ameaças de morte na época da Justiça Global [ONG na qual era pesquisador]. Mas no Parlamento, se briga por dentro, com mais recursos. Cassamos dois deputados envolvidos em esquema de fraude. Com a CPI, a gente mexeu num vespeiro. Sabia das conseqüências. Fiz o que achei que era minha obrigação fazer e é evidente que a minha vida privada mudou muito...
Continua sendo ameaçado como durante a CPI?
Não vai melhorar e quando isso esfriar é o momento mais perigoso. Eles não fazem nada no auge. Fazem depois. Eu não posso circular em vários lugares. Ando sempre com escolta. Leandro Uchoas
Nunca houve uma conjuntura muito favorável, porque, numa sociedade com a marca tão profunda da desigualdade, promove-se o medo. Em qualquer sociedade que tem no horizonte o medo, surge a intolerância, que é o combustível da violação aos direitos humanos.
Terra grilada O Incra registra a existência de 32 mil posses grandes (latifúndios) nos estados do Mato Grosso e Pará sem qualquer documentação legal. Todas essas posses ocorrem em terras devolutas da União – terras griladas por empresários e grupos transnacionais. Os poderes da República nada fazem contra essa ilegalidade, mas criminalizam os trabalhadores rurais quando ocupam essas terras para produzir.
O deputado Marcelo Freixo
Abate criminoso Garoto de ouro da Fiesp e do tucanato, o economista neoliberal Roberto Gianetti da Fonseca, atual presidente da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne, assegurou, em entrevista para a Folha de S. Paulo, que é impossível “acabar com o abate de gado de origem ilegal” na Amazônia. Os frigoríficos não apenas sabem quem é grileiro e devasta a floresta para criar gado, como estimulam a invasão destruidora. Fundo perdido Milhares de trabalhadores foram estimulados pelo governo federal, em 2002, a adquirir ações da antiga estatal Vale do Rio Doce com reservas do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que normalmente servem para financiar programas habitacionais das famílias de baixa renda. Quem investiu nessas ações perdeu mais de 50% do valor acumulado somente nos últimos seis meses. Apenas uma “marolinha”!
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cultura
O drama da indústria da celulose em filme de Carlos Pronzato Reprodução
ENTREVISTA Cineasta e escritor retratou a resistência de uma cidade argentina contra o avanço da papeleira finlandesa Botnia Achille Lollo de Salvador (BA) SITUADO NA Praça Municipal de Salvador (BA), ao lado do Elevador Lacerda, o Centro Cultural da Câmara Municipal soteropolitana realizou, no dia 27 de abril, um evento cultural que juntou poesia e cinema. Foi o lançamento do livro Poemas sem terra e do documentário “Papeleras go home! A luta do povo de Gualeguaychú (Argentina) contra as fábricas de celulose”, ambos realizados pelos escritor e cineasta argentino radicado na Bahia, Carlos Pronzato. A publicação, que é uma confissão de estima e amor à luta dos sem terra, contém 19 poemas dedicados aos camponeses do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que morreram no dia 17 de abril de 1996, no massacre de Eldorado dos Carajás. Complementam as 44 páginas do livro um romance em versos denominado “João e Maria Flor, uma história de terra e amor”, que é uma homenagem aos 25 anos do MST. Já o filme, realizado em 2008, trata da instalação de fábricas de celulose na Argentina, bem como em outros países do Cone Sul. Nos 40 minutos do documentário, Pronzato analisa o ciclo de produção das papeleiras, detalhando os elementos tecnológicos que provocam a mortal poluição dos rios, o desequilíbrio do ecossistema, além do desrespeito à cidadania. Retrata a maneira arrogante e pretensiosa como as transnacionais de celulose conseguem as licenças ambientais. Pronzato visualiza no filme esse contexto dando um particular enfoque sobre a poluição do rio Uruguai, na região da cidade de Gualeguaychu. Confira a seguir entrevista com o escritor e cineasta.
“Nossa história é nosso alimento, nossa memória que nos compele a estarmos alertas contra todo tipo de agressão na defesa dos nossos territórios” Brasil de Fato – Argentina, Uruguai e Brasil são três países onde a presença de indústrias de celulose está em clara expansão, graças também à cumplicidade de alguns governos progressistas que ficaram surdos e cegos diante das denúncias de desequilíbrio ambiental e poluição provocada pelas papeleiras. Você pode explicar como e por que o povo de Gualeguaychu reagiu e enfrentou as papeleiras? Carlos Pronzato – Em primeiro lugar, devemos levar em conta que Gualeguaychú [com 80 mil habitantes] está situada às margens do rio Uruguai e, portanto, abriga um povo fronteiriço [faz divisa com o Uruguai] e, como todo povo de fronteira, carrega um especial senso de atenção em torno do seu habitat. Além da tradição que essa cidade tem de cuidado com o seu meio ambiente, sua lim-
peza e conservação, especialmente, com seus balneários, que são muito procurados, essa imponente fábrica veio a se situar justo em frente do balneário principal, Ñandubaysal. Essa foi a primeira agressão, poluindo a paisagem natural que se tinha da margem oposta do rio. Além disso, um aspecto principal dessa resistência foi a chegada de duas ambientalistas uruguaias, Delia Villaba e Julia Cóccaro, para alertar ao povo de Gualeguaychú sobre as nocivas conseqüências da instalação da fábrica da Botnia [grupo finlandês que é o líder mundial do setor de celulose] em solo argentino. A partir dali, a própria organização dos vizinhos foi se dando de maneira paulatina até constituir a Assembléia Cidadã Ambiental. Quais sensações você teve quando filmou esse contexto? Fiz as gravações nas vésperas e durante o carnaval, portanto, quando a cidade aponta todas as suas energias para a organização da festa, que é uma das principais da Argentina e mobiliza toda a economia da região. Assim, dentro da própria passarela do carnaval foram exibidos cartazes contra as papeleiras. Nesse contexto, não foi fácil encontrar pessoas para serem entrevistadas, atarefadas que estavam num período de grande fertilidade financeira e, ao mesmo tempo, levando em frente a luta contra a maior fábrica de celulose do continente. Contudo, chamou a minha atenção o fato de que todos os comércios da cidade exibiam cartazes incentivando a resistência contra a Botnia e que praticamente todo o povo da cidade estava enfileirado atrás da causa comum de expulsão da empresa. Por que a sua produção cinematográfica é, antes de tudo, política, com muitos documentários relacionados com acontecimentos ou personagens como Che Guevara? Utilizo o suporte audiovisual como arma de transformação social na maioria dos meus trabalhos. Disponho meu tempo e os parcos recursos obtidos com a própria circulação dos documentários na procura de episódios marcantes da nossa história social e da nossa atualidade que possam funcionar como exemplos a serem seguidos por aqueles que atuam nas várias frentes de combate contra a violência diária do capitalismo. E personagens como Salvador Allende [“Buscando a Allende”] e Che Guevara [“Carabina M2, Che na Bolívia”], assassinados pelo país do norte que promoveu a selvageria dos golpes de Estado para a implantar transnacionais. Acho que falarmos, inclusive hoje, por exemplo, do Sandino, o general que combateu os marines dos EUA nas costas da sua Nicarágua na década de 1920, é retomar um discurso de dignidade na defesa de nossos territórios. Nossa história é nosso alimento, nossa possibilidade de revermos os erros, é nossa memória que nos compele a estarmos alertas contra todo tipo de agressão na defesa dos nossos territórios: contra a 4ª frota estadunidense, contra as transnacionais do agronegócio, mineradoras e papeleiras, contra as milionárias campanhas eleitorais ditas democráticas e até contra a invasão das igrejas neo-pentecostais. E, por falar em Che, não é apenas como personagem político – no sentido res-
ses poemas que finalmente foram 19. Em 2001, tinha publicado o livro Canudos não se rendeu, onde antecipo minha imersão no tema com a epopéia de Antonio Conselheiro e os seus seguidores até a gesta dos 25 anos do MST. A minha relação com os sem terra, então, nasce nos sertões da Bahia. Assim, nesses dois anos, no meio de outras publicações, fui dando forma a esses poemas que também se entrelaçam com a luta contra as transnacionais levadas a cabo pelo movimento e algumas das quais tive o privilégio de acompanhar. Achei que estava na hora de publicálos quando comecei a elaborar o material sobre a luta do povo argentino contra a Botnia e a ponte foi natural entre os dois temas. Não houve protestos nem cortes na ponte.
