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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 332

São Paulo, de 9 a 15 de julho de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br

Reprodução

Povo hondurenho resiste ao golpe e enfrenta repressão

Na Bolívia, o resgate do modelo de vida comunitário Em entrevista ao Brasil de Fato, o intelectual aymara Fernando Huanacuni explica os fundamentos do pensamento indígena originário. Segundo ele, para os habitantes milenares dos Andes e da Amazônia, a “vida não é só humana”, pois a natureza é parte essencial de um equilíbrio perfeito. Huanacuni aproveita para desfazer uma visão equivocada, de acordo com ele, sobre o movimento popular boliviano que levou Evo Morales à presidência e que hoje o sustenta: “nosso modelo não é comunista, mas comunitário”. Pág. 11

Redução da jornada depende de pressão

Hondurenhos protestam nas ruas de Tegucigalpa, capital do país

Na mesma medida em que o regime implementado em Honduras após a deposição do presidente Manuel Zelaya endurece as restrições à população do país, os movimentos sociais fortalecem suas mobilizações contra o golpe de Estado executado no dia 28 de junho. A Frente Nacional de Resistência Popular, que integra, desde então, organizações populares rurais e urbanas, planeja intensificar suas ações, com novas ocupações de rodovias e prédios estatais e a realização de uma greve geral. O objetivo é parar a economia do país. Enquanto isso, o governo do presidente de fato Roberto Michelleti fecha o cerco contra o movimento antigolpista, retirando direitos como os de livre expressão, trânsito e associação. Págs. 2, 9 e 10 Cristian Poirier/Amazon Watch

Divulgação

Uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou no final de junho o projeto de emenda constitucional (PEC) que reduz a jornada de trabalho de 44 para 40 horas, além de aumentar de 50% para 75% o valor pago por hora-extra. Agora, o projeto deve passar por duas votações na Câmara e duas no Senado, para posteriormente ser sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para Altamiro Borges, do Comitê Central do PCdoB, entretanto, dado o caráter conservador do Congresso Nacional, a aprovação da redução da jornada carece de pressão popular. Pág. 3

Petroleiros discutem soberania em área do MST A defesa da exploração sustentável e com destinação popular dos recursos energéticos brasileiros foi a tônica da Primeira Plenária Nacional da Federação Única dos Petroleiros (PlenaFUP). O encontro, que teve a participação de 150 petroleiros, além de observadores e convidados, aconteceu entre os dias 2 e 5, no assentamento Contestado, no município da Lapa (PR). Na área, está localizada a Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fato que reforça a unidade dos trabalhadores no enfrentamento da crise. Pág. 6

A pesca é uma das atividades que será afetada pelas hidrelétricas

Governo e capital contra um rio

Michael Jackson Fenômeno cultural enigmático e controverso

Resistindo, povo do rio Madeira luta pelo rio de todos Um empreendimento com alto custo econômico, ecológico e social, que trará lucro às transnacionais e prejuízo ao povo brasileiro. Assim classificam os críticos as

obras realizadas pelo governo federal no rio Madeira. Em duas edições, o Brasil de Fato abre espaço para os afetados pelo empreendimento. Nesta, o MP aponta

falhas no processo licitatório, os povos indígenas reclamam ser ouvidos e pesquisador aponta para o perigo de uma grande contaminação por mercúrio. Pág. 5

Fábio Caffé

ISSN 1978-5134

Pág. 8

Reprodução

AFOGANDO EM NÚMEROS

Estudo do Ipea aponta que o contribuinte com renda de até 2 salários mínimos trabalha 197 dias para pagar impostos enquanto aqueles com renda superior a 30 salários trabalham 106. Em média, o brasileiro trabalha 132 dias para pagar impostos, dos quais 20,5 são destinados ao pagamento da dívida pública.

Despejo no Rio expõe a face cruel da especulação imobiliária Trinta famílias, com 28 crianças, foram violentamente expulsas de ocupação no Centro do Rio de Janeiro no dia 26 de junho. Na região, destaca-se a contradição entre a enorme população de rua e o grande número de imóveis abandonados. Pág. 7


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editorial NOVAMENTE, NOSSA América Latina se vê diante de um golpe civil-militar que derrubou um presidente eleito democraticamente pelo voto popular. Essa ação faz parte de uma ofensiva das forças antipopulares, antidemocráticas e pró-imperialistas de Honduras, que vinham nos últimos anos construindo uma frente política e militar com o objetivo de obstruir e dificultar toda e qualquer iniciativa do governo do presidente Manuel Zelaya que fosse numa direção mais progressista. O governante deposto não pode ser considerado um político com longa trajetória nas fileiras da esquerda hondurenha. Zelaya e o Partido Liberal têm assumido posições mais progressistas desde sua eleição, em 2005, fato que ocorre numa conjuntura continental marcada por vitórias eleitorais que, impulsionadas por lutas populares e de massa, resultaram em ações concretas no sentido de construir uma nova geopolítica latino-americana. Desde 2006, o presidente Manuel Zelaya vem enfrentando os setores mais conservadores da política hondurenha por defender a participação ativa do país na construção de uma verdadeira integração econômica, social e política com conteúdo popu-

debate

O primeiro golpe civil-militar contra a Alba lar e democrático, que garanta, de fato, a soberania e a autodeterminação das nações. O golpe civil-militar seguiu o método clássico do golpismo na região. Mas alguns elementos novos estão presentes, e talvez possamos afirmar que tal ação em Honduras tenha mais semelhança com a tentativa de derrubar o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em abril de 2002, com a diferença de que o novo gestor do imperialismo estadunidense, Barak Obama, se posicionou contrário à deposição do mandatário eleito. A tendência, na história da América Latina contemporânea, é de derrotas de governos populares, democráticos e anti-imperialistas através de golpes de Estado dirigidos pela classe dominante nacional com apoio e participação ativa da elite estadunidense, representada pelo governo, pelas empresas transnacionais, pela CIA e pelas Forças Armadas. Com a vitória popular antigolpista na Venezuela em 2002, vivenciamos

algo que, para muitos, era inesperado ou mesmo impossível de ocorrer. Diante do poder econômico das grandes corporações industriais e financeiras, dos veículos de comunicação de massa da classe dominante, de um setor militar antidemocrático e golpista, da esmagadora maioria dos dirigentes da Igreja Católica, de uma central sindical pró-imperialista (CTV) e do apoio de governos de direita como os dos EUA e da Espanha, como poderia o povo venezuelano garantir o mandato do presidente Chávez e derrotar essa iniciativa das forças conservadoras? Mas a situação de Honduras é distinta por vários motivos. Vale a pena lembrar de alguns: Chávez nasceu politicamente no interior da esquerda venezuelana; Chávez possuía um grau considerável de apoio no interior das Forças Armadas, o que ajudou a neutralizar os golpistas; o apoio explícito do governo dos EUA ao golpe; e a motivação da ação: na Venezuela, a mídia burgue-

sa construiu a ideia de que o governo foi responsável pelo assassinato de manifestantes (o que não era verdade), enquanto em Honduras o motivo alegado foi a realização de uma consulta popular, prevista para ocorrer em 28 de junho, para saber se o povo desejaria participar de um processo de construção de uma nova Constituição para o país. Olhando para a situação dos países membros da Alba, principalmente para os casos de Venezuela, Bolívia e Equador, que recentemente aprovaram novas Constituições que expressam a nova correlação de forças políticas e sociais vigente, a direita hondurenha entrou em pânico com a possibilidade de que a classe trabalhadora e as massas populares pudessem ter uma participação mais ativa, mais consciente e mais organizada no processo de construção das transformações necessárias para garantir uma vida mais digna para o povo daquele país.

crônica

Theotonio dos Santos

As lições de Honduras CONTA-SE UMA piada reveladora entre os presidentes latino-americanos: – Sabe por que não há golpes de Estado nos EUA? – Não! – Porque nos EUA não existe embaixada dos EUA. Além disso, sabemos que os golpes nos Estados Unidos se dão através do assassinato puro e simples de seus presidentes (como no caso de John Kennedy) ou com a ajuda da Suprema Corte para impedir a recontagem dos votos (como no caso de Bush). Mas qual é a lição de Honduras? Pela primeira vez na história, os EUA apoiam a condenação de um golpe de Estado na América Latina, permitindo que se realize uma condenação unânime de todas as organizações internacionais. Isso quer dizer que dessa vez a embaixada estadunidense não participou desse ato de força? Desgraçadamente, não. De maneira indiscreta, um deputado da direita hondurenha revelou publicamente a conspiração que os golpistas mantinham com a embaixada dos EUA. Ele o fez na memorável sessão de primitivo disfarce democrático na qual se realizou a “eleição” do “sucessor” do presidente Zelaya, que havia renunciado, segundo a carta falsa lida por esse “sucessor”. Tal sessão foi transmitida pela Rádio Globo de Honduras, a última a ser silenciada pelos “democratas” do “governo provisório”. Segundo esse deputado, o embaixador dos EUA, que aprovava a movimentação golpista, era contra realizar o golpe antes da consulta popular não vinculante, chamada “referendo” pela Corte Suprema hondurenha e pela grande imprensa internacional, que busca desesperadamente justificar o ocorrido. Seria muito difícil acreditar que o governo dos EUA estivesse ausente da conspiração em um país que serviu de base a suas organizações militares mercenárias que desestabilizaram o governo legítimo dos sandinistas. Neste mundo de contrainformação em que vivemos, escutei o locutor da Globo News dizer que as organizações militares dos “contras” hondurenhos lutavam contra os “guerrilheiros” nicaraguenses. O Congresso estadunidense se ocupou de nos revelar os detalhes tenebrosos da operação triangular contra o governo sandinista, comandada pelo então vice-presidente dos EUA, George Bush: o governo estadunidense expandiu as operações do narcotráfico a partir da Colômbia através dos “contras” assentados de Honduras, Costa Rica e El Salvador. Os lucros serviam para financiar as operações e, ao mesmo tempo, para comprar armas para o eterno “inimigo” público dos EUA: o governo do Irã. Apesar de suas diferenças, os líderes religiosos iranianos haviam acordado com o então candidato George Bush prolongar o sequestro dos prisioneiros estadunidenses em sua embaixada em

Responsabilidade estadunidense Essas conclusões sobre a provável participação dos EUA no golpe em Honduras são reforçadas com as colocações de Ramsey Clark e do bispo Filipe Teixeira, da Diocese de San Francisco de Asis, em mensagem urgente ao presidente dos EUA: “Tomando em consideração: 1. A colaboração próxima dos militares dos EUA com o exército hondurenho manifestado pelo treinamento e exercícios comuns; 2. O papel da base militar Soto Cano, agora sob o comando do coronel Richard A. Juergens, que era Diretor de Operações Especiais durante o sequestro, em fevereiro de 2004, do presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide; 3. Que o chefe do Estado Maior do exército hondurenho, general Romeo Vásquez, foi treinado na Escola das Américas, dos EUA; 4. Que o Secretário Adjunto de Estado, Thomas A. Shannon Jr., e o embaixador dos EUA em Honduras, Hugo Llorens, estavam plenamente cientes dos conflitos que conduziam ao golpe militar. Concluímos que o governo dos EUA tem responsabilidade sobre o golpe e está obrigado a exigir que o Exército hondurenho regresse à ordem constitucional e evite ações criminosas contra o povo hondurenho”. Em resumo, o currículo estadunidense em Honduras mostra a dificuldade de se confiar em seus desígnios democráticos na região. Talvez a volta dos sandinistas e dos revolucionários salvadorenhos ao governo depois de anos de brutal repressão em seus países tenha ensinado algo à diplomacia dos EUA, ainda vacilante em condenar definitivamente o golpe de Estado hondurenho. Manipulações A imprensa internacional expressa essas vacilações ao chamar Zelaya de presidente “deposto”, e o golpista Roberto Micheletti de presidente “interino”; ao chamar a consulta não vin-

Luiz Ricardo Leitão

Lições da Pátria Grande Reprodução

Teerã para desmoralizar Carter e permitir a vitória eleitoral de Reagan, em troca dessa ajuda militar secreta.

No entanto, muitas questões ainda não foram respondidas: qual foi o papel dos EUA nesse processo? Será possível um golpe civil-militar desse tipo sem apoio dos EUA num país onde a burguesia é estruturalmente subordinada aos interesses de Washington? Por que representantes do governo dos EUA mantiveram contatos com líderes golpistas antes e durante o processo que depôs Zelaya? Diante do golpe, a resistência popular nacional e internacional novamente se fez presente. Só a mobilização do povo hondurenho e a solidariedade internacionalista podem fazer recuar as forças golpistas. A vitória popular em Honduras é fundamental para fortalecer os países da Alba na luta pelo direito de decidir qual será o caminho de desenvolvimento econômico, social e político escolhido pelo povo de cada nação latino-americana. A batalha de Honduras será decisiva para a América Central e Caribe, pois, para essa região de “nuestra América”, só existem dois caminhos: submissão aos interesses dos EUA ou construção livre, soberana e independente de uma integração verdadeiramente popular, democrática e anti-imperialista, que possa ir criando as condições para a vitória do socialismo na América Latina.

culante proposta por Zelaya para criar uma Constituinte de “referendo” para se perpetuar no poder. Coisas que não se vem escutando sobre o presidente assassino da Colômbia, que busca o terceiro período presidencial, nem se escutavam sobre as pretensões de reeleição de Fujimori, Menem ou Fernando Henrique Cardoso. É também reveladora a ausência de referência na imprensa à carta falsa do presidente Zelaya lida no Parlamento para justificar a eleição de seu sucessor. É cômico que se afirme que esse senhor foi eleito por unanimidade quando não compareceram à essa sessão os deputados governistas ameaçados com prisão. Por fim, entre outras insidiosas tergiversações, se veicula que há uma confrontação mais ou menos igual entre os defensores armados do golpe e os desarmados manifestantes contra o mesmo. Tudo isso e as declarações da secretária de Estado Hillary Clinton sobre o necessário respeito das instituições hondurenhas que possuem acordos com os EUA nos mostram que há divergências dentro do governo estadunidense. Com o fantástico apoio internacional com o qual conta o presidente Zelaya, busca-se obrigá-lo a uma negociação espúria com os golpistas. Até hoje, a justiça venezuelana não aceita definir como um golpe de Estado o que seus gorilas locais realizaram em 2002. Imagine o que vão propor em Honduras... Zelaya e o povo hondurenho terão muitas dificuldades daqui para frente, mas não devem se acovardar diante delas. Não têm porque abaixar frente os mercenários e seus chefes, nem diante dos golpistas, que são desprezados por toda a humanidade, apesar dos apoios abertos ou, inclusive, disfarçados, dos grandes meios de comunicação. Theotonio dos Santos é presidente da Cátedra e Rede sobre Economia Mundial e Desenvolvimento Sustentável da Unesco e da Universidade das Nações Unidas (UNU). É também professor emérito da Universidade Federal Fluminense (UFF). http://theotoniodossantos.blogspot.com Tradução: Igor Ojeda

