Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 334
São Paulo, de 23 a 29 de julho de 2009
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Pete Souza/White House
Balanço dos seis meses do governo Obama
Berlusconi, o estopim para mobilizações
Passado um semestre de Barack Obama na presidência dos EUA, o balanço de sua gestão não justifica, e sim desmente, o otimismo que o envolve, trombeteado pelos cultores da “obamomania”. Esta é a avaliação de Miguel Rodrigues Urbano. Pág. 12
Na Itália, os escândalos envolvendo o primeiroministro Silvio Berlusconi, assim como a sua conduta abertamente antioperária e próxima do fascismo, têm servido de estopim às mobilizações que vêm acontecendo no país desde 2008. Pág. 11
Valter Campanato/ABr
Em Honduras, paralisação prepara retorno de Zelaya As centrais sindicais hondurenhas e a Frente de Resistência contra o Golpe convocaram, para o dia 24, uma greve nacional que pode paralisar até 1 milhão de trabalhadores. A mobilização é considerada uma última cartada para preparar o regresso ao país de Manuel Zelaya, presidente deposto em 28 de junho por meio de golpe de Estado. O mandatário hondurenho afirmou que voltará no mesmo dia da paralisação, atravessando uma das
fronteiras da nação centro-americana. A avaliação é de que, quanto mais o tempo passa, menores são as possibilidades de que Zelaya reocupe a presidência. Segundo o dirigente sindical Israel Solinas, a greve busca chamar a atenção da comunidade internacional sobre a gravidade da crise. “Queremos mandar uma mensagem à OEA e aos EUA, porque é necessário que tomem medidas contundentes que afetem esse governo”. Pág. 9 Marcello Casal JR/ABr
Quilombolas resistem na Lagoa Rodrigo de Freitas
Manifestação em Brasília pede a volta do monopólio estatal do petróleo
CPI da Petrobras: nem situação nem oposição querem investigar A Comissão Parlamentar de Inquérito da Petrobras foi instalada no dia 14 e terá a sua primeira reunião em agosto, após o recesso parlamentar. Para Emanuel Can-
Descendentes de escravos estão prestes a conquistar a titulação das terras em uma área de 32 mil m² na Lagoa Rodrigo de Freitas, região de condomínios luxuosos no Rio de Janeiro. Há pelos menos 40 anos, eles lutam contra empresários e poder público para ter seu direito reconhecido. Pág. 4
cella, da Frente Nacional dos Petroleiros (FNP), a composição, majoritariamente governista, não terá resultado, já que a CPI não passa de um “palanque eleitoral”. Pág. 3 Reprodução
Condições degradantes na fábrica da Positivo Em Brasília, 51º Congresso da UNE (Conune) reuniu 3 mil delegados, representando 4,5 milhões de estudantes
A UNE, a crise da esquerda e dos estudantes O Congresso da União Nacional dos Estudantes (Conune) reuniu cerca de 3 mil delegados e elegeu, no dia 19, mais um presidente
ligado ao PCdoB. Desde 1991, o partido comanda a entidade. Em análise feita antes do encontro, o sociólogo Carlos Mene-
gozzo identifica uma crise no movimento estudantil, que, fragmentado, se articula apenas circunstancialmente. Págs. 5 e 6
AFOGANDO EM NÚMEROS
Revolução Sandinista completa
30 anos
Págs. 2 e 10
O trem-bala entre Rio de Janeiro e São Paulo, previsto no PAC, deverá custar R$ 34 bilhões. O preço da passagem de ida e volta será de R$ 300. Com esse orçamento, poderiam ser construídos 57 km em linhas de metrô, o que representaria um incremento de 93% na extensão da rede paulistana.
James Justin/CC
Operários da fabricante de computadores Positivo vêm denunciando condições degradantes na planta da empresa localizada em Curitiba (PR), onde trabalham cerca de 4,3 mil pessoas. Além de perseguições a lideranças e preconceito de cor, funcionário revela aparição de coliformes fecais na alimentação dos empregados. Pág. 8
ISSN 1978-5134
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de 23 a 29 de julho de 2009
editorial NO DIA 19, milhares de pessoas se reuniram na Nicarágua para comemorar os 30 anos da Revolução Popular Sandinista. Resultado de uma combinação de diversas formas de luta, a grande mobilização social que levou a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) a conquistar o governo e parcela do poder nesse país da América Central iniciou uma das mais importantes transformações econômicas, políticas, sociais e culturais da história da região. Profundamente inspirada nas ideias de Augusto César Sandino, o “general de homens livres”, que organizou entre os anos de 1920 e 30 um “exército proletário-camponês” que impôs uma derrota política e militar às tropas invasoras dos EUA. As ideias anti-imperialistas de Sandino, misturadas com o marxismo latinoamericano de figuras como Carlos Fonseca (intelectual marxista e dirigente político-militar da FSLN) e com a experiência da Revolução Cubana de 1959 e a influência da Teologia da Libertação, resultaram numa das mais participativas e democráticas iniciativas de construção do poder popular. Num país historicamente subordinado aos interesses do imperialismo estadunidense, a vitória sandinista em 19 de julho de 1979 representou uma grande esperança para os povos da América Central. Numa época marcada profundamente pela “Guerra Fria”, a Nicarágua acabou ganhando importância estratégica para as
debate
30 anos da Revolução Sandinista: Nicarágua, Honduras e América Latina forças sociais e políticas da esquerda latino-americana, pois representava novamente a possibilidade de vitória concreta de um projeto popular, democrático e anti-imperialista. A pobreza e a intensa desigualdade social, aliadas à brutal repressão contra o povo, foram alguns dos elementos que impulsionaram um grupo de jovens nicaraguenses a organizar a resistência contra as arbitrariedades cometidas pela classe dominante. Com a chegada ao poder, são criadas diversas organizações políticas, sociais e culturais com o objetivo de garantir a defesa das conquistas trazidas pela nova situação que vivia o país. Reforma agrária e urbana; educação pública, gratuita e de qualidade em todos os níveis; programas sociais para a proteção e assistência aos mais pobres, às crianças, aos idosos; estímulo à participação das crianças, dos jovens e das mulheres nas lutas e organizações políticas e sociais; e política externa baseada nos princípios da solidariedade internacionalista, da autodeterminação das nações e na valorização da independência e da soberania nacional. Tudo isso era defendido por esse processo de transformação.
Entre 1979 e 1990, a Nicarágua foi governada por pessoas e organizações que eram resultado dessa ampla mobilização popular. Apesar das contradições e conflitos no interior da Revolução Sandinista, é inegável seu papel e sua influência nos movimentos e partidos de esquerda e progressistas em toda a América Latina. Foram anos nos quais os povos da Guatemala e El Salvador puderam resistir com mais firmeza política e ideológica diante das ditaduras pró-EUA. Em que Cuba pode demonstrar de maneira intensa o quanto de solidariedade a sua revolução conseguiu produzir. Mas também foi uma revolução muito combatida militar, política e economicamente pelos EUA. Logo após a vitória sandinista, Honduras, o país vizinho, torna-se a base da contra-revolução financiada pelos estadunidenses. Atos terroristas contra cooperativas, plantações agrícolas, fábricas, escolas; guerra civil desencadeada pelos conservadores e pelos EUA; e campanha internacional de isolamento político e bloqueio econômico. Logo veio o desabastecimento, enquanto a pobreza e a guerra continuavam a castigar o povo. Os recursos
eram utilizados na defesa nacional e os programas sociais tinham dificuldade de se desenvolver. Com o fim da União Soviética e a derrocada das tentativas de construção do socialismo no Leste Europeu, surge uma conjuntura internacional desfavorável às forças populares e de esquerda. A ofensiva neoliberal também chega na América Central. A FSLN vai para as eleições em fevereiro de 1990 e é derrotada. A promessa dos EUA era que, se a Frente perdesse, se colocaria fim à guerra civil e se permitiria investimentos estrangeiros no país para reconstruir a economia. Os nicaraguenses votaram pelo fim da guerra, e uma revolução feita pelo povo em armas foi derrotada, pela primeira vez, por um processo eleitoral. De 1990 a 2006, a pobreza e a desigualdade social se intensificam, e o povo escolhe a FSLN para governar o país. A Nicarágua do presidente Daniel Ortega se integra à Alternativa Bolivariana dos Povos da América (Alba), se aproxima de Cuba e Venezuela e recomeça o debate sobre qual deve ser o projeto de desenvolvimento que deve orientar o novo governo sandinista.
crônica
Rogério Almeida
A luta pela terra em Carajás: ilícitos, Justiça, Estado ...
Os sandinistas de hoje não estão todos na FSLN. Inúmeras organizações e movimentos político-sociais continuam se reivindicando como herdeiros e continuadores da Revolução vitoriosa em 1979, num momento em que a Nicarágua vive uma situação distinta, pois agora os contra-revolucionários que atacavam o país a partir de Honduras, apesar de terem dado um golpe civil-militar em 28 de junho, estão numa posição não tão favorável, o que não significa que serão derrotados. Os golpistas de Honduras são os mesmos que bombardearam por 11 anos a Nicarágua Sandinista. Depois de 30 anos, aprendemos que as revoluções populares, mesmo quando verdadeiras, estarão constantemente ameaçadas. Uma forma de garantir que existam pelo tempo necessário para o despertar de todos os povos do mundo é a mobilização de massas, a formação de novos e bem-preparados militantes sociais e a unidade política, ideológica e programática das forças que conduzem um determinado processo de mudanças. Em 1959, a Revolução Cubana; em 1979, a Revolução Sandinista; em 1999, assume na Venezuela o primeiro governo da “Revolução Bolivariana”. Em 2009, temos o desafio de derrotar os golpistas em Honduras, para assim garantir a segurança e a democracia das massas populares e da classe trabalhadora em toda a nossa América Latina.
Luiz Ricardo Leitão
De Jean Charles a Kaká: perdidos no Paraíso Gama
A DATA ALUSIVA ao trabalhador rural é comemorada no dia 25 de julho. Mesma data da passagem do aniversário de uma das maiores expressões na defesa da reforma agrária no país, o dirigente maranhense Manoel Conceição Santos, hoje radicado no município de Imperatriz, oeste do Estado. No mesmo dia se celebra a ocupação da fazenda Maria Bonita, no município de Eldorado do Carajás, sudeste do Pará. A peleja pela posse da fazenda envolve o MST, a família Mutran e Daniel Dantas. A fazenda se encontra logo depois da Curva do S, na rodovia PA-150, onde, em 1996, o município sairia do anonimato da história graças ao massacre de Eldorado, quando 19 lavradores sem-terra foram executados pela PM do Pará. A chacina é considerada uma das mais brutais na memória recente da luta pela terra do Brasil. O governador Almir Gabriel (PSDB) e o secretário Sette Câmara ordenaram o massacre. Até hoje não há ninguém preso e os soldados envolvidos foram promovidos a cabo. A execução de pobres tem sido um expediente dos poderosos desde os tempos colônias: Palmares, Cabanagem, Canudos, Corumbiara (RO), Eldorado ....Raimundo Nonato (Tucuruí/ 2009), Luis Lopes Barros (Conceição do Araguaia/2009). O sol é escaldante nestes dias de julho nas terras dos Carajás. O rio Tocantins já recuou suas águas e oferta praias nos municípios onde o mesmo incide. Assim também o faz o Araguaia. É tempo de queimada para a renovação de pasto. A região é coberta por fuligem e muita poeira. Os hospitais públicos ficam engarrafados de crianças com problemas respiratórios. A pecuária é uma das expressões do lugar. A cerca que acode o gado não oculta os crimes.
Uma cadeia de ilícitos
A atividade é indutora de tragédias sociais e ambientais: grilagem de terra, trabalho escravo, assassinato de militantes e camponeses e destruição da floresta. Neste mês de julho, os pecuaristas festejam seus gados numa festa no município de Marabá. A cidade é polo da região. Mais que festejar gados, a exposição agropecuária é palco de alinhavos políticos. Os mesmos fazendeiros que tanto pediram a cabeça da governadora no início do ano, capitaneados pela senadora Kátia Abreu (DEM/TO), ora celebram a mediação da mesma junto ao Ministério Público Federal (MPF) contra o embargo da produção ilegal de gado. Comitivas de parlamentares descobriram o caminho do MPF. O episódio aconchegou opositores figadais. Essas coisas da política....
Os fazendeiros chegaram a pedir várias vezes intervenção federal no Estado, contrariados pelas ocupações de fazendas em nome da pessoa jurídica de Dantas no Pará, a Agropecuária Santa Bárbara. Com mais de quatro anos com “investimentos” no Estado, não se sabe quantas fazendas a Santa Bárbara controla. A mesma energia empregada pelo Estado e representantes dos legislativos estadual e federal na defesa dos pecuaristas não se registrou com as execuções dos camponeses Raimundo Nonato do Carmo, morto no dia 16 de abril no município de Tucuruí, véspera do massacre de Eldorado, e Luis Lopes Barros, assassinado no município de Conceição de Araguaia (o corpo foi encontrado no dia 15 de junho). A banalização parece nublar os assassinatos de camponeses e a libertação de trabalhadores em condições de escravidão. Registre-se que a região é top no ranking.
Grilagem, trabalho escravo
No calor da indignação dos fazendeiros por conta de inúmeras ocupações de áreas em nome da empresa do indiciado banqueiro Daniel Dantas, o MPF publicizava um estudo de mais de três anos sobre a apropriação indevida de terras públicas. A pesquisa sobre grilagem de terras desnudou que os títulos produzidos pelos cartórios do Pará ultrapassam em quatro vezes o território do Estado. Os títulos falsos somam mais de 6 mil. Ainda assim a Justiça local não anulou os mesmos. O MPF e outros órgãos envolvidos na pesquisa recorreram ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No mesmo período, 27 fazendeiros das terras dos Carajás foram condenados por trabalho escravo. Um fato inédito. Se a mídia se esmerou em linchar as ocupações de terras, perdeu o fôlego ante as evidências de grilagem de terras, trabalho escravo e os crimes ambientais que conformam a produção agropecuária na região e que resultaram no embargo da venda de carne.
O primeiro semestre foi bem agitado na disputa pela terra no Pará. A Federação de Agricultura e Pecuária do Pará (FAEPA) foi flagrada pela má aplicação de verbas públicas na campanha de combate da febre aftosa – leia-se o presidente da entidade, Carlos Xavier, o mesmo que premiou a Agropecuária Santa Bárbara como empresa do ano. Um jantar orçado em R$ 4 mil é um dos questionamentos. A reportagem foi veiculada no jornal da TV Globo, Bom dia Brasil, do dia 25 de março de 2009. A reportagem realizada por Roberto Paiva explica que 40% da carne consumida no Estado não passa por fiscalização sanitária. Até hoje não se conhecem as prestações de contas de 1,441 milhão repassados desde 2007 através de três convênios para o presidente do Fundo, o mesmo senhor Carlos Xavier. Os recursos são oriundos da Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (ADEPARÁ). Entre as notas flagradas pela auditoria consta uma compra de 150 projéteis para armas de calibre 38. Interroga-se: cura-se aftosa na bala ou seriam para os “seguranças” das fazendas? Tem-se ainda nota de R$ 21 mil para aluguel de carros.
