BDF_323

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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 323

São Paulo, de 7 a 13 de maio de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br

Reprodução

Farmacêuticas usam influenza para lucrar bilhões de dólares Cinema independente em Portugal Pág. 11

A gripe suína, ou influenza A H1N1, está acabando com os estoques das farmácias brasileiras de Tamiflu, remédio utilizado no combate à doença. De acordo com a suíça Roche, até o dia 29 de abril, a empresa vendeu, a governos de todo o mundo, 220 milhões de kits do medicamento. Desde que se soube da existência do novo vírus, em 23 de abril, até o dia

30 do mesmo mês, a cotação da transnacional nas bolsas de valores subiu 7,1%. De acordo com especialista mexicana, o poder dos laboratórios sobre governos e organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) impedem a produção de genéricos em países mais pobres. Pág. 5 João Zinclar

Transnacionais patrocinam aumento da violência rural

Fragmentação é a marca deste 1º de maio da crise

O relatório Conflitos no Campo Brasil, elaborado pela CPT, aponta que o número de confrontos e assassinatos no meio rural tem se mantido estável nos últimos 10 anos. Porém, para o advogado e membro da CPT José Batista Afonso, o agente dessa violência vem mudando. Se antes ela era praticada por pistoleiros a mando de coronéis, hoje os crimes são cometidos por seguranças contratados por transnacionais. Pág. 7

O movimento indígena acredita ter conquistado a efetivação das normas que regulamentam os direitos dos povos originários no Brasil. O passo foi dado durante a 6ª edição do Acampamento Terra Livre, realizado em Brasília entre os dias 4 e 8. Na ocasião, foi fechada uma proposta para o Estatuto dos Povos Indígenas, que deve ser encaminhado ao Congresso. O texto, que garante os direitos dos indígenas, está parado no parlamento desde 1994. Pág. 6

Conlutas, Intersindical, Pastoral Operária e movimentos sociais reúnem 2 mil pessoas na 10ª edição do 1º de maio na Praça da Sé

Daniel Cassol

No Rio, graves denúncias contra a TKCSA A Companhia Siderúrgica do Atlântico (ThyssenKrupp CSA ou, simplesmente, TKCSA), instalada no bairro de Santa Cruz, região

oeste do Rio de Janeiro, é acusada de violações às leis ambientais e trabalhistas e de desrespeito aos direitos humanos. O Ministério

Público do Trabalho encontrou 120 chineses trabalhando sem registro. O procurador pede multas de R$ 40 milhões. Pág. 4 Angelo Cuissi

Acampados em Brasília, indígenas lutam por seus direitos

ISSN 1978-5134

Ministro da ditadura volta ao Paraguai Pág. 9

Indymedia Ireland

Adeus a

Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido

Manifestantes encenam peça teatral em frente aos portões da TKCSA, no Rio de Janeiro

AFOGANDO EM NÚMEROS

Anualmente, morrem 68

mil mulheres

no mundo vítimas de aborto inseguro, de a invasão estadunidense no Iraque mata

16 mil pessoas por ano. Ou seja, o aborto inseguro vitima 4 vezes mais do que o conflito armado. Do total, 30 da África.

mil mulheres são

inclar

acordo com o Banco Mundial. Em média,

João Z

Pág. 12

Em plena crise econômica, as organizações dos trabalhadores no Brasil promoveram um 1º de maio sem unidade. Ao contrário do que ocorreu no dia 30 de março, quando todas as organizações saíram em defesa do emprego, as centrais sindicais não conseguiram unificar as pautas e realizaram atos em separado. Em São Paulo, o Dia do Trabalhador teve quatro celebrações diferentes. De acordo com as lideranças, a legalização das centrais, aprovada em 2008, contribuiu para esse quadro. Além disso, as divergências de concepção sobre as táticas de luta seguem como elemento de fragmentação. Págs. 2 e 3

Mulheres lutam pelo dia em que o aborto não será mais crime Frente às novas tentativas de criminalização e perseguição de quem pratica o aborto no país, movimentos sociais estão fortalecendo as alianças para se contrapor ao conservadorismo que condena 68 mil mulheres à morte todos os anos no mundo. Em São Paulo, no dia 11, será lançada a Frente Estadual pelo Fim da Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, que integra a frente nacional. Um dos objetivos mais imediatos é anular a instalação da CPI do aborto, criada em dezembro de 2008, mas que ainda não foi posta em prática. Pág. 8


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de 7 a 13 de maio de 2009

editorial A CLASSE TRABALHADORA brasileira e as demais forças populares passam por um momento especial na história da luta dos últimos 20 anos. A crise, conforme avaliamos reiteradas vezes, é profunda, grave e prolongada, com efeitos recessivos e depressivos, e afetará a todos, mas sobretudo os setores menos protegidos por direitos sociais. O colapso financeiro, que assumiu dimensões que podem abalar a economia com essa gravidade, traça um cenário com saídas distintas dentro do qual a ação organizada dos setores populares é um elemento definidor e central. Os representantes da burguesia e do imperialismo tentam passar a fatura para o povo, afirmando que é uma crise de todos e que por isso deve ser enfrentada pelo conjunto da população. E que o colapso, resultado de anos de acumulação, de aumento da capacidade produtiva e desaguando nesse quadro de superprodução, é uma simples catástrofe da natureza. A retirada de direitos, redução dos salários, aumento da exploração, terceirização, carestia etc. são efeitos já percebidos em todos os cantos. Segundo o Dieese, a taxa de desemprego superou os 15% nas seis principais regiões metropolitanas, atingindo mais de 3 milhões de pessoas no universo pesquisado. Cerca de 1 milhão

debate

A atual crise exige unidade dos trabalhadores e firmeza na luta de postos de trabalho foram suprimidos desde outubro de 2008. Além disso, baixos salários, a precarização das condições de trabalho, excesso de horas-extras e condições insalubres de trabalho fazem parte da dura realidade do operário brasileiro. E esse quadro tende a se agravar. Por outro lado, as forças populares brasileiras seguem no esforço de construção da unidade, avançando nas pautas de resistência e avançando na definição de programas de conteúdo estratégico, como a reestatização do setor financeiro, da Embraer e outros. Esse processo depende da capacidade da classe trabalhadora de resistir, pautar a prioridade do povo nesse momento e responder em alto e bom som que o povo não pagará pela crise. Essa construção deve ser feita em torno de bandeiras como a redução da jornada sem redução de salários, redução da taxa de juros/Selic e auditoria completa da dívida pública. Em todo o mundo, as forças populares vêm forjando respostas, cons-

truídas com unidade. Um exemplo foi o 1º de maio francês. Emblemático e simbólico, pela primeira vez após décadas de atividades isoladas, as oito principais centrais de trabalhadores se aliaram e fizeram manifestações por todo o país. No Brasil, como dissemos anteriormente, a marcha do dia 30 de março, em São Paulo e em diversos outros estados, reunindo dezenas de milhares de trabalhadores, foi um sinal importante dessa caminhada, reveladora de limites e muitos potenciais. Os limites se expressaram no 1º de maio no nosso país. Diferentemente da unidade na marcha de março, as manifestações no Dia do Trabalhador foram organizadas pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB), União Geral dos Trabalhadores (UGT), Força Sindical, Conlutas, Intersindical e outras sem qualquer unidade. A concepção e os métodos utilizados no 1º de maio são elementos importantes e que devem ser ana-

lisados. É um dia de festa ou de luta? Por exemplo, a distribuição de brindes em sorteios, shows que dão a esse dia especial e histórico uma imagem de festa e simples entretenimento. E a polêmica não para por aí. Os discursos e debates, ora centrados na sustentação das políticas do governo Lula, noutros espaços focados na oposição como eixo estruturador. Polarização esta aprisionada a uma visão da luta e política que tem a institucionalidade como prioridade central e organizadora das agendas, mobilizações e outras pautas. O fato é que as maiores centrais sindicais do país – CUT e Força Sindical – comemoram o Dia do Trabalhador com shows e serviços assistenciais em todo o país. Em São Paulo, por exemplo, maior centro financeiro e industrial do país, a classe trabalhadora estava dividida. Pulverizaram-se as atividades no 1º de maio. Milhares de desempregados, trabalhadores na ativa, aposentados e jovens em busca de oportunidade foram seduzidos

crônica

Fábio Bueno

Crise internacional, deficit fiscal e os interesses dos trabalhadores UM DOS ASPECTOS mais importantes da atual crise econômica mundial é o padrão de intervenção dos Estados Nacionais, não só por “regular” os mercados financeiros e arquitetar planos de salvamento bilionários, mas principalmente por usar a política fiscal (gastos e arrecadação) na tentativa de conter a diminuição generalizada do crescimento econômico mundial. Mais do que uma mera análise quantitativa do manejo fiscal neste momento de crise, as forças da esquerda socialista devem realizar uma análise qualitativa da política fiscal, de modo a esclarecer não só a função desta última na inserção internacional da América Latina, mas também a natureza das medidas fiscais a serem incorporadas dentre as bandeiras de mobilização popular. Qual o papel da política fiscal na América Latina nos últimos anos e no contexto de crise internacional? Desde a disseminação, na década de 1990, das políticas neoliberais desenhadas no Consenso de Washington pelo continente, a política fiscal passou a ser encarada como um indicador de segurança e confiabilidade para o capital internacional. Com isso, superavits fiscais mostrariam não só

América Latina persiste com a estratégia de mostrar-se um porto seguro e confiável para o capital internacional responsabilidade com os interesses da burguesia, mas também compromisso com as reformas estruturais e garantia de maiores recursos para o pagamento dos juros da dívida pública em poder dos investidores privados. Ora, então a função política desempenhada pela política fiscal no neoliberalismo teria disseminado o padrão de superavit por todo o mundo? Basta uma rápida comparação internacional da trajetória fiscal para mostrar que o padrão de superavits se restringe unicamente à América Latina. A Tabela 1 traz o balanço fiscal (arrecadação menos gastos) dos governos centrais (não inclui instâncias subnacionais como estados, departamentos, províncias ou municípios) nos anos de 2006 (crescimento internacional), 2007 (início da crise no centro) e 2008 (difusão da crise pelo mundo), e mostra que na Ásia e nos países do centro capitalista, reunidos no âmbito da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a ocorrência de deficits é regra, assim como o aumento de sua magnitude com a piora da crise em 2008.

Tabela 1 - Balanço dos Governos Centrais como proporção do PIB (+) = superavit, (-) = deficit País/região

2006

2007

2008

América Latina e Caribe Argentina

2,7

2,7

3,2

Bolívia

5,2

2,3

2,2

Brasil

2,1

2,3

2,2

Colômbia

-0,1

0,8

0,4

Cuba

-2,0

-1,8

-2,8

Equador

2,1

1,9

1,9

México

2,1

1,9

2,0

Paraguai

1,5

1,8

1,2

Venezuela

2,1

4,5

-0,5

-0,8

0,6

-0,4

Hong Kong

4,0

7,7

-0,3

Coreia

0,4

0,5

-1,7

Índia

-6,4

-5,4

-6,0

Indonésia

-1,0

-1,2

-0,1

Malásia

-3,3

-3,2

-4,7

Filipinas

Ásia China

-1,1

-0,2

-0,9

Singapura

8,2

9,6

5,7

Tailândia

0,1

-1,1

-0,3

França

-2,3

-2,6

-3,4

Alemanha

-1,5

-0,1

-0,1

Itália

-1,3

-0,7

-2,7*

Japão

-3,7

-3,1

-5,5*

Inglaterra

-2,6

-2,6

-5,3

EUA

-2,2

-2,6

-6,0*

OCDE

(*) estimativas para o ano de 2008. Fonte: América Latina e Caribe - Comissão Econômica para América Latina e Caribe - CEPAL, Balance Preliminar de las Economías de América Latina y el Caribe 2008, Tabela A-23, página 178; Ásia - Asian Deveploment Bank (ADB). Asian Development Outlook 2009: Rebalancing Asia’s Growth, Tabela A-23, página 318; OCDE - International Monetary Fund - IMF. World Economick Outlook, april 2008.

Já na América Latina e Caribe, a manutenção de superavits fiscais de 2006 a 2008 é regra, com exceções da Venezuela e alguns países caribenhos (Haiti, Honduras, Cuba e República Dominicana), que mostram deficit, em 2008, devido à diminuição dos impostos sobre a exportação de commodities que enfrentam significativas quedas de preço e quantidade no mercado internacional. Ou seja, a América Latina persiste com a estratégia de mostrar-se um porto seguro e confiável para o capital internacional, sustentando o pilar da austeridade fiscal em meio a uma crise internacional que leva as demais regiões do mundo a deficits eminentemente de caráter anticíclicos.

A força da orientação fiscal neoliberal mostra-se especialmente em terras brasileiras, onde o governo recentemente ajustou os parâmetros de sua política fiscal, rebaixando a meta de superavit primário de 3,8% para 2,5% do PIB, valendo-se de um menor esforço do governo central e retirando a Petrobras do cálculo da meta. Este ajuste, que muitos consideram um avanço, na verdade prende-se estrita e fervorosamente aos parâmetros pregados pela orientação neoliberal. Medidas anticíclicas são até aceitáveis, mas desde que não comprometam o superavit primário e o interesse da burguesia. Deficits fiscais e o interesse dos trabalhadores Com isso, o papel político desempenhado pelos superavits fiscais na América Latina, e em especial no Brasil, confere grande importância à reivindicação de uma mudança na política fiscal em direção ao deficit anticíclico. E justamente essa importância política coloca o desafio à esquerda em evitar a armadilha do ataque abstrato aos superavits, não qualificando e definindo o tipo de medidas fiscais que impliquem em deficits e atendam aos interesses dos trabalhadores. Mesmo sob o correto argumento de que deficits fiscais diminuiriam os recursos disponíveis para a fração financeira da burguesia, não demarcar as medidas pertinentes aos trabalhadores abre a possibilidade concreta para medidas fiscais que atendam outras frações da burguesia, a exemplo da isenção de impostos em setores econômicos mais duramente afetados no Brasil, como o automotivo, eletroeletrônico e da construção civil. A reivindicação de deficits fiscais só faz sentido para a mobilização da esquerda socialista se ligada diretamente ao aumento do gasto com proteção social para contrapor os efeitos da instabilidade econômica sobre a classe trabalhadora, a exemplo de maiores recursos destinado ao seguro-desemprego ou à ampliação de programas sociais de cunho universal. Portanto, o atual momento de crise abre possibilidades para o abandono da estratégia latino-americana de subserviência ao capital internacional com a mudança da trajetória fiscal internacional sui generis do continente. Mas tal possibilidade de mudança só será positiva para a esquerda socialista se calcada em medidas de gastos que atendam diretamente as bandeiras e reivindicações dos trabalhadores. Fábio Marvulle Bueno é mestre pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em políticas públicas e gestão governamental do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

pelos sorteios de automóveis e shows musicais oferecidos pela Força Sindical. A União Geral dos Trabalhadores (UGT) fez sua festa na região central da capital paulista. Já a CUT organizou suas atividades na zona sul e na zona leste. Ora, o Dia do Trabalhador historicamente é uma data na qual a classe sai às ruas para fazer mobilizações e protestos em defesa de seus direitos. Não para fazer festa. Até porque a ganância dos capitalistas nunca deixa motivo para comemorar. Portanto, é urgente preparar uma jornada unificada de luta. Articular uma resistência frente à ofensiva do capital. Hoje, a necessidade da redução da jornada sem redução de salários é clara diante da multiplicação do número de desempregados, que deve chegar a 250 milhões de trabalhadores e trabalhadoras em todo o mundo, segundo estimativas da OIT. A crise sugere saídas que serão adequadas aos setores populares ou aos interesses da burguesia e do imperialismo. Temos de nos preparar, buscar alternativas que possibilitem a construção de um projeto popular para o Brasil. Nosso desafio é construir a unidade nas lutas e forjar nesse processo um bloco capaz de lutar pelo poder político, avançando na construção de uma sociedade socialista.

