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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 333

São Paulo, de 16 a 22 de julho de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Cáritas/MA

Honduras: mediação de Arias é armadilha

Famílias no Nordeste ainda vivem o drama das enchentes

Impasse. Assim segue a situação em Honduras pouco mais de duas semanas após o golpe de Estado que retirou Manuel Zelaya da presidência. De acordo com os movimentos populares locais, as negociações intermediadas pelo mandatário costarriquenho Óscar Arias não apresentaram nenhum avanço. Na avaliação desses setores, Zelaya errou ao aceitar negociar por intermédio de Arias, notoriamente alinhado às políticas externas estadunidenses para o continente desde a década de 1980, quando foi peçachave para a repressão do movimento sandinista, na Nicarágua. Paralelamente a isso, continuam as mobilizações pela volta da ordem constitucional. Pág. 9

Usinas no rio Madeira, uma história de 100 anos O complexo do rio Madeira, que prevê a construção de duas hidrelétricas, repete os mesmos erros dos projetos de desenvolvimento para a Amazônia de um século atrás. Em 1907, o estadunidense Percival Farquhar iniciou as obras da ferrovia Madeira-Mamoré. O objetivo era ultrapassar o trecho de cachoeiras do rio e facilitar o escoamento da borracha, via rio Amazonas, até o mercado exterior. O declínio do preço do látex inviabilizou a atividade e a estrada foi fechada em 1966. No seu lugar foi feita a BR-364, conhecida como “Rodovia do Ouro” e que se justificou no período de expansão do garimpo. O complexo do Madeira servirá para cumprir o mesmo trecho de cachoeiras, dessa vez, por via fluvial. Pág. 5

Homem tenta limpar sujeira da enchente em Trizidela do Vale, no Maranhão

EUA testam nova estratégia de militarização na América Latina Colômbia, Peru e México são, na América Latina, os laboratórios preferidos pelos falcões estadunidenses para sua nova política de guerra: a contrainsurgência. De acordo com a pesquisadora mexicana Ana Esther Ceceña, a atual influência dos EUA na militarização latino-americana pode ser vista de forma diluída nas diversas diretrizes de segurança nacional. O pretexto

é o combate ao narcotráfico e ao “terrorismo”, mas, na prática, visa-se conter as organizações sociais do continente. No Paraguai, tal política é evidenciada mesmo sob o governo de Fernando Lugo: os EUA continuam sendo um dos principais colaboradores na área de segurança pública e a repressão aos camponeses se mantém. Págs. 10 e 11 Maurizzio Brambatti/G8

No G8, Bric rejeita proposta estadunidense No encontro do G8 na Itália, os países convidados roubaram a cena. Na reunião das maiores economias mundiais, Brasil, Rússia, Índia e China, o Bric, rejeitaram a proposta dos EUA para a redução de gases poluentes. A China considerou que a proposta estadunidense visava coibir o crescimento do bloco. Pág. 12

Fim da hegemonia do dólar depende da vontade de governos ISSN 1978-5134

Passados mais de dois meses depois da tragédia – estima-se que mais de 1,3 milhão de pessoas foram afetadas – o cenário dos municípios atingidos pelas cheias é alarmante. Onde antes viviam comunidades inteiras, há apenas casas destruídas e centenas de famílias esquecidas, sem alternativas para reconstruírem suas vidas. Nos estados do Maranhão, Piauí e Ceará, as famílias que tiveram suas casas total ou parcialmente destruídas ainda aguardam alguma definição sobre o repasse de verbas através das prefeituras para a reconstrução das casas. Pág. 4

Em entrevista, Maria Lúcia Fatorelli, coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, explica que a exclusividade do dólar no comércio internacional

dificulta o enfrentamento da crise econômica, uma vez que ela eleva o custo das trocas entre os países. Para mudar o quadro, basta vontade dos governos. Pág. 7

Comunidades do Rio criticam PAC-Favelas Programa do governo federal destina recursos para favelas do Rio de Janeiro, porém comunidades caren-

tes acusam o PAC-Favelas de ser antidemocrático, eleitoreiro e superficial. As críticas foram levantadas com lide-

ranças e movimentos locais a partir de pesquisa do Ibase sobre as obras no Complexo de Manguinhos. Pág. 3 Leandro Uchoas

AFOGANDO EM NÚMEROS Reprodução

Na África do Sul, 70 mil operários, responsáveis pela construção dos estádios e da infraestrutura da Copa do Mundo de 2010, entraram em greve por um reajuste de 13%. Atualmente, a média salarial é de 224 dólares. O preço dos ingressos mais baratos para acompanhar os sete jogos que uma seleção pode fazer na competição, 479 dólares, equivale a 65 dias de trabalho.

Favela da Rocinha (RJ), que receberá investimentos do PAC


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editorial TODOS OS DIAS a imprensa corporativa vem denunciando alguma falcatrua do senhor José Ribamar Sarney como se ele não tivesse sido eleito presidente do Senado pela maioria dos seus “ingênuos coleguinhas”. Estranho como só agora descobriram suas artimanhas. Caso ele tivesse declarado apoio à candidatura de José Serra, certamente a chamada grande mídia não se interessaria por suas qualidades. Vamos lembrar algumas, que eles sempre esconderam. Afinal ele está desde 1962 em cargos públicos adotando as mesmas práticas. Lá no início de sua carreira patrocinou a maior grilagem de terras públicas do Maranhão. Basta ler o livro do Padre Victor Angelim, editado pelos franciscanos na Editora Vozes. Depois disso, assumiu de corpo e alma a ditadura civil-militar. Construiu a Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido do regime, no Nordeste. Então, de simples oligarca rural e regional, montou um império de comunicação. Controla jornais, rádios e, claro, é sócio da Globo. Seu afilhado, o ministro

debate

Sarney, a personificação da classe dominante brasileira Edison Lobão (Minas e Energia) é acionista do SBT. Ao ver cair a ditadura, Sarney mudou de lado para continuar no poder. Virou presidente da República, só Deus sabe como. Em São Luís, apropriou-se do Convento das Mercês, patrimônio histórico público, e colocou em nome de sua fundação, a qual preside. E lá pretende ser enterrado. O mausoléu e a lápide já estão prontos para visitação do público. Fez isso tudo com dinheiro público, inclusive da Petrobras. Depois, desgastado com o pior governo que esse país já teve, foi candidatar-se senador pelo Amapá, Estado que jamais havia visitado, quanto mais morado. E a Justiça Eleitoral aceitou sua candidatura. Lá fez carreira com seus métodos. Conseguiu que cupinchas nos tribunais hipócritas cassassem o governador João

Capiberibe do cargo de senador, para abrir espaço para um outro afilhado seu. Alegação: o senador Capiberibe teria usado R$ 36 para comprar o voto de duas empregadas domésticas, que negaram a acusação nos tribunais. Em abril deste ano, conseguiu tirar do cargo, após mover pedras e montanhas, o governador legitimamente eleito do Maranhão, Jackson Lago. Chegou a ameaçar publicamente pelos jornais o advogado do governador, por ser seu afilhado político. A acusação que conseguiu tirar o cargo de Lago: participou de um comício em Imperatriz (MA), em abril de 2006, fora de época eleitoral, junto com o então governador, que era afilhado do Sarney, mas o havia traído. E, finalmente, sua filha pôde retornar ao Palácio dos Leões, sede do governo estadual em São Luís.

Voltou a ser presidente do Senado duas vezes. Agora, na última, com apoio de senadores do PSB, PT etc., mesmo contra a candidatura do senador do PT do Acre, Tião Vianna. Os tais atos secretos da mesa diretora do Senado foram instituídos desde sua primeira gestão, há seis anos. Milhares de funcionários foram contratados. O Senado gasta ao redor de R$ 2 bilhões por ano. Gasta mais do que a maioria dos ministérios. Em quê? Algum cidadão brasileiro é beneficiado? O velho senador sofre agora de falta de memória. Esqueceu alguns seguranças do Senado protegendo sua casa em São Luís. Esqueceu de colocar na declaração de renda uma pequena casa de R$ 4 milhões que possui em Brasília. Esqueceu que mora lá e seguiu cobrando ajuda de aluguel do Senado. Esqueceu de avisar os demais correntistas e retirou

crônica

Roberta Traspadini

Quem são os piratas? A PIRATARIA É uma das questões mais polêmicas colocadas pela mídia em pleno capitalismo monopolista do século 21. Segundo o conselho nacional de combate à pirataria, estima-se que 45% da população brasileira consuma algum tipo de produto pirateado. Frente a esse dado podemos discutir, de maneira plural, o real significado de legalidade e legitimidade. Mas vale dizer que, a partir do enfoque da economia política, interpretamos que, se virou prática social, é porque está legitimada pela sociedade brasileira, ainda que possa ser interpretada pelo Estado e pelos donos privados das mercadorias como ilegal. Façamos um exercício e vejamos como, em essência, o que é ocultado nos noticiários e na indústria cultural midiática é o verdadeiro sentido colocado na luta de classes sobre esse tema. Comecemos com algumas perguntas básicas: 1. O que é a pirataria? É a cópia de um original, cuja autoria é de outro. Em termos formais, “crime de violação de direito autoral”. 2. O que é um produto original? É aquele que, ao ser feito por alguém, se transforma em propriedade privada deste alguém (produto mercadoria e produto intelectual). Propriedade esta garantida sob a tutela do Estado formal, e exige que todos que o utilizam peçam benção (economicamente paguem uma parte expressiva) àqueles que o produziram. 3. Quando um produto original vira o produtor de cópias? Quando o objetivo principal de sua utilização é prestar esse tipo de serviço. Exemplo: fazer cópias de livros, de discos, de dvd’s. 4. Quando a cópia é violação? Quando o original, matriz produtora de cópias, é utilizado por terceiros sem pagar sua parte substantiva, ou vira um meio para outros meios e não o fim último do serviço. Em outras palavras, parte expressiva da cópia utilizada como pirataria advém de produtos originais que formalizam sua propagação. Essas máquinas, cada vez mais potentes e portáteis, implementam um ritmo absurdo de produção de cópias não controladas pelo próprio capital monopolista. Quando isto ocorre, o capital – que começa a ver seu controle burlado a partir das próprias máquinas produzidas por ele – define como pirataria ilegítima e ilegal. Ou seja, uma ação de produção e de consumo exercida por contraventores sobre a ordem burguesa de propriedade privada do capital. Já para os trabalhadores, o problema não é o da originalidade da cópia. E sim do desenvolvimento capitalista em si mesmo

Gama

excludente, apropriador privado da produção da riqueza e da renda. Produção esta que permitiu a uma parte expressiva da população mundial encontrar mecanismos de sobrevivência, frente à, cada vez menor, mão-de-obra formal dos três setores econômicos. O problema de fundo dessa discussão não é da ordem moral, e sim econômica. Ou seja, quem fica com parte expressiva daquilo que é gerado, independente da mediação feita pela máquina formalmente registrada? O próprio capital? Ou os trabalhadores, que, alijados do processo formal de trabalho, encontram a possibilidade de sobreviver legitimamente a partir da pirataria? A informalidade, numa sociedade como a brasileira, cuja exclusão raia as beiras da barbárie social, tem no mínimo algumas facetas que devem ser levadas em consideração: 1. É legítima e legal, quando seu fim é a sobrevivência de parte expressiva de um contingente de trabalhadores condenados da terra, feita propriedade privada pelo capital, que sequer entra para os números do exército industrial de reserva, e que encontra nesta atividade um dos únicos mecanismos de ser minimamente incluído, frente à real exclusão. Exemplo: ambulantes, vendedores de cd’s, dvd’s, entre outros. Em alguns casos, no que tange ao informal, o Estado pode assumi-lo inclusive como empreendedor, para, ao formalizá-lo, garantir tributos ainda mais valiosos para seus cofres. 2. É legítima mas ilegal, quando o Estado, imbuído de sua representação de classe, resolve fazer uma limpeza social-moral, mas que realmente é da ordem do poder econômico, entre os que atuam fora ou dentro da Lei. 3. É ilegítima e ilegal, quando seu princípio, meio e fim são

a morte de muitos, frente à vida de poucos. Esse é o caso específico do tráfico de armas, de drogas, de mulheres, de órgãos, entre outros. Para sobreviverem alguns, muitos têm que morrer para fazer a produção circular em forma de ganância excessiva e ampliada. A legitimidade e legalidade da pirataria no Brasil deve ser analisada à luz do conflito de classes gerado pela consolidação do capital que vai, pouco a pouco, ou aprisionando o trabalho e escravizando-o de múltiplas formas, conforme o tempo histórico em que se vive, ou excluindo-o formalmente para incluí-lo como consumidor. Há violações anteriores à dita violação da pirataria. Listemos algumas: 1. Violação do direito ao trabalho e ao salário digno. Um desemprego que chega à casa dos 8% e uma população economicamente ativa em que menos de 50% dos que atuam são formalmente registrados. 2. Violação da remuneração digna quando parte expressiva dos trabalhadores formais ganha até dois salários mínimos por mês e não têm as garantias constitucionais de saúde, educação, moradia, entre outras. 3. Violação do direito à disputa de classe, via estado de direito, quando o capital define, a partir de seu poder onipotente, não só as regras do jogo, mas a forma como o árbitro (Estado brasileiro) deve se comportar . 4. Violação dos direitos consolidados, como CLT e Constituição Federal. Ambos estão virando enciclopédia para consulta sobre como foi e deixou de ser o processo laboral brasileiro ao longo dos séculos 20 e 21. Roberta Traspadini é educadora popular, economista, integrante da Consulta Popular-ES.

R$ 2 milhões de suas contas do Banco Santos, 12 horas antes do Banco Central fechá-lo. Há no Maranhão mais de 40 edifícios de órgãos públicos que levam nomes da família e inclusive um colégio estadual com nome dado a sua bisneta, quando a menina tinha apenas 5 anos. Já o Tribunal de Contas do Estado, que deveria fiscalizar isso tudo, se chama Governadora Roseana Sarney. Tudo isso é proibido pela Constituição. Mas nenhum jornalão paulista ou carioca criticou. Sarney é a cara da classe dominante brasileira. A cara dele é a cara de todos os exploradores do povo brasileiro, que, no entanto, são mais “vivos” e hipócritas. Muita gente do PT e do governo estão agora defendendo o nobre senador. Dizem ser uma pessoa de currículo invejável. Fazem bem. Por duas razões: primeiro, porque ajudam o povo brasileiro a entender melhor como funciona a “democracia burguesa”, sempre a serviço de uma minoria; segundo, relembram o velho ditado: “Diga-me com quem andas e te direi quem és!”

Franklin Douglas

A fundação de José Sarney A FUNDAÇÃO DA Memória Republicana teve seu nome alterado para Fundação José Sarney... mas, para o presidente do Senado, não é de responsabilidade administrativa dele essa alteração. A Fundação José Sarney tem um estatuto que fala em José Sarney 12 vezes. E, no artigo 19 do capítulo 5, registra que ela possui um “presidente vitalício”: José Sarney. Se ele morrer, a presidência é de Marly Sarney, sua esposa. Se ela morre, fica com Roseana ou Fernando ou Sarney Filho. Sem nenhum deles, fica com os netos. Enfim, a fundação é dos Sarney! Mas o senador amapomaranhense não tem “nenhuma responsabilidade administrativa” sobre a fundação... O estatuto coloca ainda que o fundador da entidade, entre várias outras funções, possui a de assumir responsabilidades financeiras. Sarney, no entanto, deve entender que responsabilidade financeira é uma coisa; administrativa, outra. Por isso, ele se justifica dizendo que não é dele qualquer responsabilidade administrativa. A Fundação tem um membro fundador que possui poder de veto sobre qualquer decisão de seu Conselho Curador. Ou seja, sem a anuência e vontade dele, nada acontece. Adivinha de quem é esse poder de veto? Dele mesmo, do “Jota Esse”! Poder de veto dele junto a um conselho que tem entre seus membros a filha, o filho, o genro e dois muy amigos! Pelo visto, para Sarney, não dá pra confiar nem na sombra. Pelo estatuto, compete a Sarney presidir reuniões do conselho curador, orientar atividades e representá-la em juízo. Mas o velho oligarca não se sente com qualquer responsabilidade administrativa sobre a Fundação que leva seu próprio nome. O Conselho Fiscal da Fundação José Sarney é composto de três membros: um é assessor de ministro indicado por ele para o Governo Federal; outro é seu assessor na presidência do Senado; o terceiro é também amigo dele. Mas Sarney não tem qualquer responsabilidade administrativa sobre a Fundação, rebateu de própria voz, sentado na cadeira da presidência do Senado Federal. O presidente em exercício da Fundação só o é por procuração do “dono de fato” da fundação, o próprio senador de Curupu. Mas ele não tem qualquer responsabilidade administrativa sobre a Fundação... Todas essas informações estão no estatuto da entidade registrado em cartório; em livro de tiragem esgotada, do jornalista Emílio Azevedo, que expõe o “Caso do Convento das Mercês”; nas páginas do Jornal Pequeno em diversas matérias; e, agora, é de conhecimento da opinião pública nacional pelas páginas do jornal O Estado de São Paulo e outros veículos nacionais de comunicação. Um conjunto de evidências, fatos e provas que desmontam a afirmação de José Sarney, ao plenário do Senado Federal, para justificar que nada tinha a ver, nada sabia dos desvios de dinheiro para empresas fantasmas e de sua família, de recursos de R$ 1,3 milhão (um milhão e trezentos mil reais) da Petrobras a sua Fundação José Sarney para projeto de digitalização de acervo que nunca saiu do papel... Um mentira, para defender-se de uma maracutaia, e 81 senadores enganados. Até quando senadores e senadoras engolirão a seco as mentiras do velho coronel? Na internet, nas ruas, nas páginas do jornais, a opinião pública já deu o seu recado. Depois de até contas secretas no exterior (e esse é outro megaescândalo!), parece faltar pouco para afundar o barco de Sarney. Ou vai ele, ou se vão os 54 senadores que disputarão eleições do ano que vem. Porque a credibilidade da instituição Senado, com a permanência de Sarney na presidência, já se foi! Franklin Douglas, jornalista e professor universitário, é editor do blogue Ecos das Lutas www.ecosdaslutas.blogspot.com.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Luís Brasilino • Subeditor: Igor Ojeda • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