‘‘As ocupações [do MST] são um exercício de valentia e coragem para o enfrentamento com um inimigo mil vezes superior‘‘
“A multiplicação através da denominada pirataria militante é que faz circular os documentários pelo Brasil afora e constitui o braço fundamental do meu ‘orçamento participativo‘ ” trito em que essa palavra caiu – que me interessa sua incomensurável figura. Mas também sua transcendência através dos tempos, que apenas está começando, atinge minha visão de mundo de forma muito mais profunda. Por que as TVs públicas, no caso brasileiro a TV Brasil, optaram por serem “televisões antropológicas”, fugindo, assim, dos grandes temas da atualidade política urbana que, na realidade, são explorados pelas TVs privadas na ótica de criminalizar os excluídos? Trata-se de uma censura prévia das TVs públicas ou são os próprios diretores que optam por temas “antropológicos” (indígenas, quilombolas, cenas rurais em geral) para ganhar o gordo patrocínio das grandes empresas? Primeiro, seria interessante entender o conceito do que é uma TV pública. Apesar de ter assistido programas excelentes em diversos países produzidos por TVs públicas, a participação popular da grande massa da população não está ali representada com a contundência e transparência que deveria. Não vejo participação popular – e o termo público inclui obrigatoriamente também o popular – na construção da maioria dos programas televisivos. A burocracia, a lentidão da máquina, os vícios da profissão, a falta de preparação cultural dos quadros ditos subalternos, as eternas panelas dos quadros supe-
riores e o modelo empresarial das funções estão longe de tornar a TV pública um autêntico espaço público 24 horas. Quanto aos temas abordados, deveriam ter um maior espaço aqueles que dizem respeito à problemática social, mas por que não geridos pelos próprios atores desses segmentos? Hoje, a parte da sociedade que se identifica com o capitalismo avançado utiliza o audiovisual em tudo e para tudo, da publicidade de seus produtos industriais à divulgação de projetos culturais, passando por mensagens políticas ou campanhas para influenciar a opinião pública. Por outro lado, a parte da sociedade que quer uma alternativa ao capitalismo é, talvez, a mais surda ao uso do audiovisual. Às vezes, negociar um patrocínio com sindicatos é até aviltante porque parece que se está pedindo esmola. Por que você acha que isso acontece? Você já vivenciou situação semelhante? Muito, cada dia, cada hora, cada minuto do meu trabalho de documentarista é constituído também dessa triste realidade de ver o pouco que resta de interesse político/social na cabeça de um sindicalista depois de tantos anos de serem protagonistas da história do Brasil. Não me refiro apenas às mobilizações a partir do ABC paulista, ligadas mais substancialmente à emergência do governo atual, vou mui-
to mais atrás, às mobilizações anarquistas do início de século 20, quando havia um fermento de autêntico fervor revolucionário. E é bom esclarecer que não negocio patrocínios, apenas apoios que não configurem nenhum tipo de censura sobre os meus objetivos políticos. A multiplicação através da denominada pirataria militante é que faz circular os documentários pelo Brasil afora e constitui o braço fundamental do meu “orçamento participativo” para desenvolver a atividade nesse cinema militante. Acho que a questão é, lamentavelmente, educativa. Nos sindicatos, pelo que conheço, não há o espírito de formação, de elevação cultural que se tinha em épocas pretéritas. Hoje, prima apenas o marco das campanhas políticas internas, suas relações com o poder central e os cargos, a perpetuação num poder que eliminou definitivamente o departamento cultural com sentido de luta nos sindicatos. E o marco cultural é fundamental. Nessa geografia, não é fácil solicitar apoios nem angariar simpatias com projetos que falam de excluídos com suas próprias vozes e que trarão poucos benefícios nesse quadro capitalista do atual sindicalismo de manobras eleitoreiras. Além de diretor de cinema, você é também um poeta. Como e por que escreveu o livro Poemas sem terra? Comecei a redigir num congresso do MST em Brasília em 2006. Na ocasião, apresentamos o documentário “A Veracel no Abril Vermelho”, que fala da maior ocupação do MST baiano nas terras dessa transnacional sueca de celulose. O contato com as delegações de todo o país, o impressionante e colorido desfile diário e as vivências em conjunto no acampamento montado no Congresso devem ter deixado alguma marca, algum caminho a trilhar para iniciar es-
Por que seus filmes e poemas demonstram um grande amor pelo MST e pelas lutas dos sem terra? As lutas camponesas foram e são um reduto crucial das transformações sociais e todos os que militamos nos ideais do Che estamos cientes que elas são o fermento essencial, um espaço privilegiado de experiências, um marco possível para aplicar às complexidades urbanas. A terra é o nosso espaço, a Pachamama ancestral, nossa raiz, seja qual for o habitat momentâneo do indivíduo e, por isso, uma parte de nós a ser cuidada e defendida com ardor. Como movimento, a organização demonstra que é possível o sucesso do cooperativismo, fato apenas comentado pelos meios hegemônicos e responsável por grande parte da alimentação nas cidades. As ocupações, que aqueles mesmos meios insistem em criminalizar, são um exercício de valentia e coragem para o enfrentamento com um inimigo mil vezes superior com todas as armas possíveis e que nunca admitirá o sucesso dessa singular experiência camponesa, uma das maiores que o mundo contemporâneo já conheceu. Por tudo isso, e apesar de quaisquer discordâncias no enfoque da sua construção política e das suas alianças programáticas, nossas lentes sempre estarão ali para aportar na sua longa marcha até o amanhecer definitivo. Divulgação
Quem é Além de cineasta, documentarista e diretor de teatro, Carlos Pronzato é também poeta, tendo publicado em Salvador três livros de poesias: Che, um poema guerrilheiro (2007), Poesias contra o Império (2004) e Canudos não se rendeu (2001), além do recente Poemas Sem Terra.