TENHO EM MÃOS uma singela obra intitulada A Revolução Venezuelana, o mais recente trabalho do historiador e jornalista Gilberto Maringoni, um especialista nas lides da pátria de Simón Bolívar. O livro integra a coleção “Revoluções do Século XX”, publicada pela Editora UNESP, e sua aparição é mais que oportuna, em meio à turbulência que se espraia pela América Latina após o cabal fracasso do Consenso de Washington e do modelo neoliberal que se impôs ao continente no final dos anos novecentos. Aliás, enquanto escrevo estas breves linhas, milhares de hondurenhos saem às ruas em defesa do presidente Manuel Zelaya, deposto pelas oligarquias do país, ensinando – mais uma vez – a todos aqueles que um dia acreditaram na tosca metafísica de Fukuyama que a História e, sobretudo, as lutas revolucionárias da Pátria Grande seguem a plena marcha, ainda que o bom mulato Obama e outros menos cotados tratem de cozinhar em banho-maria as expectativas de mudança cultivadas ao sul do Rio Bravo. Embora a história só se repita como farsa ou tragédia, os episódios de Honduras evocam fatos recentes da história venezuelana, que Maringoni aborda com extrema lucidez e profundidade. Ele evita prognósticos fáceis sobre o futuro da “Revolução Bolivariana” liderada por Hugo Chávez, ciente de que o processo político do país vizinho continua em aberto e de que qualquer análise sobre sua evolução seria forçosamente inconclusa. “As incertezas estão no ar”, alerta o escritor, ao salientar que, a partir de 1998, apesar de vários governos progressistas terem sido eleitos em franca oposição às reformas neoliberais (basta citar Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, no Equador), nenhum deles, na prática, transformou radicalmente os modelos de desenvolvimento então vigentes. Nossa pauta de exportações, por exemplo, é a mesma do velho regime colonial extrativista e agroexportador. Que o diga a própria Venezuela, cuja principal fonte de divisas continua a ser o petróleo, ou a Bolívia de Evo, refém do gás e da soja, isso sem falar no Brasil de Lulinha Paz & Amor, a exportar carne, soja, cana e minérios in natura. Entre 2004 e 2008, uma onda especulativa global elevou os preços dessas matérias-primas (as famosas commodities). Cresceu o PIB dos países exportadores e houve superavits em suas balanças comerciais: só o petróleo chegou a valer 150 dólares por barril em julho de 2008 (o produto venezuelano, de pior qualidade, ficou um pouco abaixo). “Isso gerou expansão de crédito, melhorias no padrão de vida, elevação dos gastos sociais e alta popularidade para os novos governos”, frisa o autor. Ao final de 2008, porém, a bolha da especulação desinflou: os voláteis capitais fugiram dos países emergentes e o preço das mercadorias desabou (em dezembro o barril de petróleo era cotado a US$ 40, em média). Prevê-se queda acentuada do PIB (que teve crescimento médio de 8% desde 2005, na Venezuela) e redução dos gastos sociais, o que poderia implicar graves problemas, não só para Chávez, como também para Lula, Correa, Morales, Kirchner e outros governantes. Maringoni, contudo, não se atém apenas às contradições da esfera econômica. Ele analisa com sutileza os meandros políticos do processo bolivariano, protagonizado, como bem sabemos, pela figura carismática e controversa de Hugo Chávez, em quem o autor identifica uma exuberante personalidade política, “criativa, imprevisível, irreverente e, por vezes, egocêntrica e inconveniente”, mas decerto a mais incômoda e adversa ao sinistro receituário financeiro-liberal que dita as políticas públicas da região. Que o digam as lentas – mas efetivas e inéditas – mudanças que este promove em seu governo, tais como o controle sobre a estatal de petróleo (PDVSA), a nacionalização de empresas e riquezas naturais, além da ampliação dos direitos dos povos indígenas e das classes populares. É fato, porém, que, na esfera política, iniciativas como a convocação, em 2007, do referendo em que se incluía a emenda pela reeleição indeterminada do presidente, sem uma ampla campanha de esclarecimento do projeto, têm representado uma “precipitação desnecessária”. Para o autor, tal opção não responde à realidade mais recente da política local, em que um setor da oposição trata de dissociar-se do estigma gerado pelo canhestro e fracassado golpe de 2002. Ainda assim, no preciso instante em que Cuba se ocupa de reavaliar a sua truncada relação com Tio Sam, Chávez é um líder imprescindível para a Pátria Grande. Com Fidel no banco de reservas, é a ele que cabe a árdua tarefa de afrontar o time da reação, como tão bem atesta o caso de Honduras, cuja solução, por certo, não advirá das palavras macias de moços brancos e mulatos, mas sim das lições de luta dessa gente mestiça da Pátria Grande. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Luís Brasilino • Subeditor: Igor Ojeda • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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Redução da jornada, por ora, avança Reprodução

TRABALHO PEC foi aprovada em Comissão Especial da Câmara, mas deve esbarrar em Congresso conservador Renato Godoy de Toledo da Redação A CADA SALTO da produtividade dado pelo setor patronal, a bandeira da redução da jornada de trabalho naturalmente retorna à pauta das organizações sindicais. Há mais de 20 anos, a Constituição Federal de 1988 determinou que a jornada máxima fosse reduzida de 48 para 44 horas. Os últimos 20 anos foram marcados por grandes avanços da microeletrônica que propiciaram inovações decisivas na produção. No entanto, a jornada permaneceu nesse patamar. Diante desse quadro, algumas articulações vêm sendo realizadas entre movimento sindical e parlamentares para diminuir o número de horas trabalhadas sem redução salarial. Nesse sentido, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados, criada para analisar a proposta de emenda constitucional (PEC), aprovou no dia 30 de junho a diminuição da jornada de 44 para 40 horas semanais, sem diminuição de salário, e o aumento de 50% para 75% do adicional sobre o valor da hora-extra. A elevação do valor pago para as horas-extras é um importante estímulo para a geração de postos de trabalho, já que o empresariado é forçado a contratar novos funcionários ao invés de impôr uma jornada mais extenuante aos trabalhadores. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apon-

ta que a medida pode gerar 2 milhões de novos empregos. Apesar de louvável, ainda é cedo para comemorar a redução da jornada. Isso porque a medida ainda deve passar por outras etapas e por entraves inerentes à composição majoritariamente conservadora do Congresso Nacional. Para ser aprovada, a medida tem que obter apoio de dois terços da Câmara e do Senado, em votações de dois turnos. Posteriormente, a PEC precisa ser sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que já afirmou ser favorável à medida.

Apesar de louvável, ainda é cedo para comemorar a redução da jornada A aprovação da PEC na comissão acontece pouco mais de um ano após as centrais sindicais brasileiras realizarem uma campanha nacional pela redução da jornada de trabalho, sem decréscimo dos rendimentos. A reivindicação foi o tema central do 1º de Maio de 2008, quando houve uma inédita unificação de pautas entre as maiores centrais do Brasil. Reação patronal

Após o parecer da comissão especial, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) prontamente lançou uma nota

reagindo à decisão. Para a entidade, a redução da jornada e o aumento do valor pago sobre as horas-extras resultariam em aumento do desemprego. Para Altamiro Borges, membro do Comitê Central do PCdoB, a reação do setor patronal remete à época da escravidão, quando setores afirmavam que o fim do trabalho forçado causaria problemas econômicos. “A redução da jornada é uma bandeira muito factível, mesmo dentro do capitalismo, pois reflete no aumento da produtividade. Ela não implicará em perda de lucros para os patrões”, analisa. A implementação das 40 horas semanais não deve ser fácil. A tendência, de acordo com Borges, é que a emenda constitucional seja barrada pelo Congresso. Aí entra o papel dos movimentos sociais, sobretudo o sindical. “Agora serão duas votações no Congresso, onde há um cenário desfavorável. Aí só tem uma forma de passar: pressão popular. Posteriormente, tem a sanção do presidente. Não acredito em veto presidencial, seria muita incoerência, pois o Lula já afirmou ser favorável, por conta de os empresários já terem lucrado demais”, prevê. Para ele, o principal motivo para a rejeição do projeto por parte dos empresários é político. “O mundo do trabalho vem sofrendo muitas derrotas mundialmente. Essa seria uma grande vitória política, que daria muita força para outras lutas. Então, eles vão vir com essa grita, assim como vieram em 1988”, relembra.

O relator da PEC, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho (PT-SP), também traça um paralelo com momentos anteriores, quando a classe trabalhadora mobilizou-se pela redução da jornada. “Respeito a posição da CNI, mas o argumento é o mesmo de 25 anos atrás, quando conseguimos diminuir a jornada de trabalho no ABC e, posteriormente, na Assembleia Constituinte. Parte do empresariado já está de acordo com a medida, pois já adota a jornada de 40 horas. No final, todos saíram ganhando, com cidadania no trabalho”, avalia o deputado, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e da CUT. Efeitos positivos

Para Altamiro Borges, uma jornada de 40 horas semanais

teria um efeito redistributivo, já que o setor produtivo acumula duas décadas de crescimento. “A redução da jornada seria uma maneira de ‘socializar’ os frutos da inovação tecnológica da produção. Hoje, o setor empresarial abocanha todos os lucros oriundos do avanço tecnológico”, explica. Outro impacto positivo seria a qualidade de vida do trabalhador, que resultaria até no índice de sindicalização. “O [sociólogo] Ricardo Antunes afirma que a redução da jornada é uma bandeira reformista e revolucionária que tem efeitos na consciência do trabalho. Do ponto de vista da consciência, a redução dá mais tempo para que a pessoa possa estudar, ficar com a família e até participar do sindicato”, considera. Para o deputado Vicenti-

nho, o número de acidentes de trabalho seria atenuado com a implementação do teto de 40 horas semanais. “O primeiro efeito positivo da redução da jornada é que, com menos horas trabalhadas, os acidentes de trabalho devem diminuir, pois estes estão ligados a uma jornada exaustiva”, prevê. Ambiente de trabalho

O relator da PEC aponta que a medida deve propiciar uma maior produtividade para as empresas, já que uma jornada mais amena propiciaria mais produtividade. “Com as 40 horas, teremos um ambiente de trabalho melhor, com um trabalhador mais animado, mais respeitado e, a médio prazo, isso representará a geração de mais empregos”, afirma.


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Identificada a ossada de Bergson Valter Campanato/ABr

DITADURA Guerrilheiro foi a primeira baixa entre os quadros do PCdoB que combateram a ditadura militar na Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974 Iram Alfaia de Brasília (DF) A SECRETARIA ESPECIAL de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/ PR) e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) anunciaram, dia 7, o resultado positivo do exame de DNA nos restos mortais do guerrilheiro Bergson Gurjão Farias, a primeira baixa entre os quadros do PCdoB que combateram a ditadura militar na Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974. A ossada do líder estudantil cearense foi exumada do cemitério de Xambioá e estava entre as dez que estão guardadas em Brasília, no Ministério da Justiça. Com a identificação de Bergson Gurjão, agora são dois os desaparecidos políticos do Araguaia já identificados. A primeira foi Maria Lúcia Petit da Silva, que teve sua ossada reconhecida em 1996 e sepultada por seus familiares em Bauru (SP). Militante do PCdoB, ela foi para a região em 1970. Estava desaparecida desde 1972. Após as identificações, restam ainda 63 desaparecidos políticos do Araguaia, segundo contabilidade do governo. Outra ossada denominada de 11ª encontra-se em São Paulo e há fortes indícios de que seja de Francisco Manoel Chaves, outro quadro do PCdoB que, aos 60 anos, chegou à região. Falta material genético da família para a identificação. As ossadas têm a estrutura de um afro-descendente, como era Chaves, imortalizado no livro Memórias dos Cárcere’. Na obra, o escritor Gracilia-

no Ramos narra o empenho do militante em denunciar as condições desumanas do presídio de Ilha Grande, para onde foi levado após engrossar as fileiras da Aliança Nacional Libertadora em 1935. Segundo o ministro Paulo Vannuchi (Direitos Humanos), a identificação de Bergson só foi possível devido ao uso de tecnologia inovadora empregada pelo Laboratório Genomic para análise de DNA forense, denominada SNP (Single Nucleotide Polymorphisms). Nas próximas semanas, a mesma tecnologia será usada para a identificação das demais ossadas que estão no Ministério ou das que chegarem no local. Dois exames já haviam sido feitos na ossada de Bergson: um com resultado negativo e o outro não-conclusivo. O novo exame foi feito após o deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS) ter anunciado que, quando era presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, solicitou ao perito criminal Domingos Tocchetto um exame que apontou fortes indícios científicos de que uma das ossadas, catalogada como Xambioá 2, correspondia aos restos mortais de Bergson. O ministro explicou que uma assessora especial foi enviada a Fortaleza para comunicar pessoalmente aos familiares de Bergson a identificação e ao mesmo tempo providenciar o traslado para a realização do enterro. Vannuchi disse que conversou por telefone com uma irmã de Bergson chamada Tânia. Ela lhe informou que a mãe, Luiza Gurjão, de 90 anos, alimentava a

O ministro-chefe da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi

expectativa de fazer o enterro do filho. “A SEDH/PR e a CEMDP rendem tributo a mais esse brasileiro que entregou sua vida à causa da justiça e da liberdade, bem como a sua perseverante família, que , finalmente, 37 anos após sofrer a perda irreparável e, durante quase três décadas, bater em todas as portas, terá pelo menos respeitado o direito milenar e sagrado de prantear seu ente querido e dar-lhe sepultura digna, sob profunda admiração de todos os que lutam pela defesa dos direitos humanos em nosso país”, diz uma nota distribuída pelo ministro.

A morte de Bergson Segundo a publicação Direito à Memória e à Verdade’’, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Bergson Gurjão, que usava o codinome Jorge, foi morto aos 25 anos, em meados de maio a junho de 1972. Trata-se da primeira baixa do PCdoB na região. Com base em documentos secretos das forças repressivas, testemunhas disseram que seu corpo foi pendurado em uma árvore de cabeça para baixo para depois ser brutalmente espancado por paraquedistas e outros agentes da repressão.

“O desaparecimento de Bergson foi denunciado em juízo pelos presos políticos José Genoíno (atual deputado federal pelo PT de São Paulo) e Dower Moraes Cavalcante. Genoíno afirmou que lhe mostraram o corpo sem vida de Bergson, com inúmeras perfurações, durante um interrogatório. Dower informou ter sido preso e torturado junto com Bergson e confirmou a versão de Genoíno para sua morte”, diz um trecho do livro. Bergson atuou no movimento estudantil na Universidade Federal do Ceará, onde cursava Química. Ele era vice-presidente do DCE quando foi pre-

so durante o 30º Congresso da UNE, em Ibiúna (SP), em outubro de 1968. Em 1969 foi condenado a dois anos de prisão pela Justiça Militar. Já na clandestinidade, mudou para o Araguaia, onde viveu na área de Caianos. Bergson, que segundo documentos da repressão pertencia ao Destacamento C, onde era chefe do grupo 700, foi apanhado numa emboscada após ser denunciado por um camponês que iria lhe entregar um rolo de fumo e suprimentos. O Exército na época oferecia mil cruzeiros para cada guerrilheiro capturado. (Portal Vermelho)

ANÁLISE

Saúde e bem-estar: um direito constitucional do povo O direito constitucional à saúde e ao bem-estar do povo do bairro Camargos, em Belo Horizonte (MG), e de todas as pessoas em qualquer outro bairro ou cidade José Luiz Quadros de Magalhães A primeira palavra que encontramos no primeiro artigo de nossa Constituição Federal é a palavra “República”. Qual o significado desta que fundamenta a nossa ordem jurídica? República significa que ninguém pode ter privilégios nesse estado democrático e republicano. Que todos são iguais perante a lei e devem ter igual acesso aos direitos fundamentais compostos pelos direitos individuais à liberdade, à vida, o acesso à propriedade, à igualdade e à segurança; os direitos sociais à saúde, educação, trabalho, moradia e previdência; os direitos econômicos ao trabalho, remuneração justa, meio ambiente saudável; e os direitos políticos de votar, de ser votado. Acrescente-se que esses quatro grupos de direitos fundamentais são indivisíveis ou indissociáveis, o que significa dizer que esses direitos são interdependentes, complementares, um grupo de direitos não existe sem o outro. Se então vivemos em uma República marcada pela inexistência de privilégios e onde todos os direitos fundamentais são assegurados a todas as pessoas indistintamente, por que vemos diariamente enormes contingentes de pes-

soas pobres, humilhadas pelo Estado, sem acesso aos seus direitos fundamentais, que são o alicerce de toda a ordem jurídica brasileira?

