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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 342

São Paulo, de 17 a 23 de setembro de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Jackson Anastácio

Ministro critica “arcaísmo” de setores contra reforma agrária

Após repressão, professores do do Rio obtêm conquista

Em entrevista, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, critica os setores “arcaicos” contrários à atualização dos índices de produtividade no campo, datados de 1975. “Qualquer cidadão com o mínimo de informação e bom senso sabe que, de 75 para cá, a agricultura mudou muito, a produção e a produtividade cresceram bastante”, disse. Pág. 3

Depois de uma série de manifestações que culminaram com uma marcha de 2 mil pessoas, professores cariocas obtiveram vitória. Com violência, a PM tentou conter os grevistas a chegarem à Assembleia Legislativa (Alerj), deixando 10 manifestantes feridos. Apesar da truculência, o protesto fez o governo de Sérgio Cabral (PMDB) recuar e a Alerj aprovar projeto favorável aos trabalhadores. A manifestação contou com forte apoio dos estudantes secundaristas da rede estadual de ensino. Pág. 8

Privatismo em SP, crimes no RS: modo tucano de governar Facetas tucanas. Enquanto o governador José Serra cria lei que favorece o crescimento das Organizações Sociais (OSs) e presenteia os planos de saúde, a Assembleia Legislativa gaúcha aceita o pedido de impeachment da governadora Yeda Crusius, que tem contra si, dentre outras denúncias, a de ter determinado a divisão da propina entre os beneficiários da fraude do Detran. Pág. 7

Polícia reprime manifestantes que se dirigiam ao Palácio Tiradendes, no Centro do Rio, onde está localizada a Alerj

Acordo militar Brasil-França contraria hegemonia dos EUA O acerto entre Brasil e França para a compra de aviões caça, submarinos e tecnologia bélica tende a abrandar a influência dos Estados Unidos na América Latina. Esta é a análise do sociólogo Emir Sader, que enxerga na medida a cristalização de uma ordem mundial multipolar. Para o jornalista John Donaghy/CC

Divulgação

Anticapitalistas, Moore e Stone brilham em Veneza

Em Honduras, golpistas não resistirão até novembro Letícia Salomón, economista e socióloga hondurenha, acredita que golpistas não ficarão no poder até as elei-

ções de novembro. Para ela, empresários perderam muito dinheiro em consequência dos protestos populares. Pág. 10 Reprodução

uruguaio Raúl Zibechi, essa aquisição brasileira pode significar o fim da Doutrina Monroe (“América para os americanos”). Já o economista Nildo Ouriques, porém, acredita que o país continua sendo subserviente e obediente e, portanto, a compra de armas não faria diferença nesse contexto. Pág. 5

Oliver Stone e Michael Moore, dois dos principais cineastas da atualidade, apresentaram seus documentários no 66º Festival de Cinema de Veneza, na Itália. Enquanto Stone se aproxima da América Latina – em especial do presidente da Venezuela, Hugo Chávez –, Michael Moore denuncia a desumanidade do capitalismo. Seu filme retrata o desespero das vítimas da recente crise financeira. Pág. 12

Lauriene Seraguza

Morosidade do governo federal resultou no despejo de 36 famílias Guarani Kaiowá no MS

Guarani são expulsos de suas terras Governo descumpre acordo judicial e provoca despejo No Mato Grosso do Sul, o povo Guarani Kaiowá sofre com total paralisia do governo federal em cumprir seu

direito constitucional à terra. Despejada de seu território, onde estava há 2 anos, a comunidade Laranjeira Nhan-

deru agora se encontra à beira de uma rodovia, passando fome e vendo sua aldeia incendiada. Pág. 8 JLQ/AB

Em La Paz, o presidente boliviano Evo Morales concede entrevista à rádio estatal Patria Nueva

MAS prepara nova etapa de mudanças

O adeus ao comandante Juan Almeida Bosque O cubano Juan Almeida Bosque, que faleceu no dia 11, foi o primeiro negro cubano que se colocou ao

lado de Fidel Castro quando este decidiu fazer a revolução. Ele foi enterrado dia 15 em Sierra Maestra. Pág. 10

Evo Morales tentará, em dezembro, reeleição na Bolívia ISSN 1978-5134

Favoritíssimo para reeleger Evo Morales presidente da Bolívia em dezembro, o seu partido, Movimento ao

Socialismo (MAS), se prepara para refundar o Estado, conferindo um caráter plurinacional e não mais neo-

liberal. “O verdadeiro processo de mudança começa a partir da próxima gestão”, sentencia porta-voz. Pág. 9


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editorial NOS ÚLTIMOS DIAS houve várias manifestações na imprensa anunciando o fim da crise da economia no Brasil. Entre todas, o mais ufanista tem sido o presidente do Banco Central, e ex-presidente do Banco de Boston, senhor Meireles. Segundo o senhor Meireles, graças à política de superavit primário praticada pelo Brasil (diga-se de passagem, o único país, entre todas as grandes economias, que ainda o pratica), “o Brasil foi o último a entrar na crise e o primeiro a sair dela.” Outros próceres do governo anunciaram que já saímos da recessão. Ora, nunca ninguém antes havia dito que a economia brasileira havia alcançado a recessão. No fundo a grande imprensa tem reproduzido apenas frases de efeito, em geral sem profundidade e na maioria das vezes representando apenas interesses setoriais da grande burguesia brasileira associada ao capital financeiro e ao capital internacional. Afinal, há ou não uma crise mundial do sistema capitalista? É evidente que há uma crise grave. Podemos debater seu grau de profundidade e de abrangência, mas todos os pensadores e analistas sérios a avaliam como grave. Há também diversos pensadores que nos têm alertado de que a crise mundial é mais do que uma crise de produção. Ela está relacionada com paradigmas do próprio sistema capitalista, que não consegue mais

A necessidade de debater um projeto para o país manter taxas de crescimento baseadas nos atuais parâmetros de produção de automóveis, celulares, etc. O sistema capitalista tem se revelado, cada vez mais, incapaz de resolver os problemas fundamentais das pessoas, em toda a humanidade. Depois de todo crescimento e pujança econômica obtida durante o século 20, o que temos na atual situação da economia mundial? Nunca tivemos tantas pessoas correndo para as grandes cidades, expulsas pela pobreza e miséria rural. Nas cidades engrossam as favelas, sem ter onde morar. O deficit habitacional é o maior de todos os tempos. Nunca tivemos tanta gente sem trabalho. Nunca tivemos tanta migração econômica do Sul para o Norte. Nunca tivemos tanta fome, que agora atinge mais de 1 bilhão de pessoas. Nunca tivemos tantos alimentos contaminados como agora. A maioria dos jovens em todo mundo não consegue estudar, e nem ter emprego. Nunca antes havia faltado água a tantas pessoas. As grandes cidades, em especial as do hemisfério Sul, se transformaram num caos, por falta de transporte público de qualidade e tendo toda suas economias baseadas num transporte individual, que causa poluição, perda

de vidas humanas e de tempo útil cada vez maior. E há um quarto aspecto defendido por amplos setores intelectuais, que colocam a crise ambiental e climática como um dos perigos provocados pela exaustão do uso de recursos naturais, pelo desequilíbrio ambiental e pela destruição da biodiversidade, que coloca em risco a vida humana no planeta. A economia brasileira, segundo todos os analistas, de todas as correntes, nunca antes esteve tão subordinada e dependente do capital internacional. Seja do mercado internacional, das empresas transnacionais ou do capital financeiro. Portanto, nossa economia está cada vez mais à mercê do que acontece no capitalismo mundial. Neste último ano de crise mundial do capitalismo, ela se manifestou em diferentes graus, nos diferentes países, de acordo com sua base produtiva e condições de riqueza natural. Assim, tivemos alguns que enfrentaram depressão (queda brusca da produção), outros enfrentaram recessão (queda continuada da produção e renda, como aconteceu na maioria dos países europeus e EUA). Outras nações tiveram consequências que

alternaram em queda de produção em alguns setores e retomada em outros, num movimento classificado como estagnação. Ou seja, a economia cresce e decresce em ritmos mais lentos. No entanto, ao longo de um período histórico mais largo, se manterá estagnada. E isso é o que acontece com o Brasil. A economia brasileira vive esse movimento pendular, de ora crescer, ora cair, dependendo do setor de produção e da subordinação ao mercado mundial. Daí também ter aumentando nossa dependência das compras da China. Então, nesse primeiro período da crise, a economia brasileira foi influenciada por alguns fatores diferentes das economias centrais que entraram em recessão: a) Temos um enorme potencial de recursos naturais, que dá aos capitalistas brasileiros amplas taxas de lucro na exportação de minérios, celulose, produtos primários, e isso mantém as atividades produtivas em diferentes setores; b) O governo brasileiro aplicou rapidamente políticas neokeynesianas, de uso de recursos públicos, para proteger a indústria automobilística e de eletrodomésticos, com isenção do IPI;

c) O governo transferiu mais de R$ 100 bilhões de recursos do tesouro para o BNDES repassá-los em investimentos para as empresas; d) Existe um amplo setor popular que manteve sua renda inalterada (pelos benefícios do INSS, pelo salário mínimo valorizado e pelo Bolsa Família) que garantiu a demanda de bens de consumo não-duráveis na economia brasileira, independente do nível de emprego da classe trabalhadora; e) O capital financeiro não só não fugiu do Brasil como alguns capitalistas internacionais vieram com mais gana, para aplicar em recursos naturais e se proteger da crise. Esses fatores contribuíram para a economia brasileira não ser atingida fortemente pela crise internacional. Mas também não significa que mudaram os parâmetros. Portanto, continuamos dependentes e reféns dos capitalistas internacionais. E as políticas aplicadas são conjunturais, não alteraram a estrutura produtiva da economia. Mas, mais do que discutir se a crise acabou ou não, precisamos urgentemente discutir a necessidade de um projeto para o país. Um projeto que reorganize a economia e a produção no nosso território para resolver os problemas do povo brasileiro, e não apenas garantir taxa de lucro ou de crescimento. Os problemas do povo brasileiro continuam sendo os mesmos, e cada vez maiores: falta de emprego, renda, terra, moradia digna e escola pública e de qualidade.

debate Frei Betto

crônica Luiz Ricardo Leitão

Entre a Constituição e a coligação

Além dos limites

O GOVERNO LULA encontra-se num dilema hamletiano: respeitar a Constituição e desagradar o maior partido de sua coligação eleitoral, o PMDB, ou agradar os correligionários de José Sarney e desrespeitar a Constituição. A Constituição Brasileira de 1988 traz, no seu bojo, inegável caráter social. Falta ao Executivo e ao Legislativo passá-lo do papel à realidade. Uma das exigências constitucionais é a revisão periódica – a cada 10 anos - dos índices de produtividade da terra. Eles são utilizados para classificar como produtivo ou improdutivo um imóvel rural e agilizar, com transparência, a desapropriação das terras para efeito de reforma agrária. Os índices atuais são os mesmos desde 1975! Os novos seriam calculados com base no período de produção entre 1996 e 2007, respaldados por estudos técnicos do IBGE, da Unicamp e da Embrapa. Os índices também serviriam de parâmetro para analisar a produtividade em assentamentos rurais. Inúmeros ruralistas, latifundiários e empresários do agronegócio não querem nem ouvir falar de revisão dos índices de produtividade. É o reconhecimento implícito de que predominam no Brasil grandes propriedades rurais improdutivas e que, portanto, segundo a Constituição, deveriam ser desapropriadas para beneficiar a reforma agrária. No dia 12 de agosto, dirigentes do MST e ministros do governo Lula reuniram-se em Brasília. O MST havia promovido, no dias anteriores, uma série de manifestações, consciente de que governo é que nem feijão – só funciona na panela de pressão. Além de reivindicar a revisão dos índices de produtividade da terra, o MST, a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e a Fetraf (Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar) querem a reposição do corte de R$ 550 milhões feito este ano no orçamento do Incra, quantia destinada à obtenção de terras para a reforma agrária. O representante do Ministério da Fazenda declarou que a crise é grave, a arrecadação diminuiu entre 30 e 50% no primeiro semestre deste ano, e que o governo tem dificuldades de repor o orçamento do Incra, embora conste da lei orçamentária aprovada pelo Congresso. Os trabalhadores rurais querem apenas que se cumpra a lei. É impossível acreditar que o Ministério da Fazenda não tenha recursos. Se fosse verdade, não teria desonerado impostos de outros setores da

Gama

sociedade, como a indústria automobilística, cujo IPI mereceu desoneração de cerca de R$ 20 bilhões, e o depósito à vista dos bancos, que possibilitou a eles reter, em seus cofres, R$ 80 bilhões. O governo tem dinheiro, mas reluta em investir na reforma agrária e na pequena agricultura. A reforma agrária viria modernizar o capitalismo brasileiro. Inclusive conter os reflexos da crise financeira mundial no setor agrícola. No Brasil, a crise afetou a produção de soja, algodão e milho, e reduziu o preço das commodities e a taxa de lucro dos produtores rurais. Mas quem pagou a conta foram os trabalhadores rurais assalariados. Cerca de 300 mil ficaram desempregados. O agronegócio é o modelo de produção que expulsa mão-deobra porque adota a mecanização intensiva. Que rumo tomaram os desempregados? Vieram engrossar o cinturão de favelas em torno das cidades, viver de bicos, enquanto seus filhos são tentados e assediados pela criminalidade. Por que o governo não assentou essa gente? O Brasil é, hoje, o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Na safra passada, jogaram 713 milhões de toneladas de veneno sobre o nosso solo, a nossa água e os nossos alimentos. Enquanto aumentam as exportações, aumenta também a produção de alimentos contaminados, responsáveis pela maior incidência de enfermidades

letais, como o câncer. É preciso mudar o atual modelo agrícola, prejudicial ao meio ambiente e à agricultura familiar. O prazo dado pelo presidente Lula para a revisão dos índices de produtividade da terra expirou a 2 de setembro, sem que o Planalto se posicionasse. A decisão sobre a atualização havia sido tomada em 18 de agosto, numa reunião de Lula com ministros, da qual não participou o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes. Na ocasião, foi estipulado um prazo de 15 dias. A portaria de revisão dos índices precisa ser assinada por Stephanes e pelo ministro Guilherme Cassel, do Desenvolvimento Agrário, a tempo de entrar em vigor em 2010. Segundo a assessoria do ministério do Desenvolvimento Agrário, Cassel rubricou a medida um dia após a promessa feita por Lula, e a encaminhou a Stephanes. O ministro da Agricultura, pressionado pela bancada do seu partido, o PMDB, já se manifestou publicamente contrário à proposta e não assinou a portaria. Resta ao presidente Lula decidir-se entre Constituição, que ele assinou como constituinte e tem por obrigação respeitar, e o setor do PMDB que ainda encara o Brasil como um imenso latifúndio ainda dividido entre a casa-grande e a senzala.