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“Rafael Correa precisa ser coerente com suas propostas” Presidencia de la República del Ecuador
EQUADOR Para o ex-ministro de Energia e Minas, presidente reeleito nas eleições de 26 de abril deve romper com modelo primárioexportador vigente no país Igor Ojeda da Redação “MAIS QUE mudar de rumo, trata-se de aprofundar as transformações que já iniciamos, mais radicalmente, mais aceleradamente”. O discurso do presidente do Equador, Rafael Correa, logo depois de confirmada, em pesquisa de boca-de-urna, sua vitória eleitoral no dia 26 de abril, foi categórico: seu país caminha cada vez mais firme em direção ao “socialismo do século 21”. Reeleito com mais de 51% dos votos (com pouco mais de dois terços das urnas contadas), Correa poderá ficar no cargo até 2017, pois é quase certo que concorrerá novamente em 2013. Como as eleições se deram nos marcos institucionais da nova Constituição equatoriana, aprovada em setembro de 2008, a nova reeleição está permitida. Reconhecendo os erros dos primeiros dois anos de seu governo, Correa garantiu que, a partir de agora, sua gestão aplicará “muitos corretivos”, por exemplo, a consolidação de uma estrutura política. Ele avalia que o movimento que o levou à presidência ainda é bastante difuso. Para tal, o presidente contará, muito provavelmente, com a maioria na nova Assembléia Nacional. Segundo enquetes de boca-de-urna, seu partido, o Aliança País, pode alcançar entre 59 e 61 cadeiras, de um total de 124. Em aliança com o Movimento Popular Democrático (que deve obter entre quatro e sete lugares) e outras minorias, atingiria a maioria na casa. No entanto, os desafios para consolidar a chamada “Revolução Cidadã” também serão grandes. A crise econômica mundial promete, mais cedo ou mais tarde, atingir com força o Equador, ainda extremamente dependente das receitas do petróleo e das remessas enviadas por emigrantes. Correa terá que enfrentar, além disso, a incipiente mas crescente oposição de alguns movimentos sociais e entidades, que criticam sua política desenvolvimentista, como o incentivo à mineração em larga escala, que vem prejudicando comunidades indígenas. Em entrevista ao Brasil de Fato, o economista Alberto Acosta, ex-ministro de Energia e Minas e ex-presidente da Assembleia Constituinte, critica a gestão de Correa, segundo ele, incoerente com as propostas que o levaram ao governo. “O presidente deveria explicar porque não as defende agora. Talvez as demandas financeiras da crise o fizeram retroceder”, afirma. Brasil de Fato – O presidente Rafael Correa vinha dizendo que, depois de sua provável vitória nas eleições do dia 26 de abril, iria aprofundar a chamada Revolução Cidadã. O que isso significa na prática?
Alberto Acosta – Isso significaria ser coerente com seu programa de governo, apresentado para ganhar as eleições de 2006. Programa que serviu para elaborar o pla-
O presidente equatoriano Rafael Correa discursa logo após ser reeleito com 51% dos votos
“A soberania alimentar não poderá virar realidade enquanto o presidente continuar priorizando os grandes grupos de produtores agrários, de comerciantes internos e de importadores. O governo deve mudar radicalmente sua política agrária e sustentá-la, fundamentalmente, nos produtores camponeses” no de desenvolvimento de sua gestão. Mas, sobretudo, Correa tem um roteiro, que é a Constituição recentemente aprovada. Ali, se estabelece, com clareza que se construirá um novo regime de desenvolvimento: o Bem Viver. Que se implementará um Estado pluri-nacional para abrir caminho a uma economia social e solidária, sustentada na relação dinâmica entre o Estado, o mercado e a sociedade; relação que exige um trato preferencial aos pequenos e médios produtores do campo e da cidade. Igualmente, nessa Constituição, estabeleceuse como um ponto medular os Direitos da Natureza, do que se desprende, por exemplo, que a água é vida e não pode ser privatizada. Quais serão as dificuldades que a nova gestão de Correa encontrará para implementar a nova Constituição?
Mais além de algumas dificuldades menores, provocadas, sobretudo, pela pressa em se redigir a Constituição, a principal dificuldade radica na negativa governamental em garantir a efetiva participação cidadã na elaboração das leis que são indispensáveis para fazer a Constituição de 2008 tornar-se realidade. E, claro, agora, em meio de uma grave crise econômica mundial, com maior razão é preciso ser consequente com os princípios do Bem Viver.
Quais são as principais contradições do governo Correa que precisam ser superadas em um novo mandato?
Ele precisa ser coerente com suas propostas. Por exemplo, a soberania alimentar não poderá virar realidade enquanto o presidente continuar priorizando os grandes grupos de
produtores agrários, de comerciantes internos e de importadores. O governo deve mudar radicalmente sua política agrária e sustentá-la, fundamentalmente, nos produtores camponeses. Nesse sentido, é preciso abrir caminho a uma reforma agrária efetiva. Correa teria que retirar seu veto à lei de soberania alimentar, recentemente aprovada no parlamento. Com o veto, se abre a porta a uma série de produtos nocivos ao ambiente, como as conhecidas tecnologias terminator. Igualmente, se faz necessária uma nova política tributária, prioritariamente encaminhada em direção ao aumento da pressão fiscal, com o objetivo de ter um Estado com maior capacidade arrecadadora e que, consequentemente, consiga colocar em prática políticas de gastos. Dessa maneira, poderíamos dispor de um Estado mais forte, que possa assumir um papel maior de redistribuição e, assim, favorecer o Bem Viver de todos os equatorianos – e não de alguns poucos. Além disso, essa nova estratégia tributária – com mais potencial arrecadador – concederá ao Estado maior independência em relação à volatilidade dos preços do petróleo. Tal política, em consonância com a lei de equidade tributária aprovada em 28 de dezembro de 2008 pela Assembleia Constituinte, deveria contemplar outro objetivo fundamental: conseguir, em matéria tributária, que o pagamento de impostos seja progressivo e redistributivo. Em outras palavras, o principal desafio da política tributária é o aumento da arrecadação sem perda redistributiva, mediante uma mudança de tendência na composição da estrutura impositiva: maior capacidade arrecadadora, por meio de impostos diretos, e redesenho dos impostos diretos exis-
tentes, para fazê-los mais progressivos, ou, pelo menos, não tão regressivos. O que explica o fato de o governo Correa não adotar todas essas medidas defendidas pelo senhor, como a ruptura com o modelo agrárioexportador, a efetiva participação popular na elaboração das leis, a adoção de uma nova estratégia tributária etc?
Devo assinalar que as políticas que eu defendo são as que propusemos no início da Revolução Cidadã. O presidente Correa deveria explicar porque não as defende agora. Talvez as demandas financeiras da crise o fizeram retroceder.
Como o governo enfrentará os efeitos dessa crise no Equador, como a queda dos preços do petróleo e a diminuição das remessas dos emigrantes?
O necessário é ter uma estratégia clara. Por um lado, é preciso minimizar o impacto da crise sobre os grupos mais vulneráveis, passando seu peso aos setores mais acomodados, por exemplo, através de uma reforma tributária progressiva e redistributiva. Por outro, é preciso dar atenção ao médio e longo prazo, para sair da crise estruturalmente em melhores condições; ou seja, para superar o atual modelo primário exportador, evitando a dependência de ingressos externos, como as exportações petroleiras e as remessas.
O desemprego aumentou no Equador, enquanto o subemprego continua forte. Como solucionar esse problema?
Isso obriga a fortalecer a economia doméstica, revalorizar o mercado interno e fomentar a produção de bens e serviços para os setores majoritários. Ou seja, atender, prioritariamente, as pequenas e médias empresas, que são as que mais geram empregos, que têm a menor dependência de importações e as que menos contaminam o ambiente.
O governo Correa anunciou recentemente o aumento do crédito e do microcrédito para empresas e a realização de obras públicas. O senhor acredita que essas
medidas são as mais corretas, no momento, para mitigar os efeitos da crise no país ou acha que são insuficientes, uma vez que não rompem com os princípios do capitalismo?
Na linha do que eu disse na resposta anterior, é preciso atender com créditos as empresas médias e pequenas e também incentivar a obra pública. Por outro lado, não sairemos do capitalismo da noite para o dia. No entanto, é preciso caminhar rumo à saída.