Ocupações e conflitos
A fazenda Maria Bonita, ocupada pelo MST, é um dos fios do novelo do capítulo da disputa pelo território nas terras do Araguaia-Tocantins nos recentes cinco anos. A terra apropriada pela família Mutran foi repassada ao banqueiro Daniel Dantas, do banco Opportunity. A família Mutran tinha o direito de uso da terra para fins de extrativismo da castanha-do-Pará, e não de posse da terra. Os pecuaristas devastaram a floresta e implantaram a pecuária (a íntegra deste artigo encontra-se em: www.brasildefato.com.br). Rogério Almeida é colaborador da rede www.forumcarajas.org.br
SEGUNDO DADOS divulgados em 2007 pelo Banco Mundial e pela Organização Internacional para Migração (OIM), há hoje no planeta mais de 200 milhões de pessoas (ou seja, cerca de 3% da população mundial) que vivem fora de seu país de origem, boa parte delas imigrantes do Terceiro Mundo que, de maneira legal ou ilegal, ajudam a mover, com seu talento e seu suor, a roda implacável da economia globalizada. Quase todos, mesmo aqueles radicados nos EUA ou nas nações mais ricas do Velho Mundo, sofrem o pão que o diabo amassou, mas são seres praticamente invisíveis para o sistema que os explora. Sua ira e ressentimento por vezes explodem em violentas manifestações, como ocorreu nos últimos anos em Paris, onde os filhos da diáspora africana armaram barricadas e incendiaram carros por dias e noites, em resposta à segregação a que são submetidos. Em outras regiões menos badaladas desta nossa “sociedade espetacular”, há histórias ainda mais desumanas que os noticiários preferem ignorar ou de que vez ou outra nos dão notícia. Estamos falando dos moçambicanos que são escorraçados a ferro e fogo nos guetos urbanos da África do Sul, ou dos bolivianos explorados dia e noite nas confecções coreanas de São Paulo; enquanto as sereias do capital apregoam a força dos “emergentes”, milhares de eslavos são agredidos e assassinados na Rússia, e outros tantos vietnamitas trabalham praticamente escravizados nas criações de camarão da Tailândia. A esses párias que abastecem as ditas “ilhas de prosperidade” das áreas periféricas do capital, a mídia concede o impiedoso silêncio ou tão-somente registros ácidos nas páginas policiais. O brasileiro Jean Charles, assassinado brutalmente pela polícia inglesa sob a torpe acusação de “terrorismo”, é um desses heróis anônimos. Sua história foi contada há pouco em um filme sensível e honesto (coprodução anglo-brasileira, dirigida por Henrique Goldman e protagonizada por Selton Mello), que nos revela o mundo subterrâneo dos imigrantes estrangeiros na Inglaterra, sem retocar as angústias e paradoxos que estes vivenciam nas vísceras do Primeiro Mundo. E, claro, sem dissimular a ambiguidade dos filhos de Macunaíma, sempre cindidos entre o legal e o ilegal, a maracutaia e o oficial, como se fossem Deus e o Diabo na terra do fog, equilibrando-se fragilmente nas tortuosas trilhas de sua vida marginal. Por sua vez, é claro que, para as “celebridades” da indústria do entretenimento ou os ídolos dos esportes transnacionais (desde o futebol e o basquete até o beisebol ou o vôlei), há sempre um espaço generoso na imprensa e no imaginário popular. E isso vale para os brasileiros, como pude constatar nesses dias, lendo as notícias sobre a transferência de Kaká para o Real Madrid, emoldurada, como se sabe, pelo valor milionário da transação – que, afinal de contas, em um mundo comandado por cifras, é a medida final de todas as coisas. Aliás, com sua estampa de bom filho e bom marido, o craque da Seleção tornou-se não apenas uma valiosa mercadoria do planeta bola, mas também um ícone perfeito para os arautos do conservadorismo hipócrita – gente como o seu ex-patrão Silvio Berlusconi (dono do Milan, da mídia e do governo italianos), que demoniza o aborto e se diz guardião da “moral e dos bons costumes”, mas não dispensa uma cálida orgia com belas ninfetas em seu próprio palacete... Perdido no Paraíso, Kaká é uma ilustração singular deste fenômeno típico da era neoliberal pós-moderna: a exportação de seitas religiosas em meio a mais um ciclo de crise aguda do capitalismo global. Relembro, a respeito, as recentes declarações de Caroline Celico, esposa do jogador, agora convertida na “pastora Carol” da Igreja Renascer (dirigida pela bispa Sônia Hernandes, que esteve presa nos EUA por crimes fiscais). A iluminada criatura, encarregada de abrir uma nova franquia da Renascer em Madri, atribuiu a Deus a ida do marido para a Espanha: “Como pode no meio da crise alguém ter dinheiro? O dinheiro do mundo tem que estar em algum lugar. E Deus colocou esse dinheiro na mão de quem? Do Real Madrid, para contratar o Kaká. Foi uma grande bênção.” A jovem ‘pregadora’ , que louva a beleza dos jovens de sua ‘Igreja’ (“A gente é diferente mesmo. Vocês derrubam o inferno só com a beleza. Amém.”), decerto nem ouviu falar de Jean Charles, a quem o estranho Deus de Carol não logrou proteger. Pobre Caroline: por trás de sua prepotência e da tosca peroração, mal sabe a casta donzela que, ungidos ou não pelos euros do Senhor, ela e Jean Charles são tão-somente duas faces (alguns diriam dois instrumentos) deste insólito Paraíso terrestre em que, crise após crise, se aniquilam os homens e se reproduz celeremente o capital. Pero... ¿Hasta cuándo, chica? ¿Hasta cuándo? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Luís Brasilino • Subeditor: Igor Ojeda • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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“CPI da Petrobras não dará em nada” POLÍTICA Para petroleiros, comissão, “seja a formação que for”, funcionará apenas como “palanque eleitoral” da direita Valter Campanato/ABr
Eduardo Sales de Lima da Redação “A ATITUDE DO bloco da minoria será de investigar sem politizar”, afirmou o líder do DEM, José Agripino Maia (RN), após manifestações de movimentos sociais, ocorridas no Rio de Janeiro (RJ), contra a realização da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Petrobras. Não é isso, entretanto, o que pensam representantes de trabalhadores da Petrobras e boa parte da base aliada do governo. Para eles, a intenção da direita política do país é, sobretudo, politizar. “Esta CPI é só palanque eleitoral”, destaca Emanuel Cancella, da coordenação da Frente Nacional dos Petroleiros (FNP). A CPI da Petrobras foi instalada no dia 14 e terá a sua primeira reunião em agosto, após o recesso parlamentar. O governo conta com oito dos 11 membros da comissão. “Não vejo nenhum resultado prático, seja a formação que for”, afirma Cancella. No requerimento encaminhado pelo senador Álvaro Dias (PSDB/AM), e que a comissão terá que apurar , destacam-se os seguintes pontos a serem investigados: irregularidades em contratos de construção de plataformas, supostos desvios de dinheiro dos royalties do petróleo e denúncias de irregularidades no uso de verbas de patrocínio da estatal. Mas, diante de todas essas denúncias imprimidas
Na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, manifestantes pedem a volta da Lei 2.004, que instituiu a Petrobras e o monopólio estatal do petróleo
por tucanos e democratas, o deputado federal Dr. Rosinha (PT/PR) reforça a opinião de Cancella. “Sou muito cético em relação a qualquer CPI”, pontua. Segundo ele, desde que a direita política nacional se tornou oposição no governo federal, “as CPIs não investigam, de fato, nada”. O deputado federal explica que as comissões “nos últimos sete anos foram perdendo o
papel de investigação”, porque “a direita, junto com as grandes empresas de comunicação, tem o interesse em promover alguns deputados e senadores”. Ele conclui que a instauração da CPI da Petrobras reflete, mais uma vez, nesse tipo de movimento. Antinacional
Semelhante ao que pensa Dr. Rosinha, a realização da CPI da Petrobras dificilmen-
te trará algo novo porque, segundo argumenta Emanuel Cancella, da FNP: “A Petrobras é bastante investigada, e isso é bom”, pondera. Em recente artigo, a socióloga e jornalista Débora Lerrer reforça o argumento de Cancella, informando que a estatal é alvo constante de auditorias. “Será justamente os holofotes de uma CPI o melhor lugar para se investigar eventuais irregularida-
des que possam ter ocorrido na empresa?”, questiona Lerrer. Fato é que, além de se tornar um palanque que dá visibilidade a figuras como Álvaro Dias e Agripino Maia, a recém-instaurada CPI desvela objetivos de uma elite antinacional e com projetos descolados da sociedade em geral. O que os representantes de organizações sindicais, como Cancella, apontam é o que
está por trás da CPI: além da tentativa de promover os atores da direita do Congresso Nacional, a manobra política, em última instância, pretende facilitar a transferência das riquezas em petróleo para mãos privadas e dificultar a governabilidade federal. “Eles querem dificultar as mudanças na Lei do Petróleo e facilitar a privatização”, pontua João Antônio de Moraes, da coordenação da Frente Única dos Petroleiros (FUP). Cancella inclui, dentro dos objetivos da direita, a criação de entraves em relação à governabilidade, “tendo em vista que a Petrobras é responsável por 40% dos investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento [PAC]”. Também desconfiada, Lerrer escreve que “justamente quando a Petrobras está indo atrás de recursos no exterior para investir na exploração da camada présal e setores da sociedade brasileira estão querendo revisar a Lei do Petróleo, tirando as empresas estrangeiras da exploração das reservas nacionais e garantindo que o destino dessa riqueza beneficie o conjunto do povo brasileiro”. Para Moraes, como a CPI já está constituída, o grande desafio dos movimentos sociais é “não permitir que a direita, junto com seus jornalões, a transformem num palco político”. A CPI vai ter 180 dias para realizar seus trabalhos, podendo ser prorrogada por igual período.
TRABALHO ESCRAVO
“Lista suja” adiciona novos produtores da fronteira agrícola Criadores de gado bovino e fazendeiros de soja e algodão que atuam em áreas de expansão foram incluídos na atualização do cadastro Maurício Hashizume de São Paulo (SP) Grandes produtores de áreas de expansão da fronteira agrícola foram incluídos, no dia 21, na “lista suja” do trabalho escravo – cadastro mantido pelo governo federal que aponta empregadores flagrados na exploração de pessoas em condições análogas à escravidão. Promovida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), essa atualização semestral confirmou 17 inclusões (13 pela primeira vez e quatro após as liminares que os mantinham fora terem sido suspensas) e 35 exclusões (34 em definitivo e uma temporária, devido a uma liminar judicial). Todas são pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas em operações de fiscalização de trabalho escravo. Os nomes vão para a lista após conclusão de processo administrativo gerado a partir da situação encontrada pelos auditores fiscais do trabalho. Rosana Sorge Xavier, da família que controla o Frigorífico Quatro Marcos (dona de um histórico de problemas trabalhistas), agora faz parte da “lista suja”. Entre os 100 maiores desmatadores do país, de acordo com ranking do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de 2008, Rosana aparece como segundo maior agente privado devastador do país (e na nona posição geral), com mais de 12,6 mil hectares de floresta – o que lhe rendeu uma multa em torno de R$ 48 milhões. O primeiro entre empreendedores privados é Léo Andrade Gomes, com 15,2 mil hectares desmatados e mais de R$ 32 milhões em multa. Entre os incluídos, há mais
grandes fazendeiros de gado bovino. E, assim como Rosana Sorge Xavier, pelo menos dois deles mantêm criações de porte nas franjas da Amazônia: Olavo Demari Webber, do norte do Mato Grosso; e Aurélio Anastácio de Oliveira, escravagista reincidente e dono da Fazenda Iraque, em Eldorado dos Carajás (PA). Regis Francisco Ceolin, pecuarista do Condomínio Agropecuário Ceolin, atua no oeste baiano. Além do Condomínio Agropecuário Ceolin, dois outros produtores que entraram para o cadastro de infratores são do oeste da Bahia, uma das áreas de maior expansão do agronegócio no país. Os dois outros flagrantes que geraram as inclusões se deram, curiosamente, na área da chamada Fazenda Estrondo, localizada no município de Formosa do Rio Preto (BA). Em terras da Companhia Melhoramentos do oeste da Bahia (CMOB), que atua tradicionalmente com mineração na região, foram libertados 39 trabalhadores que catavam raízes para viabilizar a produção de soja, em outubro de 2005. Na mesma área da Fazenda Estrondo, mas em outra parte conhecida como Fazenda Indiana (sob a responsabilidade de Paulo Kenji Shimohira), houve 52 libertações de pessoas que faziam a capina de algodão. Outros fazendeiros que entraram na “lista suja” em decorrência de flagrantes na fronteira agropecuária: Lírio Antônio Parisotto, produtor de soja em Uruçuí (PI); Adailto Dantas Cerqueira e Salomão Pires Carvalho, donos de áreas no Maranhão; e Elizabete Guimarães de Araújo e Ivan Domingos Paghi, que tiveram suas propriedades no Tocantins flagradas pelo MTE. Adailto,
Assessoria de Imprensa da PRT da 6ª Região/PE
Elizabete e Ivan, na realidade, foram reincluídos na relação por causa da perda do efeito de liminar que excluía os nomes temporariamente. Usinas e outros casos
Grandes usinas de cana-deaçúcar que também já constaram da “lista suja” também foram reinseridas no cadastro. A Agrisul Agrícola Ltda. – conhecida como Usina Debrasa, da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool (CBAA), que faz parte do Grupo José Pessoa –, de Brasilândia (MS), e a Agropecuária e Industrial Serra Grande (Agroserra), de São Raimundo das Mangabeiras (MA), voltaram a aparecer na “lista suja”, divulgada desde o final de 2003. Uma empresa e um fazendeiro do Ceará, juntamente com o dono de um ferro-velho em Várzea Grande (MT), completam o rol dos infratores incluídos. A Mundial Construções e Limpeza Ltda. foi pega quando explorava trabalhadores no serviço de limpeza diária e roça de linha de transmissão de energia elétrica da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), em Sobral (CE). O fazendeiro José Nilo, por sua vez, entrou na “lista suja” em função de fiscalização ocorrida nas Fazendas Pirangi e Três Marias, em Beberibe (CE). Já José Nilson dos Santos explorava duas pessoas com deficiência mental no Auto Guincho Jussara, na cidade que fica ao lado da capital Cuiabá (MT). Com a atualização da “lista suja”, 35 nomes também foram retirados. Desses, Gilson Muller Berneck foi excluído por motivo de liminar da Justiça. Todos os outros saíram após o cumprimento de dois anos no cadastro, combinado com o pagamento de todas as pendências relativas às autuações e a não-reincidência na exploração do trabalho escravo contemporâneo. (Agência de Notícias Repórter Brasil - Colaboraram Bianca Pyl, Maurício Reimberg e Leonardo Sakamoto)
