Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 324
São Paulo, de 14 a 20 de maio de 2009
R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Douglas Mansur/Novo Movimentos
Leandro Uchoas
Pamel San Martín
Rio entrega a saúde e a educação para a iniciativa privada
Na África, crise deve provocar mais violência contra mulheres
A Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou um projeto de lei que permite a gestão de serviços públicos pelas chamadas organizações sociais (OSs). críticos da proposta afirmam que além de privatista, ela é inconstitucional. Pág. 3
O impacto da recessão mundial no continente africano deverá fazer com que os homens descontem frustrações em suas esposas. O alerta é de Mwila Chigaga, especialista em gênero da Organização Internacional do Trabalho, em sua sede na capital da Etiópia. Pág. 12
Direita brasileira celebra torturador
objetivo: celebrar os 30 anos da morte de um dos maiores torturadores que o Brasil já conheceu. Sérgio Paranhos Fleury, ex-comandante do Dops, um dos mais temidos órgãos da repressão na época da ditadura civilmilitar. A missa, realizada em São Paulo no dia 6, foi conduzida pelo Frei Yves Terral que, em entrevista, decretou: Págs. 2 e 7 “Deus o criou bom”. Reprodução
Uma coroa de flores com uma faixa pendurada que diz: “herói nacional”. Um panfleto com a foto do homenageado. Carros luxuosos com adesivos defendendo o porte de armas. Homens de terno, cabelos brancos, mulheres tingidas de loiro ou ruivo. Conversas animadas do lado de fora. Um frei sob medida para a ocasião. A nostalgia no ar tinha um único
Chilenos protestam: escola formou 64 mil militares em 63 anos
Após 63 anos, Escola das Américas permanece ativa A América Latina conta dezenas de milhares de mortos vitimados entre as décadas de 1960 e 1980 pelas ditaduras da região. Mesmo assim, aos 63 anos, um centro estadu-
No Equador, medidas para democratizar a mídia O Equador dará um importante passo para aprofundar a democracia no país: no dia 19, uma Comissão de Auditoria das Concessões de Frequências de Rádio e Televisão apresentará resultados de uma pesquisa sobre a conjuntura da comunicação. Além disso, recomendações para combater a concentração dos meios de comunicação estarão no documento. Pág. 10
nidense de formação de torturadores e assassinos segue deixando seus frutos. Em atividade, a Escola das Américas ainda recebe militares de diferentes países. Pág. 9 Reprodução
Pessoas caminham pela 5ª Avenida, em Nova York: crise atinge todos os setores da vida dos moradores da cidade
Nova York: a crise no coração do Império Pobreza assombra cidade símbolo do capitalismo Os novaiorquinos não saem mais às compras e nem vão com tanta frequência aos badalados restaurantes
da cidade. O dinheiro está curto até mesmo para contratar serviços contra pragas, como as baratas que se pro-
AFOGANDO EM NÚMEROS
liferam. O relato, especial para o Brasil de Fato, é da correspondente Memélia Moreira. Pág. 11
Reprodução
Conferência inédita sobre comunicação No final deste ano, uma das reivindicações históricas dos movimentos pela democratização da comunicação se materializará. Está prevista para os três primeiros dias de dezembro a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação. Entretanto, um dos receios das organizações populares é que entidades empresariais monopolizem o debate. Pág. 4
Entre janeiro e abril, a incidência de dengue caiu 49% em relação ao mesmo período de 2008. Ainda assim, 226.513 brasileiros contraíram a doença. Em relação ao total de infectados pela gripe suína (5.251),
Cinema Marginal A volta do
Pág. 8
o número de afetados pela dengue é 43 vezes maior.
ISSN 1978-5134
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editorial A GRAVE CRISE econômica, originada nos Estado Unidos e que rapidamente se “globalizou”, colocou em xeque os paradigmas dos neoliberais. Até ontem, eles deificaram o mercado e prestaram louvores ao livre comércio. Hoje, boa parte desses neoliberais são donos de empresas falidas ou estão nas ante-salas dos governos em busca dos cofres públicos para socorrer seus negócios, acobertar suas incapacidades e irresponsabilidades e tentar reorganizar um novo ciclo do capitalismo. Por isso, a partir dessa crise, proliferou o surgimento de estudos que apontam a necessidade de se fazer uma regulação do sistema financeiro e de repensar o papel das instituições internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Mais do que reformular o papel dessa duas instituições – juntamente com a Organização Mundial do Comércio (OMC) –, se faz necessário responsabilizá-las pelo quando atual. Mas a crise não mexeu apenas com os paradigmas da economia e das políticas neoliberais. É possível observar uma articulação de setores da direita brasileira no sentido de preparar a sociedade para uma retomada da aplicação de medidas repressivas, seja por parte do Estado, seja de grupos paramilitares patrocinados por grandes grupos econômicos. Ainda que dispensem um
debate
A sanha da direita brasileira comando centralizado, esses grupos – dispersos nas forças de segurança pública, mídia corporativa e em setores do Poder Judiciário – atuam conjuntamente na promoção de idéias e políticas conservadores e anti-sociais. Os setores mais reacionários e conservadores das elites brasileiras aproveitaram o momento de instabilidade da economia mundial para se rearticular, ocupando espaços na mídia e no Estado burguês, e, na medida do possível, impor derrotas aos setores progressistas da sociedade brasileira. As eleições internas no Congresso Nacional, para a presidência da Câmera e do Senado, ressuscitando as figuras de Michel Temer e José Sarney e potencializando suas influências nas eleições de 2010, são uma demonstração dessa capacidade das forças direitistas. A rapidez como o Poder Judiciário operou para que o governador do Maranhão, Jackson Lago, tivesse o mandato cassado e ordenando a imediata posse da filha do Sarney, a Roseana, mostram os tentáculos dessas forças reacionárias. Aonde está essa mesma eficiência frente aos escândalos que envolvem a governadora tucana do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius?
Aliás, é ela mesma que nos dá outra prova do que essas forças direitas são capazes ao proibir e reprimir as escolas itinerantes do MST. É inacreditável que, em pleno século 21, a governadora, ao invés de ter uma política de incentivo à educação, se preocupa em criar dificuldades para que a população pobre do campo tenha acesso ao ensino. Mas, certamente foi o atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, pupilo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (ou seria do outro Fernando?), que melhor exteriorizou a sanha dos conservadores, ao se auto-proclamar o porta-voz dessas forças políticas. Quando assumiu a presidência do STF, deixou explicitado o combate aos movimentos sociais. Frente às mobilizações do MST em defesa da reforma agrária, não hesitou em pedir a juízes e governadores para que os sem-terra fossem reprimidos. Sempre sob o manto de ser o Supremo Presidente do STF. Foi necessário que um outro ministro do STF, Joaquim Barbosa, o enfrentasse para que a sociedade conhecesse quem ocupa o mais alto cargo da Justiça brasileira. Ou, ao menos, de acordo com Barbosa, o presidente do STF manda em ca-
crônica
Silvia Ribeiro
Premiando as transnacionais da epidemia
Gama
APESAR DA MANIPULAÇÃO da informação por parte de autoridades e da indústria, não se pode ocultar que o atual vírus da gripe suína (agora assepticamente chamado de influenza A/H1N1) tem sua origem na produção industrial de animais As autoridades conheciam a ameaça de pandemia, porém não deram importância aos avisos de instituições científicas e organizações sociais para não interferir nos interesses econômicos da grande industria alimentar agrícola e pecuária e das transnacionais farmacêuticas e de biotecnologia que lucram com as enfermidades. Para isso, são úteis os enfoques fragmentários que não questionam as causas do problema: medidas de emergência quando os mortos e enfermos não podem ser obviados, enquanto se afirma que a crise se resolve com mais tecnologia controlada pelas multinacionais. Se existem novos vírus, serão encontradas novas vacinas; patenteadas e vendidas pelas empresas. Ainda que fosse encontrada uma vacina para o vírus mais recente, a criação industrial de animais continua sendo uma bomba de tempo para a criação de outros novos vírus. O precursor mais próximo do vírus da influenza suína, que agora se expande pelo mundo foi detectado nas granjas de criação suína dos Estados Unidos desde 1998. Provinha da família de vírus H1N1, causador da gripe de 1918. Em 1998, recombinou com segmentos do vírus da gripe aviária e humana, além de outras cepas de gripe suína, uma recombinação tripla da qual não se tinha registros anteriores. Isso alarmou os investigadores devido o potencial de mutação e converter-se em gripe humana e/ou muito mais patogênica. Em 1999, esse vírus já estava presente em 20,5% dos porcos criados industrialmente de 23 Estados dos EUA, segundo reportou esse ano a publicação Journal of Virology. Vários autores e publicações científicas advertiram nos anos seguintes que esses vírus continuavam recombinando-se nos estabelecimentos industriais de criação de suínos, onde circulavam muitas cepas diferentes, que logo se disseminam através de longos transportes nacionais e internacionais de animais e pessoas em contato com eles. Tanto humanos quanto animais podem ser portadores do vírus, mesmo que não manifestem a enfermidade. Paralelamente, as cepas de gripe
pangas no Mato Grosso. Mais, a direita inverte aquilo que foi sua derrota. Com a derrocada da ditadura civil-militar no início da década de 1980, a reparação aos perseguidos políticos e seus familiares passou a ser encarada pelo conjunto da população como uma questão de justiça. Entretanto, a mídia burguesa não hesita em tratar de forma pejorativa essa questão, referindo-se às vitimas do Estado ditatorial como os beneficiados por uma bolsa-ditadura. Em fevereiro, o jornal Folha de S.Paulo, em seu editorial do dia 17, ao criticar a vitória do “Sim” em referendo na Venezuela – resultado que estabeleceu um processo de reeleição ilimitada de políticos em cargos eletivos naquele país – comparou o processo venezuelano com as ditaduras militares latino-americanas e classificou a brasileira como “ditabranda”. Essa chamada grande mídia escancara cada vez mais sua posição de classe e seu caráter reacionário Frente a essas manifestações direitistas da mídia, de setores do poder judiciário e do destaque dado a figuras políticas ligadas à ditadura militar, os responsáveis por uma das mais vergonhosas páginas da his-
humana também recombinaramse, da mesma forma que as da gripe aviária -produzindo por exemplo a “famosa” gripe aviária H5N1, causada igualmente por condições industriais de criação. Por isso, cientistas advertiram que a ameaça de criar uma cepa de vírus que afetasse e se transmitisse entre seres humanos era iminente. Isso se confirmou com a atual epidemia e pode acontecer novamente: as causas continuam intactas. Os vírus da gripe facilmente recombinam-se; porém, certas condições fazem com que o processo se acelere: a criação de resistência dentro do organismo infectado, ou que duas ou mais cepas diferentes infectem um organismo ao mesmo tempo. Ambas condições são cotidianas nas granjas industriais. Pela quantidade e condições em que ficam os animais, a atmosfera infecta e quente, sempre existem distintas cepas que circulam e podem infectar um animal simultaneamente. Por isso, recebem sucessivas doses de vacinas, que criam resistências e, como resposta, os vírus sofrem mutação. O contato entre porcos, aves de criação e aves silvestres, insetos, micróbios e humanos é permanente e inevitável dentro e a partir dos estabelecimentos, promovendo a recombinação de cepas de diferentes espécies. Os estressados animais recebem também hormônios, antibióticos e são pulverizados regularmente com inseticidas, o que debilita seu sistema imunológico e provoca o aumento de medicamentos. Tudo isso junto a milhares de toneladas de esterco vai para os tanques de oxidação das granjas, contaminado águas e o ar. De modo semelhante isso acontece nas Granjas Carroll (de-
nunciada como um dos focos de origem da epidemia no México) e em outras instalações da própria Smithfield, Tyson Cargill e outros grandes criadores. A organização Mundial da Saúde (OMS) conhece bem esse panorama, por isso é uma vergonha que tenha mudado o nome de gripe suína (que também assola os humanos) para o neutro “influenza A/H1N1”, para desvincular as empresas de criação industrial de porcos do que realmente são: causadores da epidemia. Da mesma forma é absurdo que o governo do México subsidie os criadores industriais de porcos, destinando milhares de pesos para que a indústria possa ressarcir-se das perdas econômicas devido à epidemia que eles mesmos provocaram. Sete empresas transnacionais de criação de porcos -ou associadas a grandes criadores mexicanos-, entre as quais se encontra Granjas Carroll, detêm 35% da produção suína no México. Além de criar catástrofes de saúde e ambiente, esses oligopólios e suas granjas massivas têm prejudicado seriamente os criadores de porcos e de frangos (camponeses e de pequena escala). Lá também pode haver vírus; porém, é difícil que sejam encontradas várias cepas ao mesmo tempo; e mesmo que assim fosse, nunca criarão uma epidemia porque são poucos animais em espaços separados uns dos outros. Em vez de atacar as causas da epidemia, os que a produzem são premiados. (Artigo publicado em 9 de maio no jornal La Jornada, México. Tradução para o português: Adital). Silvia Ribeiro é pesquisadora mexicana do grupo ECT.
tória do nosso país se encorajaram para vir a público. Na noite do dia 6, foi celebrada uma missa, na igreja Nossa Senhora de Fátima, no bairro do Sumaré em São Paulo (SP), em memória ao 30º aniversário da morte do delegado de polícia e torturador, Sérgio Paranhos Fleury. Estiveram presentes parentes, amigos, delegados aposentados, representantes da TFP (Tradição, Família e Propriedade) e agentes do serviço reservado da polícia. A missa foi convocada pelo delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, conhecido como Carlinhos Metralha, integrante da equipe do homenageado. Em sua convocatória pela internet, Metralha fazia o seguinte chamamento: “familiares, amigos, ex-policiais do DOPS e informantes contam com sua presença à missa”. (Leia matéria na pág. 7). Cabe às organizações populares e democráticas defender os valores democráticos e frear essa ofensiva da direita. A manifestação feita em frente ao jornal Folha de S.Paulo, após o editorial da “ditabranda”, e a manifestação em Brasília em resposta à atuação do presidente do STF mostram que a sociedade está atenta e disposta a lutar para preservar as conquistas políticas que já obteve. Certamente essas forças reacionárias exigirão dos progressistas uma capacidade ainda maior de organização, de mobilização popular e de atuação na política brasileira.
