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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 344

São Paulo, de 1º a 7 de outubro de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Joel Silva/Folha Imagem

Agências de risco dão aval à especulação no Brasil A agência de risco Moody’s atribuiu ao Brasil a condição de grau de investimento, sinalizando ao mercado internacional que o país garante rentabilidade e segurança. Esta é a terceira agência que concede esse título ao país. Para especialistas, essas empresas operam apenas sob a ótica da especulação e passam por um momento de descrédito após a crise econômica. Economistas dizem que Brasil agiu bem durante a crise ao tomar medidas anticíclicas, mesmo sem alterar modelo econômico dependente. Pág. 3

A truculência do governador Puccinelli De tempos em tempos o governador do Mato Grosso do Sul, André Puccinelli, reaparece nos jornais com alguma grosseria contra seus adversários políticos. Sua última pérola? Chamou o ministro do Meio Ambiente de “viado” e “fumador de maconha”, o que pode ser considerado normal quando se conhece o perfil desse feroz representante do agronegócio. Pág. 4

PEC quer retirar direitos sociais da Constituição

Em Tegucigalpa, manifestantes hondurenhos esticam bandeira do país em frente as tropas da Polícia Nacional

Derrotar a ditadura em Honduras é a vacina contra novos golpes na AL “Reverter o golpe de Estado em Honduras vai ser uma vacina contra os golpes de Estado em todos os países da América, incluindo Brasil”, afirmou, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o presidente de Honduras, Manuel Zeleya. Falando de dentro da embaixada brasileira em Tegucigalpa, ele analisou que a luta contra a ditadura de Roberto Micheletti

está inserida na construção brasileira e latinoamericana de “sociedades mais democráticas que respeitem a soberania popular”. A avaliação é similar a do governo brasileiro. Segundo o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, um recuo do país, além de covarde, seria um incentivo a novos golpes de Estado na América Latina. Págs. 2, 10 e 11 Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Trabalhadores fazem greve e são perseguidos pela Justiça

O deputado federal Regis de Oliveira (PSC-SP) apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que visa “enxugar” a Constituição brasileira, extinguindo itens que asseguram saúde e educação como direitos de todos. O projeto teve parecer favorável do relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), o deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA). Pág. 5

Assembleia dos funcionários dos Correios em Brasília: divergências e fim da greve ABI

Diversas categorias de trabalhadores estão fazendo paralisações pelo Brasil, como bancários e metalúrgicos. Os funcionários dos Correios encerraram greve de duas semanas no final de setembro. Para analistas, o balanço das mobilizações de trabalhadores neste ano é positivo. Um dos motivos seria a resistência às medidas das patronais para enfrentar a crise. Entretanto, a Justiça vem sendo usada como nunca para reprimir e até mesmo proibir o exercício do direito de greve. Pág. 7 Ricardo Stuckert/PR

MAS apresenta um programa de desenvolvimento O MAS, partido do presidente boliviano Evo Morales, apresentou um programa de governo carregado de desenvolvimentismo para as próximas eleições gerais, em dezembro, empreendendo “um grande plano industrializador”. Pág. 9 ISSN 1978-5134

O presidente boliviano, Evo Morales

Para Miguel Urbano, a crise do capitalismo é estrutural, e a elite financeira não tem solução para ela Pág. 12


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editorial A ENTRADA DO presidente Manuel Zelaya na Embaixada brasileira em Tegucigalpa representou um xequemate nas pretensões dos ditadores de plantão. Além disso, recolocou na ordem do dia a luta de classes local, na imprensa e na correlação de forças da América Latina. Como já comentamos nesse espaço, no editorial da edição 339, sob título “O império contra-ataca”, a batalha de Honduras foi uma iniciativa da velha guarda do imperialismo estadunidense, representado pelos interesses do capital internacional e do complexo industrial-militar que opera dentro do pentágono e nas estruturas do Estado imperial, independentemente da eleição de Obama. A conjuntura política da América Latina vem se alterando e, neste momento, está mais evidente que estão em jogo e em disputa três projetos para o continente. O primeiro segue sendo a recomposição de forças servis aos interesses das empresas transnacionais dos Estados Unidos e a seus interesses de controlar fontes energéticas para manter o abastecimento da economia norte-americana. É o projeto clássico de dominação imperialista, que nos transformou em pátio traseiro, na expressão deles pró-

debate

Honduras, uma batalha latino-americana prios. Perderam na Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e na eleição de governos progressistas. Agora tentam colocar uma barreira à Aliança Bolivariana de Integração dos Povos das Américas (Alba). Por isso, era preciso derrotar o governo Zelaya (que havia aderido à Alba) por ser o elo mais fraco na Meso-América. Ampliaram as bases na Colômbia, intensificaram os acordos dos Tratados de Livre Comércio (TLCs) com outros países e tentam convencer o Paraguai a manter uma base militar de inteligência. Poucos soldados, mas muitos equipamentos no centro geográfico do continente. Esse projeto tem nos governos do México, da Colômbia e do Peru seus pontalanças no continente. Há um segundo projeto que está sendo articulado pelos interesses das empresas brasileiras, argentinas e mexicanas que atuam no continente. A proposta é muito parecida com as antigas formulações da Comissão

Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e defendem uma integração capitalista entre as grandes empresas do continente, em parceria com as do Norte. Ou seja, buscaríamos maior autonomia e investimentos sob controle das burguesias locais, sem confrontar o império, mas mantendo uma certa autonomia e parceria. Seria potencializar o desenvolvimento do capitalismo na região. A disputa de Honduras tem sua presença também pelo que representaria o potencial dos agrocombustíveis da região. Há um terceiro projeto, representado pelos governos progressistas que articulam a Alba, que tem uma postura claramente anti-imperialista, antiestadunidense. A proposta da Alba ultrapassa as articulações governamentais e comerciais. Pretende ser um espaço de integração regional, entre governos e estados, de infraestrutura energética, econômica e popular. O projeto da Alba

crônica

François Houtart

O escândalo dos agrocarburantes A IDEIA DE estender o cultivo dos agrocarburantes no mundo e particularmente nos países do Sul é desastrosa. Ela faz parte de uma perspectiva global de solução à crise energética. Nos próximos 50 anos, teremos que mudar de ciclo energético, passando da energia fóssil, que é cada vez mais rara, para outras fontes de energia. Em curto prazo, é mais fácil utilizar o que é imediatamente rentável, ou seja, os agrocarburantes. Esta solução, diante das reduzidas possibilidades de investimento e da espera por lucros rápidos, parece ser a mais buscada, à medida que se desenvolve a crise financeira e econômica. Como sempre, em um projeto capitalista, ignora-se o que os economistas chamam as externalidades, ou seja, o que não entra no cálculo do mercado: no caso que nos preocupa, os danos ecológicos e sociais. Para contribuir com um percentual entre 25% e 30% da demanda, com vistas à solução da crise energética, terão que ser utilizados centenas de milhões de hectares de terras cultiváveis para a produção de agroenergia, em sua maior parte no Sul, já que o Norte não dispõe de superfície cultivável suficiente. Será preciso, igualmente, segundo certas estimativas, expulsar pelo menos 60 milhões de camponeses de suas terras. O preço dessas “externalidades”, pago não pelo capital, mas pela comunidade e pelos indivíduos, é espantoso. Os agrocarburantes são produzidos sob forma de monocultivos, destruindo a biodiversidade e contaminando os solos e a água. Pessoalmente, caminhei quilômetros pelas plantações de Chocó, na Colômbia, e não vi nem uma ave, nem uma mariposa, nem um peixe nos rios, graças ao uso de grandes quantidades de produtos químicos, como fertilizantes e praguicidas. Frente à crise hídrica que afeta o planeta, a utilização da água para produzir etanol é irracional. De fato, para obter um litro de etanol a partir do milho, utilizam-se entre 1.200 e 3.400 litros de água. A cana de açúcar também necessita de enormes quantidades de água. A contaminação dos solos e da água chega a níveis até agora nunca conhecidos, criando o fenômeno de “mar morto” nas desembocaduras dos rios (20 quilômetros nas desembocaduras do Mississipi, em grande medida causado pela extensão do monocultivo de milho destinado ao etanol). A extensão dessas culturas acarreta uma destruição direta ou indireta (pelo deslocamento de outras atividades agrícolas e pecuárias) dos bosques e selvas, que são como poços de carbono por sua capacidade de absorção. O impacto dos agrocarburantes sobre a crise alimentar tem sido comprovado. Não somente sua produção entra em conflito com a produção de alimentos, em um mundo onde, segundo a FAO, mais de 1 bilhão de

já tem adesão de diversos governos, liderados por Hugo Chávez (Venezuela, Equador, Nicarágua, Cuba, Bolívia, Honduras e duas ilhas do Caribe). Tem adesão também de praticamente todos os movimentos sociais que atuam em todos os países, desde o Canadá até o Chile. O desfecho da batalha de Honduras, nas suas formas e correlação de forças, é a disputa dos três projetos. Seu resultado fortalecerá um desses três projetos concorrentes. Em nível internacional, o apoio mais decisivo do governo brasileiro fez com que a balança da disputa pendesse para o projeto número dois. Ou seja, a recomposição de Zelaya no governo neste momento contribuiria para um enorme prestígio do governo brasileiro na região. Em nível interno, a correlação de forças que parecia consolidada pelos golpistas se alterou fundamentalmente com o regresso de Zelaya e recolocou os atores sociais em

Gama

pessoas sofrem com a fome, mas ela também foi um elemento importante da especulação sobre a produção alimentícia dos anos 2007 e 2008. Um informe do Banco Mundial afirma que, em dois anos, 85% do aumento dos preços dos alimentos, que empurrou mais de 100 milhões de pessoas para baixo da linha da pobreza (o que significa fome), foram provocados pelo desenvolvimento da agroenergia. Por essa razão, Jean Ziegler, durante seu mandato como Relator Especial das Nações Unidas pelo Direito à Alimentação, qualificou os agrocarburantes de “crime contra a humanidade” e seu sucessor, o belga Olivier de Schutter, pediu uma moratória de cinco anos para sua produção. A extensão do monocultivo significa também a expulsão de muitos camponeses de suas terras. Na maioria dos casos, isso se realiza por meio da estafa ou da violência. Em países como a Colômbia e a Indonésia, recorre-se às Forças Armadas e aos paramilitares, os quais não hesitam em massacrar os defensores recalcitrantes de suas terras. Milhares de comunidades autóctones na América Latina, África e Ásia são despossuídas de seu território ancestral. Dezenas de milhões de camponeses já foram desalojados, sobretudo no Sul, em função do desenvolvimento de um modo produtivista da agricultura e da concentração da propriedade da terra. O resultado de tudo isso é uma urbanização selvagem e uma pressão migratória, tanto interna como internacional. É necessário igualmente notar que o salário dos trabalhadores é muito baixo e as condições de trabalho são geralmente infra-humanas, graças às exigências de produtividade. A saúde dos trabalhadores também é gravemente afetada. Durante a sessão do Tribunal Permanente dos Povos sobre as empresas multinacionais europeias na América Latina, realizada paralelamente à Cúpula Europeia-Latino-Americana, em maio de 2008, em Lima, foram apresentados diversos casos de crianças com máformação devido à utilização de produtos químicos no monocultivo

de banana, soja, cana-de-açúcar e palmeiras. Dizer que os agrocarburantes são uma solução para o clima também está na moda. É verdade que a combustão dos motores emite menos anidrido carbônico na atmosfera, mas, quando se considera o ciclo completo da produção, da transformação e da distribuição do produto, o balanço é mais atenuado. Em certos casos, converte-se em negativo em relação à energia fóssil. Se os agrocarburantes não são uma solução para o clima, se não servem, de maneira marginal, para mitigar a crise energética e se acarretam importantes consequências negativas, tanto sociais como ao meio ambiente, temos o direito de nos perguntar por que eles têm tanta preferência. A razão é que, a curto e médio prazos, eles aumentam de maneira considerável e rapidamente a taxa de lucro do capital. É por isso que as empresas multinacionais do petróleo, do automóvel, da química e do agronegócio se interessam pelo setor. Eles têm como sócios do capital financeiro (George Soros, por exemplo) os empresários e os latifundiários locais, herdeiros da oligarquia rural. Então, a função real da agroenergia é, de fato, ajudar uma parte do capital a sair da crise e a manter ou, eventualmente, aumentar sua capacidade de acumulação. Portanto, a solução é reduzir o consumo, sobretudo do Norte, e investir em novas tecnologias (a solar, especialmente). A agroenergia não é um mal em si e pode contribuir com soluções interessantes em âmbito local, sob a condição de respeitar a biodiversidade, a qualidade dos solos e da água, a soberania alimentar e a agricultura camponesa, ou seja, o oposto da lógica do capital. (A íntegra deste artigo encontra-se www.brasildefato.com.br) François Houtart é professor emérito da Universidade Católica de Louvain, fundador do Centro Tricontinental e autor do livro Agroenergia: solução para o clima ou saída da crise para o capital?, a ser lançado brevemente no Brasil pela Editora Vozes.

movimento em grandes manifestações populares, que são as únicas que agora podem de fato derrotar os golpistas. Há também um salto qualitativo nas propostas políticas. Se antes a proposta era apenas reempossar Zelaya e seguir o calendário eleitoral, com anistia ampla e irrestrita aos golpistas (que é o Acordo de San José – Costa Rica), agora as forças populares recolocam que o problema não é Zelaya, o problema é a oligarquia econômica e política. E, portanto, além de reempossar Zelaya e prender os golpistas, é necessário reajustar o calendário eleitoral e sobretudo convocar uma Assembleia Constituinte que represente um novo pacto social entre as forças em disputa. Dessa constituinte certamente haveria um salto na consolidação dos direitos sociais, da soberania do país em relação aos recursos naturais (que seguem espoliados por empresas estrangeiras) e na instalação de um processo político mais democrático. A batalha de Honduras segue sem prognósticos de seus resultados, mas estamos diante de um novo cenário em que as forças populares voltaram à cena política e os resultados agora dependem mais delas do que da OEA.