Marcelo Barros

O milagre da comunicação MERGULHADOS EM um mundo de comunicação rápida, no qual o telefone celular e a internet nos ligam, em tempo real, ao mundo inteiro, facilmente nos esquecemos de que, em termos de comunicação, em poucos 30 anos, o mundo viveu uma transformação que, em milênios, não conhecia. Esses novos meios de comunicação plasmaram uma nova cultura social e deram mais agilidade e eficiência aos meios de comunicação social clássicos, como a imprensa e mesmo o rádio e a televisão. Em todos os fóruns e debates da sociedade democrática, a função dos meios de comunicação social tem sido tema de reflexão e debates. A ONU considera o 3 de maio como “Dia Internacional da Liberdade dos Meios de Comunicação”. Houve épocas nas quais a censura vinha de governos ditatoriais e de regimes políticos repressivos. Hoje, a censura mais frequente vem dos interesses econômicos e sociais dos proprietários das empresas de comunicação, assim como das agências internacionais de notícias, não poucas vezes, propriedade dos mesmos conglomerados do petróleo e das indústrias de armamentos. No Brasil, o dia 5 de maio foi instituído como Dia Nacional das Comunicações. Poucas pessoas sabem que nessa data, em 1865, nascia em Mimoso, perto de Cuiabá (MT), uma grande figura das telecomunicações brasileiras: o Marechal Rondon. O nome deste grande brasileiro, descendente de índios Terena, Bororo e Guaná, é lembrado quando se trata de defesa dos povos indígenas e da integração do território nacional, mas poucas pessoas o ligam às telecomunicações. Em 1955, quando Cândido Mariano da Silva Rondon completava 90 anos, passou a ser homenageado como Patrono das Comunicações do Brasil. Talvez sua origem o impelisse a uma comunicação mais humana com os indígenas. “Morrer, se preciso for. Matar, nunca” – era o seu lema. Com ele, Rondon ganhou projeção e reconhecimento internacionais. Este princípio deveria servir para nortear a pauta dos meios de comunicação em uma sociedade que convive mais com a

Continua forte uma campanha de criminalização de movimentos populares e uma publicidade extremamente negativa de qualquer governo que, na América Latina, pretenda transformar a sociedade guerra do que com a paz, e acaba achando mais natural a competição do que a colaboração entre pessoas e povos. Quem acompanha os noticiários no Brasil sabe como a maioria destes privilegia a violência. É como se informar significasse explorar incansavelmente e de modo insensível os crimes e doenças que atacam a sociedade. Uma criança que foi jogada de um edifício ou um filho que mata os pais proporcionam matérias para a repetição cotidiana de reportagens sensacionalistas, cenas chocantes e comentários infelizes, pelo menos por quinze dias. Até surgir um novo crime ou escândalo. Ao mesmo tempo, quase sempre continua forte uma campanha de criminalização de movimentos populares e uma publicidade extremamente negativa de qualquer governo que, na América Latina, pretenda transformar a sociedade. Quem se deixa informar e formar por esses meios de comunicação tende a pensar que, no Brasil, só existe corrupção política e violência nas ruas e que a sociedade está perdida. De fato, ficam ignorados e desconhecidos tantos exemplos de ética no trato da coisa pública e na vida pessoal, assim como muitas pessoas admiráveis na dedicação aos outros. As conquistas sociais e morais da sociedade civil são negadas. No mundo religioso, as igrejas e grupos espirituais independentes têm se servido dos meios de comunicação. Estúdios substituem templos e misturam-se reality-show, ficção e liturgia. A fé se torna objeto de espetáculos religiosos televisivos, sejam cultos neopentecostais ou missas-show de padres pop. Entretanto, a fé nunca pode ser objeto de publicidade. As igrejas não se edificam espiritualmente baseadas em cultos de massa que exploram sentimentos, mas não pedem compromisso comunitário. Como evangelho é a boa notícia de que, apesar de tudo, o projeto divino de paz e justiça começa a se realizar neste mundo, muitas vezes, é fora do universo religioso que jornalistas cumprem a função de verdadeiros evangelizadores e fazem com que os meios de comunicação cumpram sua função de fazer deste mundo uma fraternidade humana em comunhão com o universo. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 26 livros, dos quais o mais recente é O Espírito vem pelas Águas. Ed. Rede-Loyola, 2003.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Luís Brasilino • Subeditor: Igor Ojeda • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

Mesmo com crise, 1º de maio é marcado por fragmentação TRABALHADORES Movimento sindical não repete a manifestação unitária realizada no dia 30 de março CUT

Renato Godoy de Toledo da Redação O MOVIMENTO sindical viveu o primeiro Dia Internacional do Trabalhador após a eclosão do colapso financeiro global. Porém, no Brasil, ainda que a crise tenha permeado as celebrações, a principal peculiaridade do 1º de maio foi o advento da legalização das centrais sindicais. Conquista histórica dos trabalhadores adquirida em 2008, o reconhecimento jurídico das organizações veio a fragmentar ainda mais os atos, já que o número dessas entidades aumentou e tende a crescer ainda mais.

A CTB, a Nova Central e a UGT reuniram 300 mil pessoas no centro da cidade com atrações populares e homenagens ao operário Santo Dias e ao piloto Ayrton Senna Se até o fim da década de 1990, CUT e Força Sindical expunham de forma clara a dicotomia “luta ou festa”, agora, existe um emaranhado de novas tendências que mescla esses elementos. Tanto de um lado como de outro, pipocaram as dissidências. Com o PT no governo federal, setores da então esquerda cutista retiraram-se da central e formaram suas próprias organizações, como a Conlutas e a Intersindical. Até segmentos

Reafirmar bandeiras

O grupo Teatro Mágico se apresenta no ato organizado pela CUT em Cidade Dutra, zona sul de São Paulo

mais próximos à direção da CUT abandonaram a entidade, como é o caso do PCdoB, que construiu a CTB com outras forças políticas. Por motivos mais pragmáticos do que ideológicos, a Força Sindical também apresentou frações, com a criação da Nova Central e migração de quadros para outras entidades recém-fundadas, como a UGT. O resultado prático desse quadro pôde ser visto em São Paulo (SP), onde, de forma inédita, ocorreram quatro atos diferentes. A capital paulista pode ser tomada como parâmetro de um quadro nacional, já que é o local em

que historicamente as centrais põem mais peso. A Força Sindical realizou o seu tradicional “showmício” com sorteios de carros e artistas consagrados, como o padre Marcelo Rossi e Daniel, reunindo 600 mil pessoas. Diferentemente dos outros anos, em que priorizou shows de cantores consagrados, a CUT realizou o seu ato em diferentes locais da periferia paulistana, com prestação de serviços e artistas menos comerciais. A CTB, a Nova Central e a UGT reuniram 300 mil pessoas no centro da cidade, com atrações populares e homenagens ao operário Santo Dias e ao piloto Ayrton Senna.

Conlutas, Intersindical, Pastoral Operária e movimentos sociais fizeram a 10ª edição do 1º de maio na Praça da Sé, com 2 mil pessoas. Esboço de unidade

A fragmentação apresentada no 1º de maio, no entanto, não reflete o processo de unidade que foi construído no início deste ano. Vale lembrar que no dia 30 de março sindicalistas, da Força Sindical à Conlutas, junto aos movimentos sociais, foram às ruas para protestar contra a onda de demissões sob o pretexto da crise econômica mundial. Sob o lema “Os trabalhadores não devem pagar pela crise”, em

Diferentes concepções impossibilitam unidade, afirmam os dirigentes João Zinclar

da Redação As principais justificativas dos dirigentes sindicais para a fragmentação do 1º de maio são relacionadas às diferentes concepções de sindicalismo. Para a CUT, não é possível, por exemplo, unir-se àqueles que veem o dia como mero momento de diversão. “Existe um entendimento diferenciado acerca da maneira de encarar o 1º de maio. Algumas centrais acham que é um dia de comemoração, com shows de grandes artistas. E só. Também existem aquelas que acham que tem que ir para a rua e quebrar tudo, apenas. Nós trabalhamos numa linha alternativa: com comemoração e reflexão enquanto classe trabalhadora. Se um dia a gente conseguir um processo de unidade de entendimento a respeito do 1º de maio, teremos um ato unitário de todas as centrais do país. No momento isso não é possível, porque há uma compreensão diferente”, afirma Sebastião Cardoso. A infraestrutura dos grandes eventos, como o da Força Sindical e da CTB, é outra justificativa para não ter sido construída uma unidade neste ano. “Quando vai se trabalhar com um mega-ato, é exigido um planejamento muito maior. Precisa-se de um tempo para começar a pensar, planejar. Quando surgiu

houve uma tentativa de diálogo, mas muito incipiente”, revela Sebastião Geraldo Cardoso, presidente da CUT de São Paulo.

Ato realizado em 1º de maio na Praça da Sé, em São Paulo

a ideia de se fazer uma ação unitária, as centrais que fizeram mega-atos já estavam com o planejamento fechado”, explica Cardoso. Já Wagner Gomes, presidente da CTB, tem uma visão mais otimista sobre os próximos 1º de maio. Para ele, a unidade é uma questão de tempo. “Nós, da CTB, já estamos batendo nesta tecla do 1º de maio unitário há muito tempo. Acho que isso vai ser inevitável. As centrais foram reconhecidas agora e ainda há uma dificuldade de uni-

dade geral. Já neste momento inicial, conseguimos fazer um ato com três centrais”, analisa. Afastamento

Pedro Paulo Vieira Carvalho, da coordenação nacional da Intersindical, também aponta como improvável a união estratégica entre todas as forças do sindicalismo, mas acredita ser possível e imprescindível a unidade em torno de questões pontuais. “Na conjuntura de fragmentação, é necessária a uni-

dade. Sempre que vamos a este campo amplo, queremos ter a unidade, mas não o rebaixamento das nossas bandeiras. No 30 de março, por exemplo, dissemos claramente que era importante o simbolismo de nos concentrar em frente à Fiesp. Os companheiros da Força Sindical não quiseram. Em alguns momentos não será possível reproduzir a unidade, por conta de uma divergência de fundo. A Força Sindical jamais vai abrir mão de show e sorteio para alienar o povo”, opina. (RGT)

São Paulo, cerca de 15 mil trabalhadores protestaram nos principais pontos patronais. Após este dia, dirigentes das diferentes organizações chegaram a empenhar um esforço de unidade com vistas ao Dia do Trabalhador. Porém, as articulações não renderam grandes frutos. “No dia 30 de março, havia uma pauta específica, que é a questão da crise e da ameaça que o trabalhador brasileiro está sofrendo. Portanto, havia uma luta contra um segmento patronal que está querendo colocar a flexibilização de direitos. Juntamos todas as centrais em torno desse eixo comum. Para o 1º de maio,

Tendências que romperam com a CUT organizam há 10 anos um ato que busca, segundo os organizadores, resgatar o caráter histórico do 1º de maio. Unidos a movimentos sociais, os setores que viriam a formar a Conlutas e a Intersindical passaram a promover este ato alternativo para questionar o caráter “festivo” que a CUT passou a adotar no final dos anos de 1990. “Esse ato acontece antes mesmo de existir a Intersindical e a Conlutas. Hoje ele tem um simbolismo muito forte, pois se diferencia dos demais. Inicialmente, éramos muito frágeis, mas aos poucos agregamos setores da CUT e do movimento social. Em todo o momento do ato, fazemos um contraponto. Até nas apresentações culturais, nós politizamos. Preferimos apostar na cultura popular, ao invés de cantores consagrados”, afirma Pedro Paulo Vieira Carvalho, coordenador nacional da Intersindical.

Estreante

No primeiro Dia do Trabalhador desde a sua fundação, a CTB realizou um ato em conjunto com a UGT e Nova Central. Realizando o segundo maior ato da cidade, as centrais mesclaram grandes artistas com discursos políticos. “Achamos uma forma de você atrair a população, que é o show, mas falando de política também. Nos intervalos dos artistas, falávamos sobre a situação brasileira, o problema da economia e sobre a necessidade de se desenvolver com distribuição de renda”, relata Wagner Gomes, presidente da CTB.

Depois de anos, CUT faz atos sem “mega-shows” Formato estava desgastado, segundo dirigente da Redação

Além do ato político e das apresentações musicais, a central promoveu na zona sul de São Paulo a emissão gratuita de documentos, avaliação médica e debates sobre a Lei Maria da Penha e doenças sexualmente transmissíveis.

A CUT, maior central sindical do país, sempre teve seus atos de 1º de maio marcados por reivindicações gerais da classe trabalhadora, como a luta contra o arrocho salarial, pelo aumento do salário mínimo e contra o pagamento da dívida externa. No entanto, nos anos 2000 as celebrações do Dia do Trabalhador obtiveram uma característica diferente, ganhando contornos de megaevento, com a participação de artistas de grande apelo popular e com patrocínio de diversas empresas. Tal mudança recebeu críticas de diversos setores da esquerda sindical, apesar de a central continuar apresentando, entre um show e outro, as suas reivindicações. Neste ano, por contingência e por opção da direção, a central, de certa forma, retomou o formato anterior, mas agregando novas práticas, como a prestação de serviços. Na grande São Paulo, a CUT promoveu atos descentralizados que tiveram a crise como tema e contaram com a participação de artistas independentes, como O Teatro Mágico e Tribo de Jah.

Mudança de estratégia Para a direção da CUT, a experiência de prestação de serviços serviu como um ensaio para as próximas edições do 1º de maio. De acordo com Sebastião Cardoso, presidente da CUT estadual, a estratégia de “mega-shows”, com artistas populares em locais como a avenida Paulista, se esgotou, e a central resolveu se “aproximar mais das famílias dos trabalhadores”. “Nós tivemos um debate no interior da central, e chegamos à conclusão de que o formato do 1º de maio já tinha cumprido um papel. Naquele formato, até o sindicato ficava um pouco afastado, porque não participava da organização, que passávamos para frente. Precisamos ficar mais próximos do trabalhador e de sua família, por isso optamos por fazer nos bairros. Também resolvemos fazer um debate mais próximo do trabalhador e shows mais singelos, mas com caráter político, de protesto”, afirma. Um outro motivo para os shows mais modestos, de acordo com o cutista, foi a questão do custeio, que desta vez ficou restrito aos sindicatos e a apenas uma empresa, a Telefônica. (RGT)


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brasil Angelo Cuissi

Siderúrgica no Rio coleciona escândalos TRANSNACIONAIS De exploração de mão-de-obra chinesa à parceria com milícias, graves denúncias contra a empresa TKCSA ganham volume

Manifestação diante dos portões da TKCSA, no Rio de Janeiro, realizada no dia 1º de maio

Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) COM INVESTIMENTO bilionário e extensas isenções fiscais, a instalação da Companhia Siderúrgica do Atlântico (ThyssenKrupp CSA, ou, simplesmente, TKCSA) no bairro de Santa Cruz, região oeste do Rio de Janeiro, tem sido exaltada por autoridades e empresários como um marco para o desenvolvimento da região, a de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital. Entretanto, as denúncias de violações às leis ambientais e trabalhistas e de desrespeito aos direitos humanos vem sendo tão constantes que o empreendimento ganha centralidade cada vez maior para governos e movimentos sociais. Os números impressionam. A implantação do que será a maior siderúrgica da América Latina exigiu R$ 13 bilhões em investimento, numa área de 9 milhões de metros quadrados, equivalente aos bairros de Ipanema e Leblon juntos. A joint venture tem 90% de capital da empresa alemã ThyssenKrupp Steel (TKS) e 10% da brasileira Vale (CVRD). Por ano, produzirá 5,5 milhões de toneladas de placas de aço, a serem exportadas para EUA (cerca de 60%) e Alemanha (40%). Faz parte de um imenso projeto dos governos federal e estadual de transformar a região em polo industrial-siderúrgico-portuário. É o maior investimento privado em andamento no Brasil. As primeiras denúncias contra o projeto, ainda em 2006, quando começaram as negociações, diziam respeito à agressão ambiental significativa. Uma das 25 regiões de maior biodiversidade do mundo, a Baía de Sepetiba é área de reprodução de peixes, e já foi a segunda área de maior produção pesqueira do país. “Hoje, temos 10% do volume de captura que tínhamos há dez anos, e isso vem caindo gradualmente”, alerta o pescador Marcos Garcia, secretário da Confapesca (Confederação das Federações de Pesca do Brasil).

Licenciamento irregular

Além dos peixes e moluscos sugados pelas dragagens, existem denúncias de que já há dois hectares de mangues cobertos pelas obras. Os resíduos de lixo químico lançados na baía nos anos de 1980 pela empresa Ingá Mercantil – acidente de enormes danos, mas que vinha sendo revertido pela natureza – estão sendo revolvidos pelas dragagens da TKCSA. Assim, voltam a contaminar peixes, moradores e meio ambiente.

As denúncias de crime ecológico são vastas. Segundo o Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), o licenciamento ambiental, concedido em tempo recorde, é irregular. Segundo a entidade, como as obras se situam em área costeira e dentro de Área de Preservação Ambiental (APA), deveriam ser licenciadas pelo órgão federal, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Mas a licença partiu do estadual, a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema). Os pescadores acusam a instituição de corrupção na concessão da permissão. “A gente os chamou de corruptos na cara deles. Por que eles não nos processam?”, ironiza Marcos. Em dezembro de 2007, inspetores do Ibama chegaram a embargar a obra por detectarem devastação de manguezal não prevista na licença. Entretanto, há indícios de que o poder político do empreendimento também tem influência sobre o órgão. “Quem fala da TKCSA no Ibama é ameaçado de ir para a Amazônia. Os dois técnicos que concederam o embargo da obra estão encostados”, acusa Sandra Quintela, economista do Pacs.