O NOVO (?) REALITY show que a Vênus platinada tem exibido ao público recebeu um título que, à primeira vista, não possui maiores conotações morais ou sociais. Ao usar a preposição “em” (No limite), o programa, mais uma vez, valoriza o velho preceito liberal de que o esforço do indivíduo é a chave mestra do ‘sucesso’ na sociedade burguesa: se cada um der o máximo de si (em favor de si próprio, é óbvio, e não do coletivo), logrará por certo ‘êxito’ em sua vida. É claro que, neste caso, não há sequer a aura de heroísmo que adornava as grandes personagens criadas pela Paideia audiovisual ianque, como era o caso do Super-Homem e do famigerado Capitão América, sempre a postos em defesa da liberdade (isto é, do sistema capitalista estadunidense) e da coletividade (ou seja, dos EUA). O “pai dos burros” nos ensina que o herói é um ser semidivino, capaz de suportar desafios que nenhum ser humano aceitaria, sacrificando-se sempre em benefício de outrem, e não de si. Nada disso ocorre na pseudo-atração global, cujo nome, na verdade, deveria ser “Além dos Limites”, tamanha a desfaçatez dessa emissora que, aliás, também posa de heroína da comunicação nacional, comemorando (?) os 40 anos do Jornal Nacional como se este fosse um paladino da justiça e da democracia – operação que enseja uma providencial amnésia acerca do papel que o veículo exerceu não só durante o regime militar, como também em episódios pós-ditadura, como aquela malsinada eleição de Collor em 1989. Seria tudo apenas uma questão de semântica ou a ‘mera’ mudança de preposições nos serve de curiosa advertência sobre o momento que estamos vivendo? Afinal de contas, estar no limite pressupõe ainda certa “humanidade” dos participantes, ao passo que além dos limites é a única expressão cabível para a torpe (anti)ética do neoliberalismo pós-moderno, em seus últimos suspiros como doutrina guia do mundo globalizado. Embora o indignado leitor tenha plena noção do estágio de degradação moral a que chegamos no Brasil do século 21, em que “faturar e faturar” se tornou o fim único de todos os atos humanos, relembro, a título de ilustração, tristes incidentes desses últimos dias... Começo pela própria mídia tupiniquim, que, cada vez mais, investe em nossa tosca sociedade do espetáculo, abdicando de produzir informação. Não há como ignorar o caso absurdo do tal dublê de deputado e ‘jornalista’ Wallace Sousa, cabeça de uma quadrilha integrada pelo próprio filho e os irmãos, que mandava matar homossexuais e outros “indesejáveis” para noticiar os crimes, “em primeira mão”, no seu ‘programa’ de TV no Amazonas. Detalhe ainda mais sórdido: entre as vítimas estariam ‘concorrentes’ do apresentador (?) no controle do tráfico de drogas no Estado. Será que Datenas e Ratinhos seguirão pela mesma trilha (sem qualquer polissemia, por favor)? Passo, em alta velocidade, para as trilhas da Fórmula-1, este pseudoesporte que, no Brasil, goza de inacreditável fama e prestígio, graças, sobretudo, ao vultoso investimento da Globo no produto (em nome da saúde pública, evitarei citar o nome do locutor que patrocina este chauvinismo nas manhãs de domingo). Em face da nova crise do capital e dos riscos que pairam sobre a indústria do petróleo no planeta, acirra-se a disputa entre as empresas, com quebra de equipes e redução de investimentos no setor. Tal qual o combustível que move as baratinhas, o negócio está ficando cada vez mais sujo, como atesta a deplorável maracutaia de que participou Nélson Piquet Jr., que, apesar de ter nascido em berço dourado, não hesitou em simular um acidente na pista para assegurar seu futuro (?) na carreira. Nelsinho, filho de um tricampeão mundial na categoria, agora só poderá dirigir carros de boi. Mas será que ele é o único palhaço nesse circo? Ayrton Senna também bateu em Alain Prost para garantir sua vitória na categoria, mas os chauvinistas de plantão viram no gesto do queridinho apenas mais uma “esperteza” do super-herói global. Isso para não falar do bobo da corte atual, o sorridente Barrichello, que deixou Schumacher ultrapassá-lo para não perder o emprego na poderosa Ferrari. Estes são os nossos campeões, caro leitor... E não vou sequer analisar o caso do “rei” Pelé, que, há poucos dias, quando a – esta sim! – valorosa jogadora Marta se apresentou ao Santos, deixou de comparecer ao evento, alegando compromissos comerciais. Na verdade, o garoto-propaganda Pelé apenas cumpria ordens de um banco transnacional (Santander), incomodado pelo patrocínio de um concorrente (BMG) na camisa da craque. Eu poderia seguir nesta toada, falando do escândalo do doping no atletismo, da farra do boi para a Copa de 2014 e na campanha próOlimpíadas 2016 no Rio, mas prefiro ficar por aqui, no limite, já que o editor também me pediu que não fosse além dos limites desta lauda. Voltaremos, porém, ao tema...

Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


de 17 a 23 de setembro de 2009

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brasil

Setor arcaico sustenta índice de produtividade atual, diz ministro Roosewelt Pinheiro/Abr

CAMPO Guilherme Cassel, do Desenvolvimento Agrário, diz não conhecer nenhum produtor sério que tenha se preocupado com a atualização

toda a sociedade. Assim, não pode ter trabalho escravo, deve ter relações de trabalho adequadas. Mas tem um setor nesse país que ainda é contra isso, essa função social. É um setor arcaico. Nós temos que superar essa questão de uma vez por todas. É isso que está escondido atrás desse debate dos índices de produtividade. De fato, algumas pessoas, ainda neste início de século 21, acham que a terra tem que ser um bem como qualquer outro.

Desirèe Luíse de São Paulo (SP) EM ENTREVISTA, o ministro Guilherme Cassel, do Desenvolvimento Agrário, defende a atualização dos índices de produtividade no campo prometida para o dia 2 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas ainda não cumprida. Ele também defende a política agrícola do governo federal, que procurar aliar agricultura familiar com a de “escala”. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu atualizar os índices de produtividade do campo até o dia 2, o que não aconteceu. Por que não houve o reajuste? De fato houve uma decisão do presidente de atualizar os índices. Essa decisão foi informada a mim e ao ministro [da Agricultura] Reinhold [Stephanes], pois somos nós que temos que assinar a portaria que reajusta os índices. Assinei e encaminhei ao Ministério da Agricultura. O ministro Reinhold expressou que tem dificuldade de natureza política para fazer isso nesse momento. Penso que essa decisão em última instância é do presidente. Estou convencido de que temos que ajustar os índices, até porque isso é uma obrigação legal do governo. Até que ponto a oposição de Stephanes emperra a atualização? A Lei nº 8.629 de 1993 determina que a revisão dos índices se dê por uma portaria interministerial assinada pelos ministros do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura. Se o ministro Reinhold não assinar, isso impede que os índices sejam reajustados. Agora, acima da minha vontade, da vontade do ministro Reinhold, tem a vontade do presidente. Há uma decisão clara do presidente no sentido de que os índices sejam reajustados. Eu não recebi nenhuma orientação contrária. Pelo que sei, é necessário agora convocar o Conselho [Nacional] de Políticas Agrícolas, pois ele deve ser informado dos índices antes da portaria. Sei que tanto o presidente quanto o ministro Reinhold estão trabalhando nesse sentido. Imagino que tão logo seja nomeado o Conselho e sejam passados os estudos dos novos índices, o presidente deve encaminhar a revisão dos números. Não acho que a vontade ou dificuldade colocada por um ministro ou por outro seja superior à vontade do presidente, que já determinou que os números fossem revisados. A bancada ruralista está influenciando no atraso da atualização? A reação da bancada ruralista era esperada. O país já se acostumou com esse tipo de reação. O que temos que refletir é que não é possível deixar de cumprir a Constituição no grito; ou que o setor acostumado a ganhar no grito queira ganhar mais uma vez. Isso não é razoável. Os índices de produtividade vigentes foram feitos em 1980, com base nas condições tecnológicas e na produção de 1975. Qualquer cidadão ou cidadã com o mínimo de informa-

Índices vigentes foram calculados com base nas condições tecnológicas e na produção de 1975

ção, de bom senso e de equilíbrio sabe que, de 1975 para cá, a agricultura mudou muito, a produção e a produtividade cresceram bastante, a tecnologia progrediu radicalmente. E a lei diz claramente que o governo deverá periodicamente reajustar os índices para adequá-los aos novos padrões produtivos. Isso é uma obrigação que vem sendo deixada de lado há 30 anos. Não podemos continuar assim. Não é possível que façamos de conta que a lei não existe porque um setor ou outro aumenta o tom do debate político cada vez que vai se cumprir a lei. Ninguém pode ganhar no grito nesse país. Nem quem tem terra nem quem não tem, nem quem tem ou não dinheiro, nem quem é rico ou pobre.

O que temos que refletir é que não é possível deixar de cumprir a Constituição no grito Como o senhor lembrou, a lei determina que os índices sejam ajustados periodicamente, mas a última vez que isso ocorreu foi em 1980. Como se explica que isso aconteça? Olha, algo que explica isso é que existe um país real e renitente que ainda tem algum poder político. A agenda do índice de produtividade é um pouco a da reforma agrária. Todos os países desenvolvidos do mundo enfrentaram o tema, fizeram a reforma agrária, construíram uma estrutura fundiária mais equilibrada no século 19 e na primeira metade do século 20. Essa agenda é tardia no Brasil. E o que acarreta isso? Na medida em que você não fez a reforma agrária, que você manteve uma estrutura fundiária absolutamente desequilibrada e muito concentrada – no Brasil, a concentração fundiária é maior do que a concentração de renda –, essa concentração no meio rural tem também repercussões políticas, porque ela acabou construindo e solidificando poderes políticos. Aqui, a propriedade da terra sempre andou de mãos dadas com o poder político. Tenho dito, e acho que isso ajuda muito a compreender toda essa situação, que no Brasil temos de fato três agriculturas e não duas, como geralmente se fala.

Quais são esses três tipos de agricultura? Temos duas agriculturas que são modernas e uma agricultura que é absolutamente arcaica. Quais são as modernas? Primeiro a agricultura familiar, camponesa, que produz 70% dos alimentos que consumimos e que tem uma relação adequada com o meio ambiente, gera emprego e renda e é responsável por 11% do produto interno bruto (PIB) e pela segurança alimentar. Ela é contemporânea e moderna por isso. Há a segunda agricultura que é a de larga escala, que é voltada mais para a exportação, que tem um vínculo maior com a monocultura, mas que também é moderna e produtiva. Agora, tem outra agricultura, que ainda está no século 19, que produz trabalho escravo, desmatamento e exploração ilegal de madeira. Essa agricultura, que também é vinculada ao latifúndio, está intocada e tem poder político. Esse poder se expressa sempre que queremos modernizar a estrutura agrária. Então, é disso que se trata. Pensando na demora da aprovação dos novos índices, o governo acaba por privilegiar o agronegócio monocultor no país? Acho que não. Acho que tem um jargão em alguns movimentos sociais que repetem isso, mas o governo Lula em hipótese alguma privilegiou o agronegócio nesses últimos sete anos. O governo Lula de fato escolheu tratar as duas agriculturas modernas, tanto a de escala quanto a familiar, como complementares e as duas obtiveram muito investimento. Nunca se investiu tanto em reforma agrária no país, por exemplo. De todas as famílias assentadas que existem no Brasil hoje, 59% foram assentadas nos últimos sete anos. Para a compra de terras anual no orçamento do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], passamos de um montante de R$ 280 milhões por ano para R$ 1,4 bilhão por ano. Nós reforçamos o Incra, estamos investindo na qualidade dos assentamentos e na agricultura familiar. Passamos de um volume de crédito de R$ 2,3 bilhões para R$ 15 bilhões para esse setor. No caso da assistência técnica, o investimento subiu de R$ 3 milhões para R$ 500 milhões este ano. Ou seja, o governo Lula tem uma estratégia de política agrícola que valoriza as duas agriculturas que são produtivas. O que poderia exemplificar a aplicação

dessa política agrícola do governo? Acho que há dois momentos exemplares disso, nos quais as duas agriculturas responderam de forma muito positiva. Primeiramente vou contextualizar. Se lembrarmos do período entre 2003 e início de 2004, quando o presidente Lula assumiu, tínhamos uma economia absolutamente vulnerável, estávamos à beira de uma crise econômica, vivíamos o fantasma de que o Brasil poderia experimentar o fenômeno parecido com o da Argentina, de hiperinflação e de endividamento. Bom, naquela ocasião, foi muito importante, foi central, que a agricultura de escala aproveitasse um período de alta no preço das commodities e produzisse soja para a exportação, ajudando a balança de pagamento e criando condições favoráveis para sairmos da crise. Com isso, entramos em outro padrão de economia, com mais estabilidade, que voltou a gerar emprego. O país voltou a crescer e se diminuiu a desigualdade. Nesse momento, essa agricultura foi fundamental. No segundo exemplo, devemos olhar o primeiro semestre de 2008, quando o mundo todo foi sacudido por uma crise no preço dos alimentos. A FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação] até fez uma conferência mundial extraordinária para tratar desse tema. Pois bem, em todo o mundo, a cesta básica dos alimentos subiu mais de 80% em média. Aqui no Brasil foi onde os preços dos alimentos menos subiram, já que a variação não chegou a 20%. Por quê? Porque aqui já tínhamos uma agricultura familiar bem estruturada com políticas públicas, crédito, assistência técnica, seguro agrícola, preço mínimo e programa de comercialização. A agricultura familiar respondeu de uma maneira muito rápida, com muita produtividade para o Brasil enfrentar essa crise. Passamos bem por isso. Então, nos dois momentos, as duas agriculturas responderam ao desafio do risco que a sociedade brasileira estava correndo. O governo tem respostas muito eficientes ao apostar nos dois setores. Associações de produtores rurais, como a Sociedade Rural Brasileira (SRB) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), criticam a revisão dos índices, apesar de cidades produtoras nas regiões do CentroOeste e Sul do país

terem apresentado produtividade média, em 2008, acima do número exigido pela nova atualização. A crítica desses produtores é pertinente? Claro que não. Nesse debate sobre os índices de produtividade, temos que nos deter em particularidades que são bastante estranhas. Se prestarmos atenção, vamos ver que nenhum setor está discutindo os índices em si. Os números que, por exemplo, passam de cinco para dez ou de cinco para oito. Por quê? Porque são absolutamente confortáveis para qualquer produtor nesse país que tenha um mínimo de cuidado com a sua produção. Quem tem que se preocupar com os índices de produtividade são aquelas pessoas que abandonaram sua terra, que produzem mal ou que usam a terra para especulação financeira, para reserva de mercado ou para reserva de poder político. Quem produz minimamente não tem nenhuma razão para se preocupar com isso. Nenhuma razão! Então, o debate se dá de uma forma muito deformada. Não conheço nenhum produtor sério que tenha olhado os novos índices e tenha se preocupado. Eu pergunto sempre, mas quem é que tem medo da nossa produtividade? Porque a nossa agricultura, ao longo dos últimos anos, tem cantado em prosa e verso que é muito produtiva. E ela é muito produtiva de fato, e os agricultores que são produtivos não têm o que temer. Então, o que está por trás do debate? O que não aparece de forma clara é o fato de que muitas pessoas ainda são contra aquilo que está na Constituição. E o que é? A função social da terra. O que a Constituição brasileira e a da maioria dos países diz? Que não devemos tratar a terra como um bem qualquer, pois ela é um bem finito, tem tamanho determinado. As terras agricultáveis de um país devem ser tratadas de forma responsável e reverter algo benéfico para toda a sociedade. Não são como carros de luxo ou anéis de brilhante, que a pessoa usufrui da forma como bem entender e não dá satisfação para ninguém. Terra tem que ser produtiva, porque, se ela não produzir alimentos, o país tem que passar a importar comida. Se o país passar a importar, isso tem reflexo na inflação, no custo de vida. Terra também tem que cumprir função ambiental, que é de interesse de

Quer dizer que o reajuste dos índices beneficia não apenas os trabalhadores do campo, mas toda a sociedade? Isto é muito importante de percebermos neste debate. O que a legislação diz de forma absolutamente clara? Se uma vez for detectado em uma propriedade que ela produz abaixo do índice mínimo – e também é importante de dizer que estamos determinando como índice de produtividade o índice mínimo –, o governo federal poderá decretar essa área improdutiva. Poderá desapropriá-la para fins de reforma agrária. Veja bem, poderá. Tem um conjunto de áreas no país que o Incra determina que é improdutivo e podemos não desapropriar, porque não queremos fazer assentamento naquela região ou porque aquela terra é imprópria para assentamentos de reforma agrária. O reajuste dos números não é especificamente para avançar a reforma agrária. O fato de podermos desapropriar para a reforma agrária é secundário em relação a esse tema. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem pressionado o governo pela atualização dos números. Essa atitude é legítima? A ação não só é legítima por parte do MST, como seria legítima por parte de toda a sociedade brasileira. A revisão dos índices de produtividade não é de interesse exclusivo do MST. É de interesse dos trabalhadores de uma maneira geral, dos produtores, dos consumidores e de todo mundo que quer dispor de alimentos baratos de qualidade. Sobre o fato do nosso país não reajustar os índices há mais de 30 anos, primeiro, isso depõe contra a imagem da agricultura brasileira. Segundo, é contra os interesses do conjunto da população. O problema dos índices não pode ser visto como uma queda de braço entre sem-terra e ruralistas. Isso é um problema que interessa a todas as pessoas do campo e da cidade. Qual é a previsão para que os novos índices entrem em vigor? Para mim é muito difícil estabelecer um prazo, pois têm coisas que fogem ao meu controle. Já fiz o trabalho que eu tinha que fazer, que era assinar a portaria e encaminhar para o ministro da Agricultura. Espero que em um prazo curto de tempo isso possa ser resolvido. Os novos índices seriam estabelecidos este ano e passariam a valer a partir de 2010. (Ouça a entrevista em áudio na página da Radioagência NP, no endereço www. radioagencianp.com.br)

Quem é O engenheiro civil Guilherme Cassel é ministro do Desenvolvimento Agrário desde março de 2006, quando assumiu o posto no lugar de Miguel Rossetto. Ele ocupava a secretariaexecutiva do Ministério desde o início do governo Lula, em 2003.