Luiz Ricardo Leitão

De Honduras ao Parque da Juraci UMA CHARGE DE Angeli, publicada em meio à crise no Senado, expressa com perfeição a farsa da democracia burguesa em Bruzundanga: enquanto um pomposo senador anuncia na tribuna o advento de uma “nova era” na história parlamentar da República, animais da era jurássica irrompem nos fundos do plenário, simbolizando com suas figuras milenares as prodigiosas ‘mudanças’ que se prenunciam na política tupiniquim. Diz-se que uma imagem ou caricatura quase sempre vale mais do que mil palavras – e os variados dinossauros desenhados pelo chargista têm, de fato, enorme afinidade com as criaturas que desfilam em Brasília. A estampa do democrata (?) Heráclito Fortes, por exemplo, lembrame vagamente um pesado brontossauro, ainda que outros talvez o vejam como uma espécie de paquiderme, com sua fala lenta e inarticulada. À diferença do enorme sáurio, no entanto, ele não me parece herbívoro, mas sim onívoro – e sempre disposto a atacar todas as causas libertárias que vier a farejar. O tucano Virgílio Távora, por sua vez, é uma espécie bastante perigosa da Amazônia, com agressividade comparável à dos pterodáctilos e garras sempre afiadas para investir contra suas presas, sejam elas peixes, fauna miúda ou os ‘perigosos’ movimentos sociais. Isso sem falar no dinossauro mor, José do Sir Ney, no voraz tiranossauro Rexnan Calheiros ou no buliçoso estegossauro Agripino Maia... Veja o que é a natureza, meu caro leitor: apesar de pré-históricas, essas criaturas vêm a público como o suprassumo da modernidade, não perdendo chance de estigmatizar – e criminalizar – as forças sociais que anseiam por mudar nosso país. No breviário das feras, o MST, por exemplo, é o próprio Jeca Tatu, aquele caboclo enfermo e atrasado que teima em lutar contra o latifúndio, pregando ‘heresias’ como a reforma agrária e o controle do agronegócio... Pois quase todas essas criaturas uniram forças ao longo dos últimos dias para desqualificar a diplomacia brasileira, que, em atitude digna de aplauso, contrapôs-se à camarilha golpista de Honduras e abrigou em nossa Embaixada o presidente Manuel Zelaya. Fiéis à cartilha imperial, os jurássicos trataram de alardear que o Brasil estava “interferindo” nos assuntos internos de outro país e que havíamos criado um problema internacional – torpedos idênticos ao que tagarelavam diversos jornalistas (?) da mídia nacional, autoproclamados “isentos e imparciais”. Nas organizações (!) Globo, a tática foi exemplar: o “Jornal Nacional”, já escaldado pelo golpe contra Chávez, em 2002 (que expôs ao ridículo a Veja e outros ‘órgãos’ que apoiaram a tramoia), poupou sua bílis contra Lula e Zelaya. Já o Extra, seu jornaleco de segunda mão, debochou à vontade do caso, comparando o presidente deposto a Odorico Paraguaçu, o arbitrário prefeito da fictícia Sucupira criada por Dias Gomes. De quebra, ainda debochou do ‘folclórico’ chapéu do mandatário, que, por certo, nossos “mudernos” repórteres pretendem pôr no mesmo museu onde enfiaram os trajes indígenas de Evo Morales. É claro que ninguém se ocupou do mérito da questão (Zelaya ainda é a autoridade máxima do país, segundo reconheceu até mesmo a subserviente ONU e a moribunda OEA – destituído pelos gorilas a soldo das elites bananeiras), nem tampouco levantou sua voz contra a violenta repressão que se abateu contra a resistência do povo hondurenho, com dezenas de mortos e feridos, decretação de estado de sítio e ocupação dos meios de comunicação que não se curvaram à torpe quadrilha de Micheletti. Violação dos direitos humanos, pelo visto, só deve existir no Irã, na China ou em Cuba, conforme reza a agenda de Tio Sam, guru espiritual de boa parte da grande imprensa na América Latina. No resto do mundo, há apenas ‘excessos’ que a comunidade internacional cuida de resolver, naquele estilo bastante delicado que pudemos observar nas invasões ao Iraque e ao Afeganistão... Em verdade, há muita gente com saudade dos anos de chumbo ao sul do Rio Grande... E quando veem Hugo Chávez ou Evo Morales, então, eles – os ditos “mudernos” – sentem logo uma urticária em suas couraças e tratam de aliviar-se com sua profilaxia secular. Heráclito, por exemplo, primeiro-secretário do Senado, foi logo validando mais 36 atos secretos da Casa, para prolongar o suave gostinho da maracutaia, mas deixou a malsinada Ata da reunião sob sigilo por mais de 20 dias... É, de fato, um rigoroso “guardião da ordem”: os monopólios e o latifúndio, hiperultramodernos, podem contar com essa fauna avançadíssima para desmatar nossas florestas, liberar o uso de transgênicos e privatizar serviços essenciais, desde que, sempre que possível, o Estado financie seus ‘investimentos’ humanitários... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

Sem credibilidade, agências de risco dão sinal verde à especulação no Brasil Ben Piven-CC

PÓS-CRISE? Grau de investimento corrobora tese de que país saiu da crise, mas não altera economia real Renato Godoy de Toledo da Redação Tem sido análise recorrente, do governo até setores da oposição, que o Brasil foi um dos últimos a entrar e um dos primeiros a sair da crise econômica mundial. Dentro dos marcos do capitalismo financeiro, um indicador importante para essa constatação é a classificação do país pelas agências de avaliação de risco. Ainda que com a credibilidade manchada após a eclosão da crise, essas agências servem como um farol que sinaliza ao capital especulativo onde há retorno financeiro para o seu investimento. Essas instituições criaram uma espécie de selo para indicar quais países têm rentabilidade garantida. O rótulo é o chamado grau de investimento. Duas das três grandes agências (Standard & Poor’s e Fitch Ratings) já haviam concedido esse título ao Brasil no primeiro semestre de 2008. No último dia 22, a Moody’s ratificou esse status do país. Desde o início da crise, o Brasil foi o único país a tornar-se grau de investimento, segundo os critérios dessa empresa. Nas três principais agências, o país figura no patamar mais baixo do grau de investimento (“risco de crédito moderado”).

“Ninguém mais leva a sério os títulos concedidos por essas agências. Elas estão desmoralizadas, pois deram boas classificações a títulos podres que ruíram com o início da crise”, afirma José Carlos de Assis Ainda neoliberais É importante notar que algumas nações com problemas sociais sérios, até maiores do que os do Brasil, estão melhores postados do que o país, como é o caso da África do Sul. Também têm boas colocações paraísos fiscais como as Ilhas Cayman e Bahamas. Os relatórios dessas companhias ainda apresentam os vícios do neoliberalismo – modelo apontado por especialistas, da esquerda à direita, como responsável pelo abalo na economia mundial. No primeiro semestre de 2008, quando as outras agências alçaram o Brasil à condição de grau de investimento, a Moody’s alegou não fazer o mesmo por preocupar-se com o aumento do gasto público no país. Analistas da empresa afirmam manter essa preocupação. Tal crítica soa frágil e ideológica em demasia, no momento em que o Estado tem sido apontado como o principal agente de combate à crise, com a implementação de medidas anticíclicas. Para o economista José Carlos de Assis, presidente do Instituto Desemprego

Vista do prédio da Bolsa de Valores de São Paulo, no centro da capital paulista

Zero, a influência do anúncio do grau de investimento na economia real do país é nula. “O impacto é nenhum. Ninguém mais leva a sério os títulos concedidos por essas agências. Elas estão desmoralizadas, pois deram boas classificações a títulos podres que ruíram com o início da crise. O próprio governo dos EUA está fazendo uma supervisão dessas agências. Isto é um fetiche que criaram e só interessa a alguns fundos especulativos. Aliás, o Brasil não tinha o grau de investimento e já recebia dinheiro da mesma maneira”, contesta. Selic alta De acordo com Paulo Passarinho, presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro (CoreconRJ), o título de grau de investimento só tem importância, de fato, para os investidores internacionais. O economista acredita que a manutenção da taxa básica de juros, a Selic, em um patamar muito acima do nível mundial, foi um fator importante para a nova classificação do país. “Em termos de critérios [para atribuir grau de investimento a um país], a percepção é combinar rentabilidade das aplicações com segurança. Isto é uma norma em qualquer aplicação. A rigor, o que as agências fazem é estimular a aplicação de recursos em determinados países que, na ótica delas, possam garantir rentabilidade com segurança. No caso do Brasil, o fato de aplicar taxa de juros alta, enquanto outros usam taxa negativa, é um estímulo para essas agências”, explica Passarinho. Mesmo com uma sequência de reduções na Selic, o Conselho de Política Monetária do Banco Central sinalizou que o período de queda cessou e a taxa pode até subir no final do ano. Com a Selic a 8,75% anuais, os especuladores têm garantia de retorno financeiro ao aplicar em títulos públicos brasileiros, indexados pela taxa. “A manutenção de taxa de juros elevada, neste quadro, é um tremendo negócio [para a especulação]. Além disso, temos um processo perigoso de valorização do Real em relação ao dólar. Ou seja, além do atrativo da taxa de juros, há uma situação cambial favorável. Mas esse quadro acarreta em perda de competitividade para as exportações. A tendência é que tenhamos uma diminuição do saldo comercial. Há um processo de estímulo às importações, pela desvalorização do dólar. É uma situação dramática”, prevê Passarinho.

Sem sair do modelo, país agiu bem na crise Reprodução

Controle sobre parte do sistema financeiro foi fundamental para medidas anticíclicas da Redação O periódico francês Le Monde afirmou que Lula tinha razão ao dizer que, para o Brasil, a crise viria como uma “marolinha, não um tsunami”. Até mesmo órgãos de imprensa claramente opositores de Lula têm admitido a saída da crise. Nesse quadro, o governo comemora e até tripudia daqueles que vociferaram contra a metáfora presidencial. Ao que tudo indica, as medidas anticíclicas surtiram efeito e o país voltou a crescer, ainda que timidamente. Dados do IBGE mostram que o Brasil passou apenas três meses em recessão técnica – constatada com dois trimestres seguidos de crescimento negativo. No último período, entre abril e junho, o país confirmou a recuperação econômica, crescendo 1,9% em relação ao período anterior. A previsão é de que

Entre abril e junho, o país cresceu 1,9% em relação ao período anterior

Para Paulo Passarinho, a saída da crise poderia ser mais efetiva se o recuo da taxa de juros não fosse feito de forma tão retardada o crescimento do PIB neste ano fique entre 0,5 e 1%. Números pífios para anos “normais”, mas comemorados pelo governo por temer um ano recessivo. Dentro dos marcos de um modelo dependente (leia matéria abaixo), o Brasil agiu de forma correta, implementando medidas anticíclicas, como a ampliação de crédito no sistema financeiro estatal e a redução do

IPI para automóveis e para a linha branca de eletrodomésticos. Esta é a análise de economistas consultados pela reportagem. Ação estatal

De acordo com Paulo Passarinho, do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, as medidas anticíclicas mais efetivas na turbulência internacional partiram de países como a China,

Índia e Brasil. Em comum, os três têm parte considerável do seu sistema financeiro na mão do Estado, podendo oferecer crédito sem necessariamente esperar um retorno lucrativo. Para José Carlos de Assis, presidente do Instituto Desemprego Zero, além da oferta creditícia e incentivos fiscais, as políticas sociais também foram fundamentais para conter a crise. “O governo adotou medidas anticíclicas importantes, como a expansão da liquidez. E também medidas como o aumento do salário mínimo e do Bolsa Família, o que evitou que o país continuasse afundando”, opina. Recuo tardio

Para Passarinho, a saída da crise poderia ser mais efetiva se o recuo da taxa de juros não fosse feito de forma tão retardada. “O Ministério da Fazenda tomou medidas importantes, sim. Tais como a desoneração fiscal para segmentos da indústria e a liberação de crédito. Tudo isso teve um papel importante. Mas a resposta do governo em relação à taxa de juros foi extremamente retardada, o BC manteve a taxa no patamar de 13,5% até dezembro e somente em janeiro iniciou a redução da taxa básica de juros”, lembra. (RGT)

Brasil beneficiou-se de “marolinha” chinesa País asiático é o maior parceiro comercial brasileiro da Redação O economista Paulo Passarinho, presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, compara a atuação do governo brasileiro diante da crise com a de outros países que apresentaram reações mais agressivas e nem chegaram a experimentar a recessão. “A China e a Índia são países que já responderam muito mais efetivamente à crise, com medidas de estímulo fiscal e monetário. Não sem razão, enquanto entramos em recessão, eles obtiveram apenas uma desaceleração no cres-

cimento. As economias chinesa e indiana são mais dinâmicas do que a nossa. Hoje discute-se se teremos um crescimento entre 0,5 e 1%, enquanto eles vão ter uma performance bem melhor”, salienta. A China tem a previsão de crescer 8% este ano. Troca de dependência