Luiz Ricardo Leitão
Terrorismo: etapa ulterior do capitalismo A EVOLUÇÃO CAPITALISTA ao longo dos dois últimos séculos tem sido descrita com enorme rigor e lucidez por distintos pensadores e líderes políticos. Às vésperas da Revolução Russa, em 1916, Lênin logrou dissecar o novo estágio de acumulação de capital, com seu texto clássico – Imperialismo, etapa superior do capitalismo –, em que salienta a superação da livre concorrência burguesa pela emersão dos monopólios na Europa e EUA, denunciando o papel da Grande Guerra interimperialista na divisão dos mercados mundiais. Aqui nas Américas, antes mesmo de Lênin, o genial cubano José Martí, durante o seu exílio em Nova Iorque, escreve, no limiar da década de 1890, os seus Apontamentos sobre os EUA, a fim de consignar “duas verdades úteis à Nossa América”: “o caráter cruel, desigual e decadente dos Estados Unidos” e a existência, no Império do Norte, de todas as violências e imoralidades cuja culpa se costuma atribuir aos povos hispano-americanos (os chicanos)... Pois este humilde cronista gostaria muito que esses notáveis pensadores estivessem entre nós, a fim de analisar, com a sua clarividência inigualável, o momento singular que o ciclo do capital vivencia. Esgotadas as (parcas) alternativas que o implacável receituário do Consenso de Washington impunha à Nossa América, testemunhamos, em meio à grave crise econômico-financeira do sistema, a agonia moral e social do neoliberalismo, cujo expediente último de sobrevivência parece ser a explosão de desfaçatez e terrorismo a que assistimos ao sul do Rio Bravo. Que o diga o recente episódio da “gripe suína”, em que a manipulação dos fatos pela mídia vai bem além de tudo quanto já viram estas retinas tão fatigadas. A julgar pelo noticiário da Vênus Platinada, a famigerada “gripe A (H1N1)” é a oitava praga do Egito, um verdadeiro ‘castigo dos deuses’ que se abate sobre os homens. Para a mídia fundamentalista, seria uma heresia correlacionar a epidemia à terrível degradação ambiental provocada pela expansão em máxima escala da criação de suínos e aves em zonas paupérrimas do México, país que, há décadas, serve de imundo quintal às corporações agroindustriais made in USA. Por certo, até mesmo na grande imprensa de Bruzundanga houve quem reconhecesse “um aparente contraste” entre os padrões exibidos pela doença nos dois países, espantandose com o fato de que, em 1.204 infecções documentadas, se registraram 44 mortes no México, ao passo que nos EUA houve apenas 2 óbitos para 1.639 ocorrências. É óbvio que o cinismo globalizado nada pretende explicar, e sim naturalizar. As tragédias são obras dos deuses, e não do agudo desequilíbrio ecossocial provocado pela voracidade do capital, ainda que as maiores – e, praticamente, as únicas – vítimas dos cataclismos sejam os miseráveis, os ‘párias sociais’. O furacão Katrina, em 2005, devastou Nova Orleans e uma imensa área ao sul dos EUA, com dezenas de vítimas fatais e milhares de desabrigados, que, um ano depois, permaneciam abandonados, enquanto as empreiteiras de Tio Sam disputavam os “editais” de ‘reconstrução’ dos prédios arruinados. Em Cuba, contam-se em uma das mãos os mortos após a passagem dos ciclones e, apesar da pobreza da ilha, o Estado ampara imediatamente as vítimas, conforme pude testemunhar nos anos em que lá vivi. Não foi por acaso, pois, que o jornalista Mário Jakobskind considerou a gripe suína “no mínimo estranha”. Por que ela é tão badalada, ainda que no México morram a cada ano 15 mil pessoas por doenças das vias respiratórias, fato praticamente ignorado pelos meios de comunicação? Por que não se investigam as denúncias contra as granjas Carroll, empresa do grupo Smithfield Foods, que polui o Estado de Veracruz com os dejetos de 950.000 porcos? Por que, na semana de um 1º de Maio em que se realizariam grandes manifestações contra a política econômica de Felipe Calderón, o governo passou a preocupar-se com os seus cidadãos, recomendando-lhes que não saíssem às ruas? Enquanto isso, duas transnacionais à beira da falência se credenciam como os únicos fornecedores de remédios para a suposta pandemia, aumentando bruscamente a cotação de suas ações nas bolsas de valores... Por isso, a imagem que não quer calar é aquela que, de modo quase furtivo, se publicou em um ou outro jornal da colônia, em que um mexicano solitário exibe aos fotógrafos, no meio da avenida quase deserta, um cartaz onde se lê Terrorismo de Estado. Que magníficos ensaios Lênin ou Martí não escreveriam, inspirados por esse combatente dos tempos pós-modernos, ajudando-nos a compreender, em profundidade, esta nova etapa – terrorista e globalizada – do capitalismo transnacional espetacular. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Luís Brasilino • Subeditor: Igor Ojeda • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Joana Tavares • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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Com OSs, Rio de Janeiro privatiza setores da educação e da saúde ECONOMIA Aprovado na Câmara Municipal, projeto das organizações sociais submete órgãos públicos à administração privada
APÓS LONGA discussão, e surpreendentes mudanças de posição, os vereadores do Rio de Janeiro (RJ) aprovaram no dia 5, por 39 votos a 11, a submissão da responsabilidade pela gestão de áreas sociais às organizações sociais (OSs) – entidades privadas, sem fins lucrativos, que recebem dinheiro público para administrar determinados serviços. Na prática, o projeto representa a privatização de setores da Educação, Saúde, Cultura, Meio-ambiente e Ciência e Tecnologia. Com a decisão, a prefeitura carioca ganha carta branca para contratar instituições, organizações sem fins lucrativos, sem a necessidade de licitação. Na Educação, uma emenda restringiu a atuação das OSs apenas às creches e ao reforço escolar. O município tem 254 creches, que atendem a 29.347 crianças. Mas Wiria Alcântara, do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE), pondera que isso não pode ser caracterizado como uma vitória. “Creche também é ensino. E com o reforço escolar, já entra [a privatização] nas escolas. Isso significa que as OSs vão estar nas 1.054 escolas da rede [de ensino público]. Esta tem uma carência de 16 mil docentes. Se as OSs entram no reforço escolar, ela está substituindo a carência de um docente. Concretamente, elas entraram na educação fundamental”, explica. Na Saúde, tais organizações poderão ser utilizadas em novas unidades. Na prática, isso significa delegar às instituições privadas a gestão das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) – principal proposta de governo do prefeito Eduardo Paes em 2008, quando era candidato. Adesão suspeita
A aprovação do projeto não foi fácil. Sindicatos e movimentos sociais acompanharam o processo desde o início e conversaram individualmente com cada vereador. A sensação era de que a proposta não seria aceita. Um substitutivo do vereador Carlo Caiado (DEM), aprovado inicialmente na Câmara, adiou a votação. No momento em que o projeto entrou em pauta, alguns vereadores que tinham assumido o compromisso de votar contra, surpreendentemente mudaram de posição. “Desde o dia em que conseguimos impedir o trâmite, com o substitutivo, ele [Eduardo Paes] começou a fazer reuniões, cafés-da-manhã com grupos de vereadores. Vários parlamentares, que eram contra o projeto, passaram a ser a favor”, conta Alessandra Souza, do Sindicato dos Trabalhadores em Previdência Social, Saúde e Trabalho (Sindsprev) e que, como Wiria, acompanhou toda a tramitação. As sindicalistas acusam o prefeito de ter oferecido benesses em troca de votos. Rafael Freitas seria um exemplo. Filho do vereador Aloísio Freitas (DEM), ele recebeu um dos mais significativos postos do município no dia seguinte à primeira aprovação do projeto. O cargo de assessor especial da Subsecretaria de Planejamento Estratégico, da Secretaria Municipal da Casa Civil, consta no Diário Oficial de 30 de abril. O parlamentar foi um dos que havia assumido compromisso de votar contra o projeto, mas na última hora mudou de opinião. Desregulamentação
Ao submeter às instituições privadas a administração de áreas públicas, a Pre-
A professora da Escola Municipal Joaquim Nabuco, Maria de Fátima Pereira, explica que “nessa concepção de educação, a escola só teria que formar mão-de-obra” Os sindicatos também planejam recorrer a todos os fóruns possíveis. “Vamos apelar para a justiça, para a OAB; a todos aqueles que foram nossos aliados ao barrar a aprovação automática nas escolas municipais”, afirma Wiria, referendo-se à suspensão do modelo de ensino adotado pela gestão municipal anterior. O Sindicato dos Profissionais de Educação marcou paralisação com assembléia no dia 13, para discutir futuras ações. No dia seguinte será a vez do Sindsprev. Privatismo
Os críticos são unânimes em apontar o caráter neoliberal do projeto. Cíntia diz que em sua área existe “uma clara tendência de priorizar o orçamento para outros fins”. A professora da Escola Municipal Joaquim Nabuco, Maria de Fátima Pereira, explica que “nessa concepção de educação, a escola só teria que formar mão-de-obra. Nós, professores, entendemos que a educação está a serviço do desenvolvimento pleno do estudante”. Segundo elas, as organizações sociais obedeceriam aos mecanismos de produtividade do mercado, que não comportam o fator humano. “Esse modelo privatista foi justamente o que gerou essa crise mundial. Quem elegeu o PMDB no Rio foram as forças
Samuel Tosta
Vereadores cariocas aprovam projeto que permite a participação de OSs na administração de serviços públicos
progressistas. Foi o diferencial da campanha. E aqui na Câmara pessoas que têm um lastro de esquerda mudaram, repentinamente, rumo ao neoliberalismo. Isso se dá por conta dessa geléia ideológica que há no país, desde Brasília” acusa Brizola Neto, líder do PDT. Seu partido, como o PT, dividiu-se na votação. Como ele, o vereador Reimont (PT) posicionou-se contra o projeto desde o início. Jorge Manaia (PDT) e Nereide Pedregal (PDT), bem como o líder do governo, Adilson Pires (PT), votaram a favor. A reportagem tentou entrevistar este parlamentar, principal defensor do projeto. Através de sua assessoria, ele pediu para responder as perguntas por e-mail, mas as respostas não foram enviadas. Em entrevista ao programa de rádio Faixa Livre, o vereador Paulo Pinheiro diz que o maior problema não é “nem a questão ideológica, que é muito importante, mas o aspecto técnico. Que instituições têm hoje, na cidade, experiência para gerir algo público na área de Saúde e Educação? Nenhuma. Eu conheço pelo menos cinco exemplos negativos”. Histórico
Surgido durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), o conceito das OSs já foi utilizado no Rio de Janeiro, com formato um pouco diferente. O ex-prefeito César Maia (DEM), por exemplo, submeteu o Hospital Ronaldo Gazzola, conhecido como Hospital de Acari, à administração privada. Na ocasião, a empresa vencedora da licitação assinou um contrato com a prefeitura de 60 meses para receber R$ 340 milhões. Os novos funcionários passaram a ser regidos pela CLT. Havia um plano de metas. O hospital teria que produzir, por exemplo, 250 internações por mês, e 19 mil exames laboratoriais. A gestão do Hospital tem sido sistematicamente criticada. A primeira área a ser gerida pelas organizações sociais serão as vilas olímpicas, herança do Pan-americano. Membros do Executivo e parentes do prefeito estão proibidos de participar das OSs. “Mas isso deveria valer para toda a esfera municipal, para membros do Tribunal de Contas, para vereadores. Temos que acabar com a promiscuidade”, denuncia Brizola Neto.
ENTREVISTA
“Os professores tornam-se aplicadores de receitas” do Rio de Janeiro (RJ) Para o educador Gaudêncio Frigotto, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), as organizações sociais (OSs) são reflexo da desmoralização do público e da fragmentação das forças de esquerda. Brasil de Fato – O que representam as OSs para o município, em relação aos direitos dos servidores públicos? Gaudêncio Frigotto – Acabo de voltar de um seminário em Montevidéu [Uruguai] sobre a profissão docente. Um dos temas que lá levantei foi justamente o caso do Rio de Janeiro, que entrega às organizações sociais, eufemisticamente denominadas de Terceiro Setor, as áreas da Educação e Saúde. Trata-se de um mecanismo de privatização. Na verdade, por essa medida estão desautorizando os profissionais que ali estão por concurso público. Uma medida que veladamente passa à sociedade a idéia de que professores, diretores e profissionais da educação são responsáveis pelas mazelas do setor. Incompetentes e incapazes.
O que isso representa em termos de conteúdo, levando em consideração que o ensino privado tende a ser mais pragmático e menos voltado para a formação humana integral? A sensação que essas medidas estão dando aos professores é de idiotização e desprofissionalização. Passaram anos na Universidade se preparando para o que os identifica como profissão: produzir, organizar e socializar conhecimento. Mas são transformados em aplicadores de manuais produzidos por vendedores de receitas, independentemente dos alunos como sujeitos de cultura e vivendo em contextos específicos. Enquanto os educadores lutam por uma educação integral que leve em conta todas as dimensões da vida, as OSs pautam-se pelo critério de unidimencionalidade mercantil. Um retrocesso sem precedentes.
ção do ensino público. As escolinhas do professor da TV são formas de retratar o professor como um idiota, trabalhando com alunos igualmente idiotas. Um segundo mecanismo tem sido toda a propaganda midiática ao longo dos anos 1990, segundo a qual o setor público é pesado, oneroso e ineficiente. Ao contrário do setor privado, que seria flexível, enxuto e eficiente. A demonização tem se acentuado pelo fato de algumas áreas do conhecimento, como linguagem, geografia, história, educação física, sociologia e filosofia, produzirem materiais que levam o aluno a refletir e a analisar. Isso é visto pela grande mídia, que representa na sua maior parte os interesses da classe dominante, como doutrinação ideológica.
Quais as estratégias, políticas e midiáticas, de demonização do ensino público, e de que maneira isso tem se dado no Rio de Janeiro? Há muito tempo tem se construído, por diferentes mecanismos, a desclassificaSamuel Tosta
Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ)
feitura se liberta de uma série de responsabilidades constitucionais. As OSs estarão livres de seguir o regime jurídico único, de obedecer a lei das licitações e de respeitar a lei de responsabilidade fiscal. “O vereador perde o direito de fiscalizar, porque agora as administrações serão privadas”, diz o parlamentar Leonel Brizola Neto (PDT), um dos maiores críticos do projeto. Com a aprovação, também se entrega às OSs o direito de selecionar profissionais através de “outras modalidades de contratação”. Na prática, o governo abre mão da realização de concurso público, para que se contrate através de outros mecanismos. “A forma de contratação ainda não está clara. Tudo indica, por experiência, que será via CLT [e não por concurso público]. Mais um motivo para ser contra”, explica Cíntia Teixeira, do Sindicato dos Nutricionistas (Sinerj). Para ela, o regime iria precarizar ainda mais as relações de trabalho. Segundo os críticos, o projeto é inconstitucional. Argumenta-se que a utilização do termo “organizações sem fins lucrativos” seria uma forma de mascarar a submissão de setores públicos à administração de instituições privadas, o que fere a Constituição de 1988. Alguns dos maiores opositores na Câmara, como Paulo Pinheiro (PPS), Eliomar Coelho (PSOL) e Lucinha (PSDB), já acenaram na direção de questionar na justiça a constitucionalidade do projeto.
Protesto no Rio contra a privatização do ensino
Um dos grandes consensos existentes na sociedade é o de que um país se constrói com investimento público em educação. Por que as pessoas não se mobilizam em defesa do setor? As determinações são de várias ordens. A mais aguda é o que Francisco de Oliveira expõe como um tempo de “indeterminação da política”. Essa indeterminação resulta no fato de que aqueles movimentos e forças, que desde a base, lutavam para por na agenda política seus direitos e interesses, por diferentes razões não o fazem, ou o fazem de forma fragmentada e fraca. Destacaria três aspectos que se potenciam para esta situação de imobilismo. Primeiramente a doutrinação neoliberal que foi incutindo a idéia de que a única alternativa era o desmonte do público. Uma segunda é a profunda fragmentação das forças de esquerda. Finalmente, por um lado, a situação de penúria da população e, por outro a multiplicidade de políticas focais de inserção precária. (LU)
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Limites e perspectivas da 1ª Conferência Nacional de Comunicação Vinicius Mansur de São Paulo (SP) O GOVERNO FEDERAL está convocando para os três primeiros dias dezembro a 1ª Conferência Nacional de Comunicação. Porém, a iniciativa, reivindicação histórica dos movimentos pela democratização da mídia, já vem sendo encarada com desconfiança por entidades do setor. As definições das políticas sobre a comunicação social no Brasil são historicamente marcadas pela prevalência do interesse privado em detrimento do público. Seja nas relações promíscuas por dentro do Estado, com políticos agraciando colegas com concessões de rádio e TV, seja na pesada influência dos empresários na definição das políticas de Estado. Um exemplo emblemático da força do interesse privado no setor aconteceu em 1962, quando o então presidente da República João Goulart estabeleceu 52 vetos ao projeto do Código Brasileiro de Telecomunicações, que tramitava no Congresso Nacional. Durante a votação da legislação, que virou lei 4117, todos os 52 vetos foram derrubados, um a um, em votação nominal, pelo parlamento, respondendo aos interesses dos empresários. Em um Estado regido pela democracia burguesa, a promiscuidade política nunca foi uma característica exclusiva às definições da comunicação. Entretanto, o coordenador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Celso Schröder, destaca uma peculiaridade do setor: os debates sobre mudanças nessa área têm muita dificuldade para se tornarem uma discussão pública e as iniciativas que tentam alguma regulamentação para o setor são rapidamente tachadas de censura ou de ataque à liberdade de expressão. Uma das facetas do poder midiático está na capacidade de expor todas as outras ins-
Os empresários do rádio e da TV temem a entrada das gigantescas empresas de telecomunicação em seu ramo de negócios e, agora, vêem na Conferência uma oportunidade de estabelecer regras que limitem esta participação tituições à avaliação pública – da Previdência à Presidência, do sistema de saúde às universidades, do Judiciário ao Legislativo, dos sindicatos às igrejas, dos clubes de futebol aos movimentos sociais –, enquanto ela raramente se submete à crítica.
O debate É dentro desse contexto que a integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social – Carolina Ribeiro, considera a Conferência “um espaço público que possibilita à sociedade amadurecer o debate e apontar diretrizes democratizantes e universalizantes, observando a comunicação como um direito e não como um negócio.” Após a convocação oficial
da Conferência, por meio de decreto presidencial do dia 17 de abril, iniciaramse as especulações sobre quais seriam os temas abordados nesse processo. Os empresários da comunicação representados pela Sociedade Interamericana de Prensa (SIP) largaram na frente. Afirmando que a Conferência será conduzida por ONGs e movimentos sociais que pretendem interferir no funcionamento da imprensa, eles defenderam que o debate sobre conteúdo dos meios de comunicação não deveria ser abordado. Para a representante do Intervozes, tal colocação é um absurda. Carolina lembra que muitas das entidades que lutam pela democratização da comunicação o fazem justamente porque se sentem estereotipadas e até criminalizadas pela grande mídia. Segundo ela, o monitoramento do conteúdo veiculado na televisão, por exemplo, já é uma pauta colocada pelo movimento feminista e que deve ser abraçada por outras organizações sociais.