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brasil

Acordo Brasil-Igreja gera polêmica Reprodução

RELIGIÃO Concordata com Vaticano e Lei Geral das Religiões são criticadas por ferir princípios do Estado laico Dafne Melo da Redação

meteu num assunto que não diz respeito a um Estado laico”, opina.

NO FINAL DE agosto, a Câmara dos Deputados aprovou um acordo entre o Estado brasileiro e o Vaticano que cria um Estatuto Jurídico da Igreja católica no país. A reação contrária surgiu de diversos lados: magistrados, advogados, parlamentares, movimentos sociais e outras confissões religiosas condenaram o acordo. Ao todo, são 20 artigos que versam, dentre outros pontos, sobre a manutenção do patrimônio histórico e religioso, o ensino religioso em escolas, o reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja católica e de todas as instituições eclesiásticas, isenções fiscais à Igreja e as relações trabalhistas que se dão entre ela e religiosos. O acordo foi proposto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo papa Bento XVI (Joseph Ratzinger) em novembro de 2008. Aprovado pelo Ministério das Relações Exteriores em meados de agosto, agora espera votação pelo Senado. Para o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), as leis são frutos de um acordo entre um Estado republicano e um teocrático e, por isso, entraria em conflito com a Constituição brasileira, que garante o Estado laico no artigo 19. “Não cabe ao Estado regulamentar essa área, se

Conteúdo Um dos pontos mais criticados da concordata – como é chamado tecnicamente o acordo – é o que trata da questão do ensino religioso em escolas públicas. “O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil”. Regina Jurkewicz, integrante das Católicas pelo Direito de Decidir – ONG que atua em defesa dos direitos reprodutivos das mulheres – e doutora em Sociologia da Religião, acredita que a educação religiosa deve ficar a cargo da família, não cabendo ao Estado financiar tal tipo de estudo. “Se essas aulas se dão em horário normal, esses professores serão pagos pelo Estado. Além do mais, onde está o direito de quem tem posições agnósticas ou ateias?”, questiona. Ivan Valente acredita que o correto seria uma disciplina de história das religiões, e não abrir espaço para que se faça “proselitismo religioso” nas escolas. “O Estado laico existe, dentre outras coisas, para garantir a pluralidade religiosa. Garantir o direito de crer e não-crer”, afirma.

O papa Bento XVI, Joseph Ratzinger, que propôs o acordo ao presidente Lula

Sem direitos O artigo 16 regulariza o vínculo não-empregatício entre uma instituição eclesiástica e religiosos, estabelecendo que as leis trabalhistas vigentes no Brasil não precisam ser aplicadas. Na prática, nada que hoje já não seja praticado. Regina Jurkewicz acredita que o correto seria regulamentar algo no sentido contrário. “E se um padre resolve largar a batina com seus 40, 50 anos de idade? Vai recomeçar do nada?”, questiona. A isenção fiscal às instituições eclesiásticas também fica assegurada pelo acordo. “Todo cidadão paga imposto e acabamos financiando a manutenção da Igreja”, afirma Jurkewicz. Um argumento dos que defendem es-

sa lei, é que muitas dessas igrejas realizam trabalhos comunitários e filantrópicos, mas, para garantir a isenção desses estabelecimentos, já existem outros meios. “Em casos de instituições de caridade ou filantrópicas, há outras leis que garantem a isenção fiscal, não é necessário criar esse privilégio para a pessoa jurídica eclesiástica”, defende a socióloga. Dom Demétrio Valentim, bispo de Jales (SP), rebate as críticas e acredita que o acordo não traz nada de novo, mas apenas regulamenta o que já funciona há décadas. “O acordo fica estritamente dentro dos parâmetros constitucionais do ordenamento jurídico brasileiro. O estranho não é o Brasil fazer esse acordo. O es-

tranho era o Brasil ser o único país do ocidente que ainda não tinha um acordo formal com a Santa Sé, que já tem acordos com mais de 70 países. Até com o Cazaquistão já foi celebrado um acordo, país onde existem só 4 mil católicos”, argumenta. Lei geral Logo que aprovada pelo Itamaraty, a bancada evangélica aproveitou a votação na Câmara para empurrar a Lei Geral das Religiões, que, de acordo com Ivan Valente, na prática reproduz artigo por artigo a concordata com o Vaticano, garantindo os mesmos direitos para todas as religiões, não apenas a católica. “O debate da Câmara foi vergonhoso, com cada banca-

da pautando a discussão de acordo com os interesses da religião que representa, e não de acordo com o Estado republicano”, lamenta o deputado. A seu ver, os acordos têm como pano de fundo a disputa por hegemonia das igrejas pentecostais e da católica. Dom Demétrio argumenta que a presença e importância histórica da Igreja católica no Brasil não pode ser negada e, portanto, “era mais do que razoável que um país como o Brasil, em que a Igreja católica tem uma larga presença histórica, houvesse um acordo que definisse mais claramente o relacionamento entre Igreja e Estado, respeitando as respectivas autonomias e reconhecendo os respectivos ordenamentos jurídicos”.

ANÁLISE

Torturas no Rio Grande do Sul e os 30 anos da Anistia Marcelo Zelic A demora em realizar ações concretas para que a Justiça de transição reforce o estado democrático de direito no Brasil é uma das raízes das atrocidades que acontecem no Rio Grande do Sul, patrocinadas pelo governo Yeda Crusius (PSBD) e a Brigada Militar. Segundo algumas interpretações, a Anistia de 1979 colocou uma pedra sobre o assunto dos crimes de prisões ilegais, torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados praticados pelos agentes públicos que serviam nos órgãos de segurança da ditadura militar (1964-1985). Inúmeros atos foram realizados por ocasião dos 30 anos da Anistia, nos quais a responsabilização dos torturadores, a abertura dos arquivos e a localização dos desaparecidos políticos estiveram em evidência, mostrando que uma revisão histórica sobre o papel que a lei cumpriu no sentido de gerar impunidade está em marcha no país.

“A ação da polícia gaúcha é um atentado ao estado democrático de direito” O juiz chileno Victor Montiglio ordenou a prisão de pelo menos 120 ex-militares e oficiais da polícia secreta por acusações de abusos dos direitos humanos durante o governo militar de Augusto Pinochet (1973-1990). No Brasil aguardamos um posicionamento do STF sobre a questão levantada pela OAB,

para que a Justiça possa agir contra as violações realizadas em nosso país, que atingiram militantes de organizações que combateram a ditadura. A Justiça de transição preconiza a atuação em quatro frentes simultâneas para termos o resultado esperado da Lei de Anistia de 1979. Ou seja: a responsabilização dos agentes públicos que praticaram crimes de lesa-humanidade, a reparação aos atingidos, o direito à memória e à verdade – com a abertura de todos os arquivos sobre o período – e a mudança das estruturas, mentalidade e condutas dos órgãos de segurança pública no país, incorporando o respeito à constituição e a pratica dos direitos humanos em suas ações. A impunidade fere o estado democrático de direito tanto quanto os crimes de lesa-humanidade praticados. A “certeza da impunidade” corrói uma adequação das práticas de segurança pública aos princípios da Justiça de transição e dos direitos humanos, proporcionando o atentado ao ordenamento jurídico vigente e os violentos fatos de repressão, torturas e assassinatos que têm acontecido no sul do país. Para o vice-presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), Percílio de Sousa Neto, conforme relatório parcial produzido após visita ao RS em 2008 para apurar denúncia sobre a criminalização dos movimentos sociais gaúchos, “a ação da polícia gaúcha é um atentado ao estado democrático de direito”. Na Audiência Pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado, realizada em Porto Alegre no dia 24 de junho de 2008, inúmeras denúncias foram registradas na Carta dos Movimentos Sociais Gaúchos; entre elas, o assassinato do sapateiro Jair da Costa, durante uma ma-

Jefferson Bernardes/Palácio Piratini

A governadora Yeda Crusius recebe coronéis da Brigada Militar gaúcha

É somente com atitudes firmes contra a impunidade no RS e contra os crimes de lesa-humanidade da ditadura militar que a Justiça de transição se estabelecerá no país nifestação em defesa do emprego, mostrando que a prática de levar armas letais a situações de campo controlado é constante pela Brigada Militar, o que revela a predisposição à violência, praticada pela política de segurança pública desenvolvida no Estado do Rio Grande do Sul. O assassinato de Elton Brum da Silva é a repetição dessa violência, prática permanente de uma política de segurança pública que retoma as ações truculentas realizadas no período da ditadura militar. O CDDPH, entre várias recomendações à governadora Yeda Crusius, solicita a Revogação, pelo Comando-Geral da Brigada Militar, da

Nota de Instrução Operacional nº 006.1, por cerceamento de direitos e garantias fundamentais (liberdade de expressão e reunião). Nenhuma atitude ou palavra foi encaminhada pela governadora. A existência da nota de instrução operacional nº 006.1 é expressão do arbítrio que vive o povo gaúcho e fruto da impunidade sobre os fatos que vivemos no período da ditadura militar, que abrem o precedente para que condutas que ferem os tratados internacionais assinados pelo Brasil sejam sistematicamente desrespeitadas pela atuação violenta e arbitrária de agentes da Brigada Mili-

tar, cumprindo orientação da política de segurança pública da governadora Yeda Crusius. Já em 2006, a tentativa de apuração de torturas físicas e psicológicas na desocupação da fazenda Guerra, em Coqueiro do Sul (RS), gerou intimidação, ameaças de morte e o afastamento da procuradora responsável pela apuração do caso, fazendo com que os responsáveis pelas barbaridades apuradas no inquérito civil nº 0144/2006 fiquem até hoje impunes, uma vez que tal inquérito ou foi arquivado pelo Ministério Público de Carazinho ou encontra-se com o procurador-geral de Justiça sem encaminhamento, num flagrante desrespeito à cidadania. É fundamental atitudes como a do ministro Paulo Vannucchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, que solicitou a apuração das torturas sofridas pelos sem-terra – homens, mulheres e crianças – tanto na de-

socupação da prefeitura de São Gabriel em 12 de agosto como na desocupação da Fazenda Southall em 21 de agosto, na qual muitos cidadãos e cidadãs gaúchos sofreram torturas físicas, com emprego de armas não-letais e psicológicas. Apurar essas torturas praticadas por agentes públicos da Brigada Militar do RS e responsabilizar os culpados por essas atrocidades e crimes de lesa-humanidade são tarefas do Ministério Público Federal, uma vez que a conduta do Ministério Público Estadual no inquérito civil nº 0144/2006 coloca em dúvida a intenção de que tais fatos sejam esclarecidos. Os olhos da nação encontram-se voltados ao Rio Grande do Sul buscando justiça. Justiça para os assassinos de Elton Brum da Silva e Jair da Costa, bem como para todos os cidadãos e cidadãs que sofreram torturas pelos agentes da Brigada Militar. É somente com atitudes firmes contra a impunidade no RS e contra os crimes de lesahumanidade da ditadura militar que a Justiça de transição se estabelecerá no país, reforçando a construção do estado democrático de direito; assim a Anistia de 1979 poderá ser página virada na história de nosso país. “Brasil nunca mais” não é um frase vazia, é antes de tudo o esforço e luta de tantos brasileiros e brasileiras que se dedicam à construção de um Brasil justo e soberano. Aos mortos, perseguidos e torturados no Rio Grande do Sul, nem um minuto de silêncio. Marcelo Zelic é vicepresidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP, membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e coordenador do Projeto Armazém Memória.


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Brasil muda de patamar com acordo Ricardo Stuckert/PR

GEOPOLÍTICA Investimento em tecnologia bélica abranda domínio dos EUA na AL; pré-sal e Amazônia são pretextos para medida Renato Godoy de Toledo da Redação O PRESIDENTE LUIZ Inácio Lula da Silva reuniu-se com o seu colega francês Nicolas Sarkozy e firmou um acordo comercial-militar que promete estremecer a ordem geopolítica internacional. A tão falada multipolaridade do mundo pós-crise parece ganhar contornos mais nítidos. De forma tímida e sem ameaçar diretamente a hegemonia dos Estados Unidos, o Brasil deve se tornar um polo da indústria bélica, com tecnologia para produzir seus próprios armamentos. O acordo de cooperação militar está estipulado em R$ 32,5 bilhões, a serem pagos pelo Brasil nos próximos 20 anos. Até o momento, ficou previsto que o país comprará 36 aviões de combate Rafale, 51 helicópteros e 4 submarinos. O Brasil também deve importar tecnologia para construir uma base militar, um estaleiro e um submarino com propulsão nuclear. A França irá comprar 10 aviões KC-390 da Embraer. A oposição critica a medida de Lula por ter privilegiado a compra de jatos mais caros do que aqueles oferecidos por EUA e Suécia – países que se disseram insatisfeitos com as tratativas entre Lula e Sarkozy. Para analistas, o que incomoda a oposição é o fato de o Brasil trocar de patamar em termos de liderança regional. Enquanto Colômbia e Peru mantêm uma opção preferencial de submissão aos EUA, a Venezuela articula-se com Rússia e Irã. Restou ao Brasil ocupar esse amplo espectro do “centro geopolítico” que separa os dois blocos, aliando-se à França.

Lula recebe o presidente Sarkozy no Palácio da Alvorada: acordo reflete intenção brasileira de se tornar um polo da indústria bélica

“Não creio que [o Brasil] dependerá da França, porque as armas serão construídas no Brasil”, prevê Raúl Zibechi Pré-sal e Amazônia O governo brasileiro aponta o investimento nas Forças Armadas como forma de garantir a defesa do território e, sobretudo, do pré-sal. Para o sociólogo Emir Sader, professor da Uerj, a medida do governo foi acertada e impõe uma derrota aos EUA, que deixarão de ter a América Latina como “o pátio traseiro” de sua casa. “Um dos grandes objetivos desse pacto é passar do mundo unipolar para o multipolar. Acho que esse investimento tem mais foco em

proteger a Amazônia do que o pré-sal. Sobre o pré-sal, até existe um certo tipo de questionamento [externo], se as jazidas estão ou não dentro das 200 milhas [que separam águas brasileiras das internacionais], mas o principal é a Amazônia”, aponta Sader. Para ele, as críticas da oposição refletem uma falta de projeto do setor e afirma que as compras militares não são como as demais, ou seja, o preço não é o mais importante, mas sim a relação política com o país produtor. “A opo-

sição não tem plataforma em relação a nada”, destaca. Como exemplo de crítica infundada, o sociólogo cita o jornal O Globo, que comparou a declaração de Lula, de que a decisão em última instância é dele, a de Luiz XIV, imperador absolutista francês, que cunhou a célebre frase “o Estado sou eu”. “Lula está certo, é uma visão política, de soberania nacional. É uma visão política prioritária e não pode ser submetida a interesses menores”, diz. Intenção dos EUA Para o jornalista uruguaio Raúl Zibechi, especialista em América Latina, as compras militares brasileiras deixam mais claras quais são as intenções dos EUA na região. Ao contrário do que parece, as bases estadunidenses

Doutrina Monroe está ameaçada, afirma especialista Opção pela parceria com a França interrompe hegemonia continental dos EUA da Redação