Em 2008, os EUA deixaram de ser o principal parceiro comercial do Brasil, posto que foi ocupado pela China. Segundo Passarinho, esse fator ajudou a economia brasileira a sair da crise, já que sua principal aliada comercial não passou por um momento tão crítico quanto o maior parceiro de outrora. “O Brasil se beneficiou da capacidade da China e da Índia, que têm uma crescente participação nas exportações brasileiras. As commodities que o Brasil exporta reagiram muito bem, graças a es-

A condição de mero exportador de commodities agrícolas insere o país no mercado mundial de maneira muito aquém de suas capacidades ses países. O encadeamento brasileiro na economia mundial acabou sendo muito positivo”, afirma Passarinho. Porém, Passarinho não defende essa troca de dependência como um modelo ideal para o desenvolvimento brasileiro. A condição de mero exportador de commodities agrícolas insere o país no mercado mundial de maneira muito aquém de suas capacidades, pois poderia gerar melhores produtos, com maior valor agregado e frutos de um trabalho mais qualificado. “Não diria que esta escolha [de negociar mais com a

China] é acertada, pois a escolha acertada seria um desenvolvimento autóctone e endógeno. Nós, na verdade, acabamos por nos beneficiar da atuação de outros países. Não é salutar nos especializarmos em exportação de commodities agrícolas. A mera exportação de produtos primários e semilaborados não é o caminho para um país como o nosso, que poderia gerar muito mais emprego. Tivemos um efeito da crise atenuado, mas acho que não é um papel defensável, porque está ligado a um modelo agrícola insano”, considera Passarinho. (RGT)


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brasil

Um governador e suas truculências Rachid Waqued/Governo do Estado de Mato Grosso do Sul

MATO GROSSO DO SUL O governador André Puccinelli projeta seu nome por meio de episódios esdrúxulos, mas não à toa ou sem propósito Cristiano Navarro da Redação NÃO É DE HOJE que André Puccinelli, governador do Estado do Mato Grosso do Sul (PMDB), faz fama esparramando nos jornais provocações no mínimo de mau gosto. Um latifundiário degradador do meio ambiente? Perseguidor de sindicatos, movimentos sociais e povos indígenas? Ou um potencial estuprador homofóbico? Em uma pesquisa pelo noticiário, é possível encontrar declarações do governador sul-matogrossense que fazem com que seu perfil se encaixe em todos esses adjetivos. No entanto, o que não se pode pensar é que se trata de um louco. Nenhuma das palavras ditas por esse médico ítalo-brasileiro, duas vezes prefeito de Campo Grande, eleito governador do Estado em 2006, são gratuitas, desfocadas ou sem interesse. Ao contrário, Puccinelli utiliza o fato de, no Estado, todos os meios de comunicação estarem alinhados com sua política para mandar recados violentos e ameaçadores contra seus adversários. O estupro da cana Em seu último episódio pitoresco, o governador chamou o ministro do meio ambiente, Carlos Minc, de “viado” “fumador de maconha”. A desqualificação do ministro foi dita durante uma palestra a empresários do setor sucroalcooleiro interessados em plantar cana-de-açúcar na Bacia do Alto Paraguai, onde se localiza o Pantanal. Puccinelli chutou a bola para sua torcida ainda mais alto quando alertou que, se Minc participasse da próxima Meia-Maratona Internacional do Pantanal, a ser realizada dia 11 de outubro, sairia da corrida como vencedor. “Porque, se não, eu [Puccinelli] o alcançaria e ele seria estuprado em praça pública”. A diferença entre Minc e o governador está no plano de

Zoneamento Agroecológico da Cana-de-açúcar, divulgado no último dia 17 de setembro pelo governo federal. O zoneamento estabelece regras para o uso do solo no plantio da cana, proibindo seu cultivo e instalação de usinas de álcool na Bacia do Alto Paraguai. As pretensões do setor sucrooalcoleiro são grandes para o Mato Grosso do Sul. Está planejada, até 2012, a construção de 51 novas usinas de álcool no Estado e – como obra do Plano de Aceleração do Crescimento – a construção de um álcoolduto de 920 quilômetros que ligará Campo Grande até o Porto de Paranaguá, para facilitar o escoamento do combustível da região CentroOeste para exportação. Nas contas de campanha apresentadas por Puccinelli à Justiça Eleitoral do Mato Grosso do Sul, é possível justificar o comportamento agressivo contra Minc. Dos R$ 7.164.813,94 recebidos para o financiamento de sua campanha eleitoral, os maiores doadores foram as empresas Tavares de Melo Açúcar e Álcool S/A (R$ 592 mil) e Equipav S/A Açúcar e Álcool (R$ 300 mil). Outra oposição que enfrentam os planos da indústria do etanol é a demarcação das terras indígenas. O Estado com a segunda maior população indígena do Brasil tem um dos piores deficits de terras demarcadas. Com a maior parte de suas terras nas mãos dos produtores de canade-açúcar, os Guarani Kaiowá sofrem com altos índices de morte por desnutrição infantil. Atualmente o governador tem liderado uma campanha para o não-reconhecimento das terras indígenas. “Trata-se de uma questão grave. Um governador com responsabilidades públicas que assume causas privadas. Destinando recursos públicos para inúmeras idas à Brasília, articulações políticas no Estado e mobilização da opinião pública contra a demarcação das terras indígenas em favor do agronegócio”, denuncia o co-

O governador André Puccinelli atende a imprensa: recados ameaçadores contra adversários

Um latifundiário degradador do meio ambiente? Perseguidor de sindicatos, movimentos sociais e povos indígenas? Ou um potencial estuprador homofóbico? ordenador do Conselho Indigenista Missionário em Mato Grosso do Sul, Egon Heck . “O governador representa e lidera as elites econômicas do Estado, nos setores agroindustrial e sucroalcooleiro, que têm forte influência e são capazes de fazer gestões junto ao governo federal para barrar o processo de demarcação” concorda Pedro Kemp, deputado estadual pelo PT em Mato Grosso do Sul. Noel com Alzheimer A virulência de André Puccinelli se direciona também ao funcionalismo público. Por meio de decreto assinado na véspera do Natal de 2008, o governador revogou a licença que permitia à assistente social Lílian Olívia Fernandes presidir o Sindicato dos Trabalhadores na Administração (Sindsad).

O motivo para a cassação foi a oposição feita pelo sindicato a uma convocação dos seus filiados para uma nova perícia médica a ser realizada dentro da Academia da Polícia Militar. “A gente avaliou que esta seria uma forma de pressão para exoneração de funcionários sob licença médica e maternidade”, afirma Lílian. Dois dias depois de ter a presidência do Sindicato cassada, ela contestou a medida encaminhando um ofício à governadoria. O ato soou tão esdrúxulo que, em entrevista coletiva, Puccinelli negou ter homologado a decisão: “não tomei medida nenhuma, só se eu estiver com mal de Alzheimer [doença]”. No dia seguinte, o governador voltou atrás e revogou a medida, reconhecendo sua assinatura e erro no decre-

to 4.554, publicado no Diário Oficial. Para Lílian, “só um psicólogo poderia explicar o porquê dele [Puccinelli] ser tão violento”. “Meu nome foi exposto ao ridículo. No dia de Natal, passei por uma coisa tão absurda que penso sinceramente em processá-lo”, avalia a assistente social que segue na presidência do Sindsad. Inimigo dos professores Outras vítimas dos destemperos foram os professores do Estado, chamados de vadios pelo governador. Em novembro do ano passado, após uma reunião com a Federação de Trabalhadores da Educação do Mato Grosso do Sul (Fetems), o governador afirmou à Agência Brasil que o aumento do tempo de planejamento de aulas para 1/3 da carga horária de trabalho do professor, como prevê a Lei Federal 11.738/08, trata-se de “vadiagem”. “Eu fui cirurgião de trauma. Aí, um doido te atropela, foge, você está sangrando e entra em choque. Eu vou planejar 13 horas como fazer a cirurgia? Não tem necessidade de aumentar horas de planejamento e diminuir o essencial,

que é ensinar o aluno. O que precisa é dar aula para a gurizada”, disse o governador, que concluiu com a seguinte pérola: “Vocês não vão ficar com horas a mais de vadiagem, vão ficar só com dez horas de planejamento/vadiagem”. Na avaliação do deputado estadual do PT Pedro Kemp, “o governador tem um perfil autoritário, centralizador e ultrapassado, que não respeita os movimentos sociais, nem costuma negociar ou receber sindicalistas”. Jaime Teixeira, presidente da Fetems, conta que esta não é a primeira vez que sua organização sindical tem problemas com o governador. Em novembro de 2007, o sindicalista entrou com uma representação no Ministério Público Estadual (MPE) contra o governador por descobrir a PM-2 (serviço reservado de inteligência da Polícia Militar) espionando uma assembleia de professores em Campo Grande. “O patrulhamento dos movimentos sociais é uma forma de intimidação para que não haja nenhum tipo de mobilização no Estado. Mas esse tempo já passou”, explica Jaime.

TRIBUNAL POPULAR

Famílias que tiveram os filhos levados por Conselho Tutelar são ouvidas Em audiência, familiares relatam atuação do Conselho Tutelar; denúncias podem chegar à OEA Jonathan Constantino de Itaquaquecetuba (SP) “QUEREMOS VIVER felizes juntos dos nossos filhos”. Esta era a mensagem escrita no cartaz segurado por Derval Martins, um dos muitos levantados pelos presentes, no dia 27 de setembro, na audiência pública popular que denunciou o procedimento do Conselho Tutelar Municipal (CT) de Itaquaquecetuba, na região da Grande São Paulo, entre os anos de 2004 e 2007, e da promotora da Infância e da Juventude de Itaquaquecetuba, Simone de Divitiis Perez. Derval Martins teve a filha tomada pelo CT, em novembro de 2006, quando o conselheiro Lídio Jonas de Souza invadiu a casa de sua irmã, Inês Martins de Melo, que à época cuidava da criança, e retirou do berço a menor. Ele, juntamente outras 20 famílias

vitimizadas, participou do julgamento realizado na sede 152ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Itaquaquecetuba. O ato foi organizado pelo Tribunal Popular e contou com a participação do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (FEDDCA), da OAB e de representantes dos deputados estaduais José Cândido (PT) e Raul Marcelo (Psol), membros da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Tribunal Popular Surgido em 2008 em oposição à Conferência de Direitos Humanos, realizada no mesmo ano pelo governo federal, o Tribunal Popular é uma rede formada por mais de 100 entidades e movimentos sociais cujo objetivo é denunciar os crimes cometidos pelo Estado. Segundo Marisa Feffermann, do Tribunal, a audiência realizada em Itaquaquecetuba pretende mobilizar a opinião pública e chamar a atenção para o drama que as famílias estão passando, denunciando também a criminalização da pobreza. “Em vez de o Estado garantir seu dever no cumprimento e promoção de direitos, mais uma vez age ile-

“É preciso empoderar as pessoas, que hoje ficam com discurso de vítima, para que elas assumam o lugar de atores”, pontua Marisa Feffermann, do Tribunal Popular galmente punindo as famílias pobres, como não bastasse a injustiça social de que já são vítimas”, denuncia. Para Marisa, além da perspectiva de denúncia e resistência, o Tribunal Popular cumpre um papel importante ao fortalecer as pessoas vitimizadas para que estas consigam exigir seus direitos. “É preciso empoderar as pessoas, que hoje ficam com discurso de vítima, para que elas assumam o lugar de atores”, pontua. A audiência realizada em Itaquaquecetuba também abre precedentes para a investigação em outros lugares nos quais já surgiram denúncias de mesmo gênero e permite avanços no que diz respeito à resolução do casos dessas famílias, avalia Givanildo Manuel da Silva, do FEDDCA. “Amplia a ação política, pois sai do âmbito regional”, avalia. Givanildo salienta que as famílias precisam de respos-

ta rápida, pois trata-se de um crime contra os direitos humanos e há casos que aguardam solução há três anos ou mais. “Os direitos das famílias e das crianças foram violados”, protesta. Esperanças Para Maria Iracema Forte Rodrigues, a audiência dá sinais de esperança. Ela, que teve a filha tomada de si sem aviso após o nascimento e que não chegou a ver a menina, sob alegação de problemas psicológicos, mas sem apresentação de laudo ou parecer clínico que o atestasse, mostravase animada. “Eu vou ter minha filha de volta”, afirmou. Suas esperanças estão baseadas nos encaminhamentos tirados a partir do Tribunal. Será agendada uma audiência pública na Alesp, convocada pelo gabinete dos deputados José Cândido e Raul Marcelo, através da qual pretende-se recolher assinaturas dos parlamentares para a abertura de

uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigue o caso. Hugo Batalha, assessor do gabinete de Raul Marcelo, explica que, além do pedido da CPI, o conjunto de entidades que organizou o julgamento irá encaminhar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicitando a investigação dos fatos, a anulação dos processos de adoção e a de destituição de pátrio poder. De acordo com Batalha, a partir das denúncias encaminhadas ao CIDH, o Estado brasileiro pode ser levado a julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Devido a precedentes abertos, há a possibilidade de condenação, e o Estado pode ser obrigado a pagar indenização por danos morais. Na avaliação de Givanildo, caso a CIDH considere pertinentes as denúncias, a possibilidade de condenação na OEA é grande. “Para acontecer a absolvição, [o Estado] tem que argumentar muito. Nesse caso, será quase impossível, as partes serão ouvidas e levaremos os familiares [para depor]”, afirma. Retrospecto O tribunal foi organizado a partir das denúncias realiza-

das por um grupo de 17 famílias cujos filhos foram tomados pelo CT entre os anos de 2004 e 2007, em Itaquaquecetuba, conforme apresentado por reportagem do Brasil de Fato em junho. Abuso de poder, abordagem agressiva e vexatória, ocultação de informações e retirada arbitrária de crianças do seio familiar são as principais acusações levantadas por elas e começaram a vir à tona quando, em julho de 2007, tomaram posse os cinco novos conselheiros para a nova gestão. Após encaminharem as denúncias à Promotoria de Infância e Juventude, passaram a ser perseguidos, o que culminou com seu afastamento do cargo. Durante os quatro meses em que o grupo exerceu suas funções no CT, levantaram 42 casos de famílias que reivindicavam suas crianças, sendo que o número não pôde ser estimado, pois havia pais que perderam mais de um filho. Segundo os familiares, a então presidente do CT, Márcia Major, teria participado da maioria das ações e, em grande parte dos casos, com ajuda do ex-conselheiro Lídio Jonas de Souza. O familiares afirmam que a promotora Simone de Divitiis Perez era conivente.