Em Pernambuco, trabalhador rural é resgatado de alojamento em engenho com condições degradantes
Inclusões e exclusões da “lista suja” do trabalho escravo Entraram em 21/7/2009 Adailto Dantas de Cerqueira – CPF 091.906.195-87 Agrisul Agrícola Ltda. (Usina Debrasa/CBAA) – CNPJ 04.773.159/0002-80 Agropec. Ind. Serra Grande Ltda. (Agroserra) – CNPJ 11.035.672/0001-59 Aurélio Anastácio de Oliveira – CPF 047.691.122-20 Cia. Melhoramentos do Oeste da Bahia (CMOB) – CNPJ 97.435.234/0001-01 Elizabete Guimarães de Araújo – CPF 576.510.431-20 Ivan Domingos Paghi – CPF 016.837.008-56 José Nilo Dourado – CNPJ 02.930.365/0001-40 José Nilson dos Santos – CPF 111.645.301-00 Lírio Antônio Parisotto – CPF 213.676.129-34 Mundial Construção e Limpeza – CNPJ 04.740.962/0001-38 Olavo Demari Webber – CPF 213.734.340-15 Paulo Kenji Shimohira –
CPF 507.292.766-00 Regis Francisco Ceolin – CPF 438.282.480-04 Salomão Pires de Carvalho – CPF 024.354.897-49 Selson Alves Neto – CPF 159.949.706-97 Rosana Sorge Xavier – CPF 993.277.088-49
Itapicuru Agroindustrial S/A Espólio de João Neto Moura Macedo Joaquim Carlos Sabino dos Santos José Carlos da Silva Porfírio José Irineu de Souza Juliano Heringer Branco Leoni Lavagnoli
Saíram em 21/7/2009
Luis Carlos Berti
Alonso Claristino Resende Altamir Soares da Costa Antônio Paulo de Andrade Benedito Gonçalves de Miranda Célio José de Resende E.C.I. Empresa de Invest. Partic. e Empreendimentos Ltda. Eduardo Ferreira Fernandes Lavagnoli Flávio Teixeira Martins Francisco de Almeida Leal Fued Tuma Gilson Mueller Berneck Haroldo Luiz de Barros Indústria Agroflorestal Heyse
Luis Otato Neto Marco Antônio Mattana Sebben Marco Aurélio Andrade Barbosa Marco Túlio Andrade Barbosa Marta Alves Resende Odilon Ferreira Garcia Osvaldo Borges Paulo Roberto Cunha (Ideal Severino da Cruz) Raimundo Everardo Mendes Vasconcelos Rosenval Alves dos Santos Sérgio Noel de Mello Martins Vitalmiro Bastos de Moura Wagner Furiati Nabarrete
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Um quilombo no paraíso carioca RIO DE JANEIRO Descendentes de escravos estão prestes a conquistar a titulação das terras em área na Lagoa Rodrigo de Freitas Maurício Scerni
Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) DE FRENTE PARA a Lagoa Rodrigo de Freitas, com vistas para o Cristo Redentor, em ladeira nobre da zona sul do Rio de Janeiro (RJ), construiu-se uma das mais belas histórias de resistência negra no país. Em meio a condomínios luxuosos e grades resistentes, sete famílias de descendentes de escravos lutam, há mais de 40 anos, pela posse das valiosas terras que habitam há pelo menos um século. Neste ano, os protagonistas do primeiro e mais valioso quilombo urbano do país parecem próximos de ser oficialmente reconhecidos como donos de suas terras. Mas, a julgar pelo extenso histórico do cerco oferecido pela elite local, a conquista definitiva dos documentos não está nada garantida. Aos 67 anos, José Luiz Pinto Júnior é conhecido na cidade como Luiz Sacopã, em referência ao nome do Quilombo que herdou e à rua onde vive. Viu o nonagenário pai morrer numa cama, doente e triste, um dia após agressiva intervenção policial, em 1986. A irmã, cantora conhecida como Tia Nenê nas rodas de samba cariocas, teve destino muito semelhante em 2005, morrendo um dia após veemente discussão com o desembargador Antonio Eduardo Duarte, poderoso inimigo da comunidade. Luiz permaneceu reivindicando seus direitos na Justiça e, após acordo intermediado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), vê com entusiasmo a possibilidade de têlos reconhecidos. A Lagoa é um dos mais nobres bairros do Rio de Janeiro, e a especulação imobiliária fez de tudo para expulsar os moradores indesejados. Nos anos de 1960, através da famosa secretária de habitação do governo Carlos Lacerda, Sandra Cavalcanti, removeu favelas e morros da região. A alguns dos negros descendentes do quilombo, oferecia indenizações ou pequenas casas em Santa Cruz, o mais pobre bairro do Rio. Luiz e sua família esforçavam-se para explicar às pessoas que aquele terreno valia mais do que o oferecido e valeria muito mais após a operação. Não obtiveram sucesso. Seduzidos pelo pouco, porém fácil, dinheiro, os vizinhos negros migraram para a zona oeste. “Em alguns casos, alegava-se que era área de proteção ambiental e removia-se. Os antigos donos viravam as costas e eles começavam a construir prédios”, indigna-se Luiz. Moralmente habitável Segundo o antropólogo da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fábio Reis Mota, o esforço do poder público de remover as populações do entorno da Lagoa tinha “base na ideia de saneamento da cidade, de modo a torná-la moralmente habitável. O Poder Público levou a cabo uma política de expulsão de diversas famílias locais para a periferia da cidade. A favela, como categoria pejorativa e estigmatizante, tornase um problema para a cidade, tendo que ser extirpada e removida do cenário do paraíso carioca”. Como é comum nas intervenções de especulação imobiliária, a região valorizou-se uma enormidade após a operação. A favela da Catacumba, na mesma região, onde os avós de Luiz chegaram e começaram a construir essa história, foi inteiramente demolida, assim como todas as comunidades remanescentes de quilombo da região. Restou a área que, para espanto de todos os que tomam conhecimento dos sucessivos ataques enfrentados, permanece habitada pelos negros. “É um desafio à imaginação sociológica explicar quais fo-
Luiz Sacopã, morador do quilombo do qual empresta o apelido: vítima do preconceito e da especulação imobiliária
ram os mecanismos e estratégias adotadas pelo grupo para a sua manutenção em território tão cobiçado pela força política e econômica da cidade”, afirma Fábio.
“A favela, como categoria pejorativa e estigmatizante, torna-se um problema para a cidade, tendo que ser extirpada e removida do cenário do paraíso carioca”, critica o antropólogo Fábio Reis Mota A comunidade ocupa hoje cerca de 32 mil m², o equivalente a três campos de futebol. Estima-se que cada metro quadrado valha, hoje, R$ 12 mil. O valor já suscitou a cobiça de todas as esferas de poder, públicas ou privadas, e a repressão assumiu inúmeras formas. A comunidade já sofreu quatro ordens de despejo, uma privada, uma estadual e duas municipais, a última na segunda gestão de Cesar Maia (2001-2009). Antes, a prefeitura de Luis Paulo Conde criou, em 2000, o parque José Guilherme Melchior sobre boa parte do quilombo urbano. Nessa época, a imobiliária Higienópolis assumiu a disputa pelas terras. A presidente da associação de moradores local, Ana Simas, então amiga da comunidade, surpreendentemente mudou o discurso em favor da imobiliária. Ela se casou no quilombo com Jorge Simas, músico e ex-parceiro de Luiz. Racismo Embora a principal causa da perseguição da qual o Quilombo Sacopã se tornou vítima seja a especulação imobiliária, há consenso de que o racismo seja variável significativa. “A gente sabe o incômodo que gera um quilombo numa área nobre. Entra tudo. A questão social, racial e imobiliária”, comenta a atriz Zezé Mota, amiga de Luiz. Um emblemático caso vivenciado pela comunidade chama a atenção. Em 2001 a Justiça chegou a prender a cozinha e os quartos com correntes para impedir a entrada. Os moradores exibem, até ho-
je, as correntes, pelo simbolismo que representam em analogias com a escravidão. “Como não podem mais prender nossos pés, prenderam nossas portas”, ironiza Luiz. Em outra oportunidade, um funcionário do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) foi ao quilombo para verificar uma denúncia de poluição. O próprio funcionário manifestou-se revoltado com o texto da denúncia, no qual se dizia que a poluição era visual. “Estou estarrecido”, teria dito o funcionário. Resistência A repressão se deu, em diversos momentos, através da proibição das atividades comerciais do quilombo (cozinha, aluguel de estacionamento etc.). A Justiça sempre alegou que, nessas áreas, não se pode trabalhar comercialmente. Os quilombolas resistiram, e continuam a fazer, ainda hoje, uma feijoada no segundo sábado do mês. A renda é destinada não apenas ao sustento da comunidade. O bloco Rola Preguiçosa, fundado em 1993 pela família de Luiz, tornou-se conhecido no Carnaval carioca e também é financiado pelas feijoadas. O bloco tem Zezé como madrinha e as camisas são desenhadas por Hans Donner, vizinho do luxuoso condomínio ao lado. Comenta-se que a atividade cultural ajudou a comunidade a resistir às insistentes investidas dos poderes público e privado. Luiz e sua irmã, Tia Nenê, herdaram da mãe o gosto pelo samba e o talento musical. Suas feijoadas tornaramse mais famosas após a fundação do bloco. “Porque sou artista, tenho um microfone na minha frente. Onde vou, falo dos nossos problemas”, resume Luiz. Em uma dessas feijoadas, em outubro de 2004, a comunidade comemorou a declaração oficial do Ministério da Cultura reconhecendoa como quilombo, o primeiro urbano do Brasil. Fuga e isolamento O conceito de quilombo urbano causa estranhamento devido a um desvio conceitual. O entendimento majoritário, da sociedade e da academia, concebe o quilombo como local de fuga e isolamento. “Durante muito tempo se falou de comunidades negras rurais como forma de caracterizar o quilombo. No entanto, há comumente um esquecimento de que a cidade, o urbano, o campo e o rural são sempre contextuais e há sempre um deslocamento, e a consequente transformação desses espaços: de rural para urbano ou de urbano para rural”, explica Fábio.
“O que é hoje urbano na cidade era, no início do século 20, um emaranhado de mangues, rios, lagoas. Essas representações acabam se transformando em sólidos preconceitos sobre a categoria quilombo, cuja conceituação não segue mais esses dois princípios”, completa. Até mesmo a legislação estatal passou a definir quilombos a partir de outra orientação conceitual. O Quilombo Sacopã não é o único urbano na cidade. Na região da Pedra do Sal, no bairro
da Saúde, há outra comunidade lutando por reconhecimento legal. Igreja e União Os remanescentes de quilombolas da região, entretanto, não têm muito o que comemorar. Suas terras são disputadas pela União e pela Igreja Católica. “Baseiamse no princípio de que ‘tudo aquilo que não tem registro me pertence’”, ironiza Damião Braga, vice-presidente da Associação de Comunidades Quilombolas do
Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ.). Com sede na Tijuca, a Ordem Terceira de São Francisco da Penitência vem enfrentando a comunidade há anos. Para discutir essas questões, a ACQUILERJ, presidida por Luiz, organizou no dia 11 o debate “Quilombo Sacopã, uma Cultura Quilombola Carioca”, com a presença de intelectuais, parlamentares e secretários de governo, além das tradicionais apresentações musicais e da feijoada.
Comunidade fez concessão jurídica Em nova planta, a área ocupada será reduzida a menos da metade. Decreto 4.887, que ampara a iniciativa, é questionado no STF pelo DEM do Rio de Janeiro (RJ) À primeira vista, o processo de regulamentação do Quilombo Sacopã segue. O relatório técnico formulado inicialmente junto ao Incra foi revisto e negociado com a comunidade. Em novo relatório, a planta será alterada. Dos 2,4 hectares inicialmente previstos, restará menos de 1. Mas há otimismo quanto ao andamento do processo. Uma parte, que está dentro do parque José Guilherme Melchior, terá de ser removida. “Para resolver o problema logo, a comunidade fez uma concessão”, explica Miguel Pedro Cardoso, do Incra. O reconhecimento como área de comunidade quilombola permite, apenas, que
as famílias ocupem as terras, sem permissão para vendê-las. O quilombo luta também em outra frente, de ação por usucapião (posse de bens habitados durante certo período). Correndo na Justiça desde os anos de 1970, obteve ganho de causa em 2003, em primeira instância, mas perdeu em 2005 em segunda, apesar do amparo legal concedido pelo decreto 4.887. “A titularidade da terra representa o reconhecimento da cidadania”, defende o vereador Reimont (PT), parceiro da comunidade que ajudou a intermediar as negociações. Assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2003, o decreto 4.887, que regulamenta a demarcação de terras quilombolas, sofre acusação de inconstitucionalidade no Supremo Tribu-
nal Federal (STF) pelo DEM. “A contestação daria um reverso tremendo na vida dos quilombolas”, lamenta Luiz Sacopã. O partido questiona pontos como o critério de identificação dos quilombos e a autoatribuição. O movimento quilombola também defende o respeito pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito de comunidades tradicionais. A Convenção foi assinada pelo governo federal e ratificada pelo Congresso. A Constituição de 1988 também iniciou, timidamente ou não, o reconhecimento de direitos de comunidades tradicionais. “É um marco jurídico, mas também um marco na orientação das políticas públicas voltadas às populações minoritárias que compõem o país”, afirma Fábio. Mais da metade das 1.087 comunidades já certificadas como quilombolas pela Fundação Cultural Palmares estão com processos abertos, aguardando titulação. (LU) Maurício Scerni
Localizado em frente à Lagoa Rodrigo de Freitas, Sacopã é considerado o primeiro quilombo urbano do Brasil
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Com Lula, UNE realiza congresso MOVIMENTO ESTUDANTIL PCdoB mantém hegemonia na entidade e rebate críticas da imprensa Valter Campanato/ABr
Renato Godoy de Toledo da Redação NO 51º CONGRESSO da União Nacional dos Estudantes (Conune), os 3 mil representantes discentes confirmaram a vitória da União da Juventude Socialista (UJS), ligada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que conseguiu manter sua hegemonia no comando da entidade. Com a eleição de Augusto Chagas, 27 anos, estudante de Sistemas de Informação da USP, o encontro realizado em Brasília dá continuidade a uma série – iniciada em 1991 – de gestões comandadas por militantes do partido. A chapa vencedora, “Avançar nas mudanças”, conta com partidos de esquerda da base do governo, como o PCdoB, PT e PSB, e outros como o PMDB e o PPS. Segundo a contagem dos votos, o grupo vitorioso obteve apoio de 72% dos participantes do congresso. De acordo com a UNE, os três mil delegados presentes representaram 92% do total das faculdades brasileiras. Assim, cerca de 4,5 milhões de estudantes participaram indiretamente do processo.