Convergência Já de acordo com o presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Daniel Slaviero, a Conferência é oportuna porque a comunicação está mudando em ritmo acelerado. O representante das emissoras comerciais se mostra preocupado com o que chama de “enorme desequilíbrio entre os players do segmento da comunicação”. Com o processo de digitalização, que permite a convergência de mídias, os empresários do rádio e da TV temem a entrada das gigantescas empresas de telecomunicação em seu ramo de negócios e, agora, veem na Conferência uma oportunidade de estabelecer regras que limitem essa participação. Procurada pela reportagem, a Telebrasil, entidade que representa os empresários das telecomunicações na Conferência, não quis se pronunciar sobre o assunto. Celso Schröder, do FNDC, classifica a convergência como uma pauta prioritária. Para ele, a condução desse processo sob a ótica das empresas de telecomunicações coloca em risco o conceito de radiodifusão e a construção da cultura nacional. “Ao FNDC não nos interessa quebrar a radiodifusão brasileira. Nós queremos que ela seja forte, desde que submetida a parâmetros públicos. Nós precisamos de um marco regulatório que estabeleça metas de universalização, metas de produção e metas de regionalização da produção, garantindo pluralidade”, afirma. Produção nacional Schöroder acredita que é possível um processo de negociação com os empresários da radiodifusão que beneficie a população brasileira com uma maior produção de conteúdo nacional. “Podemos chegar a esse acordo, conciliando isso com regulações de outra natureza. Por exemplo, é possí-
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MÍDIA Empresários representam 29% da organização do evento que irá discutir, dentre outros temas, o direito à comunicação
vel implementar no Brasil uma política de contenção de rede, ou seja, redução do tamanho da rede de emissoras de um mesmo grupo. Ou então fazer como nos EUA, onde a concentração de 30% de audiência já é motivo de interferência do Estado”, diz. Para Carolina Ribeiro, a necessidade de adequar o Brasil à nova era digital é urgente, porém não pode atropelar as questões da era analógica ainda não resolvidas, como as concessões de rádio e TV. “Hoje, boa parte do Congresso Nacional é concessionária de rádio e TV. Além disso, os critérios para se conceder o direito a explorar a radiodifusão comercial são puramente econômicos. Assim, os grupos que já possuem uma grande concentração de renda também concentram o poder da voz e da palavra, perpetuando aí um processo de concentração da mídia no Brasil”, coloca.
Diversidade Além da discussão do conteúdo da comunicação brasileira, de um novo marco regulatório para as comunicações e das concessões de rádio e TV, Carolina afirmou que as políticas de incentivo às rádios comunitárias, à mídia livre e à inclusão digital também devem ser temas prioritários. Mas ela salientou a importância do envolvimento da militância social: “A construção de uma Conferência avançada só acontecerá se, desde já, fortalecermos a participação nas comissões estaduais pró-conferência que já existem no Brasil inteiro. Esses são os espaços de mobilização, formação e construção da unidade progressista, democrática e popular”, analisa. A divulgação da comissão organizadora da Conferência pelo governo federal só reforça a necessidade da participação popular no processo. A composição da comissão se dará com 12 representações do poder público, oito dos empresários, sete da sociedade não empresarial e uma da mídia pública.
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representantes do poder público, oito dos empresários, sete da sociedade não empresarial e uma da mídia pública compõem a organização do fórum
Outros fóruns, possíveis modelos Sucesso do evento vai depender da mobilização da sociedade civil Cristiano Navarro da Redação Depois da pressão exercida por organizações da sociedade, o governo federal convocou para dezembro deste ano a 1ª Conferência Nacional de Comunicação no Brasil. Durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, 54 conferências de diversas áreas foram realizadas. O processo, inédito para militantes de comunicação, tem em outras conferências modelos que servem de base para sua organização e mobilização. Marcio Marques de Araújo, secretário da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, enxerga semelhanças na criação das conferências de comunicação com a de direitos humanos. Para o secretário, que acompanha as conferências de direitos humanos desde sua criação em 1996, nos dois casos foram necessárias mobilizações da sociedade civil para que a reivindicação fosse atendida. No entanto, Araújo lembra que o sucesso das conferências depende da capilaridade e mobilização dos envolvidos. Por isso chama a atenção para a importância da participação de dife-
rentes setores da sociedade civil organizada. “O direito humano à comunicação é um meio fundamental para acessar outros direitos. Embora muitos movimentos sociais considerem o debate importante, a pauta ainda não é prioridade”, diz. O movimento em que milita Araújo é um dos que tem dado mais atenção ao tema da comunicação. Desde 2001, em sua sexta conferência, o movimento de direitos humanos tem reivindicado junto ao Estado brasileiro a criação da conferên-
“É importante que haja conferência, porém tenho dúvidas sobre o contexto político e a forma com ela está sendo chamada”, afirma Jerry de Oliveira, que milita com rádios comunitárias cia de comunicação. Fruto desta reivindicação nasceu na conferência do ano seguinte (em 2002) a campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania”. A campanha, que até hoje já
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1.252 rádios comunitárias foram fechadas em 2008.
recebeu mais de 37 mil denúncias, conta com participação dos telespectadores na fiscalização de programas de televisão que promovem o desrespeito aos direito humanos e aos valores éticos. Desconfiança A demora na criação da Conferência de comunicação, a composição da comissão organizadora e, ainda, a violência com que o governo tem tratado a comunicação comunitária têm trazido desconfiança para alguns dos militantes da área. “É importante que haja conferência, porém tenho dúvidas sobre o contexto político e a forma com ela está sendo chamada”, chama atenção Jerry de Oliveira, que há vinte anos milita com rádios comunitárias em Campinas (SP). O comunicador comunitário entende que, durante os seis anos de mandato, o governo federal esteve ao lado dos grandes meios de comunicação. “As milhares de rádios fechadas [só em 2008 a Anatel conta 1252] e a composição da comissão organizadora são provas disso”, atesta. Com o alinhamento entre governo e executivos apontado, Oliveria teme que o governo possa usar os acordos da conferência para ajustar os ponteiros com os grandes empresários mirando as eleições de 2010.
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Um estado para os emigrantes ANÁLISE População que vive no exterior luta pela ampliação dos seus direitos
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Rui Martins A EMIGRAÇÃO BRASILEIRA é recente e, por isso, carece de estruturas próprias, dependendo de associações filantrópicas e religiosas, na maioria. Pequenos empresários emigrantes vivem de publicações para as comunidades locais (jornais e revistas), do comércio e importação de produtos brasileiros, de agências de viagens, envio de dinheiro, bares e boates. Outros, no Japão, de escolas. O governo brasileiro quer inovar criando uma verdadeira política de emigração e está convocando a 2ª Conferência Brasileiros no Mundo para agosto, no Rio de Janeiro, reunindo líderes comunitários, depois de ter sido eleito o primeiro conselho de representantes de emigrantes brasileiros. Embora a maioria das associações de emigrantes tenha se restringido à apresentação de reivindicações locais, um movimento de cidadania voluntário que agrega essa população vem se destacando por adotar uma linguagem política e social em favor de uma autodeterminação dos emigrantes com um projeto inovador, mas calcado na experiência de países de emigração. Trata-se do movimento Estado do Emigrante, que sucede ao dos Brasileirinhos Apátridas.
Com a experiência adquirida nos países estrangeiros, conjugada com o aprendizado de outros idiomas mais uma poupança, muitos emigrantes começam a retornar Primeiros passos A iniciativa por um Estado do Emigrante é recente, mas já tem até uma bandeira, criada pelo cartunista Ênio Lins e inspirada nos Retirantes de Portinari. A proposta possui representantes em muitos países e defende a criação de um órgão institucional emigrante independente, autônomo e laico. Sua apresentação pública como um projeto realizável ocorreu na 1ª Conferência Brasileiros no Mundo, promovida há dez meses, pelo Itamaraty, no Rio de Janeiro, que reuniu representantes de quase 200 associações brasileiras no exterior. O maior trunfo do movimento Estado do Emigrante foi o de ter obtido nessa conferência um abaixo-assinado majoritário em favor da eleição de uma Comissão de Transição, que, junto com o Itamaraty, deverá organizar a próxima Conferência Brasileiros no Mundo e discutir a criação de uma federação, conselho ou Estado. Entre os sete membros dessa comissão escolhidos por votação, o Estado do Emigrantes elegeu dois, um da Europa e outro da Ásia, e já obteve a adesão dos dois membros da América do Sul. Movimento recente, sem dispor dos recursos de uma ONG e sem subvenções, funcionando na base do voluntariado, tem uma preocupação
Fonte: Ministério das Relações Exteriores
social evidente nos seus slogans – pela emancipação dos emigrantes, pela autonomia para assumir o controle do movimento emigrante brasileiro, pela independência aos emigrantes para que sejam os donos de sua própria história, pelo laicismo a fim de marcar uma separação entre suas atividades, destinadas a todos os cidadãos emigrantes, das atividades de associações filantrópicas ou de ajuda ligadas a organizações confessionais. Resistência O movimento já tem também uma história, pois foi o organizador das primeiras mobilizações internacionais de emigrantes brasileiros no exterior, que, por certo, nunca serão esquecidas por terem assinalado os primeiros movimentos sociais dos emigrantes brasileiros unidos por um objetivo definido, organizados e realizados, ao mesmo tempo, em diversos países da emigração. Em junho de 2007, grupos de emigrantes brasileiros reuniram-se em consulados ou embaixadas de Zurique (Suíça), Nagoya (Japão), Washington (EUA), Paris (França) e Telaviv (Israel) para exigir a aprovação da proposta de emenda constitucional (PEC) 272/ 00 que devolvia a nacionalidade brasileira nata aos filhos dos emigrantes nascidos no Exterior. Essa foi a grande mobilização do movimento Brasileirinhos Apátridas para evitar que, em 2012, cerca de 300 mil jovens brasileiros começassem a se tornar apátridas ou perdessem a nacionalidade brasileira em países estrangeiros. Embora no grande Brasil a quase totalidade da população desconhecesse que, na revisão da nossa Constituição em 1994, tinha sido retirada a nacionalidade brasileira dos filhos de brasileiros nascidos no
Exterior. Para serem brasileiros teriam de retornar ao Brasil aos 18 anos e requerer a nacionalidade brasileira junto à Justiça federal. Trajetória Em 2000, o ex-senador Lúcio Alcântara apresentou a PEC 272/00. A proposta foi aprovada rapidamente em duas votações, mas engavetada na Câmara Federal, onde ficou sete anos, até que, sob pressão do movimento Brasileirinhos Apátridas, recebeu o apoio dos deputados Carlito Merss, Rita Camata e Leonardo Alcântara. Ela então foi sendo aprovada e, enfim, promulgada em setembro de 2007. O movimento por um Estado do Emigrante é a sequência do movimento pelos filhos da emigração, desta vez voltado para os adultos. Seu objetivo principal é o de dar aos próprios emigrantes a oportunidade de normalizarem a sua condição, ou seja, criarem e instituírem todas as normas destinadas à proteção e reconhecimento da emigração. Segundo documentos do Itamaraty distribuídos na 1ª Conferência Brasileiros no Mundo, metade dos emigrantes brasileiros são mulheres (chegam a 80% na Suíça, onde a maioria emigrou por casamento) e a maioria é de trabalhadores não qualificados e com pouca instrução, facilmente explorados nos países onde chegam. No Japão, por exemplo, a maior parte se submete a uma carga horária de dez horas diárias e seus filhos não conseguem se integrar na sociedade local por frequentarem escolas brasileiras, que não os habilitam a prosseguirem os estudos nas escolas superiores japonesas. Nos Estados Unidos, centenas de milhares vivem a angústia de serem indocumentados ou sem-papéis, apesar de ali terem chegado há dez anos. Bandeira do Estado do Emigrante
Redução A emigração brasileira começou nos anos 80 e se ativou nos anos 90, chegando a um número estimado de quatro milhões, porém, atualmente, há uma tendência de diminuição em consequência da crise, principalmente nos EUA, escasseando os empregos e não mais compensando uma vida de privações. Por isso, com a experiência adquirida nos países estrangeiros, conjugada com o aprendizado de outros idiomas mais uma poupança, muitos emigrantes começam a retornar. A esses retornos voluntários juntam-se os retornos forçados, ou expulsões ou ajudas para o retorno, que irão diminuir o total de emigrantes brasileiros. Porém, uma grande parcela, já documentada e residente há mais tempo no exterior, não pretende retornar, mesmo porque muitos desses emigrantes já obtiveram a cidadania local e se tornaram binacionais. Os que retornam irão se defrontar imediatamente com a questão do tempo de serviço para fins de aposentadoria. Para evitar novas injustiças no futuro, para que o tempo de trabalho no estrangeiro seja contado com o tempo de trabalho no Brasil, e vice-versa no caso dos que continuarão vivendo no Exterior, são necessários acordos bilaterais do governo federal com os países de emigração. Por isso, o organograma do Estado do Emigrante prevê uma independência interativa com os diversos Ministérios, no caso da aposentadoria, como o do Trabalho e das Relações Exteriores. Atualmente, todos os documentos – nascimento, casamento, óbito – emitidos pelos consulados precisam ser transcritos no Brasil. O Estado do Emigrante quer simplificar e tornar automaticamente válidos no Brasil todos os documentos consulares e uma proposta, atualmente na Câmara, prevê a possibilidade de serem pronunciadas sentenças para divórcios amigáveis nos consulados válidas no Brasil sem necessidade de homologação pelo STF. A homologação é mera formalidade administrativa, que custa caro aos emigrantes, mas sem ela não pode haver transcrição nos cartórios brasileiros do divórcio no estrangeiro. Rui Martins é jornalista brasileiro que vive em Berna (Suíça). Criou a Brasileiros Apátridas e propõe o Estado dos Emigrantes.
Unidade seria rica e populosa Calcula-se entre dois a quatro milhões a população emigrante brasileira dispersa entre países. Estes enviam ao país entre 5 a 7 bilhões de dólares, que são na maioria destinados à construção de casa própria, poupança ou manutenção de familiares. Esse total irá aumentando à medida que muitos emigrantes aposentados decidirem retornar e receber no Brasil suas pensões.
Atualmente, os emigrantes praticamente não votam, embora tenham esse direito nas eleições para presidente e vice Portanto, como argumenta o senador Cristovam Buarque (PDT/DF), autor da emenda constitucional 05/05, nada mais justo que esses emigrantes sejam representados em Brasília por deputados também emigrantes. Ora, o custo da instalação do Estado do Emigrante com sua governança e seus responsáveis pelas questões trabalhistas, culturais (para que as descendências dos emigrantes não percam os vínculos com nosso idioma e cultura), documentais, bilaterais, mais os parlamentares itinerantes não custará sequer 1% do total enviado ao Brasil pelos emigrantes. Com maiores poderes que um consulado, o Estado do Emigrante poderá intervir no caso de violações de leis internacionais de proteção aos direitos humanos e de quebras de acordos bilaterais, tendo uma presença marcante nas conferências internacionais. Enquanto as ações dos 27 Estados brasileiros se desenvolvem de uma maneira independente dentro do país,
o Estado do Emigrante também desenvolverá atividades similares em áreas externas, porém equivalentes. A questão da escolarização dos filhos dos emigrantes no Japão, por exemplo, poderá ter um tratamento correto, por dizer respeito não só a uma questão de direito à educação básica na língua do país, como de direitos consagrados em convenções internacionais e sem envolver o Ministério das Relações Exteriores. Direito ao voto Atualmente, os emigrantes praticamente não votam, embora tenham esse direito nas eleições para presidente e vice-presidente. Em 2006, votaram apenas 80 mil dos quatro milhões de emigrantes. Não há interesse em votar porque os emigrantes não escolhem representantes conhecedores de seus problemas. Além disso, nem todos moram perto de consulados e se tiverem de votar precisarão gastar para tomar trem, ônibus ou avião até a representação mais próxima. O governo decidiu que a renovação de passaportes estará vinculada também à possessão do título de eleitor, mas, neste caso, a grande maioria irá justificar sua ausência e continuará sem votar. A solução é a criação, pedida na 1ª Conferência Brasileiros no Mundo, do voto por correspondência, pelo correio ou internet, da residência do emigrante até o consulado mais próximo. A criação de cargos parlamentares para emigrantes e o voto por correspondência darão importância política aos emigrantes. O projeto prevê uma Secretaria de Estado com um quadro de emigrantes, apoiada por parlamentares emigrantes eleitos em quatro circunscrições estrangeiras – América do Sul, do Norte, Europa e Ásia/África, mais um conselho consultivo de emigrantes eleitos representantes de comunidades. (RM)
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Pobre doente não dá lucro
fatos em foco
World Health Organization
Hamilton Octavio de Souza
SAÚDE Último estudo sobre financiamentos para se combater doenças que atingem países em desenvolvimento revela investimento de apenas 2,5 bilhões de dólares
Precarização total Estudos realizados sobre a precarização do trabalho no Brasil e no mundo indicam que uma das áreas de maior exploração é a das empresas terceirizadas de telemarketing e de atendimento aos clientes. Com uma diferença: o funcionário brasileiro recebe em média 11 vezes menos do que a remuneração do trabalhador dos Estados Unidos. As multinacionais deitam e rolam aqui no Brasil.