No Rio, PAC-Favelas é criticado pelas comunidades supostamente atendidas ECONOMIA Programa destina recursos a comunidades carentes, mas é acusado de ser antidemocrático, eleitoreiro e superficial Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) “O ÚNICO BRAÇO do Estado que sobe a favela é a polícia”, costumam dizer alguns intelectuais sobre a ausência — ou presença diferenciada — do poder público nas comunidades. Principal projeto de desenvolvimento do governo federal, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) se propõe, ao menos no discurso, a enterrar esse conceito. No Rio de Janeiro, onde as três esferas de poder (federal, estadual e municipal) seguem aliadas, uma parcela do investimento, tímida se comparada ao montante de recursos do Programa, é destinada a comunidades carentes da capital. O PAC-Favelas enfrenta, entretanto, acusações de ser antidemocrático, eleitoreiro e de não contemplar os reais problemas. Dos R$ 3 bilhões previstos para o Estado, 2,5% devem ser destinados à área social. Num primeiro momento, as comunidades contempladas serão Complexo de Manguinhos, Complexo do Alemão, Rocinha, Pavão Pavãozinho, Colônia Juliano Moreira e áreas da Grande Tijuca. Dadas as suas imensas dimensões, os três primeiros seriam os mais afetados. Cioso de que a medida governamental se torne apenas mais uma dentre tantas tentativas malogradas de se melhorar o nível de vida em comunidades, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) tem acompanhado as obras no Complexo de Manguinhos desde o início. Para a região da zona norte, os três governos preveem investimentos de R$ 328,3 milhões, contemplando 46 mil moradores. É a partir desse acompanhamento que se tem uma medida mais precisa de como o programa tem sido conduzido. Junto às lideranças e movimentos locais, o Ibase formou o Fórum da Cidadania. Para o primeiro encontro, no dia 16 de março, entre os moradores, ONGs e os governos, o instituto reuniu todas as informações divulgadas em releases e na grande

Carlos Magno/Governo do Rio de Janeiro

imprensa. Chamava a atenção a quantidade de informações desencontradas e os distintos valores divulgados. Havia reportagens propagando dados em total divergência com os de outras matérias de um mesmo veículo. O Fórum apresentou aos representantes dos governos os dados, querendo saber o que era verdade neles. Ora com desconforto, ora com revolta, os representantes do Estado criticaram a mídia e disseram que ainda não tinham como divulgar os valores reais.

“Só fomos ouvidos de tanto insistir. Mas apenas parcialmente. O projeto veio de fora. Na maior parte do tempo, nossa opinião foi ignorada”, denuncia Patrícia Evangelista, do Fórum do Movimento Social de Manguinhos Clima tenso

Ficou acordado, então, que os governos prestariam conta no segundo encontro dos valores reais (dos quais aparentemente não tinham domínio). Então, no dia 11 de maio, o Fórum voltou a se reunir. A comunidade pode finalmente conhecer, já com alguns meses de obras em andamento, o que se planejava para ela. Alguns moradores ainda apontaram divergências entre os dados apresentados e o que realmente estava acontecendo, e o clima permaneceu tenso. Mas o encontro fez com que os integrantes do Fórum da Cidadania reforçassem o processo que já vinha em desenvolvimento pelas lideranças de Manguinhos — a luta para

O presidente Lula e o governador do Rio, Sérgio Cabral, durante inauguração das obras do PAC em Manguinhos

que a comunidade tivesse voz na tomada de decisões. “Só fomos ouvidos de tanto insistir. Mas apenas parcialmente. O projeto veio de fora. Na maior parte do tempo, nossa opinião foi ignorada. Os detentores do saber, engenheiros e arquitetos, acham que não precisam ouvir. O projeto fala em participação popular, mas nós não vemos isso. Muita coisa teria avançado se tivéssemos construído em conjunto”, denuncia Patrícia Evangelista, do Fórum do Movimento Social de Manguinhos. A partir da luta, conseguiram elevar a previsão de habitações construídas para 1.774. Somadas às 775 adquiridas, o complexo vai ganhar 2.549 novas casas. Embora o investimento em comunidades represente iniciativa estatal elogiável, o valor está muito aquém, segundo Patrícia,

da necessidade das sete comunidades contempladas em Manguinhos, dentre as mais pobres do Estado. Foco questionável

O projeto também tem sido acusado de ser eleitoreiro. As medidas do PAC serviriam para reforçar a candidatura governista da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), cuja imagem tem sido associada ao programa. Entretanto, essa percepção é mais forte entre os moradores de fora do complexo. A pesquisa Dimensões da Cidade: Favela e Asfalto, divulgada recentemente pelo Ibase, que surpreende pela similaridade entre as opiniões dos moradores de Manguinhos e de fora, apresenta divergência nesse ponto. Enquanto 77% dos moradores do que se chamou de “asfalto” consideram o PAC ape-

Pesquisa enterra mito da “cidade partida” Governo do Rio de Janeiro

Moradores da favela e do asfalto têm visões semelhantes sobre o PAC do Rio de Janeiro (RJ) Se o principal objetivo do trabalho Dimensões da Cidade: Favela e Asfalto era observar as distintas percepções dos moradores do Rio de Janeiro sobre o PAC-Favelas, o resultado surpreendeu os pesquisadores. A maior constatação é a semelhança entre as visões dos moradores do Complexo de Manguinhos e do restante da cidade. Produzida em parceria com a Caixa Econômica Federal, a pesquisa ouviu 400 moradores do Complexo e 413 do que se convencionou chamar de “asfalto” (os não-moradores de favela). “Um dos mitos que foi por água abaixo com a pesquisa é o da ‘cidade partida’”, explica Luciano Cerqueira, pesquisador do Ibase que coordenou a análise. 86% dos moradores da favela afirmam ter amigos no “asfalto” e 80% do “asfalto” dizem o mesmo sobre

Obra em Manguinhos: PAC só dará certo com investimento em cultura

quem habita nas comunidades. Os dois grupos concordam em quase todos os itens. O índice dos que acham que o PAC só dará certo se, por exemplo, investir-se em Cultura é o mesmo nos dois casos, 92%. A percentagem para os que consideram o mesmo em relação à Educação é de 94% para Manguinhos e 96% para o “asfalto”. Um segundo mito que a pesquisa derrubou é o de que as comunidades seriam um lugar onde as relações humanas são marcadas por solidariedade. 78% do “asfalto” ainda acreditam que moradores de comunidade são sempre

ou quase sempre solidários. “É uma ideia que sempre esteve na cabeça das pessoas. De que dentro da favela a solidariedade reina. Na favela, as pessoas já viram que a história é outra. A solidariedade está acabando e a gente tem uma ideia no Ibase de que o narcotráfico está causando isso”, comenta Luciano. Segurança

A terceira grande constatação da pesquisa diz respeito à segurança pública. O índice de pessoas que afirmam já ter cancelado uma atividade de trabalho ou lazer por insegurança de andar no pró-

prio bairro onde mora é enorme em ambos os grupos (54% em Manguinhos e 51% no “asfalto”). Interpretadas como de extrema gravidade, as percentagens levaram o Ibase à conclusão de que todos são vítimas de violência no Rio de Janeiro, tenham sofrido ação criminosa ou não. A pesquisa também provou que há diferença entre os crimes contra os grupos. Os pobres de Manguinhos são vítimas mais frequentes de violação física, enquanto os do “asfalto” sofrem mais com o roubo de bens. Outras constatações chamam a atenção. Mais de 90% dos dois grupos entendem que, se os moradores de comunidade tivessem as mesmas oportunidades que se tem fora delas, teriam melhoradas suas condições de vida. Poucos consideram, entretanto, a favela como parte da cidade (42% e 41% nos dois grupos). O valor preocupa o Instituto, que criou uma campanha publicitária com o slogan “Favela é Cidade”, para combater o conceito de cidade partida, que serviria como sustentação de tratamentos diferenciados. Três frases sobre a segregação dos pobres, ditas durante a pesquisa, foram expostas em 26 linhas de ônibus, em todas as regiões da cidade. (LU)

nas uma obra de fachada, em Manguinhos o índice é de apenas 30%. A questão ambiental também tem sido vista com precaução pelos integrantes do Fórum da Cidadania. Entre os grupos de trabalho formados para avaliar o PAC na comunidade, aquele responsável pelo meio ambiente encontrou referências quase inexistentes aos danos ambientais das obras. A implantação de obras do PAC no interior do Estado revela que as políticas públicas são oriundas de um modelo de desenvolvimento pouco preocupado com as questões ambientais. “Tenho certeza de que essa preocupação não existe. O Brasil agora está fazendo de tudo para crescer, mas não se pode achar que o progresso é inimigo do meio ambiente. Hoje não se pensa nisso”, afirma

Luciano Cerqueira, pesquisador do Ibase que coordenou as atividades. O acompanhamento do Fórum em Manguinhos serve de termômetro do que também vem ocorrendo nas outras regiões, duas delas de proporções igualmente significativas: a Rocinha e o Complexo do Alemão. A pesquisa, divulgada no terceiro encontro do Fórum, torna visível a preocupação com o enfrentamento dos reais problemas, dentre os quais a violência é tida como central. “Com certeza não se ataca os maiores problemas da comunidade. A gente só vai ter o ‘tira daqui e bota ali’”, afirma Patrícia. “Para mexer realmente nessas comunidades, você tem que chegar com educação, cultura e lazer. Só obra física não vai mudar a realidade do local”, completa Luciano.

PAC no Rio revela opção por exportação do Rio de Janeiro (RJ) Devido principalmente à aliança entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o governador Sérgio Cabral (PMDB) e o prefeito Eduardo Paes (PMDB), o PAC tem sido implementado de forma peculiar no Estado do Rio de Janeiro. Ao todo, abrange 15 cidades, sendo 12 da região metropolitana. Segundo o governo federal, há investimentos previstos na ordem de R$ 3 bilhões. Sua implantação, contudo, tem sido cercada de denúncias de desrespeito a leis trabalhistas e ambientais e geração insuficiente de emprego e renda. Está sendo construído um porto em Sepetiba (RJ) responsável por escoar, junto ao porto de Santos (SP), a exportação dos arredores, especialmente do Sudeste. A região é grande produtora de celulose, etanol, minérios, produtos siderúrgicos e automóveis. “Infelizmente, estamos aprofundando o modelo de desenvolvimento que prioriza a exportação de produtos primários e semiacabados”, lamenta Sandra Quintela, economista do Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs). O conjunto de obras em andamento no Estado guarda relação, entre outros, com a construção do arco metropolitano, do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) e com as obras da Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA). Desde a implantação do Programa, denúncias de violações ambientais, de direitos trabalhistas e de desrespeito às populações tradicionais são recorrentes. Recentemente, o Brasil de Fato publicou denúncias dos dois casos mais emblemáticos – as violações promovidas pela empresa ThyssenKrupp (CSA) e pelo projeto GLP da Petrobras. (LU)


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brasil

Centenas de famílias ainda estão desabrigadas no Nordeste brasileiro ENCHENTES Mais de dois meses após as chuvas assolarem o Nordeste, a situação de centenas de famílias desabrigadas é alarmante. Esquecidas em abrigos improvisados, elas ainda aguardam respostas do Estado para reconstruírem suas casas Thalles Gomes e Renata Albuquerque de Recife (PE) “MEU NOME É Helena, moro em Trizidela do Vale. Sou uma das pessoas atingidas pelas enchentes de 2009 no Maranhão. Tudo começou assim: às 5 horas da manhã, a vizinha nos acordou dizendo que a enchente estava chegando. A gente não acreditou que ia ser tão rápido.” A história de Helena se repete na voz de milhares de pessoas que tiveram suas casas e vidas destruídas pelas enchentes que assolaram o Nordeste brasileiro em maio. Foram mais de 300 municípios atingidos na região e mais de 450 mil pessoas ficaram desalojadas ou desabrigadas. De acordo com o Ministério da Integração Nacional, estima-se que mais de 1,3 milhão de pessoas foram afetadas direta ou indiretamente pelas fortes chuvas. Hoje, mais de dois meses depois da tragédia, o cenário dos municípios atingidos pelas cheias é alarmante. Onde antes viviam comunidades inteiras, há apenas casas destruídas e centenas de famílias esquecidas, sem alternativas para reconstruírem su-

as vidas. Nos estados do Maranhão, Piauí e Ceará, as famílias que tiveram suas casas total ou parcialmente destruídas ainda aguardam alguma definição sobre repasse de verbas através das prefeituras para a reconstrução das casas. Enquanto isso, permanecem alojadas em abrigos improvisados, como galpões abandonados e parque de exposição de animais. No município de Bacabal (MA), cerca de 25 famílias ainda abrigam as dependências do Hospital e Maternidade Santa Teresina, desativado há cerca de 10 anos, vivendo em péssimas condições de higiene. Na mesma cidade, outras 20 famílias tentam organizar os pertences – que conseguiram salvar na enchente – em meio às baias de alimentação dos animais. Para Hortência Mendes, pedagoga e integrante da Cáritas Regional Piauí, “as condições dos abrigos são desumanas, não tem nenhuma estrutura, sem banheiros, sem comida e sem assistência à saúde das famílias”. Falta de recursos A inexistência do repasse de recursos para as famílias e as condições desumanas dos

Cáritas/MA

Vítimas de enchentes no município de Trizidela do Vale, no Maranhão

abrigos vêm obrigando muitas famílias a voltarem às suas comunidades para reconstruir suas casas, sem nenhuma ajuda das prefeituras e utilizando, na maioria das vezes, o mesmo barro das chuvas.

Inexistência de políticas emergenciais e de prevenção Para Hortência Mendes, da Cáritas Regional Piauí, não há uma organização pronta para atender na hora da emergência, nem de chuva, nem de seca de Recife (PE) Não é a primeira vez que as famílias que moram nas margens do rio, no município de Bacabal, vivem o drama de verem as suas casas destruídas pelas enchentes. As cheias do Rio Miarinho (que corta a cidade) não são raras. Mesmo assim, o Poder Público não desenvolve uma política de ação emergencial para atender os atingidos pelas cheias. “Há uma total falta de políticas públicas para essa situação no país. Não há uma organização pronta para atender na hora da emergência, nem de chuva, nem de seca. Geralmente, as pessoas vão sofrer sem essa ajuda do Poder Público,” comenta Hortência Mendes, pedagoga e integrante da Cáritas Regional Piauí. Não há uma política rápida e eficiente de ajuda humanitária para os casos emergenciais, e é inexistente, principalmente, políticas que construam ações preventivas e estruturantes para salvaguardar as famílias dos danos causados pelas cheia, como, por exemplo, o direito a moradia digna, fora das áreas consideradas de risco, e o acesso à terra. Descaso O descaso do Estado em não garantir melhorias efetivas para a vida das comunidades atingidas pelas cheias

gera indignação nas famílias. “Nós precisamos das nossas casas. Não podemos ficar jogados. Nós não estamos pedindo favor. Não estão devendo favor para nós. Isso é dinheiro do povo. Quando é ano de eleição a gente tá todo mundo nas urnas votando. Portanto o governo tem que olhar pra nós. Fazer um jeito de ajeitar nossas casas. Tem gente que está fazendo empréstimo, devendo ao banco, não sabe nem se paga, pra poder voltar pra dentro de casa”, desabafa dona Artemísia, moradora de Sobral, um dos municípios mais atingidos pelas cheias no Ceará. No Maranhão, Estado nordestino mais prejudicado pelas cheias e onde o número de municípios atingidos chegou a 90, a trabalhadora Maria do Carmo também expõe sua decepção e revolta sobre o descaso do Estado com as famílias atingidas pelas cheias. “Tempo de eleição é político aqui prometendo mundos e fundos. E na hora que a gente se vê nessa situação nem o prefeito anda aqui”. Dona Maria do Car-

mo é moradora do município de Bacabal e faz parte das centenas de famílias que tiveram suas casas invadidas até o teto pelas águas da enchente. Para Hortência, “se na indústria da seca a estiagem era usada para o interesse dos políticos, agora já começa a ter uma indústria da cheia. Porque na hora que começa a chover todos os prefeitos dizem ‘estado de calamidade pública’, ‘estado de emergência’, para quê? Para receber recursos do governo federal. Os recursos vêm e não são aplicados”. E continua a denúncia: “Ano passado, o que nós soubemos é que o Piauí recebeu R$ 126 milhões para trabalhar com as situações de emergência causadas pelas enchentes. Em todo lugar que nós fomos, não vimos esse recurso ser aplicado. Esse ano todos os municípios estão pedindo de novo dinheiro para o governo federal. Mas o que vemos são as pessoas fazendo suas próprias casas, indo atrás do barro, para levantar a casa de taipa”. (TG e RA) Cáritas/MA