A principal bandeira educacional defendida pelos vencedores do congresso é a reforma universitária Bandeiras A principal bandeira educacional defendida pelos vencedores do congresso é a reforma universitária. Nessa reforma estariam inclusas cláusulas como a autonomia dos
Cerca de 3 mil delegados participaram do 51º Conune, representando 92% das faculdades do país
estudantes nas universidades particulares, a proibição da participação do capital estrangeiro no sistema educacional e um auxílio estudantil para alunos pobres. “Essa pauta é muito importante. Mesmo compreendendo que tivemos avanço no ultimo período, a democratização da universidade ainda não está garantida. Só conseguiremos consolidar isso com uma reforma, e pretendemos disputar essa nova legislação”, afirma Augusto Chagas, presidente eleito da entidade. Além das questões educacionais, a UNE também deliberou o engajamento em causas mais amplas, como a defesa do meio ambiente, a luta pela saída da governa-
O novo presidente da UNE diz que, apesar da relação de parceria, a entidade não deixa de fazer críticas ao governo em determinados temas. “Nunca nos furtamos a criticar políticas do governo” dora gaúcha Yeda Crusius (PSDB-RS) e o fortalecimento da campanha “O petróleo tem que ser nosso”. Lula ovacionado O evento, que ocorreu entre 15 e 19 de julho, foi o primeiro congresso da entidade que contou com a participação de um presidente da Re-
pública. Luiz Inácio Lula da Silva discursou aos participantes do Conune no dia 16. Recebido aos gritos de “Lula, guerreiro do povo brasileiro”, o presidente defendeu os seus programas sociais e se emocionou ao comentar os efeitos do Luz para Todos. O mandatário também ouviu gritos em prol de sua candi-
data à sucessão, Dilma Roussef. “Quando não concordarem com alguma medida do governo, digam que não concordam, saiam às ruas, façam o que quiserem”, disse aos estudantes. A presença de Lula gerou críticas por parte da grande imprensa. A entidade foi taxada de governista e até a idade do novo presidente virou motivo para críticas de veículos da mídia. Chagas afirma que tais colocações não incomodam a atual direção da entidade, que pretende manter boa relação com o governo. “Nós não estamos preocupados com essas críticas, pois elas partem de um raciocínio tacanho de que o movimento social só ser-
ve pra ser do contra, pra falar ‘não’. Nós temos mantido uma relação de diálogo com o presidente Lula. Inclusive, essa relação é fomentada pelo próprio presidente, que nos convida para discutir projetos”, afirma o recémeleito. O dirigente diz que, apesar da relação de parceria, a UNE não deixa de fazer críticas ao governo em determinados temas. “Nunca nos furtamos a criticar políticas do governo. Chamamos o boicote ao Enad [exame de avaliação do ensino superior] e afirmamos que o ministro da Educação estava sendo conivente com os empresários do setor privado. Exigimos a demissão do presidente do Banco Central por conta de sua política”, relata. Chagas afirma que, até o momento, a postura da entidade junto ao governo tem sido positiva. “O diálogo nunca foi comprometido e hoje podemos celebrar conquistas. Conquistamos o Prouni e a ampliação do acesso à universidade pública”, defende. Nova sede A gestão de Chagas frente à entidade durará até 2011. Até lá, a gestão espera ter reconstruído sua sede no Rio de Janeiro, no histórico terreno da Rua da Praia do Flamengo, 132. Na luta antifascista, os estudantes ocuparam o prédio em 1942, então controlado pelo Clube Germânia, reduto da ultradireita. Em 1964, o edifício foi incendiado por entusiastas do golpe militar. Em 2007, os estudantes ocuparam o terreno e ganharam na Justiça a sua posse. Em 2009, o presidente Lula reconheceu que o Estado brasileiro foi o culpado pelo incêndio do prédio em 1964. Agora, a construção da nova sede, que tem projeto do arquiteto Oscar Niemeyer, depende apenas de questões financeiras da entidade.
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Em crise, estudantes só se articulam em pautas efêmeras Thomas Schlemmermeyer/CC
ENTREVISTA Especialista do tema aborda conflitos históricos e políticos do movimento estudantil brasileiro
Brasil de Fato – Atualmente, você acredita que ocorre um processo de reorganização política e ideológica do movimento estudantil? Sobretudo após as ocupações das reitorias em 2007?
Carlos Menegozzo – Sou cético em relação ao que se tem chamado de “novo movimento estudantil”. As ocupações de 2007 e 2008 reforçam uma tendência histórica do movimento nas últimas décadas, em que há uma crise prolongada, pontuada por ações de protesto tão explosivas quanto efêmeras. Esse processo se dá sobre uma base objetiva que remonta à reforma universitária de 1968, quando as instituições se fragmentaram, dividindo também o movimento. Cada universidade ou faculdade têm perfil e movimento próprios, enquanto, nos cursos, as turmas se diluem com o sistema de matrícula por créditos. Os movimentos explosivos e efêmeros emergem quando, apesar de uma crise prolongada e da dedicação militante, a diversidade de experiências estudantis fragmentadas se articula circunstancialmente em torno de uma pauta comum. Foi isso que ocorreu em 2007: o movimento se tornou coeso em torno das ocupações, tomadas como forma de protesto. O mesmo se deu no “Fora Collor” com a questão da “ética na política”. Daí meu ceticismo em relação à ideia de um “novo movimento estudantil”.
O movimento já foi mais forte e politizado, e isto não é um mito O que muda na organização do movimento estudantil no Brasil a partir do acesso de um número maior de jovens no ensino superior, sobretudo nas universidades privadas? A tendência da UNE, hoje, é debater mais com esses estudantes?
A ampliação do ensino superior não é uma novidade. Historicamente, me parece que está associada a um incremento da atividade política na universidade. Foi assim nas reformas de 1870 e 1940-1960, por exemplo. Mas há outros fatores que determinam o protesto estudantil e, por essa razão, uma coisa não leva à outra necessariamente. Esse é caso dos anos de 1980 e posteriores. Quanto às instituições particulares, também não são novidade. Não vejo sua ampliação como uma mudança substantiva em termos
Avanço neoliberal
A luta contra os direitos dos trabalhadores, pela desregulação de setores com algum controle social e em defesa do livre mercado, como manda o figurino neoliberal, continua forte na mídia empresarial. Artigo da revista Consultor Jurídico combate a redução da jornada de trabalho com a seguinte argumentação: “Quanto mais tivermos leis estatais, mais tivermos um direito inflexível alheio à realidade social e econômica, como a PEC 231, mais geraremos empregos em outras partes do mundo. Isso é globalização”.
Unidade capitalista
Porta-voz dos grandes frigoríficos exportadores de carne, o economista Roberto Giannetti da Fonseca elogiou, em artigo na Folha de S. Paulo, o empenho das senadoras Ideli Salvati (PT-SC) e Lucia Vania (PSDB-GO) pela aprovação da MP 460 no Senado. A tal medida anistia antiga dívida tributária das empresas do setor com a União e os estados. Mais um presentão dos cofres públicos ao empresariado!
Eduardo Sales de Lima da Redação OCUPAÇÕES, GREVES, fragmentação política. Nos últimos anos, temas como esses pautaram os debates em torno do movimento estudantil brasileiro. Em entrevista, o sociólogo Carlos Menegozzo, do Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo, afirma que o movimento estudantil enfrenta “uma crise prolongada, pontuada por ações de protesto tão explosivas quanto efêmeras”. Mais. Ele comenta as novas perspectivas de organização da União Nacional dos Estudantes (UNE) diante da criação do Programa Universidade para Todos (Prouni). A reforma universitária, segundo ele, é um dos principais elementos para que a mobilização dentro do movimento estudantil atinja um número maior de pessoas.
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Realidade brasileira
Após a Justiça Federal aceitar nova denúncia contra o banqueiro Daniel Dantas, do Banco Opportunity, a questão é pertinente: Afinal, quantas vezes um banqueiro precisa ser condenado, no Brasil, para ser colocado na cadeia? Dantas já foi condenado a 10 anos por tentativa de suborno; agora é acusado de formação de quadrilha, gestão fraudulenta, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. É pouco? USP ocupada em 2007: movimento explosivo e efêmero
de impacto sobre o movimento: reforçam a tendência à fragmentação intensificada desde a reforma de 1968. De todo modo vale o registro de que, nas particulares, por sua natureza e composição social, fatores como a pressão do mercado são maiores, o que pode afetar o nível geral da mobilização. Quanto à UNE, penso que sua intervenção compreende e organiza melhor a experiência e as reivindicações desses setores. Coisa que a porção minoritária da diretoria da entidade, apesar da maior radicalidade de seu programa, não consegue, e deveria, fazer. O movimento estudantil já foi mais combativo ou isso é um mito levado a cabo pelos saudosistas? Hoje o estudante sobrepõe as questões práticas às ideológicas?
O movimento já foi mais forte e politizado, e isto não é um mito. Obviamente há toda uma mitologia que se construiu em torno de episódios como o maio de 1968 e muitas vezes isso impede o movimento de perceber certos processos: quem acha que nas ações de 1968 todo mundo era socialista, por exemplo, não vai entender porque a participação diminuiu na universidade de lá para cá. Nesse contexto, a falta de participação acaba sendo explicada pela presença dos partidos ou pela “traição das direções”. Insuficientes, tais leituras ignoram variáveis como a dificuldade de inserção no mercado de trabalho, além das responsabilidades ou dependência do estudante em relação à família, que afetam a disponibilidade e a disposição para a militância. Paralelamente a isso, existem também formas de politização que o militante não compreende e, nesse caso, a aparente falta de interesse do estudante reflete também a incapacidade do movimento em falar a língua dele.
Mais que legítimos, portanto, os partidos são imprescindíveis A representatividade partidária dentro dos diretórios centrais de estudantes (DCEs) é legítima? Em que sentido ela pode atrapalhar a ação política dentro do espaço universitário?
A presença é legítima porque a entidade é expressão de um conflito de ideias que ocorre na sua base política. E os partidos são uma forma de organizar coletivamente essas ideias tão legítima quanto os grupos não-partidários. Muitos
acham que a culpa pela crise do movimento é dos partidos, mas essa leitura ignora o fato de que o movimento nunca foi tão forte e partidarizado quanto nos anos de 1960, nem tão fraco e despartidarizado quanto nos anos de 1980. Ou seja, a presença dos partidos não é necessariamente sinônimo de crise e desmobilização. Mas os partidos têm ajudado pouco: não têm cumprido a sua função, que é a de levar o movimento a se pensar no quadro geral – uma condição imprescindível para a superação de sua atual crise. Por essas razões, acho que falta ação partidária na universidade, apesar da presença dos partidos. Mais que legítimos, portanto, os partidos são imprescindíveis. O movimento estudantil está mais próximo dos movimentos sociais?
Não me parece haver uma mudança substantiva nesse sentido em relação às últimas décadas. A relação existe, mas na falta de projeto global de sociedade – e aí o problema é dos partidos, como disse antes – essa relação se reduz a uma somatória de reivindicações corporativas, o que efetivamente não transforma a sociedade. O quadro hoje está mais para “cada um na sua, mas com alguma coisa em comum” do que para uma ofensiva contra-hegemônica. Não basta estar lado a lado, é preciso haver um acordo em relação a um eixo estratégico. Quanto mais próximo estiver esse eixo do “elo fraco da cadeia”, então mais efetivo será o papel dos movimentos, inclusive do movimento estudantil, na luta geral. Mas, para isso, insisto, falta uma atuação partidária mais consistente.
Por não haver um impulso à formação política, o movimento estudantil, hoje, é mais reagente que agente? Parece que os estudantes uspianos só aderiram à greve por causa da presença da PM na USP.
Acho que há uma ligação entre esses dois elementos. Como disse anteriormente, a coesão circunstancial de experiências fragmentadas em torno de uma pauta comum é uma tendência do movimento estudantil nas últimas décadas. O movimento recente não escapa a essa dinâmica: nesse caso, foi a violência policial que detonou o mecanismo. Vejo a formação política como um dos fatores que podem ajudar a esquerda e o movimento a compreender historicamente essa dinâmica e a equacioná-la estrategicamente. Na falta de uma formulação estratégica, impossível sem formação política, a tendência é não pautarmos a conjuntura e a história, mas sermos pautados por elas. Por outro lado, é verdade que certas leituras que fazemos da história, a par-
tir das quais construímos nossa própria identidade, tornam a experiência e o estudo bastante seletivos, impedindo que se abram à compreensão do real. Nesses casos, doutrinária, a formação não resolve, mas agrava o problema da “reatividade”.
Na falta de uma formulação estratégica, impossível sem formação política, a tendência é não pautarmos a conjuntura e a história, mas sermos pautados por elas
Justiça decidida
Pela terceira vez consecutiva, de 2007 para cá, o ex-presidente do Peru, Alberto Fujimori, foi condenado pela Justiça de seu país: por abuso de poder, por violação de direitos humanos e, agora, por peculato – o desvio de 15 milhões de dólares dos cofres públicos. Ele já está cumprindo a pena de 25 anos de prisão. E olha que o Peru não é nenhum exemplo avançado de sociedade transparente e democrática!
Poder empresarial
Apesar das diferentes versões que circularam sobre a demissão da secretária da Receita Federal, Lina Maria Vieira, há duas semanas, já se sabe que o motivo principal tem mesmo a ver com a cobrança de imposto e multa dos grandes grupos empresariais nacionais e estrangeiros, os quais contam com lobby fortíssimo no primeiro escalão do governo, entre os quais o Gerdau, Votorantim, Ford e Santander.
Rebaixamento salarial
Qual o maior desafio para que o movimento estudantil seja massivo e atinja um número maior de estudantes?
Como num bolo, a forma é tão importante quanto a massa. Isso também vale para os movimentos: quer dizer, não basta a receita do protesto estar ali, pois sem expressão organizada não há movimento, mas ações espalhadas. Acho que nesse contexto a massificação se constrói em duas frentes. Primeiro, é preciso sensibilidade por parte do movimento para dialogar com as experiências e culturas estudantis que se multiplicam com a fragmentação da universidade, ampliando e dando o máximo de coesão ao movimento. Do contrário o movimento vira um gueto e é exatamente isso que tem acontecido nas últimas décadas. Segundo, é preciso superar a base objetiva, fragmentária, sobre a qual os movimentos existentes se dispersam. E, para isso, é preciso uma reforma universitária, que por sua vez depende não somente da luta estudantil, mas de uma mudança na correlação geral de forças. Insisto uma vez mais: faltam aos partidos capacidade de estabelecer uma estratégia que permita essa mudança. E é por essa razão que estou convicto de que a crise do movimento é, na verdade, uma crise da esquerda.
Quem é Carlos Henrique Metidieri Menegozzo, 28 anos, é sociólogo especialista em arquivologia do Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo. Dedica-se à história da esquerda e do movimento estudantil nos anos 1970 e 1980 e ao tratamento de arquivos relacionados a essas temáticas.