Violações trabalhistas

Às denúncias ambientais, seguiram as de violações a leis trabalhistas e aos direitos humanos. As acusações vão da utilização de mão-de-obra barata – incluindo a “importação” de chineses – até o envolvimento com as milícias da zona oeste da capital fluminense. Embora a empresa negue, também se acusa a TKCSA de acidentes trabalhistas fatais. O Ministério Público do Trabalho (MPT) chegou a interditar as obras, em abril de 2008, por irregularidades nas condições de segurança dos trabalhadores. Dois meses depois, a empresa terminou assinando um acordo junto ao órgão. A mão-de-obra chinesa é admitida pela empresa, com o argumento de que teria formação especializada. Entretanto, constatou-se que os asiáticos – que, segundo o jornal O Globo, chegavam a 520 em fevereiro – estão trabalhando até como pedreiros. O MPT move uma ação contra a TKCSA, por ter encontrado 120 chineses nessa atividade, sem registro e sem contrato. O procurador da ação pede à Justiça que ordene o fim desses trabalhos, e que aplique multas de R$ 40 milhões. Em abril de 2007, o presidente da empresa, Aristides Corbellini, já deixava claro o caráter do serviço, em entrevista ao Jornal do Brasil. Segundo ele, a mão-de-obra era necessária para fazer a obra no

prazo e “dentro do orçamento”. Segundo os pescadores, os asiáticos raramente aparecem fora da empresa e oferecem “quinquilharias” chinesas em troca de comida. Nordestinos também seriam enviados à região, como mão-deobra barata. “Trechos da Mata Atlântida, ao longo da rodovia Rio-Santos, já estão sendo desmatados. Começam a crescer barracos, por conta dessa vinda massiva de nordestinos. Eles [a TKCSA] têm agentes no Nordeste, para selecionar pessoas. É quase um trabalho escravo. Essa região vai virar uma grande favela”, denuncia Marcos. Itaguaí, cidade da área utilizada como dormitório, virou objeto de ampla especulação imobiliária, além de sofrer com a alteração da vida social, como o significativo aumento de prostituição.

Alta rotatividade

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, defensor entusiasta do projeto, foi à empresa no dia 30 de abril, véspera do Dia do Trabalho, para assinar a carteira de número 30.000. Segundo os pescadores, esse patamar só foi atingido pela grande rotatividade porque o período de contratação é de poucos meses. “Nesse ritmo que está indo, daqui a pouco [o Lula] vai ter que voltar aqui para assinar a carteira 100.000”, ironiza Isac Alves de Oliveira, secretário da Associação de Pescadores e Aquicultores da Pedra da Guaratiba (AAPP). Originalmente, a visita de Lula estava marcada, em sua agenda, para o 1° de maio. Desconfia-se que a remarcação tenha ocorrido devido às manifestações do Dia do Trabalho. A Plenária dos Movimentos Sociais decidiu fazer sua principal atividade da data em Santa Cruz, organizando uma caminhada até a sede da empresa. Cerca de 2 mil pessoas estiveram presentes, com bandeiras de protesto. Em frente ao portão da TKCSA, foram apresentadas peças teatrais e números de arte marcial chinesa. “Só não ocupamos a empresa porque entendemos que, por enquanto, ainda não é o momento”, disse Marcelo Durão, do MST. Após o fim das obras, a TKCSA prevê cerca de 3,5 mil empregos, número exaltado pelo governo estadual como significativo (a CSN, principal siderúrgica do país, chegou a ter quase 20 mil funcionários nos anos de 1980). Segundo o Pacs, o número de pescadores que têm tido dificuldades de sobreviver da atividade é de 8 mil. “Hoje, nós temos companheiros entregues à mendicância, ao vício do álcool, com famílias desagregadas”, acusa Marcos, com a voz embargada.

Contra os movimentos sociais, empresa utiliza milícias Grupos paramilitares ameaçam líderes de organizações de pescadores que resistem à instalação de siderúrgica do Rio de Janeiro (RJ) Apesar das inúmeras denúncias de violações trabalhistas e ambientais, a acusação mais grave contra a siderúrgica TKCSA é a de financiar milícias. Em audiência pública realizada em março na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), o pescador Luis Carlos Oliveira reconheceu, no chefe da segurança patrimonial da empresa, de sobrenome Barroso, o mesmo homem que lhe ameaçara de morte, e que supostamente está ligado a tais grupos armados. Principal liderança dos pescadores até então, Luis Carlos saiu do país. Seu irmão também teria sido ameaçado, e já se planeja sua retirada. “A gente sofre um monitoramente constante da milícia”, acusa Isac Alves de Oliveira, secretário da Associação de Pescadores e Aquicultores da Pedra da Guaratiba (AAPP). As organizações de pescadores formam o mais organizado setor trabalhista de resistência ao empreendimento. Por isso, seriam as maiores vítimas das ameaças. “A empresa tentou cooptar [o Luis Carlos] com R$ 100 mil. Ele não aceitou. A partir daí, começou a ser ameaçado de morte, até o ponto de ter que sair. Eles não contavam com a mobilização do setor de pesca”, diz Marcos Garcia, secretário da Confederação das Federações de Pesca do Brasil (Confapesca).

Uma comissão de deputados estaduais esteve, depois da audiência, na área. Constatou-se que a empresa de ônibus que leva os operários ao trabalho também é controlada por milícias. O jornal Monitor Mercantil publicou uma nota recentemente dizendo que a ligação com grupos paramilitares tem afastado investidores alemães da região.

Antonio Lucas de Souza é um humilde morador que se arrepende de ter participado do processo Há, ainda, denúncias que não envolvem questões ambientais ou trabalhistas. Segundo estas, as três audiências públicas que ocorreram durante o processo de licitação, por exemplo, teriam sido “peças teatrais” montadas pela empresa. Ônibus teriam sido alugados para transportar “militantes” comprados, e lideranças teriam sido “inventadas” para representar os moradores. Antonio Lucas de Souza é um humilde morador que se arrepende de ter participado do processo. “A empresa viria para cá para melhorar a vida da classe trabalhadora, dar emprego. E hoje você não vê isso aí”, lamenta. Segundo Sandra Quintela, ecoMinistério do Trabalho

Canteiro de obras da TKCSA na Baía de Sepetiba (RJ)

nomista do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), a empresa age como “um enclave no qual a legislação nacional não vale”.

Dinheiro público

Mesmo assim, o empreendimento é objeto de entusiasmo das três esferas de governo – federal, estadual e municipal. Foi concedida isenção – estimada em R$ 327 milhões – do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) por 12 anos, e também do Imposto sobre Serviços (ISS). O prefeito da capital fluminense, Eduardo Paes (PMDB), chegou a apresentar à Câmara de Vereadores um projeto de lei propondo concessão de novos incentivos de ISS. O argumento era que queria evitar que a Vale abandonasse o projeto, hipótese não confirmada pelas empresas. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) forneceu um financiamento de R$ 1,5 bilhão. “Com esse dinheiro, dava para investir em turismo, em marinocultura, em tudo. Dava para criar uma economia muito mais dinâmica. Mas não. Eles preferem o modelo exógeno de desenvolvimento. Tudo é para fora”, reclama Sandra. A economista reuniu-se com o banco três vezes, inclusive com o presidente Luciano Coutinho. A intenção era explorar uma cláusula social, em que contratos que violam os direitos humanos podem ter seu financiamento suspenso. Até hoje, o BNDES não se pronunciou. Existem tantos cruzamentos entre as empresas envolvidas nas obras, os advogados da TKCSA, o financiamento das campanhas dos governantes e os anúncios publicitários dos principais veículos de mídia que se forma uma enorme teia de relações. A extensa sequência de denúncias – comprovadas ou não – segue desconhecida da maior parte da população. A inauguração da CSA está prevista para dezembro, mas todos já admitem que deve acontecer somente em 2010, ano eleitoral. (LU)


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brasil Valter Campanato/ABr

Um grande negócio para a indústria farmacêutica GRIPE SUÍNA Em sete dias, Roche e Glaxo valorizaram, juntas, R$ 22,8 bilhões nas bolsas de valores; no Brasil, grande mídia “contribui” com a busca por medicamentos Eduardo Sales de Lima da Redação “DE FATO, aumentou bastante a procura pelo Tamiflu”. A frase é do assessor de imprensa da Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico (ABCFarma), Francisco Colombo. Segundo ele, já é elevado o número de farmácias brasileiras que não possuem mais em seus estoques o remédio utilizado para o combate à gripe suína (H1N1). Mas essa não é a melhor notícia (para a Roche, fabricante do medicamento). De acordo com a própria farmacêutica suíça, até o dia 29 de abril, a empresa atendeu todos os pedidos de governos em todo o mundo, o equivalente a 220 milhões de kits de tratamento de Tamiflu (fosfato de oseltamivir). Do dia 23 de abril, quando se soube da existência do vírus da gripe A (H1N1), até o dia 30 do mesmo mês, a cotação da Roche nas bolsas de valores subiu 7,1%, enquanto a da GlaxoSmithKline – fabricante do Relenza, outro medicamento utilizado para combater a gripe suína – aumentou 4,5%. O valor de mercado das duas corporações, juntas, cresceu 8,8 bilhões de euros (R$ 22,8 bi). O Tamiflu foi utilizado, também, contra o vírus da gripe

O certo é que, por trás da “corrida” por medicamentos contra a gripe suína, está o alarmismo da imprensa mundial e brasileira. “O problema é que a mídia usa situações como essas e dá a elas a máxima espetacularização”, aponta especialista em comunicação aviária (H5N1). Entre 2005 e 2006, os governos de muitas partes do planeta compraram milhões de unidades do remédio, ainda que o número de casos reportados à Organização Mundial da Saúde (OMS), até 2006, era de apenas 115. A entidade recomendou a todos os países que armazenassem reservas de antivirais como o medicamento da Roche. Em junho de 2005, a Alemanha comprou da transnacional 150 milhões de euros em Tamiflu (12 milhões de kits de tratamento). A Espanha comprou 1,3 milhão de euros (116 mil kits) em 2006. O preço do antiviral subiu dos 40 euros em 1999 para 377 euros em 2005. O certo é que, por trás da “corrida” por medicamentos contra a gripe suína, está o alarmismo da imprensa mundial e brasileira. “O problema

é que a mídia usa situações como essas e dá a elas a máxima espetacularização”, aponta Laurindo Leal Filho, o Lalo, especialista em comunicação. Superdimensionamento “De uma maneira geral, a imprensa pinça na sociedade fatos que podem se transformar em espetáculo, principalmente para a televisão”, explica Lalo, que lembra que, sempre que possível, esses veículos de comunicação privilegiam o sensacionalismo à informação preventiva. Dessa forma, segundo o especialista, ocorre o superdimensionamento da situação por parte da população, abafando “a necessária informação para enfrentar o problema”. Como exemplo de uma “reação comunicacional” ideal a catástrofes ou pandemias, o professor da USP cita o exem-

Passageira desembarca em Brasília usando máscara cirúrgica

plo de Cuba, que consegue resistir aos furacões caribenhos. “Eles destroem e matam muita gente, até no sul dos Estados Unidos. Nesses casos, o país que menos sofre com mortes, e que às vezes o índice chega a zero, é Cuba. O governo usa os meios de comunicação para dar as orientações sobre o que a população deve fazer nos dias que vão se seguir”, ilustra. A população mundial sofre, ainda, com a falta de informação. O governo do México, por exemplo, tomou conhecimento de casos de gripe suína no dia 15 de março. Entretanto, só em meados de abril a OMS foi no-

tificada. Até o fechamento desta edição (no dia 5), a entidade apontou que o número de pessoas com a gripe do vírus A (H1N1) havia se elevado a 1.124 em 21 nações. O México se mantém como o país mais afetado, com 590 casos confirmados, entre eles, 25 falecidos.

Empresas não estão dispostas a permitir a produção de genéricos”

maior empresa de biotecnologia do mundo.

Pesquisadora explica como os laboratórios atuam para manterem exclusividade sobre a produção de medicamentos antivirais Reprodução

da Redação Além das corporações farmacêuticas lucrarem com as gripes nas bolsas de valores mundo afora, a Organização Mundial da Saúde (OMS), infestada por lobistas do setor, dificulta a produção de medicamentos genéricos em países mais pobres. É o que informa a pesquisadora do grupo ETC, a jornalista mexicana Silvia Ribeiro, em entrevista ao Brasil de Fato. Brasil de Fato – Sobre a criação em escala industrial de animais relacionada ao surgimento da gripe suína, é possível apontar qual corporação foi a responsável pela mutação do vírus, ou é melhor falar em quais são as corporações responsáveis? O que ocorreu, na prática? Silvia Ribeiro – A responsabilidade é das grandes empresas transnacionais de criação industrial de animais, tanto suínas como avícolas, bovinas e outras. Há uma enorme concentração empresarial, eliminando grande parte da criação de animais em pequena escala, ou seja, a pecuária familiar. Entre as principais companhias estão a Smithfield Foods (dona de parte de Granjas Carroll, a empresa no México de onde poderia ter se originado o novo vírus), Cargill, Swift, Tyson, Triumph e Pilgrim’s Pride. Todas são responsáveis, porque os vírus da gripe são altamente mutáveis. O tempo todo, estão se reordenando, recombi-

nando e buscando novas formas de infectar, e encontram o melhor caldo de cultivo nos amontoamentos dos animais dessas empresas. Os porcos são receptivos a vírus de outras espécies, por exemplo, de frango e de humanos. Ao serem infectados, simultaneamente, por diferentes linhagens da gripe (inclusive, distintas linhagens de gripe suína), pode-se produzir a recombinação que dá origem a novos vírus. Na escala industrial, ademais do grande número de animais – na criação familiar, também pode haver contágio, mas não estendê-lo a dezenas de milhares de outros animais –, influem as condições da criação. A esses porcos e frangos são dados, desde que nascem, antibióticos, hormônios, e, inclusive, vacinas contra as gripes virais para “prevenir”. Tudo isso, além de ir parar em nossos alimentos e nos lagos de resíduos dessas fábricas, produz o aceleramento da recombinação dos vírus, que o tempo todo tentam se adaptar, criando o processo de novas linhagens de vírus que podem infectar outras espécies, como é o caso atual. Além disso, o grau de contaminação ambiental (da água e do ar) dessas instalações é brutal. Por exemplo, a Granjas Carroll processa quase 1 milhão de porcos por ano. Estes produzem aproximadamente três vezes mais matéria fecal que os humanos. Então, é como concentrar as matérias fecais, os inseticidas, antibióticos e antivirais de uma cidade inteira em uma pequena

superfície, com pouco ou nenhum processamento. Por isso, o vírus pode ter se originado em qualquer dessas empresas. E o pior: o risco continua e podem surgir cenários iguais ou piores em pouco tempo. Por que, para se defender de casos de epidemias e pandemias, os próprios governos não investem em laboratórios próprios e na produção de remédios? No geral, isso responde à lógica privatizadora que teve seu auge no neoliberalismo das últimas décadas, e que desmantelou a pesquisa pública em muitos setores, ao mesmo tempo que promoveu a privatização da investigação nas universidades públicas, o

que fez com que os resultados fossem patenteados. Paralelamente, criou-se um círculo vicioso, em que as grandes empresas, teoricamente, “financiam” projetos dentro das universidades ou centros de pesquisa públicos, mas, na realidade, aproveitam-se

do conhecimento, infraestrutura e formação dos acadêmicos, e orientam os projetos de investigação para seus próprios mercados. No segmento farmacêutico, isso é grave. As corporações farmacêuticas e biotecnológicas são poucas e adquiriram um enorme poder de mercado e de pressão sobre governos e instituições internacionais. As dez maiores farmacêuticas controlam 55% do mercado mundial, e as dez maiores companhias de biotecnologia, 66% do total. E a tendência é as primeiras comprarem a segunda, concentrando cada vez mais todo o setor. É o caso da Roche, a quarta empresa mundial no setor farmacêutico, que, nos últimos meses, comprou a Genentech, a segunda

Informação atrasada A médica sanitarista Virgínia Junqueira aponta a demora na divulgação de informações sobre a doença como preponderante para criar o pânico no país latino-americano e no mundo. “As consequências desse atraso geraram medidas drásticas”, lembra. A popula-