A empresa Serquip, desde 2003, instalouse no Bairro Camargos, em Belo Horizonte, passando a contaminar o ar da região com a incineração de lixo tóxico hospitalar Por que a Serquip (empresa de incineração de lixo hospitalar e industrial) e outras empresas se instalam em bairros populares desrespeitando os mais básicos e essenciais direitos de qualquer pessoa e o Estado nada faz para evitar, mas, ao contrário, concede prazos frequentemente dilatados para que os direitos fundamentais mais essenciais e claros continuem sendo desrespeitados? Quando o movimento social, manifestação mais con-

creta da democracia participativa prevista na Constituição, me pediu que escrevesse algumas linhas sobre os aspectos constitucionais da situação do bairro Camargos, mais uma vez me deparei com aquelas situações de extremo absurdo jurídico, que só acontece com os mais pobres. Não há e nunca haveria uma Serquip queimando lixo tóxico no Bairro Belvedere (bairro de enriquecidos). E por quê? Ora, porque não pode. Mas se não pode por que está então instalada no bairro Camargos? Nós não estamos em uma República? O Estado não tem o dever de assegurar e promover os direitos fundamentais constitucionais? A situação é tão absurda que não seria necessário um profissional do Direito para perceber a sua insustentabilidade. A empresa Serquip, desde 2003, instalou-se no Bairro Camargos, em Belo Horizonte, passando a contaminar o ar da região com a incineração de lixo tóxico hospitalar. Ora, a primeira inflamação nos olhos e nas vias respiratórias já seria suficiente para a imediata interdição das atividades da empresa e sua remoção para área não-residencial. Entretanto os relatos dos profissionais médicos nos informam que não só inflamações ocorreram e continuam ocorrendo, mas casos de doenças de pele, enfisema pulmonar, crises de asma, câncer e morte. Não vamos voltar a discutir a República Constitucional fundada nos direitos humanos. Tal situação, se ocorresse em bairro residencial de alto poder aquisitivo, já teria sido solucionada. O Estado tem a obrigação de atuar com

Entretanto os relatos dos profissionais médicos nos informam que não só inflamações ocorreram e continuam ocorrendo, mas casos de doenças de pele, enfisema pulmonar, crises de asma, câncer e morte a mesma presteza e eficiência diante de qualquer grupo social ou econômico. A situação se agravou com a renovação da licença de funcionamento da Serquip em 20 de outubro de 2008 para mais quatro meses, e em 9 de abril de 2009 por mais dois meses e mais dois meses para a saída do bairro. Quando, finalmente, o Conselho Municipal do Meio Ambiente (Comam) não renovou a licença, a empresa consegue uma liminar no Poder Judiciário para a continuidade de suas atividades. Como pode o Estado, por meio do Comam e posteriormente por meio de um Juiz de Direito, não proteger direitos fundamentais constitucionais? Pior, como podem dois órgãos do Estado sustentarem a violação de direitos fundamentais? A situação que se coloca é de apuração da responsabilidade criminal das autoridades envolvidas na continuidade da atividade da empresa, uma vez que essa atividade viola o direito à vida; à dignidade; à saúde; ao meio ambiente saudável, além de inúmeras normas infraconstitucionais. Pode um servidor público, sob qualquer argumento, atentar ou sustentar a viola-

ção de direitos fundamentais? Não se trata de caso jurídico difícil, no qual cabem interpretações diversas que poderiam justificar as atitudes dos funcionários, representantes ou autoridades envolvidas. Trata-se de flagrante, claríssima violação do direito à vida, à saúde e ao meio ambiente. Diante de descalabros como estes a população não pode permanecer calada. Devemos agir de forma constitucional, por meio de instrumentos jurídicos, para punir as pessoas responsáveis pela violação do direito à vida e à saúde. Se demonstrarmos que pessoas adoeceram e morreram pela poluição causada pela empresa, os envolvidos na manutenção da atividade que causou a doença ou a morte devem responder criminalmente, sejam empresários, servidores públicos ou mesmo juiz. Nossa Constituição é a base de todo o ordenamento jurídico. Nenhuma lei, nenhuma ação do Estado e de seus servidores e autoridades, nenhuma pessoa pode agir contra seus princípios e regras. Nossa Constituição é um sistema coerente de regras e princípios fundados em valores sociais democraticamente construídos. Esse sistema consa-

gra a vida humana como valor maior, e não se trata de vida biológica apenas, mas vida com dignidade, de cada pessoa, brasileiro ou estrangeiro, que se encontre em nosso território; de cada pessoa com ou sem dinheiro; com ou sem diploma; com ou sem cargo; todos são iguais, e todos têm que ter seus direitos constitucionais respeitados. Quem violar esses direitos deve responder por seus atos. Passemos a palavra a nossa Constituição: a) O artigo 225 dispõe que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” b) O artigo 196 dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Não é justificativa para violar a integridade física e moral das pessoas a geração de empregos ou o lucro das empresas. Seria absurdo insustentável admitirmos que para manter empregos e empresas funcionando é necessário sacrificar a vida e a saúde de algumas pessoas, de uma ou de milhares. José Luiz Quadros de Magalhães é doutor em Direito Constitucional, professor da UFMG e da PUC Minas, autor de inúmeros livros e artigos, grande defensor dos Direitos Humanos.


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O grito dos povos e das águas RIO MADEIRA A reportagem do Brasil de Fato percorreu 334 km junto à bacia do rio Madeira durante 11 dias e trará em duas edições a angústia e a luta desse rio frente ao poder econômico e político por trás do projeto de construção de duas mega-hidrelétricas Cristiano Navarro de Porto Velho (RO) PARA O POVO Oro Wari, quando os trovões descem do céu, as crianças não podem sair para brincar. É preciso deixar o céu acalmar até que volte a folia. Os mais velhos contam que os trovões são a batucada de uma festa dos mortos regada a muita chicha (fermentado de milho) lá debaixo do rio Madeira. Os Oro Wari estão preocupados com o que pode acon-

tecer com a implantação das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. “Os nossos parentes mortos estão felizes lá debaixo do rio. A gente pensa: e com a construção das hidrelétricas? A empresa vai fechar a água, vai atrapalhar tudo e perturbar o que tiver lá em baixo. Sem contar as explosões”, reclama Eleazer Oro Wari, da terra indígena de Laje. Além da agressão cultural, o cacique de Eleazar, José Oro Wari ressalta outra grave preocupação dividida

com outros 24 povos da bacia do rio Madeira: “A gente sabe que vai ser prejudicado, vai ficar difícil para nós, porque vai espantar a caça e a pesca […], a gente depende disso”. Assim, como todos os outros povos da bacia do rio Madeira, os Oro Wari têm na pesca a sua principal alimentação. Ao contrário do que estabelece a Constituição Federal e a declaração dos povos indígenas da ONU, as comunidades tradicionais não foram consultadas a respeito das obras que devem provocar profundos impactos em seus territórios e modo de vida. “A gente não foi consultado. Se fizer uma barreira, como a gente vai fazer sem peixe? E esse rio não é das empresas, elas não podem vir aqui e ganhar dinheiro. Há muitos anos que a gente está aqui, a gente precisa do peixe que vive nesse rio”, argumenta o professor Eleazar.

Cristian Poirier/Amazon Watch

As agressões cometidas contra o rio afetam os povos física, econômica e culturalmente

“Está para acontecer uma catástrofe”

Presidente do Ibama é processado por improbidade administrativa

Desmatamento aumenta contaminação dos peixes pelo mercúrio

Para promotores, Roberto Messias Franco violou a Constituição ao conceder licença para construção da usina de Jirau

de Porto Velho (RO) Uma vez por ano, PierreLouis de Catheu, agricultor do sul da França, aproveita a temporada de caça ao pato para a praticar a atividade. Nas duas últimas temporadas, o agricultor tem tido problemas com a sua munição. No ano de 2007, o parlamento europeu aprovou a lei que proíbe o uso de chumbo na caça ao pato devido à contaminação que a munição pode provocar nos rios e lagos. Assim, Pierre-Louis e outros caçadores europeus têm tido dificuldade de encontrar outra munição de mesmo calibre e precisão. Diferente da preocupação europeia, durante as décadas de 1980 e 1990, a corrida pelo ouro atraiu milhares de garimpeiros de toda parte do Brasil para Rondônia. Os centenas de garimpos abertos ao longo das margens do rio Madeira retiraram, por meio de dragas, dezenas de toneladas do precioso metal. Hoje, o minério já não é mais abundante e o garimpo é uma atividade rara nessa região. Dos anos da febre dourada, sobrou apenas alguns garimpeiros persistentes e inúmeros lagos artificiais formados pelas escavações na beira do rio. No fundo desses lagos repousa um grave risco, pois para cada grama de ouro retirado no processo de garimpagem um grama de mercúrio foi depositado. Com o alagamento das margens, o mercúrio deve se espalhar, contaminando os peixes e o lençol freático que abastece com água potável a capital, Porto Velho. Chumbo e mercúrio

Através de pesquisas, o filho de Pierre-Louis, o clínico geral de naturalidade francesa, doutor Gilles de Catheu, militante do Conselho Indigenista Missionário que acompanha a saúde e os casos de óbitos entre as populações indígenas da região de Guajará Mirim desde 1984, denuncia: “O mercúrio é um metal tóxico muito prejudicial à saúde, e a conta-

minação do rio tem provocado graves doenças entre os índios”. Gilles lamenta que os investidores europeus que devem explorar a energia produzida pelo rio Madeira não tenham tanta consciência ecológica quanto o parlamento de seu continente. O estudo em que Gilles se baseia foi publicado pela Fundação Osvaldo Cruz no ano de 2003 e é de autoria de Elisabeth C. Oliveira Santos, Fernanda Sagica, Edilson da Silva Brabo, Edvaldo Carlos Brito Loureiro, Iracina Maura de Jesus e Kleber Fayal, do Instituto Evandro Chagas, e Volney de Magalhães Câmara, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os pesquisadores revelaram altos teores médios de mercúrio encontrados nas amostras de cabelo de 910 pessoas do povo indígena Paaka Nova, e se constatou um índice de 8,37 μg/g, superior aos 6 μg/g determinados pela Organização Mundial da Saúde como indicador de exposição. Desmatamento

Como os Paaka Novas vivem na Bacia do Rio Madeira, o estudo aponta que a contaminação deve ter acontecido por sua principal fonte de alimentação: o peixe. O estudo aponta ainda que o desmatamento também contribui para a mobilização do metal no solo para os ecossistemas aquáticos. Gilles conta que “até finalzinho da década de 1980 não se falava em nenhum tipo de câncer e problemas no sistema nervoso. Daí em diante, os casos de câncer aumentaram muito”. Há anos o doutor tem insistido junto à Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para que se faça a coleta e os testes de quantidade de mercúrio nos pacientes indígenas. “Não havia câncer antes do mercúrio. Não há indústria, não há poluição e, tirando o peixe contaminado, a alimentação dos indígenas é boa. Então não existem outros motivos para as doenças”, alerta Gilles. O militante do Cimi completa: “o que está para acontecer é uma catástrofe sem precedentes, não só para os índios, mas para toda população que vive nessas bacias, porque os peixes contaminados migram por milhares de quilômetros, sem distinção de estados ou países”. (CN)

de Porto Velho (RO) Consciente dos riscos de um grave desastre ambiental e submerso em irregularidades jurídicas, o governo brasileiro segue desenvolvendo de forma apressada a construção das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio no rio Madeira, um dos principais afluentes do Amazonas. A pressa atende aos interesses eleitorais e às demandas de transnacionais sobre a exploração de recursos naturais. O megaprojeto avança sobre a vida de milhares de ribeirinhos, indígenas, pequenos agricultores e até mesmo de grupos indígenas isolados. Sobre as irregularidades verificadas no projeto, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público de Rondônia (MP/RO) moveram, no dia 7, uma ação civil pública de improbidade administrativa contra o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Roberto Messias Franco. Os dois órgãos entraram com ação particular contra Roberto devido ao fato de este ter emitido a licença de instalação da usina hidrelétrica de Jirau em desacordo com a legislação ambiental e com a lei de licitações. “Movemos a ação pessoal por entender que o gestor tem que administrar de acordo com o que os estudos ambientais ordenam”, afirma a procuradora da República em Rondônia, Nádia Simas. Se condenado, o presidente do Ibama pode perder a função pública e pagar multa de 100 vezes o valor de seu salário.

Os Ministérios Públicos explicam que o licenciamento ambiental é composto por três tipos de licença: prévia, de instalação e de operação. Na licença prévia da usina de Jirau foram fixadas 32 condicionantes que deveriam ser cumpridas para a emissão da licença de instalação. Em 25 de maio deste ano, o Ibama manifestou-se contrário à expedição da segunda licença da usina hidrelétrica Jirau porque 12 das 32 condicionantes da licença prévia apresentam alguma pendência. Além disso, o órgão ambiental concluiu que o projeto do consórcio Energia Sustentável do Brasil ainda era “incipiente, precisando de informações e comprovação dos estudos de impacto ambiental”.

Não existe qualquer solução apresentada para a gestão das toras e detritos Oito dias após os técnicos do Ibama terem se manifestado contrários à expedição da licença de instalação, Franco emitiu a licença com validade de quatro anos e condicionada ao cumprimento das condicionantes da licença prévia. Para os MPs, ao liberar a licença de instalação, o presidente do Ibama violou a Constituição Federal e a Lei de Licitações, não observou o processo de licenciamento ambiental, desconsiderou a existência de novos impac-

tos ambientais e a necessidade de cumprimento de todas as condicionantes da licença prévia antes da emissão da nova licença. Com base nisso, os MPs argumentam que Roberto Messias incorreu em ato de improbidade administrativa e beneficiou de forma indevida o consórcio Energia Sustentável do Brasil, causando prejuízos irreparáveis ao meio ambiente. Na ação, os MPs afirmam que a emissão da licença de instalação é “um dos maiores crimes ambientais impostos à sociedade numa época de consolidação dos princípios democráticos e do reconhecimento da importância do ambiente natural para o equilíbrio do clima e da preservação da vida”. Condicionantes

Os MPs afirmam que a primeira questão a ser respondida é com relação à segurança da barragem porque ainda não existe qualquer solução apresentada para a gestão das toras e detritos. O rio Madeira tem esse nome por ter grande quantidade de toras que descem por seu curso. Outra condicionante não cumprida refere-se à apresentação de programas e projetos que compatibilizem a oferta e a procura de serviços públicos, considerando o aumento da população por causa da construção da hidrelétrica. Também não foi mencionada como será feita a recuperação de áreas degradadas pela construção e pela inundação da cidade de Mutum-Paraná. Além disso, os MPs enfatizam que é preciso saber como será possível a reprodução dos peixes migratórios com o barramento e os bolsões de sedimentos que vão se acumular no leito do rio e informam que permanece a necessidade de fornecimento dos desenhos de engenharia atualizados e com todas as informações que Cristian Poirier/Amazon Watch

Entre os impactos provocados pela obra, o crescimento desordenado da capital de Rondônia, Porto Velho

permitam uma análise específica do assunto. Os MPs também ressaltam que não houve até o momento o monitoramento de ovos, larvas e juvenis de dourada, piramutaba, babão, tambaqui e pirapitinga, de forma a verificar o comportamento desses peixes no estado natural do rio e como esse comportamento pode ser alterado após a barragem. Segundo os órgãos, essa informação pode evitar a mortalidade de peixes com a construção. Mudança de local da usina

O consórcio Energia Sustentável do Brasil venceu o leilão da usina hidrelétrica de Jirau em 19 de maio de 2008. Logo após, o consórcio anunciou que a usina seria instalada nove quilômetros adiante, na Cachoeira do Inferno, e não mais na Cachoeira de Jirau. E justificou que a mudança resultaria em economia do custo da obra devido à redução da quantidade de área a ser escavada e alegou, consequentemente, suposto menor impacto ambiental. Para os MPs, essas mudanças possibilitaram que o consórcio vencesse o leilão, oferecendo o menor valor para a produção de energia hidrelétrica. “Alteração do eixo principal da UHE Jirau representa não uma mera alteração de localidade, como pretendem fazer crer as autoridades, mas uma modificação complexa, com alterações que implicam impactos ambientais que extrapolam os contornos inicialmente previstos porque a exata localização do empreendimento é fundamental para delimitar a área de influência do projeto, as medidas mitigadoras e compensatórias, a quantidade e localização das audiências públicas, bem como a viabilidade ambiental do empreendimento”, argumentam os autores da ação, os procuradores da República Heitor Alves Soares e Nádia Simas e a promotora de Justiça Aidee Maria Moser Torquato Luiz. Por causa da mudança, os MPs ajuizaram em agosto de 2008 uma ação civil pública contra a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o Ibama e o consórcio Energia Sustentável do Brasil, e pediram a anulação do leilão. A ação ainda tramita na Justiça Federal em Rondônia. Na época, o Ministério Público estadual também recomendou que o presidente do Ibama cumprisse a legislação ambiental e não emitisse a licença prévia, o que não foi atendido. Por emitir a primeira licença, Franco responde a outra ação de improbidade administrativa. A reportagem procurou a presidência do Ibama, que se recusou a conversar sobre o caso, afirmando que só se pronunciará sobre o licenciamento após ter recebido a notificação do processo oficial. (CN)


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Petroleiros debatem a defesa dos recursos naturais

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

FUP

MOVIMENTO Para participantes da PlenaFUP, soberania energética depende da luta dos povos latino-americanos

Falta fiscalização Está em tramitação na Câmara dos Deputados a emenda constitucional que reduz a jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais e aumenta o valor da hora-extra de 50% para 75% da hora normal. É claro que as duas medidas favorecem os trabalhadores, mas, enquanto não são aprovadas, bem que o Ministério do Trabalho poderia fiscalizar o registro dos trabalhadores nas empresas e o cumprimento da jornada atual. É o mínimo a fazer!