Alguns economistas apontam a necessidade de se pôr fim à dolarização no Equador (posta em prática a partir de janeiro de 2000). O senhor concorda com isso? Por quê? Quais são as dificuldades para se fazer isso?
Os impactos da crise econômica são sentidos com força crescente em todos os países de nossa América. No Equador, uma das piores ameaças econômicas é uma potencial iliquidez, agravada pela dolarização e por uma abertura ingênua, que configuram uma receita explosiva. O desenho de uma estratégia econômica alternativa não passa por desdolarizar imediata e totalmente a economia. O que se requer, no âmbito monetário e cambial, são opções que permitam recuperar, paulatinamente, a capacidade de respostas diante das mudanças da economia internacional. Uma alternativa seria um esquema bi-monetário, assim como a utilização, sobretudo a nível local, de dinheiros alternativos e complementares e o uso de ferramentas que viabilizem um melhor aproveitamento da liquidez disponível. Outra ferramenta para impulsionar uma saída ordenada da dolarização é a constituição do Sistema Unitário de Compensação Regional, o Sucre [proposta de moeda comum para os países da Alternativa Bolivariana para as Américas, a Alba]. Essa proposta, inicialmente, leva a instaurar uma moeda virtual para facilitar os fluxos comerciais regionais e poderia conduzir à adoção de uma moeda comum para os países da América Latina. Além disso, já é tempo de se propôr respostas compartilhadas entre os povos latinoamericanos, as quais, além de
configurar uma união monetária regional, deveria ter como meta a efetiva superação do modelo neoliberal. Mas o governo de Rafael Correa ensaia alguma intenção nesse sentido?
O governo do presidente Correa é um dos mais firmes impulsionadores do Sucre. Mas não quer, pelo menos por enquanto, analisar uma possível desdolarização. A gestão Correa vem sofrendo algumas críticas de movimentos indígenas que denunciam, por exemplo, as políticas do governo em relação à mineração. O senhor acredita que tal relação se deteriorará num novo mandato?
Se for mantida a visão governamental, orientada a continuar pelo caminho do desenvolvimentismo senil, ou seja, a de uma economia primário-exportadora, incentivando, por exemplo, a mineração em grande escala, os conflitos com os movimentos sociais e com amplas camadas da sociedade crescerão. Isso poderia provocar problemas de governabilidade e, o que é mais grave, poderia ser a causa da interrupção de um processo de mudança revolucionária, que tantas expectativas despertou no Equador e também em nossa América. Asamblea Constituyente
Quem é Economista, Alberto Acosta é professor e investigador da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso). Foi ministro de Energia e Minas da gestão do presidente Rafael Correa e presidente da Assembleia Constituinte, que elaborou a Carta Magna aprovada em setembro de 2008.
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américa latina
O filho de Lugo e a manobra da direita APC/CC
PARAGUAI Entre reações moralistas e a produção extensiva de piadas, casos de paternidade envolvendo o presidente Fernando Lugo revelam guerra pelos rumos do governo Daniel Cassol Correspondente em Assunção (Paraguai) Foi na quarta-feira da Semana Santa que Viviana Carrillo afirmou à Justiça que Fernando Lugo, presidente do Paraguai e ex-bispo da Igreja Católica, era pai de seu filho de dois anos. Do governo veio o silêncio, breves desmentidos, mas, passada a Páscoa, logo na segunda-feira (13 de abril), Lugo anunciaria: “assumo todas as responsabilidades, reconhecendo a paternidade da criança”. O mundo então lembrou que o Paraguai existia. O país, que só merece a atenção da imprensa por algum fato prosaico, proporcionou, ao fim e ao cabo, uma pauta fértil. Não só o presidente de uma nação reconhecia ter um filho. Tratava-se de um ex-bispo que revelava ter mantido relações sexuais durante o tempo de sacerdócio, abrindo espaço para que outras duas mulheres reclamassem a paternidade e todas as piadas possíveis fossem feitas a respeito.
Vozes esparsas, porém frequentes, pedem que o presidente renuncie ou ameaçam com impeachment, a partir da vaga justificativa de que ele mentiu ao povo paraguaio durante a campanha eleitoral Para além do folclore gerado e das reações moralistas que se seguiram, no entanto, os casos revelados recentemente (um confirmado e outros dois em discussão) maculam a imagem de um presidente que se elegeu com promessas de honestidade e grandes transformações. E revelam a guerra
– cada vez mais aberta e que tende a se aprofundar no próximo período – em torno dos rumos do governo. Não à toa, o próprio Lugo sinalizou, na coletiva concedida em 24 de abril: “Quero dar a maior tranquilidade possível ao povo paraguaio diante dos rumores de algum suposto plano de desestabilização e conspiração. Os ‘insones do poder’ que tecem suas teias de intrigas podem esperar sentados. Neste novo tempo, para ingressar na história do Paraguai como presidente, somente pela única grande porta: a vitória nas eleições livres”. O presidente paraguaio Fernando Lugo durante entrevista coletiva concedida dia 24 de abril
Pressões
Pode ser precipitado falar em tentativas de golpe, mas, nos últimos dias, as movimentações na oposição e mesmo no interior do Partido Liberal Radical Autêntico (conservador, que integra o governo) sinalizaram caminhos difíceis que Lugo terá pela frente. Vozes esparsas, porém frequentes, pedem que o presidente renuncie ou ameaçam com impeachment, a partir da vaga justificativa de que ele mentiu ao povo paraguaio durante a campanha eleitoral e de que estaria desempenhando mal suas funções no cargo. A senadora Lilian Samaniego (do Partido Colorado – ANR, que estava há seis décadas no poder até a posse do ex-bispo) encaminhou ao Ministério Público uma denúncia de estupro contra Lugo, pela relações que teria mantido com Viviana Carrillo quando esta era menor de idade. O senador Alfredo Luis Jaeggli, do Partido Liberal, base de apoio do governo, chegou a pedir que o presidente renunciasse. E os jornais paraguaios fizeram as contas: com os votos no Congresso do grupo do Partido Liberal liderado pelo vice-presidente, Federico Franco, seria possível encaminhar o pedido de impeachment de Lugo. “A ameaça de impeachment contra o presidente Lugo está sendo utilizada principalmente como carta de negociação nas eleições internas do Partido Liberal”, avalia o analista político Charles Quevedo. Federico Franco, que na época da campanha eleitoral opu-
mado pelo próprio presidente e outros dois devem ser discutidos na Justiça. No entanto, o que não está esclarecido é o porquê das denúncias terem surgido nas vésperas do primeiro aniversário da eleição de Lugo, tampouco quem estaria por trás delas. “Durante as eleições, o Partido Colorado tentou fazer ações desse tipo para desqualificar a candidatura de Lugo. Levantamos bandeiras importantes como soberania energética e reforma agrária. Com tudo o que significa o novo governo, heterogêneo, justamente agora aparece o tema dos filhos do presidente?”, questiona o senador Sixto Pereira, do Partido Popular Tekojoja (de esquerda). “No fundo, o que se quer é desprestigiar, desqualificar e diminuir as intenções do governo”, avalia. Por isso, são aguardados novos capítulos dessa novela, que pode se tornar mais pesada e apelativa – porque extrapolam as especulações diárias da imprensa sobre o possível surgimento de novos fi-
Está em curso, de fato, uma reaproximação entre Lugo e o vicepresidente. Na coletiva de imprensa concedida no dia 24, o presidente afirmou que está dando os “passos necessários” para recompor as relações nha-se a que Lugo assumisse a cabeça da chapa da Aliança Patriótica para a Mudança (APC), foi perdendo espaços ao longo dos primeiros oito meses de governo para o senador liberal Blas Llano, que na recente reforma ministerial deixou a pasta da Justiça e voltou ao Senado para tentar recompor a base governista. “Atualmente, a única carta de negociação que Franco tem são os votos de seu pequeno setor na Câmara dos Deputados e no Senado, os quais, somados aos votos da ANR, UNACE e Pátria Querida [partidos de oposição], são suficientes para levar adiante o processo político [de impeachment]. Se não recupera terreno, Franco joga nada menos que a possibilidade de sua desaparição no cenário político em 2013. Realmente, está decidido a apoiar o impeachment caso o setor de Llano prossiga sua estratégia de extermínio político contra seu setor. Não resta outra saída para Lugo que revisar sua estratégia e outorgar espaços de poder a Franco, processo que aparentemente está em curso”, diz Quevedo.