O jornalista uruguaio Raúl Zibechi aponta, tal como o sociólogo Emir Sader, que a doutrina Monroe está ameaçada. Essa conduta foi criada em 1823 pelo presidente estadunidense James Monroe, que colocou como missão para os EUA manter a hegemonia do país no continente americano. A frase “a América para os americanos” resu-

me a doutrina, que vem sendo respeitada desde então. Com as movimentações do Brasil pela busca de outros parceiros comerciais e políticos e sua emergência enquanto liderança global, especialistas apontam que os mandamentos de James Monroe começam a ser desobedecidos. “Brasil e França criam uma potente indústria militar no Brasil, o que lhe permite sair da dependência dos EUA e ter não somente uma forte presença militar, mas autonomia para fabricar toda a gama de armas de combate, desde submarinos nucleares até caças de ataque. É a maior mudança na geopolítica regional em mais de um século, desde a era Monroe de ‘América para os america-

nos’”, avalia o uruguaio. Os acordos entre Brasil e França se dão num momento de desdobramentos cruciais para a região, tais como o estreitamento das relações da Venezuela com a Rússia e Irã e as notícias de que a América Latina tornou-se um oásis petrolífero, diante da escassez do combustível no mundo. Venezuela Tanto Chávez como Lula moveram suas peças nesse xadrez geopolítico com vistas a conter o avanço dos EUA sobre o continente, de acordo com Raúl Zibechi. “A Venezuela passou a ter as primeiras reservas de petróleo do mundo, acima da Arábia Saudita. Isso quer dizer que é um objetivo de primei-

ra ordem dos EUA. Por isso, Chávez necessita armar-se. O Brasil joga de forma a dissuadir uma intervenção militar dos EUA contra a Venezuela, que não lhe seria nada bom porque necessita defender a Amazônia”, observa. Enquanto Chávez mantém uma postura de enfrentamento direto com Washington, o Brasil opta por um tom mais conciliador, ainda que não alinhado. Para Zibechi, essas diferenças dificultam as relações entre os países. “Como o Brasil não está disposto a enfrentar os EUA, as relações com a Venezuela se tornarão cada vez mais complexas e será difícil acompanhar sempre as medidas de Chávez. Este é um cenário muito complexo e variável”, conclui. (RGT)

na Colômbia não têm como principal foco conter a “ameaça chavista”, mas sim a expansão da liderança brasileira. “O acordo com a França permite entender as bases estadunidenses na Colômbia. São para frear o Brasil, para pôr abaixo a Unasul, é para evitar o inevitável, a perda da hegemonia dos EUA”, avalia. A importância de deter o Brasil aumentou após, recentemente, os EUA perderem o posto de maior negociador com o país para a China. “Primeiro veio a construção do Brasil como potência global, e junto a isso o declínio dos EUA. Depois veio o descobrimento do pré-sal, que dá autonomia energética ao Brasil. Além disso, desde abril, a China desbanca os EUA como o principal só-

cio comercial do Brasil e isso quer dizer que a rota de comércio por meio dos Andes é a chave dessa aliança entre Ásia e América do Sul. As bases na Colômbia são uma reação dos EUA ante esse declínio para frear a aliança Brasil-China”, analisa Zibechi. De acordo com o uruguaio, o estreitamento de relações do Brasil com a França não significa que o país esteja trocando uma dependência por outra. “Não creio que [o Brasil] dependerá da França, porque as armas serão construídas no Brasil. Acontece que o país não pode romper com os EUA, mas busca alijar-se suavemente, porque o peso dos EUA na América do Sul segue sendo muito grande e continuará sendo uma grande potência, mas não a única”, prevê.

“França não é ONG”, diz crítico do acordo Brasil agiu como “nanico” nas negociações militares da Redação Nem todos acreditam que o Brasil tenha tido um avanço de patamar nos acordos militares com a França. Para o economista Nildo Ouriques, especialista em política latino-americana, o país entrou e saiu de forma submissa das negociações. Além disso, as medidas ocorreram de forma obscura, sem debate público. “É um país que foi tão apequenado pela submissão a Washington que não tem noção, não controla nem sequer as fronteiras. Ainda é uma estratégia defensiva, todos os argumentos são nanicos. Lula tinha que vir em cadeia nacional falar da importância estratégica. A nação não sabe se tem um acordo estratégico e não sabe se tem uma política estratégica brasileira. Veja o tamanho do desarme intelectual nessa área! Opinar sobre o acordo é opinar no escuro”, contesta Ouriques. O economista também aponta para o fato de os interesses da França ainda não terem sido revelados. “Primei-

ro não vamos esquecer que a França não é uma ONG, nem um país benevolente. Eles são um país imperialista, os caribenhos que o digam. É uma luta interimperialista da qual o Brasil se aproveita para avançar alguns centímetros”, avalia.

“Se for para continuar exportando soja e etanol para os EUA, eu digo que é inútil comprar aviões”, considera Nildo Ouriques Para Ouriques, pela maneira defensiva e conciliadora como o Brasil se insere na ordem política mundial não seria necessária a compra de armamentos. “Se for para continuar exportando soja e etanol para os EUA, eu digo que é inútil comprar aviões. Se o projeto é exportar etanol, tal como planeja Lula, não vejo razão porque é um projeto de submissão. Se formos mudar para um projeto independente de soberania, aí sim poderia começar a comprar aviões”, considera. (RGT)


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Battisti e o golpe institucional Wilson Dias/Abr

ANÁLISE O principal objetivo da direita brasileira e seus representantes no STF é criar uma situação de impasse que leve ao desgaste e à dimuição da imagem e do poder do governo Lula

PSB Antipopular

Integrada por movimentos e organizações populares, a Frente de Resistência Urbana aprovou, em encontro realizado dia 7, nota de repúdio ao prefeito de Belo Horizonte (MG), Márcio Lacerda (PSB), por ter enviado à Câmara Municipal projeto de lei que exclui do Programa Minha Casa, Minha Vida as famílias que ocuparam terrenos urbanos. Revela assim a sua visão atrasada e contrária ao próprio programa.

Poder reacionário

Não apenas a morosidade é a maior marca do Poder Judiciário no Brasil. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas aponta também a falta de confiança do povo nos juízes e nos tribunais brasileiros. Na verdade, o Judiciário tem sido o maior aliado das classes dominantes e das forças hegemônicas na aplicação do modelo econômico neoliberal. Basta ver as desregulações praticadas pelo Supremo Tribunal Federal.

Rui Martins EXTRADITAR CESARE Battisti não é o alvo principal da direita brasileira e de seus representantes no Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo é criar uma situação de impasse que, de uma ou outra forma, leve a um desgaste e a uma dimuição da imagem e do poder do governo do presidente Lula. Em outras palavras, uma versão jurídica de golpe institucional, pela qual se possa questionar a real competência do Poder Executivo e, aberta essa brecha, submeter todas as importantes decisões governamentais envolvendo interesses estrangeiros à aprovação pelo STF. A importância atual dada à questão da extradição de Battisti confirma que o governo está sendo submetido a um teste que, pelo visto, poderá dar resultado. Na análise do relator do processo do caso Battisti surgiu, por diversas vezes, a interpretação jurídica de que uma decisão favorável do STF à extradição será definitiva, e, diante do acordo bilaterial de extradição entre Brasil e Itália, obrigará nosso país a um rápido cumprimento, sem a possibilidade legal de uma intervenção do presidente Lula para suspender a extradição. Se assim for, terá criada a jurisprudência de que, pelo menos em casos bilaterais de direito internacional, a última palavra não será mais a do presidente da República, mas do STF. E, mais rápido

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Corrupção certa

Sessão do STF de julgamento do pedido de extradição de Cesare Battisti

do que se pensa, o STF assumirá o poder de estatuir o que se pode ou não fazer no país. Nossa soberania não dependerá mais do Executivo eleito pelo povo, mas de um grupo de juristas togados que, segundo a tendência das elites dominantes, assumirá feições de junta decisória, e, no momento, o verdadeiro presidente brasileiro passaria a ser Gilmar Mendes. Tudo isso no estilo light e clean, sem tropas nas ruas e sem edição de atos institucionais. O importante, logo no início da despropositada pretensão italiana, era não ser dado deferimento ao mandado de segurança italiano. A aceitação de se discutir que um outro país, no caso a Itália, ponha em dúvida e discuta a validade de uma questão ligada a uma decisão soberana de um ministro foi um ato político contra Lula e constitui, agora, um perigoso precedente para o futuro de nossas instituições. Que não soframos o vexame de ver a Itália processar o presidente Lula num tribunal internacional ou de querer propor um tribunal arbitral, por não cumprimento da extradição, caso o STF

assim decida e nosso presidente prefira ignorar. No momento, estamos a um passo apenas de uma crise institucional, um conflito inédito entre o Supremo Tribunal Federal e o Poder Executivo. A primeira etapa já está quase consumada – um relator do processo no STF considera ilegal e sem qualquer efeito a decisão do ministro da Justiça (justamente o da Justiça), Tarso Genro, de conceder refúgio a um requerente italiano. Embora não tivesse previsto a entrada no mérito do processo, o mesmo relator, no seu longo arrazoado, defendeu os argumentos da Itália impetrante, recusou os argumentos do ministro da Justiça e considerou praticamente como ofensas à Itália as explicações do ministro Tarso sobre aquele momento de exceção em que vivia a Itália. E, recusando a dominância política do processo, preferiu repetir serem crimes comuns, e não políticos, os atribuídos a Battisti, mesmo se num primeiro processo ele não fosse acusado de crimes e se as evidências anteriores

às denúncias de um arrependido o inocentem. Assim, o relator aceitou como verdadeiras as acusações dos assassinatos imputados a Cesare Battisti, tirando ele próprio suas conclusões sem um novo julgamento, que a Itália, embora tivesse prometido, nunca fez e nunca fará. E ninguém deve se iludir. No caso de extradição, Battisti cumprirá prisão perpétua, embora os italianos simulem e prometam aceitar até uma redução dos dois anos de prisão no Brasil, na pena máxima de 30 anos. Mesmo que não se consume a ameaça de golpe jurídico-institucional, a estratégia de atingir o presidente Lula está prestes a se concluir, colocando em pernicioso atrito o Poder Executivo e o Judiciário e sujeitando o presidente a um desgaste popular, pois, ao tomar uma decisão, seja qual for, pela extradição ou contra a extradição de Battisti, provocará reações de protesto. Rui Martins é jornalista brasileiro que vive em Berna (Suíça).

Como afirmou Giordano Bruno diante do tribunal da inquisição que o condenou à fogueira, é ilusão imaginar que uma instituição se transforme pela iniciativa de seus próprios membros. O maior exemplo é a proposta de reforma eleitoral em tramitação no Congresso Nacional, que mantém o esquema de doação não-identificada para as campanhas dos candidatos. O alimento da corrupção está mantido.

Rebelião baiana

Há muito tempo que as entidades de direitos humanos da Bahia denunciam as péssimas condições carcerárias naquele Estado, as prisões arbitrárias, o tratamento desumano e a demora na liberação das pessoas com pena cumprida. Agora as autoridades baianas tentam imputar ao crime organizado as manifestações de protesto e explosões de violência a partir dos presídios. É mais uma obra dos equívocos da segurança pública.

Falta comida

De janeiro a julho deste ano, o Brasil precisou aumentar significativamente a importação de gêneros alimentícios básicos, entre os quais de leite e derivados e de arroz, que tiveram aumentos de 59% e 37%, respectivamente, em relação ao mesmo período do ano anterior. Pergunta elementar: por que o governo federal não prioriza a agricultura familiar e a autossuficiência dos alimentos?

CMI/Brasil

Bode expiatório

Um precedente: Olga Benário

Battisti, uma presa perseguida pelos predadores sempre por interessses políticos

Nos anos de 1930, o STF tomou uma vergonhosa decisão que desonra até hoje a história do nosso país

Cesare Battisti – cidadão italiano sem importância que, para garantir o sustento de sua família e pagar as contas no fim de mês, conseguiu (sonho dos antigos emigrantes portugueses) ter um pequeno apartamento em Paris, em troca do serviço de zelador (entregar as correspondências, varrer as escadas e recolher o lixo), aproveitando as horas livres para escrever romances policiais – poderia ser apenas um personagem de Antonio Tabucchi (escritor italiano). Poderia ser, por exemplo, o discreto senhor Pereira, na Lisboa salazarista contada, nas cores escuras da repressão e medo da ditadura, pelo escritor italiano, de Pisa, apaixonado por Fernando Pessoa – a ponto de aprender o português e integrar-se no mundo lusitano. Pouca gente saberia da juventude tumultuosa do senhor italiano, às vezes casmurro por seu destino, longe de imaginar que, alguns anos depois, seria manchete de jornais italianos, mobilizaria juristas, envolveria governos, depois de ter buscado em vão o anonimato no país de Lula, cuja vitória tanto comemorara, em Paris, na modesta condição de emigrante e refugiado político. Poderia, mas lhe foi negada a existência discreta que as-

piram os fugitivos, sempre temerosos de serem localizados e descobertos. A cansativa fuga a pé da Itália, a França, o México, Paris, novamente a fuga até chegar ao Brasil para viver três anos na clandestinidade – essa longa marcha em busca de um lugar seguro e livre foi frustrada por uma nova prisão, e já se vão dois anos. Uma esperança de liberdade logo foi substituída pela ameaça de passar o resto de sua vida na prisão. Acusado de crimes que afirma não ter cometido, acolhido na fuga pelo presidente francês François Mitterrand, seu estatuto de refugiado ia ser definitivamente substituído por uma naturalização francesa quando outro presidente, Jacques Chirac, decidiu reabrir as acusações já prescritas, forçando novo exílio, desta vez no Brasil, com outro nome e outra aparência, mas sem conseguir escapar a um terceiro presidente francês, Nicolas Sarkozi, já em território brasileiro e mais de 30 anos depois dos crimes a ele atribuídos. Em todos esses episódios o interesse de seus perseguidores era político. Battisti, uma presa tão perseguida pelos predadores, nada mais é que um bode expiatório. (RM)

Olga Benário Prestes, a jovem alemã presa, grávida, na antiga prisão da Frei Caneca, no Rio, era judia e comunista. O pai do seu filho era Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro de uma Esperança que não chegou a se concretizar. E a Justiça brasileira, na sua Corte Suprema, o STF, rejeitou o que poderia ter impedido o crime hediondo, mas legal – o de se deportar para a Alemanha nazista uma judia com destino certo à morte num campo de concentração, tendo no seu ventre uma menina brasileira, nascida no campo da morte de Ravenscbruck, órfã de mãe já nos seus primeiros meses e que só veria o pai aos dez anos de idade. Esse hediondo crime legal, que ainda hoje envergonha nosso país e desqualifica nosso sistema judiciário, foi cometido dentro dos preceitos, prazos e exigências da lei, com arrazoados, falas e decisões assinadas por togados juízes da nossa mais alta magistratura, o Supremo Tribunal Federal. Mas os nomes da vergonha, daqueles que se sujeitaram aos desejos do Estado Novo e de seu capanga, chefe do Doi-Codi da época, Fe-

linto Muller, se perpetuam e podem ser lidos pelos amantes do Direito como os autores da pena de morte, decisão tomada por pusilânimes ou covardes. Diz a Bíblia que a justiça divina se aplica no decorrer de mil gerações. Amém, que assim seja. Os responsáveis pelo processo que negou habeas corpus a Olga Benário foram o ministro Bento de Faria, relator do processo, o presidente do STF, Edmundo Lins, e os ministros Hermenegildo de Barros, Plínio Casado, Laudo de Camargo, Costa Manso, Otávio Kelly e Ataulfo de Paiva. Coincidência ou ajuste de contas do divino, Felinto Muller, o delegado Fleury daqueles anos, morreu carbonizado no único acidente da Varig, alguns quilômetros antes de pousar no aeroporto de Orly. A lei brasileira garantia que uma mulher em estado de gravidez avançado não poderia mais ser extraditada e que, depois de nascido o filho ou filha, já não poderia mais ser expulsa e extraditada. Mas, como dizia o ditador da época, “a lei, ora a lei” (expressão que se tornou antológica, repetida e observada mesmo por togados do STF)... E logo surgiram juristas para justificar o desconhecimento da lei, como Clóvis Beviláqua, mesmo se a medida “visando a expulsanda fosse atingir o nascituro”. Triste episódio, triste lembrança, triste história do nosso Direito que poderá conhecer um remake, porque a honra, a coragem e a humanidade não são transmissíveis como os genes, mas se constroem no decurso da vida. (RM)

União comunista

Estão disponíveis no endereço http://refundacaocomunista.blog spot.com/ os documentos Conjuntura e Tática e Estatutos, relativos ao 2º Congresso da Refundação Comunista, que se propõe a fortalecer e a unificar as lutas das esquerdas no Brasil contra o neoliberalismo e o capitalismo. A sessão nacional do 2º Congresso será realizada em novembro, em Belo Horizonte (MG). Informe-se.