Eduardo Sales de Lima da Redação
Na Etiópia, homem sofre com a malária, uma das três doenças que mais matam no mundo
De acordo com dados de entidade da área, 1.393 novos medicamentos foram aprovados nos últimos 25 anos. Destes, apenas 13 tratam enfermidades tropicais, e dois combatem a tuberculose dos entre 1975 e 2004 eram destinados às classificadas como negligenciadas. A DNDi aponta que estes remédios, hoje, são tóxicos, difíceis de tomar, têm efeitos indesejáveis e muitos foram descobertos há mais de 50 anos. A leishmaniose é tratada, por exemplo, com medicamentos desenvolvidos na década de 1940. A única medicação existente para o combate à doença do sono é à base de arsênico e mata uma em cada 20 pessoas que a tomam, além do tratamento ser doloroso. E os Estados? Segundo a pesquisa do Instituto George para a Saúde Internacional (IGSI), os Estados Unidos lideram o ranking dos países que mais investem em doenças negligenciadas: responderam por 70,39% dos 2,5 bilhões de dólares gastos em 2007. O Brasil aparece em sexto lugar (1,24%). O dinheiro, nesse caso, é utilizado tanto para o tratamento quanto para a pesquisa voltada ao desenvolvimento de medicamentos e vacinas.
“O estudo [do IGSI] mostra que os recursos vêm basicamente de instituições filantrópicas e públicas”, afirma Gabriela Chaves, da organização MSF-Brasil. Ela acredita que os Estados nacionais até incentivam, “mas isso é pouco”. Pior: para ela, as investigações realizadas por laboratórios públicos são direcionadas, às vezes, para
tentar responder a questões científicas que “não necessariamente objetivam novas tecnologias [medicamentos]”. Lotrowska, mesmo trabalhando em uma organização para desenvolvimento de produtos (DNDi), considera que há uma limitação nisso, “porque essas entidades acabam não sendo sustentáveis; não há dinheiro garantido”. Ele ainda pondera que “fica estranho entregar todas as necessidades da área de doenças negligenciadas em mãos de algumas instituições filantrópicas, como se 90% da população mundial, que habitam os países em desenvolvimento, só pudessem ter as suas necessidades atendidas pelo setor filantrópico”. (Com informações de O Globo)
da Redação As prioridades do governo brasileiro no setor da saúde destoam das reais necessidades. Até o fechamento desta edição (em 12 de maio), foram contabilizados oito casos confirmados de gripe suína no Brasil. Como resposta, o país negocia a compra de 800 mil medicamentos Tamiflu, utilizados para combater a doença. Se realizado o acordo, a quantia a ser gasta pelo Estado alcançará os R$ 72 milhões, considerando que o preço de tabela do remédio é de R$ 90. Já em pesquisas e no tratamento das doenças negligenciadas no Brasil, o Ministério da Saúde investiu, ao longo do ano de 2008, somente R$ 17,91 milhões, quantia borrifada em 72 projetos. Mas só entre janeiro e fevereiro deste ano, registrou-se 10.957 casos de malária apenas no Amazonas, segundo o próprio governo estadual. Segundo Michel Lotrowska, diretor regional da entidade Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês), além da verba ser pouca, o foco do governo fe-
Violência mineira Até agora, a Justiça de Minas Gerais nada fez aos fazendeiros Mário Nascimento e Geraldo Ângelo de Oliveira, que, na madrugada de 26 de abril, invadiram o acampamento de sem-terras na Fazenda Capão Muniz, no município de Rio Pardo de Minas, juntamente com mais vinte capangas, e espancaram as 33 famílias acampadas, que aguardam decisão sobre a reforma agrária. O crime continua impune.
dão lucro. Já as “do tipo três”, ou da Redação seja, as chamadas negligenciadas, que atingem, basicamente, países Gabriela Chaves, diretora do Mépobres e em desenvolvimento, são dicos Sem Fronteira (MSF) Brasil, deixadas de lado. “O sistema de acredita que o sistema de propatentes não cria incentivos econôpriedade intelectual incentiva, de micos suficientes para a pesquisa fato, a inovação tecnológica para o e o desenvolvimento em relação combate de alguns tipos de enfera essas doenças. Nesse sentido, é midades, mas somente aquelas que falho”, conclui. (ESL)
deral no combate às doenças negligenciadas não está correto. Ele lembra o caso da dengue, que nos três primeiros meses de 2008 atingiu 26.688 pessoas. “Apenas os sintomas são combatidos”, afirma. “Além disso, o governo ataca o mosquito, que é apenas o vetor. Vamos cortar as bromélias porque acumulam água? Daqui a pouco a culpa vai ser da água”, ironiza. Para ele, erradicar vetores de enfermidades como o mal de Chagas e a dengue (que são insetos) num país tropical “é uma coisa mais complicada”. “Se tivesse um medicamento, talvez uma vacina, aí sim, poderia se desenvolver uma política pública que fosse eficiente no campo da saúde; o Brasil tem uma excelente cobertura vacinal”, defende Lotrowska. Sem política De acordo com a DNDi, o Brasil é considerado um dos países fundamentais na batalha para o desenvolvimento de remédios porque, além de ser atingido pelas doenças, conta com uma rede de laboratórios públicos que já produz parte dos medicamentos usados nos seus tratamentos, entre eles, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe), produtor do benzonidazol, que combate o mal de Chagas. Entretanto, a falta de uma vacina contra doenças como a dengue, a malária e o próprio mal de Chagas, e a inexistência de medicamento que cura o portador des-
Confraria tucana Sócio da Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas Diamantino, no Mato Grosso, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, conseguiu aprovar o curso de Direito daquela instituição, em 2000, apesar do parecer contrário da Ordem dos Advogados do Brasil. O então ministro da Educação Paulo Renato ignorou o veto da OAB. Agora, o curso pode ser fechado devido à péssima qualidade.
Sistema de patentes freia produção de remédios
No Brasil, laboratórios ociosos Para especialista, tradição brasileira é de não dar continuidade à pesquisa
Brasil injusto Relatório recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a situação do trabalho escravo no Brasil destaca a ação do Ministério do Trabalho, que, desde 1995, libertou 30 mil pessoas em condição de escravidão. No entanto, afirma que o país deixa a desejar na aplicação de penalidades aos infratores. Existe registro de apenas uma condenação, com pena de prisão, para explorador de trabalho escravo.
Antonio Cruz/ABr
AS PESQUISAS PARA o desenvolvimento de produtos contra as chamadas “doenças negligenciadas” receberam investimentos de 2,5 bilhões de dólares em 2007. Enquanto isso, só nos três primeiros meses deste ano, a empresa farmacêutica estadunidense Eli Lilly, que produz remédios para esquizofrenia e depressão, obteve um lucro de 1,31 bilhão de dólares (1,2 dólar por ação), uma alta de 23% em relação ao mesmo período de 2008. As doenças negligenciadas são enfermidades tropicais infecciosas como a leishmaniose, a doença do sono, a malária, a doença de Chagas e a dengue. A tuberculose, apesar de não ser estritamente tropical, também é considerada como integrante do grupo. Dados da entidade Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês) revelam que as três doenças infecciosas que mais matam no mundo são a Aids (negligenciada quando acomete crianças), a malária e a tuberculose, que incidem, principalmente, em países pobres. De acordo com os números do DNDi, 1.393 novos medicamentos foram aprovados nos últimos 25 anos. Destes, apenas 13 tratam enfermidades tropicais, e dois combatem a tuberculose. Fato é que a indústria farmacêutica privada, prefere focar naquilo que, obviamente, resultará no lucro, e o “que dá lucro é doença de rico, obesidade, queda de cabelo, ou câncer até”, conclui Michel Lotrowska, diretor regional da entidade. A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) e a DNDi mostraram, em relatório, que apenas 10% da pesquisa científica são voltados para doenças que atingem 90% da população mundial. Apesar de representarem 12% da carga global de enfermidades, apenas 1,3% dos medicamentos registra-
Faroeste privado Ficam a cada dia pior os serviços prestados pelas empresas telefônicas, seja pela cobrança indevida da banda larga na internet, seja pelo desrespeito total às normas de migração e portabilidade baixadas pelo governo federal. A própria Anatel reconhece que o atendimento aos usuários continua precário e cheio de problemas. Afinal, quem vai obrigar a empresa espanhola Telefonica a cumprir as leis no Brasil?
Vandalismo puro Parece história da Idade da Pedra, mas não é: Rossano Gonçalves, prefeito de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, mandou derrubar, na semana passada, o monumento dedicado a Sepé Tiaraju, o líder indígena guarani assassinado por soldados da Espanha e de Portugal em 7 de fevereiro de 1756. O monumento representava a luta dos Sete Povos das Missões, arrasados pelos colonizadores. Nada mudou. Crimes impunes Três anos depois dos “Crimes de Maio” de 2006, quando a polícia de São Paulo e grupos de extermínio constituídos por policiais assassinaram 493 pessoas, nada foi apurado e ninguém foi condenado. O Conselho Regional de Medicina fez perícia nos corpos executados à queima roupa. Os familiares das vítimas clamam por Justiça. O Judiciário paulista continua em silêncio absoluto.
Larvas do mosquito da dengue
ta última, inscrevem-se entre os principais problemas de saúde no país. Segundo o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CSN), o também farmacêutico Francisco Batista, o Brasil possui vários laboratórios públicos com capacidade ociosa, ou seja, que poderiam produzir muito mais medicamentos e vacinas. De acordo com ele, o irrisório investimento do governo federal no setor é resultado de “uma decisão política errada”. Michel Lotrowska também vê uma ociosidade nos laboratórios
públicos brasileiros, mas pondera que há várias fases no desenvolvimento dos remédios e que “o Brasil tem muita gente capaz de fazer pesquisa básica, mas, na maioria dos casos, não há uma tradição, nos laboratórios públicos, de se chegar à fase da produção dos medicamentos”. A tradição, segundo o diretor da DNDi, é isentar as empresas farmacêuticas que apoiam determinada investigação. “Testa-se o básico no laboratório público, e, depois, sem um aliado privado, a pesquisa não vai muito longe”, explica o diretor do DNDi. (ESL)
Ação terrorista Os bombardeios das Forças Armadas dos Estados Unidos mataram, nos últimos dias, pelo menos 150 civis no Afeganistão, inclusive crianças órfãs de uma creche. Quatro meses depois da mudança de governo, fica cada vez mais difícil dizer que o presidente Barack Obama é diferente do ex-presidente George W. Bush. As corporações estadunidenses não resistiriam a viver num mundo sem guerras. Agenda neoliberal Apesar da crise econômica, a agenda do neoliberalismo continua firme e forte na aplicação dos dez pontos do Consenso de Washington. Está na ordem do dia a privatização de estradas, portos, aeroportos, educação e saúde. O governo José Serra, do PSDB, deverá entregar para empresas privadas a exploração das principais rodovias de ligação com o litoral norte paulista – o maior filé do Estado.
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Uma missa para o torturador
Bovero, e do Centro de Estudos Universitários do Sumaré, mantido pela instituição. Os presentes à missa do “herói nacional”, a maioria homens, vestiam terno e tinham cabelos brancos. Alguns mais novos, de terno e gravata, usavam broches com a bandeira do Brasil. As poucas mulheres tinham os cabelos tingidos de loiro ou ruivo, e usavam maquiagem pesada, salto alto, meia calça, terninho.
DITADURA Celebração dos 30 anos da morte do delegado Sérgio Fleury, agente da repressão do regime civil-militar, reúne cerca de 70 pessoas em São Paulo
Carlinhos Metralha, torturador temido nos porões do regime de então, integrou a equipe de Fleury e convocou a missa pela internet: “familiares, amigos, expoliciais do DOPS e informantes contam com sua presença à missa”.
Lúcia Rodrigues e Tatiana Merlino de São Paulo (SP) UMA COROA DE flores com o formato e as cores da bandeira nacional enfeita o altar da igreja Nossa Senhora de Fátima, no bairro do Sumaré, capital paulista. Penduradas nela, pequenas faixas com os dizeres “ordem e progresso” e “herói nacional”. Ao centro, a foto do delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos maiores torturadores da ditadura civilmilitar (1964-1985). Cerca de 70 pessoas, entre parentes, amigos, delegados aposentados, representantes da TFP (Tradição, Família e Propriedade) e agentes do serviço reservado da polícia celebraram, na noite do dia 6, o aniversário de 30 anos de seu falecimento. Entre elas, estava o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, conhecido como Carlinhos Metralha. Augusto, torturador temido nos porões do regime de então, integrou a equipe de Fleury e convocou a missa pe-
la internet: “familiares, amigos, ex-policiais do DOPS e informantes contam com sua presença à missa”. Um dos policiais do serviço reservado trajava calça jeans, jaqueta e boné. Lembrava o Lula sindicalista do ABC, com sua barba grande. Não fosse pelos abraços calorosos que distribuía entre os presentes, poderia-se imaginar tratar-se de um militante da esquerda que sofreu na pele as agruras da ditadura. Ciro Moura, ex-candidato a prefeito de São Paulo nas últimas eleições pelo PTC (Partido Trabalhista Cristão), que herdou o número da legenda de Fernando Collor, foi o único político a comparecer à cerimônia.
rável para a sociedade brasileira. Dr. Fleury ficará na memória de todos, a sua inesquecível figura que tanto bem semeou. À sua passagem, sempre cumprindo ordens superiores e defendendo a sociedade”. Nos carros luxuosos que entravam ao estacionamento,
havia adesivos colados. Em um, lia-se uma referência ao General Heleno, comandante militar da Amazônia. Outros faziam alusões à defesa do porte de armas. A igreja Nossa Senhora de Fátima está próxima da sede da Opus Dei, localizada na avenida Alfonso
A missa foi celebrada por Frei Yves Terral, que, durante a homilia, afirmou que “Fleury teve, há 30 anos, uma feliz ressurreição” e que “estamos reunidos hoje para lembrar sua memória, e não deixar a história morrer”. Durante a cerimônia, que teve início às 19 horas e durou 28 minutos e 45 segundos, o religioso disse frases como: “nós amamos Fleury”, “Deus ama Fleury” e “Estamos reunidos para lembrar o ideal do jovem Fleury,
Porque não está na hora de recomeçar o que foi feito, me parece. Porque estamos numa democracia. Que tem que ser corrigida. Vocês da imprensa sabem muito bem. Vocês embaralham até o Lula.
Ajudou eles a participarem. Senão, não teriam participado. Alguns não teriam participado de nada.
O mandamento é honrar pai e mãe. É isso que quer dizer a bandeira brasileira. Foi uma honra.
Por quê?
Há quanto tempo o senhor está no Brasil?
“Lacuna impreenchível”
Antes do início da celebração, do lado de fora da igreja, velhos amigos conversavam animadamente, enquanto era distribuído um panfleto com a foto do homenageado e os seguintes dizeres: “Sua morte deixou em nós uma lacuna impreenchível. Só o tempo poderá atenuar a sua perda irrepa-
lembrar que ele tinha um ideal”. Na hora do Pai Nosso, Frei Yves pediu aos presentes que orassem “em nome de Jesus e Fleury”. Missa para Ubiratan
Yves Terral é um franciscano, da ordem co-irmã a dos freis dominicanos Tito, Fernando e Ivo, barbaramente torturados pelo delegado Fleury. O religioso, que em entrevista (leia abaixo) disse ser amigo de policiais militares, também celebrou a missa de sétimo dia do coronel da PM Ubiratan Guimarães, assassinado em setembro de 2006. Ubiratan foi o responsável pela invasão da polícia paulista ao Complexo Penitenciário do Carandiru, em 1992, que resultou na morte de 111 presos. O delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury morreu em 1º de maio de 1979, na Ilhabela, litoral norte paulista, de forma misteriosa. Pouco depois de comprar um iate, supostamente caiu no mar e se afogou ao saltar de uma embarcação para a sua. As autoridades policiais da época mandaram que seu corpo fosse enterrado sem ser submetido a necropsia. Fleury estava à frente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), um dos mais temidos órgãos da repressão, e era o responsável por assassinatos e torturas que ocorriam no local. O delegado ganhou “notoriedade” quando chefiou o Esquadrão da Morte, milícia clandestina formada por policiais que coalhava de corpos de supostos bandidos os terrenos baldios da periferia de São Paulo e do Rio de Janeiro. Fleury liderou, ainda, o fuzilamento do guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional (ALN), Carlos Marighella, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, em 1969. (Caros Amigos – carosamigos.terra.com.br/)
ENTREVISTA
“Deus o criou bom” de São Paulo (SP) Leia, a seguir, a entrevista com Frei Yves Terral: O senhor considera o Fleury um herói nacional?