Plano de desestabilização
Está em curso, de fato, uma reaproximação entre Lugo e o vice-presidente. Na coletiva de imprensa concedida no dia 24, o presidente afirmou que está dando os “passos necessários” para recompor as relações e não descartou nova mudança no ministério. “Desde o início, estávamos conscientes de que não iria ser fácil governar no interior da Aliança Patriótica para a Mudança, pela diversidade de grupos que a compõem”, admitiu Lugo. A reaproximação com Federico Franco, porém, não acaba com os problemas do presidente. Tanto para liberais como para colorados, pode não interessar abreviar o governo – legitimamente eleito e, apesar dos escândalos, mantendo índices de aprovação superiores aos anteriores – antes de 2013, ano das novas eleições presidenciais. A estratégia parece ser a de debilitar aos poucos o governo, prejudicando a imagem de Lugo e forçando-o a realizar concessões à direita. As demandas por paternidade apresentadas até agora não são invenções, uma vez que um dos casos foi confir-
Assunto privado? Para feministas, denúncia contra presidente paraguaio revela tradição machista e patriarcal do país de Assunção (Paraguai)
Governo precisa dar sinais de mudança, defende organização camponesa Na mesma entrevista coletiva em que pediu “perdão” pelos erros cometidos, o presidente paraguaio, Fernando Lugo, anunciou realizações nas áreas de saúde, segurança pública, moradia e assistência social. A avaliação geral é de que apenas a percepção de um governo que combate a corrupção não é suficiente para concretizar as promessas de mudança esperadas pela população. “O discurso de Lugo sobre honestidade, transparência e mudança perdeu a eficácia que tinha antes das denúncias. Os setores progressistas devem discutir publicamente o tema, do contrário estariam sendo cúmplices da falta de coerência do presidente, e também terminarão afetados pela perda de credibilidade”, avalia o analista político Charles Quevedo. “Explosão social”
No período em que a APC (Aliança Patriótica para a
Mudança, coalizão governista) comemorava o primeiro ano da eleição, a Mesa Coordenadora Nacional das Organizações Camponesas (MCNOC) cobrou, num ato público que reuniu um público menor do que o esperado, uma “correção de rumos” por parte do governo, em benefício dos pobres. “Estamos observando com preocupação o caminho que está seguindo o país. Queremos que os grandes anúncios se transformem em ações concretas em favor da cidadania. Há uma dívida social histórica que se deve começar a atender ou teremos, em breve, uma explosão social de graves consequências”, disse o movimento camponês.
dando sinais importantes, no tema agrário, da saúde pública, da educação. Em breve, será instalado um programa de luta contra o analfabetismo. Na diplomacia, o Paraguai se abre a outros setores, sem hipotecar o país”, defende Sixto, para quem a necessidade sócio-econômica acumulada de 60 anos de domí-
nio do Partido Colorado e o pesado aparato burocrático do Estado explicam as dificuldades do governo. No caso da reforma agrária, por exemplo, a lei obriga o governo a pagar indenizações, à vista, em dinheiro e a preços de mercado, aos proprietários de latifúndios improdutivos desapropriados. (DC) APC/CC
de Assunção (Paraguai)
O senador Sixto Pereira, do Partido Popular Tekojoja, pondera: “Está se gerando [a impressão] de uma situação em que, a qualquer momento, pode ocorrer algo incontrolável. Creio que não é assim”, diz. “O governo vem
Na avaliação de Clyde Soto, investigadora do Centro de Documentação e Estudos, entidade de direitos humanos do Paraguai, um debate público sobre o caso de paternidade envolvendo o presidente Fernando Lugo é necessário, ao contrário do que prega o próprio governo ao defender que esse é um assunto pessoal. “A sustentação desse estado tradicional de coisas não é um assunto meramente privado”, defende Clyde. “As feministas temos mantido, durante muito tempo, uma luta para que essas questões formem parte do debate público e se traduzam em políticas que impulsionem as mudanças, orientadas para a plena co-responsabilidade de homens e mulheres”, afirma. Hipocrisia
Avanços
Lugo: credibilidade em risco
lhos de Lugo. No dia 24 de abril, o ministro de Obras Públicas, Efraín Alegre, do Partido Liberal, acusou a oposição de estar armando um plano de desestabilização contra o presidente, o que incluiria envolvê-lo com sequestros e com o narcotráfico, estratégia já testada durante as eleições. Durante a campanha, cartazes espalhados pelo país mostravam Lugo com uma farda militar, apontado como “embaixador das Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia]” no Paraguai. Os colorados também tentaram vinculá-lo com o sequestro e a morte de Cecilia Cubas – ocorridos entre 2004 e 2005 –, filha do ex-presidente Raúl Cubas Grau. Charles Quevedo também avalia que surgirão novas denúncias com o objetivo de atingir a imagem de Fernando Lugo. Para o analista, o cenário é turvo para sua gestão. “Nessas condições, efetivamente não se pode prever nenhum avanço importante no governo”, diz.