Contra-hegemônico

O Núcleo Piratininga de Comunicação abriu inscrições para o seu 15º Curso Anual NPC, que será realizado de 11 a 15 de novembro no Palácio Capanema (Funarte), no Rio de Janeiro. A mesa de abertura, sobre o tema “Mídia, o verdadeiro partido da burguesia”, terá a participação de Virgínia Fontes, José Arbex Jr., Pascual Serrano e Ignácio Ramonet. Maiores informações no site www.piratininga.org.br

USP privatizada

De acordo com a Afropress, o coordenador do Espaço Físico da USP, professor João Cyro André, intimou o Núcleo de Consciência Negra a desocupar, em 15 dias, o espaço que utiliza há 22 anos com curso pré-vestibular para estudantes de baixa renda. Em compensação as fundações privadas e os cursos pagos ganham espaço de luxo nas faculdades frequentadas pelos estudantes mais ricos. É a privatização da escola pública.

Luta contínua

Dados preliminares da Comissão Pastoral da Terra informam que no primeiro semestre de 2009 ocorreram 366 conflitos no campo, com 12 assassinatos, 44 tentativas de assassinato, 22 ameaças de morte, 90 pessoas presas e seis pessoas torturadas. Esses conflitos envolveram 25 mil famílias, sendo que 393 foram expulsas da terra por jagunços e 4.475, despejadas por ação judicial. A polícia e a Justiça continuam contra os sem-terra.


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brasil

Assembleia gaúcha aceita pedido de impeachment de Yeda Crusius Roosewelt Pinheiro/Abr

RIO GRANDE DO SUL Para o presidente do legislativo, há indícios de envolvimento da governadora com esquema de corrupção

Governadora decidiu divisão da propina, denuncia CPI de Porto Alegre (RS)

Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS) O PRESIDENTE DA Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, deputado Ivar Pavan (PT), aceitou o pedido de impeachment da governadora Yeda Crusius (PSDB) feito pelo Fórum dos Servidores Públicos Estaduais. A decisão foi anunciada no dia 10 em Porto Alegre (RS). Pavan afirmou que a sua função era analisar se há indícios da relação entre a governadora e o esquema de desvio de recursos públicos no Detran. Para isso, foi analisada a ação de improbidade administrativa do Ministério Público entregue à Justiça Federal, da qual foram selecionadas 26 citações que revelam fortes indícios do envolvimento de Yeda com o esquema. Entre as citações, está o depoimento do ex-presidente do Detran Sergio Buchmann. “Analisando os autos, e como destacou o procurador-geral da República em visita que fiz lá em Brasília, não há dúvida de que um grande esquema criminoso se organizou no Rio Grande do Sul para desviar recursos públicos”, disse. No processo de afastamento, Yeda responderá por crime de responsabilidade enquadrado na Lei Federal nº 1.079/50. Rejane de Oliveira, presidente do Cpers Sindicato, que integra o Fórum de Servidores, diz que já esperava pela decisão de Pavan porque o pedido estava bastante consistente. Sobre a possibilidade do pedido ser barrado na Assembleia pela maioria dos deputados, que é da base do governo, Rejane aposta na força da mobilização popular. “E agora com pressão popular vamos cobrar da Assembleia Legislativa, dos deputados, que cumpram com o seu papel. Eles vão ter que decidir se são a favor ou contra a corrupção. Se eles estão do lado da população gaúcha ou se são cúmplices da governadora”, diz.

Após apresentação no plenário, o processo de impeachment deve levar cerca de seis meses para ser concluído Em nota, o governo estadual lamentou a decisão de Pavan, alegando que o deputado tomou a decisão por iniciativa pessoal e lembrando que a Justiça Federal de Santa Maria já havia negado o pedido de afastamento da governadora por considerar insuficientes os documentos da ação do Ministério Público. O pedido de impeachment será apresentado no plenário da Assembleia e, em seguida, publicado no Diário Oficial. Depois, irá passar por uma comissão especial, terá espaço para a contestação da governadora e, no final, será formado um tribunal para julgamento. O processo deve levar cerca de seis meses.

Índices vigente foram calculados com base nas condições tecnológicas e na produção de 1975

Foi a governadora Yeda Crusius quem determinou a divisão da propina entre os beneficiários da fraude do Detran. A denúncia do ex-coordenador da campanha da tucana, o empresário Lair Fest, ao Ministério Público Federal foi revelada pela presidente da CPI da Corrupção, a deputada Stela Farias. As gravações não estavam sob segredo de Justiça. No depoimento, Fest declara que o ex-secretário de

Governo da Prefeitura de Canoas, Chico Fraga, levou uma planilha com os valores à governadora. “Quem determinou os percentuais foi ela”, declarou. O depoimento consta na ação civil de improbidade administrativa que o MPF move contra Yeda e mais oito pessoas, entre deputados e ex-secretários estaduais. Segundo Fest, a governadora teria ficado com R$ 170 mil originados da fraude. O dinheiro era desviado do Detran através de empresas de prestação de serviços terceirizados. (MES)

Tropa de choque inclui deputados e mídia gaúcha Zero Hora alega que pedido de impeachment pode afastar investimentos Miguel Enrique Stédile de Porto Alegre (RS) No dia seguinte ao da abertura formal do segundo pedido de impeachment da história do Brasil, seria natural que a editoria de reportagem especial dos jor-

nais fosse dedicada ao pedido de afastamento da governadora Yeda Crusius. Mas, ao contrário, os leitores gaúchos encontraram duas páginas de reportagens sobre a campanha de trânsito da prefeitura de Porto Alegre. Impossível de ignorar o fato, o jornal Zero Hora abordou o tema na capa e na seção de política como um novo episódio de “confronto” que “divide o estado”, fruto de “debates sem grandezas”. Em seu editorial, o jornal considerou o pedido de impeachment como “grave” e disparou: “não há sentido para um processo de im-

peachment neste momento”. Segundo o jornal, faltam provas, apesar das mais de mil páginas da ação do MPF contra a governadora. No mesmo dia do anúncio do impeachment, a página do jornal na internet estampava como manchete que o pedido afastaria investimentos do Estado. Coincidência das coincidências, a linha editorial do jornal é muito semelhante às notas distribuídas pelo PSDB gaúcho, partido da governadora, e pelo próprio governo do Estado: as provas são insuficientes e a decisão é político-partidária.

Yedistas emperram CPI

A defesa da governadora não tem sido feita apenas nas bancas de jornais. Instalada há uma semana, a CPI para investigar as denúncias de corrupção já teve suas sessões esvaziadas duas vezes para não votar os requerimentos de convocação das testemunhas. A base governista possui oito dos doze membros da comissão. Antes de adotarem a tática do esvaziamento do quórum, os deputados governistas já haviam tentado mudar o regimento da CPI, transferindo poderes da presidente Stela Farias (PT)

para o relator Coffy Rodrigues (PSDB). Depois, tentaram desqualificar as provas entregue pela justiça federal à Comissão como ilícitas. Com o fracasso das iniciativas, passaram a se retirar das sessões antes que os requerimentos de convocação fossem votados. Para o deputado Elvino Bohn Gass, líder da bancada petista, o ato dos governistas foi “covarde”. “O que estamos assistindo é um show de desfaçatez”, declarou. “É o medo da verdade, o medo das provas, o único e real motivo para toda a escaramuça dos governistas”.

SÃO PAULO

Serra cria “apartheid” no sistema público de saúde Com nova lei, Organizações Sociais (OSs) e planos de saúde são presenteados por tucanos Eduardo Sales de Lima da Reportagem NO DIA 14, fazia quatro dias que a neta de Lúcia Rejane estava internada na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Recém-nascida, a menina possui um tumor na parte externa de sua cabeça. Ela permanece internada porque a máquina de ressonância magnética está quebrada e só esse exame permitirá o diagnóstico: tumor maligno ou benigno. Preocupada, tensa, Rejane fumava dentro do complexo da Santa Casa, num espaço exterior. O hospital é público e administrado por uma Organização Social (OS), a Irmandade Santa Casa de Misericórdia do Estado de São Paulo. A alguns metros de Rejane, uma contradição. Existe um outro hospital, o Santa Isabel, que só atende a pessoas conveniadas e também pertence à Irmandade Santa Casa. Causa estranheza, entretanto, um hospital privado ocupando um complexo hospitalar público. A porta do pronto-socorro do hospital Santa Isabel é automática, seu interior é bem acabado, mas o mesmo se encontra vazio. Do lado dos atendidos pelo Sistema

Único de Saúde (SUS), contando 50 metros de distância, cerca de 150 pessoas lotavam um pronto-socorro. Rejane não estava no PS, mas, diante da sua realidade e das dezenas de pessoas esperando por atendimento médico, desabafa: “A gente não tem dinheiro e fica assim; é ruim ter essa diferença, mas os governantes querem assim”. A dona de casa reclamou também da falta de informação e do péssimo atendimento dado a sua neta. A “diferença” de tratamento citada pela avó aflita poderá aumentar ainda mais com a nova lei aprovada pelo governador de São Paulo, José Serra (PSDB). Com a mudança, o tucano poderá ampliar a terceirização de unidades públicas de saúde para entidades privadas em São Paulo e permitirá que até 25% dos atendimentos sejam dedicados aos planos de saúde. Ou seja, os hospitais estaduais gerenciados por OSs serão reembolsados por atendimentos prestados a pacientes que tenham planos de saúde. O deputado estadual Raul Marcelo (Psol) explica que o que já é presenciado por Lúcia Rejane também o será por inúmeras pessoas. “Vai criar o apartheid nos hospitais. Nas Santas Casas já existe uma porta do SUS e outra de um órgão privado”. Como na realidade presenciada por Lúcia Rejane, Raul reforça: “e a porta do plano de saúde vai ser a modernizada”. Mais. Para os críticos da nova lei, o atendimento a convênios prejudicará os

pacientes mais pobres, que comumente enfrentam filas enormes, enquanto pessoas com cobertura privada desfrutarão, dentro da rede pública, melhores serviços. Em declaração ao Correio da Cidadania, o diretor do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Mário Scheffer, reforça o conceito de divisão social já dito pelo deputado Raul Marcelo e também acredita que “isso cria um verdadeiro apartheid dentro do sistema”.

Segundo dados da Secretaria da Fazenda, entre 2000 e 2007, os gastos proporcionais com as OSs cresceram 114,14%, saltando de 9,76% para 20,90% dos recursos da saúde É só fazer as contas. Agora, as OSs vão atender 75% dos usuários do SUS e 25% de clientes com planos de saúde. Quer dizer, uma pessoa que antes esperava sete meses para ser atendida por um endocrinologista, por exemplo, terá um acréscimo de 25% no tempo. Para a administração tucana, o atendimento de planos traria mais recursos ao

setor público. Mas a promotora pública Ana Trotta Yarid entrará com ação de inconstitucionalidade contra o projeto, que visa somente “abrir caminho para a entrada das organizações”. Abre caminho para um setor e literalmente presenteia outro. Ela lembra, em entrevista ao Correio da Cidadania, que o governo sempre teve a possibilidade de cobrar dos planos pelos atendimentos que estes utilizaram na rede pública. O próprio secretário do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Ismar Barbosa Cruz, afirmou no início deste ano que a dívida dos planos de saúde com o SUS é de “no mínimo, R$ 4,3 bilhões”. Nas tetas estatais

Raul Marcelo chama atenção para dados de um relatório do Dieese. Ele mostra que, em 2004, foram gastos R$ 600 milhões com OSs e, em 2008, foram gastos mais de R$ 1 bilhão. Roberto*, funcionário de uma unidade de Assistência Médica Ambulatorial (AMA) da zona leste da capital paulista, gerenciada por uma OS, denuncia que foram gastos, só para a construção de um jardim estilo japonês, cerca de R$ 20 mil, sem nenhum tipo de fiscalização. “Isso revoltou os funcionários”, diz. Por falar em revolta dos funcionários, a terceirização como consequência da criação das OSs é fator preponderante para a diminuição dos encargos trabalhistas. Entre 2000 e 2007, os gastos proporcionais com as OSs cresceram

114,14%, saltando de 9,76% para 20,90% dos recursos da saúde. Já as verbas para “pessoal e encargos sociais” caíram, proporcionalmente, 26,08%, saindo do patamar em 2000 de 53,58% para 39,6% em 2007. Esse dados constam do Sistema de Informações Gerenciais da Execução Orçamentária (Sigeo), da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. O governo economiza custos e obtêm maior lucratividade. Roberto, entretanto, assinala que na AMA onde trabalha nunca observou a contratação de tantos funcionários, porém, todos terceirizados. Assim como chamou a atenção da reportagem o excesso de seguranças na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Foram observados cerca de 15 seguranças. Assanhado

Além de abrir as portas da bonança para as OSs e os planos de saúde, em dezembro de 2007 o governador ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin), com pedido de liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), para derrubar a lei estadual que criou os Conselhos Gestores de Saúde no SUS. “O destaque mais negativo [com a aprovação da nova lei] é o fato dela desarticular o pouco que conquistamos no Brasil. Em primeiro lugar, a saúde é direito e dever do Estado. Em segundo lugar, ela tem que ter o controle social”, defende Raul Marcelo. *nome fictício.


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brasil Suki Ozaki

Mais uma vez sem sua terra Guarani Kaiowá Após expulsão de seu território tradicional, à beira da rodovia BR-163, 36 famílias assistem suas casas e pertences serem incendiados Michelle Amaral da Redação DEVIDO À morosidade por parte do governo federal em reconhecer os territórios Guarani Kaiowá, cerca de 36 famílias da aldeia Laranjeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul, tiveram que sair da terra onde viviam há dois anos para buscar a sobrevivência à beira da estrada. O despejo ocorreu no último dia 11 de setembro, em cumprimento a uma ordem de reintegração de posse determinada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). Sem ter para onde ir, os cerca de 130 Guarani Kaiowá da aldeia, incluindo 60 crianças e adolescentes, permanecem agora acampados em frente à área desocupada, à beira da BR-163, rodovia de tráfego intenso de caminhões em direção ao sul do país. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) relatou que a saída dos Guarani Kaiowá foi espontânea e aconteceu antes mesmo da chegada da Polícia Federal (PF) ao

local. Um oficial de Justiça e agentes da PF de Dourados acompanhariam o despejo. “Cumpriu-se o que havia sido prometido à PF, que os indígenas sairiam pacificamente”, afirmou Rogério Batalha, assessor jurídico do Cimi-MS. Segundo ele, apesar de ter sido pacífica, a saída dos Guarani Kaiowá “foi de muita tristeza e muita desolação”. “Disseram que, se não saíssemos pelas nossas pernas, iam nos tirar à força, que haveria tiroteio”, declarou a indígena Adelaide Albino. O assessor jurídico, que acompanhou o processo de retirada, contou que na aldeia Laranjeira Nhanderu as famílias viviam em casas de sapé rodeadas por mata e não atrapalhavam a produção da fazenda da qual a área faz parte. “Saíram de um local onde tinham toda estrutura para sobreviver, com boas casas, e agora estão na beira de uma estrada muito movimentada, correndo riscos de atropelamento, em barracos de lona, onde não existe nenhuma fonte de água”, relata Batalha. Para ele, esta é uma “situação lamentável, vergonhosa para o Brasil”. Batalha disse que “a única expectativa é que a demarcação das terras indígenas no Estado saia de uma vez por todas”. Criminoso Três dias depois da expulsão, na noite do dia 14 de setembro, as famílias Guarani Kaiowá assistiram da estrada um grupo de pessoas não identificadas queimarem suas 36 casas. O fogo consumiu suas casas e o restante de seus pertences. Durante a noite, os causadores do incêndio continuaram a amedrontar os indígenas, vigian-

do as coisas queimadas com carros e acendendo os faróis contra os barracos na beira da estrada. O Ministério Público Federal foi alertado e se comprometeu a enviar agentes policiais. De acordo com Zezinho, uma das lideranças Guarani, os indígenas estão abalados porque, para eles, além das casas, foram queimados os espíritos da mata onde moravam. “O que queimaram foi mais do que nossas coisas. É difícil eles entenderem”, comentou Zezinho. Durante a madrugada, alguns indígenas ainda se arriscaram a ir à antiga aldeia para resgatar pequenos animais, mas a maioria dos bichos, como galinhas e cachorros, estavam mortos. Processo de despejo Os Guarani Kaiowá chegaram à área no final de 2007 e reivindicam 3.666 hectares como sendo terra tradicional de seus antepassados. No final de 2008 foi expedida a ordem de reintegração de posse pela Justiça Federal de Dourados. Em maio deste ano, chegou a ser determinada a saída das famílias da área. Mas no dia 26 do mesmo mês, após a análise de um pedido de agravo, a desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Marli Ferreira, suspendeu a ordem de reintegração de posse e deu mais 90 dias para a comunidade permanecer na área. Nesse período, a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável, deveria ter realizado estudos para identificar se a área ocupada era território tradicional Guarani. No entanto, os estudos não foram realizados e o prazo dado pela desembarga-

O apoio dos estudantes secundaristas reforçou as reivindicações dos trabalhadores da educação no Rio

dora terminou no dia 26 de agosto. Em consequência, a PF determinou que os indígenas deixassem a área até o dia 11 de setembro. Paralisia do governo Em dezembro de 2007, um termo de ajustamento de conduta firmado por Funai, Ministério Público Federal e Ministério da Justiça de-

terminou o início dos estudos antropológicos para identificar os territórios Guarani Kaiowá. Através de seis portarias, a Funai deveria enviar seis grupos de trabalho para identificar 36 terras indígenas em 26 municípios da região de Dourados. No entanto, devido às pressões de ruralistas, parlamentares e do

governador do Mato Grosso do Sul, André Puccinelli, o governo federal deixou de cumprir o compromisso. Assim a população Guarani Kaiowá – de cerca de 45 mil pessoas – segue sobrevivendo confinada em 30 mil hectares, sofrendo com o assassinato de suas lideranças e altos índices de subnutrição infantil e suicídio.