Frei Yves Terral – Eu não considero, não. Não vem ao caso isso. Eu sou ministro da eucaristia. Na minha mesa todo mundo, até a direita, pode participar. E o Fleury era um desses casos. Não há o que impeça ele de poder participar de uma eucaristia. Eu estava em Mato Grosso, na época do Fleury. O senhor o conheceu?
Não, não. Eu estava na faixa de fronteira. Não conheci nem pelos jornais. Os jornais nem chegavam lá. Quando chegavam, era com atraso e era sinal de que não tinha notícia importante no Brasil. Porque, quando tinha notícia importante, não sobrava para nós. Agora, eu acho bonito que celebrem a memória. Herói é uma palavra carregada de poder.
É porque na coroa de flores que estava perto do altar... (leia matéria acima)
Sim, no altar. Era do pessoal que veio. Era dos parentes, da família. Era, seguramente, muito bonita a coroa.
E por que eles escolheram esta paróquia para realizar a missa?
Diante de muitas possibilidades... Não acho nada de mais. Achei que a família frequentasse a paróquia.
Se frequenta...
O senhor não conhece?
Não conheço. Eu tenho amigos. Fui chamado para pôr
uma imagem de Nossa Senhora, faz muito tempo, na Polícia Militar, no comando. Encontrei uma turma de jovens oficiais, com formação francesa, cheios de ideal, que realmente me trouxeram admiração. Admiração abre caminho para amizade. Então, eu tenho alguns amigos militares. Talvez, entre eles, tenham falado: lá tem o frei Yves para rezar por nós. Se amanhã vier a família do Meneguelli [provavelmente se refere a Carlos Marighella] pedir para rezar uma missa aqui, eu vou rezar e vou fazer o que Jesus faz. Se colocar compassivo, do ponto de vista daquela pessoa, daquela família, daqueles amigos. Durante a celebração, o senhor disse que o Fleury tinha um ideal.
Tenho certeza. Sem o conhecer, eu tenho quase absoluta certeza. Todos os oficiais têm um ideal. Pela profissão, tem sempre um risco de vida maior. No início de sua profissão, da vocação, há um ideal. Depois, algumas vezes, diante da realidade, pode ter coisas belíssimas e coisas que alguns podem discordar. Mas Deus não criou gente ruim.
O senhor acha que ele é uma figura polêmica?
Está na história. Está na história. Só que é uma história que não é contada, por enquanto. O outro lado foi muito bem contado. Porque estão no poder. São sempre os vencedores que contam a história.
O Fleury não era um torturador? O senhor rezou durante a missa em nome do Fleury e não pelo Fleury. Eu não sou católica, mas em geral se reza pela alma da pessoa e não em nome da pessoa.
Não podem me culpar por ter rezado pelo Fleury.
“Está na história. Está na história. Só que é uma história que não é contada, por enquanto. O outro lado foi muito bem contado. Porque estão no poder. São sempre os vencedores que contam a história” O senhor rezou em nome do Fleury?
Os vencedores que estão no governo atualmente. No PT. Essa história daquele lado está sendo contada. O do outro não está e Deus queira que não seja contada tão cedo.
Eu pedi para que a turma, que estava meio fria, se manifestasse. Foi uma forma de fazê-los participar. A turma que estava lá, era um pessoal mais reservado. Não era nenhum carnaval, nenhuma vitória do Corinthians. Então, era uma forma deles participarem, era emprestar palavras ao Fleury. Para se manifestarem um pouco. Uma missa não pode ser só o presidente.
Deus queira que não seja contada, por quê?
O senhor acha que isso ajudou a celebração?
Quem são os vencedores?
Não sei. Porque não estão acostumados a participar de uma missa. Por diversos motivos. Tem gente que vai numa missa de sétimo-dia e não fala nada, só segura lágrimas. No Brasil, há tantos tipos de culturas. Graças a Deus. Tem de se conviver. Pode-se rezar uma missa para defuntos de um jeito ou de outro.
Eu entendo a posição do senhor. O senhor é padre e reza por bandidos. O Fleury era um torturador, que assassinou várias pessoas. E o senhor ainda reza em nome dele?
Espera aí, Espera aí. Eu vivi em Mato Grosso. E tinham umas pessoas que a igreja não mandava abençoar quando morriam. Todas morreram de morte violenta. Eu abençoei todos aqueles que me foram apresentados. Você estava lá?
Onde?
Quando ele morreu?
Não. Eu era criança.
Mas Deus estava. Não podemos saber o que aconteceu. Não podemos fazer mau juízo do próximo. Agora, posição política eu não tenho. Eu não sou nem brasileiro.
O senhor disse que ele tinha um ideal.
Tinha um ideal.
Torturando os opositores?
Isso não foi quando ele era jovem. Foi depois. Deus o criou bom.
Mas dentro de uma igreja, ter uma bandeira nacional com a foto dele, escrito herói nacional... Um torturador não é um herói.
43 anos.
“Escuta aqui. No Araguaia, por exemplo. O soldado que foi mandado para lá, para restabelecer a ordem... Se matou alguém, ele era um torturador?”
mensão política mais forte. Que era um torturador?
Sei lá se era torturador.
O senhor não sabia que ele era um torturador?
Escuta aqui. No Araguaia, por exemplo. O soldado que foi mandado para lá, para restabelecer a ordem... Se matou alguém, ele era um torturador?
O delegado Fleury era um torturador. Existem pessoas que foram torturadas por ele e outras que viram companheiros sendo assassinados no pau-de-arara, inclusive.
Então precisa de mais reza ainda. Precisa mais de reza do que outros.
Mas o senhor sabia que ele era um torturador? E em São Paulo?
Há 30.
Então o senhor estava aqui quando o Fleury morreu.
Pode até ser. Mas como teve essa mudança de Mato Grosso para cá, naquela época... Não posso dizer se ele morreu quando eu estava em Mato Grosso ou aqui.
É claro que para a igreja todos são filhos de Deus. Mas o senhor celebrou a missa com uma simpatia muito especial pelo delegado Fleury.
O meu Deus é compassivo. O meu Deus é compassivo. Ele se põe do ponto de vista da pessoa. A senhora procure se por do ponto de vista de Jesus.
O senhor sabia que o delegado Fleury era um torturador?
Eu sabia que era um homem político, que contestava. Que teve uma história não apenas de um simples delegado, mas de uma di-
Eu sabia o que todo mundo sabe. Agora se vocês falam que ele era um torturador... Eu não sei. Eu não lembro, eu estava no Mato Grosso.
A morte dele saiu na TV.
Mas você pensa que em Mato Grosso tinha TV?
Mas o senhor já estava em São Paulo.
Eu sou muito amigo do dom Paulo [Evaristo Arns]. Li todos os livros dele.
Então o senhor leu o Brasil Nunca Mais? O dom Paulo diz que ele é um torturador.
Mas isso não tira o direito dele ter uma missa. Não pode ser negado esse direito.
O que nós estamos dizendo é da sua simpatia e da forma que foi colocado. O que surpreendeu foi o senhor ter rezado não por ele, mas em nome dele.
Eu faço isso em todas as missas. Praticamente faço isso em todas as missas. (LR e TM, da Caros Amigos)
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Seja marginal, seja herói CINEMA Movimento de vanguarda iniciado no final dos anos 60 volta a ser exibido e discutido pelo público Aldo Gama da Redação COMO PARTE do cenário do show que apresentavam na casa noturna Sucata, no Rio de Janeiro, em 1968, os tropicalistas Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes utilizavam um dos trabalhos do artista plástico Hélio Oiticica, cuja obra Tropicália dera nome ao movimento musical. No fundo do palco, uma bandeira trazia a inscrição “seja marginal, seja herói”, uma referência ao bandido carioca Cara de Cavalo, que havia sido caçado e morto pela polícia. No cinema, esse espírito que desafiava a ordem social vigente encontrou sua expressão maior em um grupo de jovens que incorporaram à linguagem cinematográfica referências diversas, como história em quadrinhos e ícones da cultura de massa, e um aprofundamento da pesquisa estética no movimento que ficou conhecido como Cinema Marginal. Restaurados pela Cinemateca Brasileira, alguns desses filmes vêm sendo redescobertos em festivais no Brasil e pelo mundo. Parte dessas películas está na Coleção Cinema Marginal, da Heco Produções e Lume Filmes, que reúne 38 trabalhos, muitos deles não lançados comercialmente. Quem tiver de sapato não sobra Em 1967, Ozualdo Candeias lançou A Margem, seu primeiro longa metragem. Baseado em fatos reais publicados em jornais da época, o filme conta histórias do cotidiano da população pobre que vivia às margens do Rio Tietê, em São Paulo. Na obra, as experimentações do estreante suplantavam apuros técnicos, mas inauguraram uma maneira de encarar a linguagem cinematográfica que influenciou uma série de diretores, sendo por isso considerado o ponto de partida do Cinema Marginal. O Bandido da Luz Vermelha, dirigido por Rogério Sganzerla em 1968, é, talvez, o trabalho mais conhecido do movimento, tendo conquistado reconhecimento de público e crítica. Outras películas, como A Mulher de Todos (de Sganzerla) e As Libertinas (dividido em três episódios dirigidos por Carlos Reichenbach, Antonio Lima e João Callegaro) também fizeram sucesso comercial. Para alguns pesquisadores, mais do que inspirado pelo tropicalismo, o Cinema Marginal é a versão cinematográfica do movimento, dialogando com a cultura popular como o cinema brasileiro ainda não havia feito. Em O Bandido da Luz Vermelha, por exemplo, há uma explosão de referências que, na época, foi motivo de censura e conflito, inclusive com os defensores do Cinema Novo. “O terceiro mundo vai explodir. Quem tiver de sapato não sobra”, grita um dos personagens alucinados do filme, seguindo o raciocínio do próprio bandido que, a certa altura, pondera: “quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba”. E ainda faz cinema de vanguarda, como explica o pesquisador Arthur Autran, na entrevista que segue. Brasil de Fato – Qual a importância do trabalho de restauração e relançamento dos filmes que fazem parte do Cinema Marginal? Arthur Autran – São obras muito importantes dentro da filmografia brasileira e às quais nós tínhamos pouquíssimo acesso, ou porque as cópias em 35mm circulam muito pouco – ou não circulam,
praticamente – ou porque esses filmes são muito pouco exibidos na televisão aberta, embora alguns tenham sido exibidos uma ou outra vez no Canal Brasil. E a maioria também não havia sido lançada em VHS. Então isso vai ampliar a circulação de filmes importantes para o cinema brasileiro. Alguns diretores rejeitam o termo Cinema Marginal? Haveria alguma explicação sob o ponto de vista de um movimento? Sim, haveria. Ficou conhecido como Cinema Marginal um conjunto de filmes muito heterogêneo feito, mais ou menos, entre 68 e 73. Alguns recusam esse termo, e é compreensível, porque parece que eles queriam se marginalizar, que não queriam que seus filmes fossem exibidos ou que filmassem em más condições. Por isso preferem outros termos como Cinema de Invenção – que é o título de um livro importante sobre o assunto escrito pelo Jairo Ferreira –, Cinema Experimental, Cinema de Vanguarda. Mas, do ponto de vista historiográfico, o termo mais convencionado é Cinema Marginal. Seja marginal, seja herói. O movimento se relacionava com a Tropicália? Com certeza. Havia no final dos anos 60 todo um movimento que via no marginal uma figura romantizada, porque recusava a sociedade como ela se apresentava. Um exemplo é a obra do Hélio Oiticica, baseada no assassinato do bandido Cara de Cavalo, de onde sai esse lema. Mas no campo cinematográfico esse epíteto de “marginal” provocou algumas incompreensões. Há por exemplo toda a ironia do Glauber Rocha ao chamar o trabalho desses diretores de Udigrudi e não Underground. Mas o movimento se relacionava com o tropicalismo por também ter uma apreensão mais ampla da cultura, absorver os ícones e dialogar com a cultura de massa, exatamente como a tropicália. E existe também uma elaboração estética muito sofisticada. O humor, o deboche, a ironia, uma reação contra o conservadorismo social reinante no Brasil na época e uma certa descrença com relação à política institucionalizada. Além dessa identificação houve alguma colaboração mais efetiva entre eles? Nas artes plásticas, por exemplo, o Hélio Oiticica tem toda uma colaboração com o Neville D´Almeida. Já as músicas, algumas são aproveitadas nos filmes e, por sua vez, alguns filmes são citados, explicitamente ou não, em algumas músicas. Essas obras se contrapunham ao Cinema Novo? O que havia era uma ruptura. Não exatamente geracio-
nal, porque tinham todos uma idade próxima, mas o Cinema Marginal entendia que o Cinema Novo havia abandonado a pesquisa estética em nome de uma tentativa de conquistar um público maior, principalmente na sua segunda fase, a partir de 67 ou 68. Eu acho isso discutível, mas era o entendimento que os integrantes do Cinema Marginal tinham. O que levava um filme a ser classificado como Cinema Marginal? Características estéticas muito gerais, mas principalmente o diálogo com as vanguardas cinematográficas de então, a busca por experimentações narrativas, a utilização de procedimentos inovadores, como uma montagem disjuntiva, interpretações não naturalistas dos atores, mas como é um movimento muito heterogêneo, muda muito de filme para filme. O Andrea Tonacci, de Bang Bang, por exemplo, é um diretor de um rigor estético impressionante, com seus enquadramentos, montagem. Já diretores como o Sganzerla trabalham sem tanto preciosismo com o movimento de câmera. Na época, os cineastas se viam como parte de um movimento? Sim. Havia um grupo que expressava determinadas ideias estéticas, políticas, uma posição frente ao cinema. De aprofundar a linguagem cinematográfica, de debatê-la. Era algo regionalizado, como Rio e São Paulo? Na verdade existiam quatro grupos de produção. Os principais no Rio e em São Paulo, mas também havia um grupo em Salvador, onde estava o André Luiz Oliveira (Meteorango Kid, o Herói Intergalático, de 1969), e em Belo Horizonte. Quais são os diretores mais emblemáticos do movimento? Essas escolhas são sempre complicadas, mas podemos citar o Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Andrea Tonacci e Carlos Reichenbach.
É possível estabelecer um momento ou um fato responsável pela criação e o término do movimento? É difícil estabelecer um fato ou momento, mas os diretores se referiam ao filme A Margem, de Ozualdo Candeias, como uma experiência importante, como inspiração estética, por ser uma produção barata, feita com poucos recursos técnicos e em poucos dias. E o que marca o fim do movimento? O endurecimento da ditadura militar. Vários desses diretores saem do Brasil, como o Bressane e o Sganzerla. A censura tem uma ação muito forte, proibindo os filmes e não deixando que circulassem, sufocando o movimento. O Cinema Marginal é político? Certamente. Não no sentido político partidário ou de engajamento político explícito. Mas é político porque é um movimento que representa a situação política que o Brasil vivia então, uma ditadura militar. É uma expressão de oposição a isso. E também uma expressão de outras formas de cultura, de vida e de expressão cinematográfica, além da dominante. Como esse cinema era financiado? Na maioria das vezes, os filmes eram feitos com recursos dos próprios diretores, pois eram muito baratos. Outros tiveram investimento dos produtores da Boca do Lixo paulistana. O Bandido da Luz Vermelha, em parte, foi financiado por esses produtores, A Margem também recebeu algum recurso, A Mulher de Todos, financiado pelo Galante (Galante Filmes)... Além do Bandido, outros filmes do movimento tiveram sucesso comercial? A Mulher de Todos e As Libertinas também. Qual o principal legado do Cinema Marginal? A importância de manter viva a discussão sobre estética cinematográfica, principalmente sobre o experimental dentro dessa estética. São filmes que até hoje surpreendem pela inovação em termos de montagem, de câmera, a relação entre som e imagem. São inspiradores para cineastas que queiram dialogar com o experimental no campo do cinema. Eles ainda são referência nesse sentido.