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brasil Abr

Proposta quer retirar direitos sociais da Constituição RETROCESSO Deputado Regis de Oliveira (PSC-SP) propõe Emenda Constitucional que pretende “enxugar” a Constituição brasileira, retirando dela vários capítulos, inclusive todos que dizem respeito aos direitos sociais, como saúde e educação Raquel Torres do Rio de Janeiro (RJ) VINTE E UM anos após a promulgação da Constituição Federal brasileira, uma proposta tem como objetivo enxugar o texto e retirar mais de 80% dos seus artigos: a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 341/2009, do deputado Regis de Oliveira (PSC-SP), reduz os 250 artigos do texto atual a apenas 62, e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que hoje conta com 96 artigos, passa a ter somente um. O projeto teve parecer favorável do relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), o deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA). Entre as principais mudanças previstas na PEC e mantidas pelo relator está a retirada de toda a matéria que dispõe sobre direitos sociais: foram excluídos os capítulos sobre a seguridade social e sobre a educação, por exemplo. A constituição proposta por Regis de Oliveira não traria mais saúde e educação como direitos de todos e deveres do Estado, não estabeleceria o Sistema Único de Saúde nem tra-

taria da assistência social e da previdência. Direitos dos trabalhadores, como segurodesemprego, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), 13º salário, férias, garantia de salário mínimo e a livre associação profissional ou sindical também não estariam presentes no documento. “O objetivo disso é retirar tudo aquilo que não é matéria constitucional”, argumenta o autor da PEC. Na justificativa da proposta, ele ainda escreve que é preciso evitar “a existência das constituições formais, em que cabe toda e qualquer matéria, por mais irrelevante que seja”. Apesar de ter dado parecer favorável, Sérgio Carneiro dividiu a PEC em dois substitutivos: o primeiro, que será analisado pela CCJC e dará continuação à tramitação, diz respeito ao enxugamento propriamente. Nele, o relator preferiu restabelecer alguns artigos e deixar o texto final com 76, ao todo — a proposta inicial retirava, por exemplo, as atribuições do presidente da República, os princípios da administração pública, as seções que descrevem a organização de estados e municípios, a fiscalização contábil, financeira e or-

çamentária, a forma de constituição do Poder Judiciário e a especificação dos bens da União. Estes e outros dispositivos foram mantidos por Sérgio Carneiro. Já o segundo substitutivo diz respeito não à supressão de artigos, mas à alterações do texto constitucional que haviam sido propostas no texto original de Regis de Oliveira, como a fusão de Câmara e Senado em uma única casa legislativa. De acordo com Sérgio Carneiro, esse segundo substitutivo não deve ser analisado agora: ele deve constituir uma nova PEC. “Isso porque as propostas são todas muito polêmicas e a aprovação do projeto, tal como estava, seria muito difícil”, explica. Visões distintas Para Marcus Vinícius Coelho, presidente da Comissão de Legislação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o que está em jogo são duas visões distintas de modelos de Constituição. “Alguns entendem que o texto constitucional deveria ser sintético, como o dos Estados Unidos, trabalhando apenas com questões que dizem respeito à organi-

Promulgação da Constituição de 1988: conquistas sociais ameaçadas

O projeto teve parecer favorável do relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), o deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA) zação dos poderes e os direitos e garantias fundamentais, como propõe Regis de Oliveira. Mas há uma segunda posição que entende que a Constituição deve ser analítica, como ocorre em geral na Europa – e no Brasil. Segundo essa concepção, o texto deve ir além da Constituição sintética e tratar também da vida da sociedade como um todo: da comunicação social, da cultura, do meio ambiente, da pro-

teção à família, do respeito aos direitos sociais”, diz, afirmando que a tradição da nossa realidade jurídica tem sido baseada nessa segunda visão desde 1934. O deputado estadual Carlos Mosconi, que participou da subcomissão de saúde, seguridade e meio ambiente da Constituinte de 1988, também critica a proposta de enxugamento. “Hoje, questões como a saúde são encaradas

Garantia em leis ordinárias ou complementares Gilberto Nascimento/Agência Câmara

Para o jurista Dalmo Dallari, a proposta representa um retrocesso, e a garantia na Constituição continua necessária do Rio de Janeiro (RJ) O argumento de Regis de Oliveira é que a parte que ele propõe suprimir deve ser tratada por leis ordinárias ou complementares, e não pela Constituição. Ele afirma que, em 1988, o país acabava de sair de uma longa ditadura e que, por isso, fazia sentido garantir direitos sociais na Constituição, já que havia o receio de voltar a perdêlos mais tarde. “Naquela época, tinha-se a sensação de que era preciso preservar o país contra uma nova revolução (referindo-se ao golpe militar de 1964), uma nova supressão dos direitos. Hoje isso não é mais assim, porque os poderes estão funcionando livremente e a sociedade está tranquila. Não há mais razão para manter todos esses aspectos. Essa estrutura velha é que nós temos que demover”, diz. Mas, para o jurista Dalmo Dallari, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a justificativa é equivocada. “A garantia na Constituição continua necessária, porque de fato tudo o que foi colocado no texto foi uma conquista que só se tornou possível pe-

Artigos podem retornar ao texto

Jorge Campos/Agência Câmara

la presença do povo nas ruas. Agora, é extremamente perigoso abrir a possibilidade de voltar atrás, porque não existe mais uma pressão tão grande da sociedade sobre os políticos”, diz. Para Marcus Vinícius, o movimento deveria ser o oposto: não pela retirada dos artigos, mas pelo seu cumprimento. “No meu entendimento, essa é uma proposta elitista, porque considera que direitos à saúde e à educação, por exemplo, são matérias que não estão num patamar preferencial de tratamento”, pontua. De acordo com Dallari, a proposta representa um retrocesso: “Essa Constituição é, de longe, a melhor que o país já teve”, comenta. Facilitar o trabalho? Direitos garantidos na Constituição são mais estáveis, não porque não seja possível alterá-los ou removê-los, mas porque o processo para fazer as mudanças é complexo: “Uma PEC da Câmara, por exemplo, precisa passar por um exame de admissibilidade, por uma comissão de mérito e ainda por duas votações em plenário, em que deve obter aprovação de três quintos dos parlamentares. Em seguida, segue para o Senado, onde passa por novo exame de admissibilidade e por mais duas votações em plenário, para voltar para a Casa de origem e ser, finalmente, aprovada”, explica Sérgio Carneiro. Por outro lado, para alterar assuntos de leis complementares ou ordinárias é preciso conseguir apenas, respectivamente, a maioria absoluta ou simples dos parlamentares. Um dos argumentos de Regis de Oliveira e Sérgio Car-

de uma maneira, mas amanhã não sabemos como vai ser. Estando na Constituição, a garantia é muito maior”, diz. Para Marcus Vinícius, existe ainda uma outra questão: de acordo com ele, o fato de os direitos sociais estarem na Constituição faz com que esses temas permaneçam na agenda política do país: “Se forem retirados, correse o risco de que saiam dessa agenda”, alerta.

do Rio de Janeiro (RJ)

Os deputados Sérgio Barradas Carneiro e Regis de Oliveira

“O que não se pode fazer é sacrificar a população sob a justificativa de que o parlamento tem dificuldades”, diz Marcus Vinícius Coelho, presidente da Comissão de Legislação do Conselho Federal da OAB neiro para sustentar a proposta do enxugamento é justamente a agilidade que isso traria às mudanças no futuro, já que é mais fácil alterar leis complementares e ordinárias que dispositivos constitucionais. O autor da PEC afirma que hoje há cerca de 1.200 propostas tramitando na Câmara e mais 400 no Senado: “Com isso, o legislativo não está com sua força toda para

legislar”. O deputado diz ainda que considera “um absurdo” que questões sociais sejam difíceis de se alterar. “Se a maioria do Congresso quiser retirar algum direito, alguma garantia dos trabalhadores, ou qualquer dispositivo legal, o que pode impedir? É preciso remover obstáculos de caráter constitucional para resolver um problema da sociedade? Acho um absurdo”, diz.

Marcus Vinícius contesta: “Facilitar o trabalho do parlamento é um argumento muito pequeno para justificar a grave intervenção na ordem jurídica constitucional brasileira – para retirar da Constituição a proteção aos aposentados, o limite mínimo de gastos em educação e em saúde, a proteção à infância e à adolescência. O que não se pode fazer é sacrificar a população sob a justificativa de que o parlamento tem dificuldades”, afirma. Mosconi concorda: “Esta é uma posição temerária. O texto foi um grande avanço, e foi duro conseguir o que está lá. Na área da saúde, o maior avanço já conquistado foi a Constituição. Não tem nada sobrando – só faltando, como a Emenda 29, que não está regulamentada”, afirma. (RT)

Apesar de já ter recebido o parecer favorável do relator da CCJC, a tramitação da matéria está no começo: o substitutivo de Sérgio Carneiro ainda será examinado e votado por essa comissão e, antes de ir a plenário, precisa passar ainda por uma comissão de mérito. Segundo Sérgio Carneiro, nos dois debates há espaço para que artigos sejam restabelecidos. “É possível que esse não seja o substitutivo a ser aprovado na própria CCJC. Questões como os direitos sociais podem retornar ao substitutivo para viabilizar sua aprovação. A comissão de mérito, por sua vez, também tem autorização para fazer novas modificações. A proposta ainda está aberta”, diz. Para Marcus Vinícius, é importante que haja uma pressão social sobre os parlamentares neste momento. “Fica um alerta à sociedade e aos movimentos sociais. O Brasil é um país com suas características próprias e não pode cometer a alienação jurídica de importar o modelo dos EUA. Nós temos nossa própria realidade, e ela exige que tenhamos uma Constituição que proteja os direitos sociais. E são esses direitos que o enxugamento pretende retirar”, reflete. (RT) (Revista Poli – saúde, educação e trabalho, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Fiocruz – www.epsjv.fiocruz.br).


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brasil

Pressionados, defensores de Yeda Crusius voltam para CPI Antonio Paz/Palácio Piratini

CORRUPÇÃO Manifestações populares e divulgação de áudios que comprovam envolvimento de Yeda forçam início dos trabalhos da comissão

Pressão social A pressão dos movimentos sociais e sindicais pelo impeachment também atingiu a base tucana. O Fórum Estadual de Servidores Públicos, que reúne dezenas de sindicatos de funcionários estaduais, tem participado não apenas das sessões da CPI, como da instalação da Comissão Especial para analisar o pedido de impeachment. Em uma das ações, os servidores cobriram 19 monumentos nos municípios de Porto Alegre e Canoas com um capaz preto e os dizeres “Deputado Coffy nos deixa cobertos de vergonha. Está do lado da corrupção. Fora Yeda, impeachment já”. Entre as estátuas cobertas estava o Monumento ao Laçador, na entrada da capital. Estudantes também realizaram protestos na Assembleia. Com a pressão, o relator Coffy Rodrigues pediu uma reunião extraordinária na qual a base yedista aceitou um plano de trabalho para iniciar, de fato, a atuação da CPI. A Comissão terá dois encontros semanais e deve ouvir quatro testemunhas em cada uma delas. O ex-presidente do Detran Sérgio Buchmann será a primeira testemunha. Nas gravações do testemunho ao MPF e à Polícia Federal, Buchmann revelou a divisão dos recursos desviados: “24% do movimento financeiro mensal do Detran era assim dividido antes: 12% para o Lair [Fest, ex-coordenador da campanha de Yeda] e 12% para os demais”. Os valores teriam sido informados a Buchmann pelo secretário adjunto da Administração, Genilton Macedo Ribeiro, que também deverá ser ouvido pela CPI.

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% do movimento financeiro mensal do Detran eram desviados, segundo ex-presidente do órgão

Teto privilegiado

Em tempo recorde o Congresso Nacional aprovou o aumento de salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal, de R$ 24,5 mil para R$ 26,7 mil por mês, que é o novo teto salarial do funcionalismo público. Essa remuneração dos ministros é superior a 57 salários mínimos, foi aprovada por unanimidade na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e provocará reajustes generalizados em todo o Judiciário. Maravilha, né?