Para a ativista, os possíveis casos de paternidade de Lugo reproduzem uma tradição machista e patriarcal no Paraguai, e o ex-bispo não deve fazer uso de seu poder atual para descumprir suas obrigações. “O interessante é que o caso nos deixa uma pequena grande lição: hoje, as mulheres têm ferramentas para impedir que essa situação continue, mesmo que se trate do presidente da República e de um homem
que ostentava um alto cargo na hierarquia eclesial católica”, diz. Ela também considera “hipócrita” que a Igreja Católica siga defendendo um preceito moral que nem seus representantes conseguem cumprir. “Faz falta um mea culpa, não pelos ‘pecados’ de uma pessoa ou de várias, e sim pelo erro de sustentar, por tanto tempo, preceitos tão inumanos”, afirma a ativista, em referência ao pedido de perdão pelos pecados de seus membros feito pela Conferência Episcopal Paraguaia (CEP) no dia 14 de abril. No entanto, a ativista concorda que será “penoso que as debilidades de Lugo sirvam para interesses contrários”. O senador do Partido Popular Tekojoja, Sixto Pereira, acredita que Lugo deve assumir suas responsabilidades, mas pondera: “São fatos que não devem ser usados para especulação de interesse político e econômico”, afirma. Para o analista político Charles Quevedo, o presidente errou ao não ter assumido a paternidade antes do assunto chegar a público. “A despeito de que os setores reacionários façam um uso hipócrita das denúncias, é incompreensível a atitude de Lugo. Devia assumir responsavelmente suas obrigações muito antes que se produzisse esse escândalo”, opina. (DC)
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Esquerda dos EUA procura um rumo CRISE Fórum reúne, em Nova York, organizações progressistas estadunidenses; entidades esperam que a saída venha do Estado Memélia Moreira de Nova York (EUA) DEZESSEIS MESES depois de instalada a crise do capitalismo que afeta praticamente todos os pontos cardeais do planeta, a esquerda dos Estados Unidos está longe de vislumbrar saídas e, menos ainda, preparada para enfrentar o momento, seja com ações a longo prazo ou estratégias imediatas que a levem a um crescimento dentro do próprio país, símbolo máximo da doutrina que há mais de dois séculos controla o jogo do poder. A perplexidade na qual se encontra a esquerda diante da crise foi verbalizada na abertura do 40º “Fórum da Esquerda”, reunido em Nova York entre os dias 17 a 19 de abril, por Adolph Reed, militante do Partido Trabalhista dos EUA e professor da Universidade da Pensilvânia. “Os partidos da esquerda mundial têm, como primeiro desafio, saber se têm poder social e quais os seus limites para responder à crise”, afirmou. Limites estreitos, pelo que se viu a seguir. Para a sorte dos participantes, as paredes do centenário prédio da Pace University, anfitriã do encontro a menos de quatro quadras de Wall Street, são de puro concreto. Caso contrário, os especuladores ficariam mais tranquilos sabendo que seus inimigos históricos estão quebrando a cabeça para saber o que fazer. E ficariam ainda mais tranquilos
Não havia ninguém para lembrar que as atrocidades do Vietnã se repetem com maior intensidade no Iraque e no Afeganistão se soubessem que o representante da Fundação Rosa Luxemburgo, Mário Candeias, disse estar convicto de que “o fim do neoliberalismo não representa automaticamente uma subida ou crescimento dos partidos de esquerda, mas é esta a melhor hora para que os movimentos de esquerda sejam reconhecidos pelos governos”. Uma tímida proposta foi feita na abertura dos trabalhos. Ela veio da representante do Partido Comunista Alemão, Katja Kipping: “É preciso deixar claro e dizer bem alto que esta não é uma crise financeira. É uma
crise do capitalismo e nós não vamos pagar por ela”. Sem exceção, todos eles, embora reclamem e protestem, estão à espera de uma solução do Estado. Exatamente o Estado que eles acusam de trabalhar em benefício do capital. A dica foi dada no plenário de abertura pelo economista Richard D. Wolff, professor da universidade “Nova Escola” de Nova York. Ele encerrou seu discurso dizendo: “Vamos mudar. A alternativa é ter líderes políticos responsáveis ao lado dos trabalhadores. Políticos que gerenciem a crise”. Nenhuma palavra sobre a força dos movimentos sociais. Essa é a primeira, e triste, constatação de quem participou do “Fórum da Esquerda”. Foram 210 painéis distribuídos em três dias e que começavam quase pontualmente às dez da manhã, encerrando-se sempre depois da meia-noite. Esse encontro, que há 40 anos agrupa intelectuais do mundo inteiro e que ostenta, entre seus organizadores, nomes respeitados na academia, entre eles os pensadores paquistanês Tariq Ali e o filipino Walden Bello, acontece sempre em Nova York, durante a primavera do hemisfério norte. Mas nem mesmo as tulipas de plástico que enfeitam a cidade foram capazes de levar qualquer colorido ao evento que, este ano, teve como tema “Turning Ponts” (Ponto de Retorno). Perplexos, intelectuais e sindicalistas discutiram temas que variavam desde soberania alimentar até o futuro das greves e movimentos populares, passando pelas guerras do Iraque, Afeganistão e o conflito IsraelPalestina, os rumos da poesia e cinema revolucionários, além dos problemas ambientais, tema que os Estados Unidos têm muito a aprender, além da questão do trabalho dos imigrantes ilegais. A única presença do Brasil foi a de Mário Candeias, do Instituto Rosa Luxemburgo, além de uma bandeira brasileira que decora o corredor principal da Pace University. Da América Latina, outros três catedráticos se fizeram presentes, a venezuelana Clara Irazabal, que é professora na Universidade de Columbia, em Nova York; Carlos Vilas, da Universidade Lanus, de Buenos Aires, e o boliviano Pablo Solón, embaixador de seu país nas Nações Unidas. E o único debate que trataria da problemática indígena latinoamericana foi cancelado. Remanescentes dos 60 “Os trabalhadores estadunidenses estão exaustos. Desde Roosevelt [Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos durante a “Grande Depressão”, nos anos
Reprodução
30], os presidentes prometem dar passos para restabelecer a economia, mas nenhum deles cumpre. A partir dos anos 70, começou a desordem. Os trabalhadores não tiveram mais ganhos. Primeiro porque os computadores fecharam muitos postos de serviço, depois porque as grandes corporações se mudaram dos Estados Unidos e se estabeleceram em países onde os salários são mais baixos ou inexistentes. A solução, a saída, é o socialismo”. Essa foi a primeira fala de abertura do Fórum. Seu autor é o economista Richard Wolff. Mesmo com um discurso sem nenhuma novidade, ele foi aplaudido. As palmas vieram de uma platéia onde mais de 90% dos presentes era da faixa de 60 anos. Todos eles remanescentes das resistências dos “anos rebeldes” que caracterizaram os Estados Unidos no final da década de 1960 e início dos anos de 1970, quando a juventude resolveu dar um basta às atrocidades come-
tidas na guerra do Vietnã. Eram os mesmos que um dia fizeram Woodstock. Nenhum rosto jovem. Ninguém para lembrar que as atrocidades do Vietnã se repetem com maior intensidade no Iraque e no Afeganistão, as duas guerras mais visíveis dos Estados Unidos. Os mais jovens eram os sindicalistas da área de saúde, que não estão sob o controle da AFL-CIO (American Federation of Labor/Congress of Industrial Organization), central sindical que nesta época de crise assumiu, de fato, a defesa dos patrões, inclusive ameaçando alguns líderes classistas que se mobilizam para greves e manifestações. Mesmo sendo mais jovens, nenhum deles tem menos de 30 anos, nem qualquer idéia do que fazer para manter seus empregos a cada dia mais ameaçados. “O que vamos fazer? Estamos vendo os trabalhadores franceses mobilizados, em todos os lugares há manifestações e aqui não conseguimos nem nos reunir”,
Estrela maior do encontro, o filósofo filipino Walden Bello, figura assídua do Fórum Social Mundial, fez a palestra mais otimista do encontro, embora tenha reconhecido que “há um pânico real ao redor do mundo”. De quebra, ele aproveitou para alfinetar ao mesmo tempo os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos dizendo que “Lula da Silva e Barack Obama, as estrelas do G-20, são políticos semelhantes. Tanto um quanto outro fazem política para a mídia. Fazem a política do espetáculo”. Apesar do sarcasmo, Bello reconhece que o presidente Obama será “um freio no neoliberalismo” e saudou a estatização dos bancos [14, até agora] que, na sua opinião, é “o começo da saída”. E, ao ser indagado pelo Brasil de Fato porque comparou Lula a Obama, ele disse que “Lula tem um gosto especial em ser notícia, fato perceptível a todas as pessoas que acompanham seu governo”. E fez mais uma críti-
pelo menos, uma luz. Disse que, no momento, “o papel dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais é de pressionar os governos, em todos os lugares e de todas as formas. Pressionar o presidente Obama, porque caso contrário, ele se voltará para a direita”. De fato, as pressões do Movimento Bail Out People. Not Banks (Resgatem o Povo. Não bancos) já conquistou uma
pequena vitória. Pequeníssima, na verdade, diante dos bilhões de dólares dados aos bancos. No mês de junho, o governo dos Estados Unidos depositará 250 dólares na conta de todos os aposentados do país. Os beneficiados já receberam em casa uma carta anunciando a ajuda. Obviamente, ela se refere ao presidente Barack Obama, dizendo que essa é uma das promessas de sua campanha. (MM)
Partidos conservadores gozam de popularidade de Nova York (EUA)
Ricardo Stuckert/PR
de Nova York (EUA)
ca ao presidente do Brasil dizendo que “Lula tem políticas típicas da social-democracia que, aparentemente, resolvem mas são soluções superficiais. Um dos maiores problemas do Brasil continua sendo a reforma agrária, que parece ser um projeto longínquo dentro da estrutura montada por seu governo”. De todos os conferencistas, Walden Bello foi o único que apontou um rumo. Ou,
Lula e Obama: política do espetáculo
Falta de diálogo A dificuldade de diálogo com a sociedade talvez seja um dos obstáculos que a esquerda está enfrentando para dar respostas à crise e, também, para sensibilizar as novas gerações. O “Fórum da Esquerda” foi a maior demonstração de que, no país onde a crise é mais aguda, os jovens, público preferencial para o desemprego que já atinge números alarmantes, sequer tomou conhecimento dos debates. Para não dizer que estavam totalmente ausentes, os estudantes da Pace University participaram dos debates sobre segurança alimentar e movimento Hip-Hop. No encerramento, o filipino Walden Bello, disse que a crise “ainda não chegou ao seu limite e o mais grave da situação é que não há uma estratégia definida para combatêla. Para cada caso, cada bancarrota, há uma solução diferente”. Menos mal, significa que não apenas a esquerda está sem respostas para a crise, mas os responsáveis por ela também estão sem rumo. Mesmo assim, não deixa de ser melancólico ver que o sistema capitalista, que há mais de dois séculos vem devastando o planeta parece não ter um adversário à altura. O desafio citado pelo professor Adolph Reed, de que a esquerda tem que saber qual o seu potencial para responder ao problema, talvez tenha uma resposta desalentadora.