“Nós vamos ficar a vida inteira vivendo aqui no abrigo? A gente não tem condições de alugar uma casa. A gente vai fazer o possível para levantar por conta própria a nossa casa de taipa novamente”, comen-

Catástrofe é agravada pelo atual modelo de desenvolvimento A devastação do meio ambiente está diretamente ligada com a calamidade das enchentes de Recife (PE) “Na hora que começaram as enchentes, ficamos muito indignados com a declaração de um ministro que veio para o Piauí e disse que não adianta procurar culpados, que não há culpados para essa catástrofe natural”, lembrou a pedagoga Hortência Mendes, da Cáritas Regional Piauí. “As enchentes não podem ser vistas como uma tragédia sem culpados”. O modelo de desenvolvimento em curso no Brasil e no Nordeste tem sacrificado profundamente o meio ambiente e, de acordo com a pedagoga, é cada vez mais evidente a vinculação dessas enchentes com a intervenção das grandes em-

presas na região. No Piauí, por exemplo “o governo do Estado abriu o Cerrado para várias empresas, como a Bunge, que estão destruindo o meio ambiente, arrancando as matas, com fazendas enormes de sojas, mamonas.” Sem as árvores, que são consideradas uma proteção natural para o leito do rio, a água da chuva não encontra obstáculos e contribui para o assoreamento do rio. A devastação do meio ambiente está diretamente ligada com a calamidade das enchentes. Expulsas do campo Além do desmatamento, o modelo de desenvolvimento em curso também contribuiu para que milhares de famílias fossem expulsas do

campo para dar lugar ao monocultivo e ao gado. Sem alternativas, muitos camponeses se viram obrigados a se fixar nas periferias das cidades, nos terrenos mais baratos, à beira dos rios – locais considerados de risco no período das enchentes. É o caso da família de dona Maria do Carmo, que foi expulsa da comunidade de Bananeiras, no interior do Maranhão, e vive, desde 1980, na avenida que beira o rio Miarinho, na periferia de Bacabal. “Os fazendeiros começaram a comprar a terra e botar ‘semente’ pra gado. Não tinha onde trabalhar. Aí eu vim pra cá, pra cidade. Eu hoje estou aqui, numa casinha caindo por riba de mim.” Dona Maria do Carmo teve a sua casa, feita de tijolo cru e barro, destruída pelas águas da enchente, perdeu móveis e documentos, salvando apenas o que conseguiu tirar às pressas, momentos antes da água invadir sua casa até o teto. (TG e RA)

O papel das mulheres nas enchentes A solidariedade entre os atingidos pelas chuvas tem sido a maior arma para enfrentar os graves problemas de Recife (PE)

Crianças preparam o alimento em abrigo no município de Bacabal (MA)

ta a trabalhadora rural Maria Cícera, moradora do município de Cocal, no Piauí. Boa parte das famílias, no entanto, não tem condições financeiras para reerguer sua moradia e permanece nos

abrigos, ou vivendo em casas de parentes ou conhecidos, sem alternativa e perspectiva de retorno ao lar. “Eu não sei nem dizer como reconstruir a casa, porque a gente não tem condição de levantar. Estamos esperando a ajuda. A prefeitura, acho que não vai dar. O jeito é ficar por aí na casa dos outros. Porque a condição mesmo a gente não tem”, afirma o agricultor cearense Francisco Calixto, que teve sua casa destruída pelas enchentes, no município de Frecheirinhas. Segundo entidades e organizações civis que atuam em solidariedade às famílias atingidas pelas enchentes no Nordeste, a estratégia das prefeituras e dos governos é esgotar ao máximo a paciência das famílias e fazer com que elas encontrem soluções individuais para o problema. “Com tudo que a gente está passando... parece que eles não enxergam o sofrimento das pessoas”, desabafa a agricultora Maria de Fátima, que vive em Cocal (PI). “Eles não enxergam porque estão no bom, e quem estiver no ruim que se cuide. Às vezes eu acho que eles queriam era que tivesse morrido todo mundo para que ninguém fosse atrás de nada”, complementa.

As águas das enchentes trouxeram à superfície a constatação do descaso, do abandono e da completa falta de infraestrutura em que vive boa parte dos municípios atingidos pelas cheias. Mas nessas mesmas águas emergiu também aquela que parece ser a maior arma para combater tantos males: a solidariedade entre os atingidos. “Em todos os casos das enchentes nos estados do Nordeste, as pessoas vão contar sempre uma história de solidariedade entre as famílias”, afirma a pedagoga Hortência Mendes. Canoas emprestadas, casas, roupas e alimentos compartilhados, mutirões

de limpeza, cuidado com as crianças e idosos nos abrigos e nas comunidades comprovam esse sentimento. Elas, à frente da luta “O que a gente destaca também é o papel da mulher nas enchentes”, acrescenta Hortência. De acordo com a pedagoga, as mulheres assumiram um papel fundamental, de protagonistas, na reconstrução das casas e na reorganização da vida das comunidades. Estão à frente das famílias, incentivando e cultivando a esperança de que as dificuldades serão superadas. “Em todo lugar que a gente vai, são as mulheres que estão à frente. Em todas as comunidades, quem está animando, quem

está organizando as pessoas para irem aos atos, manifestações, são as mulheres. E é a partir delas que saem as propostas. As mulheres estão dando sustentação à luta de todo esse povo, exemplo da solidariedade.” Essa força transparece na fala da agricultora piauiense Maria Cícera dos Santos, e de tantas outras mulheres que se encontram pelas ruas cheias de lama, incentivando a luta por condições de vida digna. “Eu acho que não vou perder as esperanças nunca de voltar para casa. Enquanto Deus me der vida e força, eu vou lutar. É chorando, é entrando em desespero, mas eu não vou perder as esperanças. Eu vou lutar.” (TG e RA)


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brasil

Um século depois, Brasil repete os mesmos erros na Amazônia Christian Poirier/Amazon Watch

DESENVOLVIMENTO Complexo de hidrelétricas no rio Madeira imita construção de ferrovia iniciada em 1907 Cristiano Navarro de Porto Velho (RO) NO ANO DE 1907, um magnata estadunidense com o nome de Percival Farquhar iniciou, no coração da Amazônia brasileira, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que liga Porto Velho a Guajará-Mirim, atual Estado de Rondônia. Pelos registros oficiais da empresa Madeira-Mamoré Railway Company, de propriedade de Farquhar, 1.552 trabalhadores morreram em sua construção por doenças ou acidentes de trabalho. Devido ao rastro de mortes, a linha de ferro ficou conhecida como a “Ferrovia do Diabo”. A linha foi construída com o objetivo de ultrapassar o trecho de cachoeiras do rio Madeira para facilitar o escoamento da borracha boliviana e brasileira e outras mercadorias para exportação. A partir de Porto Velho, as mercadorias seguiam por via fluvial pelo rio Amazonas até chegarem ao Oceano Atlântico e de lá encontrarem o mercado exterior. No dia 1º de agosto de 1912 a ferrovia foi inaugurada com 366 km. O ano coincidiu com o declínio do preço da borracha devido à concorrência dos seringais do sudeste asiático e a invenção da borracha sintética. Depois de 54 anos de atividades, 1966, o presidente da República, Humberto de Alencar Castelo Branco, ordenou o fechamento da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré por entender que esta só dava prejuízos. No seu lugar seria construída a rodovia BR-364, que liga Porto Velho a GuajaráMirim, conhecida nas décadas seguintes como a “Rodovia do Ouro”.

“Casar uma fonte de energia em expansão com esses enclaves é tudo que os setores empresariais, especialmente internacionais que estão postados no Brasil, desejam”, afirma Luis Novoa Um século depois da inauguração da Ferrovia do Diabo, o governo brasileiro, em pareceria com empresas privadas transnacionais, anunciou, para o mesmo trecho do rio, o início das atividades do complexo de hidrelétricas do Madeira, que contará na primeira etapa do projeto com as usinas de Santo Antônio e Jirau. Juntos, os empreendimentos devem gerar 6.450 megawatts por hora (MW), o que corresponde a metade da potência da usina de Itaipu. Para o Estado de Rondônia, não há novidades no projeto do complexo de hidrelétricas do rio Madeira. Trata-se de mais uma etapa dos ciclos econômicos de exploração dos recursos humanos e naturais (como os ciclos fracassados da borracha, da ocupação fundiária e

do ouro) por grandes empresas iniciados em anos passados. Nesses períodos, dezenas de milhares de pessoas de outros estados migraram para lá em busca de trabalho e terra. Em sua história, Rondônia jamais teve à frente um administrador nascido em seus limites. Faraônico O projeto do complexo de hidrelétricas do rio Madeira compreende a construção de Santo Antônio, Jirau, Guajará e Cachoera Esperança (do lado da Bolívia); a construção de eclusas, hidrovias e de uma linha de transmissão de 3.070 km que sairá de Porto Velho para abastecer São Paulo. Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), cerca 5 mil pessoas serão expulsas de suas casas para a implementação de Jirau e Santo Antônio. Para a construção das duas hidrelétricas e suas eclusas serão investidos R$ 28 bilhões. Ao todo, serão inundados mais de 500 quilômetros quadrados de terras. Exportação energética O sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia, Luis Fernando Novoa Garzon, explica que o projeto para o rio Madeira é parte da opção política do governo federal de fortalecer o modelo de aliança com grandes monopólios especializados nos recursos naturais e agrícolas. “Os países centrais carecem de energia barata e esse é o grande insumo do setor de celulose, do setor de alumínio, do setor metalúrgico. Então, a energia barata no Brasil significa a viabilização e a consolidação desse modelo depredador de recursos naturais, e a Amazônia é o grande estoque desses recursos. Então, você casar uma fonte de energia em expansão com esses enclaves é tudo que os setores empresariais, especialmente internacionais que estão postados no Brasil, desejam”, afirma. Além da energia que servirá, principalmente, para as suas indústrias de alumínio, siderurgia, celulose, papel etc. de grandes cidades do Centro-Sul do país, o megaprojeto tem em curso o mesmo objetivo empreendido na “Ferrovia do Diabo”: vencer o trecho de cachoeiras do maior afluente do rio Amazonas garantindo o escoamento hidroviário dos recursos naturais da região amazônica de forma barata e rápida. Socialização dos riscos Os custos do empreendimento financeiro são arcados em sua maior parte pelo governo. Mas, além do risco do investimento financeiro, especialmente assumido por parte do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o banco assumiu riscos sociais e ambientais. “O investimento público deveria ser muito mais rigoroso, criterioso, especialmente quando se trata de impactos ambientais, sociais e territoriais. O projeto é majoritariamente privado, as concessionárias são privadas, a energia do seu ponto de vista do consumo final será utilizada pelas grandes empresas e o banco público é que financia todo esse sistema. Então, é como se o governo estivesse dando todas as possibilidades de viabilização, que do ponto de vista de mercado, não há”, avalia o professor Novoa.

Com a construção das hidrelétricas, cerca de 5 mil pessoas serão expulsas de suas casas

Um povo além das margens do rio Bolivianos serão afetados pelo projeto, mas suas terras não constam no estudo de impacto ambiental de Porto Velho (RO) Os fortes interesses econômicos e políticos em torno da rápida construção do complexo hidrelétrico do rio Madeira desaguam sobre dezenas de comunidades de agricultores, pescadores e indígenas. As primeiras 48 famílias de pescadores e agricultores a serem expulsas pelo projeto deixaram de viver na comunidade de Engenho Velho para viver na agrovila Novo Engenho Velho. O início da construção da barragem de Santo Antônio foi o motivo da retirada. Para as famílias, foi oferecido um lote de três hectares, indenização e um salário mínimo e meio durante um ano. Nem todas aceitaram, algumas optaram simplesmente por mudar para Porto Velho. “Por mim não sairia do Engenho Velho, mas não tinha como. Além disso, a empresa prometeu muita coisa que não cumpriu. A terra aqui é ruim para plantar e os peixes que eles prometeram, 15 quilos por mês, não chegam”, reclama João Antonio, morador da agrovila Novo Engenho Velho. A história de vida das pessoas em breve poderá estar submersa. O casal Ceci Luiz Pereira Sales, pescador, 56 anos, e Maria de Fátima da Silva Sales, dona de casa, 53 anos, nasceu, se conheceu, casou e teve sete filhos e 11 netos na vila de Paraná. As lembranças e as visitas dos técnicos e representantes das empresas têm trazido melancolia para ambos. “A gente nem imagina como seria a vida fora daqui, nossa família toda está aqui”, lamenta o pescador, que há 35 anos vive dos peixes do rio. Muitas famílias que podem ser expulsas pela construção das hidrelétricas já foram vítimas de um outro empreendimento semelhante tocado na década de 1980: a hidrelétrica de Samuel. Violenta, a expulsão pegou as famílias de surpresa, que, às pressas, fugiram do lugar onde viviam. É o caso de Conceição da Silva, militante do MAB e moradora da comunidade de Araras. “Em 1982, quando fui expulsa de Samuel, de uma hora para outra, era época de ditadura, ninguém

nem podia reclamar. Ou você saia ou a água cobria”, lembra. Conceição mudouse para a comunidade Araras, onde passou a viver do garimpo. Em 1998, tentou a vida na capital de Rondônia, mas voltou para Araras, onde se encontra sobre o risco de ser atingida pelas hidrelétricas do rio Madeira, por “não se acostumar mais com a cidade”. As fronteiras do rio Do outro lado do rio, a três minutos de barco, em frente à comunidade onde vive Conceição, se encontra, já do lado boliviano, o município de Nueva Esperanza. A comunidade não está incluída nos estudos de impacto ambiental do governo brasileiro, que afirma que ela não será atingida pelo projeto. Assim como todos os moradores de seu município, sem informações, Maria Rodriguez Bustamante, vicepresidente do conselho municipal de Nueva Esperanza, se perguntava: “como pode

atingir o outro lado do rio e este não? O rio não conhece a fronteira”. Há pouco mais de um ano, as informações sobre o complexo do rio Madeira chegaram por meio da vizinha militante do MAB, e a comunidade que vive basicamente da agricultura da coleta de castanha-do-Pará passou a se mobilizar. “Graças a Conceição estamos reunindo as vozes de Brasil e Bolívia. Agora nos mobilizamos e fomos denunciar nossa situação em Porto Velho e em Belém, no Fórum [Social Mundial]”, conta Bustamante. Mais de 100 km ao sul do rio, Heber Muñoz Burgos, dirigente da Central Sindical Única de Trabalhadores Campesinos de Guayaramirín (CSUTCG), descreve os autores do projeto como “rapinas que fixaram seus olhos sobre a Amazônia”. Preparado para o embate, o dirigente analisa: “sabemos que o que querem é sacar nossos recursos naturais e explorar as fronteiras agrícolas de soja na Bolívia e no Peru, mas por aqui eles não passarão”. “O governo Evo Morales não conhece o projeto porque é da região andina, acreditamos que com pressão e

marchas do povo da Amazônia ele terá que mudar de ideia”, conjectura Burgos. Improbidade As incertezas e reações do povo do rio encontraram eco no Ministério Público Federal (MPF) e no Ministério Público de Rondônia (MP/ RO), que moveram uma ação civil pública de improbidade administrativa contra o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Roberto Messias Franco. Os dois órgãos entraram com ação particular contra Roberto devido ao fato de este ter emitido a licença de instalação da usina hidrelétrica de Jirau em desacordo com a legislação ambiental e com a lei de licitações. Na licença prévia da usina de Jirau foram fixadas 32 condicionantes que deveriam ser cumpridas para a emissão da licença de instalação. No dia 25 de maio deste ano, o Ibama manifestou-se contrário à expedição da segunda licença da usina hidrelétrica de Jirau porque 12 das 32 condicionantes da licença prévia apresentam alguma pendência. (Leia mais sobre a denúncia na edição 332)

Governo troca floresta grilada por floresta submersa Em junho, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, aceitou a proposta do governador de Rondônia, Ivo Cassol, de trocar parte da Floresta Nacional do Bom Futuro por duas áreas de preservação estaduais, Rio Vermelho A e B. Na proposta firmada entre os governos, dos atuais 2.700 km² da reserva federal, 1.400 km² serão repassados a Rondônia, sendo que metade servirá para assentar as famílias que moram no local e outra parte se transformará em floresta estadual.

As reservas que serão repassadas ao governo federal serão a Rio Vermelho A e Rio Vermelho B, que, somadas, dão 1.800 km². Grande parte (o Ministério do Meio Ambiente não sabe dizer quanto) das duas reservas serão inundadas. A Floresta Nacional do Bom Futuro é uma das reservas nacionais mais devastadas. Dentro dela vivem cerca de 3 mil pessoas, entre pequenos, médios e grandes produtores rurais que possuem até 20 mil cabeças de gado. (CN)


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brasil Antonio Gauderio/Folha Imagem

Revolução verde: uma promessa fracassada

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Inadimplência recorde

Pesquisa do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo constatou que a inadimplência dos alunos teve um aumento de 11% em 2009, em relação a 2008, que havia sido de 24,5% no Estado e de 34,5% na região metropolitana. Agora, está no mais alto índice dos últimos dez anos. Evidentemente, as empresas do ensino privado pedem mais dinheiro público para enfrentar a crise.