Crime premiado

Projeto do deputado José Mentor (PT-SP) em tramitação na Câmara dos Deputados prevê anistia para quem depositou dinheiro ilegal no exterior, praticou crimes de evasão de divisas e sonegação fiscal. Se quiser “limpar” o dinheiro, basta repatriar em seis meses e pagar imposto de 10% à Receita Federal. É bem menos do que o recolhimento do Imposto de Renda para quem ganha acima de R$ 2.500,00. O crime compensa!

Miguel Enrique Stédile de Porto Alegre (RS) A TÁTICA DA base da governadora Yeda Crusius (PSDB/RS) na Assembleia Legislativa de esvaziar as sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Corrupção chegou ao limite. Pressionados pelos deputados de oposição e pelo movimento pró-impeachment, os parlamentares da situação decidiram voltar às sessões, permitindo que a comissão iniciasse a tomada de depoimentos. As obstruções dos deputados duraram três semanas e quatro sessões. Inicialmente, os membros do PMDB, PP, PPS, PSDB e PTB, que integram a CPI, tentaram transferir os poderes da presidente Stela Farias (PT) para o relator Coffy Rodrigues (PSDB). Frustrada a manobra, os situacionistas retiraram-se de todas as sessões seguintes para impedir o quórum mínimo de funcionamento. A tática esbarrou em duas reações. Primeiro, a deputada Stela Farias passou a revelar gravações que compõem a ação civil do Ministério Público e que não estão sob segredo de Justiça. Os áudios tomados nos depoimentos de testemunhas ao Ministério Público Federal e em escutas telefônicas revelaram a participação de Yeda na partilha dos recursos desviados do Detran para a campanha eleitoral. “Os áudios mostram claramente a participação dos membros do governo nesse esquema de corrupção, e a repercussão na opinião pública forçou os deputados governistas a virem para um acordo”, explica o deputado Ronaldo Zulke (PT).

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Arapongas ativos

A governadora Yeda Crusius e o deputado Coffy Rodrigues

Em tempo de denúncias, gasto Comissão do com publicidade aumenta impeachment inicia seus Por outro lado, Quanto governo tucano trabalhos R$ 2,56 corta investimentos em áreas sociais

de Porto Alegre (RS) No mesmo semestre em que enfrentou as maiores manifestações contra seu governo, Yeda Crusius (PSDB) reduziu drasticamente os investimentos em áreas sociais, mas aumentou os gastos com publicidade. A análise do orçamento do primeiro semestre do governo gaúcho foi feita pela bancada do PT. Somente em educação, o corte de investimentos foi de R$ 619 milhões. Um dos estados com maiores índices da gripe H1N1, o Rio Grande do Sul investiu apenas 5,3% do que havia previsto para a saúde. No caso de políticas de irrigação, um dos carros-chefes da campanha de Yeda, a aplicação em programas de construção de microaçudes, agricultura familiar e capa-

bilhões dos recursos destinados à saúde e educação serão cortados em 2010

citação foi a zero, justo no período em que o Estado enfrentou uma das mais graves estiagens de sua história. Por outro lado, só as estatais tiveram um crescimento de 41% nos gastos em propaganda em relação a 2008, num total de R$ 93 milhões. A lógica de redução do Estado deve permanecer no orçamento de 2010, denuncia o deputado Adão Villaverde (PT). Na proposta orçamentária, enviada para a Assembleia, a governadora propõe mais cortes, de R$ 2,56 bilhões, na educação e na saúde. “Se formos verificar o que realmente está sendo proposto para a saúde, encontraremos 5,4%, ao invés dos 12% exigidos constitucionalmente pela emenda federal”, critica Villaverde.“Logo, a diferença é a não-aplicação de R$ 1,09 bilhão”, afirma. (MES)

A Comissão Especial instalada pela Assembleia Legislativa para analisar o pedido de impeachment da governadora Yeda Crusius iniciou seus trabalhos, com a definição do presidente e relator, na última semana de setembro. Na semana anterior, os deputados indicados para compor a Comissão foram aprovados por unanimidade pelo plenário. A Comissão tem dez dias para apresentar o relatório final sobre o pedido, protocolado pelo Fórum Estadual dos Servidores Públicos. A oposição indicou os nomes dos deputados Raul Pont (PT) e Gilmar Sossella (PDT) para os cargos de presidência e relatoria. No entanto, como na CPI, a base governista tem maioria na comissão, com 17 membros. (MES)

MOVIMENTO NEGRO

RS tem o primeiro quilombo urbano do país Quinze famílias obtiveram a titulação de sua terra em Porto Alegre Ireno Jardim/Prefeitura de Canoas

Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS) DEPOIS DE 11 ANOS de luta, os remanescentes do Quilombo da Família Silva finalmente conseguiram a titulação de sua terra em Porto Alegre (RS). O documento foi entregue oficialmente no dia 24 de setembro pelo governo federal e, no dia seguinte, os quilombolas realizaram uma festa com apoiadores e parlamentares para comemorarem a conquista. Com a titulação, o Quilombo da Família Silva se torna o primeiro quilombo urbano do país. Para o advogado das famílias e integrante do Movimento Negro Unificado (MNU), Onir de Araújo, a história dos Silva irá estimular outras comunidades quilombolas do país. “É uma vitória para o povo negro que não tem como medirmos. Não só do RS, como do Brasil. É uma referência de luta no Brasil inteiro e até mesmo internacionalmente. O protagonismo dos Silva rediscute o espaço urbano e a visão que se tinha dos quilombolas, meio folclórica e pitoresca. Não, é realidade”, diz. Quinze famílias moram no local. A área fica no bairro Três Figueiras, zona nobre da capital, e sempre foi especulada por cons-

A Polícia Federal descobriu que o agente federal aposentado Wilson Ferreira Pinna, lotado na Agência Nacional do Petróleo, forjou dossiê contra o próprio diretor da ANP, Victor Martins, irmão do ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. O caso é revelador de como a antiga “comunidade de informações” da ditadura militar continua atuando nas entranhas do poder.

Protesto goiano

O Fórum de Defesa da Universidade Estadual de Goiás, que reúne professores, estudantes e funcionários, declarou estado de greve contra os desmandos administrativos e o sucateamento daquela instituição. Além de atos de protesto, o Fórum convocou uma marcha de três dias, entre as cidades de Anápolis e Goiânia. O objetivo é chamar a atenção das autoridades para a situação de abandono da UEG.

Mais rejeição

A indicação do advogado José Antonio Dias Toffoli para o Supremo Tribunal Federal enfrenta resistências não apenas na oposição de direita ao governo Lula. Um manifesto assinado por entidades de ex-presos e anistiados políticos e por personalidades de Pernambuco também se posiciona contra a indicação. O argumento é de que Toffoli tem atuado contra a abertura dos arquivos da ditadura e a punição dos torturadores.

Guerra total

De acordo com informe da ONG Justiça Global, os confrontos entre traficantes e policiais no conjunto de favelas da Maré são responsáveis por mais de 50 mortos e 80 feridos nos últimos quatro meses, sendo a maioria crianças, jovens e moradores não envolvidos com o crime. Pior: existem indícios de que grupos de policiais ajudam facções do tráfico na ocupação dos pontos de droga de outras facções. Até quando?

Ufanismo capital

A Federação do Comércio do Estado de São Paulo acaba de divulgar o Índice de Sentimento dos Especialistas em Economia (ISE), que procura medir a expectativa do setor em cima da conjuntura econômica. Em setembro, esse índice bateu no topo do otimismo e mostra, segundo análise da entidade, que “o cenário negativo já passou”. Mais um setor empresarial que decreta o fim da crise econômica. Será mesmo?

Maus brasileiros

Moradores do quilombo Chácara das Rosas, em Canoas (RS)

trutoras, já que na região predominam condomínios de luxo. Uma antiga obra do Plano Diretor ainda previa a ampliação de uma rua, que iria dividir o quilombo e tirar o espaço das famílias. Depois de muita pressão, a prefeitura municipal anulou a obra. Novas conquistas Rita de Cássia da Silva, uma das moradoras do quilombo, afirma que a titulação é a garantia de que as famílias irão permanecer no local. No entanto, há muito ainda a avançar, como a construção de moradias com melhor infraestrutura e projetos de geração de renda. Há seis anos, as famílias ga-

nharam 13 máquinas de costura do governo federal, mas não têm espaço para trabalhar. “Para nós, que passamos por diversas ordens de despejo, é uma garantia de permanecermos aqui. Somos a quarta geração da família. Sem terra não adianta, a gente não tira nada”, argumenta. No início deste mês, o quilombo da Chácara das Rosas, em Canoas (RS), na região metropolitana, deve receber a titulação. Além do Quilombo da Família Silva, outras cinco áreas de quilombolas estão em processo de reconhecimento e titulação no Estado. O Rio Grande do Sul possui 135 comunidades quilombolas.

O professor Carlos Lessa (UFRJ) lembra, em artigo no Valor, os “maus brasileiros” descritos por Monteiro Lobato nos anos 1950. Diz ele: “Apesar do imenso sucesso da Petrobras, os neoliberais da atualidade recomendam concessões às petroleiras estrangeiras como a fórmula para explorar o pré-sal com eficiência! Os netos de minha geração irão vaiar estes neoentreguistas”. Antes eles achavam que o Brasil não seria capaz de explorar o petróleo.

Marcha Mundial

Começa dia 2 de outubro, na Nova Zelândia, a Marcha Mundial pela Paz e pela Não-Violência, organizada pelo movimento humanista com o apoio de inúmeras entidades e personalidades. A marcha vai passar por 90 países e deverá terminar dia 2 de janeiro de 2010, em Punta de Vacas, aos pés do Monte Aconcágua, na Argentina. Pede o fim dos arsenais nucleares e a retirada das tropas dos países invadidos.


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Trabalhadores intensificam a luta SINDICALISMO Balanço das mobilizações de 2009 é positivo, apesar da interferência da Justiça nos movimentos de greve Marcello Casal Jr/ABr

Michelle Amaral da Redação ATÉ O FINAL DE setembro, pelo menos 17 categorias de trabalhadores realizaram greve em todo o país, com intensas mobilizações e apoio popular. Ao contrário dos outros anos, em que os trabalhadores reivindicavam reajuste de salários, aumento de benefícios e melhores condições de trabalho, o ano de 2009 teve um importante ponto de reivindicação em função da crise econômica mundial: a garantia do emprego. Para Magnus Farkatt, advogado do Sindicato dos Metroviários de São Paulo e vice-presidente do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo, “o movimento sindical brasileiro se mostrou muito ativo na resposta à crise econômica”. Por conta da crescente onda de demissões e restrição de direitos, os trabalhadores foram às ruas em diversas mobilizações por todo o Brasil. Sob o lema “os trabalhadores não vão pagar pela crise”, as principais centrais se uniram em dois grandes atos, um em 30 de março e outro em 14 de agosto. O advogado trabalhista afirma que se pode fazer um balanço positivo do conjunto de mobilizações dos trabalhadores neste ano. “Houve uma resistência intensa por parte das entidades sindicais dos trabalhadores de preservar, sobretudo, empregos”, completa. A mesma avaliação é feita por Geraldo Rodrigues, diretor de política sindical da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios, Telégrafos e Similares (Fentect) e membro da executiva da Conlutas de São Paulo. Segundo ele, o aumento das mobilizações neste ano demonstrou principalmente uma reação às políticas dos governos e empresas mediante a crise. “Existe um crescimento nas greves e nós avaliamos que a principal questão é a da crise econômica, que os patrões estão querendo que nós, trabalhadores, paguemos essa conta”, explica. Endurecimento

Apesar do aumento das mobilizações, Artur Henrique, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), alerta para o fato

Cotas mínimas

Homem passa diante de agência bancária fechada em Brasília

de que os trabalhadores passaram a enfrentar um endurecimento por parte dos empresários nas negociações e, portanto, um rebaixamento de suas pautas de reivindicações e a não-concessão de aumentos reais de salários. “Os empresários, com o discurso da crise, que não é real porque, pelo resultado das empresas, vemos que tiveram lucros, seguraram os aumentos reais de salários”, analisa o sindicalista. Para além da crise, Leandro Spezia, presidente do Sindicato dos Bancários de Blumenau e diretor da Federação Estadual dos Bancários de Santa Catarina, afirma que a dificuldade de os trabalhadores alcançarem suas reivindicações de forma plena devese também à “força que tem o poder econômico concentrado na mão de poucos”. Grandes empresários e governos, explica Spezia, utilizam o poder econômico para reprimir as manifestações de trabalha-

dores através da força policial ou mesmo da Justiça, além de abusos nos próprios postos de trabalho, como assédio moral e perseguição. A exemplo disto, na greve dos Correios, iniciada no dia 16 de setembro, os trabalhadores reivindicavam reposição das perdas salariais acumuladas desde 1994, resultando em cerca de 41% de reajuste salarial e a incorporação de R$ 300 ao salário. Na contramão da reivindicação, a direção da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) ofereceu um reajuste salarial de 9% válidos por dois anos, assim sendo 2009 e 2010. Já o Tribunal Superior do Trabalho, em audiência de conciliação, ofereceu um reajuste de 4,5% para 2009 e a incorporação de R$ 100, mediante a não-concessão de aumento real no período de agosto de 2010 a julho de 2011. Outro problema apontado por Spezia é a tendência de se isolar os movimentos dos tra-

Falta unidade para os sindicatos Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Por divergência dos sindicatos, movimentos de greve racham e pauta de reivindicações não é alcançada

balhadores em pautas específicas, sem caráter de classe. “É necessário que haja uma unificação e que a luta seja de classe”, defende. Luta de classes

Nesse sentido, Magnus Farkatt acredita que, em resposta à crise, foi possível perceber essa unificação em torno dos direitos dos trabalhadores. “Nós tivemos várias manifestações de resistência às ofensivas contra os direitos dos trabalhadores”, relata o advogado trabalhista. Ele cita o exemplo do que aconteceu na Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), em que mais de 4 mil trabalhadores foram demitidos, fato que desencadeou manifestações das centrais sindicais e movimentos populares em torno da readmissão desses trabalhadores e da reestatização da empresa, com a criação, inclusive, de um Comitê Nacional pela Reestatização da Embraer.