Solange Engelmann de Curitiba (PR) A LUTA PARA garantir que os recursos do pré-sal sejam utilizados em benefício do povo brasileiro – e não apropriados por empresas privadas – foi um dos pontos de destaque das mesas e intervenções dos petroleiros na Primeira Plenária Nacional da Federação Única dos Petroleiros (PlenaFUP), realizada no Paraná entre os dias 2 e 5. O encontro teve como palco a Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA), que funciona no assentamento Contestado, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no município da Lapa, próximo a Curitiba. A soberania e a unidade da classe trabalhadora foram os principais eixos da plenária, que também debateu ações para garantir a saúde e a segurança dos petroleiros. A descriminalização dos movimentos sociais também esteve em pauta. Cerca de 50 estudantes e trabalhadores da ELAA participaram como voluntários na organização do encontro, que teve como tema “Somos todos trabalhadores”. Na mesa intitulada “América Latina: recursos energéticos e soberania popular”, realizada no dia 3, João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, destacou que o pré-sal talvez seja a última e maior reserva natural do planeta. “Todos os capitalistas do mundo virão aqui tentar pegar nosso petróleo, pois sabem que este é um recurso fundamental para finan-

Soberania e unidade da classe trabalhadora foram os principais temas da plenária

ciar a saída deles desta crise mundial”, enfatizou. Ele também ressaltou que a unidade de classe será decisiva para garantir a soberania popular sobre esses recursos. “Precisamos estar unidos, trabalhadores do campo e da cidade, com os movimentos sociais, populares e estudantis para garantir que o nosso petróleo seja apropriado pelo povo brasileiro e não pelas aves de rapina, que são as grandes corporações”, declarou. Segundo Stedile, atualmente, o planeta está entrando em uma grave crise sistêmica do capital que irá afetar a todos os países, porque o sistema capitalista passou a ser mundial. E, neste momento, os capitalistas procuram formas de recuperar suas taxas de lucros, aumentando a exploração dos trabalhadores, dos países periféricos e dos recursos naturais. Na sua opinião, a exploração dos recursos na-

turais está sendo usada como principal saída pelas grandes empresas, por possibilitar altas taxas de lucro. “Só é possível quantificar os recursos naturais quando são tirados da natureza e colocados no mercado. E como o custo de produção é mais baixo, comparado à produção das outras mercadorias, as taxas de lucro disparam”, denuncia. Participação internacional “O caminho é que os setores populares, através de um Estado forte, com controle estatal, protejam os bens naturais de maneira que os benefícios desses recursos possam ir para a maioria. Estamos seguros de que a única via para garantir o controle sobre os recursos naturais é a unidade e a mobilização do povo”, profetizou o integrante da Comissão de Entidades Binacionais Hidroelétricas do Para-

guai, Constancio Mendoza, durante a mesa de debates sobre a questão energética. Tony León, secretário-geral do Sindicato Nacional de Trabalhadores do Ministério do Poder Popular para Energia e Petróleo da Venezuela, concorda com o representante do Paraguai. Ele acredita que a atividade realizada na Lapa, promovida pela FUP, é uma excelente oportunidade para criar a unidade necessária entre os trabalhadores urbanos e rurais. “A América Latina vive um novo momento político, com governos progressistas, e juntamente com movimentos sociais, campesinos e estudantis podemos construir essa grande frente que sonhamos para a defesa dos recursos naturais, contra os países que destroem o meio ambiente”, conclui. (Com informações da Federação Única dos Petroleiros – FUP)

Unidade é fortalecida Renda petroleira a serviço Sem-terra e petroleiros se aproximam após plenária de Curitiba (PR) Cerca de 150 petroleiros de vários estados do país, além de observadores, assessores e convidados, participaram da PlenaFUP. Segundo João Antônio de Moraes, coordenador da FUP, a proposta política da plenária foi ampliar a integração dos petroleiros com os camponeses, “fortalecendo a unidade de classe entre trabalhadores de realidades diversas, mas ideais semelhantes”. O presidente do Sindicato dos Petroleiros do Paraná e de Santa Catarina, Silvaney Bernardi, compartilha da ideia. Ele, que se emocionou no ato de abertura, conta que a realização da Iª PlenaFUP no assentamento do MST se traduziu em um forte momento de integração, possibilitando a convivência entre trabalhadores rurais e urbanos e gerando mais esperanças para a luta de ambos os lados.

O MST e os petroleiros têm sido parceiros históricos nas lutas por justiça social “Esse é um momento importante em que os petroleiros estão puxando o debate sobre a questão do petróleo. E isso não é só interesse dos petroleiros, mas de todos, então essa é a oportunidade de construírmos isso juntos. É uma forma de re-

Energia lucrativa Controladas por empresas estrangeiras, a maioria das distribuidoras de energia elétrica promoveu, em 2009, reajustes de tarifas muito acima dos índices de inflação apurados nos últimos 12 meses. No caso da região metropolitana de São Paulo, a mais populosa do país, o aumento médio foi de 13%, contra uma inflação de 4,67%. Estão metendo a mão no bolso do povo com a cumplicidade da Aneel – a agência fiscalizadora do setor.

afirmação do projeto de ambos em construir a unidade da classe trabalhadora, o que é balizador e aponta um caminho importante”, afirma. Unidade de classe O MST e os petroleiros têm sido parceiros históricos nas lutas por justiça social e em defesa da soberania nacional. Entre 1986 e 1988, realizaram ações conjuntas em Brasília (durante a Assembleia Nacional Constituinte) para garantir a reforma agrária, a manutenção do monopólio estatal do petróleo e a jornada de 6 horas nos turnos de revezamento. No início dos anos de 1990, petroleiros e MST ocuparam o Salão Verde da Câmara dos Deputados Federais para tentar impedir a quebra do monopólio e as privatizações. Enfrentaram, com greves e ocupações, a política neoliberal de FHC e, desde então, continuam mobilizando o país para garantir o controle estatal e social das reservas brasileiras de petróleo e gás. Uma luta que se intensificou nos últimos anos, ganhando adesão dos movimentos sociais e estudantis, principalmente após a descoberta das reservas do pré-sal e dos ataques dos privatistas contra a Petrobras. A realização da PlenaFUP ocorre no momento em que o MST sofre, mais uma vez, uma onda de criminalizações por parte de setores conservadores da sociedade e quando os petroleiros também reagem às ações antissindicais da indústria de petróleo contra o direito de greve. “O evento acontece sob a certeza de que ‘Somos todos trabalhadores’ e que a construção de uma sociedade socialista depende, necessariamente, da unidade e identidade da classe trabalhadora”, ressaltam os dirigentes da FUP no texto de apresentação, base para os debates da plenária. (SE)

do desenvolvimento

Na Venezuela, retomada do recurso natural propicia política de justiça social de Curitiba (PR) Como um dos exemplos bem-sucedidos de como a renda dos recursos naturais pode trazer desenvolvimento social e melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, a Venezuela tem muito a ensinar aos povos da América Latina. Nos anos de 1990, o país passou pela chamada abertura petroleira. Foram firmadas alianças com empresas transnacionais que retiravam o petróleo, comercializavam e pagavam impostos baixíssimos sobre a renda. Com a vitória de Hugo Chávez em 1999 e a aprovação de uma Assembleia Constituinte, com novas leis, o Estado retomou o controle do petróleo, que volta a ser gerenciado pela empresa petrolífera estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA). “Há uma retomada do petróleo que nos permitiu ir avançando, fazer alianças estratégicas, nacional e internacional. Chávez mudou a política para resgatar o preço do petróleo e criar uma polí-

tica petroleira de acordo com o desenvolvimento da nação. Assim se consegue avançar e criar uma série de medidas de nacionalização ou renacionalização do petróleo”, relata o secretário-geral do Sindicato Nacional de Trabalhadores do Ministério do Poder Popular para Energia e Petróleo da Venezuela, Tony León. Segundo ele, antes todos os recursos gerados com a renda petroleira saíam do país e não havia investimento na área social: educação, saúde, agricultura. Hoje, as empresas que exploram o petróleo venezuelano têm que pagar até 50% de impostos sob a renda, e os venezuelanos afirmam que a PDVSA voltou a ser do povo, que está sendo beneficiado das mais diferentes formas. “Esse capital que conseguimos recuperar se colocou a serviço da infraestrutura, plano ferroviário, construção, saúde etc. Em linha geral, existe uma política de justiça social, de combate à pobreza, à fome, de equidade e inclusão”, garante León. (SE)

A ELAA A ELAA foi inaugurada em 27 de agosto de 2005, a partir de uma iniciativa dos movimentos sociais da América Latina articulados na Via Campesina, em parceria com o governo federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com governos da Venezuela e do Paraná e com a Universidade Federal do Paraná, através da antiga Escola Técnica da UFPR. O objetivo é estruturar uma rede de intercâmbio entre os camponeses da América Latina e ampliar a luta em defesa da soberania alimentar dos povos. Para receber as delegações da 1ª PlenaFUP, a ELAA passou por obras de infraestrutura realizadas pelos petroleiros, que serão fundamentais em seus projetos de educação solidária. No local, estudam trabalhadores rurais de vários países do continente, que são formados para desenvolver técnicas de produção agrícola voltadas para a preservação ambiental e a soberania alimentar. A escola funciona numa área de 3.180 hectares que abriga 108 famílias assentadas. (SE)

Imposto desigual Estudo do IPEA concluiu que o cidadão brasileiro gasta, em média, 132 dias de trabalho por ano para pagamento de tributos. Mas o peso é muito desigual: os mais pobres são onerados em 197 dias, enquanto os mais ricos precisam de apenas 106 dias de trabalho. Ou seja, os ricos são os que mais reclamam dos impostos, embora os mais sacrificados sejam os trabalhadores de baixa renda. Falta inverter a política tributária! Modelo perverso Apesar de toda a tecnologia atual, a produção de alimentos continua em crise: de acordo com a FAO, órgão da ONU para agricultura e alimentação, a fome atinge hoje 1 bilhão de pessoas – o mais alto número da história da humanidade. Está claro que o modelo do agronegócio está errado, e que falta reforma agrária e agricultura familiar. Usinas predadoras A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e outras entidades registraram na Justiça Federal de Rondônia, em 26 de junho, ações públicas contra a instalação das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, que denunciam graves irregularidades no licenciamento ambiental das usinas, com sérios danos para as populações ribeirinhas e indígenas. Quem vai pagar por esses crimes? Farsa suprema Em agosto de 2008, a Veja denunciou – sem apresentar provas – a existência de grampo no Supremo Tribunal Federal. A matéria serviu de pretexto para o presidente do STF, Gilmar Mendes, atacar os responsáveis pela investigação do banqueiro Daniel Dantas na Polícia Federal e na Abin. Agora, depois de dez meses, a PF não encontrou o menor vestígio de grampo. Os farsantes serão punidos? Punição exemplar Um tribunal de Nova York, nos Estados Unidos, condenou a 150 anos de prisão – sem qualquer benefício – o financista Bernard Madoff, de 71 anos, por especulação fraudulenta. Aqui, ao contrário, fraudadores como os banqueiros Daniel Dantas e Edemar Cid Ferreira continuam protegidos pelo Judiciário, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal. O que vale é a solidariedade de classe! Degeneração política Não dá para saber o que é mais constrangedor na política nacional: ver os senadores do PT defendendo o velho oligarca José Sarney ou aceitar a argumentação de que a mudança do presidente do Senado representa uma séria ameaça à governabilidade do país. Muita gente boa com história de luta já jogou no lixo a sua biografia por conta do excesso de pragmatismo e oportunismo. O povo não é bobo! Sem enganação O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro divulgou nota de protesto contra as manobras do ministro da Defesa, Nelson Jobim, no caso dos mortos da Guerrilha do Araguaia. O grupo defende “a abertura de todos os arquivos com as informações guardadas pelos militares” e a “localização, recolhimento e identificação dos corpos” pela Comissão Especial constituída pela lei nº 9.140, de 1995. Enrolação nunca mais!


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Em frente a apartamentos vazios, milhares de pessoas dormem nas ruas MORADIA Mais de mil pessoas vivem nas calçadas dos prédios abandonados pela especulação imobiliária do centro do Rio de Janeiro Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) ERAM 30 FAMÍLIAS, e entre elas havia 28 crianças, sendo uma recém-nascida. Expulsas por um despejo na ocupação onde anteriormente moravam, por conta de um incêndio causado por uma moradora, habitavam novo prédio na avenida Mem de Sá. Aos poucos, tentavam reconstruir a organização exemplar que tinham na moradia anterior. Porém, com decisão recorde da Justiça em mãos, como no despejo anterior, a polícia fez uma das intervenções mais violentas em ocupações do Rio de Janeiro. Os antigos “Guerreiros da 510”, em referência ao número do edifício que ocupavam na rua Gomes Freire, haviam se tornado os “Guerreiros da 234”, menção ao novo endereço na Mem de Sá. No anterior, com auxílio metodológico do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), eles já tinham pintado, colocado portão e inaugurado uma biblioteca, quando o fatídico incêndio foi usado como artifício para o despejo. Por mais de um mês moraram na rua, em frente ao endereço, organizando encontros musicais como forma de protesto pacífico. Ao ocuparem o prédio na Mem de Sá, pertencente ao Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS), sabiam que a ameaça de novo despejo era grande. Só não imaginavam que seria tão violenta. A marretadas, policiais do Batalhão de Choque entraram no edifício, retirando os moradores à força. Simbólica, a ação policial do dia 26 de junho trouxe novamente à discussão um problema histórico da cidade nem sempre maravilhosa. A região central do Rio de Janeiro é a área onde o problema habitacional carioca é mais evidente. Dados da Secretaria Municipal de Assistência Social, de 2007, apontam que 752 pessoas moram nas ruas do Centro. Estimase, entretanto, que esse número seja de cerca de 1,1 mil pessoas. Ao mesmo tempo, o índice de prédios desocupados e abandonados é gigantesco. Segundo o Instituto Pereira Passos (IPP), o percentual de pessoas que vivem em domicílio próprio é de 38,4%, pouco mais da metade da média da cidade (71,3%). O valor serve de referencia para se estimar a desocupação de apartamentos. Não por acaso, é a região onde se concentra a maioria das ocupações na cidade. Estima-se que a região central do Rio tenha mais de 50 ocupações, sendo que mais de dez são organizadas por movimentos sociais. A longa interdição do trânsito na Lapa durante o despejo dos “Guerreiros da 234” é mais que simbólica. É impossível conceber o problema habitacional na cidade sem considerar o caos no sistema de transportes. No Rio de Janeiro, morar longe do local de trabalho representa uma difi-

culdade dupla. Não só a chegada no ambiente de trabalho é longa e incerta, como extremamente custosa. Os trabalhadores que não moram em comunidades nas regiões mais nobres da cidade, opção cada vez mais cara, terminam optando por morar em ocupações ou na rua. É muito comum, na cidade, trabalhadores dormirem na rua, próximos ao trabalho, durante toda a semana, e voltar a suas casas apenas na sexta-feira. Essas pessoas são submetidas aos perigos de criminosos, de jovens baderneiros e do braço repressivo do Estado. “Mais de 60% dos moradores de rua têm emprego fixo e casa. O sujeito não consegue ir e voltar todo dia. O problema do transporte é terrível. Há lugares do centro com centenas de pessoas morando na rua que não são vistas nos finais de semana. Existem também pessoas expulsas pelo tráfico e pela milícia, por questões diversas, que acabam indo morar no centro”, conta Guilherme Marques, o Soninho, pesquisador da questão habitacional em doutorado no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR). Segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social, a população de rua da cidade cresceu 15% de 2006 a 2007. Embora ainda não tenha sido aferido, o índice deve ter subido muito neste ano devido a peculiaridade da crise econômica afetar, primeiramente, o trabalho informal. Dos moradores de rua, 29% vêm de outras cidades, do interior ou de outros estados. Um terço é de jovens e crianças. O deficit habitacional no município do Rio de Janeiro é de 149.200 moradias, 73% do índice paulistano, mesmo tendo apenas 56% da população de São Paulo.