Piada universitária

A Universidade São Francisco, que tem unidades em Bragança Paulista, Campinas, Itatiba e São Paulo, acaba de demitir 70 professores entre os mais titulados e com maior tempo de experiência no ensino. São os critérios da economia, redução dos custos, rentabilidade e lucro. Não tem nada a ver com a qualidade do ensino. Esses critérios são seguidos pela maioria das universidades privadas. Viva o Brasil!

ENTREVISTA Para o ecologista Carlos Vicente, com o avanço da transgenia e dos agrotóxicos, os trabalhadores rurais se veem expulsos de seus territórios para ir engrossar as zonas de pobreza das grandes cidades IHU On-Line “Temos uma história de 10 mil anos de agricultura, e os agrotóxicos foram introduzidos nos últimos 60 anos como parte de um modelo agrícola que busca mercantilizar nossa alimentação para engordar corporações”, diz o ecologista Carlos Vicente, da revista Biodiversidad, uma publicação da Grain. Segundo ele, é possível manter a agricultura sem a utilização de agrotóxicos, e o segredo é simples: “desmantelar o poder que as corporações adquiriram para recuperar o controle dos povos sobre a agricultura e a alimentação”. Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line, Vicente apresenta a realidade dos agricultores do Cone Sul e afirma que a revolução verde iniciada nos anos 1960 e acentuada na década de 1990 tem tornado o trabalhador rural “cada vez menos importante”. Com o avanço da transgenia e dos agrotóxicos, “os trabalhadores rurais se veem expulsos de seus territórios para ir engrossar as zonas de pobreza das grandes cidades”, informa. Os que permanecem no campo, acrescenta, “se veem permanentemente agredidos pelos riscos que envolvem ter de lidar com esses tóxicos ou ser literalmente fumigados em suas moradias pelas fumigações aéreas massivas que abrangem milhões de hectares no Cone Sul”. O senhor acompanha os trabalhadores rurais. Em que sentido o avanço dos agrotóxicos tem mudado a vida dessas pessoas? Carlos Vicente – O uso intensivo de agrotóxicos hoje em dia está inserido em um modelo de agricultura industrializada que inclui, além do uso de maquinaria pesada, a monocultura, a utilização de sementes transgênicas e a produção de commodities, para a qual o trabalhador rural é cada vez menos importante, já que a tendência é a de reduzir de maneira significativa a utilização de mão-de-obra. Por esse motivo, os trabalhadores rurais se veem expulsos de seus territórios para ir engrossar as zonas de pobreza das grandes cidades. Os que ficam no campo se veem permanentemente agredidos pelos riscos que envolvem ter de lidar com esses tóxicos ou ser literalmente fumigados em suas moradias pelas fumigações aéreas massivas que abrangem milhões de hectares no Cone Sul. Obviamente, quem está se vendo dramaticamente afetado por essa “chuva de agrotóxicos” são os agricultores rurais que tentam continuar com suas produções e estilo de vida nas proximidades desses “territórios do agronegócio”, já que suas produções agrícolas, seus animais e sua saúde estão profundamente afetados por essa agressão contínua. O mesmo ocorre com famílias que vivem na periferia das cidades, na proximidade com as zonas onde essas monoculturas se impuseram. Quais são as alternativas aos agrotóxicos? Com certeza existem alternativas. De fato, temos uma história de 10 mil anos de agricultura, e os agrotóxicos foram introduzidos nos últimos 60 anos como parte de um modelo agrícola que busca mercantilizar nossa alimentação para engordar corporações. Hoje em dia, dispomos dos conhecimentos, da tecnologia e das capacidades para produzir alimentos para toda a humanidade sem utilizar agrotóxicos. É

preciso não esquecer que a promessa das duas revoluções verdes – a dos anos 1960 com as monoculturas, e a dos anos 1990 com os transgênicos – de resolver o problema da fome no mundo foi o que nos levou a um planeta que, neste ano, superou, pela primeira vez, 1 bilhão de famintos. A utilização das substâncias químicas cresceu em todo o mundo. Essa perspectiva tende a aumentar? Que ações são necessárias para bloquear a utilização dos agrotóxicos? Enquanto continuar crescendo na agricultura e na produção de alimentos, em nível mundial, o controle corporativo, continuará aumentando a utilização de agrotóxicos. É por meio deles que as grandes corporações obtêm uma parte importante de seus ganhos. É muito claro que é possível reverter esse processo, e o segredo é um só e é simples: desmantelar o poder que as corporações adquiriram para recuperar o controle dos povos sobre a agricultura e a alimentação. Claro que, enquanto os governos continuarem sendo reféns do poder corporativo, esse desafio se mostra muito difícil de ser obtido. Nesse sentido, a Soberania Alimentar, exigida e proposta pela Via Campesina, é a resposta a qual centenas de movimentos sociais de todo o continente se somaram. Hoje, o grande desafio é que a Soberania Alimentar mantenha seu poder transformador e não seja esvaziada de conteúdo pelo seu uso em um discurso que não implique em políticas explícitas de instrumentalização.

Política equivocada

Troncos de árvores cortadas ilegalmente flutuam em rio na Amazônia

Notícias denunciam mortes, enfermidades e êxodo rural no Paraguai, devido à expansão do plantio de soja e o uso de agrotóxicos. O que se pode esperar da América Latina, enquanto maior território produtor de grãos? Tanto no Paraguai como na Argentina, na Bolívia, no Brasil e no Uruguai, nos territórios dominados pela monocultura da soja, que a Syngenta batizou sem nenhuma ironia de República Unida da Soja, o drama das monoculturas é uma realidade esmagadora que já não pode ser ocultada e que, dia-a-dia, soma mais vozes à sua denúncia e à sua resistência. Que perspectiva o senhor vislumbra para os trabalhadores rurais em longo prazo, no continente, considerando a perspectiva de incentivo às grandes monoculturas e ao uso intenso de venenos? A única perspectiva possível é a do crescimento do tecido de resistência das organizações campesinas e locais de denúncia para conseguir transformar essa realidade e conquistar as mudanças possíveis para que o tecido do agronegócio seja desmantelado (incluindo o poder dos grandes donos de terra da região) e seja recuperado um tecido social e produtivo centrado no bem comum.

Quais são os maiores riscos para as populações expostas aos agrotóxicos? Os riscos que os agrotóxicos implicam para as famílias rurais pela sua exposição contínua são problemas de saúde agudos (doenças respiratórias, lesões na pele, infecções gastrointestinais etc.) e problemas crônicos que, em muitos casos, são visualizados depois de anos de exposição. Os casos de câncer crescentes em todas as comunidades rurais e nas periferias das cidades, de gravidez interrompida e de nascimentos de crianças com má-formação são a forma mais brutal em que esse genocídio do agronegócio se expressa. Há centenas de espaços em que as denúncias das comunidades e as organizações da sociedade civil estão se multiplicando. Em www.biodiversidadla.org tentamos fazer eco a todas essas lutas.

Quem é Carlos Vicente é ecologista da revista Biodiversidad, publicação da Grain, uma ONG internacional dedicada à promoção do manejo e do uso sustentáveis da biodiversidade agrícola, baseados no controle dos povos sobre os recursos genéticos e o conhecimento tradicional.

ANÁLISE

Governos inconscientes e irresponsáveis Leonardo Boff Quem teve o privilégio de acompanhar a cúpula dos povos (192) na ONU nos dias 24-26 de junho para encontrar saídas includentes para a crise econômico-financeira vivenciou dupla perplexidade. A primeira, o fato de se ter chegado a um surpreendente consenso acerca de medidas econômicas e financeiras a serem implementadas a curto e a médio prazo, em função do desenvolvimento/crescimento. A segunda, verificar que tudo se concentrou apenas no aspecto econômico-financeiro sem qualquer referência aos limites da biosfera e à devastação da natureza que o tipo de desenvolvimento vigente implica. Quer dizer, a economia virou um conjunto de teorias e fórmulas que expertos dominam e aplicam nos países, esquecendose de que é parte da sociedade e da política, algo, portanto, ligado à vida das pessoas. Era como se os políticos e expertos não respirassem, não comessem, não se vestissem e andassem nas nuvens e não no solo. Mas, para eles, tais coisas importantes são meras externalidades que não contam. Ao ouvi-los, pensava eu lá com meus botões: “quão inconscientes e irresponsáveis são esses políticos, representantes de seus povos, que não se dão conta de que a verdadeira crise não é esta que discutem, mas a da insustentabilidade da biosfera e a incapacidade da Mãe Terra de repor os recursos e serviços neces-

sários para a humanidade e para a comunidade. Bem advertiu o exsecretário da ONU Kofi Annan: essa insustentabilidade não apenas impede a produção e a reprodução senão que põe em risco a sobrevivência da espécie humana. Todos são reféns da economiazumbi do desenvolvimento, entendido como puro crescimento econômico (PIB). Ora, exatamente esse paradigma do desenvolvimento mentirosamente sustentável do atual modo de acumulação mundial está levando a humanidade e a Terra à ruína. As pessoas são as últimas a contar. Primeiro vêm sempre os mercados, os bancos, o sistema financeiro. Com apenas 1% do que se aplicou para salvar os bancos da falência (alguns trilhões de dólares) poder-se-ia resolver toda a fome do planeta, atesta a FAO. E atualmente a mesma FAO advertiu, existem 40 países com reserva alimentar de apenas três meses. Sem uma articulada cooperação mundial, grassará fome e morte de milhões de pessoas. Discutir a crise econômico-financeira sem incluir as demais crises: o aquecimento global, a alimentar, a energética e a humanitária é mentir aos povos sobre a real situação da humanidade. Temo que nossos filhos e netos, daqui a alguns anos, olhando para o nosso tempo, tenham motivos de nos amaldiçoar e de nos devotar um soberano desprezo, porque não fizemos o que devíamos fazer. Sabíamos dos riscos e preferimos salvar as moedas e garantir os bô-

nus quando poderíamos salvar o Titanic que estava afundando. O Brasil, neste sentido, é uma lástima. Se há um país no mundo que goza das melhores oportunidades ecológicas e geopolíticas para ajudar a formular um outro mundo necessário para toda a humanidade, este seria o Brasil. Ele é a potência das águas, possui a maior biodiversidade do planeta, as maiores florestas tropicais, a possibilidade de uma matriz energética limpa à base da água, do vento, do sol, das marés e da biomassa, mas não acordou ainda. Nos fóruns mundiais vive em permanente sesta política, inconsciente, “deitado eternamente em berço esplêndido”. Não despertou para a suas possibilidades e para a responsabilidade face à preservação da Terra e da vida. Ao contrário, na contramão da história, estamos construindo usinas à base do carvão. Desmatamos a Amazônia em 1.084 quilômetros quadrados entre agosto de 2008 a maio de 2009. E somos o quinto maior poluidor do mundo. O fator ecológico não é estratégico no atual governo. Somos ignorantes, atrasados, faltos de senso de responsabilidade face ao nosso futuro comum. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É do corpo de assessores da Presidência da ONU. Autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.

A repressão policial do governo do Rio de Janeiro contra as comunidades pobres, inclusive com a ocupação militar de favelas, não ajudou em nada o combate aos crimes mais comuns no Estado: nos primeiros três meses de 2009, quase todas as modalidades de ocorrência (homicídios, assaltos, furtos etc.) cresceram acima de 5% em relação ao mesmo período de 2008. O que está errado é a política de segurança!

Estado terrorista

Desde que a Polícia Militar do governador tucano José Serra invadiu, em fevereiro deste ano, a favela de Paraisópolis, na capital paulista, a população vive em permanente estado de sobressalto, com tiroteios frequentes e violação de suas casas sem mandado judicial. Na última semana, uma jovem e uma criança foram feridas após suposto confronto entre policiais e traficantes. Quem paga é o povo!

Generosos benefícios

Comentário do Financial Times sobre a declaração do ministro da Fazenda, Guido Mantega, de que vai reduzir os custos trabalhistas: “Apesar dos custos trabalhistas reduzidos serem apreciados pelas empresas, a medida fará pouco para reduzir a rigidez das leis trabalhistas do Brasil, que foram importadas da Itália de Mussolini nos anos 30 e dão generosos benefícios aos trabalhadores, ao mesmo tempo que dificultam a contratação e demissão pelas empresas”. Dá para acreditar?

Eterna paciência

Mais de 500 famílias remanescentes de quilombo lutam pela posse da terra – 17 mil hectares – na localidade de Brejo dos Crioulos, nos municípios de São João da Ponte, Varzelândia e Verdelândia, no norte de Minas Gerais. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, a titulação da área, reivindicada há mais de 10 anos, “está estagnada na morosidade do governo Lula”, do Incra e do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Até quando?

Dinheiro predador

O BNDES acaba de divulgar a relação dos grupos empresariais que receberam os maiores volumes de financiamento público de janeiro a junho de 2009: a Vale, que exporta minérios; a Odebrecht, para construção de usinas hidrelétricas no rio Madeira e de cana-de-açúcar; a Votorantim, que planta eucaliptos e exporta papel e celulose; e a Andrade Gutierrez, para aumentar a concentração das telecomunicações. Viva o dinheiro público!

Luta ambiental

A revista Problemas Brasileiros publicou excelente reportagem de Carlos Juliano Barros sobre a inundação das plantações de eucalipto em São Luiz do Paraitinga e demais municípios do Vale do Paraíba, entre São Paulo e o Rio de Janeiro. A matéria mostra os danos ambientais da monocultura e as ações dos poderes públicos contra as empresas Votorantim e Suzano para a preservação do solo e dos recursos hídricos da região.

Agora vai?

O inquérito que investiga as operações da quadrilha do banqueiro Daniel Dantas, concluído pelo delegado Ricardo Saadi, da Polícia Federal, e entregue ao juiz federal Fausto De Sanctis, comprova tudo aquilo que o antigo presidente do inquérito, delegado Protógenes Queiroz, havia denunciado sobre o grupo Opportunity. Será que o Supremo Tribunal Federal vai livrar Daniel Dantas de novo?


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brasil Gama

Hegemonia do dólar aprofunda crise ECONOMIA Para Maria Lúcia Fatorelli, realizar comércio internacional em moeda local só depende dos governos Desirèe Luíse de São Paulo (SP) O PRESIDENTE LUIZ Inácio Lula da Silva, assim como outros líderes mundiais, vem questionando a exclusividade da utilização do dólar no comércio internacional. Nesse sentido, a partir do estouro da crise econômica, o governo vem estudando a implantação de relações bilaterais que não dependam da moeda estadunidense. Parte do comércio com a Argentina já é feito em reais e pesos desde junho de 2008, e a perspectiva é que o mecanismo seja usado nas trocas com o Uruguai a partir do segundo semestre. O Brasil também já está em negociação com o Paraguai e a China e, no dia 28 de junho, o presidente do Banco Central (Bacen), Henrique Meirelles, propôs a seu colega da Índia adotar o mecanismo. Em entrevista, a coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fatorelli, reafirma a necessidade de uma moeda alternativa, principalmente com o surgimento da crise econômica. Segundo ela, a oscilação constante do dólar gera instabilidade e prejudica negociações. É possível a criação de uma moeda internacional alternativa ao dólar? Como isso se daria? Sim, perfeitamente. Nesse momento, que estamos vivendo uma crise mundial, todos os países estão inseguros com relação a essa oscilação enorme do dólar, porque, ao longo dos anos, como ele era a única moeda considerada internacional, todos os países constituíram grandes reservas em dólares, inclusive o Brasil. Esses dólares do nosso país estão investidos em títulos da dívida norte-americana, que não nos rendem praticamente nada. Por causa dessa insegurança, essa discussão da nova moeda está presente hoje. Quais seriam as possíveis alternativas? O ministro [de Assuntos Estratégicos da Presidência até o dia 30 de junho, quando anunciou sua saída do cargo] Mangabeira Unger defendeu a substituição por uma cesta de moedas [recurso no qual é estabelecido um conjunto de títulos de diferentes países que entram num bolo; determina-se, então, uma média ponderada para cada uma delas e o resultado é uma espécie de moeda internacional] ou então por uma moeda mundial de referência, que não ficaria vinculada a um determinado país e sua economia, de modo que não aconteça o que aconteceu agora com o dólar. O presidente Lula chegou a defender também um mecanismo, que seria semelhante ao utilizado no mercado financeiro, chamado swap.