EDUCAÇÃO

Repressão não barra avanço de professores Apesar da violência, protesto de professores faz governo estadual recuar e Alerj aprovar projeto favorável aos docentes Raquel Junia do Rio de Janeiro (RJ) Não é sempre que um protesto termina assim. Mas, desta vez, nem a repressão policial nem a insensibilidade do governo do Estado do Rio de Janeiro foram capazes de barrar as reivindicações dos trabalhadores do ensino público. Em uma passeata de cerca de 2 mil pessoas que saiu da Igreja da Candelária e chegou a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), ocorrida no último dia 8, os profissionais da educação protestaram contra o projeto de lei 2.474, que seria votado pelos deputados no mesmo dia. Ao chegarem a Alerj, os manifestantes foram recebidos pela tropa de choque da Polícia Militar, que deu ordem de prisão a um professor, soltou bombas de gás lacrimogêneo, disparou sprays de pimenta e balas de borracha. Onze pessoas ficaram feridas, entre elas dez professores e um repórter fotográfico. Apesar da truculência da polícia, os profissionais da edu-

Jackson Anastácio

cação permaneceram no local e, quando a repressão arrefeceu, retomaram seus lugares nas escadarias da Alerj. Diante da pressão dos professores, o projeto de lei sofreu modificações e foi aprovado com reivindicações da categoria, como a manutenção da gratificação de 12% por tempo de serviço e formação, uma gratificação aos animadores culturais e a aproximação do piso salarial dos funcionários ao salário mínimo, com a incorporação de R$ 150 da gratificação conhecida como “Nova Escola”.

“Foi um movimento vitorioso. Não podemos dizer que foi acachapante, mas foi importante. A categoria soube reagir, e o governo foi obrigado a recuar” Entretanto, outras reivindicações não foram atendidas, como a inclusão dos profissionais com carga horária de 40 horas no plano de carreira e também a incorporação da gratificação “Nova Escola” ao salário dos professores imediatamente, já que a lei aprovada define que a “Nova Escola” só será incluída totalmente no salário do professor daqui a seis anos.

Com o atraso do governo federal em cumprir a Constituição, mais uma comunidade de Guarani é despejada

“Cabral, a greve continua, a culpa é sua”, gritavam os professores para o governador do Estado do Rio, Sérgio Cabral (PMDB), após a aprovação da lei. Em frente à Alerj foi realizada uma assembleia que decidiu pela manutenção do estado de greve por tempo indeterminado. A Alerj informou que estabelecerá uma comissão de sindicância para apurar se houve excessos por parte da Polícia Militar. O Sindicato dos Professores do Rio de Janeiro (Sepe) foi convidado para participar da comissão. Apoio ao professor A manifestação contou com apoio de um grande número de estudantes. A convite de seus professores, Silvana Faria, Michelle Santos e Pablo Barbosa, estudantes do 2° ano do ensino médio do Colégio Estadual Professor Alfredo

Baltasar da Silveira, em Piabetá – no município de Magé, região metropolitana do Rio –, foram acompanhar a manifestação e ficaram assustados com a repressão da polícia. “Se não fosse pelo professor, essas pessoas também não seriam policiais, então, eles não deveriam fazer isso”, disse Silvana. A estudante considera uma obrigação apoiar os professores nos protestos por melhores condições de trabalho. “Acho que é um dever deles é uma obrigação nossa também de lutar por eles”, afirmou. A professora de português Maria Rosa Gonçalves incentivou os alunos a participarem da manifestação. “Eu disse para eles nos apoiarem agora porque corremos o risco de daqui a sete, oito anos os filhos deles não terem escola. É importante eles participarem também porque essas experiências vão implan-

tando o espírito de luta neles, e só conseguimos os nossos direitos com muita luta”, disse. Um aluna do 2° ano de formação de professores do Instituto de Educação Rangel Pestana, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, segurava uma das primeiras faixas do protesto e também trazia um nariz de palhaço. “Todo mundo precisa de professor. Essa deveria ser a profissão mais bem paga do mundo. Até o governador Sérgio Cabral precisou de professor”, declarou rapidamente, já que a passeata precisava andar e o apitaço dos outros colegas já soava alto. Avaliação A coordenadora-geral do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe), Vera Nepomuceno, avalia que a gre-

ve trouxe resultados positivos para os trabalhadores, na medida em que foram mantidas algumas conquistas, como a manutenção de 12% de gratificação por tempo de serviço e formação. “Foi um movimento vitorioso. Não podemos dizer que foi acachapante, mas foi importante. A categoria soube reagir, e o governo foi obrigado a recuar”, analisa. Ela critica, porém, a morosidade da incorporação do Nova Escola, que deverá ser pago em sete parcelas até 2015 e não imediatamente, como pediam os professores. O benefício, criado durante o governo de Anthony Garotinho, exemplifica para Vera o avanço das políticas neoliberais sobre a educação. Baseado na meritocracia, o Nova Escola tinha o objetivo de promover desigualdade entre os trabalhadores e, por consequência, a desvalorização do ensino e de seus profissionais. Apesar de considerar que o governo atual segue a tendência de gestões anteriores, Vera não poupa críticas diretas ao governador Sérgio Cabral (PMDB). Ela lembra que, durante sua campanha, em 2006, ele procurou o sindicato e se comprometeu com as reivindicações da categoria. A sindicalista relata que, na época, Cabral chegou a redigir uma carta onde fazia uma série de garantias aos professores, como manutenção dos planos de carreira e o fim das terceirizações. “Nada dessa carta foi cumprido. [O governador] se utilizou das reivindicações da categoria para fazer campanha eleitoral. As pessoas se sentiram usadas”, relata. (Colaborou Patrícia Benvenuti)


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américa latina

Para o MAS, o verdadeiro processo de mudanças começa na próxima gestão ABI

BOLÍVIA Com eleições gerais marcadas para o dia 6 de dezembro, Movimento ao Socialismo se prepara para “refundar o Estado” Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) O CENÁRIO ELEITORAL se define na Bolívia. No dia 7, partidos e agrupações cidadãs inscreveram seus candidatos para a disputa eleitoral a se realizar em 6 de dezembro. O Movimento ao Socialismo – Instrumento para a Soberania dos Povos (MAS-IPSP) rearranja a tática para “refundar o Estado”. O presidente boliviano Evo Morales terá sete adversários na busca de sua reeleição. Três deles se colocam à sua esquerda, todos de ascendência indígena. Alejo Véliz, ex-companheiro do atual mandatário durante sua militância na Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), encabeça a chapa da organização indigenista radical Pueblos por la Libertad y Soberania (Pulso). Román Loyaza, ex-deputado federal, se apresenta pela agrupação cidadã Gente, após romper com o partido do qual foi fundador, o MASIPSP, criticando a manutenção de dirigentes neoliberais na atual gestão. Já René Joaquino, atual prefeito da cidade de Potosí, se apresenta pela organização Alianza Social (AS) e se define como a “esquerda democrática não-confrontacional”.

Segundo Moldiz, a candidatura de Villa expressa “um estado de ânimo de setores da classe média com inclinação cada vez mais fascistoide” As outras quatro candidaturas estão à direita de Morales no espectro político. Ana Maria Flores, pelo Movimento de Unidade Social Patriótica (MUSPA), e Remi Choquehuanca, pela Bolívia Social-Democrata (BSD), são os nomes conservadores de baixa expressão. Já o ex-militar e governador de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, pelo Plan Progresso para Bolívia – Convergência Nacional (PPB-CN), e o megaempresário Samuel Doria Medina, da Frente de Unidad Nacional (UN), conformam a oposição de direita com maior visibilidade nacional. Até o momento, o alto número de candidaturas não foi capaz de abalar a popularidade de Morales, como revela a última pesquisa sobre as eleições presidenciais, divulgada no dia 13. O estudo avaliou a aceitação dos candidatos e o atual presidente teve o mais alto índice: 55%. Em segundo lugar aparece Manfred Reyes Villa com 25% e, em terceiro, Samuel Doria Medina, com 24%. A pesquisa, que conta com uma margem de erro de 4,9%, abordou as maiores cidades da Bolívia: El Alto, La Paz, Cochabamba e Santa Cruz. Porém, como a votação rural tradicionalmente é massiva em Morales, especula-se que sua vantagem seja ainda mais larga.

Para permanecer no governo, Evo Morales terá que superar outros sete candidatos nas eleições de dezembro

Crescimento fascista O analista político Hugo Moldiz destaca que só um milagre é capaz de tirar a reeleição de Morales. Porém, ele alerta que a larga vantagem não pode impedir que a esquerda preste atenção no crescimento de sentimentos fascistas que serão semeados pela candidatura do PPB-CN. Manfred Reyes Villa é um exmilitar com passagem pela Escola das Américas em 1976 e o seu candidato a vice, Leopoldo Fernández, é o ex-governador do departamento de Pando, retirado do cargo em setembro de 2008 por ser acusado de ordenar o massacre na localidade de Porvenir, que deixou pelo menos 13 mortos e 47 feridos. Segundo Moldiz, a candidatura de Villa expressa “um estado de ânimo de setores da classe média com inclinação cada vez mais fascistoide”, que pensam que em dezembro é a democracia que está em jogo no país: ou o Evo perde e a democracia avança ou ele ganha e o país segue rumo ao autoritarismo. Dada a baixíssima possibilidade de Morales perder a eleição, Moldiz suspeita que Villa possa estar preparando terreno para depois de dezembro: “Há um pensamento militar, muito bem expressado pelo Che Guevara, que diz que, quando se vão fechando todos os caminhos legais de luta, não resta outra opção senão a revolução. Levando isto ao plano da direita, fica claro que, à medida que se fecha a possibilidade política de tirar, não mais o Evo, mas a nova classe que ocupou o seu lugar no Estado, a ultradireita vai recorrer novamente a formas não-democráticas de oposição. E esse setor ganhou valentia depois dos episódios de Honduras e das bases militares dos EUA na Colômbia. E eles estão esperando que a direita ganhe no Brasil, que a ultradireita ganhe no Chile, que haja retrocesso na Argentina, para mudar a correlação de forças. Há uma contraofensiva imperial, da qual Manfred e Leopoldo fazem parte.” A tática do MAS De acordo com o deputado federal e porta-voz de campanha do MAS-IPSP, Jorge Silva, o próximo pleito é a ponte que permitirá à Bolívia transitar de um Esta-

do colonial para a construção do Estado Plurinaiconal, porque competirá à próxima legislatura aprovar as leis que darão vida concreta à nova Constituição. Para isso, o MAS-IPSP quer manter a hegemonia que tem na Câmara de Deputados e ganhar o Senado, que está nas mãos da oposição. Porém, Silva aponta que o objetivo não é a maioria simples, mas sim dois terços de todo o Congresso. Pela legislação eleitoral atual, caso o MAS-IPSP obtenha os mesmos 53% das últimas eleições, a maioria simples está garantida nas duas casas. Para obter os dois terços, os massistas necessitarão de 65 a 70% dos votos. “Precisamos dos dois terços porque queremos acelerar a construção do Estado Plurinacional e a aprovação de algumas leis vão exigir esse quorum. Se conseguirmos isso, entramos na fase decisiva do projeto político do MAS e poderemos estar no poder por mais 20 ou 30 anos. Nesses três anos e meio estávamos submetidos ao modelo de Estado neoliberal. O verdadeiro processo de mudança começa a partir da próxima gestão”, sentencia. Classe média Para entrar nesse novo momento do processo político boliviano, o MAS-IPSP optou por colocar na cabeça de suas listas de candidatos a deputados e senadores, em diferentes departamentos, representantes da classe média, como é o caso da ex-jornalista e defensora pública Ana Maria Romero de Campero, candidata a primeira senadora do partido em La Paz. Para o analista político Moldiz, a classe média é hoje o fator de disputa eleitoral. De um lado a direita quer fortalecer seu discurso e seu futuro político nesses setores médios e, de outro, um governo indígena e popular quer expandir sua influência. “O que faz o MAS é passar de um primeiro momento, de radicalização discursiva e de ações de força social – responsáveis por aprofundar o atual processo –, para entrar num segundo momento de incorporação dos setores mais amplos do país e ocupar todo o espectro político. A questão aí é ver qual será o caráter do programa”, pondera.

Novas regras nas eleições Em tempos de transição para o novo Estado Plurinacional, pleito será o primeiro após aprovação da nova Constituição de La Paz (Bolívia) Com a nova Constituição boliviana, o processo eleitoral deste ano apresenta novas regras para a disputa presidencial e para a composição do Congresso, que, a partir da próxima legislatura, passará a se chamar Assembleia Plurinacional. Para essas eleições, os departamentos bolivianos, que correspondem aos Estados brasileiros em termos de divisão político-administrativa do território, são divididos em 70 circunscrições uninominais. O departamento de La Paz, por exemplo, é o que possui mais divisões: são 15 circunscrições. Para cada uma dessas divisões haverá uma lista de candidatos a deputados, pertencentes aos diferentes partidos, e somente um postulante é eleito por circunscrição. Esses são os candidatos a deputados uninominais, que são submetidos à votação direta. O eleitor pode votar somente nos candidatos inscritos na mesma circunscrição em que ele está cadastrado.

O sistema eleitoral boliviano ainda prevê a eleição de sete deputados de comunidades originárias Existem também os candidatos a deputados plurinominais. Cada candidatura presidencial possui uma lista desses candidatos para cada departamento, que passarão a integrar a Câmara de acordo com a proporção de votos obtida pelos “presidenciáveis” em

seus departamentos. A eleição dos senadores acontece da mesma forma. O sistema eleitoral boliviano ainda prevê a eleição de sete deputados de comunidades originárias, como forma de garantir a representação oficial de minorias étnicas. Dos 36 povos reconhecidos pelo Estado como originários, só não serão contemplados os aymara e quéchua, já que, juntos, conformam a grande parte da sociedade boliviana. Para eleger os representantes originários, existem sete circunscrições chamadas de especiais, uma em cada um dos departamentos onde foram identificadas tais comunidades originárias: La Paz, Santa Cruz, Cochabamba, Oruru, Tarija, Beni e Pando. Assim, distintos povos fazem parte de uma mesma circunscrição especial, mas somente um representante será eleito por circunscrição. O critério para ser eleitor de uma dessas divisões especiais não é a simples autoidentificação, mas sim ter o registro eleitoral na área correspondente. Por fim, a Câmara de Deputados será composta por 130 deputados, sendo 70 uninominais, 53 plurinominais e sete representantes das comunidades indígenas originárias. A Câmara Alta será composta por 36 senadores, sendo quatro de cada um dos nove departamentos. Para as eleições presidenciais, ganha, em primeiro turno, aquele candidato que tiver 50% mais um dos votos válidos; ou então um mínimo de 40% dos votos válidos com uma diferença de, pelo menos, 10% do segundo colocado. Em caso de segundo turno, ganha quem tiver a maioria simples dos votos. A legislação anterior não previa segundo turno, e, caso nenhum

candidato alcançasse 50% mais um dos votos, o presidente era eleito pelo Congresso Nacional. O voto é obrigatório para todos os bolivianos que tenham 18 anos ou mais, e as campanhas poderão ganhar as ruas a partir do dia 5 de outubro.