Interferência da Justiça

No dia 1o de setembro, devido a uma ordem do desembargador e vice-presidente judicial do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), Nelson Nazar, os guardas civis metropolitanos de São Paulo tiveram que suspender a greve que realizavam desde o dia 26 de agosto. Caso fosse descumprida a ordem judicial, seria imputada uma multa diária de R$ 100 mil para o sindicato. Além disso, durante a uma semana que estiveram mobilizados, os guardas civis receberam ameaça de punição pelo prefeito da cidade de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM). O caso dos guardas civis metropolitanos de São Paulo não é isolado. Geraldo Rodrigues, da Conlutas, conta que a interferência da Justiça tem sido uma tendência nos últimos anos. “Isso é uma ofensiva que vem acontecendo no governo Lula, para tentar intimidar os trabalhadores”, protesta. Para ele, “ninguém gosta de fa-

Greve dos funcionários dos Correios não atingiu seus objetivos

ca que essa divisão impossibilitou a continuidade da greve e o fechamento de um acordo com a empresa. Ele conta que, para que haja a efetivação do acordo, segundo o estatuto da Federação, é necessário que 18 sindicatos assinem a proposta. Dessa forma, será necessária a retomada das negociações, que já vinham desde agosto. O mesmo aconteceu com a greve dos petroleiros realizada em março. Após cinco dias de paralisação, a Federação Única dos Petroleiros (FUP), que representa 11 sindicatos, aceitou a proposta da Petrobras e indicou o fim da greve para as

assembleias. Já a Frente Nacional dos Petroleiros (FNP), que representa seis sindicatos, rejeitou a proposta da empresa, mas teve de encerrar a greve um dia depois, por entender que não conseguiria sustentar o movimento sozinha. Para Leandro Spezia, essa divisão acontece porque as centrais “não dão ouvidos às suas bases”. Ele explica que as bases vivem de forma mais clara as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores e podem dar “respaldo aos sindicatos” nas negociações. “Se as centrais escutarem as suas bases, vão conseguir bons resultados”, aponta. (MA)

Além da determinação de multas, os tribunais podem exigir cotas mínimas de trabalhadores nos postos de serviço durante as mobilizações. Magnus Farkatt lembra que as cotas podem ser determinadas quando se diz respeito a serviços essenciais. No entanto, segundo ele, a Justiça tem concedido liminares que obrigam um contingente muito expressivo de trabalhadores para ocupar os postos durante a greve. O advogado trabalhista cita o exemplo do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região, de São Paulo, que ao longo dos últimos cinco anos tem mantido uma tradição de conceder liminares determinando que 90% dos funcionários trabalhem em horário de pico e 60% trabalhem em horários normais, sob pena de pagamento de uma multa diária de R$ 200 mil por descumprimento dessa ordem judicial. “É evidente que uma liminar como essa dificulta muito a mobilização dos trabalhadores”, relativiza. Leandro Spezia lembra que o direito de greve é assegurado pela Constituição, e que os sindicatos têm cumprido a lei no que diz respeito à organização das mobilizações, com a aprovação das greves em assembleias e a publicação de editais com antecedência à paralisação. Mesmo assim, os patrões “têm conseguido esses mecanismos jurídicos que interferem na luta dos trabalhadores”. Spezia considera que a tentativa de barrar na Justiça do Trabalho o direito de greve “é um método atrasado e nocivo à classe trabalhadora”. “É evidente que existe um certo cerceamento, uma certa restrição ao exercício de greve que dificulta objetivamente a mobilização dos trabalhadores”, completa Farkatt.

Grandes greves de 2009 Bancários Greve começou no dia 24 de setembro. Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (CONtraf-CUT), até o dia 29, cerca de 5.786 agências foram fechadas em todo o país. Estava prevista negociação com a patronal para o dia 1º de outubro.

Funcionários dos Correios

da Redação Iniciada no dia 16 de setembro em todo o país, a greve dos funcionários dos Correios terminou dividida e sem um acordo que contemplasse as reivindicações dos trabalhadores. Os membros da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios, Telégrafos e Similares (Fentect) não chegaram a um consenso sobre o rumo da mobilização e se aceitariam ou não a proposta da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) para o fim da greve. Dos 35 sindicatos que formam a Federação, somente 16 aceitaram a proposta da ECT. Geraldo Rodrigues, diretor de política sindical da Fentect e membro da executiva da Conlutas de São Paulo, expli-

zer greve, faz a greve porque chega ao extremo e os patrões endurecem muito na mesa de negociações”, por isso chegase ao ponto de se precisar resolver na Justiça. Para Artur Henrique, “as reivindicações dos trabalhadores não devem ser julgadas pela Justiça”. O presidente da CUT explica que em muitos países a Justiça não interfere em greves e deveria ser assim no Brasil. “Mobilização se resolve em mesa de negociação, e não na Justiça”, completa.

Greve foi deflagrada no dia 16 de setembro em todo o país. Nove dias depois, 16 dos 35 sindicatos que formam a federação nacional da categoria aceitaram proposta da empresa. O restante não aceitou, mas a greve foi encerrada em quase todo o país. No dia 29, somente funcionários de Belo Horizonte (MG) e do Rio Grande do Sul permaneciam parados.

Metalúrgicos Trabalhadores fizeram mobilizações durante o ano em todo o país. Em Taubaté (SP) conquistaram aumento real. Outras bases paulistas encontramse mobilizadas, como no ABC e em São José dos Campos. Em alguns outros estados, os trabalhadores fizeram paralisações de 24 horas e poderão retomar as mobilizações.

Guardas Civis de São Paulo Greve durou cinco dias, no final de agosto, e terminou após ordem judicial, sob pena de pagamento de multa.

Petroleiros Após racha entre as Federações que representam a categoria, a greve de cinco dias foi encerrada com a aceitação da proposta da Petrobras por 11 sindicatos e a rejeição por seis sindicatos.

Embrapa Greve dos funcionários da Embrapa durou 10 dias, em junho, e terminou sem acordo.

Rodoviários do Rio de Janeiro Greve de um dia foi encerrada com reajuste salarial de 7%. Trabalhadores reivindicavam 10%.

Professores de escolas públicas do ensino básico Paralisação de um dia, em 24 de abril, em 23 estados e no Distrito Federal. Categoria continua em campanha salarial.

Vigilantes do Distrito Federal Iniciada em 24 de maio, greve foi encerrada cinco dias após audiência de conciliação na Justiça do Trabalho e fechamento de um acordo por unanimidade dos trabalhadores.

Funcionários da Construção Civil das Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira De 23 a 25 de setembro, terminando após acordo de reajuste salarial inferior ao reivindicado pelos trabalhadores.


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Outro mundo, só com uma outra mídia COMUNICAÇÃO Promovida pelo Ministério da Cultura, conferência reúne 250 iniciativas de mídia alternativa em Pernambuco Leandro Uchoas

Leandro Uchoas enviado a Chã Grande (PE) AINDA É INCOMUM. Não é todo dia que o Estado brasileiro organiza um evento no qual se elaborem estratégias que, a rigor, representam um enfrentamento claro aos latifúndios midiáticos do país. Realizada em Chã Grande (PE), de 24 a 27 de setembro, a 1ª Conferência Livre de Comunicação para a Cultura foi promovida pelo Ministério da Cultura (MinC) e teve a participação de 250 das mais alternativas e criativas iniciativas de mídia livre, além de pontos de cultura das áreas de Comunicação, Cultura Digital e Audiovisual. Com ênfase na democratização dos meios de comunicação, gerou 30 propostas a serem levadas à 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), em dezembro. Os sete pontos principais serão enviados à 2ª Conferência Nacional de Cultura (2ª CNC), em março de 2010.

A dois meses da 1ª Confecom, os discursos seguiram a tendência de baixa expectativa em relação ao avanço dos setores democráticos de mídia Durante o evento, foram entregues a 82 iniciativas de mídia alternativa o prêmio Pontos de Mídia Livre. Lançado em janeiro no Fórum Social Mundial (FSM), o edital pretende formar uma rede de produção midiática de viés não-comercial. Foram contemplados desde a TV Ovo – que exige programas alternativos nos ônibus de Santa Maria (RS) – ao Descentro – coletivo nacional e não-hierarquizado de pesquisa e elaboração de estratégias de modificação dos meios. “A maior vitória foi a não-premiação da Globo”, disse José Guilherme Castro, da famosa Rádio Favela, de Belo Horizonte, em referência à surpreendente tentativa da emissora carioca de ser contemplada. O prêmio toma como modelo a política de Pontos de Cultura (PCs), implementada pelo MinC na gestão do ex-ministro Gilberto Gil (PV). Re-

Encontro discutiu estratégias de enfrentamento para conquistar a democratização dos meios de comunicação

volucionário para alguns, incompleto para outros, o projeto dos PCs toma por base a ideia de que, estimulando-se a produção cultural escondida nos grotões do país, promovese seu redescobrimento e uma natural proteção contra a colonização cultural. Ao destinar R$ 4,7 milhões aos Pontos de Mídia Livre – proposta oriunda do 1º Fórum de Mídia Livre (FML), em 2008 –, o MinC toma o mesmo raciocínio como norte. Em novembro, os pontos voltarão a debater suas demandas no 2º FML, em Vitória (ES). O discurso era uníssono. O enfrentamento da mídia hegemônica deve tomar por base iniciativas midiáticas que não encarem a informação como produto. “Não podemos chamar a mídia-mercadoria de grande mídia. Nós temos que ser os grandes”, reforçou Célio Turino, titular da Secretaria de Cidadania Cultural (SCC) do MinC. Embora se tenham tirado propostas para as duas conferências nacionais, o MinC deu ênfase à 2ª CNC. Além de ser a especificidade do Ministério, o encontro é considerado um espaço de menor disputa política do que a 1ª Confecom. Internet A internet seria o campo em que os setores progressistas teriam força mais ampla. “É

evidente que a internet restabelece a correlação de forças. Mas as grandes empresas ainda predominam”, interpreta João Brant, do Coletivo Intervozes, na mesa de discussão sobre a “comunicação hoje”. A demanda pela urgente universalização do acesso à banda larga, pública e gratuita, surgiu em vários focos de discussão (GTs). A ideia é a de que o Estado teria que assumir a tarefa, e não repassá-la à iniciativa privada. Na tentativa de contribuir para o embate na rede, o MinC criou a plataforma Cultura Digital. A proposta é que pontos de cultura e de mídia livre utilizem o espaço virtual como centralizador da produção de informação não homogeneizada. O potencial de enfrentamento da internet foi lembrado repetidas vezes no encontro. Como exemplos recentes, a resistência em Honduras e a eleição de Barack Obama nos Estados Unidos (cujo elaborador foi recentemente contratado pelo PT para a disputa eleitoral de 2010). Antonio Martins, coordenador da rede Pontos.br, lembrou ainda da reposição de Hugo Chávez ao poder no golpe midiático-militar de 2002, da derrota de José María Aznar nas eleições espanholas e da revelação dos atentados israelenses no Líbano. A diretora da Escola de Co-

municação da UFRJ (Eco/ UFRJ) Ivana Bentes considera que um dos eixos mais importantes é a formação para a mídia livre e de “midialivristas”. A ideia de formação tem duas frentes; não somente formar comunicadores para construir uma outra mídia, mas também induzir o cidadão comum a uma outra relação com a informação. “Quero ver aulas de software livre na escola básica”, repetia Ivana, que compõe o Grupo de Trabalho Executivo do Fórum de Mídia Livre (GTE-FML). O projeto, estruturado no GT de sistematização a partir de propostas relativas à formação, é criar Escolas Livres de formação para a mídia. Em grande maioria formada por militantes da Comunicação, os participantes vivem em seus estados a expectativa das conferências municipal, estadual e federal de comunicação. A dois meses da 1ª Confecom – de metodologia muito submetida à possibilidade de controle dos interesses empresariais –, os discursos seguiram a tendência de baixa expectativa em relação ao avanço dos setores democráticos de mídia. Entretanto, é grande a esperança de que o espaço criado revigore e organize o movimento de comunicação. “O Ministério da Cultura tem dado sua contribuição”, disse Célio Turino.