O que é esse mecanismo? O que acontece hoje ao comercializarmos, por exemplo, com a China? Cada país transforma em dólar para depois fazer um novo câmbio para sua moeda local. Isso representa um altíssimo custo. No mecanismo swap, ao comercializar com os chineses, poderíamos ter uma parte das nossas reservas em yuan [a moeda chinesa] e, por sua vez, a China poderia ter uma parte das suas reservas em reais, quando ela comercializasse com o Brasil. Isso iria permitir uma globalização de fato das moedas, abriria caminho para várias negociações e reduziria enormemente os custos que hoje existem nesse câmbio da moeda local para o dólar e do dólar para a moeda local do outro país. Então, é perfeitamente possível. Só depende de um acordo entre os países. Em junho, após a primeira cúpula do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), o presidente Lula disse que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o presidente do Bacen, Henrique Meirelles, vão começar a discutir com os outros países do grupo a ideia de substituir o dólar nas trocas comerciais bilaterais. Haveria a possibilidade da criação de uma nova moeda para o Bric? Poderia também, mas já acho meio difícil de avançar, porque hoje a China é o maior detentor de títulos da dívida norte-americana. As reservas norte-americanas estão nas mãos da China, em segundo lugar vem o Japão e em terceiro, o Brasil. Abandonar totalmente o dólar para outra moeda envolve muitos outros fatores. A substituição teria que ser uma coisa muito gradativa, lenta. Já aquele mecanismo que o presidente Lula apoia, o swap, seria uma coisa rápida. A partir de uma decisão imediata, já pode começar a funcionar, não depende de nenhum acordo internacional. Por que uma nova moeda mundial preocupa os Estados Unidos? Porque hoje eles têm vários benefícios em função disso. Por exemplo, eles não se preocupam com a inflação. Eles podem imprimir moeda à vontade, porque esse eventual excesso não chega a influenciar dentro da economia norte-americana, já que o mundo inteiro está usando o dólar. Se acontecer uma coisa dessas, os Estados Unidos terão que implementar um controle fiscal muito maior. O volume da dívida pública norte-americana é alto. Eles têm o maior deficit do mundo, é monstruoso, inclusive em comparação ao próprio PIB deles. Também estão vivendo uma recessão, porque o epicentro dessa crise financeira foi justamente lá. Mas, apesar

de todos esses fatores negativos relacionados à economia norte-americana, ele ainda é considerado um país de risco zero e, com isso, tem grandes vantagens. Os Estados Unidos praticam taxas de juros próximas de zero. Enquanto a taxa de juros da dívida interna brasileira é a mais alta do mundo. No entanto, aqui ainda sofremos com os índices de risco e os investidores exigem essas altas taxas, o que é um tremendo absurdo. Qual é a ligação do dólar com a explosão da dívida interna brasileira nos últimos anos? O que aconteceu em 2007? O dólar teve uma queda de mais de 18% ao ano. Os investidores internacionais começaram a vir para o Brasil em busca das taxas de juros. Em 2007, ficou em média de 13,5%. Então, imagine o investidor estrangeiro que entrou aqui no Brasil em 1° de janeiro de 2007, com uma quantidade “x” de dólares. Ele saiu, em 31 de dezembro, com um ganho de cerca de 30% líquido de impostos, porque não existe tributação sobre esse ganho de estrangeiros em títulos da dívida interna brasileira. Assim, essa oscilação do dólar significou um movimento especulativo que, orientado para os títulos da dívida pública brasileira, fizeram nossa dívida aumentar absurdamente, puxando com ela o gasto público. Se nós pudéssemos ter mais flexibilidade nessas negociações internacionais, poderíamos inclusive inibir esses movimentos especulativos. O Brasil vem sofrendo com isso desde que o dólar começou a cair, porque, para cumprir os compromissos da dívida, acabamos cortando gastos sociais. A legislação obriga cumprir em primeiro lugar os pagamentos da dívida pública. Então, a sociedade acaba extremamente sacrificada. Para cumprir, o que o governo é obrigado a fazer? Cortar investimentos que gerariam empregos, reduzir gastos com saúde pública, enfim, benefícios para a sociedade. Enquanto isso, pagamos mais de 30% de todo o orçamento em juros da dívida. A relação da moeda tem uma implicação vastíssima e é uma discussão muito importante. Se o Brasil avança nessa discussão, ele tem a chance não só de considerar sua liderança regional, como colocar o real como uma moeda de destaque para a sua utilização pelos outros países nas relações comerciais, o que significaria um benefício muito grande. Poderia fazer um breve resgate histórico da relação do dólar no mundo? O dólar passou a ser utilizado como moeda internacional em 1944. Na época, os Estados Unidos se comprometeram a guardar uma mesma quantidade de ouro para garantir a paridade do dólar com o ouro, de forma que o dólar valesse o mesmo que o ouro. Essa paridade foi quebrada pelos Estados Unidos em 1971 e o dólar passou a ter um valor no mercado, nas negociações compa-

rativamente com outras moedas, mas ele perdeu aquela segurança do ouro.

uma grande mudança. A questão da moeda é um aspecto que deveria ser discutido.

Apesar de ter perdido essa segurança, o que faz com que os EUA ainda sejam considerados confiáveis e o Brasil não? Essa pergunta é muito interessante, porque é justamente uma reflexão que a crise está propiciando. A crise revelou uma tremenda vulnerabilidade do sistema financeiro, que ele estava emitindo papéis sem lastro. O que a grande mídia chamou, de uma forma muito carinhosa, de derivativo tóxico. O que é o derivativo tóxico? É para disfarçar o nome de papel podre, um papel negociado no mercado que não tem nenhum valor, porque ele não tem lastro, não tem nenhum respaldo. Logo, os economistas chamaram de bolha, porque é uma ilusão. Eram títulos negociados no mercado que não tinham valor ou respaldo real. Quer dizer, você está negociando simplesmente um papel que não tem valor. Por isso que várias instituições financeiras grandes nos Estados Unidos chegaram a quebrar. Agora, essa falta de lastro é justamente o que você falou: se já não existe desde 1971 a paridade com o ouro, hoje qual é o lastro do dólar? Observe a incoerência. O dólar é uma moeda sem lastro e que se revelou frágil a partir dessa crise e dessa vulnerabilidade toda do sistema. Houve toda essa quebradeira de instituições financeiras, principalmente nos Estados Unidos, houve o crescimento exponencial da dívida lá, o crescimento do deficit, da recessão... Como é que esse país continua com risco zero? Simplesmente porque quem define esse risco são as agências internacionais. As chamadas agências de risco, que são amparadas por esses mesmos bancos que estavam emitindo esses títulos, esses derivativos. Por exemplo, o JP Morgan, que passou por imensas dificuldades. Assim, essas agências de risco estão extremamente vinculadas a esses bancos privados, que são os maiores responsáveis pela crise.

Então, uma nova moeda internacional poderia amenizar a crise? Sim, porque todos os países estão com uma crescente preocupação com a desvalorização do dólar. Nós não sabemos o que vai acontecer com o dólar. Isso traz um enorme abalo, por causa da vulnerabilidade, do risco. Imagine uma indústria exportadora de sapato aqui no Brasil. O que está acontecendo com essas indústrias com a queda do dólar? Elas ficam dependuradas em uma variável que não podem controlar. Como calculam o custo delas? Como calculam a margem de rentabilidade que devem ter para sobreviver no mercado e para seguir crescendo? Essa questão de colocar o comércio internacional dependurado em uma moeda que está oscilando absurdamente e que não tem lastro é um absurdo. Essa variável pode botar todo o negócio de uma indústria a perder, como vimos a quebradeira aqui no setor de sapato e de tecido.

O modelo financeiro e econômico atual beneficia a quem? Unicamente ao sistema financeiro privado. Ele é o único que ganha. É o setor mais lucrativo, e quando ele está lucrando não socializa esse lucro. Na hora em que vem a crise, ele coloca os estados nacionais para socorrê-lo. Tem um dado que mostra que cerca de 13 trilhões de dólares já foram retirados das economias públicas para socorrer instituições privadas desde o início dessa crise. É uma cifra que não conseguimos nem imaginar. Enquanto isso, a Organização das Nações Unidas [ONU] acabou de divulgar, no dia 3, o relatório tratando do aumento brutal da miséria. Milhões de seres humanos vão ser jogados na miséria absoluta em função da crise, porque os recursos estão sendo destinados para salvar bancos. É o momento de se discutir

Uma moeda alternativa para a América Latina resolveria problemas dos países da região? Seria mais viável do ponto de vista prático do que uma moeda internacional? Seria. Inclusive seria algo muito justo, porque não teríamos o poderio de um país. Temos que trabalhar na integração da América Latina de forma solidária. A discussão de uma moeda regional é importante, da mesma forma que a discussão do Banco do Sul, que é uma discussão que não é nova, mas está emperrada. Se o Banco do Sul já estivesse funcionando nessa crise, a América Latina estaria em outro patamar. Não estaria sofrendo tanto os efeitos da crise financeira. Qual é a reserva cambial brasileira no momento? A última vez que pesquisei estava em 200 bilhões de dólares, mas temos que considerar que, nesse cálculo, o Banco Central não computa exatamente essas operações de swap, que o país já fez para garantir investidores. Se considerar um menos o outro, ou seja, se considerar as reservas líquidas, deve cair para cerca de 150 bilhões de dólares. Nestes 200 bilhões de dólares, 80% estão em dólar, em títulos da dívida pública norte-americana, cerca de 9% estão em iene japonês e só 5% em euro. O fato da maior parte das nossas reservas estar em dólar é um péssimo negócio. Justamente uma moeda que está oscilando absurdamente e teve forte queda nos últimos anos. E mais: é preciso considerar o que custou ao país produzir essas reservas. Como elas foram produzidas? Produzimos a maior parte delas justamente em 2007, quando o dólar caiu e os especuladores internacionais correram para o Brasil. Então, essas reser-

vas tiveram um custo altíssimo. Em 2007, o Banco Central registrou um prejuízo de quase R$ 50 bilhões. Quem arcou com esse prejuízo? O Tesouro. Ou com dinheiro ou com a emissão de mais dívida, que também é como se fosse dinheiro. Como é feito o controle de capitais no Brasil? Hoje, qualquer investidor entra aqui com a quantia que quiser, investe como quiser e sai como quiser. Assim, não existe controle de capitais aqui como há na China, por exemplo. Se quiser investir lá é preciso passar por uma burocracia. É preciso dizer em que vai investir, quanto tempo vai ficar, quantos empregos vai gerar... Como aqui não há controle de capitais, as portas ficam abertas para a especulação. Como funciona isso? O investidor entra com o dólar, mas ele não pode comprar nada com essa moeda no Brasil. Assim, esse dólar fica no Banco Central e o Banco Central faz a troca para ele em reais para ele realizar as operações que quer no país. O que ele [Bacen] vai fazer com esse dólar? A decisão tomada em 2007 foi exatamente investir em títulos da dívida pública norteamericana. O que significa o Brasil investir nos títulos da dívida pública estadunidense? Significa que estamos financiando os Estados Unidos e recebemos por isso uma remuneração próxima de zero. Ao mesmo tempo, estamos assumindo uma dívida interna aqui, aceitando essa entrada absurda de moeda dos especuladores para remunerá-los com as taxas de juros mais altas do mundo. É um péssimo negócio. É algo que demandaria uma investigação, porque, por trás do endividamento público, estão acontecendo grandes negócios. A dívida interna alcançou, em dezembro de 2008, R$ 1,6 trilhão. Qual é a contrapartida dessa dívida para o povo ? Você não consegue ver. Não consegue vislumbrar um investimento. Pelo contrário, há uma sangria de recursos do orçamento, impedindo o avanço das políticas que deveriam ser adotadas aqui no país. Aí fazemos a relação da dívida com a vida de cada cidadão. Unafisco

Quem é Maria Lúcia Fatorelli é coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida.


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brasil

TV Brasil, nova etapa da comunicação Fabio Pozzebom/ABr

ANÁLISE A primeira audiência pública da emissora, que contou com a presença de três ministros, fortalece o processo de democratização e recuperação dos espaços públicos midiáticos Beto Almeida COM A PRESENÇA de três ministros de Estado (Franklin Martins, Juca Ferreira e Sérgio Rezende) e transmitida ao vivo pelo canal NBR, a primeira audiência pública da TV Brasil inaugura uma nova etapa para a televisão brasileira. Essa audiência tem o simbolismo de se inscrever no processo de recuperação dos espaços públicos midiáticos, processo que ocorre também em vários países da América Latina, com o surgimento de emissoras públicas e estatais, com o nascimento de jornais públicos e de acesso popular como Cambio, na Bolívia, e o Correo del Orinoco, na Venezuela, e com políticas de Estado que permitem concretamente que os povos já tenham alternativas ao jornalismo consumista e de manipulação informativa sob o controle dos conglomerados privados. Com essa primeira audiência, na qual o diálogo de ministros e público foi televisionado na íntegra, sem edições, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), criada pelo governo Lula, marcou um golaço em termos de democracia participativa. Além de desnudar toda a tagarelice acerca de interatividade alardeada pelas emissoras privadas, que jamais realizaram nem planejam realizar uma audiência pública – mesmo sendo detentoras de concessões públicas para uso do espaço rádio-elétrico que pertence à União. Na TV comercial, a democracia começa e termina no departamento comercial, no preço do anúncio, no jaba-

culê, no controle do mercado cartelizado sobre a programação, ditando seu vale-tudo rebaixador dos conteúdos cada vez mais animalizados. A TV Brasil, que já oferece aos brasileiros uma programação não capturada pela publicidade cervejeira e medicamentosa, que exibe apenas publicidade de valores cidadãos e humanizados, que já recupera em grande medida parte substancial do nosso audiovisual – que luta para sair da clandestinidade, agravada após a demolição da Embrafilme –, além das conquistas civilizatórias de sua grade de programação, agora dá um passo à frente, criando a novi-

O fundamental, que estava diante de todos e da sociedade que assistia pela TV, era uma preciosa oportunidade para a apresentação de ideias e propostas sobre como fazer uma nova televisão dade democrática de discutir com a sociedade como se deve fazer televisão. Só uma empresa no campo do poder público pode fazer isso, colocando ministros de Estado, seu Conselho Curador, seus diretores e parte de seus funcio-

Os ministros Franklin Martins, Juca Ferreira e Sérgio Rezende

nários diante do público para ouvir críticas e propostas de superação e de consolidação do que já está sinalizado desde que Lula decidiu montar a TV Brasil, cumprindo o seu programa de campanha de 2002: a criação de uma TV pública constava do documento-compromisso “A imaginação a serviço do Brasil”, assumido pelo presidente. TV de novo modo Uma novidade democrática como uma audiência pública para debater como fazer televisão é também uma oportunidade tão singular que revela certo desconcerto por parte do público participante, confundindo prioridades. Tal como declarou o ministro Franklin Martins, muito tempo da audiência foi dedicado ao debate de conceitos, quando o fundamental, que estava diante de todos e da sociedade que assistia pela TV, era uma preciosa oportunidade para a apresentação de ideias e propostas sobre como fazer uma nova televisão. A missão pública da TV Brasil já vem sendo crescentemente revelada, construída e comprovada em parte pela sua própria programação.

Jornalismo da integração, um novo desafio No cenário da integração promovida por vários governos, a própria cobertura sobre o golpe em Honduras poderia ter sido muito superior a partir da simples cooperação O jornalismo da TV Brasil continua desafiado a apresentar mudança de conceitos, não apenas de formatos como argumentou-se durante a audiência. Para exemplificar, há uma mudança política importantíssima no cenário latino-americano, com muitos países recuperando a soberania sobre suas próprias riquezas nacionais, escapando dos controles imperialistas sobre as práticas comerciais impositivas, alterando a composição e as políticas de organismos de sombria trajetória, como a OEA. E há, sobretudo, um conjunto de iniciativas para a integração regional, inclusive, em muitos casos, com a dispensa de operações em dólar, como entre Brasil e Argentina. Que diante desse conjunto expressivo de mudanças a mídia comercial continue a dizer que a criação da Unasul, do Banco do Sul, da Unila etc. é apenas retórica itamarateca, passando informações manipuladas e descontextualizadas para afirmar que há fracasso nessas políticas, não há nenhuma

surpresa, pois está praticando o seu jornalismo de desintegração, em sintonia com o objetivos das transnacionais que querem a América Latina desunida, confrontada, para melhor rapiná-la. Mas que o jornalismo da TV Brasil não seja capaz de apresentar uma nova concepção de notícia diante desta riqueza de experiências transformadoras é um contrassenso com a novidade que a própria TV Brasil encarna e um conservadorismo que leva a que a sociedade brasileira não tenha informação alternativa para perceber o que já ocorre concretamente com, por exemplo, o verdadeiro Mercosul Social em curso, medidas de cooperação e integração entre municípios de fronteira, na esfera de políticas. Tudo isso sonegado. Alguns exemplos ainda não explorados pelo jornalismo da TV Brasil frente ao jornalismo da desintegração: lançada a campanha midiática contra a adesão da Venezuela ao Mercosul, o jornalismo da integração, sintonizado com nossa Constituição, poderia mostrar a importância da integração energética entre Brasil e Venezuela, pela qual Roraima já é abastecida pela hidrelétrica venezuelana de Guri, quando antes era iluminada por poluentes e caras termoelétricas a diesel. Outra possibilidade de exploração pelo jornalismo da TV Brasil, se adotasse outra concepção de notícia: quanto já foi economizado com o início das operações bilaterais entre Brasil e Argentina sem a presença da moeda inconfiável do dólar, ademais, emitida sem lastro? Quanto se pode explorar jornalistica-

mente desse fato, inclusive do ponto de vista simbólico, localizado nessa soberana dispensa ao dólar? TV e solidariedade Ainda no cenário da integração promovida por vários governos, a própria cobertura sobre o golpe em Honduras poderia ter sido muito superior a partir da simples cooperação com a Telesur, que transmitiu ao vivo praticamente todos os dias do golpe, da resistência e também da gigantesca manifestação que esperava a chegada do presidente Manuel Zelaya. A TV Cidade Livre de Brasília retransmitiu o sinal da Telesur e recebeu inúmeras manifestações informais de reconhecimento, especialmente de membros do governo, dada a relevância do fato televisionado. Não poderia tudo isto ter sido feito pela TV Brasil? O que a impediu? Recursos técnicos? Não, apenas a necessidade de se adotar novos conceitos para o jornalismo, conceitos que podem ser colocados em prática imediatamente, o que não seria possível numa TV privada na qual o jornalismo depende do departamento comercial. No caso da TV Brasil, o patrocinador é o povo brasileiro e a linha mestra editorial é a Constituição Brasileira, que compromete-se com a integração latino-americana. E essa integração tem que ser também informativa e cultural. E teria sido a solidariedade política do povo e do governo brasileiro com o povo de Honduras, pois, dado o seu simbolismo para o momento, todos os povos fomos alvos do golpe de Estado hondurenho. (BA)

Primeiro, ao mostrar o Brasil por inteiro, todas as suas regiões e manifestações sociais e culturais, sem praticar a desigualdade regional-informativa, buscando o cumprimento da Constituição. Também ao mostrar a América Latina e a África, sobretudo por exibir documentários como, por exemplo, a luta do povo de Angola, com ajuda de Cuba, para derrotar o exército racista na Batalha de Cuito Cuanavale, que, para Mandela, significou “o começo do

fim do apartheid”. Jamais documentários como este foram exibidos na TV brasileira. Muitos dos conceitos debatidos a longa data pelos movimentos de democratização da comunicação e também na academia já se transformaram em realidade, em fatos, em nova programação televisiva, muito embora haja muito por ser superado, sobretudo no campo do jornalismo ainda convencional praticado pela TV Brasil. No entanto, não foi esse o tema

mais debatido, quando na discussão conceitual a própria universidade brasileira e seus laboratórios de comunicação continuam em dívida com a sociedade brasileira, já que, embora há décadas debatam um modelo de TV pública, ainda não chegaram a qualquer proposta objetiva. A oportunidade foi criada, mas talvez pudesse ter sido ainda mais plenamente bem-aproveitada, exatamente porque trata-se de uma novidade democrática. Vale lembrar que boa parte das reivindicações dos diferentes movimentos que constituem a luta pela democratização da comunicação já é atendida pela própria programação da TV Brasil. Não há propaganda violentando direitos das crianças, não se cultua o álcool, nem se iconiza a velocidade ou o consumismo de guloseimas quando diabetes, obesidade e doenças cardíacas assumem estatísticas epidêmicas. Há documentários de importância histórica e política imensa, filmes nacionais finalmente democratizados e tirados do ostracismo. Beto Almeida é jornalista e diretor da Telesur.