A Constituição assegura salário igual para trabalho igual. No entanto, o próprio Tribunal Superior do Trabalho acaba de quebrar a isonomia prevista na lei para permitir que dois trabalhadores que realizem o mesmo trabalho recebam salários diferentes. O TST autorizou a Caixa Econômica Federal a pagar menos aos seus funcionários de agências menores, gerando disparidade na própria empresa estatal.
Muro governista – 1
A passeata organizada pela UNE, dia 16, em Brasília, em cima da campanha “O petróleo tem que ser nosso” foi mais um lance na grande batalha que está sendo travada entre privatistas e estatistas. De um lado, a direita fustiga a Petrobras com a CPI e ataques pela mídia; de outro lado, os trabalhadores defendem a estatização de 100% da empresa; a questão de fundo é quem vai lucrar com a exploração do petróleo no pré-sal.
Muro governista – 2
Tratado como segredo de Estado, o novo marco regulatório para a exploração do pré-sal procura combinar a participação da Petrobras nas novas jazidas com a participação de capital privado nacional e estrangeiro, de maneira a contentar gregos e troianos. Nada de nacionalização ou de estatização. Mesmo porque boa parte do lucro da empresa atualmente vai para os fundos de investimentos estrangeiros.
Reflexão necessária
Frase do professor Gigi Roggero, da Universidade da Calábria, Itália, em entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos: “A crise é, de fato, um processo profundamente ambivalente, no qual convivem extraordinárias oportunidades e inquietantes riscos, instâncias de transformação e lutas sociais com crescentes formas de racismo e reação”.
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brasil
A Positivo Informática, segundo os próprios operários DENÚNCIA Trabalhadores revelam clima de pressão, preconceito e limitação de direitos no interior da fábrica de computadores Pedro Carrano de Curitiba (PR) SEGURAMENTE A publicidade e o marketing nada diriam. As apostilas, nas redes de ensino particulares e públicas que recebem o capital do Grupo Positivo, tampouco mencionariam tal prática. Mas, desde o início de 2008, operários da fábrica da Positivo Informática vêm denunciando, de forma dispersa, as condições de trabalho degradantes no interior da linha de produção, localizada na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), planta que possui cerca de 4,3 mil trabalhadores. O Grupo Positivo atua nos ramos de cursos pré-vestibulares, informática e educação. Para cada quatro computadores vendidos no Brasil, um foi produzido pela Positivo. Em 2007, as ações da empresa subiram 89,2%, resultado inverso ao poder de compra dos assalariados da empresa. Em 2007, a companhia teve lucros de R$ 254 milhões, valor 66,3% maior em comparação com o de 2006, apesar de, já em 2009, ter anunciado prejuízos de R$ 26 milhões e suposta queda na bolsa de valores. A Positivo é um grupo transnacional e tem relações com empresas em Israel, Inglaterra e EUA. As denúncias iniciaram quando dois operários, membros da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa), foram demitidos por justa causa. Seus nomes são Alonso e Jair. O primeiro trabalhava na montagem de notebooks, o outro na produção de CPUs. Ambos comentam que passaram a reivindicar direitos, nos espaços de reunião mensal que a própria Positivo abria para os operários. Espaços que hoje não existem mais. Antes disso, as sugestões de Jair foram de caráter democrático e sugestivo para a empresa, como ele mesmo afirma: a mudança da catraca na entrada da fábrica, a equivalência de salários entre operários de diferentes setores, plano de saúde, cesta básica, transporte para os trabalhadores, política de saúde do trabalhador, entre outros pontos. Porém, a empresa, a partir de então, ofereceu a política de isolamento de lideranças, além de intimidação no interior da empresa por parte dos seguranças particulares. O Grupo, que se orgulha de não demitir em meio a este período de crise, lança mão do assédio moral para manter os índices de produtividade. Os dois operários contam que sofreram perseguição dentro e fora dos muros da fábrica de computadores. “A
partir do momento em que eu entrei na Cipa as coisas mudaram, com cobranças sem motivo, por eu estar reivindicando direitos […]. Depois fomos abordados por carros de placa fria e coagidos pelos seguranças dentro da empresa, que entravam junto até no banheiro”, denuncia Jair. A insatisfação desaguou em um ato em frente à fábrica, ainda em janeiro de 2008, com o apoio da Central Única dos Trabalhadores (CUT). À época, por conta da atividade, os operários não puderam deixar a planta produtiva após a troca de turno. Entre outras críticas elencadas no ato, estão a pressão psicológica por parte dos supervisores e líderes de setor, devido ao regime de trabalho pautado pelo cumprimento de metas diárias. Hoje, a situação de Jair continua sem solução, um ano após a demissão. “Não dei baixa da carteira de trabalho, estou sem meus papéis, não tenho como dar entrada em outra fábrica e não estou conseguindo trabalho há seis meses”, lamenta.
Jair denuncia a aparição de coliformes na água e alimentação dos trabalhadores da Positivo Sem acesso a direitos Na saída da unidade da Positivo, uma operária comenta que esteve na mesma linha de produção de Jair, que realizou as denúncias contra a empresa. Ela confirma a falta de democracia da empresa nas reuniões, o preconceito racial do supervisor do seu setor, a intensificação da produção e a diferenciação entre os trabalhadores de cada módulo, o que acarreta injustiças. “Assim que sair da empresa vou buscar processar pela correção salarial”, avisa. Alguns trabalhadores mostraram-se indiferentes à situação de exploração. Situação que Jair e outros operários analisam como resultado da atuação do sindicato de acordo com os interesses patronais. O sindicato da categoria (Seletroar) não está filiado a nenhuma central sindical e não realiza campanhas salariais. O medo da demissão é outro fator importante que imobiliza os operários neste momento, de acordo com as fontes ouvidas pela reportagem. Incidentes foram ocultados em nome da manutenção dos índices de produtividade. Jair denuncia a aparição de coliformes na água e alimentação dos trabalhadores da Positivo. Fato confirmado por outro trabalhador, porém silenciado pela empresa. “Mais da metade da fábrica ficou com diarreia e vômito, foi chamada a ambulância, mas não deixaram parar a produção”, denuncia Jair. Este ano, ocorreu uma morte em local de trabalho que, da mesma forma, foi silenciada, segundo relatos de trabalhadores.
Gama
O grupo, que se orgulha de não demitir em meio a este período de crise, lança mão do assédio moral para manter os índices de produtividade
Cumprimento de metas, uma forma de pressão Empresa adota medidas para dividir e gerar desconfiança entre os trabalhadores Reprodução
de Curitiba (PR) “Eu imagino o que te denunciaram e tenho certeza de que é verdade”, comenta uma operária, já no ponto de ônibus, ainda com o uniforme laranja da empresa, a caminho de casa. São 2 horas da tarde e o primeiro turno da Positivo Informática acaba de terminar. Ela preferiu não falar muito, com medo de que algum supervisor ou líder de setor estivesse por perto, no ponto de ônibus. Um dos motivos de indignação no interior da Positivo é a divisão de operários da linha de produção em três níveis (operador um, dois e três), uma vez que a mesma atividade é realizada por todos. Trata-se de uma tática das empresas que colabora para a divisão e desconfiança entre os trabalhadores. No ônibus que conduz da empresa ao centro de Curitiba, uma operária reclama da colega, que não atinge sequer a metade da sua produção. A questão das metas é outro entrave para os trabalhadores. Maria, ex-operária da Positivo, comenta que um dos setores que sofre maior exploração, para atingir as metas e dar conta dos pedidos, é o responsável por planificar os materiais para as linhas de produção. “A produção não pode parar. Em casos de pedidos maiores, um operário consegue descansar cinco minutos, mas quando precisa organizar vários lotes de pedidos, passa noites inteiras sem ir ao banheiro”, comenta Maria – referindo-se ao antigo turno da madrugada (22 horas às 6 da manhã), que pode ser retomado pela Positivo. A meta de cerca de 30 computadores por dia, no setor de montagem de computadores, revela-se uma impossibilidade na prática, de acordo com os operários. Trata-se da oportunidade para a gerência e a supervisão da empresa fazerem pressão psicológica. “Existem as metas, e o trabalhador de montagem pode ser bom, mas os componentes às vezes vêm com a fonte estragada, é preciso desmanchar a máquina. O su-
Trabalhadores reclamam da divisão da linha de produção em três níveis
porte demora, se cinco máquinas estragarem em um dia, você perdeu a jornada. Os trabalhadores ficam sujeitos a pressões verbais. O material também é cortante, os gabinetes são metálicos e afiados. Muitas vezes os operários não testam as máquinas para poder cumprir as metas”, denuncia Maria. De acordo com operário da empresa com acesso ao setor de vendas, apenas as encomendas de uma rede de vendas como a Casas Bahia representa um valor de R$ 8 milhões de faturamento diário, sendo que seis a sete caminhões fazem o trajeto, durante os três turnos. Neste sentido, trabalhadores tam-
bém questionam a falta de acesso à informação e controle sobre a produção, apesar das cobranças da empresa por melhores índices de produção. Em meio à crise No cotidiano silencioso do interior da fábrica, outras questões deram espaço para a indignação. De acordo com o relato de Maria, o não-recebimento da participação nos lucros e resultados (PLR), no final de 2008, gerou revolta, quando a direção da empresa justificou que os trabalhadores “não estavam cumprindo metas”, apesar de o número de faltas ser baixo e a produtividade, alta ao longo do ano, como relata Maria.
No mesmo período, a fábrica trabalhava com o revezamento em três turnos, mas eliminou o turno da madrugada a partir da justificativa da crise, o que gerou insatisfação em muitos trabalhadores, uma vez que não poderiam seguir noutro turno. A Positivo, por sua vez, não demitiu aqueles que o solicitaram. “O pessoal se revoltou muito com o não-pagamento da PLR, sentaram e decidiram não trabalhar. Isso durante uma semana”, comenta. De acordo com Maria, o final de 2008 foi o pior período para os trabalhadores, devido ao discurso da crise econômica, uma justificativa para a pressão no interior da linha de produção. (PC)
As reivindicações dos trabalhadores ✓ Reposição salarial; ✓ Correção da PLR; ✓ Auxílio-alimentação; ✓ Inclusão digital para facilitar o acesso dos funcionários à compra de computadores;
✓ Convênio médico: aumento de 3 para 10 consultas anuais sem custo, e R$ 5,00 para consultas adicionais dos operadores 1, 2 e 3;
✓ Criação e implantação de Plano de Cargos e Salários (PCS), com acompanhamento da comissão de fábrica;
✓ Instalação de ambulatório no interior da fábrica, facilitando o acesso e
atendimento aos funcionários, bem como a contratação de um médico de plantão;
✓ Alteração da jornada de trabalho para não haver a necessidade de turnos aos sábados.
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Manuel Zelaya, o retorno? GOLPE EM HONDURAS Movimentos sociais convocam uma paralisação nacional, última cartada para pressionar pelo regresso do presidente deposto a seu cargo Claudia Jardim enviada a Tegucigalpa (Honduras) NA TELEVISÃO NÃO se fala “golpe”, mas sim “crise política”. Os jornais tratam Roberto Micheletti como presidente legítimo e atacam a “intransigência de Manuel Zelaya”, mandatário eleito em 2005, por não aceitar sua deposição. O apoio do Congresso, Igreja Católica e empresários ao governo de fato continua intacto. Nas ruas, porém, o cenário muda. “Os golpistas pensam que estamos na década de 1980, mas o povo despertou, os tempos são outros, já não temos venda nos olhos e vamos até o fim”, afirma María Bejarano, em uma manifestação pró-Zelaya. No dia 21, as centrais sindicais e a Frente de Resistência Contra o Golpe convocaram uma greve nacional, que pode paralisar até 1 milhão de trabalhadores (a população hondurenha gira em torno de 7,5 milhões de habitantes). A mobilização pode ser vista como uma última cartada para preparar o regresso de Zelaya ao país e sua restituição à presidência do país. Para Israel Solinas, secretário-geral da Confederação Única de Trabalhadores de Honduras (Cuth), a paralisação busca chamar a atenção da comunidade internacional sobre a gravidade da crise. “Queremos mandar uma mensagem à OEA [Organização dos Estados Americanos] e ao governo dos EUA, porque é necessário que tomem medidas contundentes que afetem esse governo. Caso
contrário, não entregarão o poder e não sabemos o que pode acontecer”, afirma. O isolamento do governo de turno em Honduras aumenta a cada dia. A União Europeia decidiu incrementar a pressão contra Micheletti ao cancelar o envio de 92 milhões de dólares previstos em um acordo de cooperação. Logo depois, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial suspenderam os empréstimos de cerca de 200 milhões de dólares estimados para este ano. Medida mais importante, no entanto, continua nas mãos do governo dos Estados Unidos, que até o fechamento desta edição (dia 21), não havia adotado nenhuma sanção econômica contra o governo de fato. Retorno E é sob este clima que o presidente constitucional de Honduras pretende regressar ao país no dia 24. Zelaya, que corre contra o tempo, anunciou que deverá entrar por uma das fronteiras do país, onde será recebido por uma caravana de simpatizantes. É provável que ele entre pelo lado nicaraguense, onde, nos últimos dias, tem contado com o apoio do presidente deste país, Daniel Ortega. Até o fechamento desta edição, não estava claro se Zelaya permaneceria na fronteira, para evitar o enfrentamento com as Forças Armadas (sob controle dos golpistas) ou se arriscaria a entrar, ainda sob o risco de ser preso. “Apesar da mobilização permanente da população, a situação é complicada, e cada dia que passa as possibilidades de que Zelaya recupe-
re o poder diminuem”, afirma uma fonte ligada ao governo deposto. A postura do governo interino em Honduras é “indeclinável”, reiterou o presidente de fato, Roberto Micheletti, ao rejeitar a pressão que tem sofrido da comunidade internacional. Para tentar revertê-la em uma reunião com empresários e setores da sociedade civil, Micheletti pediu que fossem realizadas mobilizações a seu favor. “Façam as correspondentes manifestações para mostrar ao mundo que estamos unidos em um só bloco contra qualquer imposição, de qualquer país do mundo. Eles têm que nos respeitar”, afirmou.