É muito comum, na cidade, trabalhadores dormirem na rua, próximos ao trabalho, durante toda a semana, e voltar a suas casas apenas na sexta-feira Especulação imobiliária

Com a operação Choque de Ordem, a prefeitura carioca tem tentado remover das ruas os moradores, levandoos para abrigos. As regiões de maior poder aquisitivo, e maior procura turística, têm sido as de atuação mais incisiva, por vezes violenta. “É a inversão do que deveria ser feito. O morador de rua deixa de ter um problema e passa a ser, ele mesmo, o problema”, lamenta Soninho. Mais de 3,2 mil pessoas já foram removidas, superando os dados oficiais de população de rua. A maioria fugiu do abri-

Fábio Caffé

“Somos todos seres humanos”: policiais retiram faixa de um dos apartamentos

go e voltou para o local de origem. A tentativa não é novidade na história da cidade. Desde a reforma Pereira Passos (1902-1906), passando pelo governo Carlos Lacerda (1960-1965), acusado de jogar pessoas no rio, os moradores de rua sempre foram vistos como problema na cidade. O que chama a atenção, atualmente, é a incrível contradição entre a enorme população de rua do Centro e o volume de prédios abandonados. O motivo do abandono é conhecido. Muitos dos edifícios, tombados pelo Patrimônio Histórico, não podem ser derrubados. A especulação imobiliária os deixa apodrecer, abandonados, até que se possa construir no local, de preferência com os terrenos valorizados. Não por acaso, a prefeitura acaba de anunciar um amplo programa de revitalização da zona portuária, próxima ao centro. Empresários da região contam os dias para obter volumosos lucros com a venda de terrenos e novas edificações, enquanto trabalhadores contam as noites nas ruas para voltar às suas famílias. “O esvaziamento do centro é um processo cíclico para a revalorização da terra. É muito melhor abandonar, para que o imóvel caia e se faça outra construção, do que tentar recuperar”, comenta Marcelo Edmundo, da Central de Movimentos Populares (CMP). Mecanismos como o IPTU progressivo, em que donos de prédios abandonados teriam que pagar mais imposto a cada ano pelo não uso do imóvel, são previstos no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor. Nunca foram adotados na prática. Mais incrível é o Certificado de Potencial Adicional de Construção (CEPAC), valor cobrado a construtoras para desrespeitar limitações regionalmente estabelecidas de

construção, como, por exemplo, erguer mais andares que o inicialmente admitido em prédios. Além de alimentar todos os problemas de adensamento urbano, resulta em um lucro que só pode ser reinvestido, legalmente, no local. As classes média e alta, beneficiárias da iniciativa, terminam duplamente favorecidas.

“É a inversão do que deveria ser feito. O morador de rua deixa de ter um problema e passa a ser, ele mesmo, o problema”, lamenta o pesquisador Soninho Dignidade

Os 78 terrenos usados no período da construção do metrô estão vazios. A prefeitura poderia utilizá-los, como sugerem os movimentos sociais que lutam pela questão habitacional, para construções de baixa renda, em áreas de infraestrutura da cidade. Entretanto, a Câmara dos Vereadores aprovou um projeto da prefeitura submetendo esses terrenos a leilão. O argumento é de que esse dinheiro vai ser usado para a construção da linha 4 do metrô. Mas não são apenas essas medidas da prefeitura que agravam a questão habitacional na cidade e, por consequência, no centro. A atual gestão ameaçou impedir, inclusive, a oferta do Sopão à população de rua. “O Sopão tem uma importância de ser um momento em que os moradores se juntam. Eles conFábio Caffé

Gás de pimenta e “gravata” em uma das intervenções mais violentas da polícia carioca

versam, dividem comida. Então, além da pessoa se alimentar, recupera o convívio social”, comenta Marcelo. Por conta dessas opções de política pública, lideranças da luta por habitação não se deixam tocar por episódios como a repressão aos Guerreiros da 234, que por ora estão morando na rua, em sua

Programa federal de habitação ajuda, mas nem tanto Se cumprido, Minha Casa, Minha Vida representará conquistas ao setor. Entretanto, sua submissão à lógica de mercado preocupa do Rio de Janeiro (RJ) Há dois meses o governo Lula anunciava um programa inédito. O Minha Casa, Minha Vida destina recursos de subsídio para a construção de um milhão de moradias a trabalhadores que ganham até dez salários mínimos. A medida visa não apenas diminuir o gigantesco deficit habitacional do país, mas também atuar como medida anticíclica em período de crise econômica mundial. Os valores anunciados pelo governo são inéditos na história do país. O Brasil viveu por quase duas décadas a ociosidade do setor de construção civil. Desde o fim do Banco Nacional de Habitação (BNH), nos anos de 1980, até a metade dos anos 2000, período de crescimento econômico rarefeito, quase não se construiu. O Minha Casa, Minha Vida rompeu a tendência, mas ainda é visto com cautela. “Não há dúvida de que o programa pode ser exito-

maioria em frente ao INSS. “As três esferas de poder querem dar um verniz popular a essa reforma urbana de mercado. Só com a luta é possível ter algum ganho popular. Fora isso, estamos fadados à derrota”, sentencia Soninho. Permanecer ocupando áreas inabitadas é a palavra de ordem, e as conquistas vão muito além da moradia. O índice de aumento de emprego e de matrícula de crianças em escolas nas ocupações é significativo. Mais do que um chão, as ocupações representam a conquista de dignidade. “Não esqueço o dia em que me procurou o Raimundo, um trabalhador simplório que buscou a ocupação porque acreditava nela como espaço para reconstruir a vida de sua família. Ele me contou que estava evitando brigar com a mulher na frente dos filhos porque ali tinha percebido que era a referência deles”, conta Marcelo. O despejo violento da ocupação mobilizou, inclusive, os intelectuais. A Rede Universidade Nômade divulgou manifesto na internet contra o descaso histórico à questão habitacional e a repressão violenta às ocupações. O texto é direto. “O poder aparece diante dos pobres como um aparelho de proteção dos interesses da propriedade privada, inclusive quando ela é pública na realidade, como no caso de prédios abandonados às baratas por grandes administrações estatais”, diz.

so, mas dentro da perspectiva de êxito que eles têm. Favorece-se o setor da construção civil, que emprega muita gente, para funcionar como medida anticíclica. É para salvar o capitalismo e não para combater a questão habitacional”, comenta Soninho, pesquisador da questão habitacional em doutorado no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR). O Brasil teria mais de 8 milhões de famílias morando em condições inadequadas. Estima-se que haja no país cerca de 6 milhões de locações abandonadas. A conta simples, de oito menos seis, não é feita por governo algum devido à resistência em se questionar um fundamento simples do sistema capitalista, a propriedade privada. “Não vamos resolver o problema habitacional enquanto não se questionar a propriedade”, comenta Marcelo Edmundo, da Central de Movimentos Populares (CMP). O Minha Casa, Minha Vida divide as formas de subsídio em três diferentes faixas salariais: de zero a três salários, de três a seis e de seis a dez. Pesquisadores temem que as empresas privilegiem as construções relativas às faixas salariais maiores, por resultarem em maior lucro. O deficit habitacional no país é tão grande que afetaria, inclusive, a classe média baixa, que poderia ser beneficiada prioritariamente para prejuízo dos mais pobres. Há um segundo temor entre os movimentos sociais, o de que a ilusão de ser contemplado pelo programa desmobilize a luta. “Quando as pessoas ganham a perspectiva de que podem ter uma casa, você pode perdêlas. Até perceberem que a casa não vai se tornar concreta, demora. É o mesmo modelo da Igreja Universal, do programa Silvio Santos. Cria-se uma expectativa, nunca atingida”, compara Marcelo. (LU)


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cultura Reprodução

olhos do público. Como a menina Maísa, contratada de Sílvio Santos.

As mil faces do rei do pop HISTÓRIA Michael Jackson não mudou somente a sua cara, mas também a da música popular estadunidense e até mesmo mundial Aldo Gama da Redação NO INÍCIO PARECIA uma manifestação isolada, coisa de fã ou de alguém que havia exagerado na bebida. Mas foi se alastrando, contagiando as pessoas ao redor de tal maneira que, em pouco tempo, já era impossível ignorar o clamor da pista de dança: queriam Michael Jackson. No dia 2, mesmo antes de assumir o controle do tocadiscos da Fun House, casa noturna paulistana, o DJ Hector Lima sabia que, naquela madrugada, os alto-falantes do lugar já haviam gritado por mais de uma hora com músicas do artista. Mas a fome ainda não tinha sido saciada e, dessa vez por suas mãos, as pessoas dançaram ao som do autoproclamado rei do pop. Até aquele momento, a mídia já havia dissecado o corpo, a vida e a música do astro por uma semana, soterrando o público com quilos de blusões de couro vermelho, calças “pescando siri” e “boca de sino”, cabelos “black power” e alisados, chapéus e luvas prateadas. Ouvidos atentos puderam acompanhar, ainda que de forma desordenada, quase esquizofrênica, as fases distintas vividas pela música negra estadunidense desde o final dos anos 60. E, mais tragicamente, as mudanças físicas do cantor cujo sucesso e a sanidade escaparam à medida que a pele clareava. Homem no espelho As causas da morte de Jackson, no dia 25 de junho, ainda não são conhecidas, embora exista a suspeita do abuso de medicamentos. Mas a overdose de informação, relevante ou não, sobre o artista vitimou a todos, seja aquele que não tem o menor interesse no assunto, seja o consumidor compulsivo. De efeito imediato e mais específico, a busca por informações confiáveis sobre os concursos de imitadores de Michael Jackson promovidos por emissoras de televisão nos anos de 1980. Embora citem programas de auditório como o Cassino do Chacrinha (TV Globo) e o Clube do Bolinha (TV Bandeirantes), a maioria das pessoas acha que o de maior sucesso era o Barros de Alencar (TV Record), que, após acirrada disputa, elegeu sua Maica Jeca. A informação confere com a de um artigo na Wikipedia sobre o programa, que afirma ainda que a eleita se chamava Lucia Santos. Em uma outra versão, a verdadeira Maika Jeka era sucesso em São Vicente, no litoral paulista. Diante da escassez de informações, o paradeiro da melhor imitadora de Michael Jackson – assim como a grafia correta de seu nome, se Maica ou Maika – continua desconhecido. A criança perdida Michael despontou para a fama ainda criança, no final dos anos 60. Ao lado dos irmãos, gravou músicas como “I Want You Back” e “ABC”, que atingiram sucesso mundial. Mas foi somente com a carreira solo que ele se

transformou em um ícone pop, graças, principalmente, aos três discos gravados sob a produção de Quincy Jones. Off The Wall (1979), Thriller (1982) e Bad (1987) quebraram recordes e barreiras, sociais e comerciais. O segundo, por exemplo, é até hoje o disco mais vendido da história, com 106 milhões de cópias. Lançada como compacto, a faixa “Billie Jean” chegou ao primeiro lugar nas paradas e foi o primeiro videoclipe de um artista negro a ser veiculado pela MTV nos EUA. Os valores arrecadados com as excursões promocionais dos álbuns também atingiram marcas inéditas. Nos anos seguintes, mesmo enfrentando problemas judiciais, Jackson continuaria um “produto” de grande sucesso comercial. Seus esforços humanitários, como a criação de fundações e doações substanciosas a entidades, também eram reconhecidos. E seu talento sempre foi exaltado pela classe artística, que separava o homem do músico.

Nos anos seguintes, mesmo enfrentando problemas judiciais, Jackson continuaria um “produto” de grande sucesso comercial Inquebrável Em maio de 1983, a gravadora Motown – mítico selo estadunidense que teve sob contrato artistas negros como Marvin Gaye, Stevie Wonder, The Supremes, além dos Jackson Five – comemorava 25 anos. Como parte da celebração, vários músicos se apresentaram em um teatro, incluindo Michael, que cantou “Billie Jean”. A certa altura, Jackson executou uma estranha coreografia em que deslizava de costas, arrastando os pés no chão. Como lembra o jornalista Landro Saueia, aquele foi um momento crucial, onde o cantor foi, de fato, “coroado”, não apenas pelos fãs, mas pelos colegas de profissão. Um dos símbolos daquela década, juntamente com a coreografia de Thriller, imitado incontável e canhestramente por toda uma geração, o moonwalking não era uma invenção de Michael. O passo já era executado pelo sapateador Bill Bailey em 1955 – em filme que pode ser visto no Youtube. Mas é inegável que foi Jackson quem o popularizou, trazendo a reboque um guar-

da-roupa de gosto duvidoso até para os anos 80: calças de barra curta – que deixavam expostas meias brancas que desembocavam em um mocassim negro –, chapéu escuro e apenas uma luva, coberta por lantejoulas prateadas. Ainda assim, um sucesso arrebatador, e Michael se tornava o rei do pop. Nós somos o mundo Em 1984, o músico inglês Bob Geldof assistiu a uma reportagem sobre a fome na Etiópia e pensou em fazer algo para ajudar. Reunindo artistas locais de sucesso, gravou um compacto chamado Do They Know It’s Christmas? (Eles sabem que é Natal?, em tradução livre do inglês). Lançado no Natal daquele ano, o projeto batizado Band Aid reunia astros como Bono (U2), David Bowie, Simon Le Bom (Duran Duran) e Sting (The Police) e acabou sendo o disco mais vendido do período. No ano seguinte, nos EUA, Michael se envolveu no USA for Africa, supergrupo inspirado pela iniciativa inglesa que reuniu, além de Jackson, Lionel Richie, Stevie Wonder, Bruce Springsteen, Bob Dylan etc. Os organizadores dos dois projetos se juntaram para o Live Aid, megaconcertos realizados simultaneamente em Londres e na Filadélfia, com transmissão ao vivo para 1,5 bilhão de espectadores em mais de 100 países. No centro de tudo, Michael Jackson estava no topo, mas os nomes das suas turnês nos anos seguintes – Dangerous, History e Invencible (Perigoso, História e Invencível) – ganhariam um sentido dúbio indesejado. Preto ou branco Mesmo sem os mesmos números impressionantes de Thriller, Michael Jackson continuou bem-sucedido nos anos seguintes. A receita de sucesso começou a desandar mesmo por conta da vida pessoal do artista. Se antes o visual, os movimentos e a indumentária contribuíam para a construção do mito, a partir de certo momento seu comportamento e aparência foram responsáveis por sua derrocada. Segundo a versão oficial, o cantor sofreu um acidente em 1979 que o forçou a submeterse a uma rinoplastia que, malsucedida, o obrigou a uma outra cirurgia para corrigir problemas respiratórios. Dali por diante, intervenções cirúrgicas se tornariam constantes. Os olhos foram se arredondando, o queixo ganhou um furinho no melhor estilo Kirk Douglas e o nariz se afinou a ponto de quase sumir. O conjunto assimétrico ganhava contornos ainda mais bizarros com o branquea-

mento de sua pele. Por seu lado, Jackson afirmava ter feito poucas cirurgias corretivas e que a pele branca era resultado de vitiligo, doença que afeta a pigmentação. Quincy Jones, produtor e amigo pessoal de Jackson, disse em uma entrevista para o site men.style.com que eles sempre conversavam sobre o assunto e que Michael jurava que tinha mesmo uma doença. Mas, para Jones, o artista não queria ser negro e, além de sua pele, usava como argumento seus filhos, todos brancos. Infância Tabloides de todo o planeta têm discutido a situação das crianças cujas mães entregaram a guarda total ao cantor. Frutos de inseminação artificial, não teriam Jackson como pai biológico. Crianças, aliás, seriam o motivo da maior controvérsia na vida do astro, que comprou um rancho e o chamou de Terra do Nunca, nome do lugar onde vivia Peter Pan, personagem infantil que se recusava a crescer. Em 1993, vieram à tona as primeiras acusações de pedofilia contra o artista, que vivia cercado de crianças que convidava para ficar com ele em sua casa. Uma delas o acusou de abuso sexual e a questão foi resolvida fora dos tribunais. Dez anos depois, novas acusações o levaram a julgamento, do qual foi inocentado de molestar sexualmente um menor de 13 anos. Se perante a Lei nada havia sido provado, a opinião pública, alimentada pela imprensa, não o deixaria se recuperar do golpe. E seu comportamento não ajudava em nada. Acostumado a cobrir o rosto de seus filhos quando saíam em público, Michael chegou a pendurar o mais novo no ar, do lado de fora da sacada do hotel onde se hospedava, para mostrálo aos fãs, colocando a criança em risco e recebendo críticas de todos os lados. Michael Jackson sempre afirmou que ele e os irmãos sofreram abuso físico e mental do pai, que via no talento musical dos filhos uma chance de escapar da pobreza. Ao lembrar da infância, ele chegava a chorar e confessou que, por vezes, ver o pai lhe provocava vômito. Durante a adolescência, com o rosto coberto por uma acne violenta, sofria com a implicância dos irmãos,

que diziam que ele era feio e riam do seu nariz de “batata”. E essa é a versão contada pela família. Natureza humana Michael foi uma criança que ficou famosa aos 11 anos de idade. E a indústria do entretenimento coleciona tragédias relacionadas a artistas mirins que não conseguem sobreviver no mundo adulto. Um exemplo recente é a rainha dos tabloides, Britney Spears. A diferença entre eles é que Jackson, apesar de cercado por profissionais competentes, nunca foi exclusivamente o resultado do trabalho de um produtor. Além de compor boa parte de seu repertório, sozinho ou em parceria, ele ainda participava das gravações, interferindo diretamente na produção de sua música. Se não se encaixa na categoria “gênio incompreendido”, ocupada por talentos como Arnaldo Batista (Os Mutantes), Brian Wilson (Beach Boys) e Kurt Cobain (Nirvana), serve como referência para crianças talentosas que são forçadas a crescer diante dos

Álbuns Oficiais

Não pare até estar saciado Houve um momento em que o trabalho de Michael Jackson mostrava os caminhos a serem seguidos pelos artistas pop. Seus videoclipes, como o de “Thriller”, dirigido por John Landis (Um Lobisomem Americano em Londres), estabeleceram um novo padrão estético, uma nova linguagem que consolidou o formato como a principal ferramenta de divulgação da música. No Brasil, esses filmes, que ultrapassavam o convencional em orçamento e duração, eram exibidos inicialmente no Fantástico, da TV Globo, que enfatizava a exclusividade do lançamento. Em um comunicado oficial, a Sony Music lembrou que, durante sua carreira, Michael vendeu cerca de 750 milhões de discos, teve 13 compactos recordes de vendas e foi um dos poucos artistas a serem introduzidos no Rock and Roll Hall of Fame (Salão da Fama do Rock and Roll) por duas vezes (pelo trabalho solo e com os Jackson Five). O Livro Guiness dos Recordes o reconheceu como o artista mais bem-sucedido de todos os tempos e seu disco Thriller, como o mais vendido. Jackson também ganhou 13 prêmios Grammy. Aos 50 anos, 40 deles dedicados à música, Michael estava mergulhado em dívidas estimadas em 400 milhões de dólares. Especula-se que gastava, anualmente, 20 milhões de dólares a mais do que suas receitas permitiam. Como solução, uma temporada de shows em Londres, onde faria 50 apresentações. A ansiedade criada pela volta aos palcos estaria diretamente relacionada com a sua morte. O funeral do artista, realizado no dia 7 no ginásio Staple Center, em Los Angeles, na Califórnia, reuniu cerca de 17,5 mil fãs que participaram de um sorteio de ingressos na internet. A homenagem, transmitida pela televisão, contou com a presença de artistas como Stevie Wonder e Lionel Richie. Se sua morte ajudará o público a separar a música do homem, só o tempo dirá. Mas naquela madrugada do dia 2, enquanto chacoalhavam ao som da música escolhida pelo DJ Hector Lima, as pessoas na pista da Fun House não pensavam em outra coisa a não ser se divertir. Em não parar até estarem saciados.