Quem é Arthur Autran é pesquisador e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Montagem disjuntiva Folhas de bananeiras são agitadas pelo vento e a câmera mostra ao fundo um casarão. Na cena seguinte, Zezé Macedo, encostada em um pilar e com o olhar angustiado, leva a mão direita à boca. Corta para um homem de smoking perseguindo e batendo em um jovem com um cinto. “Ai, ai!” “Vem aqui, bandido!” “Me larga!” “Eu vou te ensinar!” A câmera agora mostra o jardim, onde o jovem surge de cueca chorando. “É uma vergonha para a família! Um bestalhão!” – Grita o homem de smoking da sacada do andar superior. Trecho de Os Monstros de Babaloo, escrito e dirigido por Elyseu Visconti em 1970 e que ficou proibido pela censura por 10 anos. Várias imagens são apresentadas em uma montagem ágil, como uma colagem. Luminosos, pessoas caminhando pelas ruas e o bandido, interpretado pelo ator Paulo Villaça, dirigindo pela cidade. “Tenho 26 anos. Vivo de roubo e empréstimo dos amigos. Posso dizer de boca cheia: eu sou um boçal”. Trecho de O Bandido da Luz Vermelha, escrito e dirigido por Rogério Sganzerla em 1968. Angela Carne e Osso, vivida por Helena Ignez, convida um homem a entrar no carro. “Pode entrar”. O homem entra enquanto ela cantarola um verso da canção Se Você Pensa, de Roberto Carlos. “Daqui pra frente...” Angela dirige em silêncio por alguns segundos. Homem que os segue tira fotos. Ela sorri. “Você acredita em Deus? Deus existe? O que que você faz na vida?” “Sou um duro! Mas nem dinheiro pro ônibus eu consegui hoje. Faz umas três horas que eu to aqui nessa estrada esperando uma carona. Mas só passa família. Passa tudo lotado.” “Você fez nudismo? É ótimo para a pele e os nervos. Men sana in corpore sano. Que vai fazer no fim de semana?” “Boqueirão ou Praia Grande.” “Já foi à Ilha dos Prazeres? Quer ir comigo à Ilha dos Prazeres? Dos prazeres extremos?” Entra voz do locutor em off: “É um weekend de um medíocre e uma vampira histérica.” Trecho de A Mulher de Todos, escrito (baseado em argumento de Egídio Eccio) e dirigido por Rogério Sganzerla em 1969.
Fotos: Reprodução
cultura
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américa latina Pamela San Martín
A América pelo fim da escola de assassinos MILITARES Formadora de torturadores das ditaduras que se espalharam há décadas pelo continente, Escola das Américas mudou de nome, mas continua existindo Cristiano Navarro da Redação NO DIA 25 de fevereiro de 1982, o povo chileno recebeu a notícia de um dos mais brutais crimes cometidos pelo Estado. Tucapel Jiménez, dirigente sindical e militante do Partido Radical, foi barbaramente assassinado, com cinco tiros na cabeça e três cortes na garganta, por membros da Central Nacional de Informação (serviço policial de inteligência durante a ditadura do General Augusto Pinochet). O impacto do crime expôs a crueldade do regime e forçou o debate sobre a redemocratização do país. Em outubro de 2000 – dez anos depois do fim da ditadura –, Carlos Herrera Jiménez, então major do exército, confessou, em júri, ser o comandante da operação que levou ao assassinato do sindicalista. As técnicas aplicadas por ele lhes haviam sido ensinadas no Panamá durante sua formação na Escola das Américas. O treinamento do militar e o contexto em que ocorreu a trágica morte do militante não era exclusividade do Chile. A ditadura no país fez parte de uma alian-
ça político-militar entre regimes militares de Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai que recebeu o nome de Operação Condor e que, segundo historiadores, vitimou cerca de 50 mil pessoas. Com outro nome. Em outro país. Sob outra conjuntura histórica, mas não tão distante no tempo para que as feridas históricas já estivessem cicatrizadas, a escola que ensinou Herrera e outros torturadores, assassinos e ditadores de toda América Latina segue recebendo e formando militares de diversos países. Atuais pupilos Com o nome de Instituto de Segurança e Cooperação do Hemisfério Ocidental (Whinsec, na sigla em inglês), a escola se encontra hoje em Fort Benning, na Geórgia, Estados Unidos, e recebe do Chile o maior número de militares – 208 só no ano passado. Atualmente, Tucapel Jiminez Hijo, filho do sindicalista assassinado, é deputado e membro da comissão de direitos humanos da câmara no Chile. Em sua função, o deputado tem pressionado o governo de Michelle Bachelet para que deixe de enviar militares para a Escola das Amé-
Nos Estados Unidos, movimentos mobilizam 20 mil pessoas em Marcha pelo fechamento da Escola das Américas
Com outro nome. Em outro país. Sob outra conjuntura histórica, mas não tão distante no tempo para que as feridas históricas já estivessem cicatrizadas, a escola que ensinou torturadores, assassinos e ditadores de toda América Latina segue recebendo e formando militares de diversos países ricas. “Nunca houve, nem há porque encaminhar nossos militares para esta escola que historicamente trouxe tanta tristeza a todo continente”, contesta Tucapel. Se a participação de militares chilenos não é compreendida pelo deputado, o próprio governo do país parece não ter justificava. Há pelo menos cinco anos, a advogada de organizações de direitos humanos, Alejandra Arriaza, questiona, por meio de cartas, o Estado chileno e o governo estadunidense, através do Pentágono, sobre quais as formações recebidas
Resistência dentro do Império Há dez anos, no mês de novembro, milhares de pessoas marcham em frente à Escola das Américas e exigem seu fechamento da Redação No continente americano, a pressão pelo fechamento da Escola das Américas não vem só do sul. Há mais de dez anos, no mês de novembro, milhares de pessoas marcham pelas ruas da base militar de Fort Benning em protesto pelo fim da instituição. Todos os anos, após a manifestação, é feita uma vigília que celebra a memória das vítimas dos formandos. Em 2008, a marcha contou com cerca de 20 mil pessoas. Ali, durante horas, os nomes de centenas de vítimas são chamados. Após cada um deles, os manifestantes respondem: Presente! Segundo Charity Ryerson, militante do movimento School of the Americas Watch (SOAW – Observatório da Escola das Américas), “a vigília serve para aprofundar o entendimento da crise provocada pelo governo estadunidense em toda a América”. Participam das manifestações organizações de direitos humanos, defensores do comércio justo, religiosos, universidades e colégios, grupos anti-capitalistas, indígenas, sindicalistas, imigrantes. Até 2001, os manifestantes costumavam ocupar a parte de dentro da escola. Hoje, isso já não acontece mais. Charity explica que, depois
dos ataques de 11 de setembro, o exército aumentou a repressão construindo uma cerca que impede a entrada das pessoas. Repressão Com a proibição, mais de 200 pessoas foram presas de 2001 até o ano passado, e quase todas por “cruzar a li-
nha”, ou seja, entrar na base sem autorização. Em novembro de 2002, junto com outras 85 pessoas, Charity cruzou a linha. Por essa desobediência civil, a militante foi condenada judicialmente por um ano e meio – tendo que cumprir seis meses de reclusão em uma prisão federal e um ano cumprindo pena em liberdade. “Usamos essa forma de resistência para denunciar a urgência do assunto, e mostrar que existe gente comprometida, como dizemos por aqui, dentro da barriga da besta”, declara.
pelos alunos da atual Escola das Américas.
leno e o Pentágono, uma comitiva formada por seis congressistas (três governistas e três da oposição), quatro representantes da sociedade civil e representantes do governo agendou viagem para abril deste ano à Escola das Américas. No entanto, uma semana antes, o governo chileno cancelou a viagem sem dar justificativa. “Não houve sequer comunicado para os repre-
sentantes da sociedade civil, nem para os deputados que eram parte da delegação”, reclama a advogada. “Não entendemos a posição do governo de Bachelet, que também sofreu com a Escola das Américas. Esse tema, como o da reparação das famílias e o da busca por desaparecidos, é muito importante para nossa democracia”, cobra Tucapel, que participaria da delegação.
A Escola dos Horrores da Redação
Viagem cancelada Depois da insistência da advogada, no ano passado, o governo do Chile respondeu que seus militares iam aos Estados Unidos para formarem-se em “cursos especiais para sargentos e suboficiais”. Já o Pentágono respondeu que eles recebiam formação em cursos na área de direitos humanos e saúde, e que os mais procurados eram as aulas de liderança. Com o impasse de informações entre o governo chi-
Fundada em 1946, em Fuente Amador, Panamá, com o nome de Centro de Adestramento Latinoamericano do Exército dos Estados Unidos, a base de formação de militares foi criada pelo governo estadunidense para influir na política militar dos demais países do continente. A partir de 1963, o centro passou a ser chamado de Escola das Américas. Em 1984, depois de uma
Apesar da repressão, o movimento nos Estados Unidos pelo fechamento da Escola das Américas cresce, e sua pressão começa a fazer efeito. Em 2008, o projeto de lei nesse sentido, proposto pelo congressista estadunidense James P. McGovern, não foi aprovado por seis votos. No entanto, com a nova configuração do Congresso, agora com maioria democrata, a proposta deve entrar em votação no final deste ano com maior chance de aprovação. Confiante no novo quadro, Charity aposta: “podemos ver um progresso claro. Temos certeza do fechamento, e depois dele, iniciaremos campanhas contra os outros campos
de treinamento militar, tanto nos Estados Unidos como na América Latina, até que o último seja fechado”. Uma herança maldita Dentro da sociedade e do Congresso estadunidense, os defensores da escola alegam que ela deve ser mantida porque cria vínculos estratégicos entre o exército do país e os das outras nações; além disso, alguns conservadores acreditam que a instituição de ensino não existe mais: o que há, agora, é o Instituto de Segurança e Cooperação do Hemisfério Ocidental, que deve ser mantido. Desde o fim da década de 1980, o Brasil não envia Linda Panetta
No Chile, pressões pelo fim do envio de militares; país é o que tem o maior número de participantes na Escola de Assassinos
acordo entre Estados Unidos e Panamá, a instituição se mudou para Fort Benning, na Geórgia, no país da América do Norte. Depois de mobilizações pelo seu fechamento, em 2001 a Escola das Américas mudou de nome, passando a se chamar Instituto de Segurança e Cooperação do Hemisfério Ocidental (Whinsec). Apesar de o Brasil não enviar mais militares para o local, as Forças Armadas brasileiras seguem recebendo cursos ministrados por seus oficiais. (CN)
militares para a Escola das Américas. Em suas campanhas, o movimento SOAW conseguiu convencer os governos da Argentina, Uruguai, Venezuela e – em 2008 – da Bolívia, a seguir o exemplo. Além do Chile, México e Colômbia são países que seguem enviando militares à instituição. No entanto, fechar a Escola das Américas ou parar de enviar militares a ela não significa cessar sua influência geopolítica na Americana Latina. Dados levantados pelo SOAW indicam que, ao longo de seus 63 anos, cerca de 64 mil militares graduaram-se em seus cursos. Na opinião do padre jesuíta estadunidense José Mulligan, membro do SOAW, os cursos da Escola das Américas miram interesses econômicos privados. Em entrevista coletiva em Santiago, ele afirmou à imprensa que as aulas têm o intuito de “proteger os interesses econômicos das grandes corporações dos Estados Unidos, como aconteceu no tempo de [Salvador] Allende, quando se utilizou as Forças Armadas para dar o golpe em 1973, e como também aconteceu com o presidente Hugo Chávez, na tentativa de derrubá-lo [em abril de 2002]. Em ambos os golpes, seus promotores eram graduados nas Escolas das Américas”. O SOAW aponta, ainda, a presença de lideranças formadas pela Escola das Américas nas violentas repressões dos movimentos de populares de Chiapas e Oxaca, no México, bem como na frente da guerra do governo colombiano contra as Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc). (CN)
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américa latina
As linhas (e nós) do Equador e do Brasil para democratizar a comunicação
Leonardo Wexell Severo NO DIA 19 DE maio, a Comissão de Auditoria das Concessões de Frequências de Rádio e Televisão do Equador apresentará o seu ”informe definitivo” e “recomendações” ao Ministério de Coordenação dos Setores Estratégicos e ao Conselho Nacional de Rádio e TV sobre os dispositivos para democratizar o setor. A iniciativa é medular e joga na ofensiva contra os reiterados abusos de uma mídia que, lá como aqui, insiste em confundir liberdade de imprensa com a de empresa, tentando – de forma tão histérica quanto estéril – conter a primavera de mudanças que cobre o continente. No Brasil, atendendo ao clamor dos movimentos sociais e a uma necessidade histórica, o presidente Lula convocou a Conferência Nacional de Comunicação para os dias 1º, 2 e 3 de dezembro (leia matéria na pág. 4), processo que estabelece pontos de contato com a linha do Equador, mas também apresenta seus nós, principalmente frente à disparidade dos instrumentos manipulados pela mídia hegemônica para pautar o debate.
Na avaliação do brasileiro João Brant, que compõe a Comissão de Auditoria, a decisão equatoriana “aponta no sentido de acertar contas com graves ilegalidades ocorridas em passado recente, marcado pela extrema concentração de concessões públicas nas mãos do sistema financeiro” A complexidade do desafio aponta para a necessidade das entidades, partidos e governos populares estreitarem cada vez mais seus laços e compreensões sobre o tema, qualificando sua intervenção e driblando obstáculos e cascas de banana lançados pelos que querem manter intocado o seu latifúndio, improdutivo do ponto de vista social, mas extremamente lucrativo, comercialmente falando. Romper o manto de silêncio que cobre esse debate é, portanto, um passo essencial, neste momento. Para conhecer de perto a experiência equatoriana, visitamos o país em meados de abril, e compartilhamos vivências e impressões com trabalhadores, técnicos e especialistas da área, o que fortaleceu nossa convicção da sua importância para os desdobramentos da luta política no país, bem como para o aprofundamento da integração e da própria democracia na América Latina. Na avaliação do brasileiro João Brant, um dos “estrangeiros” que compõem a Comissão de Auditoria instituída
Leonardo Severo
MÍDIA Auditoria das concessões de rádio e TV no país governado por Rafael Correa joga na ofensiva contra os reiterados abusos de meios que insistem em confundir liberdade de imprensa com a de empresa pelo presidente Rafael Correa, a decisão equatoriana “aponta no sentido de acertar contas com graves ilegalidades ocorridas em passado recente, marcado pela extrema concentração de concessões públicas nas mãos do sistema financeiro”. Conforme Brant, que integra o Coletivo Intervozes, a definição de colocar em xeque as perversões dessa lógica mercantil “só foi possível pela nova Constituição, que estabelece claramente a separação dos poderes midiático e econômico-financeiro”. “O que podemos pegar de lição é que os equatorianos defendem o direito à comunicação como algo central para a democratização do Estado”, informou. Orgia de concessões
Como esclareceu o pesquisador e psicólogo Osvaldo León, da Agência Latino-Americana de Informação (ALAI), a auditoria equatoriana põe a nu a orgia de concessões realizadas entre 1995 e 2008, durante “o ápice do neoliberalismo, quando a entrega de frequências, que são um bem limitado, se multiplicou, de forma comprovadamente corrupta, com as privatizações, sendo aprovadas por parlamentares que saíam do Legislativo com a sua concessão debaixo do braço”. Como medida profilática, foi acertado que a auditoria determinará “a constitucionalidade, legitimidade e transparência das concessões, considerando os enfoques legal, financeiro, social e comunicacional”. A Comissão responsável por averiguar as irregularidades foi estabelecida por decreto no final de 2008, após a aprovação da nova Constituição, que “considera o espectro radioelétrico como um dos setores estratégicos que, por sua transcendência e magnitude, influi nos aspectos econômico, social, político e ambiental”, e que reserva ao Estado o direito de administrá-lo, regulá-lo e controlá-lo, “em conformidade com os princípios de sustentabilidade ambiental, precaução, prevenção e eficiência”. De acordo com o parágrafo primeiro do artigo 17 da Constituição equatoriana, “o Estado deve garantir a liberação dessas concessões públicas através de métodos transparentes e em igualdade de condições, para a administração das emissoras de rádio e televisão públicas, privadas e comunitárias, assim como o acesso a canais livres para a exploração de redes sem fios, fazendo com que prevaleça o interesse coletivo”. O parágrafo terceiro determina que “será proibido o oligopólio e o monopólio direto e indireto da propriedade dos meios de comunicação e do uso das frequências; e a participação, no controle do capital, investimento ou patrimônio dos meios de comunicação social, de entidades ou grupos financeiros, seus representantes legais, membros da direção e acionistas”. Dando o tiro de misericórdia nos bancos, que são os donos diletos da mídia naquele país, os constituintes estabeleceram que os antigos beneficiários de concessões públicas que estejam em choque com tais determinações terão o prazo de dois anos para se desfazer delas a partir da entrada em vigência da nova lei – aprovada no final de 2008.