Para Israel Solinas, secretário-geral da Confederação Única de Trabalhadores de Honduras (Cuth), a paralisação busca chamar a atenção da comunidade internacional sobre a gravidade da crise Diante desse cenário, e após o fracasso das negociações na Costa Rica, que teve sua segunda rodada nos dias 18 e 19, Zelaya convocou seus simpatizantes a prepararem a resistência e seu retorno ao país. Ape-
Em Tegucigalpa, hondurenhos realizam manifestação pró-Zelaya: risco de guerra civil
sar do clima pacífico das manifestações a seu favor, o presidente deposto não descartou a possibilidade de que a crise hondurenha possa culminar em uma guerra civil. “Qualquer pessoa que esteja em Honduras pode ver que já começou esse enfrentamento”, afirmou, em uma entrevista ao jornal argentino La Nación. Tensão No dia 20, durante protestos realizados em frente ao Congresso Nacional, uma hondurenha abordou, ofegante, a reportagem do Brasil de Fato: “Estão torturando uns meninos na esquina, corre, corre”. Foi em vão. Segundos depois, os jovens já haviam sido levados por um carro do Exér-
cito. A maioria dos manifestantes que esbravejavam contra os congressistas que referendaram o golpe não soube da detenção dos jovens. Francisco Ríos, do Bloque Popular, organização que agrega forças da esquerda hondurenha, explica que, devido à pressão internacional, o governo de Micheletti tem evitado dar demonstrações de força. “Não há tanques de guerra nas ruas ou militarização exacerbada, como se pode esperar em um Estado de exceção em que vigora o toque de recolher. No entanto, os mecanismos de repressão estão aí, prontos para serem ativados quando necessário”, alerta. De acordo com a organização Comitê de Familiares de Deti-
dos e Desaparecidos, desde a deposição de Zelaya, foram realizadas mais de 1.500 detenções forçadas, e ao menos três pessoas foram mortas. O golpe de Estado em Honduras tem sido visto como um precedente preocupante para a América Latina, cuja história foi marcada por quarteladas. “O golpe aqui, além de mostrar a incapacidade da classe política dirigente em solucionar seus conflitos, é também um alerta para a região e os seus diferentes governos de esquerda”, afirma Ríos. “Mais do que restituir Zelaya à presidência, a reação da comunidade internacional busca evitar que esse golpe se torne um precedente para saídas similares a outros conflitos”, conclui.
“A luta por mudanças econômicas, sociais e políticas neste país é irreversível” Segundo um dos líderes da resistência ao golpe em Honduras, aconteça o que acontecer, a convocação de uma Assembleia Constituinte permanecerá como pauta fundamental de luta dos movimentos da enviada a Tegucigalpa (Honduras) Depois de dias de manifestações, a restituição do presidente hondurenho, Manuel Zelaya, deposto por um golpe de Estado no dia 28 de junho, já não depende da resistência de seus simpatizantes. A pressão da comunidade internacional, especialmente dos Estados Unidos, pode desequilibrar a balança, que até agora tem favorecido o governo de fato, na opinião de Rafael Alegría, dirigente da Via Campesina Internacional e um dos principais protagonistas da Frente de Resistência ao Golpe. Ele considera que a aplicação de sanções severas por parte dos EUA, como um bloqueio econômico, podem alterar o panorama político do país, cujas ruas continuam tomadas por manifestantes que exigem o regresso do presidente constitucional. Leia, a seguir, trechos da entrevista de Alegría ao Brasil de Fato. Brasil de Fato – O senhor participou da segunda rodada de negociações na Costa Rica, nos dias 18 e 19, que acabaram fracassando. Entre as exigências, estava a restituição de Manuel Zelaya ao poder e a formação de um governo de coalizão. O que aconteceu na mesa de negociações?
Rafael Alegría – Esse diálogo não chegou a começar. A intransigência dos representantes do governo golpista impediu a discussão do primeiro ponto, que era a restituição do presidente Manuel Zelaya e da institucionalidade no país. Em sua declaração final, a comissão de Micheletti [Roberto Micheletti, presidente de fato] expressou que as negociações eram uma forma de ingerência. Portanto, os demais pontos da pauta sequer foram debatidos. A única solução para que esse diálogo funcionasse seria tomar medidas de pressão contra o regime golpista, e isso não ocorreu até agora. Manuel Zelaya convocou seus simpatizantes à resistência e anunciou que regressaria a Honduras. Quais são as circunstâncias e os riscos possíveis desse regresso? A resistência continua e não há dúvida de que nesse regresso há riscos. As Forças Armadas podem disparar. Já fizeram isso. Mataram um jovem e reprimiram duramente a grande manifestação [ocorrida no dia 5, quando um avião que transportava Zelaya tentou pousar no aeroporto de Tegucigalpa]. O chefe do Estado Maior Conjunto tinha o mandado para assassinar. O plano era de assassinar, e poderiam fazê-lo dessa vez também. O presidente está decidido a tudo, definitivamente. Por outro lado, os mi-
mam medidas. Não queremos intervenção armada de nenhuma maneira. Esse problema é político e queremos resolvê-lo da maneira mais pacífica e tranquila. Nós, os hondurenhos, obviamente contando com solidariedade internacional. Não queremos mais sacrifícios para nosso povo, mas definitivamente não estamos dispostos a cruzar os braços. Continuaremos em resistência. Não sabemos onde isso tudo poderá chegar.
acesso à terra. Aumentou o salário mínimo. Zelaya foi criando um clima de maior participação cidadã e ele está convencido de que é necessária uma nova Constituição, mais democrática, popular e mais representativa. Isso gerou o ódio dessa burguesia atrasada que temos no país. A gota d’água foi a assinatura do acordo de integração à Alba [Alternativa Bolivariana para as Américas]. Depois disso, começaram a gritar que Zelaya está se aproximando do chavismo, do comunismo. Nada disso. Ele quis equilibrar as desigualdades sociais. Melhor salário aos operários, terra aos camponeses... e está convencido de que o modelo econômico fracassou. Ele acredita que há que construir um modelo econômico mais justo, por isso a Constituinte. Isso desencadeou o golpe.
Roberto Micheletti e o Congresso argumentam que Zelaya pretendia modificar a Constituição de olho na reeleição. Quais são os fatores que desencadearam o golpe? Não tem nenhuma relação com a reeleição. Isso é parte da campanha de desinformação. A comissão de negociadores de Michelleti chegou a argumentar na Costa Rica que, quando deram o golpe, Zelaya já não era presidente da República. Estranho, porque no sábado à noite [dia 27 de junho], ele estava reunido com o corpo diplomático dos EUA e com delegações internacionais de observadores da consulta popular. Zelaya rompeu com os latifundiários e com a burguesia. Ele entendeu que era necessário dar uma virada no governo a favor dos pobres, ao não privatizar os serviços públicos, ao permitir um clima a partir do qual se retomou a necessidade de que os camponeses tenham
A Frente Nacional de Resistência continuará apostando na realização de uma Assembleia Constituinte ou isso depende do regresso de Manuel Zelaya à presidência? A ânsia por mudanças do nosso povo é evidente e, aconteça o que acontecer, a luta por mudanças econômicas, sociais e políticas neste país é irreversível. Nem empresários, Micheletti ou as Forças Armadas poderão deter esse desejo de mudanças. A Constituinte não se negocia. A Assembleia Constituinte e uma nova Constituição são fundamentais, e eu tenho a esperança que alcançaremos isso. Se não for neste processo imediato, será a bandeira de luta dos próximos dois anos. Toda a mudança passa por uma Constituinte. Este é o temor dos grupos fascistas golpistas que não querem abrir espaços de participação cidadã. (CJ)
litares e os golpistas também devem ter cuidado, porque, se disparam os fuzis, não sei como o povo pode responder diante de uma situação assim. Poderia desencadear uma situação de violência generalizada, e não queremos isso. Levamos 25 dias [até 21 de junho] de manifestações pacíficas.
“Os militares e os golpistas também devem ter cuidado, porque, se disparam os fuzis, não sei como o povo pode responder diante de uma situação assim”
Micheletti conta com o apoio do Congresso, das Forças Armadas, de empresários e da Igreja Católica. Há a possibilidade real de que Zelaya retome a presidência? Para que nossa pátria volte à normalidade, à tranquilidade, para que realizemos as eleições previstas para novembro, o ideal seria a restituição do presidente Zelaya e o chamado a um diálogo nacional, de concertação, para avançarmos. Do contrário, estaremos aniquilados. A União Europeia já cortou a cooperação [de 92 milhões de dólares] com Honduras. Hillary Clinton [secretária de Estado dos Estados Unidos] ameaçou Micheletti com medidas que esperamos que sejam fortes. Isso significa que a crise irá se agudizar. No entanto, sabemos que a cada dia as possi-
bilidades de restituição do governo [de Zelaya] se dificultam mais. Medidas enérgicas de parte da comunidade internacional, em especial do governo dos Estados Unidos, poderiam modificar esse panorama? Sem dúvida. A América Central viveu ligada e dependente por muitos anos da política norte-americana. Eles tiveram controle político absoluto desses governos nos últimos anos, e em Honduras continuam tendo. Dessa maneira, nós consideramos que, se os EUA assumissem uma posição mais firme, mais categórica, mais contundente, esses senhores não teriam outra alternativa senão entregar o poder. Mas, até agora, são apenas declarações, algumas conversas, mas não toReprodução
Além de protestos no país, golpistas sofrerão pressão internacional
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A luta atual pelo sandinismo Reprodução
MEMÓRIA 30 anos após a vitória da revolução na Nicarágua, combatentes da época buscam resgatar os valores sandinistas Arturo Hartmann de São Paulo (SP) “19 DE JULHO na Nicarágua é… Nunca mais ditaduras! Este ano é data de comemorarmos os 30 anos do triunfo revolucionário na Nicarágua. (...) A partir do RESGATE do sandinismo, queremos que esta data não seja apenas para comemorar o gesto de nosso heroico povo, e sim também para ratificar nosso compromisso – como sandinistas – da luta popular organizada, da resistência, da construção valente de uma sociedade superior, a partir dos valores e princípios que nos deram como herança Carlos Fonseca Amador, Augusto Nicolás Sandino, Arlen Siu, Luisa Amanda Espinoza, Germán Pomares e todos nossos heróis mártires caídos”. A autora das linhas acima, Mónica Augusta, é filha de Mónica Baltodano, revolucionária de 1979 e hoje deputada da Assembleia Legislativa da Nicarágua. Ela conclui assim: “acreditamos firmemente que essa tradição germinou em nossas terras e que não haverá caudilhismo, pactos ou tergiversações que possam arrancá-la de nosso povo”. Talvez refira-se à eleição de Daniel Ortega, nome que já consta em livros de história, à presidência de seu país, em 2006. Seus significados podem ser muitos, dependendo de quem constrói o discurso e reconstrói a história. O antigo líder da revolução de 1979 e presidente em grande parte dos 11 anos durante os quais oficialmente a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) comandou o país, voltou numa versão light, para não pegar pesado como seus maiores críticos. “Falso sandinismo”
Em 19 de julho, na cerimônia oficial do 30º aniversário da revolução que seria retratada por Cortázar (em seu Nicarágua tão violentamente doce) e ganharia sua referência pop com o The Clash (em seu álbum Sandinista!), nenhum de seus antigos companheiros posaria a seu lado. Em outubro de 2006, um mês antes
das eleições, o poeta Ernesto Cardenal, um dos que marchou pela revolução, escreveu o artigo “Sandinistas: não votem a favor do falso sandinismo”. Procurar um significado para o sandinismo hoje é difícil, mas ganhamos uma explicação satisfatória nas palavras de Dora María Téllez, uma das mais destacadas participantes daquele 1979. Ela deixou as fileiras da FSLN e hoje faz parte do Movimento Renovador Sandinista (MRS). Foi uma resposta daqueles que se opuseram à guinada que Daniel Ortega deu à direita do espectro político, o que incluiu, entre outras coisas, aliar-se com Arnoldo Alemán, presidente entre 1997 e 2002 que chegou a ser condenado por 20 anos de prisão, por lavagem de dinheiro e ativos provenientes de atividades ilícitas, fraude, peculato, malversação de fundos públicos, delito eleitoral e instigação para delinquir em prejuízo do Estado da Nicarágua. “O sandinismo é um movimento político amplo, com o qual nos identificamos todos. Já o orteguismo é uma facção que se apropriou da estrutura da Frente [e a direcionou] para os interesses do aparato de poder de Daniel Ortega. Não tem um programa, apenas um único fim: mantê-lo no poder”. Dora afirma que as políticas deste ano e meio de governo Ortega não diferem em nada do que faziam seus antecessores pós-revolução. Entre outras coisas, ele teria submetido os sindicatos, colocando-os à ordem dos, diz ela, “grandes empresários”, que por sua vez submeteram os trabalhadores a seus próprios interesses. Democracia
No atual contexto, enxergar o legado da Revolução Sandinista na sociedade nicaraguense é uma tarefa árdua. Hoje, é um país pobre, o 110º no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU de 2008, atrás de El Salvador (103º), Belize (80º), República Dominicana (79º) e Costa Rica (48º), para citar algum de seus vizinhos. A convulsionada Honduras está em 115º. Dora pode falar de dentro.
“Masaya território livre”, avisa pixação em casa durante a revolução de 1979
“A revolução inaugurou uma agenda e uma plataforma nas quais fermentaram os direitos humanos, o que não existia”, analisa Dora María Téllez
O que deu errado? de São Paulo (SP)
Para ela, a Nicarágua atual é produto dessa revolução, já que foram enxertados na sociedade do país um senso de democracia e de justiça social jamais visto, além de criar instituições duradouras, mudando o exército, a polícia, a propriedade da terra rural e as políticas sociais. “A revolução afetou as instituições, como a polícia, que agora tem um caráter nacional e não-golpista, e que não se mete nas questões políticas. Inaugurou também uma agenda e uma plataforma nas quais fermentaram os direitos humanos, o que não existia. Também assistimos a um processo de organização social amplíssimo na sociedade nicaraguense, de gestão com participação pública”. Já a professora Elizabeth Dore, da Universidade de Southamptom, Inglaterra, pode falar de fora. Ela dedicou grande parte de seus estudos à Nicarágua e é autora de Myths of Modernity: Peonage and Pa-
triarchy in Nicaragua. Dore, que teve grande contato com populações camponesas do país, diz que a atitude frente às conquistas da revolução chegam a ser cínicas. Ela faz questão, antes de dar a resposta, de deixar claro que respeita e tem profunda admiração por Dora Téllez, mas prepara o terreno para uma outra visão. “No campo, talvez poderia esperar-se que houvesse organizações de base preocupadas com as demandas locais, mas não vi isso. Minha visão é a de que a revolução não deixou um legado progressista. Líderes camponeses e intelectuais orgânicos com os quais tive contato têm uma atitude até mesmo cínica. Dizem que deram a vida por uma mudança, mas, mesmo após a derrubada de Somoza [Anastasio Somoza, ditador derrubado pela revolução], permaneceram em luta pela distribuição de terras e veem que muito pouco foi conquistado”.