Canções que chegaram ao nº 1

Got To Be There (1971) Ben (1972) Music And Me (1973) Forever, Michael (1975) Off The Wall (1979) One Day In Your Life (1981) Thriller (1982) Farewell My Summer Love (1984) Bad (1987) Dangerous (1991) HIStory: Past, Present And Future – Book I (1995) Invincible (2001)

Ben (1972) Don’t Stop ‘Till You Get Enough (1979) Rock With You (1980) One Day In Your Life (1981) The Girl Is Mine (1982) Billie Jean (1983) Beat It (1983) Say Say Say (1983) I Just Can’t Stop Loving You (1987)

Bad (1987) The Way You Make Me Feel (1987)

Man In The Mirror (1988) Dirty Diana (1988) Another Part Of Me (1988) Black Or White (1991) Remember The Time (1992)

In The Closet (1992) You Are Not Alone (1995) Earth Song (1995) Blood On The Dance Floor (1997)


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américa latina Reprodução

Movimentos prometem parar a economia do país GOLPE EM HONDURAS Diante da negativa de golpistas em reconduzir Manuel Zelaya ao poder, frente de esquerda aumentará protestos Dafne Melo da Redação MOBILIZAR MAIS. Quem define a tática dos movimentos sociais hondurenhos para os próximos dias é a militante da Coordenação Latino-americana de Organizações do Campo (Cloc) em Honduras, Wendy Cruz. “A partir de domingo [dia 5], as coisas mudaram. De agora em diante, estamos planejando novas ocupações de rodovias. Nosso objetivo é parar a economia nacional para mexer no bolso dos ricos”. Ainda que a imprensa corporativa tente dar ares de fracasso para a tentativa de retorno do presidente deposto Manuel Zelaya ao poder, o evento parece ter dado mais força às manifestações contra o governo golpista. Em parte, devido à capacidade de mobilização demonstrada. “Os protestos foram impressionantes a tal grau que contabilizamos aproximadamente 500 mil pessoas dos setores pobres de nosso país, que estão em defesa da ordem constitucional”, conta Mabel Márquez, da Via Campesina de Honduras.

Ainda que a imprensa corporativa tente dar ares de fracasso para a tentativa de retorno de Manuel Zelaya ao poder, o evento parece ter dado mais força aos protestos contra o governo golpista. Em parte, devido à capacidade de mobilização demonstrada De acordo com ela, a Frente Nacional de Resistência Popular tem conseguido integrar diferentes organizações populares, rurais e urbanas, desde os indígenas e camponeses até estudantes, operários e movimentos feministas. Como próximos passos, além das ocupações de lugares estratégicos, sobretudo economicamente, a frente planeja ocupar prédios estatais e realizar uma greve geral. “A palavra de ordem é continuar nas ruas até conquistarmos a verdadeira democracia”, diz. Base de apoio No domingo, Zelaya tentou voltar ao seu país, mas foi impedido pelas forças militares que tomaram conta do aeroporto de Toncontín (ver box). De lá, seguiu para El Salvador, onde o esperavam os chefes-de-Estado do Equador, Rafael Correa; do Paraguai, Fernando Lugo; e da Argentina, Cristina Kirchner. Também manifestando apoio, estava o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza. Entretanto, todo apoio internacional, inclusive dos Es-

tados Unidos – ainda que comedido até agora (ver matéria nesta página) –, não foi suficiente para forçar o governo de fato a reconduzir Zelaya ao poder. Para André Martin, professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), o que ainda mantém no poder os golpistas, encabeçados por Roberto Micheletti, é sua base de apoio: os militares, parte do Congresso, Judiciário e a elite agroexportadora, além das classes médias. Mas, de acordo com Wendy Cruz, o apoio não é hegemônico na classe média e no Legislativo. “Há uma lista de 15 deputados do Partido Liberal que emitiram um comunicado declarando que não iriam mais ao Congresso pois não estão de acordo com o golpe”. Ela também cita que há empresários que retiraram o apoio a Micheletti, já incomodados com o fato de que a instabilidade política do país certamente afetará seus interesses e negócios. Sobre os militares e a Justiça, Wendy afirma que “seguem firme com a oligarquia golpista”. Ditadura A atitude autoritária de Micheletti não para na negativa de receber o presidente democraticamente eleito. No dia 1º, o governo de fato baixou um decreto que suprimiu oito artigos da Constituição Federal. As supressões restringem a liberdade de expressão dos meios de comunicação, permite a entrada em residências e realizações de prisões sem autorização judicial e ainda retira os direitos a realizar reuniões e de livre associação. Wendy afirma que não há dúvidas de que os hondure-

nhos vivem hoje sob uma ditadura militar. “Foram suprimidos nossos direitos individuais, como o livre trânsito, livre expressão; o toque de recolher é muito cedo – das seis da noite até seis da manhã”, afirma. A militante também relata que as Forças Armadas têm recrutado jovens à força, e que a cada dia chegam relatos de camponeses que estão sendo reprimidos no interior do país pelos militares.

Manifestação pede o retorno de Zelaya: nas ruas pela democracia

Repressão já deixou dois mortos Mabel Márquez

No dia 1º, o governo de fato baixou um decreto que suprimiu oito artigos da Constituição Federal (…) Wendy Cruz, da Coordenação Latino-americana de Organizações do Campo, afirma que não há dúvidas de que os hondurenhos vivem hoje sob uma ditadura militar Seguem, também, as prisões arbitrárias, e calcula-se que pelo menos 600 pessoas foram detidas desde o dia do golpe. “Continuam vigentes as ordens de captura dos ministros e de pessoas de confiança de Manuel Zelaya, como prefeitos que o apoiam. Estão fugindo, assim como lideranças conhecidas, como o Padre Tamayo, no Estado de Olancho”, denuncia.

A luta é cada dia mais dura para os movimentos sociais hondurenhos, que ontem [dia 5] novamente foram vítimas da barbárie e da violência pela Polícia Nacional e o Exército. O protesto pacífico começou em frente à Universidade Pedagógica Francisco Morazán por volta das 11h30; era uma marcha massiva, mas, durante o percurso até o aeroporto, mais e mais pessoas se juntavam à manifestação, que se manteve por horas e horas em frente ao aeroporto internacional de Toncontín. Os manifestantes, eufóricos e com muitas esperanças de ver seu presidente, José Manuel Zelaya Rosales, com chegada anunciada ao país às 16h, gritavam palavras de ordem enquanto caminhavam. Minutos antes da chegada do mandatário, armou-se um distúrbio. Policiais e soldados estavam visivelmente assustados. Creio que nunca haviam visto tantas pessoas reunidas em um só lugar e dispostas a defender a demo-

cracia e a ordem constitucional. Quando viram que os manifestantes, aproximaram-se do muro perimetral do aeroporto e começaram o ataque. Primeiro, balas de festim, depois, balas normais e bombas de gás lacrimogêneo para dispersar a multidão. Lamentamos que Exército e polícia tenham uma atitude de violência contra seus irmãos hondurenhos, já que a maioria dos soldados do nosso país vem dos estratos mais pobres da população. Entretanto, sempre que assim lhes é pedido, atacam seu próprio povo, matando pessoas, como ocorreu no aeroporto. Sabe-se que faleceram um menino de 8 anos chamado Darwin Antonio Lagos e um jovem de 18 anos, Isis Obed Murillo – atingido por uma bala na cabeça –; e que pelo menos dez pessoas ficaram feridas. Entretanto, é necessário fazer investigações mais profundas. O pai de Isis Obed Murillo, David Murillo, residente de Guayape, no Estado de Olancho, é um companheiro que apoia o Comitê de Familiares De-

saparecidos de Honduras (Cofadeh), e que se deslocou com seus 11 filhos até Tegucigalpa para apoiar os protestos, com a convicção e a esperança de que a luta pela justiça e pela verdadeira democracia será ganha pelos movimentos sociais. Aos meios de comunicação, afirmou que, apesar da perda irreparável de seu filho, não voltará atrás e lutará até o fim. Diante dos acontecimentos, muitas pessoas saíram correndo para suas casas, aterrorizadas, mas muitos ainda se mantiveram no aeroporto e viram quando o avião que transportava Zelaya tentava aterrizar, o que foi impossível, pois o Exército estacionou vários caminhões na pista. Mais: ameaçou interceptar o jato se não desistissem de aterrizar. Apesar de toda repressão e violência a que os movimentos sociais estão sendo submetidos, dizemos que não voltaremos atrás na luta pelo retorno da ordem constitucional. Mabel Márquez é comunicadora da Via Campesina em Honduras.

Golpe traz nova conjuntura para continente Para especialista, não há meio termo para os Estados Unidos: ou saem fortalecidos, ou enfraquecidos da Redação Cenário 1: o presidente Barack Obama toma uma postura mais enérgica em relação ao golpe em Honduras e aplica sanções econômicas ao país. Sem apoio algum, sem seu maior mercado consumidor, as elites hondurenhas cedem e aceitam uma saída negociada de Roberto Micheletti do poder. Se assim for, Obama ganha um ponto diante dos governos latino-americanos, legitima-se e recompõe parte da hegemonia política no continente. Por outro lado, compra briga com os setores mais conservadores da sociedade estadunidense, que, ao menor sinal de negociação com Cuba, certamente lembrarão do fato na hora de exigir a manutenção do embargo à ilha. Cenário 2: o governo estadunidense mantém a atual postura comedida; sem sanções econômicas que re-

almente prejudiquem a elite agroexportadora hondurenha, o governo de fato se mantém, a despeito das mobilizações populares e da condenação da comunidade internacional. O resultado reitera a afirmação de muitos de que Obama não traz nada de muito novo em relação ao seu antecessor, e o fato de ter apoiado, ainda que não abertamente, um golpe de Estado não será esquecido pelos governos mais progressistas da região, que tenderão a fortalecer ainda mais e com mais convicção as iniciativas de integração propostas pelo bloco formado pelos presidentes Hugo Chávez, da Venezuela; Evo Morales, da Bolívia; e Rafael Correa, do Equador. Conjuntura A curto prazo, esses são dois cenários possíveis para

Para André Martin, professor do Departamento de Geografia da USP, ainda que a mobilização interna seja decisiva, não se pode negar o peso dos EUA: “o incômodo maior está com Obama” Honduras e suas prováveis consequências para a correlação de forças no continente, segundo André Martin, professor do Departamento de Geografia da USP. Para ele, ainda que a mobilização interna seja decisiva, não se pode negar o peso dos EUA. “O incômodo maior está com Obama”, afirma. O professor aponta que a própria expulsão de Honduras da Organização dos EsReprodução

Policiais coíbem o trabalho da imprensa

tados Americanos (fato que ocorreu pela última vez em 1962, com Cuba) não poderia ser muito diferente, uma vez que essa instituição também tem sido questionada pela maioria das lideranças latino-americanas, o que culminou com a criação da União das Nações Sul-americanas (Unasul). Se a OEA tivesse virado os olhos para o golpe em Honduras, reforçaria a falta de legitimidade da entidade, analisa Martin. Entretanto, o geógrafo opina que a decisão da OEA representa apenas um “isolamento diplomático”. Decisivo mesmo seria um embargo total ou parcial dos EUA. “A questão crucial que se coloca, porém, é se a comunidade internacional está disposta a usar argumentos democráticos para tirar os golpistas do poder, apoiando um governo progressista e alinhado ao bloco chavista”, avalia. A saída pelo outro lado tampouco é vantajosa, pois faz,

mais uma vez, cair a máscara do imperialismo, reiterando o velho e verdadeiro argumento da esquerda de que a bandeira da democracia só é defendida pelos Estados Unidos quando a seu favor. Cenário 3 Para Martin, há ainda uma outra forte possibilidade, uma espécie de meio termo como solução do impasse em Honduras: uma negociação colocaria um terceiro governante, não vinculado nem a Zelaya nem aos golpistas, que ocuparia a chefia do país até as eleições presidenciais, marcadas para novembro. Os últimos acontecimentos podem apontar para essa solução. Barack Obama recusou o convite de Roberto Micheletti para uma reunião, mas aceitou o de Manuel Zelaya. Dia 7, o presidente deposto reuniu-se com a secretária de Estado estadunidense, Hillary Clinton (Obama está na Rússia). Ao final, indicaram Óscar Arias, presidente da Costa Rica, para assumir a posição de intermediador do conflito. Anteriormente, Micheletti já havia aprovado o nome de Arias para mediador. “É muito honroso para mim e para a Costa Rica ajudar, mas a mediação só tem sentido se aceita por ambas partes”, afirmou o costarriquenho, prêmio Nobel da Paz. (DM)


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américa latina

La Embajada: Honduras de 2009 não deve repetir Haiti de 1992 Valter Xeu

ANÁLISE Há 17 anos, interferência dos EUA em crise do país caribenho plantava as bases para a ocupação de 2003 Carlos Walter PortoGonçalves EMBORA A HISTÓRIA do Brasil acuse a presença nefasta de ações contra a democracia perpetradas pelos Estados Unidos, nem de longe a expressão La Embajada tem para nós o mesmo sentido que em outros países latino-americanos. No mundo andino e, sobretudo, centroamericano e caribenho, a expressão é sinônimo do poder que, em última instância, decide. Desde a Doutrina Monroe (1823) que o caráter imperial dos EUA se desdobrava na América atualizando as piores tradições imperiais europeias, que remontam ao Império Romano (é só ver a arquitetura da Casa Branca), ungido pela ideia de Destino Manifesto denunciado, em 1826, por Simón Bolívar. Para aqueles que colocavam em dúvida a sagaz e imediata compreensão de Bolívar sobre o papel dos Estados Unidos nos eventos de 1845-1848 – quando, em guerra contra o México, tomaram o Novo México, a Califórnia e o Arizona e completaram sua atual face geográfica coast to coast, indo do Atlântico ao Pacífico –, desde então, o destino da América Central e do Caribe ficaria indelevelmente ligado às políticas do Pentágono e La Embajada se tornaria, de fato, base da rede de controle geopolítico da região. A partir dali, a obsessão de criar um canal ligando o Atlântico ao Pacífico se torna estratégica, e a Colômbia verá seu território amputado com a criação do Panamá, em 1903, um país criado para que os EUA tivessem o controle do canal. Como parte dessa estratégia, o país do norte interveio abertamente contra a independência de Cuba, levada a cabo pelos próprios cubanos, como tão bem observou José Martí. No Tratado de Paris, de 1898, em que a Espanha assinara o reconhecimento de sua derrota na grande ilha do Caribe e da independência de Cuba, não estava presente nenhum cubano, mas sim estadunidenses, franceses e espanhóis.