A criação da Sociedade dos Amigos da TV Brasil O objetivo é agregar a participação do público, estimulando e criando uma noção de pertença e corresponsabilidade em relação à emissora Dentre as várias propostas apresentadas na audiência, uma destina-se a agregar participação do público para um diálogo propositivo e organizado da TV Brasil com o telespectador. Trata-se da ideia da criação de uma Sociedade Brasileira dos Amigos da TV Brasil, com capacidade tanto de estimular, por parte do público, a qualificação de sua leitura crítica televisiva, criando mais canais pelos quais (além da Ouvidoria que só a EBC possui) os impactos da programação em diferentes partes do país sejam captados, comunicados, refletidos de modo organizado e regular, fazendo com que se desenvolva por meio de uma emulação e fruição de opiniões e propostas, uma noção de pertencimento e corresponsabilidade do público em relação à emissora pública. Essa Sociedade estimularia a participação crítica dos telespectadores – ideia rigorosamente desprezada e vetada na TV comercial – na linha de uma cidadania televisiva. Diante da baixaria televisiva privada, devemos zelar, consolidar e qualificar a TV que nos pertence diretamente, assumindo como coletivo, e não apenas pelos seus dirigentes, o desafio de uma televisão cada vez mais humanizadora, uma contribuição brasileira para a TV mundial. Mas que também seja capaz de disputar audiência, sem ilusões com o diletantismo da tese que defende indiferença diante do número de telespectadores sintonizados. Em se tratando de política pública de comunicação e de televisão em particular, será

temerário cultivar a ideia de que devemos ser indiferentes se milhões de brasileiros seguem capturados por uma programação embrutecedora da TV comercial que reforça práticas anticidadãs, antidemocráticas na sociedade. Deve-se colocar como problema de todos, coletivo, que a TV Brasil tem o direito de pretender ter audiência e que para isso deva também ter uma programação de entretenimento sadio e inteligente, até mesmo aceitando o desafio de produzir, quando possível, teledramaturgias culturalmente elevadas, sobretudo para oferecer ao povo a chance de conhecer em profundidade a vida de personagens relevantes de nossa história, tais como Santos Dumont, Euclides da Cunha e Villa-Lobos, no bem-sucedido formato de telenovelas. Como desdobramento, é importante levantar o debate sobre o legítimo direito da TV Brasil em não se submeter às várias formas de reservas de mercado impostas pela TV comercial, com o concurso de recursos públicos. A TV Brasil pode e deve pretender ter uma programação de futebol e demais esportes de massa, de Carnaval e outras festas populares (como já começa a experimentar com sucesso o São João nordestino) e também não se sujeitar à verdadeira reserva de mercado informal existente para a telenovela. Tal como disse o presidente do Conselho Curador da EBC, Luiz Gonzaga Beluzzo: a TV Brasil também deveria poder transmitir o Campeonato Brasileiro, o que no fundo indica que há uma legítima resistência que precisa ser organizada contra a tendência de privatização da transmissão de futebol pela filosofia da TV paga, dificultando cada vez mais que os brasileiros tenham acesso a uma de suas grandes paixões. Absurdo: quanto mais tecnologia televisiva, menos acesso para a grande maioria à totalidade dos jogos! Leitura crítica Existe um clamor difuso na sociedade brasileira contra a programação degradante das TVs comerciais, mas há evidentemen-

te uma captura de sua audiência ainda em razão da inexistência de alternativas na TV Pública com a força, a decisão e a qualificação para fazer plenamente e “pra valer” uma disputa de audiência. Um componente desse intrincado problema é a inexistência de uma prática de leitura crítica da televisão – mesmo estando nas emissoras da EBC as raras oportunidades para que isso se realize, nos programas da Ouvidoria e no Ver TV – e é isto também que poderia ser estimulado com a criação da Sociedade dos Amigos da TV Brasil, com debates bem organizados, com a publicação de textos, com a realização de encontros, inclusive com multiauditórios e com transmissão simultânea. Trata-se de investir em democracia televisiva. Esta linha de fortalecimento da comunicação pública, da qual fazem parte a nova política de democratização dos anúncios públicos, a criação do Blog da Petrobras e até mesmo a presença de Lula diretamente no jornalismo com sua coluna “O presidente responde”, é indicadora de condições para novos passos à frente, sobretudo para um formato mais democrático da TV digital, assegurando de fato pluralidade, diversidade, regionalização e humanização. Esse é um tema para a Conferência Nacional de Comunicação, que também é uma novidade democrática, tirando o tema da penumbra dos tabus e tornando-o agenda do governo e da sociedade. Com sua primeira audiência a TV Brasil dá um passo bem significativo no rumo de conquistar novos modos de fazer e de ver TV, tanto para se perceber os limites a corrigir e superar, mas sobretudo por ser essa novidade democrática de imensa significação política para o fortalecimento das políticas públicas. A audiência também funciona como uma espécie de convocação à sociedade para o desenvolvimento e até mesmo para a invenção de novos instrumentos capazes de sustentar, dialogar, questionar e consolidar a TV Brasil e o seu modo de fazer televisão e jornalismo como direito e tarefa de todos. (BA)


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américa latina

Movimentos reprovam mediação de Óscar Arias e mantêm protestos Presidencia de la Nación Argentina

GOLPE EM HONDURAS Presidente dá ultimato; militantes afirmam não ter esperança de que negociações avancem Dafne Melo da Redação PARA OS movimentos sociais hondurenhos, as negociações entre o presidente constitucionalmente eleito, Manuel Zelaya, e o chefe do regime golpista, Roberto Micheletti – ambos do Partido Liberal –, serão infrutíferas. Grande parte devido ao mediador, o presidente da Costa Rica, Óscar Arias Sánchez, indicado pelo governo estadunidense no dia 6. “Arias está alinhado aos golpistas, tem respaldo deles e por isso foi escolhido como mediador. Não temos esperanças com essa negociação”, pontua Juan Barahona, dirigente do Bloque Popular, entidade que reúne diferentes forças da esquerda hondurenha. Em comunicados oficiais, movimentos populares, que apoiam Zelaya, avaliaram que ele errou ao aceitar a indicação de Arias. A primeira mesa de negociações foi instalada no dia 9, e uma outra o será no dia 18. Em comunicado oficial, a Frente Nacional de Resistência contra o Golpe de Estado afirmou que “nenhum acordo foi obtido nas conversas”, devido à “absoluta falta de vontade política para encontrar uma saída rápida para retomar a normalidade constitucional no país” por parte da comissão do governo de fato.

parte dos Estados Unidos poderá por fim ao conflito. O governo de Obama, porém, mantém a tática de evitar tomar uma posição clara, para evitar maiores desgastes.

Ainda segundo a nota, Óscar Arias afirmou, durante o encontro, que “qualquer acordo passa pela restituição do presidente constitucional”, postura elogiada pelos movimentos. “Esperamos que essa postura seja mantida e se efetive o mais rápido possível”. Outro ponto destacado pelos membros da Frente foi a incapacidade de Micheletti de defender seu regime. “Não têm argumentos para justificar por que sequestraram de maneira violenta o presidente da República, tampouco para explicar a falsificação da assinatura da suposta carta de renúncia do presidente constitucional, e menos ainda para justificar os crimes cometidos pelas Forças Armadas contra os manifestantes indefesos”. Estados Unidos Nos últimos dias, têm crescido a crítica das organizações populares hondurenhas acerca dessa negociação diplomática. Ganha força a percepção de que as conversas não passarão de retórica e jogo de cena. Para Barahona, a indicação de Arias mostra que os Estados Unidos não têm interesse em encontrar uma solução para a questão, que passaria por reconduzir Manuel Zelaya à chefia do país. “Há um apoio discreto dos EUA. Publicamente se dizem contra, mas, se os golpistas não têm respaldo popular aqui [em Honduras], e se toda comunidade internacional condena, como estão se mantendo no poder?”, questiona o militante, que acredita que, ao tentar ser neutro, o presidente estadunidense Barack Obama acaba por dar força aos executores do golpe de 28 de junho. Mesmo Zelaya já vem dando sinais de impaciência. No dia 13, em comunicado lido por ele na embaixada de Honduras em Manágua, Nicarágua, engrossou o discur-

O presidente deposto, Manuel Zelaya, fala com a imprensa

“Arias está alinhado aos golpistas, tem respaldo deles para ser o mediador. Não temos esperanças com essa negociação”, pontua Juan Barahona, dirigente do Bloque Popular so. “Damos um ultimato ao regime golpista para que, no mais tardar na próxima reunião, que será realizada esta semana em San José, Costa Rica, se cumpram as ordens

expressas das organizações internacionais e da Constituição hondurenha”, declarou. Caso não haja avanços, o mandatário deposto alertou que irá abandonar a mesa de

negociação e tomará “outras medidas”, sem especificar quais. Do outro lado, os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Bolívia, Evo Morales, vêm igualmente reiterando o papel nocivo da posição “neutra” dos Estados Unidos e a ineficácia das negociações intermediadas pelo presidente costarriquenho. Por sua parte, Arias, após o primeiro encontro, teria dito à secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, que somente um posicionamento mais claro e a pressão por

Arias No entanto, o currículo de Óscar Arias justifica o porquê de os movimentos hondurenhos acreditarem que ele pouco fará pela volta de Zelaya à presidência. O costarriquenho presidiu seu país pela primeira vez entre 1986 e 1990, período em que participou ativamente, junto aos Estados Unidos, para restituir a normalidade na América Central – leia-se: conter o avanço da Revolução Sandinista na Nicarágua. Em artigo, o economista cubano Roberto Regalado conta que o Nobel da Paz recebido por Arias em 1987 deveu-se justamente a seu alinhamento com o então governo estadunidense de Ronald Reagan à política de “guerra de baixa intensidade” contra os sandinistas, que desembocou nos Acordos de Esquipulas II, assinado por cinco presidentes centro-americanos, e que pressionava a revolução nicaraguense por todos os lados. Em 2006, Óscar Arias voltou ao poder, onde ficará até 2010. Em outro artigo, David Solís Aguilar, do Movimiento Alternativa de Izquierdas (Maiz), da Costa Rica, afirmou que, tanto na década de 1980 como agora, o governo de Arias é estritamente neoliberal, “com execução de práticas privatizadoras, concentradoras de riquezas, entreguistas, violadoras de direitos humanos, trabalhistas, ambientais e de liberdade de expressão”. Aguilar também afirma que, para conseguir se eleger de novo, o que é proibido de acordo com a Constituição da Costa Rica, Arias deu, junto ao judiciário do país, “um golpe de Estado técnico”.

Sandra Cuffe-CC

17 dias de protestos Apesar da suspensão do toque de recolher, repressão continua; dois militantes foram mortos em circunstâncias ainda não esclarecidas da Redação “Há 17 dias desde o golpe o povo segue nas ruas resistindo. Hoje estamos fazendo uma manifestação no Boulevard Morazán, centro empresarial de Tegucigalpa, e daqui vamos até a embaixada estadunidense exigir que se cumpram as ordens da OEA, ou seja, que Miguel Zelaya volte”, relatou ao Brasil de Fato, no dia 14, o integrante do Bloque Popular Juan Barahona. A exigência também segue sendo a mesma desde que um golpe de Estado, no dia 28 de junho, tirou Honduras da normalidade: a volta do presidente democraticamente eleito e a continuidade do processo de consulta popular que poderia vir a estabelecer uma Assembleia Constituinte. Outro integrante do Bloque Popular – tido como um possível candidato independente

à presidência em novembro deste ano – afirmou que “essas ações estão sendo feitas pelo povo hondurenho voluntariamente e com a certeza de que é necessário voltarmos à institucionalidade e funcionalidade do país”. Os movimentos seguem com a ocupação de rodovias e prédios públicos. No dia 17, novas paralisações serão feitas em todo país, inclusive em áreas rurais. Entretanto, dois são os maiores obstáculos dos setores populares: a repressão e o bloqueio da imprensa nacional, que reitera e legitima o discurso golpista. Mortes No dia 11 à noite, dois ativistas foram mortos. Segundo Barahona, “ainda não há elementos para afirmar se foram assassinatos políticos”. Ambos eram do partido Unificação Democrática (UD), que se posicionou contrário ao golpe. Uma das vítimas, Roger Bados, de 54 anos, foi assassinado na cidade de San Pedro Sula, ao norte do país. As primeiras versões apontam que homens entraram por volta das 20 horas em sua casa e atiraram à queima-roupa. Bados era ex-sindicalista e também integrava o Bloque Popular. “É um ato condenável, e que se dá em um momento em que a crise política agrava a situação de insegurança dos dirigentes”, denunciou Erasto Reyes, também dirigente social da região. A segunda vítima foi Ramón García, de 40 anos, que foi baleado ao descer de um ônibus, no departamen-

to (Estado) ocidental de Santa Bárbara. Barahona afirma que as prisões e intimidações também continuam. “Todos os dias fazemos mobilizações e todos os dias há companheiros presos. No domingo [dia 12], fizemos uma ocupação de uma rodovia e três foram presos e levados para interrogatório. Apanharam muito e depois foram soltos”. Toque de recolher Para Barahona, o fim do toque de recolher, anunciado no dia 12, não representou qualquer diminuição da repressão. “Isso ocorreu por pressão dos empresários do país”, defende. Segundo o dirigente, a ordem estava atrapalhando os negócios, que tinham que parar de funcionar mais cedo. Além disso, a medida seria parte da tática de Roberto Micheletti de dar ares de normalidade ao país, principalmente para a opinião pública internacional, estratégia que contaria também com a ajuda dos meios de comunicação hondurenhos que permaneceram abertos, uma vez que diversas rádios mais alinhadas às organizações populares foram fechadas logo após o dia 28 de junho, data do golpe. Esse foi um dos aspectos criticados em um recente relatório produzido por uma delegação da Guatemala, formada por organizações de direitos humanos e encabeçada por outra Nobel da Paz, Rigoberta Menchú. A comissão esteve em Honduras entre os dias 3 e 6 de julho e conversou com

Hondurenhos continuam a protestar pela volta do presidente democraticamente eleito

Para Juan Barahona, o fim do toque de recolher, anunciado no dia 12, não representou qualquer diminuição da repressão. “Isso ocorreu por pressão dos empresários do país” 150 pessoas, entre magistrados, juízes, fiscais, candidatos e ex-candidatos presidenciais, deputados, diplomatas, jornalistas e outros observadores internacionais. O relatório conclui que os golpistas infringiram sete leis constitucionais, além de di-

versos direitos humanos. Além das duas mortes ocorridas nas mediações do aeroporto, em 5 de julho, nas manifestações que aguardavam a volta de Manuel Zelaya ao país, e dos assassinatos dos dois homens no dia 12, o documento relata outras três mor-

tes que podem estar ligadas às Forças Armadas golpistas. Dentre elas, a de um jornalista que cobria as manifestações e que foi executado com sete tiros por pessoas que desceram de um veículo; a de um homem cujo cadáver apresentava sinais de tortura e que estava com uma camiseta da “quarta urna” (remetendo à urna extra que seria colocada nas eleições de novembro para decidir se haveria ou não uma Constituinte); e a de outro homem que teria sido assassinado, de acordo com testemunhas, por militares. (DM, com informações da Telesur www.telesurtv.net)