Principais propostas da Conferência Banda Larga – Utilização do Fundo de Universalização das Telecomunicações (Fust) e outros fundos na aplicação da ampliação da RNP e outras redes públicas e gratuitas de pesquisa e implantação da internet. Criação de uma rede de infraestrutura de suporte técnico para a universalização, com qualidade, do acesso à banda larga. Plataformas – Fomento a políticas públicas para o desenvolvimento de plataformas em software livre para a produção e difusão de conteúdos colaborativos. Distribuição – Criação de um sistema público de distribuição física de conteúdos produzidos pelas redes de comunicação e cultura, para garantir que a produção cultural financiada com dinheiro público seja exibida e distribuída de forma livre e licenciada através de licenças flexíveis. Formação – Criação e manutenção de escolas livres de formação multimidiática com núcleos regionais e/ou estaduais, reunindo as experiências metodológicas já desenvolvidas por instituições de reconhecimento público. Direito Autoral – Alteração da legislação de Direito Autoral para garantir a ampliação das possibilidades de uso das obras protegidas e para fins de educação, pesquisa, difusão cultural, preservação, interoperabilidade e portabilidade. Conteúdo regional independente – Regulamentação do artigo 221 da Constituição Federal com a aprovação de leis que garantam percentual de conteúdo regional e independente, observando a diversidade étnica, de gênero e religiosa. Fomento – Incentivo ao desenvolvimento de tecnologias para mídias livres. Pulverização do recurso público gasto com publicidade para fomentar produções impressas independentes e desoneração da cadeia produtiva do audiovisual.

Imprensa democrática: ainda não é desta vez Governo federal é incapaz de promover avanços significativos na democratização da comunicação, mesmo sofrendo na pele seus desmandos enviado a Chã Grande (PE) “Uma democracia pressupõe liberdade de expressão. E não haverá liberdade de expressão se os meios de comunicação não forem democratizados”, disse, em 1989, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidato à Presidência da República. Ele seria eleito em 2002, suscitando no movimento de comunicação enor-

me esperança de reversão no quadro grave de concentração dos veículos nas mãos de 13 famílias. Um ano depois, apenas para citar dois dados, Lula havia fechado 17% mais rádios comunitárias que seu antecessor, e seu governo era louvado pela revista Veja como “muito bom”. Não seria sempre assim. Na comunicação, o governo Lula apresenta basicamente as mesmas contradições que nas outras áreas. O próprio evento promovido pelo Ministério da Cultura confirma que há setores no governo comprometidos com a construção de uma mídia democrática. Mas, em linhas gerais, Lula deixou muito a desejar. O ápice da omissão talvez tenha sido a escolha de um novo modelo de TV Digital. Era a tecnologia possibilitando ao país avançar na promoção de democracia midiática. Diversos profissionais foram mobilizados para desenvolver um modelo brasileiro de TV Digital, melhor que todos os outros. No momento da decisão, por pres-

Davy Alexandrisky

Célio Turino, da Secretaria de Cidadania Cultural do MinC

Mas, ao mesmo tempo, a mídia comercial brasileira não tem sido nada amigável com o governo Lula são da Rede Globo, o governo jogou o projeto revolucionário no lixo e optou pelo modelo japonês, que, em troca de

uma suposta qualidade, inviabilizava a existência de novos canais. A propriedade cruzada dos meios de comunicação,

estimulada nos anos de 1980 pelo governo Sarney, continua sendo regra. Políticos e empresários controlam regiões imensas com seus veículos. Mas, ao mesmo tempo, a mídia comercial brasileira não tem sido nada amigável com o governo Lula. Elogia apenas sua política econômica (a mesma que transfere centenas de bilhões de reais do setor público para o privado). Mas, de forma sutil, persegue Lula. Em 2005, durante a crise do mensalão, Veja chegou a publicar 16 capas seguidas contra o governo. Em 2006, as organizações Globo manipularam exaustivamente a informação para que Lula não se reelegesse. Indignado, o jornalista Rodrigo Viana saiu da emissora e enviou uma carta minuciosa explicitando seus desmandos. Saudosos dos tempos ainda mais gordos do tucanato, e envolvidos com a direita por teias de relações complexas, os latifundiários da mídia trabalham pelo retorno ao poder de seus pares.

O que faz Lula frente a esse cenário? Muito pouco, como admitem até os maiores entusiastas de seu governo. Há de se citar, porém, três iniciativas que se destacam, mesmo sendo problemáticas. Primeiramente, a criação de uma TV Pública, atacada até hoje pelos setores mais conservadores. Embora represente um grande avanço, a TV Brasil sofre com uma administração pouco eficiente e autoritária e recentemente tem promovido um covarde reajuste de grade a partir de cobranças de audiência, provavelmente originárias de Brasília. Outro avanço relativo é a democratização das verbas de publicidade oriundas de estatais – são menos concentradas que anteriormente, porém carecem de avanço maior. E um terceiro fator seria a atuação do Ministério da Cultura, que toma algumas medidas de democratização dos meios – claramente tentando compensar a deficiente atuação do Ministério das Comunicações. (LU)


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américa latina

MAS vai para as eleições de dezembro com um programa desenvolvimentista BOLÍVIA Plano de governo apresentado pelo partido do presidente Evo Morales aponta para a industrialização do país Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) AS ORGANIZAÇÕES políticas e agrupações cidadãs da Bolívia inscreveram na Corte Nacional Eleitoral os seus programas de governo para a gestão 2010-2015. O programa do Movimento ao Socialismo – Instrumento para a Soberania dos Povos (MAS-IPSP), partido do presidente Evo Morales, é o mais completo e detalhado de todos e vem carregado de desenvolvimentismo. “Não existe desenvolvimento sem acumulação e avanço técnico. Seu impulso dinâmico vem da harmonia interna do sistema produtivo em seu conjunto, o que só se torna possível com a industrialização. O problema crucial é definir o tipo de industrialização capaz de gerar o verdadeiro desenvolvimento”. As palavras, do economista brasileiro Celso Furtado, parecem ter inspirado os formuladores do programa de governo do MAS-IPSP apresentado para as próximas eleições, que ocorrerão no dia 6 de dezembro. Logo na capa do documento, as primeiras propostas apresentadas são: grande salto industrial, satélite de telecomunicações, rodovias, hidrovias, trens, aeroportos e hidrelétricas. Intitulado “Bolívia, país líder”, o programa ressalta que a política de desmontagem do Estado neoliberal – ou de remontagem do Estado –, cujo eixo foi a nacionalização dos hidrocarbonetos, colocou o país em outro patamar econômico. Entre os avanços desses pouco mais de três anos e meio de governo Evo Morales estão a elevação do salário básico em 32%, o controle da inflação e o aumento das reservas internacionais do país de 1,7 bilhão de dólares para mais de 8 bilhões de dólares. Em comparação a 2005, o investimento público praticamente triplicou, chegando a 1,85 bilhão de dólares neste ano; a dívida externa diminuiu de 4,4 bilhões de dólares para 2,4 bilhões de dóla-

ABI

res; e, pela primeira vez em décadas, o Estado teve superavit fiscal, registrado nos três anos já concluídos de governo Morales. Com o Estado recuperado, o programa do MAS-IPSP aponta que agora é hora de aprofundar uma iniciativa arrastada durante décadas: romper o padrão primário-exportador e transformar a matriz produtiva do país, empreendendo “um grande plano industrializador nas áreas de hidrocarbonetos, minerais, alimentos, produção de medicamentos, têxteis e, em geral, toda atividade que produza valor agregado”.

“O que estamos vendo é um Estado com rosto humano e que potencializa a economia por meio da intervenção em setores estratégicos”, analisa Marin Qual mudança? O tom mais desenvolvimentista e menos confrontador do MAS-IPSP nessas eleições pode ter várias explicações políticas. Dentre elas, estão a vontade do governo em diminuir os desgastes com enfrentamentos e ganhar mais estabilidade; a necessidade de ser mais propositivo e menos reinvindicativo após quatros anos de gestão; e o desejo de conquistar a classe média e, assim, obter uma folgada maioria no Congresso, durante uma legislatura que será responsável por implementar a nova Constituição, aprovada em janeiro. Porém, para o professor da disciplina de Desenvolvimento do Capitalismo, do curso de Sociologia da Universidade Mayor de San Andrés (UMSA), Rolando Marin, a po-

O presidente boliviano Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS)

lítica de desenvolvimento industrial e infraestrutural proposta pelo MAS-IPSP tem relevância econômica. Para o sociólogo, ela é de suma importância para um país com baixíssimo grau de industrialização diminuir a sua submissão e dependência externa. Antes

de tentar esquematizar o modelo econômico que o processo de transformações proposto pelo MAS-IPSP (conhecido como proceso de cambio) irá forjar, o professor prefere destacar qual modelo teve que ser superado: “O FMI tinha um departamento insta-

Analistas questionam coexistência de modelos ABI

Hugo Moldiz e Omar Gusman temem que economia comunitária seja engolida pelo capitalismo

Partido propõe refundação da Justiça Projeto estabelece eleição direta, por voto universal, dos magistrados tanto da Corte Suprema como do Tribunal Constitucional de La Paz (Bolívia)

de La Paz (Bolívia) Para o analista político Hugo Moldiz, a ênfase dada agora pelo governo ao discurso da alta industrialização frustra as expectativas criadas anteriormente pelo discurso do “vivir bien” – uma leitura da tradição indígena que, segundo Moldiz, despontava como resposta alternativa ao desenvolvimento do capitalismo. “Aí estava uma convocatória a viver diferente, a pensar diferente, a nos reproduzirmos de maneira diferente, a repensar a convivência com a natureza, por exemplo, diminuindo o papel da indústria extrativa na conformação do PIB. Talvez estejamos subaproveitando essa grande memória histórica comunitária que temos para criarmos outra sociedade, sem passar pelo parto doloroso do capitalismo”, alerta. Para Moldiz, o projeto do MAS-IPSP não coloca em dúvida o compromisso transformador de Evo Morales e do

lado no 15º andar do edifício do Banco Central boliviano, e, até 2005, a política econômica era consensuada com eles. Agora eles não estão mais lá dentro, e a palavra-chave é repotencializar a atividade estatal, como foram as nacionalizações, para robustecer a ar-

Cultura indígena perdeu espaço no projeto econômico boliviano

vice-presidente Álvaro Garcia, porém, o seu temor é que as intenções de formar uma economia plural terminem engolidas pela lógica implacável de produção e reprodução do capital. Recuo O professor de Sociologia da UMSA e ex-assessor da Conamaq (entidade que representa os indígenas do ocidente boliviano) durante a Assembleia Constituinte, Omar Gusman, também lamenta que a cultura indígena tenha perdido espaço na for-

mulação do projeto econômico do país. Ele relata que, na época da Constituinte, as organizações indígenas tinham uma proposta de organizar o país com base em três regiões econômicas. “Cada região teria três departamentos, sendo necessariamente um da região amazônica, um da região do Vale e um da região do altiplano. Isso permitiria a organização completa da agricultura em todas as regiões. Faríamos o intercâmbio agrícola com base no trueque – o sistema de trocas que não en-

volve dinheiro. A ideia era fazer a monetarização apenas no comércio com o exterior. Mas essa proposta foi abandonada”, lamenta. Gusman afirma temer pelos rumos do proceso de cambio porque vê um afastamento paulatino da pauta indígena. “A dissociação do programa também está ligada a dissociação das pessoas. Vendo a lista de candidatos do MAS para essas eleições, vamos ver que muitos são convidados, não são orgânicos, ou seja, não há a possibilidade de controlá-los”, concluiu. (VM)

recadação e traduzir isso em reservas internacionais, em capacidade de fazer política social, em soberania. Nesse sentido, não há uma ruptura, o que estamos vendo é um Estado com rosto humano e que potencializa a economia por meio da intervenção em setores estratégicos.” Segundo o porta-voz de campanha do MAS-IPSP, o deputado Jorge Silva, o atual governo é regido pelos princípios do marxismo. Ele, porém, questiona as receitas dos séculos 19 e 20. “O que nós estamos construindo é um modelo nacional produtivo. Portanto, garantimos a propriedade e os investimentos privados, os investimentos estrangeiros, mas damos prioridade ao incentivo de nossa produção nacional, através de associação de produtores, dos artesãos, microempresários ou a criação de empresas estatais”, destaca. Contudo, o gerente-geral do Banco Central da Bolívia, Eduardo Pardo, salienta que a forte participação estatal gestada no país é diferente do estatismo conhecido em outras experiências socialistas. E a principal marca dessa diferença é a participação e o controle social no planejamento, na implementação de projetos e na prestação de contas do Banco Central, conforme determina a nova Constituição. Segundo Pardo, a nova carta magna também impede que os caminhos trilhados pela Bolívia sejam caracterizados simplesmente como desenvolvimentistas. “Pela primeira vez na Constituição está reconhecido que a Bolívia tem uma economia plural, não somos um país plenamente capitalista. Estimamos que menos de um terço do país é parte de uma economia capitalista, grande parte é não-capitalista ou está na fase de desenvolvimento mercantil simples. Então, o Estado respeita a empresa capitalista privada, entretanto, apoiará a economia comunitária, a micro e pequena empresa e formas de associações cooperativas”, garante.