Desde os quentes anos da Guerra Fria que Honduras tem sido um lugar estratégico contra movimentos populares e democráticos na região Nesse mesmo ano, os Estados Unidos também tutelaram a independência de Porto Rico e, como o Império espanhol fizera desde a descoberta da América, estabeleceram suas bases na Ásia, igualmente tutelando a independência das Filipinas (terra de Filipe, rei da Espanha). Assim, controlar a América Central e o Caribe é, para os EUA, razão de Estado não só enquanto área estratégica para a segurança do seu território, como também do ponto de vista do domínio sobre o comércio mundial, como já

Hondurenhos nas ruas: resistência popular contra o golpe militar

demonstrara a Espanha na primeira moderno-colonialidade iniciada em 1492. O caráter estratégico dessa região era tal que até mesmo concessões sobre temas como direitos trabalhistas e reforma agrária foram feitas em Porto Rico, medidas contra as quais os EUA sempre se colocaram, apoiando as oligarquias latifundiárias que os apoiavam. A raison d’État também se sobrepôs aos interesses econômicos imediatos no Japão do pós-guerra. O caso de Porto Rico é, nesse aspecto, emblemático, posto que a reforma agrária foi imposta no país pelos EUA, inclusive contra os interesses da poderosa United Fruit Co. Não podemos entender o que se passa hoje em Honduras sem consideramos esse pano de fundo. Desde os quentes anos da Guerra Fria que o país centro-americano tem sido um lugar estratégico contra movimentos populares e democráticos na região, como na derrubada da “primavera democrática” guatemalteca (1944-1954), no combate à guerrilha salvadorenha, no apoio aos “contra” na Nicarágua sandinista e na frustrada tentativa de derrubada da Revolução Cubana, com o episódio da Playa Girón, na Baía dos Porcos.

Se as esquerdas latino-americanas parecem ter entendido a importância da radicalização democrática, o mesmo não parece ter ocorrido à direita Onda antineoliberal

Desde que os movimentos populares começaram a debilitar os governos que se submetiam às políticas do Consenso de Washington, ou seja, desde que o Exército venezuelano assassinou entre mil e 3 mil pessoas em Caracas, em fevereiro de 1989, e que o presidente argentino Raul Alfonsín, no mesmo ano, viu-se obrigado a renunciar diante das manifestações callejeras (de rua) contra as medidas de ajuste que decretara, que o pêndulo político na região começou a tender para a esquerda e contragolpes de Estado. A tentativa frustrada de golpe de Hugo Chávez na Venezuela, em 1992, e, sobretudo, as lições por ele tiradas daquele episódio foram fundamentais para a onda antineoliberal que emana das ruas e que ensejou que uma série de governos se elegesse impulsionados por esses movimentos de fundo popular e antigolpista.

O primeiro desses governos seria exatamente o de Hugo Chávez, eleito em 1998, e que mudaria a correlação de forças na região, situação que hoje se faz sentir com a condenação unânime do golpe de Estado contra o presidente Manuel Zelaya, em Honduras. O mesmo já fora observado em 2002 quando a direita, com inegável apoio do governo e da imprensa dos EUA, tentou um golpe contra o presidente Chávez. À época, diga-se de passagem, foi importantíssima a posição do governo brasileiro através do presidente Fernando Henrique Cardoso. No Haiti

O recente golpe contra o governo democrático de Honduras é um teste fundamental ao governo do presidente Barack Obama, pois são notórias as ligações do Exército golpista hondurenho com a ultradireita dos falcões estadunidenses que foi derrotada nas urnas, nos EUA, junto Reprodução

com os neoconservadores do partido republicano. É preciso estar atento para que não se repita agora em Honduras o mesmo que ocorreu no Haiti em 1992, desenho que parece estar se configurando. À época, o padre ativista da Teologia da Libertação Jean-Baptiste Aristide havia sido eleito na primeira eleição democrática realizada no país depois da derrocada da ditadura sanguinária dos Duvallier. A direita colocou todos os obstáculos possíveis para que não fosse respeitada a vontade popular e que Aristide não pudesse levar a cabo as reformas de sua plataforma eleitoral vitoriosa e que faziam parte da sua história de militância junto aos movimentos populares haitianos. Configurado o impasse ensejado pelos golpistas contra a vontade popular, o presidente eleito foi retirado do país e levado para os Estados Unidos, onde teve que negociar as condições de sua posse. Estas incluíam a permanência dos militares golpistas de ultradireita à frente das forças armadas. Os acontecimentos do Haiti depois disso são sobejamente conhecidos, mostrando o que significa debilitar a vontade democrática, o que levaria à intervenção militar internacional no Haiti, em 2003. É importante recuperarmos esse (mau) exemplo do Haiti de 1992, posto que se tratava de um governo democrata nos EUA, ou seja, Bill Clinton estava no poder. Portanto, não se tratava de um republicano conservador ou neoconservador como seriam os anos Bush. Era um governo democrata que não foi capaz de enfrentar a direita militar. Bifurcação

Soldados encurralam manifestantes em Tegucigalpa, capital hondurenha

A situação, hoje, volta a se delinear no caso de Honduras. O estranho disso tudo é que a mídia não se cansa de lembrar o golpe que Hugo Chávez intentara em 1992 e nunca se lembre do golpe de Estado do democrata Bill Clinton contra o povo haitiano e Aristide. Se as esquerdas latino-americanas parecem ter entendido a importância da radicalização democrática, o mesmo não parece ter ocor-

rido à direita, e a região se vê no caso hondurenho, assim como se viu no caso venezuelano de 2002, diante de um momento de bifurcação: ou consolidação democrática ou retorno aos golpes de Estado de tão triste memória para as maiorias empobrecidas.

A direita colocou todos os obstáculos possíveis para que não fosse respeitada a vontade popular e Aristide não pudesse levar a cabo as reformas de sua plataforma eleitoral E se alguma dúvida ainda pairava no ar, os dois casos recentes de tentativa de golpe na América Latina deixam claro uma verdade profunda de nossa realidade, a saber: os golpes que tanto caracterizaram o chamado Terceiro Mundo não são uma intervenção estadunidense. As intervenções dos EUA são feitas a convite, como tão bem salientou David Harvey em seu O Novo Imperialismo. Resta saber se os EUA, que tanto apoio deram a esses convites antidemocráticos, estão no nível das exigências de uma nova ordem mundial descolonizada, na qual a justiça social e a democracia sejam mais que retóricas. Não à toa a eleição de Barack Obama foi comemorada nas ruas tanto no Quênia como em Salvador (Bahia) e em Nova York. Se ele está no nível dessas forças profundas de um outro mundo possível, o futuro imediato dirá. Carlos Walter Porto-Gonçalves, doutor em Geografia, é professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF).


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américa latina JLQ/ABI

“Nosso modelo não é comunista, mas comunitário” ENTREVISTA Fernando Huanacuni, uma das principais referências intelectuais dos aymaras na Bolívia, sustenta que a base do processo de mudança no país está na retomada de culturas originárias Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) O ATUAL PROCESSO político boliviano, sem dúvida alguma, está entre os que mais despertam o interesse da esquerda brasileira. O elevado grau de protagonismo dos movimentos populares na política nacional, o simples fato de o país ter elegido um presidente indígena, os embates acirrados com uma elite racista – que faz de um golpe de Estado uma possibilidade plausível –, as lutas internacionais para garantir a soberania sobre seus recursos naturais, a forte presença do componente étnico como motor de mobilização, as mudanças feitas na Constituição de um país que agora se define como Estado Plurinacional, entre outros elementos, atraem os olhares para a Bolívia e a credenciam como um dos principais laboratórios políticos da atualidade. A originalidade que compõe esse processo político, porém, torna difícil a sua compreensão a partir de análises clássicas. É difícil até sistematizar a diversidade de organizações que fazem frente aos grandes capitalistas do país, o que dirá compreender qual o projeto que move cada uma delas. Se olharmos só para o movimento indígena, deixando de lado outros movimentos populares, o sindicalismo e as organizações partidárias, veremos uma organização massiva e multifacetada, composta por culturas que nasceram, pelo menos, 5 mil anos antes do pensamento moderno ocidental. (O plurinacionalismo boliviano reconhece 36 povos originários). A entrevista a seguir, com o intelectual aymara Fernando Huanacuni, é só uma amostra desse mosaico político boliviano.

“Existem os dias da história e as noites da história. O ascenso é o dia da história, o descenso é a noite da história E, para nós, em 1992, terminou um sol. Então, a história vai voltar a ascender” Brasil de Fato – Durante um seminário sobre culturas originárias, você disse que vivemos “tempos de mudança” e que essa mudança não é só política, mas muito maior. Do que você está falando? Fernando Huanacuni – O pensamento indígena originário, não só da Bolívia, mas de outros países, como os povos amazônicos do Brasil, tem a mesma explicação, a mesma projeção da história. A vida tem ciclos. Termina a noite, começa o dia. Em um ano, existem épocas secas, épocas de chuva, épocas de frio. Mas esses são ciclos pequenos. Existem ciclos muito maiores,

que o indivíduo não se dá conta porque vive somente 80, 90 anos. E os ciclos são de 500, de mil, de 4 mil, de 20 mil, de 40 mil anos. Um sol tem um ciclo de 4 mil anos de história, sendo 2 mil anos de ascenso e dois 2 anos de descenso. Assim, existem os dias da história e as noites da história. O ascenso é o dia da história, o descenso é a noite da história E, para nós, em 1992 (que no calendário aymara corresponde ao ano 5500), terminou um sol. Então, a história vai voltar a ascender. Mas como ela vai voltar a ascender? Nossos avós, de diferentes culturas indígenas, sabiam desses ciclos do renascimento do sol, por isso começaram a se organizar. Em 1992, diferentes povos se reuniram para poder começar esse novo sol. E as culturas antigas guardaram, sobretudo, valores e princípios, e isso é o que agora está renascendo, porque é necessário, é questão de vida, não somente algo político ou social. Apesar da parte política ser a que mais se vê, a parte espiritual, as oferendas, as cerimônias, é que é a base fundamental de toda a força política, social , jurídica, econômica, educativa. Mas essa organização alavancada a partir de 1992, esses valores e esses princípios fazem parte hoje da cultura viva desses povos? Nos anos 1980, quando íamos para o Willkakuti (o ano novo aymara) em Tiwanaku, éramos poucos, mas havia gente. Antes, nos anos 1970, 1950, 1940, 1930, no ano 1900, para você ter uma ideia, somente se tinha festa nas casas, com nossos avós, nada mais. Mas nunca desapareceu essa cerimônia. Em 1992, ganhamos força, e agora tem mais gente. Neste ano, haviam 20 mil pessoas. No México – em Teotihuacan, Tchenltza, Tenochtitlan – e até na Inglaterra fizeram cerimônias como estamos fazendo. No Peru, na Colômbia, de norte a sul, fizeram suas cerimônias. Somente não são amplificadas pelos meios de comunicação. Aqui já estão difundindo um pouco, porque já é mais forte o movimento. E para que servem as cerimônias? Para lembrar ao humano que ele tem um coração, que existe o pai Sol, que existe a mãe Terra. Queremos recordar que é muito importante agradecer. Nós não vivemos sós. Eu trabalho, você trabalha, mas não é por isso que existe vida. Existe vida porque existe sol, porque existem ciclos, porque existe chuva, porque existem sementes, porque existem rios, porque existem montanhas, porque existem árvores. Temos que despertar e entender que a vida é uma complementação e reciprocidade do todo, um equilíbrio perfeito. E, se destroçamos uma parte, vamos destruir tudo. Aqui, nós dizemos Pachamama, ou Madre Tierra. Em outras partes, os indígenas dizem Madre Selva, Madre Agua. Então, identifica-se que nós não somos seres humanos e natureza, mas parte da natureza, não somos superiores. Essa forma de pensar existe da cultura antiga. O renasci-

Líderes religiosos durante o Willkakuti, ano-novo aymara, em Tiwanaku, na Bolívia

“Não podemos fazer mais danos à mãe Terra, essa é a primeira mensagem. Todos os povos indígenas originários, desde o Alasca, estão saindo em defesa da vida. Estamos convidando todos os estados a dar um giro em suas políticas, seus decretos, suas Constituições” mento do tempo está nos convidando para que voltemos a essa antiga forma de pensar. Não podemos fazer mais danos à mãe Terra, essa é a primeira mensagem. Todos os povos indígenas originários, desde o Alasca, estão saindo em defesa da vida. Estamos convidando todos os estados a dar um giro em suas políticas, seus decretos, suas Constituições. Até agora, somente as Constituições de Equador e Bolívia sabem que existe a mãe Terra, enquanto todas as outras Constituições só falam em direitos humanos. E isso não é viável, porque a vida não é só humana. Muitos discursos de governo na Bolívia falam em descolonização, especialmente aqueles ligados às políticas culturais. Essa descolonização significa resgatar a cultura antiga? Temos que ver o que trouxe a colonização. O processo de colonização individualizou o pensamento, nos dessensibilizou. Já não se sente sequer pelo outro, pelo humano, quanto menos pelos animais, pelas montanhas. Se um tem comida, não importa se os demais têm. O processo de descolonização agora tem que sensibilizar, tem que nos naturalizar e nos fazer voltar ao conceito comunitário. Para as pessoas de pensamento ocidental, o sol é simplesmente um astro, nada mais. Para nós, é o pai Sol, nos referimos a ele com respeito, porque sua energia dá a vida. Quando a mãe Terra se desperta, nós damos alimento a ela, porque ela não é somente um objeto inerte, mas um ser que vive. Então, temos que despertar as pessoas. Estamos ilhados em nossas casas e apartamentos nas cidades, desintegrados. Temos que conectar outra vez o que a colonização desconectou. Minha avó não falava espanhol, falava aymara. Na verdade, pacha-aru, a língua da vida. Falava com os animais, com o vento, entendia suas distintas formas de soprar. Minha mãe segue falando, eu só sei um pouco. Bom, você deve ter visto pelos meios de comunicação que, no episódio do Tsunami, os animais de lá se retiraram para o centro da ilha dois dias antes da tragédia. Adiantou a tragédia para eles? CNN? Animal Planet? Não, pacha-aru. E os seres hu-

manos, o que fizeram? Colocaram bronzeador e foram para a praia. E hoje, qual relação os países de culturas colonizadas da América Latina devem estabelecer com os países de culturas colonizadoras, de origem europeia? Primeiro, eu diria que os latino-americanos têm que se encontrar com os indígenas, para depois poder dialogar com a Europa. O seu pensamento não está relacionado com o movimento indígena, tornaram o movimento indígena invisível porque pensavam que ele era inferior. Eles simplesmente imitaram a Europa. Dizem América Latina, percebe? Para nós, somos Abya Yala, assim chamamos nosso continente há milhares de anos. E te digo mais: temos mais diálogos com os europeus do que com os latinoamericanos. Por que isso acontece? Porque os latino-americanos querem ser como os suíços, os alemães, os ingleses, os italianos, seguem no processo de colonização. O indígena amazônico ainda briga com os garimpeiros. Estes destroem florestas, destruíram árvores-mãe, árvores-pai, árvores de milhares de anos, as cortaram para mandar para o mundo ocidental. Para nós, são as avós, os avôs, é vida, são nossos mestres. O indígena chorou muito e segue chorando porque desequilibraram tudo. E os europeus estão mais preocupados. O europeu se deu conta da poluição. Já chegaram ao extremo de seu capitalismo, do desenvolvimento da modernidade, já foram ao abismo e sabem que essa não é a resposta. Esse modelo o deixou doente e estão buscando alternativas, por isso procuram os indígenas com maior força. Vieram buscar aqui nossos arquitetos, não os que são formados em universidades, mas os que trabalham no campo, para aprender a fazer adobe [casas construídas de barro]. Os europeus sabem que nessas casas ficam menos doentes. Mas, um dia, quando a modernidade já não puder dar as respostas, os latino-americanos vão se dar conta de que a resposta estava ao seu lado, só não queriam nos escutar porque pensam que não somos muito inteligentes.