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Repressão a camponeses continua no governo Lugo PARAGUAI Gestão do ex-bispo na área da segurança pública segue aplicando a política de mão dura contra os movimentos sociais do país Daniel Cassol correspondente em Assunção (Paraguai) OCORRIDOS NOS últimos 30 dias, dois casos de repressão policial a camponeses paraguaios mostram que a violência contra os movimentos sociais permanece no país, mesmo sob o governo de Fernando Lugo. Organizações de direitos humanos pedem a saída do ministro do Interior, Rafael Filizzola, e alertam para a escalada da “luta antiterrorista” como prática de segurança pública no Paraguai. Dia 19 de junho, distrito de Choré, departamento (Estado) de San Pedro. Ao lado de seguranças privados, policiais trabalham na vigília de uma fazenda. Desconhecidos fazem uma emboscada e um dos integrantes da polícia morre. No dia seguinte, cerca de 200 colegas do falecido entram nos assentamentos Curupayty e Mbocayaty, vizinhos à fazenda, atrás de suspeitos do assassinato. Um informe da Coordenação de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy) indica que os homens foram tirados de suas casas a pontapés e que policiais levaram pertences e dinheiro dos camponeses. Além disso, a polícia teria soltado uma bomba de gás lacrimogêneo dentro de um ônibus com 41 agricultores detidos. Norma Izabel Cantero, 32 anos, uma das camponesas de Curupayty, relatou ao Brasil de Fato que algumas mulheres haviam sofrido hemorragia, uma criança estava internada num hospital da capital e que, no assentamento, desconheciam o paradeiro de quatro agricultores que haviam sido levados pela polícia. Crianças não estavam indo à escola, com medo dos policiais que ainda permaneciam no local. “Não é que não queremos que prendam os criminosos, mas que não maltratem as pessoas inocentes e crianças, que não têm nada que ver com isso”, diz Norma. Os moradores acreditam que a morte do policial está servindo para que a polícia reprima as comunidades camponesas. Segundo caso

Dia 5 de julho. Cerca de 800 integrantes da Federação Nacional Camponesa (FNC) estão acampados na beira de uma estrada no departamento de Caaguazú, em mobilização por reforma agrária e por negociação de dívidas. A poucos metros do local, um armazém é assaltado e o proprietário é morto. Supostas testemunhas dizem que os assassinos teriam se escondido no próprio acampamento da FNC. No dia seguinte, às 7h20 da manhã, um operativo policial, em busca de suspeitos, “não respeitou território, idade, sexo nem condição física das pessoas para reprimir”, segundo informe dos advogados da Codehupy que colheram depoimentos dos camponeses. “A quem alcançavam, batiam com selvageria, seja ancião, mulher ou deficiente físico”. Cerca de 50 pessoas foram detidas. Fotos tiradas pelos advogados mostram diversos idosos e mulheres com feri-

mentos nas pernas, nádegas e no rosto. A Polícia Nacional teria feito o mesmo tipo de ação em outros acampamentos da FNC, distantes do local onde havia ocorrido a morte do comerciante. “Claramente está demonstrado que o objetivo não era a busca por suspeitos, e sim uma repressão para desarticular a luta camponesa”, afirmou em coletiva de imprensa o dirigente da FNC, Marcial Gómez. A violência contra camponeses não diminuiu desde que Fernando Lugo assumiu a presidência do Paraguai, em 15 de agosto de 2008. De acordo com levantamento das organizações de direitos humanos do país, em menos de um ano do novo governo, seis agricultores já foram executados – a maioria por civis armados e pelo menos um pela Polícia Nacional. É uma média maior que a do último governo, do colorado Nicanor Duarte Frutos, sob o qual morreram 18 trabalhadores rurais em cinco anos. A avaliação de advogados que atuam na defesa dos direitos humanos é que o governo não vem conseguindo – ou tentando – enfrentar a cultura de violência arraigada na polícia paraguaia. Pelo contrário, estaria estimulando a política de repressão, principalmente a movimentos sociais.

Os homens foram tirados de suas casas a pontapés, e policiais levaram pertences e dinheiro dos camponeses Política do governo?

A principal crítica é para o Ministro do Interior, Rafael Filizzola, senador eleito pelo Partido País Solidário e advogado considerado progressista antes de assumir a pasta. Para o advogado Juan Martens, da Codehupy, os recentes casos de violência contra camponeses têm duas possíveis explicações: ou a Polícia Nacional está agindo por conta própria ou a repressão é uma política do governo. “Em ambas as situações, Filizzola é o responsável. Ou ordena tais práticas, contrariando princípios constitucionais e legais ou é incapaz de disciplinar seus subordinados”, afirma. Para Martens, uma das causas da violência policial no Paraguai é a “violência estrutural” que existe contra os próprios policiais. Entre os 22 mil homens da Polícia Nacional, 19 mil são suboficiais, com salário mínimo de 1.230.000 guaranis (cerca de R$ 487) e uma jornada de trabalho que pode chegar a 12 horas por dia. Do rendimento, ainda se desconta o dinheiro gasto com uniforme, arma, munição e colete à prova de balas, equipamentos que saem do bolso do policial. O resultado: atuar como segurança privado

O presidente paraguaio Fernando Lugo em visita a uma escola formadora de policiais

de fazendeiros, como no caso ocorrido em junho no departamento de San Pedro, acaba sendo uma alternativa de renda. “Os policiais respondem a quem lhes paga o salário”, diz Martens. O advogado Andrés Ramírez ressalta a presença de uma tradição de desprezo à vida na Polícia Nacional, herdeira da longeva ditadura militar (1954-1989). A prática de tortura é um método comum de investigação. “Ela segue existindo, tanto nos lugares habituais como as prisões, e como também nas práticas de investigação da polícia, em que as pessoas detidas, sobretudo no primeiro momento da detenção, sofrem torturas a fim de confessar sua culpa”, sustenta. Ele critica o governo por não ter promovido uma limpeza nos quadros corruptos da Polícia Nacional, afirmando que as expulsões ocorreram apenas entre suboficiais, preservando oficiais e comandantes. “Lamentavelmente, essa é uma grande dívida também de Lugo, porque não assistimos a nenhum sinal de mudança. Segue-se aplicando a política de mão dura, apelando para a função repressiva do Estado”, diz.

Ministro rechaça acusações de Assunção (Paraguai) O ministro do Interior Rafael Filizzola rebate as críticas de organizações de direitos humanos e movimentos camponeses em relação a sua gestão afirmando que a luta contra a corrupção no seu ministério e na Polícia Nacional tem se fortalecido “através de um exaustivo trabalho de observação, documentação e avaliação da gestão institucional”, segundo resposta encaminhada à reportagem por correio eletrônico. Segundo Filizzola, atualmente 144 policiais e cinco civis estão sendo processados. Outros 97 integrantes da polícia foram presos por participação em atos ilícitos e 98 tiveram baixa no Tribunal de Qualificação dos Serviços. “Essas medidas tiveram como consequência a remoção do primeiro Comando Institucional designado pelo atual governo,

EUA mantêm influência na área de segurança Combate à corrupção e ao “terrorismo” é o eixo de acordos entre governo paraguaio e agência estadunidense de Assunção (Paraguai) Os EUA vêm sendo um dos principais colaboradores do governo paraguaio na área de segurança pública. A parte visível dessa colaboração é o Plano Umbral, assinado em maio de 2006 entre o governo paraguaio de então e a Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (USAID, na sigla em inglês), que investe em diferentes países pobres no marco dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio estabelecido pelas Nações Unidas. É através dele que os EUA estariam mantendo sua influência sobre a política de segurança no Paraguai, tendo no combate à corrupção e ao “terrorismo” o pretexto para a repressão a movimentos sociais. De acordo com a página da USAID Paraguai, a segunda fase do Programa Umbral prevê o investimento de 30,3 milhões de dólares em dois anos, com o objetivo de “institucionalizar as reformas-chave na administração públi-

ca e apoiar atividades de luta contra a corrupção e [apoiar] o Estado de Direito, o setor judicial, aduanas e setor de saúde”. Segundo informações divulgadas pela imprensa paraguaia, o investimento será distribuído entre o Ministério Público, a Corte Suprema de Justiça, a Controladoria Geral da República, os ministérios da Fazenda, da Saúde e Indústria e Comércio, além do Ministério do Interior e da Polícia Nacional. No âmbito do Ministério do Interior, o Plano Umbral atua, no momento, na modernização do setor de identificações da Polícia Nacional. De acordo com o ministro Filizzola, a segunda etapa prevê o fortalecimento da luta contra a corrupção no interior da Polícia Nacional, melhoras na formação de policiais e investimentos em infraestrutura e equipamentos do sistema 911 (nosso 190). “Plano Colômbia”

“O Plano Umbral é o Plano Colômbia em época de paz. Seu objetivo é criminalizar

obrigando a retirada de uma centena de oficiais superiores”, afirma o ministro. No entanto, o advogado Juan Martens, da Coordenação de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy), critica o fato de não receber respostas às denúncias feitas por sua entidade em casos de violência e torturas praticadas por policiais. “O ministro do Interior pode não ter controle sobre a Polícia Nacional, afinal, são 22 mil policiais. Mas pelo menos deveria ter controle sobre os casos em que há denúncias formais”, reclama. Tortura

Em janeiro deste ano, após um ataque a um posto militar no departamento de San Pedro, a polícia lançou mão de práticas de tortura contra agricultores. Segundo a denúncia feita pela Codehupy ao Ministério do Interior, três homens foram asfixiados com sacos plásti-

todos os protestos sociais”, contesta o advogado Rubén Lisboa. Para ele, o objetivo é caracterizar as mobilizações sociais como terrorismo. “É um controle absoluto sobre as atividades da população civil que não coincidem com os mandamentos dos norteamericanos na América Latina”, afirma. O advogado Orlando Castillo, integrante do Comitê para Desmilitarização das Américas (Cada) afirma que diversos promotores públicos e juízes vêm realizando cursos na Colômbia e nos Estados Unidos, a fim de aprimorarem-se no combate ao “terrorismo”. “Realizam toda uma triangulação entre delitos, movimentos sociais e as Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], para tentar justificar a repressão interna no país e, assim, conseguir desarticular grupos organizados, especialmente no setor camponês”, diz. Essa estratégia pode ser percebida em alguns fatos recentes. A divisão de combate às drogas dos Estados Unidos (DEA) já enviou uma informação à Direção Nacional Antidrogas (DINAR) do Paraguai apontando o dirigente camponês Élvio Benítez como narcotraficante. Também está em debate no país a criação de uma lei antiterrorismo que, entre outras coisas, buscará o controle sobre o financiamento a organizações sociais. “A lei propõe sancionar atos de soli-

cos e tiveram seus testículos apertados para que eles apontassem dirigentes camponeses como culpados. A Codehupy denunciou o caso e o ministério prometeu a formação de uma comissão independente para investigação. A entidade nunca foi chamada para uma reunião. Filizzola alega que sua pasta decidiu que a investigação ficaria a cargo do Círculo Paraguaio de Médicos, “uma associação de alta qualificação e estima nacional”. “As declarações da Codehupy ocorrem talvez por uma falta de conhecimento do trabalho do ministério, porque essa pasta do Estado tomou várias medidas a respeito”, conclui o ministro, citando como ações a criação da Direção de Direitos Humanos. Após o ataque aos acampamentos da Federação Nacional Camponesa, Filizzola anunciou uma nova comissão para investigar a atuação policial. (DC)

dariedade a pessoas ou organizações que apoiem lutas ‘terroristas’ como ocupações, bloqueios de estrada e todo ato que o Ministério Público considere terrorista”, diz Castillo. Presença militar

Por outro lado, os EUA seguem mantendo pessoal militar no território paraguaio, segundo afirma o integrante do Cada. Desde 2006, o Paraguai não assina mais os convênios que previam a imunidade a militares estadunidenses no país. Para o advogado, porém, a presença militar é mantida através de programas voltados à assistência em saúde. Um exemplo seria o chamado Plano Ñepohano, que vem ocorrendo desde novembro de 2008, com a participação de funcionários da embaixada estadunidense e militares paraguaios, em diferentes comunidades do interior do país. Até agora, já ocorreram quatro mutirões de auxílio médico. Segundo Castillo, o programa de assistência em saúde foi a forma encontrada para manter pessoal militar estadunidense no Paraguai sem causar alarme na sociedade. Desde que o convênio de imunidade deixou de ser renovado, em 2006, a presença de militares estrangeiros deve ser autorizada pelo Senado. Através dos programas de saúde, os EUA continuariam a manter relações com o Exército do Paraguai. (DC)


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américa latina

Contrainsurgência, a guerra do século 21 JLQ/ABI

MILITARIZAÇÃO Pesquisadora destaca as sofisticadas táticas de dominação militar dos EUA para o continente e diz que está em curso uma espécie de Plano Condor 2

O RECENTE GOLPE de Estado em Honduras traz novamente à tona o debate sobre a militarização na América Latina e, especialmente, o papel dos Estados Unidos nesse jogo. Entre os líderes da ação executada em 28 de junho, está Romero Orlando Vásquez Velásquez, um militar demitido do posto de chefe do Estado Maior Conjunto de Honduras pelo então presidente Manuel Zelaya. Vásquez é graduado na Escola das Américas, instituição criada pelos estadunidenses para treinar militares latinoamericanos e dar suporte aos golpes praticados pelos exércitos nacionais da região. No entanto, segundo a pesquisadora da Universidade Autônoma do México (Unam) e coordenadora do Observatório Latino-americano de Geopolítica, Ana Esther Ceceña, os acontecimentos de Honduras devem ser vistos como um presságio diante de toda a movimentação que os Estados Unidos estão fazendo atualmente. Ela destaca o minucioso trabalho midiático feito para construir a possibilidade de desestabilização do governo Zelaya, mas alerta que as novas táticas de guerra dos Estados Unidos vão muito além. De acordo com Ceceña, a atual influência estadunidense na militarização latino-americana pode ser vista de forma diluída nas diversas políticas de segurança nacionais. A partir do momento que os Estados Unidos mudaram sua lógica argumentativa para questões como o combate ao narcotráfico e ao “terrorismo”, as leis para a área nos países do continente deram um giro e passaram a exigir dos exércitos nacionais, que até então estavam voltados ao combate de inimigos externos, uma forte atuação na segurança interna. Porém, na prática, as novas “diretrizes” visariam conter os movimentos sociais que questionam o sistema político e econômico vigente, opina a pesquisadora.

De acordo com a pesquisadora da Universidade Autônoma do México (Unam), Ana Esther Ceceña, a atual influência estadunidense na militarização latino-americana pode ser vista de forma diluída nas diversas políticas de segurança nacionais Tríplice Aliança No continente latino-americano, México, Colômbia e Peru são, segundo Ceceña, os países mais avançados nesse processo, e são as apostas do imperialismo para formar um bloco contrainsurgente na região. Estrategicamente posicionados de norte a sul no continente latino, as três nações mantêm parcerias na área de segurança com os Estados Unidos e buscam cada vez mais se articular entre si. A pesquisadora da Unam aponta, ainda, que os estadunidenses fizeram da guerra uma indústria permanen-

te com uma incrível capacidade de elaborar “produtos” e “ações de marketing” para a “penetração” nos mais variados “mercados”. Para a América Latina, a diversidade de “produtos e ações” é tamanha que a pesquisadora caracteriza o seu conjunto como uma espécie de Plano Condor 2, uma referência ao acordo de colaboração entre as ditaduras latino-americanas dos anos de 1960, 1970 e 1980.

Na Bolívia, as ações de desestabilização de tipo múltiplo podem ser vistas claramente. O embaixador dos Estados Unidos permanentemente se dirige, em tom beligerante, ao presidente Evo Morales

Formação de militares bolivianos: país é vítima de ações de desestabilização constantes

Unidos contra os movimentos sociais Sob a justificativa de combater o narcotráfico, forças de segurança de Colômbia, Peru e México se alinham às necessidades estratégicas dos EUA na região de La Paz (Bolívia)

“No momento em que os movimentos revolucionários dos países do sul começaram a se articular, os Estados Unidos disseram: ‘articulemos também a repressão’. Para esse novo tipo de ‘perigo’, estão buscando um novo tipo de resposta. E a essência do Condor foi exatamente esta.” Ceceña afirma que, com as ditaduras na América Latina, os estadunidenses aprenderam a sofisticar suas táticas. “Eles intensificaram operativos múltiplos com muitos propósitos, de modo que não se consegue identificar bem todos, sobretudo aqueles de inteligência, que caracterizam uma ocupação de baixa intensidade. Fazem isso através de espiões, dos escritórios da CIA e do FBI, combinados com ações da agência do Pentágono, a USAID, que leva projetos de desenvolvimento para comunidades, articulando assim sua estratégia de guerra e controle”. Desestabilização Na Bolívia, as ações de desestabilização de tipo múltiplo podem ser vistas claramente. O embaixador dos Estados Unidos permanentemente se dirige, em tom beligerante, ao presidente Evo Morales, que já é frequentemente atacado por alguns grupos de mídia. Em um terreno menos visível, estavam operando grupos de pistoleiros liderados por estrangeiros, como é o caso da milícia encabeçada pelo húngaroboliviano Eduardo Rózsa Flores, desarticulada no mês de abril, na cidade de Santa Cruz de la Sierra, pelas forças de segurança da Bolívia. Ceceña diz que existem ações da USAID cujo intuito é trabalhar a população das comunidades para que, em um momento de ruptura impulsionado pela meia-lua (o conjunto de departamentos que faz oposição a Morales), ela estivesse suficientemente doutrinada para apoiar a oposição ou, ao menos, não defender o governo. No entanto, a pesquisadora enfatiza que a influência estadunidense nas políticas de segurança nacionais não diminuiu a sua atuação militar direta mundo afora, uma vez que o país ainda possui 823 bases militares espalhadas pelo mundo, sendo 21 delas na América Latina. O que muda, de acordo com Ceceña, é a institucionalização que ele vem dando à militarização.