Eleitora de Correa exibe cartaz: país busca acertar contas com ilegalidades
Para o pesquisador Osvaldo León, um dos grandes avanços do processo equatoriano, “de vanguarda na democratização dos meios”, é que ele assume explicitamente a comunicação como um serviço social Bancos e mídia
Como na maioria dos países da América Latina, no Equador, os meios se encontram concentrados em poucas mãos, “vindo a substituir os partidos da direita neoliberal, fracionados, debilitados e derrotados eleitoralmente”, lembrou o jornalista Eduardo Tamayo, integrante do Fórum Equatoriano da Comunicação. “No que diz respeito à televisão aberta, 19 famílias controlam 298 frequências das 348 existentes (86%). No campo da rádio, a propriedade está menos concentrada, no entanto, as mesmas famílias concessionárias das frequências de TV dominam grande parte das estações de rádio FM. Quarenta e cinco famílias detêm 60% das concessões de rádio AM e FM, que somam 1.196”. Porém, o mais escandaloso, advertiu Tamayo, “tem sido a relação incestuosa entre os bancos e a mídia, especialmente na televisão. Fidel Egas, um dos principais acionistas do maior banco do país (Banco del Pichincha), é proprietário da cadeia Tele Amazonas, que tem 43 concessões em nível nacional. Além disso, possui as revistas Gestión e Diners”. “Outro grupo econômico poderoso (El Juri Banco del Austro) é proprietário da rede de televisão Telerama, beneficiária de 14 frequências. Outros canais nacionais (Gamavision, Telecentro, Cablevision e várias rádios), que formavam parte de um grupo de 193 empresas de propriedade dos banqueiros foragidos William e Roberto Isaías, foram intimados no ano passado por deverem ao Estado 661 milhões de dólares. Para Tamayo, “a concentração de meios em mãos dos bancos é um aspecto negativo para a democracia, pois se anula a diversidade informativa, os meios deixam de cumprir sua
função social e passam a defender os interesses dos grupos econômicos de que fazem parte”. Na avaliação de Osvaldo León, um dos grandes avanços do processo equatoriano, “de vanguarda na democratização dos meios”, é que ele assume explicitamente a comunicação como um serviço social. “A política do neoliberalismo não se sustentava somente com o garrote imposto pela política econômica, mas pela base ideológica, buscando eliminar do imaginário social o sentimento de coletividade, de nacionalidade, afirmando o individualismo, o salve-se quem puder. Daí não haver nos grandes meios de comunicação espaço para o direito à réplica, condições para uma central sindical se contrapor a determinada medida antipopular. Na verdade, a mídia tentou eliminar toda e qualquer reflexão, acabar com a massa crítica”, acrescentou. Perda de legitimidade
Para León, as ações que vêm sendo levadas a cabo pelo governo equatoriano, com o apoio dos movimentos que atuam pela democratização da comunicação, buscam pôr fim ao “descalabro institucional generalizado”. “O governo não se deixou imobilizar, pois essa era a fórmula do sistema financeiro para inviabilizá-lo. Com apoio da ampla maioria da população, Correa acusa a mídia de mentirosa, citando exemplos de abusos e distorções que são fáceis de reconhecer. O desafio maior, agora, é que esta seja um bem público apropriado pelo conjunto da sociedade”, declarou. Logo após a maiúscula vitória de Rafael Correa e do Movimento Aliança País nas eleições do dia 10 de abril, pudemos constatar que os principais jornais e emissoras de rá-
dio e televisão expuseram com toda a força seus interesses de classe, mantendo uma orientação esquizofrênica, como se nada tivesse acontecido. Pior, mobilizaram um batalhão de repórteres para pinçar todo e qualquer êxito parcial da oposição, tratando de transformálo em triunfo magistral. Ao mesmo tempo, “orientavam” o presidente, via editoriais e articulistas, a ter mais “calma” e “moderação” com o seu projeto socialista, já que o país saiu das urnas “dividido”. Na avaliação da mídia (anti) equatoriana, Correa fez “somente 52% dos votos”, embora tenha aberto margem de 24 pontos sobre o segundo colocado, que alcançou 28%. Vale registrar que a vitória não encontra paralelo em mais de duas décadas no país. Diante desse padrão de comportamento, plugado à virtualidade dos desejos e aspirações das transnacionais, do sistema financeiro e dos vende-pátria, um primeiro dado importante a assinalar é a negação da realidade e de qualquer objetividade. “Os meios de comunicação no Equador perderam muito de sua credibilidade nos últimos anos, em grande parte pela defesa que fizeram do modelo neoliberal e dos governos que o implementaram”, enfatizou a jornalista e escritora Sally Burch, diretora executiva da ALAI, lembrando que “o presidente Rafael Correa ganhou com folga as últimas eleições, mesmo tendo toda a mídia contra ele, em oposição frontal”. Reagindo à campanha midiática, explicou Sally, o presidente tem apresentado argumentos e fatos inquestionáveis, que acabam desacreditando constantemente o discurso monocórdico de jornais, rádios e tevês contra o governo. Interação e participação
A forma com que a mídia nega a realidade e se esmera em moldar no imaginário coletivo valores que atentam contra os interesses nacionais e populares foi uma das causas pelas quais, na nova Constituição, se esquadrinha o tema comunicacional. Conforme esclareceu Eduardo Tamayo, “os direitos à comunicação, à informação e à cultura se incorpo-
ram à Constituição no mesmo nível que outros direitos igualmente vitais para o ser humano, como a saúde, a educação, o bem-viver, e outros”. Direito plenamente reconhecido para as pessoas, tanto em forma individual como coletiva, a “uma comunicação livre, intercultural, inclusiva, diversificada e participativa, em todos os âmbitos da interação social, por qualquer meio e forma, em sua própria língua e em seus próprios símbolos”. Na avaliação dos movimentos pela democratização, supera-se a visão limitada e instrumental da comunicação que a identificava como “meio”, resgatando a dimensão interativa e participativa da mesma, ou seja, “que as pessoas não somente têm direito a receber programas e serviços informativos, mas que também têm direito ao uso e acesso aos recursos da comunicação”. Para as diversas comunidades que compõem o país, se reconhece o direito a “criar seus próprios meios de comunicação social em seus idiomas e o acesso aos demais sem nenhuma discriminação”, garantindo que o direito à “dignidade e diversidade de suas culturas, tradições, histórias e aspirações” se reflitam na educação e na mídia. Assim, aplicando-se o espírito que prevalece na Constituição, este processo deve levar a que o Estado reverta as frequências entregues irregularmente a meia dúzia de famílias e as destinem fundamentalmente aos setores públicos e comunitários, “a fim de romper o desequilíbrio atualmente existente”, esclareceu Tamayo. Segundo ele, “o desafio para universidades, organizações sociais e coletivos que aspiram contar com frequências para criar seus próprios meios é enorme, pois não somente deverão dispor da infra-estrutura e dos equipamentos necessários – recursos que sem-
Aplicando-se o espírito que prevalece na Constituição, este processo deve levar a que o Estado reverta as frequências entregues irregularmente a meia dúzia de famílias e as destinem fundamentalmente aos setores públicos e comunitários pre são escassos –, como também necessitarão desenvolver políticas, estratégias e capacidades profissionais e técnicas para operá-las”. A invisibilidade a que é relegado o processo equatoriano e o seu inequívoco compromisso com a diversidade e a pluralidade – palavras malditas para o dicionário entreguista e desintegracionista da mídia hegemônica – contrasta com a colcha de retalhos e mentiras que tecem seus donos para desqualificar a construção da democracia real no continente. Afinal, crêem – e praticam diuturnamente seu fundamentalismo – que contra Lula, Rafael, Chávez, Evo, Lugo e Cristina, vale tudo. Leonardo Wexell Severo é assessor de Comunicação da CUT Nacional, editor do jornal Hora do Povo e autor de Bolívia nas ruas e urnas contra o imperialismo (Editora Limiar, segunda edição, 110 páginas)
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internacional Jürgen Joost
Silêncio em Nova York ESTADOS UNIDOS Crise se instala na principal cidade do Império, retirando o seu glamour e ameaçando seus habitantes com a proliferação de ratos e baratas
A BULIÇOSA CIDADE de Nova York está em silêncio. Um silêncio semelhante àquele que o Brasil experimentou na Copa do Mundo de 1950, quando perdemos para o Uruguai, do “carrasco” Gighia num lotado Maracanã. E lá se foi aquela que seria a primeira estrela da camisa da Seleção. Mas o silêncio de Nova York não tem ranger de dentes, nem choro. É o silêncio de outra derrota. O centro nervoso do capitalismo está assistindo, impotente, um sistema que se derrete. E até a Quinta Avenida, orgulho daqueles que construíram esse sistema, parece aquelas ruas fantasmas das cidades vistas nos filmes do Velho Oeste dos EUA. A crise econômica impôs um toque de recolher espontâneo numa das mais agitadas avenidas do mundo. Os sinais estão em todas as esquinas. Em cada quarteirão, uma ou mais lojas fechadas, na qual se vê uma quase envergonhada placa anunciando available space. Ou seja, espaço disponível para alugar. Muitas das placas já estão empoeiradas e com a tinta esmaecida. Quase invisível em cidades menores, em Nova York a crise se escancarou e atinge não apenas o mercado financeiro, mas todos os setores da vida dos novaiorquinos. Da alimentação à vida noturna, da moda ao planejamento familiar e, até mesmo, segundo a revista alemã Der Spiegel, ao consumo de drogas pelo pessoal de Wall Street, centro financeiro da cidade e do mundo. Aqui se dança
Bem na esquina da Rua 28 com a Quinta Avenida, uma escola de ginástica define com precisão o quê acontece na cidade. “Aqui todo mundo dança”, diz a placa da escola. É a tradução mais literal do “bobeou, dançou”. E, em plena primavera, quando as pessoas começam a exercitar os corpos para vestir as roupas de banho sem agressão à estética, a escola estava vazia. Menos de dez alunos ocupavam o salão onde um professor se esforçava para dançar uma salsa que não parecesse rock. Desanimados, os alunos seguiam os passos. O desânimo é a característica mais explícita do que acontece hoje em Nova York. O “dançar” no seu sentido figurado estava a poucos metros dali, onde se ergue o Empire State, edifício de 103 andares, que depois da explosão das Torres Gêmeas voltou a ser o mais alto da cidade. Construído dois anos depois do crack de 1929, o prédio, orgulho da cidade e o sexto edifício mais alto do mundo, foi vendido. E logo para os chineses, povo que tomou conta da cidade. Numa fina e simbólica ironia, os novos proprietários estenderam uma faixa de lado a lado do edifício com os dizeres “Rebuilding Empire State” (Reconstruindo o Empire State ou, simplesmente, reconstruindo o Estado do Império). Para o bom entendedor e, principalmente para os esotéricos, a faixa é autoexplicativa. E nem mesmo a oferta de pacotes turísticos a baixo custo tem atraído as pessoas. No Gershwin Hotel, que foi uma das hospedagens mais clássicas dos anos 40, o porteiro diz, “Não, não é a crise. Vá para upper (parte alta da ilha de Manhattan) que está tudo
igual”. Provavelmente ele não circula pela parte mais rica da cidade, onde se encontram as mais famosas marcas do mundo. Ali se misturam Chanel, Ferragamo, Gucci, Prada, Tiffany´s. Mas os vendedores estão, na sua maioria, nas calçadas, quase caçando compradores. Estes passam, olham os preços e seguem adiante, descendo a rua em busca de marcas mais populares ou dos brechós da Avenida Madison, que vendem roupas usadas de marcas, a preços mais acessíveis aos bolsos da crise. Menos filhos
Além de terem reduzido as saídas noturnas e o hábito de jantar fora, os novaiorquinos também decidiram não arriscar a prole. O número de vasectomias na cidade cresceu 47% entre novembro de 2008, quando a crise já mostrara sua carranca, e abril deste ano. A decisão de ter menos filhos, ou evitá-los de forma radical, é muito comum entre os povos primitivos. No Brasil, aconteceu com o povo Parakategê, que vive nas proximidades de Marabá (PA), quando se viu cercado com o crescimento da região e a medida praticamente comprometeu a
O desânimo é a característica mais explícita do que acontece hoje em Nova York existência desse povo, quando se reduziram a 40 pessoas. Hoje, a aldeia conta com bem mais de 200. E se repetiu entre os Yanomami na época da fúria de construção das estradas na Amazônia durante o governo do ditador Emílio Garrastazu Médici e, mais recentemente, quando aquele povo viu suas terras invadidas por milhares de garimpeiros. Tanto num como no outro caso, o índice de natalidade só se regularizou quando a fase aguda da ameaça diminuiu. Ou seja, novairquinos, Yanomami ou qualquer outro povo resguarda, com técnicas diferentes, a manutenção
Vista aérea de Nova York, com o Empire State ao fundo, no centro: sem as Torres Gêmeas, edifício voltou a ser o mais alto da cidade
da espécie. A taxa de nascimento das crianças também foi baixa nos Estados Unidos durante a crise de 1930. Normalizou-se depois da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), quando houve o “baby boom” (explosão de natalidade). O mesmo fenômeno se repetiu na crise dos anos 70. Menos filhos significa mais disponibilidade para busca de outra fonte de renda e, principalmente, custo zero de educação e saúde das crianças. E corte de gastos transformouse na palavra de ordem dos Estados Unidos. Mudança de hábitos
Se as pequenas lojas que tanto charme emprestaram a Nova York passam por dificuldades e fecham suas portas, os restaurantes também começaram a enfrentar problemas com a nova cultura local imposta pela crise do capitalismo. Ela mudou os hábitos da cidade e os novaiorquinos agora procuram lazer dentro dos limites de suas próprias casas. As saídas para jantar fora, por exemplo, se reduziram ou, no máximo, estão sendo selecionadas rigorosamente. E, invariavelmente, pelo preço do cardápio. Pesquisa feita pela revista Zagat, um guia de restaurantes e viagens, mostra que 38% dos moradores da cidade passaram a comer menos fora, enquanto 35% escolhem o restaurante pelo preço e 21% David Reid
Memélia Moreira de Nova York (EUA)
Interior da Trinity Church, igreja localizada em Wall Street
eliminaram completamente a entrada e a sobremesa. A previsão da Zagat é de que a crise que atingiu o setor de hotéis e restaurantes será longa e só tem paralelo com a “Segundafeira Negra de 1987” e com os dias imediatos ao ataque de 11 de setembro de 2001, que além das Torres Gêmeas, derrubou a auto-estima do novaiorquino e dos estadunidenses de um modo geral. A retração dos fregueses teve como consequência imediata o fechamento de restaurantes. Nos últimos três meses de 2008, 88 desses estabelecimentos encerraram seus negócios, o que levou a revista Zagat a afirmar que “os tempos estão duros mas, apesar disso, Nova York ainda é a cidade com o maior número de restaurantes”. Mas...até quando? De qualquer forma, a mudança de hábitos traz consigo um dado positivo. Se reduziram a vida noturna, os habitantes de Nova York passaram a escolher os museus e outras atividades mais baratas para os momentos de lazer. Especializada em marketing cultural, a empresa La Placa Cohen, sediada na cidade, dedicou-se a uma pesquisa entrevistando mil pessoas durante três meses a pedido da organização não-governamental American for the Arts, que existe há 45 anos e trabalha na defesa da democratização das artes. Eles queriam saber se a crise afetaria museus e espaços culturais. Para sua surpresa, 88% dos entrevistados afirmaram que, ao contrário do esperado, estavam dispostos a frequentar mais os museus e outras atividades culturais. Não há uma explicação óbvia para o fenômeno, mas a La Placa Cohen acredita que museus e atividades culturais custam menos que noitadas em restaurantes e boates, além de aprimorar os conhecimentos. Mas mesmo que os novaiorquinos estejam mais dispostos a frequentar seus museus, isso não deixou essas instituições fora da crise. Um dos mais famosos do mundo, o Metropolitan Museum, anunciou em março a demissão de 10% de sua equipe. Em números reais isso significa 250 trabalhadores desempregados. E entre os postos de trabalhos, um dos mais importantes, a curadoria, teve que ser sacrificado. Além disso, suas 15 lojas espalhadas pelo território do país entraram na lista dos cortes. Essa redução do número de funcionários não é a primeira desde que começou a crise. Em 2008, 53 outros já haviam sido demitidos. E a explicação é simples: o Metropolitan, que sempre teve finanças bem equilibradas, perdeu, nos úl-
timos 11 meses, cerca de 25% dos fundos que o sustentam. E, no meio da turbulência, nenhum governo, até mesmo os mais sensíveis, se preocupa com museus e artes. Apenas com a sobrevivência dos bancos. Os sofrimentos da moda
Mundo de glamour e brilho, a indústria da moda, que movimenta milhões de dólares na Europa, Estados Unidos e até em mercados mais modestos, só agora descobriu que a crise é inexorável e não deixaria as passarelas a salvo. No grande acontecimento que é a semana da moda para cada estação, em fevereiro, a semana da moda outonoinverno de 2010 não chegou exatamente a ser maltrapilha, mas foi apenas um espectro do seu esplendor dos anos anteriores. A maioria dos estilistas economizou no número de peças e até mesmo fizeram apresentações coletivas para “rachar” as despesas típicas de um desfile tais como pagamento de convites, maquiadores e as belas modelos que apresentam as roupas. O estilista Marc Jacobs, um dos mais famosos nos EUA, foi um que cortou seus gastos. Os cortes foram nos convites. Este ano, ele distribuiu apenas 700, contra os dois mil distribuídos em 2008. Num movimento de resistência à crise, os organizadores da semana da moda distribuíram na entrada dos desfiles panfletos onde se lia “O chique tem de sobreviver”. Não foi suficiente para devolver o glamour das passarelas. A tal ponto que o prefeito da cidade, Michel Bloomberg, resolveu interferir no setor anunciando que, no próximo ano, a semana da moda outono-inverno (que é mais importante que a semana primavera-verão) vai ser apresentada no Centro Artístico e Musical Lincoln, bem mais visível do que o Bryant Park, onde acontece regularmente. Bloomberg justificou sua interferência dizendo que “a indústria da moda é vital para a economia de Nova York. Ela emprega mais de 175 mil pessoas e representa vários milhões de dólares por ano. Por isso, promover esta semana é ainda mais importante em tempos difíceis”.