Por que não se libera a produção genérica de medicamentos como o Tamiflu, por exemplo? O Oseltamivir, o antiviral componente do Tamiflu, está patenteado pela Gilead Sciences, a quarta maior empresa de biotecnologia do mundo. Por sua vez, A Gilead Sciences concedeu, para a Roche, o direito de comercialização exclusivo do Tamiflu. O mesmo acontece com outro antiviral, que combate a gripe aviária e a suína. Ele está patenteado pela Biota e licenciado, de maneira exclusiva, para a GlaxoSmithKline, a segunda maior empresa farmacêutica do planeta. Essas empresas ganharam centenas de milhões de dólares com a exclusividade sobre seus antivirais para a gripe aviária e não estão dispostas a permitir que sejam produzidos como genéricos, agora que vislumbram enormes volumes de venda, seja para a prevenção dos sistemas de saúde, seja para tratamentos. Suas patentes são válidas na maior parte do mundo, uma vez que são essas mesmas empresas que redigiram os ADPIC, capítulos de propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio [OMC], que depois foram aprovados e impostos a todos os países membros da entidade. Paradoxalmente, a OMC permite que os países estabeleçam licenças obrigatórias em caso de ameaças à saúde pública, mas, cada vez que um país tenta usar essas cláusulas, as transnacionais farmacêuticas fazem uma guerra para impedir que isso se concretize. O Brasil foi objeto de pressões internacionais muito duras no caso dos antivirais do HIV. O mesmo aconteceu anteriormente com a África do Sul, país com grande porcentagem de soropositivos. Depois de um boicote de 39 empresas farmacêutica que negaram à nação africana a ven-

ção do México, surpreendida, ficou impedida de frequentar missas, escolas etc. Qualquer tipo de aglomeração humana foi proibida. Se os mexicanos se surpreenderam, os brasileiros também ficaram à mercê da dúvida, mesmo sem a confirmação, ainda, de nenhum caso no país. Nesse caso, a principal responsável, para Lalo, é, de novo, a grande imprensa. Segundo ele, esta não consegue estabelecer, de modo geral, a informação clara que contribua para que o cidadão enfrente casos mais graves (com informações do Rebelión - www.rebelion.org).

da de todo tipo de medicamento, a comunidade internacional obrigou as corporações do setor a oferecerem à África do Sul descontos de até 85% nos preços de alguns antivirais. As farmacêuticas cederam à pressão, mas, também, porque lhes era conveniente: o preço rebaixado era 20 vezes mais caro do que se fossem produzidos genéricos, e, sobretudo, obrigou-se a África do Sul a seguir dependendo das empresas. Gostaria que você comentasse a relação dos governos nacionais com corporações farmacêuticas, como a Roche. Por que empresas como essa possuem tanta influência dentro ds governos? As empresas farmacêuticas têm um pesado lobby dentro dentro da Organização Mundial da Saúde (OMS). A OMS se opôs recentemente à fabricação de genéricos na Tailândia e na Indonésia, sem nenhuma justificação real. É altamente sintomático que, diante da ameaça de pandemia de gripe suína, a OMS tenha solicitado à Novartis e à Sanofi Aventis que desenvolvam uma vacina: são duas das cinco transnacionais que monopolizam o mercado mundial de vacinas. A Sanofi Aventis é, ademais, a terceira maior farmacêutica do mundo, e a Novartis é a sétima. A OMS, no lugar disso, deveria ter demandado que se impulsionasse a pesquisa pública sobre as vacinas e a produção de genéricos. Mas o governo do México prefere respeitar as patentes das transnacionais, tanto por seus compromissos com o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) como com a OMC. Poderia fazer outra coisa, porque é uma situação de grave ameaça de saúde pública, mas o governo prefere seguir respeitando os “direitos” das transnacionais, no lugar dos direitos da população. (ESL)


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brasil

Acampamento Acampamentoreivindica reivindica direitos direitos dos dospovos povosindígenas indígena

fatos em foco

Antônio Cruz/ABr

Hamilton Octavio de Souza

Arquivo aberto Diante das denúncias de que as Forças Armadas teriam destruído documentos sigilosos sobre a Guerrilha do Araguaia, a procuradora da Justiça Militar, Claudia Maria Ramalho Moreira Luz, solicitou ao ministro da Defesa, Nelson Jobim, que preste informação sobre a veracidade dos fatos. É a oportunidade que o governo federal tem de agir com total transparência para a sociedade. Antes tarde do que nunca! Onda privatista Funcionários municipais do Rio de Janeiro estão em pé de guerra contra a privatização dos serviços públicos de educação, saúde, esporte e cultura. O prefeito Eduardo Paes, do PMDB, quer seguir o exemplo dos governos tucanos que contrataram “organizações sociais” para gerir os órgãos públicos. Onde isso aconteceu os serviços pioraram e a população acabou prejudicada. É a chamada solução burra!

Na Esplanada dos Ministérios, Brasília, acampamento com 200 etnias de todo país pressiona por aprovação de Estatuto dos Povos Indígenas

TERRA Manifestantes defendem aprovação de Estatuto que já estava previsto na Constituição de 1988 Michelle Amaral da Redação DEPOIS DE 20 anos da homologação da Constituição que consagrou os direitos dos povos originários no Brasil, o movimento indígena acredita que enfim conquistou o reconhecimento do Estado para a efetivação do estatuto normativo que regulamenta esses direitos. Fruto de pressão e diálogo, o Estatuto dos Povos Indígenas foi encaminhado ao governo federal como proposta consensual entre as partes durante o 6º Acampamento Terra Livre, realizado em Brasília (DF) entre os dias 4 e 8.

“Hoje, o principal objetivo para nós é discutir a proposta do Estatuto”, explica Marcos Apurinã, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Segundo ele, a formulação do novo Estatuto só foi possível por causa da criação da Comissão Nacional de Políticas Indígenas (CPNI), uma das conquistas de acampamentos realizados em anos anteriores. As discussões em torno da proposta do novo Estatuto aconteceram no segundo dia de acampamento. Os enfoques principais dentro da discussão foram os recursos naturais, a exploração mineral e o aproveitamento hídrico em terras indígenas, além da regulação para a assistência à saúde e educação. Ao término do encontro, a proposta elaborada será entregue ao Congresso Nacional, onde a tramitação do Estatuto está parada há mais de 14 anos. Com mais de mil participantes pertencentes a 200 povos, o Acampamento ocorre todos os anos na Esplanada dos Ministérios. Além

do Estatuto, temas relacionados aos povos indígenas, como a luta pela terra, a violência e a criminalização contra as comunidades tradicionais, saúde, educação escolar e fortalecimento do movimento indígena nacional, estão na pauta da mobilização. Território Outro tema importante para o movimento indígena no Brasil debatido no acampamento segue sendo a recuperação dos seus territórios. Nessa luta, o povo Guarani Kaiowá, que ocupa o sul do Mato Grosso do Sul, enfrenta um dos mais trágicos embates. Hamilton Lopes, liderança Guarani-Kaiowá, relata que o povo tem hoje cerca de 50 mil indígenas que vivem numa área demarcada ainda na década de 1920, mas que é insuficiente para toda a população. Os GuaraniKaiowá lutam na Justiça pela demarcação de suas terras conforme prevê a Constituição de 1988. Segundo o relatório de Violência do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), lançado duran-

Milhões destinados às questões indígenas não são utilizados Funai deixou de executar quase R$ 17 milhões previstos no orçamento de 2008 Marcy Picanço de Brasília (DF) Apesar das demandas urgentes, mais da metade dos recursos disponíveis para demarcação de terras em 2008 não foram gastos. No ano, a Fundação Nacional do Índio (Funai) deixou de gastar quase R$ 17 milhões que estavam previstos para ações de demarcação e regularização de territórios indígenas. Enquanto isso, o órgão instituiu apenas 31 grupos técnicos para os estudos de identificação de terras indígenas, apesar de haver cerca de 500 pedidos para esse tipo de providência. A análise do orçamento indígena 2008, divulgada no dia 9 de abril, é do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). A pesquisa, feita pelo antropólogo Ricardo Verdum, faz um balanço da execução orçamentária dos diferentes órgãos do governo federal envolvidos na implementação da política indigenista. O orçamento para a política indigenista aprovado para 2008 foi de R$ 736,014 milhões, superando em quase R$ 60 milhões o proposto pelo Executivo em agos-

to de 2007. Por outro lado, a análise destaca a baixa execução nas ações de demarcação e regularização das terras indígenas e nas destinadas à gestão ambiental, ao etnodesenvolvimento e à saúde. Em 2008, o orçamento para as ações da Funai foi de R$ 287,453 milhões. Desse total, foram executados cerca de R$ 239,422 milhões (83,29%). Os dados reunidos pelo Inesc demonstram que, dentre as 12 ações sob responsabilidade da Funai no Programa de Proteção e Promoção dos Povos Indígenas, as que tiveram o pior desempenho na execução do orçamento foram ações de demarcação e regularização dos territórios indígenas. Dos R$ 30,456 milhões autorizados, a Funai não usou R$ 16,957 milhões. Somente R$ 4,854 milhões foram executados. O órgão deixou como restos a pagar neste ano cerca de R$ 8,644 milhões. Na pesquisa, Verdum avalia que, “em 2008, se manteve a tendência declinante já identificada ao final do primeiro mandato do presidente Lula da Silva, decorrente da pressão da base de sustentação do atual governo em nível federal e da pressão dos governos estaduais e da iniciativa privada, particularmente do setor ligado ao agronegócio (soja, canade-açúcar etc.)”. Saúde Os indígenas denunciam a precariedade no atendimento à saúde no Brasil inteiro. Em quase todas as situações, os representantes da Fundação Nacional de Saú-

de (Funasa) alegam falta de recursos para manter a estrutura física das Casas de Assistência ao Índio (CASAIs), os veículos para locomoção dos doentes, os equipamentos médicos, entre outras necessidades. No entanto, em 2008, a Funasa deixou de gastar aproximadamente R$ 11 milhões, sendo R$ 5,019 milhões destinados à estruturação de unidades de saúde e R$ 3,095 milhões para as ações de promoção, vigilância, proteção e recuperação da saúde dos indígenas. Também deixaram de ser executados cerca de R$ 736 mil com as ações de vigilância e promoção de segurança alimentar e nutricional entre as comunidades indígenas. A ação de saneamento básico em aldeias indígenas também ficou com um bom volume não-utilizado: foram cerca de R$ 14,247 milhões, o equivalente a 23,17% do autorizado para o ano. Isso sem contar o que ficou como restos a pagar neste ano, ou seja: R$ 42,673 milhões. De fato, isso não representa um grande índice percentual dentro do orçamento das ações de atenção à saúde dos povos indígenas, cujo total foi de R$ 342,549 milhões. Destes, cerca de R$ 331,596 milhões (96,8%) foram liquidados, sendo que R$ 69,89 milhões ficaram para serem pagos neste ano. Por outro lado, os indígenas e suas organizações seguem questionando a efetividade e a fiscalização do uso desse recurso. O estudo do Inesc lembra que “ainda não foram divulgados os

te o Acampamento, o MS é o Estado que apresenta maior número de mortes de indígenas, seja por assassinatos ou por suicídios. Foram registrados no Estado 100% dos suicídios e 70% dos assassinatos de 2008. O Cimi aponta que o foco de violência se encontra entre os Guarani-Kaiowá, em que se registrou 42 assassinatos, além de 34 suicídios. Hamilton explica que os Guarani-Kaiowá encontram dificuldades para se sustentarem nas terras que ocupam atualmente e, dessa forma, têm que buscar trabalho em lavouras ou canaviais longe de suas habitações. Segundo ele, os índios que trabalham nesses locais passam bastante tempo fora de suas casas e enfrentam muitos problemas familiares, que, junto com a falta de condições de se sustentar, são responsáveis por grande parte dos suicídios. Para a liderança Gaurani-Kaiowá, para que a situação de violência seja resolvida, é necessário que haja a garantia das terras, o que só é possível através da demarcação.

resultados da auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) – a pedido da Câmara dos Deputados – sobre a efetividade da aplicação dos recursos federais na assistência à saúde indígena. Segundo resultados preliminares apresentados no início de dezembro passado, de uma avaliação realizada em oito Distritos de Saúde Especial Indígena (DSEI), foi constatado que o atendimento prestado às pessoas é visivelmente precário e que falta transparência e regulamentação na gestão dos recursos, especialmente os incentivos de atenção básica e especializada (IABPI e IAE-PI).” O relatório está sendo analisado pelo ministro José Jorge (do TCU) desde o dia 6 de fevereiro. Ambiente e cultura Outros dois ministérios que implementam ações da política indigenista apresentaram baixo desempenho na execução orçamentária. Segundo o estudo, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) “ou continua planejando além da sua capacidade ou não tem tido as condições necessárias para executar aquilo que ambiciona realizar no ano”. Dos R$ 9,205 milhões autorizados em 2008, o MMA executou pouco mais de 16%, incluindo os cerca de R$ 469 mil que ficaram para serem pagos neste ano. Já o Ministério da Cultura, “que, ao longo dos últimos anos, vem cada vez mais se destacando no apoio à promoção das manifestações culturais dos Povos Indígenas, parece também estar tendo alguns problemas para executar o orçamento”. De um total de R$ 1,396 milhão autorizados para 2008, foram executados pouco mais de 53%, ou seja, R$ 750 mil, sendo R$ 652 mil como restos a pagar neste ano.

Desemprego alto De acordo com a pesquisa da Fundação Seade-Dieese, a taxa de desemprego subiu para 15,1% em março nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo e Distrito Federal, contra 13,9% em fevereiro. Nessas regiões existem mais de 3 milhões de trabalhadores sem emprego. Graças ao neoliberalismo, desde os anos de 1980 o Brasil não tem taxas abaixo dos 5%. Farra privilegiada Desde o início da crise financeira e econômica, o governo brasileiro tratou de socorrer com dinheiro público as empresas e os setores privados. Calcula-se que a desoneração de impostos para os capitalistas custará mais de R$ 20 bilhões neste ano. Se esse dinheiro tivesse sido usado diretamente em serviços para o povo e os trabalhadores, certamente teria fortalecido a economia com melhor distribuição na renda.

Tratamento VIP A retirada dos arrozeiros que invadiram a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, mostrou o tratamento privilegiado que setores da sociedade recebem das autoridades e da mídia, quando praticam crimes. Sem o uso de tropa de choque, a retirada foi supercivilizada e contou com o acompanhamento de um desembargador federal; a mídia chamou o invasor de “proprietário da fazenda”. Estado impune O Grupo Tortura Nunca Mais e a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência encaminharam documento para a Anistia Internacional com o relato detalhado dos casos de assassinatos praticados por policiais militares do Rio de Janeiro. O documento, intitulado O Judiciário trabalhando contra a Justiça, denuncia os agentes do Estado e a conivência das autoridades brasileiras com a impunidade. Protesto negro O Núcleo de Cultura Afro-Brasileira e outras entidades do movimento negro preparam manifestação de protesto no dia 13 de maio, em São Paulo, às 17 horas, nas escadarias da Ladeira da Memória, que já foi ponto de comércio de escravos antes de 1888. Após 121 anos da abolição da escravatura, a segregação e a discriminação aos negros continua forte na metrópole paulistana. Só é disfarçada! PCB renovado O Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro iniciou os preparativos para o XIV Congresso Nacional, que terá seu ponto culminante de 9 a 12 de outubro, no Rio de Janeiro. Desde 1º de maio, todas as instâncias do partido devem debater as teses centrais do congresso, entre as quais, a do “Capitalismo Hoje”, da “Estratégia e Tática da Revolução Brasileira” e do “Socialismo – Balanço e Perspectivas”. Augusto Boal Homenageado recentemente pela Unesco, o dramaturgo Augusto Boal morreu no dia 2, no Rio de Janeiro, num momento em que o seu Teatro do Oprimido é reconhecido e reproduzido em várias partes do mundo. Em entrevista para a revista Carta Capital, ele disse: “Defendemos que todos nós podemos fazer teatro, que todos podemos ser personagens, de fato, de nossas próprias vidas”. Valeu, Boal!