Vivendo há décadas uma guerra civil que opõe, de um lado, guerrilhas de esquerda, de outro, o exército nacional e grupos paramilitares, a Colômbia é o laboratório favorito dos EUA para o desenvolvimento de forças contrainsurgentes. De acordo com Yenly Angélica Méndez, assessora da Associação Camponesa do Vale do Rio Cimitarra – presente no norte da Colômbia –, a influência e presença militar estadunidense em seu país ganharam peso significativo na década de 1980, sob a justificativa de combate ao narcotráfico e em meio à guerra civil que assolava o país. Os esforços concentrados em estruturar e assessorar forças paramilitares não foram suficientes para exterminar as guerrilhas de esquerda, como queriam, mas tiveram como principal consequência a realização de uma contrarreforma agrária. Segundo Méndez, estudos do próprio Estado estimam que cerca de 8 milhões de hectares foram apropriados por paramilitares através da expulsão de camponeses. Salto de qualidade

Com o passar dos anos, especialmente após o estabelecimento da parceria com os Estados Unidos, em 2000 – o Plano Colômbia –, tal influência deu um salto de qualidade e transformou o país em principal

laboratório e polo exportador da política militar estadunidense, aponta Méndez. Segundo ela, uma das mudanças foi travestir a invasão militar de segurança empresarial. “Um exemplo foi o que ocorreu no departamento de Arauca, no oriente colombiano, onde está a segunda riqueza em petróleo do país, explorada pela multinacional dos Estados Unidos Exxon. Ali, o governo estadunidense entregou uma quantidade enorme de recursos para a unidade militar da região e, assim, tratando a população camponesa local como se fosse guerrilha, perseguiram sistematicamente os movimentos sociais que se opunham ao projeto. E, em se tratando de fronteira com a Venezuela, é fácil entender o valor desse investimento”. Méndez destaca que essa proteção ao capital transnacional foi institucionalizada ao longo dos dois governos de Álvaro Uribe, através de uma série de mudanças legislativas que constituíram a chamada “política de segurança democrática”. Além disso, o governo tratou de acionar a máquina do judiciário contra os movimentos sociais. “É público na Colômbia que, durante anos, as forças de segurança e o aparato de inteligência do Estado vem perseguindo permanentemente organizações sociais, jornalistas e membros da corte de Justiça que se opõem de alguma manei-

ra a isso que está acontecendo. Fomos objetos de interceptações telefônicas, fomos seguidos em nossas casas, em nossos escritórios, tudo com intenção de montar processos judiciais contra nós”, conta. Da Colômbia para o Peru...

Apesar do nome, o Plano Colômbia se estendeu, desde o início, a Equador e Peru. Com a eleição de Rafael Correa, o primeiro se retirou do processo e a presença dos EUA na base localizada em Manta, no litoral noroeste do país, foi revogada. Dessa forma, os investimentos dos Estados Unidos se dirigiram com mais força para o Peru, país para o qual foram cerca de 30 milhões de dólares para atividades com fins militares e 150 milhões de dólares para o que chamam de “desenvolvimento alternativo”. Segundo a integrante do Observatório Latino-americano de Geopolítica, a mexicana Ana Esther Ceceña, o Peru aprovou, nos últimos dois anos, a entrada em seu território de mil efetivos para realização de exercícios militares do Plano Colômbia, sem que eles tivessem sequer atribuições específicas. Os exercícios foram divididos em dois blocos: um no norte do país, em Chiclayo, onde pensam em instalar a equipe que ficava na base de Manta, e outra no sul, onde estava – ou está – o Sendero Luminoso (guerrilha de inspiração maoísta fundada na década de 1960).

Reprodução

Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia)

Romero Vásquez, militar que participou ativamente do golpe em Honduras

... e para o México

Sob a justificativa de combate ao narcotráfico e ao terrorismo, o Plano Colômbia também foi levado até os mexicanos. Oficialmente aprovado em maio de 2008, o Plano México tem um orçamento de 1,4 bilhão de dólares durante três anos e pretende, sobretudo, criar um corredor de capacitação das instituições de segurança mexicanas, estadunidenses e colombianas. Segundo Ceceña, policiais da Colômbia já estão no México capacitando a polícia local. A pesquisadora relata que a investida sobre a polícia local se intensificou com uma jogada midiática dos Estados Unidos. Há quatro meses, o país divulgou um documento no qual considerava existir no mundo dois potenciais estados falidos, devido à forte presença do narcotráfico, da ingovernabilidade e da corrupção: México e Paquistão. O relatório demonstrava preocupação com esses países, pois, por meio de um choque repentino, eles poderiam ir à falência. Dizendo-se preocupada com a repercussão do documento, a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, foi diretamente ao México dizer que todos os problemas de segurança locais também eram do seu país. A partir daí, intensificaram-se os acordos entre todas as suas polícias e reforçou-se a necessidade de implementação da Aliança para a Segurança e Prosperidade da América do Norte (Aspan). Para Ceceña, ações como essas só reforçam a incapacidade de Barack Obama em cumprir suas promessas de desmilitarização. “Ele sequer deve coordenar a política militar ou de guerra, que deve ficar nas mãos de Hillary e do Pentágono. O Pentágono, em um estilo mais próximo de Bush; e Hillary, levando as coisas com o matiz que os democratas sempre impõem: dizem que são amigos de todos e por isso os ajudam fornecendo agentes da CIA para que controlem seu povo. Ou seja, ela promove o braço amável da inteligência e o Pentágono mantém os golpes e as invasões”, analisa. (VM)


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internacional

Choque entre ricos e emergentes Ciro Fusco/G8

REUNIÃO DO G8 De olho no crescimento industrial, nações do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) rejeitam proposta dos EUA para a redução dos gases que provocam o efeito estufa Achille Lollo de L’Aquila (Itália) A CAPITAL DA região Abbruzzo, L’Aquila, que no mês do abril foi arrasada por uma série de violentos tremores de terra, ainda continua esperando ajuda para sua reconstrução. Seu centro histórico, o bairro universitário, o centro administrativo e as áreas residenciais nas zonas sul e leste estão totalmente em ruínas. Foi nesse cenário, que faz lembrar os filmes de Rossellini e De Sica, que mostravam as cidades italianas destruídas pelos bombardeios aéreos durante a Segunda Guerra Mundial, que se realizou entre 8 e 10 de julho a reunião do G8, grupo formado por EUA, Japão, Canadá, Grã-Bretanha, Alemanha, França, Rússia e Itália. As televisões filmaram e reprisaram os presidentes dos oito países “mais ricos” passearem no meio dos escombros, cumprindo um roteiro que visava salvar a representatividade do primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi. Além disso, o governo aproveitou-se da reunião do G8 para arrecadar fundos internacionais para a reconstrução de L’Aquila, visto que havia prometido mil coisas, mas a maioria das vítimas do tremor continuava morando nas tendas da Defesa Civil. De fato, os presidentes do G8 ficaram tão comovidos que autorizaram doações que totalizaram 13 milhões de euros. Por outro lado, as negociações “confidenciais” realizadas pelos emissários do ministro das Relações Exteriores italianas, Franco Frattini, com as principais televisões do país permitiram silenciar as novas revelações escandalosas sobre a vida privada de Berlusconi que o jornal britânico Sunday Times e a TV estadunidense CNN haviam ameaçado publicar durante a reunião do G8.

Foi graças à atitude servil de Berlusconi que Obama conseguiu silenciar o mandatário francês, Nicolas Sarkozy, e evitar que se começasse a falar de uma possível aliança entre os países emergentes do chamado BRIC e a União Europeia Blindagem Os debates realizados nos primeiros dois dias foram monitorados e norteados pela diplomacia estadunidense, visto que a equipe montada pelo primeiro-ministro italiano estava inteiramente mobilizada para garantir a blindagem da “Área Vermelha” de L’Aquila e evitar que a população da cidade e os poucos militantes do movimento “NO-G8” realizassem manifestações de protesto.

De fato, além de expulsar dois jornalistas holandeses “correspondentes voluntários” e prender dez ativistas belgas, o Comitê Organizador do encontro implantou um seleto sistema de censura em todas as conferências de imprensas presididas por Berlusconi, quando o moderador dava a palavra apenas aos jornalistas “amigos”. Por exemplo, quando Vittorio Zucconi, o comentarista do jornal italiano La Repubblica, conseguiu pegar o microfone, logo houve uma pane no sistema, permitindo a Berlusconi uma vergonhosa retirada. Na realidade, o governo italiano fez de tudo para evitar que a imagem do primeiro-ministro fosse atacada durante a realização do encontro, permitindo, assim, que ele continue presidindo “formalmente” o G8 até a próxima reunião, em dezembro, na capital da Dinamarca, Copenhague. Uma presidência “formal”, uma vez que as principais questões estratégicas do grupo foram propostas e articuladas pelo presidente dos EUA, Barack Obama, e a equipe da Casa Branca. Aliás, foi graças à atitude servil de Berlusconi que Obama conseguiu silenciar o mandatário francês, Nicolas Sarkozy, e evitar que se começasse a falar de uma possível aliança entre os países emergentes do chamado BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) e a União Europeia, dando origem a um G14 – formado pelo G8, o BRIC, a África do Sul e o México. Efeito estufa

Mesmo assim, uma problemática que movimentou a reunião do G8 desde seu início foi a questão da redução das emissões de gases que provocam o efeito estufa. O presidente da China, Hu Jintao, que estava como convidado especial, logo manifestou a posição da China e dos outros países do BRIC, radicalmente contrários à fórmula que Obama pretende impor: diminuição, até 2050, de 80% das emissões. Uma proposta interessante que os emergentes, através da China, rejeitaram, aceitando apenas que o aumento da temperatura resultante do processo de industrialização não deva superar os dois graus centígrados, se comparados aos índices de há mais de 100 anos. Na prática, os quatro países do BRIC sublinham que, com a medida proposta por Obama, os países ricos não modificam sua estrutura industrial poluente. Reduzem, apenas, seus efeitos, enquanto continuarão sendo os principais responsáveis pela contaminação do planeta. O Conselheiro de Estado da China, Dai Bingguo, alfinetou diretamente os EUA e Obama ao dizer que os países ricos querem utilizar a questão ambiental para paralisar o crescimento industrial das nações emergentes. E, para finalizar a ruptura com o G8, Bingguo argumentou que “a China solicita que os países do grupo escolham uma nova moeda-divisa para o comércio mundial, que sirva de referência para todos, já que o governo chinês não confia mais na longevidade financeira do dólar”. Uma autêntica ducha de água fria para Barack Obama e seu principal aliado, o britânico Gordon Brown, que logo acionaram o presidente de turno do G8, Silvio Berlusconi, para retirar da pauta as argumentações do representante chinês.

Em reunião do G8 na Itália, os presidentes Nicolas Sarkozy e Barack Obama

A China e a fragilidade do dólar

Crise econômica: esquecimento ou apenas oportunismo? de L’Aquila (Itália)

País asiático sustenta que a moeda estadunidense já não pode ser mais o marco regulador da economia mundial de L’Aquila (Itália) A crise política que levou a minoria étnica uigur a enfrentar os batalhões de choque da polícia chinesa obrigou o presidente Hu Jintao a deixar a reunião do G8. Mas sua ausência não amedrontou a delegação chinesa, que, sob a liderança do Conselheiro de Estado, Dai Bingguo, colocou o dedo na principal ferida do sistema econômico dos países do G8: a fragilidade do sistema financeiro construído com base no dólar estadunidense. Uma crítica que – após a crise dos bancos e das bolsas estadunidenses e europeias, pela primeira vez foi feita de forma clara – põe em discussão a supremacia dos EUA e o poder de uma moeda superinflacionada que, segundo os chineses, já não pode continuar a ser o marco regulador de todas as economias e sistemas financeiros do mundo. Nos últimos quatro anos, a China adotou uma política financeira “extremamente compreensiva e amigável” em relação aos contínuos desastres do dólar, que, na prática, é sustentado pelo governo de Pequim, que mantém o valor de sua moeda igualmente inflacionada. Tal atitude, para a Casa Branca, trata-se de uma “devida relação de respeito prioritário”. Uma definição

que, na realidade, enfurece os chineses, visto que, para eles, esse respeito prioritário esconde uma verdadeira relação de dependência que, evidentemente, querem modificar. Clima e comércio

Apesar da blindagem do Comitê Organizador do encontro, Ma Daoxu, diretor geral do serviço de imprensa do Ministério de Relações Exteriores da China, conseguiu reunir-se com um grupo de jornalistas “críticos” para especificar que “o governo chinês, de forma alguma, considera-se vinculado ao acordo sobre o clima assinado pelos oito países considerados grandes”. O jovem diplomata sublinhou que “a questão do comércio mundial está firmemente ligada às negociações sobre o clima. Não é possível fazer separações. Um elemento crítico que reabre a conflituosa relação entre o Norte e o Sul é a fórmula através da qual o G8 pretende definir e distribuir os financiamentos para a redução dos gases”. Neste âmbito, Ma Daoxu argumentou que o G8 quer confiar os financiamentos dos projetos ambientais aos mecanismos de mercado, enquanto a China e os outros países emergentes exigem que grande parte desses financiamentos seja destinada às nações pobres para compensar os danos ambientais provocados nelas pelas transnacionais dos países ricos. Por isso o representante da Índia, Manmohan Singh, convocou, para outubro, um encontro técnico no âmbito das Nações Unidas para tentar definir um compromisso em relação ao controverso mercado das permissões de emissão de CO2. Uma posição sustentada também por México e Brasil. (AL) Maurizio Brambatt/G8

Dai Bingguo, conselheiro de Estado chinês

Depois do desastre do governo de George W. Bush, a estratégia de Barack Obama para reafirmar entre os países do G8 a hegemonia dos EUA é, sobretudo, congelar o debate sobre a crise econômico-financeira estadunidense. Para tal, enfatizou, no encontro em L’Aquila, três questões ambientais: o processo de redução dos gases que provocam o efeito estufa, o uso de energias renováveis e a criação de uma economia ecossustentável para os próximos quarenta anos. As discussões sobre essas temáticas na cúpula do G8 desviaram a atenção da imprensa mundial. Além disso, a presença do novo presidente sul-africano, Ja-

cob Zuma, silenciou o debate sobre a natureza da crise econômica dos países industrializados, limitandoo à definição de novas formas de ajudas para os países africanos e suas economias, em particular a agricultura. Uma fórmula que, para o secretário das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, “até agora não é suficiente”. Mais crítico é Thomas Dave, analista político da Campanha do Milênio da ONU para a África. “As declarações do G8 sobre pobreza e desenvolvimento, infelizmente, não somam nada de novo às promessas do passado. O G8, dessa vez, se limitou a confirmar essas promessas sem definir uma programação de ações e projetos para acabar com a pobreza e alcançar os Objetivos do Desenvolvimento para o Milênio”. (AL)

O protesto dos NO-G8 de L’Aquila (Itália) Deveria ser um momento de união para desmascarar as manipulações do governo do primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que utilizou o drama do tremor de terra em L’Aquila para fazer esquecer os efeitos da crise econômico e seus escândalos sexuais. No entanto, Berlusconi e a direita conseguiram manipular a reunião do G8 em seu favor, ao mesmo tempo em que as organizações sociais não foram capazes de organizar um movimento de protesto unido, tal como aconteceu Gênova, em 2002, ou em Vicenza, em 2007. De fato, o Comitê 3:32 – formado pelas vítimas do tremor de terra em L’Aquila – logo decidiu se afastar do movimento NO-G8 por não querer conviver com seus grupos radicais do movimento, em particular os BlackBlocs. Na realidade, apontase que foi uma manobra para não romper com o governo, visto que, com a reunião do G8, finalmente chegaram os financiamentos para a reconstrução da cidade. Apesar da defecção do Comitê 3:32, os reduzidos protestos confirmaram que todos os movimentos contrários à globalização neoliberal vivem um momento de cansaço político, que se aprofundou ainda mais após a derrota dos partidos e frentes de esquerda em quase toda a Europa.

Crise ideológica

Aliás, é na Itália que a complexa crise ideológica da esquerda e a falta de propostas políticas tiveram repercussões desastrosas nos movimentos antiglobalização, tanto que as manifestações realizadas em Vicenza e em Roma, nos dias 1 e 8 de julho, respectivamente, registraram uma participação popular mínima. Esse fato levou os organizadores do NO-G8 a realizarem vários protestos simbólicos, nada mais que isso. Por outro lado, a blindagem da cidade de L’Aquila; a realização do encontro na caserna de Coppino, da Polícia Financeira; e a criação de uma “Área Vermelha” com quase cinco quilômetros quadrados em “estado de guerra” inviabilizaram as manifestações de protesto. A ONG Greenpeace e outros grupos ambientalistas, parafraseando o lema de Obama (Yes, we can), optaram por pintar, no topo da colina em frente à cidade de L’Aquila, a frase “Yes, we camp” (Sim, nós acampamos). Nesse clima de clara repressão, o único comício “alternativo” foi autorizado pelo Ministério do Interior somente quando a reunião do G8 estava no fim e com grande parte da mídia mundial pouco interessada em arranhar a mística ambientalista de Barack Obama. (AL)


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