O voto é obrigatório para todos os bolivianos que tenham 18 anos ou mais, e as campanhas poderão ganhar as ruas a partir do dia 5 de outubro Luta feminista Pela legislação eleitoral boliviana, a lista de candidatos a senadores e a deputados deve respeitar a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, de modo que exista uma candidata titular mulher seguida de um candidato titular homem, um candidato suplente homem e uma candidata suplente mulher, ou vice-versa. Segundo a Corte Nacional Eleitoral, 50% da composição das candidaturas, exceto para presidente e vice, foram preenchidas por mulheres. Porém, organizações feministas denunciam que o machismo foi mantido, uma vez que a maior parte das mulheres foi colocada nas vagas de suplentes. Segundo a organização Cordinadora de la Mujer, as mulheres ocupam apenas 33% das vagas de titulares. (VM)


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américa latina

Regime golpista de Honduras não poderá se sustentar até novembro John Donaghy/CC

ANÁLISE Destacada pesquisadora hondurenha considera que os partidos do golpe não serão capazes de sustentar seu apoio ao regime até as eleições de novembro Jennifer Moore de Tegucigalpa (Honduras) A DIRETORA DE Pesquisa Científica da Universidade Nacional Autônoma de Honduras, Letícia Salomón, defende que ninguém previu a ampla oposição à derrubada do presidente Manuel Zelaya, ocorrida no 28 de junho. Agora, depois de quase três meses, o país está em grande medida isolado da comunidade internacional, e diversos setores da sociedade hondurenha seguem protestando diariamente nas ruas. Como resultado disso, Salomón estima que os custos para os conspiradores golpistas serão convertidos em uma carga demasiadamente pesada. A socióloga e economista, que trabalha no Centro de Documentação de Honduras, resiste em especular sobre como o regime golpista poderia cair, ao passo que expressa preocupações frente à maior participação de militares e setores empresariais em assuntos políticos. Entretanto, ela garante: “Há um fato que é certo, não se pode manter esse governo até novembro, no dia das eleições. E não vai se manter por várias razões. Não somente pelos protestos sociais que estão nas ruas, mas porque se choca com os interesses dos empresários e dos políticos”.

Na sua opinião, o setor empresarial de Honduras jogou um papel-chave no golpe de Estado. Aqueles empresários “que pensavam que um golpe de Estado era questão de milhares de dólares e nada mais já perderam milhares e milhões investidos nisto. E não somente o dinheiro sacado de seu bolso, mas também o impacto econômico da tomada das estradas, das paralisações e da greve. Os mesmos empresários reconhecem que isso tem sido terrível para eles, e por isso um forte setor de empresários começou a pressionar para que seja encontrada uma saída, porque já chegaram ao limite do aceitável do custo econômico do golpe”. Porém, mais que perturbar os planos golpistas, Salomón acrescenta que a ampla resistência nacional ao golpe de Estado está gerando uma nova “força social” no país, com a qual qualquer futuro governo terá que lidar. Erros de cálculo Todo mundo ficou surpreso pela oposição que surgiu no mesmo dia da expulsão. E ninguém calculou os custos adicionais que a pressão interna e externa para reverter o golpe de Estado teria sobre os interesses econômicos, políticos e militares, indica Salomón; ao ponto que ela con-

Hondurenhos marcham contra o golpe em La Esperanza, capital do departamento de Intibucá

sidera que os custos para os partidários do golpe têm aumentado para além do tolerável, e não só financeiramente. Quanto aos militares, cuja legitimidade nos últimos anos rivalizava com a da igreja, Salomón vislumbra que todo seu futuro poderia estar em perigo, sobretudo como consequência de sua responsabilidade em graves violações de direitos humanos desde o golpe de Estado. Por um lado, a eventualidade de que os EUA reconheçam que houve um golpe ameaça as aspirações dos novos oficiais ou dos oficiais mais jovens na instituição, cujo so-

nho “é ir aos EUA, participar nas atividades da OEA ou da ONU”. Ela considera que é principalmente a cúpula militar “que está obstinada” com o golpe e “mais por dignidade própria que por outra coisa”. Mas, considerando as graves violações dos direitos humanos que os militares e a polícia têm executado contra a oposição ao golpe, que qualifica de absolutamente “inadmissível”, ela antecipa que se buscará reduzir seriamente seu papel, pois, “se isto eles fazem publicamente, quando havia gente filmando, então se obrigam a transferir o olhar para dentro da polícia

e dos militares”. No plano político, comenta, “a legitimidade dos partidos políticos já estava por terra. Mas, com isso, o rechaço aos dois partidos tradicionais tem crescido em uma forma incrível no país. A oposição ao golpe de Estado rechaça a realização de eleições sem o regresso do presidente Zelaya, argumentando que estas ‘legitimariam efetivamente a violência militar’. A isso se adiciona agora o anúncio dos EUA de que não reconhecerão os resultados das eleições nas condições atuais”. E mais: segundo Salomón, a pressão social não se acaba-

rá com as eleições. Ela atribui a força da oposição atual ao golpe de Estado à sua capacidade de encontrar um terreno comum entre os diversos setores através dessa mesma oposição, e não na adesão a um partido ou ideologia particular, e crê que se prolongará além do período atual. Com um sentido de esperança, declara: “Não importa quem ganhe as eleições de novembro. O próximo governo terá que lidar com uma força social de envergadura que se configura neste momento, se quer manter uma mínima governabilidade no país”. (Alai – www.alainet.org)

HOMENAGEM

Morre um aliado inseparável de Fidel na Revolução Cubana Reprodução

Juan Almeida Bosque, que faleceu no dia 11, vítima de ataque cardíaco, foi o primeiro negro cubano que se colocou ao lado de Fidel Castro quando este decidiu fazer a revolução Rui Ferreira de Miami (EUA) O vice-presidente cubano, Juan Almeida Bosque, foi o primeiro negro cubano que se colocou ao lado de Fidel Castro quando este decidiu fazer a revolução. Acompanhouo no assalto ao Quartel Moncada em 1953, considerado o início do levante. Fracassada a tentativa, ambos foram presos e julgados em Santiago de Cuba. Seguiram-se dois anos de prisão, o exílio no México e depois, em 1956, o regresso à ilha rumo à Serra Maestra, a bordo do iate Granma. Fidel sempre o considerou um amigo, entre outras razões, porque Almeida foi o único homem que, no meio de um combate, teve a coragem de enfrentar Ernesto “Che” Guevara, então ainda um simples médico da força guerrilheira. Cercados por uma poderosa força militar do ditador Fulgencio Batista, que os surpreendeu logo ao desembarcarem, Che teve um momento de debilidade e sugeriu uma retirada. “Che, aqui ninguém se rende. ‘Cojones!’”, gritou Almeida no meio da escuridão da noite. Durante muitos anos, a frase foi atribuída ao comandante Camilo Cienfuegos, mas, nos anos de 1980, o agora presidente Raúl Castro confirmou, num discurso, que era de Almeida. E acrescentou que foi a reação “correta de um revolucionário”. Sua morte foi um choque para a maioria dos cubanos, que o viram pela última vez há

dois meses, durante sessões do parlamento cubano, parecendo estar bem de saúde. Segundo um comunicado oficial, foi vítima de ataque cardíaco no dia 11. Almeida conheceu Fidel no início da década de 1950, através de um amigo militante do Partido Ortodoxo. “O Fidel não teve que me convencer muito para me colocar a seu lado. Sou negro, toda a minha família sofreu com o racismo antes de revolução e eu percebi logo que era o homem indicado para salvar nosso país”, contou o carpinteiro Almeida, numa entrevista concedida à revista Cuba Internacional há uns 30 anos. Desde então, não se separaram. Almeida permaneceu ao lado de Fidel em todas as primeiras batalhas. Na Serra Maestra, em cujo cemitério foi enterrado, recebeu a patente de comandante e foi nomeado chefe de uma das frentes de combate. Governante ideal

Dizem historiadores cubanos que Fidel sempre pensou que Almeida era o homem ideal para governar o oriente do país, a zona mais rebelde de Cuba e habitada majoritariamente por negros. Por isso, logo em 1959, quando o poder revolucionário se consolidou, o ex-presidente o enviou para Santiago de Cuba, onde permaneceu por 15 anos à frente do governo civil da região. Foi durante sua passagem pelo cargo que as tropas norte-americanas estacionadas na Base Naval de Guantánamo atacaram a tiros vários

soldados fronteiriços cubanos, matando pelo menos quatro. Apesar de Fidel ter dirigido a manobra de defesa, foi Almeida o encarregado de mobilizar as tropas. De volta a Havana em 1975, Almeida é encarregado de organizar o primeiro congresso governamental do Partido Comunista, de onde sai membro do birô político e com a patente honorífica de “comandante da Revolução”, atribuída apenas ao atual ministro de Comunicações e Informática, Ramiro Valdés, e ao vice-presidente Guillermo García, o primeiro camponês da Serra Maestra que aderiu à revolução de Fidel. Compositor premiado

Mas Almeida também se distinguiu noutro terreno. É considerado um importante compositor de boleros e canções populares cubanas. Escreveu mais de 300 e obteve vários prêmios em festivais de música. A sua canção mais importante é, possivelmente, “La Lupe”, dedicada à santa mexicana, que escreveu durante a travessia do Granma, entre o México e a Serra Maestra. “Nenhum de nós sabia se ia sobreviver ao desembarque. Sempre pensei que devia restar uma última homenagem ao México por nos ajudar e deixar alguma coisa escrita”, explicou Almeida na entrevista à Cuba Internacional. “Sempre escutei com prazer as suas canções, em especial aquela em que, com grande emoção, se despedia de seus sonos com um apelo a ven-

Juan Almeida Bosque ao lado de Raúl e Fidel Castro

cer ou morrer pela pátria”, escreveu numa de suas reflexões Fidel Castro, em referência a “La Lupe”. Dentro do círculo de poder da primeira geração revolucionária, além de Fidel (83 anos) e Raúl (78), permanecem vivos o primeiro vice-presidente, José Ramon Machado Ventura (78), os comandante Ramiro Valdés (77) e Guillermo Garcia (81), assim como o ministro da Defesa, general Julio Casas Regueiro (73), e o ministro do Interior, Abelardo Colomé Ibarra (70). Há dois meses, ao anunciar a realização do sexto congresso do Partido Comunista no próximo ano, o presidente cubano admitiu que será o último da geração que fundou a revolução - o último foi realizado em 1997. Por isso, deverá delinear o rumo político do processo revolucionário e da renovação da sociedade, ainda baseados no modelo soviético. (Opera Mundi: www.operamundi.net)

Última homenagem O comandante cubano Juan Almeida Bosque foi enterrado dia 15 em Sierra Maestra, cenário da revolução que levou Fidel Castro à presidência de Cuba, no dia 1º de janeiro de 1959. A cerimônia de enterro foi reservada aos familiares e contou com a presença do presidente de Cuba, Raúl Castro. Vítima de uma parada cardiorrespiratória, Almeida morreu aos 82 anos, em Havana. Recebeu homenagens em todo o país, em meio ao luto oficial decretado pelo governo local. Antes do enterro, foi realizado um cortejo fúnebre com o corpo de Almeida que percorreu a cidade de Santiago de Cuba, a 900 quilômetros da capital. Milhares de habitantes da cidade acompanharam a comitiva para prestar a última homenagem ao comandante revolucionário, considerado o terceiro principal membro do governo cubano. Almeida ocupava o cargo de vice-presidente do Conselho de Estado e membro do Diretório Político do Partido Comunista. O comandante era um homem muito próximo ao presidente Raúl Castro. O cortejo se deteve diante do Quartel de Moncada, que foi atacado pelos revolucionários no dia 26 de julho de 1953, na ação que desencadeou o conflito civil que culminaria na tomada do poder em 1959. Atualmente o quartel é um centro educacional. No local, 2.500 estudantes de Santiago entoaram, em homenagem a Almeida, a Marcha de 26 de Julho, hino do movimento liderado por Fidel.


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internacional Reprodução

Os desafios aos democratas do Sol Nascente A vitória do Partido Democrata do Japão (PDJ) contra a hegemonia de 50 anos ininterruptos do comando Liberal; crise econômica, ambiental e política externa são as piores heranças Doris Calderón de Havana (Cuba) A vitória do Partido Democrata do Japão (PDJ) nas eleições gerais de 30 de agosto era certa diante do incontrolável descalabro do ex-governamental Partido Liberal Democrático (PLD), no poder quase ininterruptamente por mais de 50 anos. O respaldo ao PDJ, fundado em meados da década passada, significou um castigo do eleitorado ao partido do premiê Taro Aso pelos anos de estancamento e má administração. A principal força opositora conquistou 308 cadeiras das 480 que integram a Câmara de Representantes, enquanto o PLD mal conseguiu 119, e seu sócio, o Novo Komeito, perdeu 10 das 31 que controlava. Ao assumir pela primeira vez o poder, o Partido Democrata do Japão terá como sócios o Partido Social Democrata e o Novo Partido Popular, os quais ganharam sete e três assentos, respectivamente. As eleições não somente mudam o panorama político no arquipélago, mas abrem passagem à marcha de novas fórmulas para resolver as velhas preocupações dos japo-

neses, agravadas pela crise econômica global. O líder do PDJ, Yukio Hatoyama, reconheceu o valor dos eleitores ao optar por uma mudança de governo nos votos, nos quais se registrou uma participação histórica superior a 69%. Hatoyama, de 62 anos de idade, assume o comando do governo no dia 16, mas adiantou que não anunciará as nomeações para os postos-chave do gabinete até que sejam concluídas as conversas para formar coalizão. O próximo premiê estará obrigado a aliviar o descontentamento arraigado na população nipônica, restaurar a credibilidade do governo e tratar de deixar para trás o prolongado período de malestar social e econômico. Para restaurar a confiança dos japoneses, a formação política vencedora propõe-se pôr fim à burocracia instaurada por sua antecessora em todas as esferas do Estado e implementar uma série de reformas. No plano econômico, o Partido Democrata propõese a ajudar as famílias com crianças, reduzir os impostos e eliminar o pagamento de pedágio nas estradas para estimular os rendimentos nos lares e diminuir a dependência das exportações.

Outras reformas primordiais estão encaminhadas para solucionar o problema das pensões, crucial para uma sociedade envelhecida como a japonesa, e conseguir uma melhor redistribuição da riqueza, outorgando maior importância às zonas rurais. Em matéria de política exterior, defende uma relação mais independente dos Estados Unidos, o fim da missão logística de apoio à campanha militar de Washington e seus aliados no Afeganistão e revisar o status das forças estadunidenses no país asiático. De acordo com o Partido Democrata, o papel mais ativo do Japão na arena internacional pode ser atingido sob o auspício das Nações Unidas. Um elemento muito positivo para a estabilidade no continente constitui na busca do estreitamento de laços com os vizinhos asiáticos, sobretudo com a China, que conta com uma crescente influência na região. O meio ambiente é também uma prioridade para o futuro governo, que se comprometeu a reduzir até 2020 25% das emissões de gases que contribuem com o efeito estufa, com respeito aos níveis de 1990. Está previsto que se impulsione uma sé-

O novo premiê japonês, Yukio Hatoyama, líder do PDJ

O próximo premiê estará obrigado a aliviar o descontentamento arraigado na população nipônica e restaurar a credibilidade do governo rie de medidas no arquipélago, quinto emissor de gases com efeito estufa, dirigida a renovar as moradias, subsidiar painéis solares e introduzir tecnologias limpas na fabricação de automóveis. As iniciativas do Partido Democrata serão implementadas em meio a um contexto difícil, no qual não faltarão tropeços e dissabores, pois a segunda economia do mundo enfrenta a pior recessão desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O Japão mostra como um de seus piores indicadores uma taxa de desemprego de 5,7%, com tendência ao aumento nos últimos meses, apesar de que se registrou uma leve recuperação

(0,9 %) no segundo trimestre do ano. Ditas cifras revelam a insegurança trabalhista experimentada pelos japoneses como resultado da dependência corporativa dos trabalhadores temporários, que agora representam uma terceira parte da força trabalhista. Assim muitas empresas têm realizado cortes na produção e nas planilhas. Esses problemas, entre outros, foram os que provocaram o esmagador revés no Partido Liberal Democrático, que, desde sua fundação em 1955 se manteve no poder e dele só cedeu 11 meses, entre 1993 e 1994. Se fosse feito um flasback dos últimos anos do Partido Liberal, teria que se destacar

uma enorme falta de liderança, a impossibilidade de tirar o país da crise econômica, a demissão de vários ministros, as denúncias de corrupção e a perda do controle sobre o Senado. O premiê Taro Aso destacou que o resultado eleitoral era muito grave e, nesse sentido, admitiu a incapacidade de seu governo de fazer frente e guiar o país durante o período de emergência. Além de Aso, o país do Sol Nascente teve outros dois premiês muito impopulares – Shinzo Abe e Yasuo Fukuda. Cada um durou um ano no poder e não foi eleito nas urnas, mas pelos 1,2 milhão de militantes do PLD. Mudança é a palavra de ordem e é justamente o que ofereceu o Partido Democrata do Japão, bem mais próximo do indivíduo e da sociedade. O percurso mal começa. Doris Calderón é jornalista da Redação Ásia de Prensa Latina.