Para além do movimento indígena, você não vê na América Latina um processo conjunto de descolonização? Agora está havendo uma confusão entre socialistas e povos indígenas. Quando Evo Morales ascendeu, Chávez disse que era seu irmão indígena, com seu discurso do socialismo do século 21, com seu pensamento de esquerda, que é ocidental. Mas, na Venezuela, recentemente estão descobrindo os povos indígenas. Muitos estão pensando que o movimento boliviano é socialista, mas é um movimento indígena. Nosso modelo não é comunista, mas comunitário. Mas o partido organizado pelo presidente se chama Movimento ao Socialismo (MAS). Sim, mas o nome MAS foi comprado, nada mais. Ele estava registrado na Corte Nacional Eleitoral e foi emprestado para o Evo poder se candidatar, foi algo circunstancial, percebe? Nós pensamos que o socialismo, o comunismo e o capitalismo são iguais. Porque só pensam no humano, são individualistas, são homogeneizadores e materialistas. Você não vai ver um comunista fazendo cerimônias, não vai vê-lo honrando seus ancestrais, não vai vê-lo cuidando da lhaminha. Ou melhor, vai cuidar da lhama porque é um bom negócio para vender. Existem marxistas que mantêm crenças. No Brasil, por exemplo, existem marxistas que mantêm sua religiosidade cristã. Você pode dizer que o cristianismo é ocidental também, mas existem marxistas que mantêm crenças de origem africana. Você não vê sintonias com os marxistas? Partimos de premissas. Quando falamos de comunidade, não falamos só de humanos. Comunidade é tudo: animais, plantas, pedras. E não para vender. Por exemplo, no governo boliviano, existem marxistas. Bom, nosso país tem uma reserva muito grande de lítio e sua exploração é alvo de muitas especulações. O lítio pode deixar a Bolívia poderosa. Mas o mundo indígena não quer explorar o lítio. O marxista quer, tem somente um pensamento material. Nós preferimos não explorar porque é importante para o equilíbrio da vida. Mas o marxista não pensa assim. Para mudar o sentido de um rio, o marxista vai colocar tratores e pronto. O indígena vai dizer “não, calma, espera, vamos pedir permissão para os nossos ancestrais e vejamos se é bom”. O marxista vai dizer “claro que é bom, aqui vamos produzir”. Ele não vê im-

portância no espiritual, não o sente. Por isso ainda não está entendendo. E dentro dessas premissas, o que fazer com a vida nas cidades? Essa resposta tem que se buscar na Europa. Eles estão buscando alternativas. Mas o movimento indígena não é só do campo, é uma forma de vida e um convite a viver com respeito. As montanhas estão degelando. Vai faltar água. E isso vai afetar a todos, brancos, mestiços, indígenas etc. Por isso, necessitamos de novas formas de política, porque as atuais não nos permitem resolver. E isso é incumbência de todo mundo. O ocidente tem buscado respostas e o povo indígena as está dando: para que todos tenhamos alimentos, temos que produzir com os ciclos da natureza, não somente com elementos químicos, ou de maneira anormal ou antinatural. Os povos originários estão avisando que as mudanças da história são também mudanças de ciclos naturais. Por isso, devemos aproveitar este momento e voltar ao paradigma comunitário e ao seu modelo pedagógico, jurídico, de governo. Aqui, por exemplo, nas comunidades, não há eleições. Nós não queremos a democracia, como agora se conhece, porque ganha o que faz mais campanha, o que tem mais dinheiro, o que tem mais poder de influência nos meios de comunicação. Aqui, um é a autoridade em um ano, no ano seguinte é outro, no seguinte, outro; ninguém pode repetir. Todos têm que participar e todos têm que se desenvolver como autoridade. Porque, se alguém se mantém, algo vai falhar na sua mente e tudo vai se desequilibrar. Então, para que descanse, se passa para o outro. Arquivo pessoal

Quem é Fernando Huanacuni, 43 anos, nasceu nas montanhas de Illimani, ao sul de La Paz. Ele pertence à comunidade Sariri, um grupo de descendentes e não-descendentes de povos originários que se reúne para estudar, viver e difundir a cultura dos povos que, antes da colonização espanhola, habitavam os Andes. Também é diretor de protocolo do Ministério das Relações Exteriores do governo Evo Morales e um dos responsáveis por um programa de TV no canal boliviano RTP, que se dedica a debater a cultura andina e os temas da conjuntura.


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internacional

Governo de Israel tenta corromper a solução dos dois estados Hadar Naim/CC

ANÁLISE No entanto, se o país não aceitar tal saída, sua existência – segundo a contraditória definição de “Estado judeu e democrático” – está ameaçada de ruir Yuri Martins Fontes SEGUNDO PODE-SE desde já prever, a partir das migalhas que vêm sendo propostas pelo primeiro-ministro de Israel aos palestinos, não haverá retorno tão breve às negociações de paz. O conservador de extrema-direita Benjamin Netanyahu – conhecido como “Bibi” – foi bastante ardiloso, e recentemente deu a entender que acataria o que a equipe diplomática de Obama lhe pedira, fazendo concessões aos palestinos. Em discurso feito há alguns dias, o líder israelense admitiu – pela primeira vez – a existência de “um Estado palestino”, que, porém, não terá direito a possuir exército, nem a exercer o controle sobre suas fronteiras e espaço aéreo. Mas, especialmente, não terá direito sobre Jerusalém Oriental (que seguirá dominada por Israel e seus colonos). Obviamente, tais condições são consideradas inaceitáveis pelos palestinos. Dessa forma, Bibi acalmou a opinião pública internacional, sem dar um passo efetivo adiante. Não haveria de se esperar outra coisa do direitista recém-empossado presidente do Estado judeu. Assim, no dividido Estado de Israel, onde a diferença social entre judeus e árabes se aprofunda a cada conflito, aprofunda-se também o que já se anunciava desde as últimas eleições: o endurecimento da intolerância. A própria eleição foi desenhada a partir disso, resultante de uma barbárie: após o intenso bombardeio israelense à Faixa de Gaza (ocorrido no início do ano), a opinião pública judia deixaria se influenciar pelo sangue e elegeria um parlamento (em fevereiro) que vem assustando até mesmo a direita “neoliberal” dos países centrais. Com essa guinada parlamentar à extrema-direita, Israel passou a ter a maioria das cadeiras ocupadas por conservadores oriundos de partidos que pregam abertamente até mesmo a xenofobia. Direitização de Israel

Portanto, manter os palestinos em regime de pão e água é uma ideia que ganha força em Israel. Outro sinal dessa tendência é a decadência dos trabalhistas – historicamente, entre as principais forças políticas israelenses –, partido que mostra maior disposição para negociar a questão palestina. Em 1992, a legenda tinha 44 parlamentares; no ano passado, 18; agora, 13. Já o fortalecido Likud claramente se opõe à criação do Estado palestino e admite, no máximo, conceder ao outro lado maior autonomia econômica, sob a tutela israelense. Um indício de que Bibi manterá sua posição rígida é a declaração, no início de abril, do novo ministro de Relações Exteriores israelense, Avigdor Lieberman, do Israel Beitenu (IB), de que os acertos definidos no encontro de paz realizado em 2007 em Annapolis (EUA) – do qual participaram representantes de 30 países – não serão le-

Benjamin Netanyahu em propaganda política do Likud: “forte contra o Hamas”

vados em consideração pelo novo governo, porque não foram aprovados pelo parlamento israelense. O aspecto mais notável desse encontro é que ficou explícito, pela primeira vez, a admissão da existência de dois estados, um judaico e um palestino, convivendo lado a lado, como solução política para a paz. A tendência à direitização da opinião pública israelense – e mesmo ao crescimento da direita entre os próprios trabalhistas – não é nova, diz Michel Warschawski, diretor do Centro de Informação Alternativa em Jerusalém. Ele considera como “particularmente significativo” o fato de Uri Avnery, entre outros sionistas e patriotas israelenses, ter chegado à conclusão de que a democracia israelense está em perigo. Avnery, um herói da guerra de 1948, ex-parlamentar e jornalista conhecido, manifestou seu desconsolo citando uma declaração de Aharon Barak, presidente da Alta Corte de Justiça israelense e sobrevivente do Holocausto, que comparou a situação de seu país nesta década com a da Alemanha nazista.

De acordo com Warschawski, a mesquinha democracia israelense se baseou, desde o princípio, na expressão da vontade da maioria sobre a minoria, por meio das eleições e de ações do governo apoiadas pela maioria parlamentar De acordo com Warschawski, a mesquinha democracia israelense se baseou, desde o princípio, na expressão da vontade da maioria sobre a minoria, por meio das eleições e de ações do governo apoiadas pela maioria parlamentar. Como Israel não tem Constituição escrita – embora este seja um dos compromissos assumidos na fundação do Estado –, abriu-se aí um enorme campo para a violação dos direitos dos árabes. Em geral, atribui-se essa ausência à grande influência dos

O medo de que os árabesisraelenses possam ameaçar a supremacia numérica da população judaica em Israel – já que o índice de crescimento demográfico da população árabe é bem maior que o dos não-árabes – tem levado muitos judeus a apoiar a solução dos dois estados partidos religiosos, visto que os judeus-ortodoxos acabam por se beneficiar da falta de um texto que torne claros os direitos e deveres dos cidadãos. Assim, na ausência de uma tradição social israelense, prevalecem os costumes religiosos. Warschawski acredita, no entanto, que a responsabilidade principal é dos líderes sionistas – promotores da ideia de um Estado judeu unificado: “Israel tem sido sempre definido não somente como um Estado judaico (e democrático, de acordo com a sagrada formulação), mas também como um país em estado de emergência devido a muitas décadas de guerra. O Estado de emergência é tão profundamente enraizado na cultura política israelense que nem a paz com o Egito, nem com a Jordânia, nem a Declaração de Princípios conjunta com os palestinos têm sido capazes de colocá-lo em questão”, diz. A flexibilidade legal que resulta dessa situação leva a que “mesmo quando os direitos são mencionados explicitamente [nas leis], eles são sempre condicionados: ‘contanto que não exista nenhuma lei em contrário’, ou ‘exceto no caso de emergência’ ou ‘se isto não contradisser o caráter judaico do Estado de Israel’”. Em resumo: os direitos fundamentais existem formalmente, até que o Parlamento israelense resolva alterá-los “democraticamente”, isto é, por simples maioria. Outro aspecto destacado por Warschawski é o da grande influência militar na vida política israelense, diretamente ou por meio de altos oficiais que se voltam para a carreira política e continuam mantendo fortes laços com os antigos camaradas, como são os casos de Netanyahu e Ehud Barak (no atual gabinete israelense, dos 30 ministros, há pelo menos 12 que foram oficiais de carreira ou reservistas). Nova ideologia

Para Warschawski, está tomando lugar no país “uma nova ideologia que combi-

na quatro elementos principais: militarismo nacionalista mais ou menos associado com o fundamentalismo religioso; racismo pronunciado; conservadorismo impregnado de messianismo; e tendência a questionar cada norma democrática. Além disso, “a esquerda perdeu a vontade de lutar há muito tempo”, avalia Warschawski. “Muitos estão plenamente conscientes de que a própria existência de Israel está em jogo”. Segundo o analista, as famílias que pertencem aos setores progressistas “estão enviando seus filhos para o exterior”, enquanto que “somente uma pequena minoria continua a lutar, tanto pelos direitos palestinos, quanto para deter a transformação de Israel num Estado fundamentalista, que acabe com as últimas pretensões democráticas”. Entre os que examinam a sociedade israelense de modo crítico, como Avraham Burg, ex-presidente do Parlamento israelense pelo Partido Trabalhista, cresce a convicção de que a fórmula “Estado judaico e democrático” é um dos principais problemas. Numa entrevista concedida em 2007 ao jornal israelense Haaretz, ele disse que “definir o Estado de Israel como um Estado judaico é a chave para o seu fim”. De fato, se o Estado é judaico, supostamente deve funcionar para abrigar privilegiadamente os judeus: portanto, como pode ser democrático, já que isso requereria tratar a todos que vivem no território israelense como iguais? As consequências dessa contradição são sentidas cotidianamente pelos palestinos, vivam eles no território israelense, na Cisjordânia ou em Gaza. Um quinto dos 7,3 milhões de cidadãos israelenses é árabe. Essa parcela da população constitui grande parte dos 20% das famílias israelenses que vivem abaixo da linha da pobreza, uma taxa das mais altas entre os países considerados desenvolvidos – grupo para

o qual Israel entrou recentemente, ao ser admitido na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Outro indicador social que tem o mesmo sentido é do número de crianças vivendo na pobreza, que subiu para 36% em 2007, após o governo abolir, três anos antes – como parte das reformas neoliberais que atingiram o país –, os benefícios dados às famílias com cinco ou mais crianças, o que afetou principalmente a população árabe e a de judeus ortodoxos. Embora o país tenha experimentado um forte crescimento econômico entre 2005 e 2008, o Índice de Gini – que mede a concentração de renda – chegou a um nível considerado dos mais perversos entre os países da OCDE. Além de viverem uma situação econômica difícil, os árabes-israelenses também se queixam de diversas formas de discriminação. Uma delas é a lei, aprovada em 2003 pelo Parlamento, e confirmada em 2006 pela Alta Corte israelense, que praticamente proíbe o casamento entre árabes-israelenses e palestinos que vivem nos territórios ocupados – uma das principais formas de os palestinos adquirirem cidadania israelense. Segundo essa norma, os cidadãos israelenses que se casam com habitantes originários daquelas áreas não podem viver com os cônjuges em território israelense. A medida pode ter sido adotada com o objetivo de manter Israel com uma “massiva maioria judaica” – como disse certa vez Ariel Sharon. Solução dos dois estados

A hoje chamada questão palestina tem como um de seus principais pontos a discussão sobre o direito de retorno dos refugiados árabes às suas propriedades em território israelense, tomadas durante a invasão expansionista de Israel nas últimas décadas – ou, pelo menos, que haja uma indenização material como compensação pela expropriação, conforme já foi definido pela ONU. O direito de retorno dos palestinos, no entanto, convive com a Lei do Retorno israelense. Foi essa legislação que permitiu transformar os imigrantes judeus de qualquer parte do mundo em cidadãos israelenses. Encontrar uma solução para a contradição entre essas duas proposições parece hoje muito difícil. A criação de um Estado palestino deve contribuir para que se chegue a uma saída, desde que não se repitam graves erros cometi-

dos no passado. Não é o que parece estar ocorrendo, entretanto. Segundo o The Economist, o medo de que os árabes-israelenses possam ameaçar a supremacia numérica da população judaica em Israel – já que o índice de crescimento demográfico da população árabe é bem maior que o dos não-árabes – tem levado muitos judeus a apoiar a solução dos dois estados. Essa saída seria atualmente a mais proveitosa para os interesses dos EUA e mesmo de Israel. Se até então esse projeto não foi viabilizado, isso se deve à falta de planejamento em médio prazo, ou a uma visão pragmática. Na realidade, conforme explica o professor de Relações Internacionais da Universidade Hebraica, Arye Katzovich: “Se não deixar os territórios, Israel não mais existirá como Estado [que se proclama] judeu e democrático”. Ou seja, se não for logo consolidado um Estado palestino – para onde Israel possa deportar seus árabes –, só haveria então duas possibilidades: ou os árabes acabariam por controlar o Estado, que portanto deixaria de ser judeu, ou, à semelhança do apartheid sul-africano, haveria a necessidade de um regime autoritário segregacionista, que permitisse manter o poder em mãos da então minoria judia – o que certamente seria ainda mais difícil de explicar ao mundo democrático do que o último massacre levado a cabo em nome da “legítima defesa”. Conforme a maioria dos estudos demográficos, o crescimento populacional dos palestinos e dos árabes-israelenses – árabes que permaneceram na Palestina, após a invasão em 1948, e que hoje possuem a cidadania israelense – é significativamente superior ao judeu. Hoje, os primeiros são 19,4% da população de 7,4 milhões de pessoas. Pouco antes da guerra dos Seis Dias, eles eram somente 12%. Se somarmos os quase 4 milhões de palestinos da Cisjordânia e de Gaza, os árabes contabilizam hoje cerca de 5,3 milhões, contra os atuais 5,5 milhões de judeus. No entanto, as destoantes taxas de crescimento populacional suprimirão em breve essa tênue diferença, pois, entre os árabes, ela chega a 2,5% (no caso dos israelenses) e 3,4% (em Gaza), contra apenas 1,7% entre os judeus. “Mesmo líderes da direita israelense entendem que a melhor solução é a dos dois estados”, analisa a historiadora Sarah Ozacky-Lazar, do Instituto Van Leer de Jerusalém. Também o ex-presidente estadunidense Jimmy Carter tem se colocado a favor dessa saída, afirmando que, se a medida ainda não foi adotada, é porque os imigrantes judeus assentados na Cisjordânia têm imposto um forte obstáculo. “A retirada da Cisjordânia é fundamental para a solução do conflito, mas Israel não só continua a aumentar o número de assentamentos no território, como ainda construiu uma muralha que invade a área palestina”, afirmou Carter à imprensa, em recente entrevista. Na mesma linha de pensamento do professor Katzovich, e indo inclusive além, o ex-presidente dos EUA levantou outra possibilidade, mais trágica do que as duas anteriormente colocadas pelo acadêmico: “logo Israel terá apenas opções completamente inaceitáveis: uma delas é o que se pode chamar de limpeza étnica, o que significa obrigar os palestinos a deixar o território”. Mas parece que Bibi insiste em não levar a realidade a sério. Yuri Martins Fontes é editor do jornal A Palavra Latina.


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