O que teria dado errado com o sandinismo, para que fosse derrotado em 1990 nas eleições feitas sob pressão dos Estados Unidos? Elizabeth Dore, professora da Universidade de Southamptom, Inglaterra, explica. Para ela, além de equívocos iniciais, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) fez péssimos cálculos sociais quanto à divisão da terra a camponeses. “Quando subiram ao poder, não distribuíram terra aos camponeses, transformaram os grandes terrenos de Somoza em fazendas do Estado. O argumento era de que fazer a distribuição era um passo atrás. Diziam que a população rural na Nicarágua era, em sua maioria, de proletários rurais, que não demandavam terra”, lembra. De acordo com a professora, a política oficial do Estado seria a de melhorar salários e condições de trabalho. No entanto, em 1981, depois que se anunciou a opção pela não-
Divulgação
O último sonho revolucionário Cineasta espanhol resgata a utopia gerada pela causa sandinista de 1979 de São Paulo (SP) A frase “Nicarágua: o último sonho revolucionário” faz parte de umas das ideias de Joan López Lloret, diretor do filme Utopia 79, documentário de 2006 (exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2007) que refaz o caminho do que seria esse último sopro revolucionário do século 20. Lloret é espanhol, mas viveu desde muito cedo a realidade política efervescente da América Latina. Na década de 1970, quando ainda era criança, conviveu com exilados de todo o continente. “Amigos de minha mãe colaboraram na revolução. Quando tinha 10 anos, eles contavam as histórias do que havia acontecido. O projeto foi um pouco eu resumir o que eu havia vivido na minha casa, um ambiente com gente de extrema-esquerda, com gente exilada do Chile e da Argentina”. Diário
Para o espanhol, reviver a Revolução Sandinista era falar da “utopia, da esperança
de mudar o mundo de uma geração na Nicarágua. Isso ocorreu em toda a América Latina, no Chile de Allende, no Brasil, na Europa, com o maio de 68. Acho que a última projeção dessa ilusão foi a Revolução Sandinista na Nicarágua”. Lloret ficou sabendo, no final de 2005, da existência de um diário de um dos amigos da sua mãe que guardava registros dos momentos iniciais da revolução na Nicarágua. E, a partir dessa ideia, cria um triângulo interessante, representativo do que foi a luta, tanto em seus aspectos específicos quanto naqueles mais gerais. O elo é feito entre a Nicarágua, a Espanha e os Estados Unidos. O primeiro vértice é óbvio e ao qual o diretor mais dedica o olhar: o cenário da revolução. O segundo entra na equação por ser simbólico. Espanhóis da esquerda não tiveram dúvidas. Ao primeiro sinal de que algo ocorria no país centro-americano, acorreram a ele em solidariedade à causa. “Há sem dúvida uma vinculação com Barcelona, que em 1937 viu a única revolução
anarquista posta em prática. E esta é a relação com a utopia, o que nós na Guerra Civil fizemos aqui. Não foi por causalidade que muita gente da Catalunha apoiou a revolução nos anos 1980. Aqui, as coisas estão impregnadas desse sentimento”. A geração seguinte
O terceiro elo são os Estados Unidos, mas com um enfoque diferente. Carlos Mejía Godoy é um dos grandes artistas da música popular nicaraguense. Destacou-se como um dos ativos membros da Revolução Sandinista e concorreu às eleições de 2006 como vice de Edmundo Jarquín, pelo mesmo Movimento Renovador Sandinista (MRS) de Dora Téllez. O pai de versos como Deteniendo las hordas criminales, a punta de corazón fuego y metralla, /cavando sudorosos el futuro, en las faldas de la patria também deu seu sobrenome a Camilo, que tomou o rumo dos Estados Unidos para estudar. “Para ganhar dinheiro, fez como muitos latino-americanos, entrou para as fileiras do exército dos Estados Unidos”, explica Lloret, que o entrevistou em Miami. Acabou tendo que lutar no Iraque. “Foi irônico, pois, se fosse outra época, acabaria in-
distribuição, houve manifestações em áreas rurais de várias cidades, pois os camponeses achavam que iriam ter a terra. “No fim, não tinham recursos para aumentar os salários e melhorar as condições, em grande parte porque os Estados Unidos estrangularam a revolução”. Assim, segundo ela, foise alimentando “muita raiva” no campo e a incompreensão de uma forte identidade indígena do lado Atlântico do país que queria autonomia. “Por causa do imperialismo dos Estados Unidos, as revoluções, especialmente nas Américas, não têm espaço para cometer erros. Mas o que acontece é que revoluções, por sua própria natureza, devem errar, pois são experimentos tremendamente idealistas, são explosões maravilhosas de experimento e de iniciativa. Com os Estados Unidos opondo-se a qualquer revolução, ou mesmo a uma mudança nacional, não há possibilidade para revolucionários cometerem erros”. (AH)
vadindo seu próprio país. Ele era uma pessoa boa, não tinha ideias conservadoras, mas simplesmente tem uma concepção individualista do mundo. Mas logo ele se dá conta e se recusa a servir, indo para a prisão. O filme repensa a revolução ao olhar para os filhos dos líderes sandinistas, o que me levou a uma geração com um pensamento mais individualista, diferente de sonhos mais comunitários”, diz. Memórias da luta
O que a Revolução Sandinista deixa de mais concreto são as memórias da luta, do que foi feito naquela Nicarágua. Ricardo Gebrim, membro do Movimento Consulta Popular, foi testemunha. Participou das brigadas do café em 1984 e 1985. “Houve um problema durante a revolução. Faltava mão-de-obra nas grandes fazendas para a colheita do café, já que os pequenos fazendeiros estavam mais preocupados com suas fazendas. Eles chamavam de batalha do café. A Juventude Sandinista organizava esses ciclos de voluntários que duravam cerca de três meses”. Gebrim ficava estacionado ao norte do país, onde estava grande parte das fazendas produtoras. Ali, a contra-revolução agia, vinda de Honduras. “Vi muitos
jovens nicaraguenses e mesmo internacionalistas morrerem ali”. Dora Téllez tem lembranças semelhantes. “Lembro de duas coisas. Uma, quando lutávamos contra o governo de Somoza, de companheiros que caíam mortos. Foi uma batalha muito custosa. Já na construção do governo revolucionário, tenho na memória a energia do povo nicara-
guense”. Gebrim citou algo semelhante. “Quando estávamos com tempo livre, construíamos escolas. Tínhamos a sensação de que ela seria destruída no outro dia pelos contras [como eram chamados os que lutavam contra a revolução], mas presenciei a energia que as pessoas colocavam naquilo, e mesmo o brilho nos olhos quando tinham que defendê-la”. (AH)
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américa latina
O chanceler de Israel vai a Buenos Aires: “mas não espalha não” Silvina Arrastia/CC
LIVRE COMÉRCIO Comitiva israelense tentará estabelecer um tratado com a Argentina; empresários e direita partidária do país preferem “esquecer” atentado à associação judia em 1994 Silvia Adoue de Buenos Aires (Argentina) O MINISTRO DAS Relações Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman, visitará a Argentina em 23 de julho, à frente de uma comitiva de 300 pessoas. Dentro do grupo, estarão 20 empresários que chegam a convite da União Industrial Argentina (UIA). O objetivo expresso é criar as bases para um tratado de livre comércio entre Israel e Argentina, como uma ponta de lança para acordos econômicos em grande escala na região. Inicialmente, a visita incluiria a participação do chanceler na comemoração dos 15 anos do atentado a bomba à sede da AMIA – associação assistencial da comunidade judia da Argentina – que resultou em 85 mortos e que ainda continua impune. Mas a gripe suína serviu como desculpa tanto para a DAIA, setor da direita judia do país, vinculada aos setores sionistas, suspender as comemorações, como para o governo de Israel reduzir a agenda da visita do seu ministro em Buenos Aires. “Vamos àquilo que interessa”: os acordos comerciais. Mas não é por economia ou por razões sanitárias que a direita sionista quer que este aniversário do atentado da AMIA passe despercebido. Há certas alianças estratégicas que lhe interessa preservar, e este é um momento sensível para a manutenção destas. Depois das últimas eleições parlamentares, a direita argentina – que já vinha se articulando desde o conflito pelas retenções móveis para a exportação de soja, uma queda de braço entre o governo de Cristina Kirchner e os exportadores – vem se fortalecendo.
O prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, é um dos articuladores dessa direita política que vem se configurando e sinaliza políticas públicas conservadoras Repressão O prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, é um dos articuladores dessa direita política que vem se configurando e sinaliza políticas públicas conservadoras desde a administração da cidade. Por esse motivo, é um dos alvos preferenciais dos movimentos populares. Para dispor com rapidez de uma força policial para reprimir manifestações, criou uma polícia metropolitana que incorpora quadros repressores exonerados das instituições policiais por sua atuação durante a ditadura militar. E colocou à frente dessa nova instituição Jorge “Fino” Palacios, acusado de ter encoberto, justamente, os responsáveis pelo atentado na AMIA há 15 anos. Isso está sendo questionado pelos movimentos populares e pela comunidade judia da Argentina, que quer o esclarecimento e a punição dos culpados.
Em 17 de maio, a DAIA organizou, junto com o prefeito Mauricio Macri, uma homenagem aos 61 anos de fundação do Estado de Israel. Durante essa comemoração, movimentos populares foram denunciar o massacre do povo palestino. Cinco militantes foram golpeados pelos grupos sionistas e depois presos pela polícia; e a polícia realizou batidas nas sedes das suas organizações, que resultaram na prisão de mais uma dezena de pessoas. Todos indiciados por “discriminação”, com a DAIA como denunciante.
Os militantes presos em suas sedes saíram da prisão depois de 53 dias de detenção, mas continuam os processos sobre os cinco detidos durante a manifestação contra a homenagem a Israel promovida por Macri e a DAIA Silêncio Os militantes presos em suas sedes saíram da prisão depois de 53 dias de detenção, mas continuam os processos sobre os cinco detidos durante a manifestação contra a homenagem a Israel promovida por Macri e a DAIA. Além disso, persiste a ordem de captura para Roberto Martino, que não estava presente durante o ato, mas é um dos dirigentes do Movimento Teresa Rodríguez (MTR), uma das organizações que participaram da panfletagem. A campanha pela liberdade dos presos contou com pronunciamentos inclusive de membros da comunidade judia que se opõem à política do Estado de Israel. “Levamos um panfleto de repúdio ao que o Estado de Israel está fazendo com o povo palestino”, disse Viviana Segovia, uma das detidas, “mas não conseguimos, porque fomos interceptados por pessoas vestidas à paisana que bateram na gente”. Osvaldo Vásquez, outro militante preso, explica os motivos: “Os meios de comunicação fizeram a sua parte demonizando as vítimas e nada disseram sobre o que realmente acontece no Estado de Israel. [E não falaram que] esses que se vitimizam [acusando os militantes de discriminação] são os que apoiam políticas que matam centenas de garotos e famílias indefesas, que constroem muros para que as pessoas não possam entrar nem sair, que bombardeiam hospitais e até a Cruz Vermelha”. Nesse contexto, os empresários não querem levantar muita poeira com a chegada do chanceler Avigdor Lieberman, para não estragar seus negócios. Também não interessa à direita política que está se rearticulando e tem compromissos com o atentado à AMIA. E nem os sionistas da DAIA querem que o tema venha à tona e estrague seus acordos com Mauricio Macri. Então: “Shshshsh”.
O prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, cumprimenta o embaixador de Israel, Daniel Gazit
INTERNACIONAL
Berlusconi, o machismo e o racismo ANÁLISE A opressão e a exploração de trabalhadores na Itália dão o tom de um governo abertamente antioperário, munido de uma ideologia reacionária, machista e racista Marina Fuser Uma sequência de escândalos, nas últimas semanas, colocou o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, de volta ao centro da cena midiática. Proprietário de uma das mais influentes emissoras televisivas do país, o milionário mandatário é pressionado a responder publicamente por sua conduta. Sua fama internacional já não ia muito bem quando cometeu a “indelicadeza” de se referir ao recém-eleito presidente estadunidense, Barack Obama, como “jovem, bonito e bronzeado”, num comentário abertamente racista. Em seguida, veio a ratificação do projeto de lei de segurança que considera a imigração irregular um crime. A lei, que permite inclusive a prisão dos imigrantes por até quatro anos, foi aprovada por 157 votos a favor, 124 contrários e 3 abstenções. Pouco depois, um escândalo envolvendo prostitutas e muito dinheiro em festas privadas com a presença de Berlusconi chocou o país, com a publicação de fotos e vídeos. A revelação foi confirmada por quatro prostitutas que alegam ter frequentado festas em seus palácios Grazioli e Villa Certosa. A opinião pública ficou chocada, numa reação em que não faltou uma alta dose de moralismo, mas essa não foi a primeira expressão da conduta machista de Berlusconi. Logo em sua primeira campanha ao governo, ele sugeriu a uma jovem trabalhadora precarizada que a melhor solução para melhorar sua qualidade de vida seria “encontrar um homem rico para se casar”. Agora, ao visitar a cidade de L’Aquila, atingida por um trágico terremoto, Berlusconi fez outro comentário infeliz. A intenção foi agradar o eleitorado feminino, mas o efeito foi exatamente o oposto. Num congresso de representantes da indústria farmacêutica, declarou-se inconformado com a ausência de mulheres cientistas no
evento e vociferou: “O que os senhores fariam sem as mulheres? São homossexuais? Da próxima vez, trarei-lhes algumas showgirls. Maiores de idade, claro”. Mulheres cientistas das universidades de Milão, Perúgia, Pádua e Ferrara protestaram contra o discurso “inaceitavelmente sexista” do primeiro-ministro. Cerca de 6.500 mulheres assinaram o chamado ao boicote que incitava a ausência de primeiras-damas à reunião de cúpula do G8 em L’Aquila, realizada entre 8 e 10 de julho.
“Saia-justa” Em abril de 2008, talvez o caso mais emblemático, uma declaração de Berlusconi acerca da onda de estupros no país soou como um trovão na opinião pública. Registravam-se, nos primeiros quatro meses do ano, mais de 60 casos de violência sexual em Roma. A maneira “berluscônica” de responder a esse cenário suscitou controvérsias: tropas nas ruas. Sobre isso, ele declarou: “não poderíamos recrutar uma força grande o suficiente para evitar este risco [de estupros]. Teríamos de ter tantos soldados
nas ruas quanto mulheres bonitas. Não acho que conseguiríamos”. No início de 2009, Berlusconi entrou numa “saia-justa”. O motivo foi seu comentário público dirigido à deputada Maria Carfagna, de que, “se não estivesse casado, casaria com ela imediatamente”. Essa foi apenas uma pérola entre outras tantas, mas, dias depois, eis que uma carta da primeira-dama Veronica Berlusconi perfilava na primeira página do jornal La Repubblica, acusando-o de ferir sua dignidade e exigindo uma retratação pública por conduta inadequada. A primeira-dama foi cercada de solidariedade pela opinião pública em geral, por grupos feministas e inclusive por alguns membros da Igreja, como o cardeal Ersilio Tonini. A opressão e a exploração de trabalhadores na Itália dão o tom de um governo abertamente antioperário, munido de uma ideologia reacionária, machista e racista. A política anti-imigração de Berlusconi coloca em relevo o tratamento que dedica aos estratos mais pauperizados e oprimidos da sociedade, atingindo grande parte da classe trabalhadora. Suas gafes infelizes e a sua conduta abertamente machista são apenas demonstrações da ideologia que está por trás da sua política, ao subordinar a mulher ao poderio quase medieval do seu senhor. Todo esse conservadorismo se faz sentir quando Berlusconi fez questão de deReprodução
Berlusconi: sequência de escândalos e gafes
fender uma emenda à Declaração dos Direitos Humanos para afirmar que “todo indivíduo tem direito à vida, da concepção à morte natural”. A intenção evidente era fazer retroceder a legislação civil na Itália, onde o aborto é legal – uma conquista do movimento feminista italiano entre as décadas de 1960 e 1970 que provocou uma diminuição significativa no número de abortos e pôs fim às clínicas clandestinas, segundo a constitucionalista italiana Lorenza Carlassare.