Impasse também na Europa
Governo Obama em disputa? Para Walden Bello, Lula é semelhante ao colega estadunidense
reclamava uma enfermeira vestida de “paciente” já que horas depois participaria de um teatro de protesto contra o sistema de saúde dos EUA. Sua aflição não mereceu resposta de Immanuel Ness, professor da Universidade do Brooklin, especialista na questão dos imigrantes e autor da “Enciclopédia Internacional de Revoluções e Protestos”. O lamento da sindicalista aconteceu durante o painel “Rebelião em tempos de turbulência”. Mas, quando outro participante perguntou porque os trabalhadores não partem para a ocupação de hospitais e centros de saúde, denunciando o sistema e exigindo melhores condições de trabalho, prática bastante conhecida pelos sindicalistas brasileiros, um “oooohhh” percorreu a sala. A proposta pareceu uma heresia ou, quem sabe, um ato terrorista.E os trabalhadores do cais do porto de Nova York só participaram com a distribuição de panfletos convocando para manifestações em Kansas City e Chicago. No manifesto, a maior demonstração de “rebeldia” se resumiu na frase “Não deixe banqueiros e seus executivos ficarem com a última palavra”.
Não é só nos Estados Unidos que a esquerda se comporta de forma quase catatônica no momento em que deveria avançar na conquista de mais espaços. A esquerda européia vive drama semelhante. O exemplo maior foi da representante do Partido Comunista Alemão, Katja Kipping. Ela não apenas teve poucas palavras para dizer quais ações seu partido pretende realizar para responder à crise, como também deixou claro que os progressistas da Alemanha estão à beira de perder as eleições de outubro porque os eleitores responsabilizam a social-democracia pela crise econômica que se alastra naquele país. As pesquisas de opinião, segundo Katja, apontam para uma vitória da direita, uma vez que “o povo acredita que o ex-chanceler Gerhard Schöereder foi tolerante com o liberalismo econômico, deixou o mundo fi-
nanceiro solto e levou o país à crise”. O perigo é que na Alemanha, em tempos de crise, o povo costuma olhar a direita com muita simpatia. Basta lembrar que a crise dos anos 30 desembocou na eleição de Adolph Hitler. E deu no que deu. O fato se repete em outros países europeus nos quais, segundo Chrystel le Moing, conselheira internacional da Fundação Gabriel Péri, sediada em Paris e especialista nas relações Europa/África, a “situação dos movimentos e partidos de esquerda chegou a um impasse, porque todos sabem que há anos nos batemos contra os riscos do neoliberalismo e, agora que os riscos bateram à nossa porta, a sociedade nos vira as costas porque não soubemos dialogar”. Em sua palestra, com muita sinceridade, ela foi enfática ao afirmar que, mesmo com baixos índices de popularidade, o presidente francês Nicolas Sarkozy, “que até agora não conseguiu tomar atitudes de estadistas diante da crise, pode eleger a qualquer um dos candidatos de sua escolha”. Chrystel não se arriscou a fazer análises sobre o fenômeno, mas não tem dúvidas de que a crise vem fortalecendo a direita porque “as pessoas estão com medo de mudanças”. (MM)
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A gripe suína e o monstruoso poder da grande indústria pecuária Eneas De Troya/CC
ANÁLISE O setor se transformou, nestas últimas décadas, em algo que se parece mais com a indústria petroquímica do que com o feliz sítio familiar que pintam os livros escolares Mike Davis A GRIPE SUÍNA mexicana, uma aberração genética provavelmente concebida no lodo fecal de um chiqueiro industrial, subitamente ameaça o mundo inteiro com uma febre. Os casos na América do Norte revelam uma infecção que está viajando em maior velocidade do que o último foco oficial de pandemia, a gripe de Hong Kong, em 1968. Roubando o protagonismo de nosso último assassino oficial, este representa uma ameaça de magnitude desconhecida. Parece menos letal que o Sars [Síndrome Respiratória Aguda Severa, na sigla em inglês] em 2003, mas, como gripe, pode ser mais duradouro. Uma vez que as domesticadas gripes estacionárias do tipo A matam nada menos que um milhão de pessoas por ano, um modesto incremento de força, especialmente se vier combinado com uma elevada incidência, poderia produzir uma carnificina equivalente a uma guerra de grande dimensão. No entanto, uma de suas primeiras vítimas foi a fé consoladora e firmemente predicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de que havia a possibilidade de se conter as pandemias com respostas imediatas e independentes das burocracias sanitárias e da qualidade dos serviços de saúde pública locais. Desde as primeiras mortes por H5N1, em 1997, em Hong Kong, a OMS, com o apoio da maioria das admi-
Uma década inteira de advertências dos cientistas fracassou em garantir transferências de sofisticada tecnologia viral experimental aos países situados na rotas pandêmicas mais prováveis nistrações nacionais na área da saúde, promoveu uma estratégia centrada na identificação e no isolamento de um foco pandêmico em seu local de aparecimento, seguidos de um uso massivo de antivirais e – se disponíveis – vacinas à população. Uma legião de céticos criticou esse enfoque de contrainsurgência viral, assinalando que os micróbios podem, agora, voar ao redor do mundo – quase literalmente no caso da gripe aviária – muito mais rapidamente do que a OMS ou os funcionários locais possam reagir ao aparecimento original. Tais especialistas observaram, também, o caráter primitivo, e frequentemente inexistente, da vigilância da co-
Na Cidade do México, passageiros de trem cobrem as vias respiratórias com máscara cirúrgica
nexão entre as doenças humanas e animais. Sem preparo
Mas o mito de uma intervenção audaz, preventiva (e barata) contra a gripe aviária resultou valiosíssimo para a causa dos países ricos que, como os EUA e o Reino Unido, preferem investir em suas próprias “linhas Maginot” [sistema de fortificações construídas pela França ao longo de suas fronteiras com a Alemanha e a Itália, após a Primeira Guerra Mundial] biológicas a incrementar drasticamente a ajuda às frentes epidêmicas avançadas de ultramar. Tal mito também foi positivo para as grandes transnacionais farmacêuticas, que enfrentam uma guerra sem quartel com os países em desenvolvimento empenhados em exigir a produção pública de antivirais genéricos chave, como o Tamiflu, patenteado pela Roche. A versão da OMS e dos centros de controle de doenças – de que já estamos preparados para uma pandemia, sem maiores necessidades de novos investimentos massivos em vigilância, infra-estrutura científica e regulatória, saúde pública básica e acesso global a fármacos vitais – será, agora, posta à prova pela gripe suína. Não é improvável que o sistema de alertas falhe, visto que ele, simplesmente, não existe. Nem sequer na América do Norte ou na União Europeia. Talvez não seja surpreendente que o México careça tanto de capacidade quanto de vontade política para lidar com enfermidades avícolas e pecuárias, mas acontece que a situação é só um pouco melhor ao norte da fronteira, onde a vigilância se desfaz em um infeliz mosaico de jurisdições estatais e as grandes empresas pecuárias enfrentam as regulações sanitárias com o mesmo desprezo com que costumam tratar os trabalhadores e os animais.