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brasil Alan Marques/Folha Imagem

Transnacionais, os novos “coronéis” do campo QUESTÃO AGRÁRIA Se quem mandava antes eram os latifundiários, hoje são as grandes corporações que estão por trás da concentração de terra Patrícia Benvenuti da Redação UMA EMBOSCADA executada por “agentes” de uma empresa privada de segurança, no dia 16 de abril, deixou sete camponeses feridos na Fazenda Espírito Santo, no município de Xinguara, no sul do Pará. Munidos de armas de grosso calibre, os seguranças particulares da Agropecuária Santa Bárbara atiraram contra integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que, desde fevereiro, permanecem acampados na área. Por pouco, o incidente não repete o massacre de Eldorado dos Carajás, que, por coincidência, também ocorreu no sul do Pará, e quase no mesmo dia, 17 de abril de 1996. Na chamada curva do “S”, 19 sem-terra foram mortos e centenas ficaram feridos depois de uma ação da Polícia Militar para conter os manifestantes que, depois de dias de marcha, protestavam na rodovia PA-150. As recentes tentativas de assassinato em Xinguara demonstram que, de 13 anos para cá, pouco mudou na situação de violência no campo brasileiro. De acordo com o último relatório Conflitos no Campo Brasil, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e divulgado no dia 28 de abril, os enfrentamentos continuam uma constante para milhões de camponeses, indígenas, remanescentes de quilombo e outras populações. Os dados da CPT apontam uma redução, em 2008, no número de conflitos em relação ao ano anterior, passando de 1.538 para 1.170. Entretanto, o número de pessoas assassinadas permaneceu o mesmo, 28, indicando que, apesar de reduzidos, os embates se tornaram mais violentos: enquanto em 2007 a média era de uma morte para 54 conflitos, em 2008, tal proporção subiu para um assassinato a cada 42 confrontos. Amazônia, o grande foco

Apesar de todas as regiões brasileiras apresentarem índices elevados de concentração da terra e, consequentemente, de violência no campo, é na Amazônia que a situação tem se tornado mais preocupante. De acordo com o relatório da CPT, em 2008, 47% dos conflitos ocorreram no território amazônico, mais da metade deles atingindo, diretamente, comunidades tradicionais. A área também foi responsável por 72% dos assassinatos – somente no Pará, ocorreram 13 das 28 mortes em todo o Brasil. O avanço da violência na Amazônia, na avaliação do advogado e membro da CPT José Batista Afonso, está ligada ao aparecimento de novos atores na estrutura fundiária brasileira: as empresas transnacionais e os megaconglomerados econômicos. Se antes o latifúndio era representado pela figura do “coronel”, o dono de todas as terras da região, agora esse papel fica com grandes grupos econômicos, que vêm adquirindo terras para a expansão de seu capital. O foco na Amazônia, explica Afonso, está explicado jus-

tamente pela possibilidade de exploração das riquezas que a região possui, especialmente com a alta crescente nos preços de produtos como a soja, a carne e os recursos minerais no mercado internacional. “Sem dúvida nenhuma, a intensificação da frente da pecuária, a expansão das monoculturas, principalmente da soja, e a frente da mineração têm provocado uma corrida violenta em direção às riquezas da Amazônia”, avalia. Um exemplo disso é o grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, que, sozinho, comprou cerca de 500 mil hectares no sul do Pará em apenas dois anos. Tal caso serve, ainda, para ilustrar a aquisição irregular de terras públicas na região. Tramita na Vara Agrária de Redenção um processo pedindo o cancelamento da compra da Fazenda Espírito Santo. As terras, que pertencem ao Estado do Pará, teriam sido repassadas irregularmente por membros da família Mutran, que, na época, detinham o título de aforamento da propriedade. Somente no Pará, mais de 6 mil títulos de terras registrados nos cartórios do Estado contêm irregularidades, de acordo com um estudo recente do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), em conjunto com outras entidades. Juntos, os papéis representam mais de 110 milhões de hectares, em áreas possivelmente griladas. Comunidades na mira

O avanço da violência na Amazônia contribui também para o aumento da agressão contra as populações tradicionais. Segundo o relatório da CPT, em 2007, essas comunidades representavam 41% dos envolvidos em conflitos no Brasil; em 2008, essa proporção passou para 53%, reduzindo de 44% para 36,3% a participação de movimentos de sem-terra, que, até então, eram os principais protagonistas do lado dos excluídos. No caso específico da região amazônica, as comunidades tradicionais representam, hoje, 65,4% dos atores implicados nesses embates, evidenciando a cobiça do capital por novas áreas. “Populações como os ribeirinhos, indígenas e remanescentes de quilombo estão vendo suas terras sendo invadidas e destruídas e sofrerem os efeitos da contaminação em função da expansão desses grandes investimentos, que acabam desterritorializando esses povos que residem ali há muito tempo”, explica Batista Afonso. A violência no campo também vem vitimando pessoas que se mudam para a Amazônia, motivadas pelas promessas de empregos que viriam com a construção de grandes obras. Nesse aspecto, Afonso também critica o governo federal, que, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tem contribuído para a migração de famílias pobres, especialmente vindas do Nordeste. “Na região, por exemplo, do sul e sudeste do Pará, a migração se dá em função dos projetos de mineração que estão sendo abertos pela Companhia Vale e por projetos de construção de hidrelétricas, que estão dentro do PAC e que obedecem ao interesse desses grandes grupos econômicos. Ao chegar, essas famílias, não tendo alternativa, ingressam principalmente em dois movimentos, o de ocupação urbana e o de ocupação rural”, pontua.

Para entender Aforamento – mecanismo através do qual o proprietário concede o direito de usufruto de sua propriedade a outrem, em troca do pagamento de uma pensão anual previamente acertada e invariável.

Trabalhadores sem-terra bloqueiam estrada no Pará, em protesto à emboscada realizada por seguranças da fazenda Espírito Santo

Pistolagem reciclada Pistoleiros, embora continuem a atuar, estão sendo substituídos por agentes privados de segurança da Redação O ingresso de grandes conglomerados econômicos na disputa pela terra também impulsiona novas formas de violência. Se, antigamente, os fazendeiros utilizavam apenas serviços de pistoleiros, cada vez mais esse trabalho é executado por agentes de empresas privadas de segurança, que agem como verdadeiros “capangas” na defesa das propriedades. Assim, “o grande capital internacional acaba adotando uma prática dos coronéis, contratando milícias privadas”, alerta Juvelino José Strozake, advogado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na Amazônia, inclusive, essa prática vem sendo recomendada por integrantes do próprio Poder Público. “A bancada ruralista e a [Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil] CNA, através da senadora Kátia Abreu [DEM-TO] e de alguns outros parlamentares da bancada ruralista, têm insistentemente dito que os fazendeiros devem contratar seguranças e proteger a qualquer custo suas terras”, denuncia o advogado e membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) José Batista Afonso. Ao contrário do que poderia parecer, a contratação dessas empresas de segurança não significa avanço nem mais “transparência” nas relações do campo, já que a maioria dessas firmas, segundo Afonso, não tem a devida regulamentação. Isso dificulta, por exemplo, um controle sobre a verdadeira quantidade de armas que cada empresa possui. Além disso, a falta de fiscalização também possibilita a contratação de pistoleiros para atuarem em ações de reintegração de posse e despejos. Longe de estar em extinção, a prática da pistolagem ain-

da está em alta, especialmente no Norte do país. “A empresa às vezes tem ‘X’ seguranças contratados legalmente e, nas ações, incorporam-se pistoleiros que não têm nada a ver. Careceria, além de um controle, de uma investigação direta da Polícia Federal sobre essas práticas”, afirma. Particularidades regionais

As formas de violência promovidas por esses grupos mudam pouco de uma região para outra do país. Assassinatos de lideranças, despejos truculentos, ataques de milícias, utilização de trabalho escravo e outras violações de direitos humanos são características presentes em todos os estados. O que difere, para Afonso, é o grau de violência, mais elevado em regiões visadas pelo capital, como é o caso, atualmente, da Amazônia. “Onde o poder econômico está, de certa forma, consolidado (sem dúvida, no Centro-Sul e no Sul do país), é claro que existe violência, mas em proporção menor, porque são regiões em que o capital tem quase controle total das terras”, analisa. Os interesses econômicos são apontados, ainda, como um fator que pode influenciar a atuação das Polícias Militares (PMs), comandadas pelos governos estaduais. Para Strozake, são esses interesses que justificam, por exemplo, uma polícia ser mais violenta do que outra, e não aspectos específicos e históricos de cada região. Ele cita, por exemplo, o caso do Pará. Protagonistas da violência no caso do massacre de Eldorado de Carajás, em 1996, a PM hoje, por determinação da governadora Ana Júlia Carepa (PT), tenta construir uma atuação menos agressiva. Já a Brigada Militar, no Rio Grande do Sul, só aumentou a violência contra organizações camponesas e movimentos urbanos desde que a governadora Yeda Crusius (PSDB) assumiu o poder. “Depende muito de quem está administrando o Estado. Se quem administra é subserviente aos interesses do grande capital e do latifúndio, a Polícia Militar também passa a agir como um braço armado do poder econômico local”, avalia. (PB)

As armas ideológicas das corporações da Redação Além da violência física, a criminalização dos movimentos sociais e de suas lideranças é outra característica da atuação das empresas transnacionais, apontadas como novas protagonistas dos conflitos agrários no Brasil. Segundo Juvelino José Strozake, advogado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), cada vez mais elas investem em ações para barrar quem se posiciona contra seus interesses. “Existe o financiamento de inquéritos e processos contra lideranças do MST. As grandes transnacionais contratam investigadores para ajudar a Polícia Civil na montagem de inquéritos e processos”, relata. Apesar da influência das corporações no Judiciário, na polícia e dentro de outras esferas do poder público, talvez o aspecto mais poderoso desses grupos, na avaliação de Strozake, é seu poder junto à mídia. “Grandes empresas financiaram e custearam comerciais em horário nobre na televisão para deslegitimar os movimentos sociais. Foi o caso da [empresa de celulose] Aracruz. Nos momentos em que foi questionada, ela fez campanhas publicitárias para reforçar sua imagem”, diz. Versão desmentida

A relação entre empresas de comunicação e grupos econômicos pôde ser constatada no episódio da Fazenda Espírito Santo, no Pará, em abril deste ano. Inicialmente, profissionais da TV Liberal, afiliada da Rede Globo no Estado, acusavam os integrantes do MST de tê-los usado como “escudo humano” durante a ação na propriedade. Entretanto, o repórter da emissora Vitor Haor, em depoimento à polícia, desmentiu a versão apresentada nos principais telejornais da Rede Globo. Com isso, confirmava-se o que havia afirmado o MST, que denunciou, inclusive, que a equipe de reportagem havia chegado à propriedade no helicóptero dos seguranças da fazenda. (PB)


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brasil

Frente une forças para defender o aborto legal e seguro no país DIREITOS REPRODUTIVOS Movimentos sociais reforçam as alianças para conter conservadorismo e criminalização das mulheres Legal Ilegal, permitido apenas em caso de estupro, risco de morte da mãe, para evitar problemas de saúde, fatores socioeconômicos e malformação do feto Ilegal, exceto em casos de estupro, risco de morte da mãe, para evitar problemas de saúde e malformação do feto Ilegal, exceto em casos de estupro e risco de morte da mãe Ilegal, exceto em casos de risco de morte da mãe Ilegal, sem exceções Ilegal, exceto em risco de morte da mãe, para evitar problemas de saúde, malformação do feto e fatores socioeconômicos

Dafne Melo da Redação NO DIA 11, os movimentos sociais darão mais um passo no longo caminho pela descriminalização do aborto no Brasil. Será lançada, na Câmara Municipal de São Paulo, a Frente Estadual pelo Fim da Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. A iniciativa se segue à criação de uma frente nacional, em outubro de 2008. Outros estados também já lançaram suas frentes, como Amapá, Rio de Janeiro, Ceará, Minas Gerais, Pernambuco e Bahia. De acordo com Sônia Coelho, da Marcha Mundial das Mulheres, “há nos últimos tempos uma grande criminalização e articulação dos conservadores, e por isso é extremamente necessário articular as forças não apenas nacionalmente, mas em cada Estado”.

Segundo ela, ainda neste semestre haverá uma plenária nacional que reunirá todas as entidades que participam da frente, com o objetivo de determinar linhas de ação. “A ideia é estabelecer estratégias de luta em comum e pautar nossas reivindicações”. CPI Logo após as condenações de mulheres que se submeteram a um aborto no Mato Grosso do Sul, em setembro de 2008 (ver abaixo) – seguida de uma reação dos movimentos de mulheres –, os setores contrários à descriminalização da interrupção da gravidez já lançaram outra ofensiva. Em dezembro, foi criada em Brasília uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o mercado ilegal de prática do aborto no país. O propositor foi Luiz Bassuma (PT-BA), e o então presidente da Câmara

dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP), acatou. Imediatamente, instalou-se um debate caloroso. De um lado, a bancada contrária ao aborto – a maioria de parlamentares ligados a igrejas – usando argumentos legalistas para levar a cabo a CPI. O ponto central era uma afirmação do ministro da Saúde, José Gomes Temporão, de que existe no Brasil um contrabando de remédios abortivos. A partir daí, defendiam o dever de investigar a larga ocorrência de uma prática proibida por lei. Do outro lado, parlamentares favoráveis à revisão da lei e movimentos sociais, denunciando que a real motivação da comissão era fazer uma verdadeira caça às bruxas, investigando e condenando mulheres, a exemplo do ocorrido no MS. “Se você vai investigar clínicas clandestinas, vai acabar chegando nas pessoas que o fizeram, co-

Chile e Cidade do México, dois exemplos num só continente América Latina reúne o mais atrasado – a proibição total – e a experiência de descriminalização da Redação O PAÍS QUE realiza, proporcionalmente, a maior quantidade de abortos na América Latina é justamente aquele que não admite a prática em nenhuma circunstância: o Chile, onde a taxa de abortos chega a 5% (5 interrupções a cada 100 mulheres). O número aparece em um estudo conduzido pelo médico chileno Aníbal Faúndez, radicado no Brasil e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O Brasil ficaria perto dos 3,5% e países como Alemanha e Holanda, 1%. Nem sempre foi assim. O Chile, desde 1931, permitia o aborto por motivos terapêuticos. Em 1989, pouco antes de sair do poder, o ditador Augusto Pinochet (1973-1990) retirou esse direito das chilenas. Nenhum presidente, nem mesmo Michele Bachelet, reviu a proibição. Junto com Chile, só alguns países proí-

O número de mulheres atendidas no serviço público por conta de abortos inseguros diminuiu drasticamente desde a descriminalização, ocorrida em 2007 bem totalmente a prática: El Salvador, Malta, Nicarágua, Timor Leste e Vaticano (ver mapa). Já a capital federal mexicana, que descriminalizou a prática em abril de 2007, vive uma outra experiência, a primeira e única na América Latina – com exceção de Cuba, onde é legalizado desde 1965, e onde a taxa de interrompimentos é de 2%. Balanço As autoridades de saúde da capital do México, passados dois anos da aplicação da nova lei, fazem uma análise positiva da mudança. O secretário de Saúde do município, Armando Ahued, declarou que o número de mulheres atendidas no serviço público, por conta de abortos inseguros, diminuiu drasticamente. “Antes chegavam perfuradas, sangrando, infectadas e era um problema muito sério de saúde pública”, afirmou. Os números de abandonos de recém-nascidos na cidade também caíram: de 2,2 por mês, em média, em 2006

e 2007, para 1,2 em agosto de 2008. Nesses dois anos, quase 30 mil mulheres solicitaram o procedimento, sendo que apenas 23 mil o fizeram de fato. No resto do país, o aborto é ilegal. Após a legalização na capital, as forças conservadoras se uniram para conter um possível avanço da lei em outras cidades. Desde então, conseguiram mudar a legislação em 11 estados, aumentando o rigor da lei. Apesar disso, as mexicanas não têm ido à capital recorrer a prática, como muitos sustentavam, o que comprova que continuam a fazê-lo de forma insegura em suas localidades. Da maioria das mulheres que optaram pela interrupção no DF, 79%, residem na capital; 19% vivem no Estado de México e só 3% são de outros estados. Lá, os números também mostram que mulheres adultas e instruídas são as que mais recorrem à prática: 95% tinham mais de 18 anos e 80% tinham ensino médio ou superior completo. (DM, com informações do La Jornada – www.jornada.unam.mx)

mo em Campo Grande”, resume Sônia. Vitória “Não vai dar em nada”, acredita a advogada e ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias. “As pessoas não vão deixar de fazer, fecha uma clínica aqui e abre outra na esquina. O Estado não deveria ter essa interferência punitiva; deveria ser no sentido contrário”, opina. Sônia também acredita que a comissão não vá iniciar seus trabalhos. “Fizemos muitas conversas com parlamentares e partidos, pedindo que não indiquem nomes. O outro lado também pressiona, mas vamos continuar a pedir a anulação”, revela. Ao que parece, a tática tem funcionado, pois os líderes partidários ainda não fizeram a indicação. Caso não o façam, a CPI será extinta. Reações também

apareceram dentro do próprio Partido dos Trabalhadores. Em fevereiro, a Secretaria de Mulheres do PT entrou com uma representação contra o parlamentar, acusandoo de descumprir uma resolução do partido de 2007, que aprova o direito ao aborto. Para Maria Berenice, o episódio da CPI mostra o caráter conservador e sexista do parlamento brasileiro. “Nosso legislador sofre uma influência religiosa muito perversa e é formado por homens, a maioria sexista, e eles não encaram isso com seriedade”, defende. Bolsa-estupro Sônia cita um outro projeto de lei (PL) para mostrar essa característica dos legisladores. “Há um projeto que prevê o pagamento de uma ‘mesada’ para as mulheres que engravidaram após serem violentadas sexualmente, mas não abortaram. Ape-

lidamos de ‘bolsa-estupro’. É absurdo, retrocede em um direito adquirido e ainda deixa ainda mais culpada a mulher que opta por fazer, como se a opção pelo interrompimento fosse apenas financeira”, protesta Sônia. A discussão acerca do aborto de anencéfalos é outro tema que mostra “a falta de coragem de nossos legisladores”, define Maria Berenice. A advogada explica que a lei que hoje vigora é de 1940, época em que a tecnologia não permitia saber se um feto era mal formado, o que não ocorre hoje. “Há que se atentar a situação da própria mulher, como impor a uma pessoa a situação de carregar por nove meses uma criança que vai morrer?”, questiona. Entretanto, dado à pressão da sociedade, a maioria dos juízes tem deferido o pedido das mulheres que optam por interromper a gravidez de um anencéfalo.