Tirando casquinha da crise
Wall Street não dorme no ponto. Tira casquinha até mesmo da crise. Nem que sejam minguados dólares do boleto de entrada para o “Museu das Finanças Americanas”, localizado na própria Wall Street, a poucos passos da Bolsa de Valores de Nova York. No começo de abril, eles abriram a exposição “No Rastro da Crise”. Nas paredes
do Museu, painéis coloridos registram uma linha do tempo com os fatos ocorridos entre fevereiro de 2007 a março de 2009 com destaque para a declaração de falência do banco de investimentos Lehman Brothers, em setembro de 2008 e fecha mostrando a quebra da seguradora AIG, com seu anunciado prejuízo de 60 bilhões de dólares no último trimestre de 2008, a estatização da empresa e o polêmico bônus distribuído a seus executivos. Mas quem mais festeja a crise são os incômodos ratos e baratas. Pode até parecer absurdo, mas os ratos e baratas que tanto incomodam não só os novaiorquinos, mas qualquer pessoa, proliferam e não estão sendo combatidos. Tanto os clientes comerciais quanto os residenciais suspenderam as vistorias regulares de controle de pragas, o que significa um perigo considerável, dada a capacidade de reprodução desses animais. Um executivo da “Associação de Gerenciamento de Pragas de Nova York” declarou recentemente aos jornais que os negócios só não estão completamente parados porque as pessoas ainda se preocupam com o extermínio dos percevejos. Ou seja, com o agravamento da crise, a sedutora Nova York pode se transformar no paraíso desses repelentes insetos e animais, principalmente com a chegada do verão que se inicia oficialmente em 21 de junho. Cantada em prosa e verso, a sedutora cidade corre o risco de se tornar insuportável e ser inundada por ratos, percevejos, baratas. E isso não é ficção científica. Para fugir de todo esse quadro que aproxima Nova York das tristes e sujas capitais da Idade Média na Europa, muitos executivos e operadores financeiros da Bolsa de Valores foram buscar um refúgio muito conhecido pelos pobres do mundo inteiro: a religião. Igrejas cristãs e sinagogas subitamente viram crescer o número de fiéis. Quem mais percebeu o novo fluxo foi o reverendo Mark Bozzutti-Jones, da Trinity Church (Igreja da Trindade), localizada em Wall Street. Os novos fiéis trajam roupas de executivos e o reverendo não perde tempo. No seu sermão da hora do almoço, quando maior é o número dos novos cristão, ele se dirigiu àqueles que sempre acreditaram ser o capitalismo a solução para todos os problemas, dizendo: “Nós não podemos colocar nossa fé só nas riquezas, dirigir nossa fé e energia apenas para o dinheiro, porque há muitos outros valores”. No final da pregação, os novos cristão ainda dizem “Amém”.
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áfrica
A crise e a violência contra a mulher Douglas Mansur/Novo Movimento
QUESTÃO DE GÊNERO Impactos da recessão mundial no continente africano deverá fazer com que os homens descontem frustrações em suas esposas
A VIOLÊNCIA CONTRA as mulheres africanas aumentará devido à crise financeira mundial, alerta Mwila Chigaga, especialista em gênero da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em sua sede na capital da Etiópia. No mundo industrializado, há informes de primeira mão sobre perdas de trabalho, execuções judiciais e cidadãos vivendo com seu cartão de crédito no vermelho. Da África, sabe-se que há ameaças de fechamento e redução de pessoal nas minas de cobre da Zâmbia e nas de diamantes em Botsuana. Mas as desigualdades de gênero impedem que se documente o que ocorre com as mulheres no continente. A reportagem conversou com Chigaga sobre como a OIT prevê que a crise irá afetar o setor operário da África e as mulheres, em particular. Em que se diferencia o impacto da crise na África e no norte industrializado?
Mwila Chigaga – O panorama não se revelou plenamente porque a crise está ganhando vida própria. Para analisar o que ocorre na África, temos de voltar à situação existente antes da crise. No continente, já tivemos uma profunda crise econômica e estamos lidando com questões de crescimento econômico, pobreza, HIV/ Aids, desigualdade de gênero e discriminação. Assim, tudo isso tem um impacto sobre o desenvolvimento da crise. Na África, o setor formal é muito, muito pequeno, e o informal é enorme. A geografia da desigualdade de gênero no continente não é uniforme. Temos a África setentrional, onde há poucas mulheres participando do mercado de trabalho, seja formal ou não, desde antes da crise. Depois, temos a África ocidental, onde há uma enorme quantidade de mulheres no setor informal. Mas, nessa região do continente, a quantidade de homens que estão no setor informal também é muito maior do que a de homens neste setor na África meridional. Tudo isto influi em como se vê o impacto da crise financeira. Quais são algumas das respostas políticas que os governos africanos deveriam estar praticando para amortizar o efeito da crise tanto em homens quanto em mulheres?
O maior desafio é que a maioria dos governos africanos não tem fisco. Simplesmente não temos esse tipo de reservas ou recursos para investir no tipo de pacotes de estímulos em que estão investindo, por exemplo, os países industrializados. Mas, se dividirmos essas respostas políticas nas de curto e longo prazo, podemos chegar a alguma parte. No curto prazo, necessitamos abordar o impacto da crise financeira nos lares e no plano individual. Se as pessoas não têm um trabalho, é preciso o governo considerar algum tipo de proteção social, alguma forma de transferência de fundos, que não necessariamente tem de ser em dinheiro. Por exemplo, sabemos que a maioria das mulheres está no setor agrícola. Assim, os governos poderiam considerar a implementação de algum tipo de programa de ação afirmativa, para que elas tenham acesso a insumos agrícolas subsidiados, como sementes e fertilizantes. Dessa forma, teríamos continuidade em termos de produção alimentar, porque na África, uma vez que esta crise econômica alcance a crise alimentar, o impacto será devastador.
Já que, como mencionou, a África já atravessava uma crise econômica, como se pode definir se o impacto que está experimentando agora é resultado dessa ou da atual crise?
Muitas pessoas dizem que, como a África está menos integrada nos mercados financeiros mundiais, deveríamos sofrer menos com os impactos da crise internacional. Mas se alguém olhar a economia política da África, verá que temos poucos investimentos estrangeiros diretos – mas que estão melhorando –, que dependemos da ajuda oficial ao desenvolvimento e que somos economias exportadoras de matérias-primas. Assim, a interação entre esses fatores significa que naturalmente seremos afetados. Mas, ao mesmo tempo, não temos uma proteção social institucionalizada. Não temos benefícios por desemprego nem seguros de saúde. Assim, quando o chefe de família perde uma renda, não há outro recurso, porque é o último recurso.
Se na África não forem tomadas medidas, quais serão os efeitos imediatos e a longo prazo?
Todos falam sobre o êxito dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Naturalmente, veremos dificuldades em sua implementação. Minha preocupação é que, historicamente, na África, não integramos as questões de gênero nas políticas. Não priorizamos as questões de igualdade de gênero e não tomamos em consideração o triplo papel das mulheres: produtivo, reprodutivo e fornecedora de cuidados. Um dos impactos da crise será no plano do indivíduo e da família. Há muitas mulheres fora da rede. O governo não pode captá-las. Isso terá um efeito contundente nos lares, em termos de má-nutrição infantil e crianças abandonando a escola, e essas serão as piores manifestações da crise na África. A senhora disse que deveria haver políticas de ação afirmativa para as mulheres no setor agrícola como respostachave à crise. Por que a agricultura e por que as mulheres?
Precisamos nos fixar onde podemos obter triunfos rápidos, onde podemos criar trabalhos. E a agricultura é o setor onde podemos criar trabalhos. Até agora, se tirarmos as economias industrializadas, de 70% a 80% das mulheres estão no setor agrícola. Se queremos preservar os postos de trabalho existentes e criar outros no curto prazo, temos de ir onde estão as mulheres e trabalhar com elas em sua “zona de conforto”, onde já estão trabalhando.
Agricultora trabalha em Moçambique: OIT acredita que a violência contra a mulher irá crescer com a crise
ANÁLISE
Deixem de tentar “salvar” a África
Uzodinma Iweala Na primavera passada, pouco depois de eu voltar da Nigéria, uma alegre e loira universitária de olhos azuis me abordou. “Salve Darfur!”, gritava, detrás de uma mesa coberta com panfletos que convocam os estudantes: “Atue agora. Detenha o genocídio em Darfur”. Minha aversão a que os universitários subam no carro das causas sociais da moda quase me fez seguir caminhando, mas seu grito seguinte me deteve. “Não quer nos ajudar a salvar a África?”, uivou. Parece que hoje, destroçado pelo sentimento de culpabilidade da crise humanitária que criou no Oriente Médio, o Ocidente se voltou em direção à África em busca de redenção. Universitários idealistas, famosos como Bob Geldof e políticos como Tony Blair se uniram em sua missão de jogar uma luz sobre o continente escuro. Chegam de
avião para suas breves estadias e suas missões de busca de dados, ou para pegar crianças que adotam do mesmo modo que, em Nova York, eu e meus amigos vamos de metrô até o canil para adotar cachorros vagabundos. Essa é a nova imagem que o Ocidente tem de si mesmo: uma geração sexual e politicamente ativa, cujo meio preferido de divulgar a verdade é o dos encartes nas revistas que mostram famosos em primeiro plano sobre um fundo de africanos abatidos. Não importa, em absoluto, que frequentemente as estrelas enviadas para socorrer os nativos estejam, por vontade própria, tão esqueléticas como aqueles que elas desejam ajudar. Talvez seja de maior interesse a linguagem que se utiliza para se descrever os africanos a quem “salvam”. Por exemplo: a campanha publicitária com o lema “Mantenha viva uma criança/ Eu sou africano” mostra retratos de famosos
Por que é provável que a crise financeira aumente a violência de gênero?
Quando um homem chefe de família perde o emprego, é devastador. Há sentimentos de desesperança e nosso sistema patriarcal diz que um homem tem de ser o responsável por ganhar o pão. A tendência é voltar a frustração contra sua companheira. As mulheres são muito adaptáveis. Encontrarão maneiras de ganhar dinheiro. Em tempos de desespero, elas têm um mecanismo que lhes permite enfrentar as situações devido ao nosso papel de proporcionar cuidados. Assim, estamos equipadas para isso. Os homens não têm esse mecanismo, por isso começaremos a ver que essa frustração se manifestará em termos de violência no lar. (IPS/Envolverde – www.envolverde.com.br)
ocidentais, em sua maioria brancos, com “marcas tribais” pintadas na cara que aparecem por cima da frase “Eu sou africano”, em letras ressaltadas. Embaixo, em uma letra menor, podese ler: “Ajude-nos a frear a matança”.
Parece que hoje, destroçado pelo sentimento de culpabilidade da crise humanitária que criou no Oriente Médio, o Ocidente se voltou em direção à África em busca de redenção
África esteriotipada
Reprodução
Kudzai Makombe de Addis Abeba (Etiópia)
A atriz Gwyneth Paltrow em cartaz da campanha “Eu sou africana”
Tais campanhas, pese todas suas boas intenções, promovem o esteriótipo da África como um buraco negro de morte e doença. As notícias centram-se constantemente em líderes corruptos do continente, senhores da guerra, conflitos “tribais”, crianças trabalhadoras e mulheres desfiguradas pelos maus-tratos e pela mutilação genital. Essas descrições são mostradas sob manchetes como: “Bono pode salvar a África?”, ou “Angelina salvará a África?”. A relação entre o Ocidente e a África não se baseia mais em crenças abertamente racistas, mas tais matérias recordam os relatórios do auge do colonialismo europeu, quando missionários eram enviados ao continente para que pudéssemos ter acesso à educação, a Jesus Cristo e à “civilização”. Todos os africanos, e me incluo entre eles, apreciamos a ajuda do mundo exterior, mas nos perguntamos se ela é genuína ou se é oferecida com a intenção de afirmar a superioridade de sua própria cultura. Sintome desmoralizado cada vez que vou a um evento beneficente cujo anfitrião recita um sem-número de desastres africanos antes de apresentar uma pessoa (habitualmente) branca e rica, que costuma enumerar tudo que fez pelos pobres africanos famintos. Sinto vergonha cada vez que um universitário fala das danças dos camponeses agradecidos por sua ajuda. Cada vez que um diretor de Hollywood roda um filme sobre a África com um protagonista ocidental, me nego a aceitá-lo porque, por mais que sejamos pessoas reais, utilizam os africanos como o cenário da ideia fantasiosa que o Ocidente tem de si mesmo. Não só tais retratos tendem a passar ao largo do papel fundamental do Ocidente na criação de muitas das desgraçadas situações do continente, como também ignoram o enorme trabalho que os africanos têm feito, e continuam fazendo, para resolvê-las.
Os verdadeiros salvadores
Por que os meios costumam falar em como “os senhores coloniais concederam a independência” aos países africanos em vez de relatar como estes lutaram e derramaram seu sangue pela liberdade? Por que a Angelina Jolie e o Bono Vox recebem tanta atenção pelo seu trabalho na África quando raramente se menciona a Nwankwo Kanu ou Dikembe Mutombo, ambos africanos? Por que um antigo diplomata estadunidense de grau médio recebe mais atenção por suas aventuras de cowboy no Sudão que os numerosos países da União Africana que enviaram alimentos e soldados e que dedicaram inumeráveis horas para tentar negociar um acordo entre todas as partes desse conflito? Há dois anos trabalhei em um acampamento para refugiados internos na Nigéria, sobreviventes de uma rebelião que acabou com a vida de umas mil pessoas e deslocou outras duzentas mil. Como de costume, os meios ocidentais informaram sobra a violência, mas não sobre o trabalho humanitário que os governos estatal e local, sem muita ajuda internacional, prestaram aos sobreviventes. Os trabalhadores sociais dedicaram seu tempo e, em muitos casos, seus próprios salários, para se ocuparem de seus compatriotas. Essas são as pessoas que estão salvando a África, juntamente com outras como elas em todo o continente, que tampouco recebem reconhecimento por seu trabalho. Em março, o grupo das oito nações mais industrializadas e um montão de famosos se reuniram na Alemanha para entrarem em um acordo sobre, entre outras coisas, como salvar a África. Espero que antes que organizem outra cúpula parecida, as pessoas se deem conta de que a África não quer que a salvem. O que a África quer é que o mundo reconheça que nós somos capazes de chegar ao desenvolvimento por nós mesmos mediantes associações justas com outros membros da comunidade global. (Rebelión - www.rebelion.org) Uzodinma Iweala é autor de Beasts of No Nation, uma novela sobre as crianças-soldados. Tradução: Igor Ojeda