ORIENTE MÉDIO

A Palestina Livre passa pela solidariedade internacional Comitê da Palestina/SC

Comitê de Solidariedade inaugura na Cisjordânia escola profissionalizante com cursos gratuitos Khader Othman O COMITÊ Catarinense de Solidariedade ao Povo Palestino materializamos seu amor pela Palestina no dia 14 de agosto através da inauguração de escola técnica na cidade de Beit-ur, Cisjordânia, uma instituição pública e gratuita com cursos profissionalizantes para os palestinos. Longe dos discursos teóricos, longe de gritos e ofensas à invasão sionista do Estado de Israel na Palestina, transformamos as lágrimas pela situação atual do povo palestino em esperança promissora. A solidariedade, para ser efetiva, tem que ser concreta. Transformamos nosso apoio à resistência nacional palestina em ação sólida, viva, cheia de amor. Os “palestinos na diáspora” – um grupo de brasileiros de origem Palestina –, dominados pela justiça, assumiram seu dever cívico perante a Pátria-mãe e consolidaram este projeto. Sabemos ser impossível derrotar a ocupação israelense somente pela crítica. É urgente e necessário criar condições para o nosso povo resistir e continuar lutando em nosso país. Todos os meios de lutas são possibilidades para acabar com es-

sa odiada invasão sionista do Estado de Israel e juntar os trapos dessa Pátria para tentar construir a Palestina, uma pátria unida. Beit-ur é uma cidade muito pobre e carente, como outras na Cisjordânia, mas agora seu cotidiano será transformado com a chegada da escola técnica. São 150 vagas que possibilitarão uma formação qualificada, proporcionando assim uma vida digna e de trabalho honesto para palestinos que, daqui a dois anos, sustentarão suas famílias. São oficinas técnicas, divididas entre alunos femininos e masculinos, com a oferta de seis cursos profissionalizantes. São oficinas de Cabeleireiros e Beleza; de Corte e Costura, Bordados e Modelagem; de Informática; de Esquadrias de Alumínio; de Sistemas de Calefação e Refrigeração; e de Ferragem, Esquadrias, Cercas e Proteções. No dia da inauguração da escola, colocamos uma faixa que ornamentava o prédio, com a linda poesia de Mahmoud Darwish: Os grãos de uma espiga de trigo Espalhados aqui e acolá Enchem todo o vale de espigas Este é o nosso lema. Nossa ideia não é isolada, mas uma construção coletiva em busca da libertação da Palestina. Foram três anos de trabalho, um acúmulo de esforços e sonhos de muitos militantes. Concluímos as negociações com a adoção do projeto pelo Ministério de Trabalho da Autoridade Nacional da Palestina. Na inauguração, contamos com a presença de várias personalidades palestinas e membros da Autoridade Na-

zados paus, pedras e seus corpos contra todo o armamento sofisticado do exército israelense apoiado pelo imperialismo estadunidense. Defendemos a Palestina democrática e laica, em seu solo pátrio histórico, com o retorno dos refugiados palestinos, e Jerusalém como sua capital, onde possam viver em harmonia e fraternidade cristãos, muçulmanos e judeus, como era antes de 1947.

Inauguração da escola técnica em Beit-ur, na Cisjordânia

O povo palestino deseja a paz, e sua forma de defesa é a intifada

mento da ideia de unificação. O processo de unificar a esquerda ganhou fôlego forte e esse tema predomina o debate entre os palestinos.

cional e, em especial, de Ligia Maria Scherer, chefe da Delegação Especial do Brasil na Palestina, com Escritório-sede na cidade de Ramalah. Lígia aplaudiu a ideia e discursou para os presentes relatando as várias obras que o governo brasileiro está executando nos territórios palestinos. Como nos ensinou Darwish: estamos plantando... o vale está cheio de espigas.

A Palestina que queremos A população Palestina é de 11,2 milhões de pessoas. Atualmente, 5,2 milhões vivem no seu solo pátrio, nos territórios de Gaza e Cisjordânia, de forma subumana, desprovidas de direitos básicos, como acesso a hospitais, transportes, escolas, universidades, empregos e o direito mais elementar: o de ir e vir. Outros 6 milhões de palestinos vivem como refugiados em ouros países, sonhando com o dia de retornar. O povo palestino deseja a paz e sua forma de defesa é a intifada, um posicionamento de libertação no qual são utili-

Unidade da esquerda Outra coisa que me chamou bastante atenção nessa viagem para a Palestina foi o intenso movimento dos intelectuais e do povo em geral em

torno da unificação da esquerda como uma resposta viável e prática para a crise interna. Somente a unificação das forças progressistas apontará uma saída para a crise que o processo de paz sofre nas mãos do imperialismo internacional. Fruto desse esforço foi a conferência internacional “Experiências de unificação e renovação da esquerda na Palestina e no mundo”, realizada em Ramallah entre os dias 26 a 28 de junho, onde muitos militantes e intelectuais progressistas e de esquerda trocaram experiências e contribuíram para o amadureci-

Solidariedade Os Comitês de Solidariedade cumprem o importante papel de divulgadores da causa palestina. Através de palestras, debates e eventos, propagamos informações sobre a luta de resistência do povo palestino. No Brasil existem muitos comitês de solidariedade realizando um belo trabalho. Desde 2000, nosso Comitê Catarinense contribui para que a Palestina esteja presente nos corações e mentes dos brasileiros, povo este tão solidário à causa palestina, causa esta da humanidade. São 62 anos de luta em defesa da Palestina livre. Convocamos a todos para, no dia 29 de novembro, Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino, declararem-se palestinos, pois somos todos brasileiros, somos todos palestinos em busca da justiça. Em 29 de novembro de 1947, a ONU, através da resolução 181, impôs a partilha do solo pátrio da Palestina para a criação do Estado de Israel. O restabelecimento da Palestina é uma tarefa de todos nós. Khader Othman é do Comitê Catarinense de Solidariedade ao Povo Palestino. E-mail: comitepalestinasc@ yahoo.com.br.


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cultura

Chávez e “fim do capitalismo” aplaudidos no Festival de Veneza CINEMA Os diretores estadunidenses Oliver Stone e Michael Moore foram festejados por seus recentes documentários de Veneza, Itália South of the Border, de Oliver Stone, se aproxima da figura do presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Por sua vez, Michael Moore denuncia o capitalismo “malvado” e desumano no documentário Capitalismo: uma história de amor. O filme retrata os rostos desesperados das vítimas da recente hecatombe financeira, as quais perderam suas casas ou o trabalho de uma vida. Ambos foram apresentados ao público no 66º Festival de Cinema de Veneza, realizado entre os dias 2 e 12 na Itália. “Nos Estados Unidos, a cada sete segundos e meio uma família é desalojada de sua casa; e 14 mil perdem seu emprego ao dia”, contou Moore em um bate-papo com o público. “O capitalismo é injusto”, ressaltou o irreverente documentarista, que há 20 anos denuncia os grandes males de seu país, começando com Roger e Eu, sobre o fechamento da General Motors, empresa em que trabalhou seu pai por mais de 30 anos, passando pela guerra contra o Iraque e o sistema de saúde estadunidense.

“É necessário um controle maior do mundo das finanças e do capitalismo”, pede Moore Para o autor de Tiros em Columbine e Fahrenheit 9/ 11, “o capitalismo é mau e não pode se reformar” e o “livre mercado”, na realidade, é um sistema para “roubar” os trabalhadores. Sem previsão para estrear no Brasil, o novo documentário, de mais de duas horas, acusa os poderosos bancos de Wall Street (Goldman Sachs, Citibank, Morgan etc.) de organizar um verdadeiro “golpe de Estado financeiro” pouco antes das eleições presidenciais estadunidenses. Segundo o filme, os poderosos banqueiros, muitos deles membros da administração do ex-presidente George W. Bush, inventaram o mecanismo para ficar com 700 bilhões de dólares que o Estado aprovou para salvá-los da crise econômica. Nesta ocasião, Moore, que se considera um defensor da esquerda, lança a teoria, sempre na boca de seus entrevistados, de que a crise foi uma conspiração para que as grandes companhias estadunidenses fizessem caixa antes da chegada do atual inquilino da Casa Branca, Barack Obama. O orgulhoso realizador assegurou em Veneza que lhe

Nikolas Montaldi/CC

incomodou ver como, com a crise econômica, gente lutadora e que trabalhou duro viu sua vida ser arruinada pelos interesses das grandes companhias. Otimista, Moore crê que as pessoas podem se rebelar de forma boa. Essa mudança, em sua opinião, começou no dia 4 de novembro de 2008, com a eleição de Obama. “Mas um homem somente não pode fazê-lo todo. As pessoas que votaram nele têm que ajudar. A democracia não é um esporte de espectadores, há que participar”, incitou o cineasta. “É necessário um controle maior do mundo das finanças e do capitalismo”, pede Moore; para os capitalistas, “a única coisa importante é estar no poder”, completa. Legalização do calote

Com seu estilo implacável e cara de bonachão, Moore revela, por meio de irônicas lições, um sistema econômico que legalizou o calote e permitiu que as empresas ganhem milionárias somas com os seguros de vida que estipulam secretamente no caso de morte de seus empregados mais jovens, sem cobrir os familiares. De outro lado, o documentário de Stone (que também tem trabalhos de não-ficção sobre Fidel Castro: Buscando a Fidel e Comandante) mostra Chávez, que recebe as cálidas saudações do público em Veneza. Já a oposição fica reduzida a uma grupo de oligarcas que querem impedir a repartição da riqueza entre o povo. Com a ajuda do escritor Tariq Ali, Stone roda uma aproximação esquemática ao mandatário com uma série de conversações entre este e o realizador. Com a finalidade de conhecer melhor o que ocorre na Venezuela, o diretor de filmes como Assassinos por natureza e Platoon se translada a outros países do continente cujos mandatários se mostram encantados de receber o laureado diretor. Assim ocorre com a presidente da Argentina, Cristina Kirchner; do Paraguai, Fernando Lugo; e da Bolívia, Evo Morales, que assegura ante a câmera que seu “pior inimigo” é a imprensa. O expresidente argentino Néstor Kirchner conta que propôs ao ex-presidente estadunidense George W. Bush um Plano Marshall para a América Latina e este lhe replicou que isso era uma ideia idiota dos democratas. Stone resume, de forma básica, as mudanças políticas na região ao conversar também com os presidentes Rafael Correa, do Equador, e Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, que opina que a força da esquerda na América Latina se deve ao fortalecimento da democracia. (La Jornada) Tradução: Eduardo Sales de Lima Divulgação

O cineasta estadunidense Michael Moore

O tapete vermelho, passarela para a entrada dos convidados para o 66º Festival de Cinema de Veneza

CRÔNICA Reprodução

“Ser tão sertão” Marcelo Barros “SER TÃO SERTÃO” era o título de um belo espetáculo, coleção de textos do grande Guimarães Rosa, recitados por Lima Duarte, entremeados por belas canções de Rolando Boldrin. Esse recital nos confirma: o sertão é mais do que uma característica do semiárido nordestino, mineiro ou goiano. Incrusta-se no coração de cada ser humano moldado por aquelas paisagens sem fim. Evidentemente, existe a recíproca que fazia Luiz Gonzaga, com o seu vozeirão, repetir na clássica Asa Branca: “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação...”. Essas recordações me vêm à memória quando, no Festival de Cinema de Veneza, o mundo assiste ao filme Viajo porque preciso. Volto porque te amo, dos nordestinos Marcelo Gomes e Karim Ainouz. O primeiro já havia nos presenteado, há poucos anos, com o belo e tocante Cinema, Aspirina e Urubus, filme que a gente quase tem de assistir com óculos escuros para conseguir contemplar a claridade deslumbrante do sol sertanejo e vislumbrar as cores do Nordeste ecológico e humano. Em 2004, Veneza se deliciou com Árido Movie, do pernambucano Lírio Ferreira. Agora aplaude de pé o novo filme dos dois jovens sertanejos. Na entrevista coletiva, explicou um dos diretores: “Cada país tem seu deserto. O sertão é uma viagem para a memória de um vazio.” (Diário de Pernambuco, 5/9/ 2009) A paisagem em que nos criamos marca muito nossa personalidade. Os nativos das cordilheiras são introspectivos. Os mineiros das montanhas das Gerais são preponderantemente cautelosos e sagazes, assim como os nordestinos das planícies da zona

Cena do filme Árido Movie, do pernambucano Lírio Ferreira

Como dizia Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas, “O mais perigoso não se dá na partida, nem na chegada. O risco maior é a travessia” litorânea têm mais tendência a ser faladores e brincalhões. Entretanto, todos eles carregam no coração a nostalgia e mesmo a vocação de um ermo silencioso, árido e pobre, no qual um Mistério nos aguarda e espreita. Todo ser humano é, no mais profundo do seu eu interior, atraído por um sertão que não é apenas geográfico, mas espiritual. Nesse sentido, o sertão aponta para um deserto que todos nós, cedo ou tarde, temos de aprender a percorrer. No passado, as grandes tradições espirituais nasceram na aridez do deserto. No sexto ou quinto século antes de nossa era, no deserto de Gobbi, em território chinês, o sábio Confúcio formulou a sabedoria dos seus ensinamentos. Um século depois, na Índia, foi na solidão e no silêncio que Buda, o Iluminado, preparou-se para a sua missão. Conforme a Bíblia, Deus

“não levou o povo de Israel da escravidão do Egito à terra da liberdade por um caminho direto, mas o fez dar voltas no deserto durante 40 anos” (Ex 13). Foi no meio do deserto que, através de um povo, Deus fez uma aliança de amor com a humanidade. Mais tarde, o profeta Elias, em crise de vocação e em perigo de vida se refugia no mesmo deserto para um novo encontro com o Divino. E, conforme os evangelhos, Jesus de Nazaré começou sua missão por um jejum de 40 dias no deserto. Seis séculos depois, em meio ao deserto da Arábia, o anjo Gabriel apareceu ao profeta Maomé e ditou o livro sagrado do Corão. Nenhum deles morou permanentemente no deserto ou ensinou que o ser humano deve viver no deserto. Entre as seduções da sociedade urbana que, muitas vezes, nos distraem e desviam de nossas metas mais profundas (no Êxodo,

o povo chama isso de “as cebolas do Egito”) e a liberdade interior e comunitária de uma sociedade nova e mais sóbria, o deserto é o caminho e o método. Lutero dizia que é uma etapa perigosa porque, nela, não se tem mais a segurança que a terra das escravidões parecia proporcionar e nem ainda se alcançou o novo da liberdade a qual se almeja. Mas é preciso arriscar. Como dizia Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas, “O mais perigoso não se dá na partida, nem na chegada. O risco maior é a travessia”. Uma grande ajuda para quem é peregrino é saber que, mesmo se tem de percorrer um caminho pessoal, esse percurso não precisa ser feito de forma isolada. Pode contar com o apoio e a presença discreta de irmãos e irmãs que seguem juntos a mesma aventura. Para os cristãos, vale o que Paulo escreveu aos gálatas: “Ajudem uns aos outros a carregar o fardo do caminho. Assim cumprem a jornada e realizam a lei do Cristo” (Gl 6, 2). Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 26 livros, dentre os quais O Espírito vem pelas águas (Editora Rede-Loyola, 2003).


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