Justiça do MS condenou mais de 70 mulheres Em abril de 2008, a polícia civil estourou uma clínica clandestina em Campo Grande (MS). Na operação foram apreendidos todos os prontuários médicos encontrados. Após uma seleção, descartando os que apontavam procedimentos já prescritos, restou uma lista com nomes de 2 mil mulheres – centenas foram chamadas a depor, algumas indiciadas e tiveram que responder a processo. Cerca de 70 foram condenadas. A pena pode ser cumprida por meio da prestação de serviços comunitários. O juiz Aloízio Pereira dos Santos, da Segunda Vara Cível, encaminhou a maior parte delas para prestar serviços em creches, ou seja, para cuidar de crianças. Para Maria Berenice Dias, advogada e ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a Justiça atuou de maneira absolutamente legalista e fora da realidade. “O efeito psicológico nas mulheres é muito perverso. Fazer aborto já não é uma coisa fácil, [e a criminalização] coloca a mulher numa situação ainda mais complicada”, pontua. (DM)

Aborto, uma realidade acordo com dados da ONU, cerca de 20% das gestações do mundo são interrompidas, sen• De do pouco menos da metade de forma clandestina. maioria dos abortos é feita em países pobres. Em 2003, dos 42 milhões das ocorrências, 23% • Aforam nos países ricos, 77% nos pobres (incluindo a China; sem esse país, cai para 59%). Ao contrário do que muitos acreditam, o número de abortos apresenta tendência de queda • em países onde é legalizado. Na China – onde a prática é permitida desde 1957 – de 1995 a

2003, o número caiu 20%. Na Europa, de 1993 a 2003, caiu 44%. Já nos países pobres, o número diminuiu apenas 1,4%.

Hoje, 94% das interrupções feitas na América Latina são clandestinas e inseguras; na Áfri• ca, 98%. 2006, no Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 222.767 internações por com• Em plicações de abortos. O Ministério da Saúde estima que 85% das curetagens decorrem de abortos provocados e 15% de espontâneos.

2007, 565 mulheres morreram vítimas de aborto inseguro no Brasil, de acordo com estu• Em do da Universidade de Brasília e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. a prática é ilegal e muitas mulheres recorrem ao serviço privado após uma complicação • Como (ou não têm nenhuma complicação), não se pode definir ao certo o número de abortos feitos no país. As estimativas do SUS, entretanto, variam de 700 mil a 1 milhão por ano.

acordo com o Banco Mundial, cerca de 68 mil mulheres morrem a cada ano no mundo in• De teiro após submeter-se a abortos clandestinos e inseguros; 5,3 milhões sofrem outros tipos de sequelas, algumas permanentes.

Brasil, 70% das mulheres que decidem abortar vivem uma relação estável, têm entre 20 e • No 29 anos, trabalham, se dizem católicas e têm, pelo menos, um filho, de acordo com pesquisa da Uerj/UnB. As adolescentes fazem apenas 10% dos abortos. (DM)


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américa latina Daniel Cassol

Volta de ministro da ditadura reabre luta por justiça PARAGUAI Familiares de vítimas do regime de Alfredo Stroessner exigem uma resposta sobre o paradeiro de militantes de esquerda desaparecidos

Confronto entre manifestantes e a polícia no dia 1º de maio, em frente ao Sanatório Adventista, em Assunção

Daniel Cassol Correspondente em Assunção (Paraguai) TODAS AS NOITES, desde sexta-feira, 1º de maio, um lado da avenida Kubitschek, em Assunção, fica bloqueado. É que ali se reúnem algumas centenas de paraguaios que se perguntam, por meio de canções, discursos e gritos de guerra: onde estão os desaparecidos da ditadura? Viúvas carregam fotos de seus maridos mortos, filhos exigem saber onde estão suas mães. Acendem-se muitas velas. É uma vigília. Pois, em frente, está o hospital policial Rigoberto Caballero, que, desde o dia 1º, hospeda alguém que pode ter uma resposta. Sabino Augusto Montanaro, ministro do Interior da ditadura de Alfredo Stroessner entre os anos de 1966 e 1989 (veja box sobre a ditadura Stroessner nesta página), retornou ao Paraguai depois de 20 anos foragido em Honduras, onde desfrutava da riqueza adquirida ao longo da era de ouro das oligarquias paraguaias. A volta desse senhor de 86 anos, apontado como responsável por centenas de mortes e desaparições de opositores, reabriu feridas, provocou reações e desencadeou uma série de mobilizações em defesa de justiça nos crimes cometidos pelo Estado. “Há um novo impulso na sociedade e começará uma etapa de muitos casos na Justiça”, acredita Derlis Villagra, integrante da Comissão de Verdade e Justiça, instalada em 2003 e que levantou informações sobre os crimes da ditadura (leia entrevista com Villagra nesta página). O primeiro deles foi o caso do educador Mario Schaerer Prono, morto aos 23 anos. A viúva Guillermina Kanonnikoff pediu reabertura do processo, agora que é possível acionar Montanaro. Mas não são apenas os processos judiciais que estão sendo retomados. De surpresa O ex-ministro do Interior chegou de surpresa ao país na madrugada do dia 1º. Depois das manifestações pelo Dia do Trabalhador, um grupo de militantes de partidos, familiares de vítimas da ditadura e ativistas de direitos humanos se dirigiu ao Sanatório Adventista, onde Montanaro estava internado sob custódia policial. Houve conflito com a Polícia Nacional no momento em que ele era transferido para o hospital-polícia, que, em tese, só deveria receber policiais e seus parentes. O advogado paraguaio Martin Almada, que descobriu parte dos arquivos da Operação Condor (colaboração entre as ditaduras sul-americanas na repressão de militantes de esquerda), retomou sua luta para transformar uma mansão inacabada da família Stroessner em uma universidade popular. No dia 4, agricultores ligados ao Movimento Camponês Paraguaio (MCP)

ocuparam uma mansão no interior do país que também pertenceu ao ditador. A recuperação de bens mal-havidos por próceres da ditadura motivou o presidente Fernando Lugo a constituir uma comissão para realizar um levantamento desses bens e recuperálos para o Estado. No entanto, a maior expectativa é a de que Montanaro possa ser processado pelas mortes e torturas que comandou, e que informe o destino de centenas de militantes políticos. No dia 5, em comunicado à imprensa, o presidente paraguaio se comprometeu publicamente com a busca dos desaparecidos. Um dos homens fortes do regime de Stroessner, Montanaro era o responsável pelas ordens de tortura e execução e, também, teria tido envolvimento com a Operação Condor. “Ele decidia sobre a vida e a morte das pessoas. Perseguia abertamente os que pensavam diferente”, afirma Guillermina Kanonnikoff, viúva de Mario Schaerer Prono. Ela conta que em duas ocasiões falou com o então ministro. “Numa dessas vezes, ele disse que mataram meu marido porque ele constituía um perigo para a paz da República”, conta. Estado de demência? Vítimas da ditadura, familiares de desaparecidos e ativistas dos direitos humanos acertaram reabrir demandas judiciais contra Montanaro e esperam que outros casos apareçam, agora que ele se encontra no país. “Espero que esse senhor esteja em condições de dizer onde estão nossos desaparecidos”, afirmou Rolando Goiburu, filho de Agustín Goiburu, médico e dirigente político desaparecido em 1977, no marco da Operação Condor. A incerteza diz respeito ao estado de saúde de Montanaro. Aos 86 anos, ele sofre complicações da velhice. Uma enfermeira particular, de Honduras, estaria cuidando dele. Rolando Goiburu esteve no quarto onde está internado e diz que o ex-ministro estava lúcido, porém dava sinais de que havia sido sedado. Familiares das vítimas acreditam que a aplicação de sedativos pode estar sendo usada para que ele seja declarado em estado de demência e não precise prestar esclarecimentos à Justiça. “Pude comprovar que ele está lúcido, respondeu perfeitamente as perguntas que o médico lhe fazia. Mas nos demos conta de que seu estado não era normal, no sentido de que estava começando um processo de adormecimento. Isso significa que, alguns minutos antes, lhe haviam aplicado alguma coisa”, afirma. Até o momento, os médicos indicados pelo judiciário e por familiares de Montanaro vêm afirmando que ele não tem condições de prestar esclarecimentos à Justiça. Os ativistas exigem que seja indicado um médico independente para avaliar o ex-ministro.

“Não queremos que ele morra sem dizer onde estão os desaparecidos” Daniel Cassol

De acordo com filho de assassinado pela ditadura, Montanaro era o segundo homem do ditador Alfredo Stroessner de Assunção (Paraguai) Os familiares das vítimas da ditadura paraguaia vêm se mobilizando para reabrir processos contra Sabino Augusto Montanaro, cobrar do governo uma política de direitos humanos e colaborar na recuperação de bens mal-havidos pelos militares. Mas, sobretudo, a luta é para assegurar que o exministro de Alfredo Stroessner permaneça vivo para informar o destino de muitos dos desaparecidos. “O temor que temos é de que não interesse a seus familiares que ele colabore com a Justiça, e sim que ele morra sem pena nem glória”, afirma o integrante da Comissão de Verdade e Justiça Derlis Villagra, cujo pai, de mesmo nome, foi assassinado pela ditadura em 1975.

“Nós sabemos que ele não tem demência, não está louco. Está lúcido, e não há motivos para que ele não responda à Justiça” Brasil de Fato – Quais foram as reivindicações que vocês fizeram em encontro com o presidente Fernando Lugo no dia 4?

Derlis Villagra – Foram três pontos principais. O primeiro diz respeito a uma política de reparação às vítimas da ditadura strosnista, à punição aos culpados, além de garantir que o povo paraguaio saiba o que significou o regime. Outro ponto que exigimos é uma política de Estado para direitos humanos, através de uma secretaria de direitos humanos. E nossa terceira reivindicação foi o cessar das repressões violentas às mobilizações populares, como ocorreu recentemente no dia 1º de maio, em frente ao

“As vítimas precisam contar suas histórias”

Sanatório Adventista. Como o presidente teve a atenção de escutar a todos, surgiram muitas outras propostas. As vítimas precisam falar sobre suas histórias. Ocorreram pedidos específicos, como, por exemplo, que os filhos de familiares que estão com problemas psiquiátricos por causa da repressão possam ser atendidos. Qual era a importância de Montanaro no regime militar?

Era praticamente o segundo homem de Stroessner. A fortuna que acumulou era gigantesca, e os crimes em que está envolvido também são grandes. O temor que temos é de que não interesse ao próprio setor próximo a Montanaro, incluindo seus familiares, que ele colabore com a Justiça, e sim que ele morra sem pena nem glória, firmando a transferência de bens de sua fortuna mal-havida. Nós temos essa preocupação. Não queremos que Montanaro morra sem antes devolver ao povo o que roubou e, sobretudo, sem antes colaborar com a Justiça, as-

sumir sua responsabilidade e dizer onde estão os restos dos desaparecidos. Até agora, os médicos vêm afirmando que Montanaro está em estado de demência. Queremos que seja nomeada uma junta médica independente, que dê um veredicto sobre o estado de saúde de Montanaro. Nós sabemos que ele não tem demência, não está louco. Está lúcido, e não há motivos para que ele não responda à Justiça. Como você caracterizaria a ditadura de Alfredo Stroessner?

Foi uma ditadura que começou em 1954 e, no mesmo dia, morreu um opositor, Roberto Le Petit. Depois, surge uma grande revolta no exército e no Partido Colorado, e Stroessner manda ao exílio muitos dos opositores ao regime. Em 1958, começam fortes repressões ao movimento estudantil. Um ano depois, há uma grande greve operária, que foi fortemente reprimida, momento em que o strosnismo rom-

pe com a tradição sindicalista paraguaia, que vinha crescendo nessa época. Muitos dirigentes são presos ou mandados ao exílio. Nos anos de 1960 e 1970, houve forte repressão à resistência armada que surgiu no Paraguai, promovida pelo Partido Comunista, pelo Movimento 14 de Maio e pelo Partido Liberal, e mais de 100 compatriotas foram bestialmente assassinados. É quando se inaugura uma forma terrível de matar, que depois é imitada pela ditadura argentina: jogar os presos de um avião no mar. Foi a ditadura paraguaia que inaugurou essa prática, através de um general, Patricio Colman, que era um sádico, tinha o costume de guardar em seu roupeiro as orelhas de pessoas que havia matado. Montanaro também esteve envolvido na Operação Condor?

Sim, juntamente com [o ditador chileno] Augusto Pinochet, com [o ditador argentino] Jorge Videla, com as ditaduras de Brasil e Uruguai, operação orquestrada e impulsionada desde o Departamento de Estado dos Estados Unidos, segundo provam documentos atualmente de domínio público.

A que conclusões chegou a Comissão de Verdade e Justiça?

O que podemos provar são 436 mortos e desaparecidos durante a ditadura. A Comissão de Verdade e Justiça registrou também quase 10 mil casos de pessoas que foram torturadas. A quantidade de pessoas exiladas foi impossível de precisar, mas fizemos um cálculo estimando em mais de 100 mil pessoas afetadas indiretamente pela ditadura. (DC)

Os anos Stroessner de Assunção (Paraguai) A ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) foi uma das mais longevas, violentas e corruptas da América do Sul. De acordo com o historiador Enrique Serra Padrós, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o regime utilizou uma fachada eleitoral fraudulenta e massacrou a oposição, abrindo caminho para o enriquecimento de

seus membros, com o apoio da ditadura brasileira. “Apoiado no governo, no exército e no Partido Colorado, e utilizando, por longos períodos, o recurso do estado de sítio, o discurso anticomunista do ditador, tão útil durante a Guerra Fria, encobriu negócios espúrios vinculados à corrupção, ao tráfico de armas e de drogas, ao roubo de automóveis e ao contrabando de produtos eletrônicos”, escreve o historiador no ar-

tigo “O Paraguai de Stroessner no Cone Sul da Segurança Nacional”. Ainda nos anos de 1970, a ditadura paraguaia participou da Operação Condor, a coordenação repressiva integrada pelas ditaduras da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Uruguai, com apoio dos EUA. Deposto em 1989, Stroessner recebeu asilo político no Brasil, onde morreu em 2006, aos 93 anos, sem nunca ter sido condenado. (DC)


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internacional

Por dentro dos impenetráveis campos de detenção dos Estados Unidos Image Courtesy of ICE

IMIGRANTES Trabalhadores estrangeiros retidos em prisões estadunidenses sofrem abusos como espancamento, confinamento em solitária e falta de cuidados médicos

médicos. E que candidatos a imigrantes que têm o pedido rejeitado “podem definhar na prisão indefinidamente se seus países de origem não estiverem dispostos a aceitá-los de volta ou não mantiverem relações diplomáticas” com os Estados Unidos. O relatório, intitulado Presos sem justiça: a detenção da imigração nos Estados Unidos, acrescentou que, entre os imigrantes ilegais detidos durante anos, estão “candidatos a asilo, sobreviventes de tortura, vítimas de contrabando humano, residentes permanentes legais de longa data e pais de crianças cidadãs dos Estados Unidos”. O documento defendeu o uso de alternativas à detenção que, segundo a AI, custam apenas 12 dólares por ano por pessoa, contra 95 dólares para cada detento.