Mobilizações Os sucessivos escândalos envolvendo o primeiro-ministro, assim como a sua conduta abertamente antioperária, têm como pano de fundo a crise internacional do capitalismo e, por isso, exigem respostas contundentes. A opinião pública negativa frente à política reacionária do governo Berlusconi tem servido de estopim às mobilizações que vem se fermentando desde o último trimestre do ano passado. O despertar do movimento estudantil italiano em outubro não foi um ato isolado de rebeldia juvenil, como gosta de pintar a mídia. Os 15 milhões de trabalhadores que atualmente se situam abaixo do nível de pobreza têm retomado a tradição de lutas do movimento operário italiano, seguindo o exemplo dos empregados da Alitalia, dos imigrantes e “italianos de segunda geração”, secundaristas, universitários e professores que estão na vanguarda da nova onda de manifestações que incendeia o cenário italiano. Também as feministas, até então adormecidas em suas ONGs e em partidos amorfos em geral acomodados ao capitalismo, começam a dar indícios de que estão despertando. O boicote ao G8 foi uma primeira tentativa. Por isso, se mostra cada vez mais necessária uma articulação independente entre mulheres e homens trabalhadores, imigrantes, professores e estudantes em torno de uma plataforma comum de reivindicações que coloque em xeque a política de Berlusconi, em defesa daqueles que fazem e refazem a Itália todos os dias. Marina Fuser, socióloga e integrante do grupo de mulheres Pão e Rosas, mora em Bolonha, na Itália.
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internacional
Os seis meses de Barack Obama e a reflexão de Amin Maalouf Pete Souza/White House
ANÁLISE Transcorrido um semestre da sua entrada na Casa Branca, o balanço de sua gestão não justifica, e sim desmente, o otimismo que a envolve, trombeteado pelos cultores da “obamomania” Miguel Urbano Rodrigues
NA CONFERÊNCIA que pronunciou em Lisboa, o escritor Amin Maalouf fez uma apologia apaixonada do atual presidente dos EUA. “Essa pessoa também nos representa”. Numa entrevista ao jornal Público, expressou ainda a convicção de que o futuro da humanidade, quase a sua sobrevivência, depende do êxito da estratégia de Barack Obama. O eventual fracasso do presidente, na sua opinião, “seria uma tragédia para a América, para o Ocidente e para o mundo”. É antiquíssima a tendência, em tempos de grandes crises, de estabelecimento de uma ponte entre a sua superação e o aparecimento de um salvador providencial. Admiro Amin Maalouf. Essa antiga admiração pelo escritor humanista justifica a minha surpresa ao tomar conhecimento da sua adesão à perigosa tese dos “salvadores”. Desconhecer o peso do fator subjetivo na história seria negar uma evidência. Mas basta acompanhar no seu percurso sinuoso a lenta marcha do grande rio da história para se compreender que as grandes transformações que contribuíram para o progresso da humanidade não resultaram da intervenção de salvadores providenciais.
É antiquíssima a tendência, em tempos de grandes crises, de estabelecimento de uma ponte entre a sua superação e o aparecimento de um salvador providencial Nem sempre isso foi temporalmente perceptível, mas o motor dessas mudanças geradoras de avanços civilizacionais não foi este ou aquele indivíduo, mas rupturas, muitas vezes súbitas, provocadas pela intervenção torrencial de massas populares que provocaram a destruição da ordem social preexistente. A esperança messiânica no aparecimento de um salvador preparado para enfrentar vitoriosamente um presente sombrio e abrir as alamedas de um futuro de paz e prosperidade pode assumir contornos românticos e seduzir muita gente honesta, mas nas suas origens é identificável um pensamento incompatível com o progresso. A história oferece-nos muitos exemplos de salvadores cujo objetivo inconfessado era a defesa da ordem social em desagregação, responsável pela crise.
Obama caminha na Casa Branca: presidente estadunidense não cumpriu promessas de campanha
A mitificação de Obama A grande crise de civilização que vivemos, inseparável da crise estrutural do sistema capitalista, gerou frustrações e angústias que desembocaram na convicção irracional de que a humanidade, uma vez mais, precisa de um salvador. Nos EUA puseram-lhe nome: Barack Obama. E, na época da informação instantânea, uma campanha de dimensão planetária, desencadeada com o apoio entusiástico dos grandes da União Europeia, corresponsáveis pela crise, difunde um discurso cuja conclusão encontramos na mensagem de Amin Maalouf: uma tragédia espera a humanidade se Obama não a salvar. A campanha, insidiosa, massacrante, é uma ofensa à inteligência. Mas catapultada por governantes, políticos, banqueiros, militares, escritores, jornalistas, chega aos lugares mais remotos da Terra e impressiona milhões de pessoas em todas as camadas sociais. O efeito é tão perigoso que a necessidade de lutar contra a mitificação do presidente dos EUA se torna um dever imperioso para as forças progressistas. Obama não teria sido eleito se muitas dezenas de milhões de compatriotas não confiassem nas suas promessas de mudança. Ele convenceu esses eleitores de que introduziria transformações radicais na sociedade norteamericana e nas relações do seu país com o mundo exterior. Mas, transcorridos seis meses da sua entrada na Casa Branca, o balanço de sua gestão não justifica, e sim desmente, o otimismo que a envolve, trombeteado pelos cultores da “obamomania”. O que fez e não fez em seis meses não corresponde ao compromisso, mas desrespeita-o. No tocante à política interna, a promessa de enfrentar a engrenagem de Washington, por ele fustigada quando candidato, não foi cumprida. O presidente optou por uma estratégia que privilegia a finança como alavanca de superação da crise, atribuindo papel subalterno a uma política econômica baseada na produção e no emprego. O seu secretário do Tesouro, Thimothy Geithner, é um tecnocrata de Wall Street, empenhado em acudir os grandes bancos e empresas gigantes ameaçadas de falência pelas suas práticas fraudulentas. Mecanismos que contribuíram decisivamente para a crise voltam a ser introduzidos no sistema pelos senhores da finança.
Obama manteve tribunais militares cuja inconstitucionalidade tinha denunciado e adiou para data imprevisível o encerramento do presídio de Guantánamo. Nos setores da educação, da saúde e da previdência social, e no campo da política de imigração, o seu governo não tomou até hoje iniciativas que respondam às promessas feitas.
O presidente optou por uma estratégia que privilegia a finança como alavanca de superação da crise, atribuindo papel subalterno a uma política econômica baseada na produção e no emprego O endividamento externo continua a ser a base em que se assenta a hegemonia econômica mundial do país. Daí, uma vulnerabilidade alarmante. Dois países, a China e o Japão, possuem mais de 2 bilhões de dólares em títulos do Tesouro americano e em reservas nacionais. Se abandonassem o dólar, todo o sistema capitalista ruiria, arrastando inclusive a ambos. Palestina e Israel No terreno internacional, a política de Obama distanciase também dos compromissos de campanha. O discurso é outro, mas, no fundamental, o presidente mantém fidelidade ao projeto de dominação mundial dos EUA como nação predestinada a salvar a humanidade dos perigos que a ameaçam. Admito que Obama está persuadido de que lhe cabe desempenhar uma missão providencial. Não é um político reacionário, beócio e de rabo-preso com grandes grupos financeiros. Mas o seu desejo de não abdicar de um comportamento ético, tal como o concebe, esbarrou desde a entrada na Casa Branca em engrenagens cujo poder tinha subestimado. Não se pode esquecer que as suas ideias liberais – na acepção americana da palavra – são inseparáveis da convicção de que o sistema capitalista precisa de grandes refor-
mas, mas deve ser preservado custe o que custar. Em poucos meses, ele concluiu que o seu projeto de reformas teria de ser reformulado, no plano interno e externo, ajustando-se a uma relação de forças muito complexa. E, de concessão em concessão, a sua política adquiriu contornos cada vez mais aceitáveis pelo establishment. A insuficiência do seu conhecimento da história pesou muito na adoção de orientações para a política exterior que pouco diferem das anteriores, inspiradas pelo sonho imperial. O chamado discurso histórico do Cairo é uma peça que, despojada da retórica, confirma a aliança dos EUA com Israel. Obama insiste em um Estado para a Palestina, mas, quando o governo de Tel Aviv intensificou a construção de milhares de edifícios em colônias na Cisjordânia, reagiu timidamente. Por si só, sua afirmação sobre uma “Jerusalém única e indivisível” ilumina a tendência para a capitulação perante o sionismo arrogante e expansionista. África, Europa e Honduras O discurso em Gana dirigido à África foi outro exercício de retórica. O que dele fica de substancial é a defesa da criação de uma força transnacional para a defesa da “democracia” no continente. Traduzidas em linguagem comum, essas palavras anunciam um reforço de intervenções armadas do imperialismo como “solução” para as crises africanas. O presidente expressou sua grande preocupação com as situações criadas em Darfur (cujas reservas prováveis de petróleo são enormes) e na Somália, mas não proferiu ali uma palavra sobre os acontecimentos em Honduras. Esse silêncio foi atribuído pela própria imprensa dos EUA à contraditória posição assumida perante o golpe de Estado hondurenho. Obama criticou o gorilazo, não reconheceu o governo fantoche de Micheletti e apoiou a resolução da OEA que exige o regresso de Manuel Zelaya, o presidente legítimo. Mas os EUA não retiraram de Tegucigalpa o seu embaixador, um cubano de Miami que mantém íntimas relações com os golpistas. Indiscrições de militares e de ministros nomeados por Micheletti confirmaram que na embaixada se realizaram reuniões preparatórias do golpe. Para agravar essa rede de cumplicidades, o comando da Força Aérea hondurenha está instalado na base militar norte-americana de Palmerola, a
umas dezenas de quilômetros da capital. Foi, aliás, de Hillary Clinton que partiu a ideia da mediação do costa-riquenho Óscar Arias, iniciativa que permite aos golpistas ganhar tempo. É transparente que a ambiguidade da posição dos EUA perante a crise hondurenha reflete o seu temor de que a reinstalação de Manuel Zelaya fortaleça o bloco de países da Alba, liderado por Hugo Chávez. Na União Europeia, onde os governantes continuam a derramar elogios sobre Obama, o presidente utilizou na reunião do G8 uma linguagem barroca para disfarçar o fundamental do recado transmitido: os EUA não abdicam da tarefa de dirigir o mundo, a que se autoatribuíram, nem aceitarão qualquer projeto que retire do dólar o papel de moeda universal. Os encontros com Medvedev e Putin deixaram as coisas no pé em que estavam. A troca de sorrisos e de palavras amáveis não pôde disfarçar a desconfiança mútua entre Washington e Moscou. Uma certeza: a OTAN não desiste de sua intenção de avançar para o leste, e os EUA não revelam disponibilidade para retirar das fronteiras russas o chamado escudo antimísseis.
O discurso em Gana dirigido à África foi outro exercício de retórica. O que dele fica de substancial é a defesa da criação de uma força transnacional para a defesa da “democracia” no continente Oriente Médio e Ásia Central É no Oriente Médio e na Ásia Central que as opções da política internacional de Obama suscitam maior preocupação em nível mundial. Em vez de contribuírem para a paz, disseminam a violência e prolongam e ampliam guerras criminosas herdadas da administração Bush. Em relação ao Irã, os apelos do presidente a um diálogo franco não encontraram até agora expressão prática.
Pelo contrário. As exigências sobre a questão nuclear, com contornos de ultimato, persistem, acompanhadas da ameaça de novas sanções. Simultaneamente, o envolvimento dos serviços de inteligência norte-americanos nas manifestações de rua de Teerã posteriores às eleições tem sido repetidamente confirmado por fontes críveis, inclusive estadunidenses. A hipótese de uma agressão militar ao Irã parece, contudo, excluída na atual conjuntura. A Casa Branca terá chegado à conclusão, com o apoio do Pentágono, de que, no momento em que os EUA se encontram, atolados em duas guerras, no Iraque e no Afeganistão, não existem condições políticas e militares para tal. No Iraque, o esforço da máquina midiática para apresentar o país como “pacificado”, o que teria permitido a retirada do exército norteamericano de suas cidades, é desmentido diariamente pela realidade. A violência no mês de junho e na primeira quinzena de julho atingiu ali um nível que não se registrava há muito. A resistência à ocupação estrangeira aumenta a cada semana, e o governo instalado por Washington está desacreditado. Impressionado pelos relatórios do general Petraeus, atual comandante do Comando Central dos EUA, Obama cometeu um erro que pode ser fatal para a imagem da sua administração. Não se limitou a transferir tropas do Iraque para o Afeganistão: decidiu enviar para aquele país mais 21 mil soldados. Ao erigir o binômio Afeganistão-Paquistão a primeira prioridade da sua política exterior, não parece consciente de que é arrastado por ilusões que, num contexto diferente, desembocaram há meio século na humilhante derrota no Vietnã. O comandante no terreno é um militar americano cujo currículo contribui para aumentar as apreensões. O general Stanley Chrystal tem sido definido pelo seu passado como um criminoso de guerra. Petraeus fala numa “nova atmosfera” que permita a conquista das populações. Mas, até agora, o que se registra é um crescimento do ódio inspirado pelos invasores. O medo de que o radicalismo islâmico se alastre pelo Paquistão está na origem da ambiciosa estratégia bipolar em que Obama deposita tanta confiança. Mas os bombardeios das tribos do noroeste paquistanês, que já causaram a morte de centenas de camponeses, geram a indignação da minoria pachtun, a segunda do país, ou seja, mais de 20 milhões de pessoas da mesma etnia dos afegãos pachtunes, separados destes por uma fronteira artificial imposta em 1893 pelo império britânico. O ceticismo dos próprios meios de comunicação norte-americanos quanto ao desfecho da estratégia de Obama para a região já é inocultável. Alguns são tão pessimistas que, prevendo uma derrota de consequências catastróficas, definem a guerra no Afeganistão como “o novo Vietnã”. Tudo leva a crer que a evolução da estratégia asiática do presidente dos EUA pesará muito na sua imagem. O Barack Obama aclamado como salvador providencial da humanidade por intelectuais como Amin Maalouf corre o risco, se as coisas correrem mal na Ásia, sobretudo nas montanhas e vales do Afeganistão, de surgir como o coveiro involuntário do sonho imperial dos EUA. Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e integrante do Partido Comunista Português.