Prognóstico antigo
Analogamente, uma década inteira de advertências dos cientistas fracassou em garantir transferências de sofis-
ticada tecnologia viral experimental aos países situados na rotas pandêmicas mais prováveis. O México conta com especialistas sanitários de reputação mundial, mas tem que enviar a mostra a um la-
Em 2008, um relatório destacava o perigo agudo de que “a contínua circulação de vírus característica de enormes varas ou rebanhos incremente as oportunidades de aparição de novos vírus por meio de mutação ou recombinação, episódios que poderiam gerar vírus mais eficientes na transmissão entre humanos” boratório de Winnipeg, no Canadá, para decifrar seu genoma. Assim, perde-se toda uma semana. Mas ninguém estava menos alerta que as autoridades de controle de enfermidades em Atlanta, nos EUA. De acordo com o Washington Post, o CDC [Centro de Controle de Enfermidades, em inglês], radicado em Atlanta, não se deu conta do aparecimento do vírus até seis dias depois que o México tinha começado a impôr medidas de urgência. Não há desculpa aceitável. O paradoxal da gripe suína é que, mesmo que totalmente inesperada, ela já havia sido prognosticada com grande precisão. Há seis anos, a revista Science publicou uma ma-
téria que punha em evidência que, “depois de anos de estabilidade, o vírus da gripe suína da América do Norte deu um salto evolutivo vertiginoso”. Desde sua identificação durante a Grande Depressão, o vírus H1N1 da gripe suína somente havia experimentado um leve desvio no seu genoma original. Depois, em 1998, um foco da doença começou a dizimar porcas em uma fazenda da Carolina do Norte, nos EUA, e versões mais novas e violentas passaram a surgir a cada ano, incluída uma variação do H1N1 que continha os genes internos do H3N2 (causador da outra gripe de tipo A que se contagia entre humanos). Os investigadores entrevistados pela Science se mostravam preocupados com a possibilidade de que um desses híbridos pudesse se converter em um vírus de gripe humana – acredita-se que as pandemias de 1957 e 1968 foram causados por genes avícolas e humanos misturados no interior de porcos –, e defendiam a criação, com urgência, de um sistema oficial de vigilância para a gripe suína. Advertência, inútil dizer, que encontrou ouvidos surdos de Washington, mais disposto, na época, a jogar milhares de milhões de dólares pelo esgoto das fantasias bioterroristas. Indústria petroquímica
O que provocou tal aceleração da evolução da gripe suína? Faz muito tempo que os virólogos estão convencidos de que o sistema de agricultura intensiva da China meridional é o principal vetor da mutação gripal: tanto do “desvio” estacionário, quanto do episódico “intercâmbio” genômico. Mas as corporações da produção pecuária romperam o monopólio natural da China sobre a evolução da gripe. O setor se transformou, nestas últimas décadas, em algo que se parece mais com a indústria petroquímica do que com o feliz sítio familiar que pintam os livros escolares. Em 1965, por exemplo, havia, nos EUA, 53 milhões de porcos, divididos em mais de um milhão de propriedades rurais. Hoje, 65 milhões des-
tes animais se concentram em 65 mil instalações. Isso significou passar dos antiquados chiqueiros a gigantescos infernos fecais, onde – entre esterco e sob um calor sufocante, prontos a intercambiar agentes patógenos à velocidade do raio – se amontoam dezenas de milhares de animais com sistemas de imunização mais que debilitados. Em 2008, uma comissão convocada pelo Pew Research Center, de Washington D.C., nos EUA publicou um relatório sobre a “produção animal em fazendas industriais”, onde se destacava o perigo agudo de que “a contínua circulação de vírus característica de enormes varas ou rebanhos incremente as oportunidades de aparição de novos vírus por meio de mutação ou recombinação, episódios que poderiam gerar vírus mais eficientes na trans-
Trata-se de uma indústria muito globalizada e com influências políticas. O mais provável é que a epidemiologia forense que buscará as causas do surgimento da gripe suína enfrente a muralha de pedra da indústria da carne de porco missão entre humanos”. A comissão alertou também que o uso promíscuo de antibióticos nos grandes estabelecimentos de criação de porcos estava propiciando o auge de infecções por estafilococos resistentes, enquanto os dejetos residuais causavam o sur-
gimento de Escherichia coli e pfiesteria (o protozoário que matou um bilhão de peixes nos estuários da Carolina do Norte e contagiou dezenas de pescadores). Obstrução
Qualquer melhora na ecologia desse novo agente patógeno teria que enfrentar o poder monstruoso dos grandes conglomerados empresariais avícolas e pecuários, como o Smithfield Farms (suínos e bovinos) e o Tyson (avícola). A comissão denunciou uma obstrução sistemática de suas investigações por parte das grandes empresas, incluídas algumas ameaças nada recatadas de cortar o financiamento dos investigadores que cooperassem com a comissão. Trata-se de uma indústria muito globalizada e com influências políticas. Assim como o gigante avícola Charoen Pokphand, radicado em Bangcok, na Tailândia, foi capaz de desbaratar as investigações sobre seu papel na propagação da gripe aviária no sudeste asiático, o mais provável é que a epidemiologia forense que buscará as causas do surgimento da gripe suína enfrente a muralha de pedra da indústria da carne de porco. Isso não quer dizer que nunca encontraremos provas: já corre o rumor, na imprensa mexicana, de um epicentro da gripe situado em torno de uma gigantesca filial da Smithfield no estado de Veracruz. No entanto, o mais importante – sobretudo, pela ameaça persistente do vírus H5N1 – é a floresta, não as árvores: a fracassada estratégia anti-pandêmica da OMS, a progressiva deterioração da saúde pública mundial, a mordaça aplicada pelas grandes transnacionais farmacêuticas aos medicamentos vitais e a catástrofe planetária que é uma produção pecuária industrializada e ecologicamente insustentável. (Rebelión – www.rebelion.org) Mike Davis é professor de história na Universidade da California (UCI), e autor de O Monstro na Nossa Porta: a Ameaça Global da Gripe Aviária. Tradução: Igor Ojeda