Alfonso Daniels de Florence (EUA) A UMA HORA de carro de Phoenix, capital do Arizona, rumo ao sul, fica a cidade de Florence, onde cerca de metade dos 17 mil habitantes está atrás das grades. É difícil imaginar que essa cidade pacata, no meio do deserto, esteja na linha de frente da guerra dos Estados Unidos contra a imigração ilegal. Cerca de 10% dos estimados 500 mil imigrantes ilegais detidos em 2007 nos EUA acabaram em um dos quatro centros de detenção dedicados a eles em Florence. Grupos de defesa dos direitos humanos denunciam numerosos abusos nesses e em outros centros espalhados pelo país, incluindo espancamento, confinamento em solitária e falta de cuidados médicos, por vezes levando à morte. Numa oportunidade rara, a reportagem teve acesso a uma dessas instalações, o Centro de Processamento de Serviços (CPS) de Florence, um antigo campo de prisioneiros nazistas da Segunda Guerra Mundial, onde centenas de marielitos – refugiados cubanos – ficaram detidos na década de 1980. O CPS de Florence é também um dos poucos centros de detenção administrados diretamente pela Vigilância de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE, na sigla em inglês), órgão do Departamento de Segurança Interna encarregado de garantir o cumprimento das leis do setor. O complexo penitenciário é formado por uma série interminável de edifícios baixos de tijolos protegidos por duas cercas de arame farpado de dez metros de altura, e

Esperança

Agentes do ICE conduzem prisioneiros: órgão é responsável pelo cumprimento das leis do setor

O complexo penitenciário é formado por uma série interminável de edifícios baixos de tijolos protegidos por duas cercas de arame farpado de dez metros de altura, e que abrigam cerca de 400 detentos, entre eles brasileiros que abrigam cerca de 400 detentos, entre eles brasileiros. A maioria chega ao local depois de ser capturada em patrulhas ao longo da fronteira com o México. Lá, permanece detida por 37 dias, em média, ou dez meses, no caso de pedidos de asilo, à maneira do que ocorre no resto do país. E a maior parte acaba deportada.

“Independentemente do caso, garantimos que todos tenham pelo menos uma hora por dia para respirar ar fresco”, diz John Crowther, o diretor da prisão, ao apontar para um grupo de detentos acorrentados que vestiam uniformes vermelhos reluzentes. Crowther sublinha que, conforme as normas da ICE, os prisioneiros que já cumpriram penas criminais (Nível 3, de uniforme vermelho) nunca são misturados aos outros. Eles voltavam da área de recreação, constituída por um pequeno campo de terra de futebol americano, ao lado de uma quadra coberta de basquete e vôlei com alguns aparelhos de ginástica sem pesos. Na entrada, uma placa oferece “aulas de gerenciamento de raiva” gratuitas, com espaço para sete detentos por sessão. Os prisioneiros passam a maior parte do tempo nos alojamentos de tijolos, cada um abrigando 64 pessoas sob vigilância constante. Eles dormem em beliches de ferro enfileirados num quarto amplo. No aposento ao lado, podem assistir à TV ou jogar baralho até as 22h30, quando as luzes são apagadas. “Podemos

Episódios de violência e arbitrariedade Detentos relatam os duros momentos passados em prisões para imigrantes ilegais no Estado do Arizona de Florence (EUA) Abusos, punições arbitrárias e ausência de processo adequado ou auxílio legal são comuns nos centros de detenção de imigrantes ilegais nos EUA. Pelo menos é isso que vários detentos contaram à reportagem, revelando um panorama radicalmente diferente daquele oferecido pelas autoridades. Lee Evans, um empresário britânico de 39 anos, foi detido por agentes da Vigilância de Imigração e Alfândega (ICE) em 2007, a caminho de uma reunião, depois que sua esposa norte-americana supostamente reclamou que o casamento fora fraudulento. Eles estavam separados na época. “Basicamente, você é pego e retirado da sociedade. Você

desaparece. Eu tinha um cachorro em casa, ele teria morrido se meu diretor financeiro não tivesse percebido o que acontecia”, contou Evans. Ele foi levado para o centro de detenção CPS de Florence, onde reclamou das más condições sanitárias. Então, foi transferido para outro centro, administrado por uma empreiteira privada. Ele conta que, na nova prisão, ficava trancado a maior parte do dia numa cela de 6 metros por 3,5 metros com outros 17 detentos e um vaso sanitário no canto. “Éramos tratados como animais. Eles nos colocavam com assassinos e estupradores. Brigas estouravam, gangues mexicanas brigavam com gangues guatemaltecas. Era bem duro”. Duas semanas depois, ele foi libertado após pagar fiança de

7,5 mil dólares, graças à ajuda de um advogado voluntário. Seu caso permanece aberto. Isolamento

Um jovem centro-americano candidato a asilo, que preferiu não ser identificado, por temer represálias, passou três anos em outra prisão de Florence, administrada pelo xerife local. Ele afirma que pediu asilo político via correio expresso e recebeu uma confirmação da solicitação, mas as autoridades o prenderam por permanecer no país com o visto vencido. “Eles [os agentes da ICE] disseram não ter encontrado nada em meu registro, me algemaram e me levaram ao CPS de Florence. Nunca me disseram que eu poderia ligar para meu consulado. Minha impressão era a de estar sem

falar alguma coisa?”, perguntaram temerosos alguns detentos quando entrei. Tive de responder que as autoridades não permitiam. Sistema não é “perfeito”

De volta ao escritório central da prisão, Katrina Kate, diretora da ICE para o Arizona, reconhece que esse sistema de detenção não é perfeito. Ela diz que os processos de apelação podem levar meses e que manter os detentos perto de suas famílias não é uma preocupação, pois distribuílos é como “encaixar as peças de um quebra-cabeça”. Mas Kate negou veementemente as denúncias de abusos generalizados. “Seguimos todas as normas da ICE, essa é a única coisa que importa. O governo dita as regras, não nós”. A diretora insistiu que as instalações são monitoradas constantemente para garantir o cumprimento das normas, mas admitiu que isso nem sempre é feito pelo governo, mas por companhias privadas contratadas pela ICE. No entanto, Jorge Bustamante, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para os direitos huma-

nos dos imigrantes, acusa a ICE de violar as próprias normas de detenção. “O problema é a regra, não a exceção”, afirma. “O abuso verbal por parte dos guardas, os espancamentos e a péssima alimentação são comuns. Os detentos são separados da família e não têm nem sequer o direito de serem atendidos por um advogado gratuito. É terrível”. Bustamante argumenta que uma das principais causas dessa situação é o fato de o sistema de detenção ter crescido mais que três vezes desde o início da década, quando começou a prisão de imigrantes ilegais. Outra razão é a terceirização da maior parte dos mais de 300 centros de detenção, que foram cair nas mãos de empresas privadas e xerifes locais, o que torna o sistema difícil – se não impossível – de monitorar. O escritório norte-americano da entidade de direitos humanos Anistia Internacional (AI) endossou essas acusações num relatório divulgado há poucas semanas. A AI denunciou que 74 pessoas morreram em centros de detenção de imigrantes nos últimos cinco anos por falta de cuidados

Uma das ex-detentas lembrou de duas jovens irmãs equatorianas que foram capturadas no deserto, tentando entrar nos EUA, e passaram dois meses na cadeia sem poder contar à mãe que estavam bem. “A mãe estava convencida de que elas haviam morrido” acesso ao mundo exterior”, contou o jovem. Alguns meses depois, ele foi transferido para outro centro de Florence, onde as condições de detenção pioraram. “Você nunca vê a luz do sol. Se você questiona qualquer coisa, eles o trancam em sua cela, é um inferno”. Ele foi libertado recentemente, ao pagar fiança de 1,5 mil dólares, novamente com a ajuda de um advogado voluntário. Seu caso também continua aberto. Maria Islas, de 37 anos, com dez filhos e residente permanente nos EUA, foi presa por dirigir com a carteira suspensa e por não ter pago algumas multas de estacionamento. Confundida com uma imigrante ilegal, ela passou cinco meses num centro de Florence sob administração privada.

“Ninguém informou meus filhos e minha família. Era possível fazer chamadas a cobrar, mas o telefone de casa estava bloqueado [contra essas chamadas]”, disse ela, segurando o documento que confirma sua identidade. Islas lembrou de duas jovens irmãs equatorianas que foram capturadas no deserto, tentando entrar nos Estados Unidos, e passaram dois meses na cadeia sem poder contar à mãe que estavam bem. “A mãe estava convencida de que elas haviam morrido. Um telefonema faz uma diferença enorme”, disse. Abusos verbais

Ela reclamou que, no centro de detenção, muitas vezes não tinha permissão para sair na hora da recreação, pois o local sofria de “falta de pessoal”. Is-

Qualquer que seja o verdadeiro alcance dos abusos, é cada vez maior a consciência de que mudanças são necessárias. Muitos depositam as esperanças na recém-nomeada secretária de Segurança Interna, a ex-governadora do Arizona Janet Napolitano, também responsável por supervisionar a ICE. O primeiro sinal de mudança surgiu em março, quando 28 trabalhadores detidos numa operação de agentes de imigração foram libertados e ganharam permissão para trabalhar nos EUA. A operação na fábrica da Yamato Engine Specialists, em Bellingham, no Estado de Washington, foi a primeira prisão em massa de imigrantes desde a posse do presidente Barack Obama, em janeiro. No início, a incursão pareceu contradizer sua política de reprimir os empregadores de imigrantes ilegais, e não os trabalhadores. Mas poucos ativistas pró-direitos humanos esperam reformas radicais. “Napolitano consultou sua nova equipe para saber se ela está usando alternativas à detenção satisfatoriamente”, explica Judy Greene, proeminente advogada norte-americana especializada em imigração. “Ela certamente será mais sensível à pressão do público quanto às condições nos centros de detenção, mas as pessoas ainda temem ser sobrepujadas pelos imigrantes ilegais, e essa é a ideia que prevalece” (Opera Mundi – www.operamundi.net).

las acrescentou que os abusos verbais por parte dos guardas eram comuns. “Não podíamos receber visitas frente a frente nem passar algum tempo do lado de fora. Às vezes, eu sentia que estava enlouquecendo. A menos que estivéssemos desmaiadas ou caídas no chão, sangrando ou com algum osso quebrado, o médico não vinha nos ver”. A certa altura, afirmou ela, as poucas atividades na prisão, como as aulas de religião e inglês, foram canceladas porque a imprensa começou a reclamar que imigrantes ilegais estavam sendo misturadas com criminosas comuns. Islas foi finamente libertada quando as autoridades perceberam o engano, mas sua provação não acabou aí. “’Vamos, vamos!’, gritaram os guardas pouco antes de nos levar. Eles nos colocaram num ônibus e nos deixaram na rua às dez da noite sem dinheiro, sem nada, nem mesmo troco para fazer um telefonema”, contou ela. “Quando eles deportam as pessoas para o México, deixam-nas na fronteira sem nem sequer um cartão telefônico para ligar para os parentes. É incrível”, afirmou Islas, que agora planeja criar uma ONG para ajudar esses detentos (AD, do Opera Mundi – www.operamundi.net).


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cultura

Festival em Portugal celebra produção independente Divulgação

CINEMA Em meio a críticas ao monopólio da distribuição, Indie Lisboa reúne 250 filmes e um público superior a 35 mil pessoas Juliana Penha de Lisboa (Portugal)

Monopólio

Um dos principais obstáculos do cinema independente é o monopólio das grandes distribuidoras. Nuno Sena dá como exemplo o mercado português. “[Aqui] o cinema independente tem um circuito de distribuição muito limitado. Ele não está dependente das grandes corporações, [mas] está limitado por elas”, observa. Ele constata que o filme independente tem atualmente poucas chances de ser distribuído em Portugal. Porém, durante o festival, aparece muito público com vontade de ver as produções. Estimativas dos organizadores dão conta de que o Indie Lisboa 2009 reuniu mais de 35 mil espectadores. Mesmo com tamanho público, segundo Nuno Sena, os filmes independentes que não têm contratos assinados com as grandes distribuidoras. “É muito difícil encontrar uma distribuição num mercado tão atrofiado e tão pouco diversificado como o do cinema português”, lamenta. Mariano de Rosa, mesmo conseguindo um financiamento para o seu filme, teve que bancar metade da produção. Ele avalia que o trabalho do produtor independente fica limitado sem esse apoio. “Posso dizer que metade do filme está baseado no meu trabalho pessoal. Há uma grande parte da produção em que só há trabalho e expectativas em ganhar dinheiro. Mas o filme não foi feito por essa razão. Existem várias possibilidades, existem filmes independentes que estão comercialmente pensados. Eu creio que o cinema independente, por ser a película muito cara, sempre precisa de apoio. No geral essa ajuda econômica vem de festivais e do Estado”, conclui.

Quanto

79 trabalhos, apenas, foram exibidos em 2004

Cena do longa-metragem Ballast, de Lance Hammer, que mostra a luta pela sobrevivência de uma família negra no Mississipi (EUA)

250 produções, 51 países e 11 dias de estreias

Cinema europeu domina a mostra

Confira os principais destaques do Festival Internacional de Cinema Independente

Produções do Velho Continente representam 72% dos filmes exibidos no Indie Lisboa de Lisboa (Portugal) O Indie Lisboa recebeu 3,2 mil inscrições de filmes produzidos em 2008 e 2009. Mas a seleção para um festival internacional, feita por oito pessoas, não é tarefa fácil. Reconhecer a diversidade, valorizar a realidade de cada país e apostar em novos talentos fazem parte desse trabalho. Nuno Sena, diretor da mostra, conta que a escolha das películas é a etapa mais interessante do festival. “É importante que esse trabalho seja bem feito porque ele precisa ser justo e equilibrado. Claro que sempre há erros, lacunas e injustiças, mas tentamos guiar-nos pelo único objetivo, que é mostrar o melhor cinema contemporâneo de todo o mundo, produzido nos últimos 16 meses”, explica. Filmes de 51 países participaram do Indie Lisboa deste ano, mas a predominância de realizadores europeus chama a atenção. Só a França apresentou 58 das 250 produções exibidas, seguida pela Alemanha, com 36; Portugal, com 29; e Reino Unido, com 26. As demais nações da Europa contribuíram com outros 31 filmes. Já os trabalhos americanos foram 39, distribuídos entre Argentina (6), Brasil (3), Canadá (5), Chile (2), Estados Unidos (19), México (3) e Peru (1). A seguir estão as produções asiáticas de Afeganistão (1), China (3), Coreia do Sul (2), Filipinas (2), Índia (1), Indonésia (1), Irão (1), Japão (4), Líbano (1), Malásia (1), Tailândia (2) e Turquia (2). E também dois países da Oceania: Austrália (2) e Nova Zelândia (1). Já a África participou do festival com apenas dois filmes, Cobra verde, do produtor alemão Werner Werzog, e Dernier Maquis, do argelino (que foi para a França aos dois anos) Rabah AmeurZaimeche. Equilíbrio Para Nuno Sena, o peso dos europeus pode ser explicado pela proximidade cultural com Portugal. Contudo, ele destaca que a organização do festival destina muita atenção para a cinematografia da América Latina. “Talvez haja continentes e territórios que tenham sido menos privilegiados

de Lisboa (Portugal)

Quanto

39 filmes das Américas

foram exibidos

Reprodução

ENTRE OS DIAS 23 de abril e 3 de maio, aconteceu em Lisboa a sexta edição da mostra que hoje é um dos mais importantes eventos cinematográficos de Portugal. Com o objetivo de descobrir e partilhar do melhor do novo cinema, o 6º Festival Internacional de Cinema Independente – Indie Lisboa – exibiu neste ano 250 filmes em cinco espaços diferentes. Uma clara evolução, se comparado aos 79 trabalhos apresentados em 2004. Entretanto, afinal, o que é cinema independente? São várias as realidades. Tais películas tratam desde temáticas só marginalmente abordadas pelas produções comerciais até experiências pessoais de autores. Tanto podem ter um baixo orçamento como um bom financiamento. Na opinião de Nuno Sena, um dos três diretores do Indie Lisboa, independente é todo trabalho que desafia convenções rígidas. “É um cinema que se pensa enquanto tal, em que cada filme pode ser um objeto diferenciado, autônomo, e não repete só os clichês e fórmulas do comercial. É independente em termos de espírito e de abertura à novidade”, explica. O produtor argentino Mariano de Rosa, que participou da competição internacional do festival com o filme Águas Verdes, acredita que a arte independente está a serviço das ideias. “É uma forma de fazer filme na qual a produção não é o mais importante. Há muitas variantes no cinema independente, mas o mais importante é que a produção está a serviço das ideias, e não as ideias a serviço das produções e do dinheiro que se faz com o filme”, completa.

por nós, como a África, mas também tem a ver com não termos encontrado ainda nesses continentes filmes que nos pareçam essenciais para mostrar em Lisboa. Fomos os primeiros a fazer a mostra do cinema argentino, do romeno e há projetos para as próximas edições de

A África participou do festival com apenas dois filmes mostrar filmes de países que estão fortemente representados em Portugal”, revela. O produtor argentino Mariano de Rosa reconhece que atualmente a Europa é muito importante para o cinema independente, porque ela detém uma produção muito grande. Por outro lado, trata-se de uma porcentagem pequena quando comparada à produção mundial. “Nos Estados Unidos são feitos milhares de filmes, mas só temos acesso a uma pequena parcela. Na Argentina, são realizados muito mais trabalhos, se comparado com Portugal, por exemplo. Mas apenas uma pequena porcentagem sai do país”, observa. (JP)

O 6º Festival Internacional de Cinema Independente – Indie Lisboa 2009 – teve uma extensa programação dividida em nove seções. Na mais importante, Competição Internacional, o destaque foi para o vencedor do grande prêmio de longa-metragem Ballast. A película é a primeira obra do cineasta californiano Lance Hammer e mostra a luta de uma família afro-americana que tenta sobreviver no Delta do Mississipi. Da seção Observatório (espaço de autores mais consagrados), o filme Ruínas, do português Manuel Mozos, ganhou o prêmio Tobis de menção honrosa, por mostrar lugares esquecidos, obsoletos, inóspitos e vazios de Portugal. Em Cinema Emergente (que apresenta novas linguagens cinematográficas), chamou atenção o curta-metragem L’amertume du chocolat (A amargura do chocolate), da francesa Lucile Chaufour, por mostrar dentro da cidade de Paris uma realidade longe do glamour, onde uma mãe solteira e dois filhos vivem no limiar da pobreza.

Herói Indepentente (retrospectivas de autores consagrados – este ano, o alemão Werner Herzog e o francês Jacques Nolot) exibiu o filme Cobra verde, de Werner Herzog, que conta a história verídica de um bandido brasileiro do século 19 exilado na África. A seção Indie Music (filmes com temáticas ligadas à música) apresentou o documentário O homem que engarrafava nuvens, do brasileiro Lírio Ferreira, sobre a história do baião e um de seus principais divulgadores, Humberto Teixeira. Já Director’s Cut (cinema de autor) apresentou o filme Crítico, do brasileiro Kleber Mendonça Filho, com o ponto de vista de 70 críticos e produtores sobre a crítica cinematográfica. Pulsar do Mundo (visões críticas sobre o estado do planeta) contou com o documentário-animação Slaves (Escravos), sobre crianças raptadas por milícias patrocinadas pelo governo do Sudão. Por fim, a seção Indie Junior (filmes para crianças e adolescentes) destacou o filme Leroy, a história de um garoto afro-alemão, do diretor alemão crescido no Rio de Janeiro, Armin Volckers. (JP)

O pulsar do mundo de Lisboa (Portugal) Uma das preocupações da programação do Indie Lisboa 2009, segundo a organização, é incluir filmes com temáticas de dimensão política e social. E dentro desse contexto foi criada uma seção – Pulsar do Mundo – que reuniu 14 filmes. Destes, 11 foram selecionados para concorrer ao prêmio da Anistia Internacional Portugal, uma das entidades associadas ao festival, que premia com mil euros o filme que está mais ligado ao ativismo. O vencedor do prêmio foi o filme Los Herederos, de Eugenio Polgovsky, que mostra um retrato do trabalho infantil no campo mexicano.

“O cinema, enquanto meio de comunicação que chega a um público muito eclético e abrangente, tem a facilidade de tocar muita gente, mostrando realidades que nem sempre são do conhecimento geral ou para as quais muitas pessoas não estariam atentas. A criação de um filme pode ser em forma de ativismo. A contribuição dos artistas para quebrar a indiferença e fomentar o respeito e a observância dos direitos humanos deve ser divulgada de forma a inspirar mais artistas, mas também a formar e informar uma audiência que, por via do cinema, se torna defensora e promotora dos direitos humanos”, explica Irene Rodrigues, diretora de comunicação e imagem da Anistia Internacional Portugal. (JP)


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Boal e a apropriação da arte HOMENAGEM Para o dramaturgo, morto no dia 2, seu trabalho com o Teatro do Oprimido busca transformar o espectador em sujeito atuante, para que possa ser protagonista e transformador da ação dramática

Aldo Gama da Redação A MORTE DE Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, na madrugada do dia 2 deste mês, foi notícia em todos os principais veículos de comunicação da imprensa corporativa. As palavras criavam a imagem de um homem de teatro, brasileiro, que conseguira o sucesso no primeiro mundo com sua obra, sem discorrer ou refletir sobre o caráter de seu trabalho – que, inclusive, o levou ao exílio no começo dos anos de 1970. “Arte é o caminho”, afirmava o dramaturgo em um texto publicado em 2008. E esse caminho é político, engajado na luta contra todas as formas de opressão, resultando em um teatro libertário que busca a transformação do indivíduo e da sociedade. Augusto Pinto Boal nasceu no dia 16 de março de 1931, no subúrbio carioca da Penha, durante o governo provisório de Getúlio Vargas. Desde a infância escrevia e encenava suas histórias para a família, porém seguiu os estudos de maneira convencional, formando-se engenheiro químico. No começo dos anos de 1950, viaja aos EUA para prosseguir com sua carreira acadêmica, buscando PhD em

Engenharia Química, mas, ao mesmo tempo, estuda dramaturgia e assiste a várias montagens no país. Em 1956, já de volta ao Brasil, passa a trabalhar com o Teatro de Arena, companhia que revolucionou a história teatral brasileira ao investir na criação de uma nova linguagem estética para a dramaturgia nacional. Ali dirige uma série de espetáculos, como Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Vianna Filho, e A Mandrágora, de Maquiavel. Alguns meses depois do golpe, em dezembro de 1964, dirige, no Rio de Janeiro, o Show Opinião, que contava com Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão (depois substituída por Maria Bethânia). Considerado por muitos a primeira reação contra a ditadura militar, o texto de Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa fez enorme sucesso e atingiu diferentes setores da sociedade. O Opinião dá início à fase de musicais do Arena, alguns escritos em parceria entre Boal e Gianfrancesco Guarnieri, incluindo os espetáculos Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes. Exílio Em 1971, é preso e torturado por três meses pela ditadura, tendo que deixar o Brasil. Seu primeiro destino é a Ar-

gentina, país de sua esposa Cecília. Depois, passa a trabalhar em vários países, incluindo Peru, Equador e Portugal, e se fixa na França em 1978. Lá cria um centro de pesquisa e difusão do Teatro do Oprimido, o Ceditade (Centre d’étude et de diffusion des techniques actives d’expression). Boal retorna ao Brasil em meados dos anos de 1980, dando sequência ao seu trabalho de tornar acessível a qualquer cidadão a linguagem teatral. Sua principal criação, o Teatro do Oprimido, é, ainda hoje, a metodologia teatral mais conhecida e praticada nos cinco continentes. Meu Caro Amigo No disco Meus Caros Amigos, de 1976, Chico Buarque homenageou Boal com a canção “Meu Caro Amigo”, uma parceria com Francis Hime. No mesmo álbum, Chico grava “Mulheres de Atenas”, música sua com letra de Boal, que é uma adaptação de Lisístrata, escrita por Aristófanes em 411 a.C. Também conhecida como A Greve do Sexo, a peça mostra uma greve de sexo das mulheres para forçar a paz entre atenienses e espartanos, transformada por Boal nos versos “mirem-se no exemplo / daquelas mulheres de Atenas / vivem pros seus maridos /orgulho e raça de Atenas”.

ENTREVISTA

No palco, soluções para a vida real Difundido por todo o mundo, o trabalho do dramaturgo faz com que as pessoas se apropriem da arte Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ) Confira a seguir trechos da última entrevista concedida por Augusto Boal ao Brasil de Fato. O material foi publicado em novembro de 2005, na edição nº 141. Brasil de Fato – Como nasceu o Teatro do Oprimido?

Augusto Boal – Em 1970, quando eu trabalhei uma forma chamada Teatro Jornal, eram doze técnicas para ajudar as pessoas a transformarem notícias de jornal em cena teatral. Foi aí a semente do Teatro do Oprimido. O que aconteceu é que a gente não podia mais fazer teatro, tinha censura, invasão da polícia, prisões e tudo. Aí a gente falou: em vez de dar o produto acabado, vamos dar os meios de produção, a platéia produz o seu teatro. Por que você e o Teatro do Oprimido são excluídos da grande mídia?

Eu acho que todos aqueles artistas que fazem alguma coisa que é extremamente útil para a população e tudo, mas que não tem um gancho, co-

mo por exemplo um ator de televisão conhecido, ou algum outro evento que individualize as pessoas, esses são excluídos. Não é o Teatro do Oprimido, nem eu. É qualquer artista que não fizer assim. É excluído mesmo. Em geral, a mídia se interessa pela individualidade, só. E o que nós estamos tentando é fazer com que o Teatro do Oprimido seja usado em todo o tecido social. Não é ver, por exemplo, onde estão os talentos da favela da Maré. Nós não queremos transformá-los em atores de televisão, não é isso. Agora estamos lançando um projeto novo, que é a Estética do Oprimido. Nosso objetivo não é descobrir qual é o melhor poeta de Jacarepaguá, ou qual é o melhor pintor de tal lugar. Então, o que vocês querem não é o produto final, mas o processo de elaboração?

Sim, o processo estético é mais importante que o produto artístico. Agora, para quê a gente quer isso, não é um capricho, não é? É que a gente vive na Terceira Guerra Mundial, clara, e estamos perdendo. E essa guerra mundial que estamos perdendo é a guerra da informação. Liga a tele-

visão, hoje, e você vai ver somente filmes estadunidenses, e só de violência. Você nota se o filme é estadunidense ou não, de inspiração em Hollywood ou não, se em cada cinco minutos tem um soco, um tiro ou uma explosão. Aí isso é estadunidense. O filme europeu raramente tem isso. E o Teatro do Oprimido, também por não fazer isso não sai na mídia?

Não sai. Porque a gente quer é o contrário, quer que as pessoas, em vez de ficar assimilando, produzam, produzam. Então elas vão questionar, inclusive, as informações recebidas. Se você é obrigado a escrever um poema, depois você se anima, porque os poetas se animam. Entre as domésticas, tem uma que não pára de escrever. Atola a gente de poemas.

Essa é a Estética do Oprimido?

É isso, é fazer com que as pessoas se apropriem da arte. Não sejam massacradas pela informação.

E como é o seu trabalho com os movimentos sociais?

Com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o trabalho é muito bom, mas seria melhor se a gente tivesse meios para isso. Há alguns anos, eles começaram a vir ao Rio de Janeiro, do Brasil inteiro. Trabalharam com a gente durante algum tempo e passamos para eles o que podemos. Depois eles voltaram para seus Estados, Rio Grande do Sul, Pará, Pernambuco etc., e lá eles começaram a desenvolver o Teatro do Oprimido.

ARTIGO

Augusto Boal, lembrança Urariano Mota Os necrológios envergonhados dos jornais se abriram no dia 3 com o registro “Morreu na madrugada deste sábado, aos 78 anos, o diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta Augusto Boal”, para depois, num acréscimo, dizerem coisas como “em 1971, foi preso pelo regime militar, pelas ligações com o Partido Comunista do Brasil. Três meses depois, ao ser

A máquina da mediocridade, do falso, do business, contra a qual tanto lutaste, tenta nivelar a tua pessoa a divertimento solto, foi para os EUA e, em seguida, para Argentina e Portugal”. E as folhas mais mostram quanto mais escondem, pois fica patente o constrangimento do registro do falecimento de um homem como tu, ao mesmo tempo que mencionam, de longe, a razão do teu viver. Para os mais jovens, que leem um necrológio de tal natureza, os teus três meses de prisão podem até parecer que foram algo como uma repressão passageira, leve, pelo crime de uma ideologia clandestina. Historinha dos mais velhos. Isso porque, nesses registros, o pano de fundo do Brasil da ditadura, o teatrinho dos tiros trocados entre terroristas e patriotas, a tortura, os assassinatos, a infâmia do Brasil de quando foste preso, “já passou, não é?, a dorzinha foi embora”. É a isso que chamam edição, a nova edição: omitir em primeiro lugar, para depois torcer, distorcer, insinuar coisas que são veneno. Quem te mandou ser ligado a partido ilegal? Se saímos dos jornais e vamos para as grandes redes na web, dos provedores, recebemos a tua penúltima notícia como “Na década de 70, por estar exilado do país pela ditadura militar, difundiu seu método pela Europa. O seu trabalho pelo Teatro do Oprimido rendeu uma indicação ao Prêmio Nobel da Paz em 2008”, e a tua foto, sem a substância do que eras, apenas o rosto de um coroa meio maluco, cabeleira grisalha, assanhado, camisa florida – dói na retina. A tua mais recente no-

tícia se insere no menu de “famosidades”. Estás em um menu onde Amy Winehouse desmaia no Caribe, Ivete vai homenagear a mãe em tributo ao Rei, o cunhado de Britney sai do hospital. A máquina da mediocridade, do falso, do business, contra a qual tanto lutaste, tenta nivelar a tua pessoa a divertimento. Isso quando apareces, porque em outros portais nem te deram o desprezo de a gripes e porcos te misturarem. Para te dizer adeus, como a lembrar a composição que Chico Buarque te dedicou em “Meu Caro Amigo”, nada melhor que um trecho da carta do MST endereçada a ti, que a web livre divulgou por esses dias: “Generoso, expôs sempre, por meio dos relatos de suas histórias, seu método de aprendizado: aprender com os obstáculos, criar na dificuldade, sem jamais parar a luta”. Leio a frase e me ponho a pensar, a ruminar, em como teria sido bom se tivesses cruzado o caminho de um adolescente magro e faminto do subúrbio de Água Fria, zona norte do Recife. Sem pai, sem mãe, de patrimônio só o desejo, um dia aquele menino em 1965 quis ser ator. Sim, que mais queria, o que só queria? Ser ator de teatro, por que não? Então ele se dirigiu e procurou estímulo com um endinheirado empresário, que se dedicava ao teatro nas horas vagas.

Melhor lembrar-te ressurgido, a continuar tua vida no corpo e alma desses artistas que se erguem e no meio da humilhação continuam, apesar de tudo, a andar, andar – Seu Costa, assim, sabe?... será que o senhor, que conhece tanta gente, será que não podia me indicar para trabalhar no teatro? Seu Costa em 1965 divertia-se no Teatro de Amadores de Pernambuco, lugar de classe média muito sensível naquele tempo. O novo burguês então olhou o rapazinho de cima a baixo, mediu o jovenzinho que de gente era só olhos:

– Você?! Você entrar para o teatro?! É o mesmo que entrar em mato sem cachorro. E o adolescente de 14 anos desistiu do teatro, de amadores e profissionais para sempre. Penso agora em como teria sido bom que ele, em 1965, soubesse que no teu teatro havia uma saída. Ao ler a carta do MST há pouco, sinto que não poderia dizer “Nós, trabalhadoras e trabalhadores rurais sem-terra de todo o Brasil, como parte dos seres humanos oprimidos pelo sistema que você e nós tanto combatemos, lhes rendemos homenagem e reforçamos o compromisso de seguir combatendo em todas as trincheiras”. Eu não lavro o campo, nada sei plantar, não crio galinha, nem mesmo tenho a coragem da luta pela terra desse movimento. Mas bem posso lembrar outros oprimidos. Lembro um artista no bar Marola, em Olinda, que pedia dinheiro como pagamento para escrever nomes de clientes em grãos de arroz. Como são eloquentes os artistas! Como sabem simbolizar com a precisão da flecha que atinge o olho da mosca. Para comer, esse artista no Marola escrevia minúsculo em grãozinho de arroz. Era um jovem, pálido, e é interessante como o vejo vestido em túnica grega a desenhar a mediocridade de toda a gente em grãos miudinhos. Melhor que a sua arte era o orgulho da sua arte. Enquanto percorria as mesas ele era insultado. Dele zombavam os miseráveis com dinheiro na carteira: – Se eu fosse viver disso... – Planta arroz, dá mais futuro... Enquanto ouvia isso, ele e seu orgulho, albatroz ferido, cantava baixinho: “Ponta de areia, ponto final, da Bahia a Minas, estrada natural. Que ligava Minas ao porto, ao mar, caminho de ferro...” andar, andar. Por isso escrevo ao fim. Em lugar da visão do teu corpo a queimar, o corpo, só o corpo, aquilo e aquele que não mais é Boal, em lugar de qualquer visão mórbida, melhor lembrarte ressurgido, a continuar tua vida no corpo e alma desses artistas que se erguem e no meio da humilhação continuam, apesar de tudo, a andar, andar. Urariano Mota, jornalista e escritor pernambucano, é autor de Os Corações Futuristas, romance cuja narração reflete a ditadura de Emílio Garrastazu Médici (1969-1975).


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