Para dar cabo da implementação da nova Constituição Política de Estado, o programa do MAS-IPSP para a gestão 20102015 apresenta mais de 130 leis para serem apreciadas pelo novo Congresso, que a partir da nova legislatura se chamará Assembleia Plurinacional. Entre essas leis, o porta-voz oficial da campanha masista, Jorge Silva, destaca o projeto que “refundará a Justiça”, estabelecendo a eleição direta, por voto universal, dos magistrados tanto da Corte Suprema como do Tribunal Constitucional, em sistema semelhante ao aplicado na Espanha. De acordo com a proposta, os cargos mais baixos na hierarquia do Judiciário serão preenchidos através de sistema de eleição interno e de seleção por meritocracia. “Ou seja, é uma reconstrução estrutural dessa instituição que cai por seu próprio peso, pela corrupção que envolve desde a polícia, passando por procuradores, juízes, magistrados e advogados que fazem com que a

Justiça seja só para quem tem dinheiro. Um Tribunal viciado, cujos cargos devem aos políticos, uma Corte Suprema servil que recebe instruções dos políticos que a colocaram lá. Derrubaremos essa estrutura para construir uma Justiça eleita pelo povo”, afirma. Porém, a Constituição prevê que os candidatos, antes de concorrer às eleições, deverão ser referendados por dois terços da Assembleia Plurinacional. Os aspirantes não poderão fazer campanha, sendo a Corte Nacional Eleitoral a única responsável pela difusão das informações dos candidatos. Os próximos magistrados permanecerão em seus cargos por seis anos, sem possibilidade de reeleição. Além da reestruturação do Judiciário, Silva também chamou a atenção para as leis que tratarão do Marco de Autonomias e Descentralização. Segundo o deputado, os cidadãos participarão diretamente na definição de que tipo de autonomia terão seus departamentos, regiões, municípios e territórios indígenas originários. “Isto implicará na descentralização do poder local, com a eleição direta de suas autoridades e com a participação popular no desenho das políticas de desenvolvimento de sua região, garantindo o interesse nacional sobre os recursos e setores estratégicos, além de consolidar uma redistribuição equitativa da terra e seu aproveitamento sustentável”, diz. (VM)


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américa latina

Mobilização popular pode tirar Honduras do impasse Joel Silva/Folha Imagem

HONDURAS Diante da presença de Zelaya no país, golpistas aumentam repressão; atitude do governo brasileiro foi acertada, dizem especialistas

rou à imprensa para, em seguida, criticar as Nações Unidas: “talvez um envolvimento maior da ONU teria um efeito positivo”. Solução

Dafne Melo da Redação O GOLPE DE Honduras estava prestes a sair dos noticiários, quando uma nova cartada do presidente deposto, Manuel Zelaya, trouxe o assunto à tona novamente. Dessa vez, com participação direta do governo brasileiro. Após quase três meses fora de seu país, Zelaya conseguiu voltar a Honduras e pediu refúgio na embaixada do Brasil. O Itamaraty, por meio de declarações do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, afirma que a ida de Zelaya à embaixada não foi premeditada. O mandatário ligou para o governo brasileiro, no dia 21 de setembro, pedindo abrigo na representação cerca de uma hora antes de chegar em Tegucigalpa. O pedido foi aceito, uma vez que o Brasil não reconhece o governo golpista. “O Brasil está em uma situação que não criou”, apontou Amorim em coletiva de imprensa. A oposição à direita do governo, bem como os meios de comunicação, tem acusado a diplomacia brasileira de ter se envolvido de forma irresponsável no conflito, colocando o país num impasse.

Vigiados pela Polícia Nacional, hondurenhos protestam contra suspensão das garantias constitucionais

“É melhor insistir no isolamento dos golpistas, no apoio ao presidente Zelaya e na mobilização popular”, aponta Valter Pomar, secretário de Relações Internacionais do PT Porém, o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), que compõe uma comitiva que irá a Honduras, acredita que a decisão do Itamaraty foi acertada. “Se o presidente constitucionalmente eleito bate às portas de nossa embaixada, nossa obrigação é abri-las. O governo está certo em não reconhecer os golpistas”. André Martin, geógrafo da Universidade de São

Paulo (USP), também aprova a atitude do governo brasileiro. “Acho engraçado quem reclama de termos recebido Zelaya. Se não tivesse feito, iam responsabilizar o Itamaraty pela prisão do Zelaya”. Manifestações

Logo após sua chegada, manifestantes apoiadores de Zelaya foram para a frente da embaixada, bem como as for-

ças repressoras. Mabel Marquez, do setor de comunicação da Via Campesina em Honduras, afirma que, além de dois mortos, há centenas de feridos e detidos. Um dia após a chegada do presidente, foram cortados a energia e o abastecimento de água da embaixada brasileira. Funcionários também relatam o uso de gases tóxicos por parte das forças armadas, que causam tonturas, vômito, dores de cabeça e musculares, sangramentos no nariz e ardência nas mucosas. “A maioria das pessoas que se encontra na embaixada do Brasil apresenta esses sintomas”, conta Mabel. Além disso, o governo golpista decretou estado de sítio e suspendeu diversos direitos constitucionais (ver ma-

téria abaixo). O ditador Roberto Micheletti tem dado outras mostras de autoritarismo, recusando-se a receber a missão de negociação da Organização de Estados Americanos (OEA) e ignorando os pedidos das Nações Unidas. André Martin acredita, entretanto, que não há vontade política de fato da ONU em resolver a questão, o que só ocorreria após um posicionamento mais enérgico por parte dos Estados Unidos, que, ao se omitir, legitima a ditadura hoje existente em Honduras. Celso Amorim denunciou a incapacidade de diálogo de Micheletti. “Não receber a comissão da OEA foi uma bofetada na cara da comunidade internacional”, decla-

O governo brasileiro rechaçou o ultimato dado por Micheletti – ou considera Zelaya exilado político ou o entrega às autoridades golpistas – e segue na tentativa de uma saída diplomática. Outra preocupação do governo brasileiro é uma invasão à embaixada. Micheletti diz não considerar essa hipótese. Valter Pomar, secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores (PT), aposta em uma saída pacífica, sem a necessidade do envio de uma força de paz internacional. “Eu prefiro não pensar nessa hipótese. É melhor insistir no isolamento dos golpistas, no apoio ao presidente Zelaya e na mobilização popular”. Ivan Valente também acredita no isolamento do governo golpista e que Zelaya deverá voltar à presidência da República a tempo de conduzir eleições presidenciais, em novembro. Para o jornalista uruguaio Raúl Zibechi, editor do semanário Brecha, as mobilizações populares e o acirramento dos antagonismos certamente são o ponto de maior peso. “Se, como disse Fidel Castro, está se incubando uma revolução em Honduras porque os mais pobres estão assumindo consciência e protagonismo novos, então vai haver repressão muito forte, pois os de cima chegaram longe e não vão permitir que seus benefícios sejam retirados pelos de baixo. O problema é o mesmo de todo o continente: só se sai do neoliberalismo com crise social e política”. (Colaborou Eduardo Sales de Lima, da Redação)

Reprodução

Uma ditadura “de facto” Para especialistas, escalada de atos que retiram liberdades apenas reforça o que, desde o começo, é uma ditadura, e não um governo interino ou de fato Eduardo Sales de Lima da Redação Manuel Zelaya foi sequestrado e deportado no dia 28 de junho. Era o golpe. O grupo comandado por Roberto Micheletti assumiu o poder. Em seguida, mídia e setores da direita, em diversos países, afirmaram que foi instaurado um “governo de fato”. Porém, para os especialistas em relações internacionais ouvidos pela reportagem, chamar o governo Micheletti de interino, ou “de facto”, é um erro. Isso porque desde a realização do golpe saltam aos olhos os traços autoritários da direita hondurenha, agora, com suspensão de direitos constitucionais e censura à imprensa. Com decreto datado do dia 26 de setembro, o regime suspendeu por 45 dias as garantias constitucionais. Foram proibidas reuniões e manifestações não autorizadas pela polícia; os meios de comunicação e informação sobre as ações de resistência contra o golpe ou foram fechados ou tiveram parte de sua programação censurada. A rádio Globo, que se manifestava favoravelmente ao presidente deposto, foi fechada. Policiais também realizaram uma intervenção no Canal 36, retirando suas antenas. Diante da pressão internacional, o governo golpista

indicou que poderia revogar o decreto entre o fim de setembro e o início de outubro. Fato é que o “AI-5” hondurenho entra em vigor justamente uma semana depois de Zelaya retornar a Honduras e estabelecer-se na embaixada brasileira. De acordo com a imprensa do país, a medida havia sido aprovada na terçafeira (22 de setembro), um dia depois do retorno do presidente. Após ter conhecimento da atitude dos golpistas, Zelaya afirmou, de dentro da embaixada brasileira, que, em seu país, “além de um golpe de Estado”, está sendo instalada “uma ditadura fascista”. Para ele, as novas medidas adotadas por Micheletti demonstram que os golpistas “nunca pretenderam realizar as eleições”. Medo do povo

Os últimos acontecimentos somente desvelam o caráter ditatorial do governo de fato. “Honduras vive uma ditadura de fato desde que Zelaya foi deposto. Esse ‘fato’ quebrou a continuidade do tão falado ‘Estado de Direito’”, explica o secretário de relações internacionais do PT, Valter Pomar. Ele lembra que, a partir de então, “existe um governo que se ampara na força”. A novidade dos últimos dias, para Pomar, é que a ditadura acentuou a repressão, como reação à maior mobili-

zação popular. “É uma ditadura que limita ou anula a liberdade de expressão para impor uma política antipopular, assentada no poder de um pequeno grupo de famílias ricas e latifundiárias vinculadas aos negócios multinacionais e de exportação”, reforça o jornalista uruguaio Raul Zibechi, editor do semanário Brecha. Ele acrescenta ainda que o bloqueio político-social conservador, formado pelas cúpulas militares e empresários que miram o mercado externo, se alinha com os setores mais conservadores do Partido Republicano dos Estados Unidos e com as grandes empresas mineradoras. Por isso, na atual conjuntura, o temor dos golpistas, “mais que contra Zelaya, está dirigido ao ativismo dos setores populares”. José Reinaldo Carvalho, secretário de relações internacionais do PCdoB, emenda que, além de setores da direita estadunidense estarem ligados ao golpe, “há outros setores do imperialismo e das classes dominantes em diversos países da América Latina que se sentem incomodados com a ilegitimidade e amedrontados com o espectro do avanço da luta popular”. Contramão

Valter Pomar acredita que o elemento inédito diante da atual ditadura hondurenha é a “amplitude do repú-

Roberto Micheletti, líder do golpe em Honduras: ditadura de fato

dio” contra ela. Já para Zibechi, são dois os “elementos atípicos” que se sobressaem em três meses de ditadura em Honduras dentro da recente história latino-americana. “Um é que o golpe é também contra a política de abertura de Obama em direção à América Latina”, elucida. De acordo com o jornalista uruguaio, justamente no momento em que a Casa Branca intenta melhorar sua imagem na região, aparece um regime que beneficia os interesses imperialistas, mas que a administração não pode apoiar. A segunda diferença em relação às ditaduras passadas dentro da região é que, como consequência do modelo neoliberal, há amplos setores sociais que se manifestam a fa-

vor do regime ditatorial. “O modelo do Consenso de Washington criou algumas classes médias enriquecidas que têm consciência de seu papel histórico como base social do autoritarismo”, explica Zibechi. De acordo com ele, estes são os mesmos setores que “aplaudem a militarização das favelas e dos territórios periféricos com a desculpa do narcotráfico”. Por aqui

Até o momento, nenhum governo do mundo reconheceu o regime estabelecido em Tegucigalpa após a deposição de Zelaya. O Brasil, por ter assumido um papel importante na crise em Honduras, tem sido alvo de diversas críticas por parte de setores direitistas. O governador de

São Paulo, José Serra (PSDB), por exemplo, defendeu que a diplomacia brasileira se meteu em “trapalhada”. Outro caso de crítica da elite é a capa da última edição da revista Veja, com o título “Imperialimo Megalonanico”. “A direita brasileira nunca foi democrática e sempre foi americanófila. Daí o ódio que eles têm contra a política externa brasileira. Quanto à Veja, trata-se de uma revista com complexo de inferioridade”, analisa Pomar. Para ele, o fato de recorrentemente a “imprensa supostamente liberal” evitar chamar o governo de Micheletti de ditadura “mostra que os princípios ideológicos, teóricos e políticos da direita flutuam ao sabor dos seus interesses de classe”.


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“O povo hondurenho não está disposto a deixar-se vencer”, afirma Zelaya Fabiano Maisonave/Folha Imagem

ENTREVISTA Presidente hondurenho reafirma necessidade de luta, condena repressão e elogia postura do governo brasileiro Dafne Melo da Redação APÓS POUCO mais de uma semana na embaixada do Brasil, Manuel Zelaya ainda não viu as negociações com o governo golpista avançarem como gostaria. Para vencer a situação, afirma a necessidade de ter paciência e continuar as mobilizações por todo o país. Tossindo muito e com uma voz cansada, ele concedeu por telefone entrevista exclusiva ao Brasil de Fato da embaixada brasileira em Tegucigalpa. Brasil de Fato – Existem negociações com os golpistas? Manuel Zelaya – Há muitas aproximações, mas até o momento nenhuma deu fruto. Mas, sim, há negociações. Como estão as mobilizações no país? As mobilizações estão tendo bastante expressão, mas nossa comunicação está comprometida, nossos celulares foram cortados. Estamos resistindo com muito estoicismo, muita paciência, porque o bem supremo tem um custo, e esperamos conseguir restituir o sistema democrático. As mo-

processo dure o menor tempo possível, para devolver à América Latina a certeza de que não serão permitidos golpes de Estado no século 21. Quais são as alternativas, caso não se consiga uma saída diplomática? A alternativa que temos é manter a luta. O povo hondurenho não está disposto a deixar-se vencer e ajoelhar-se diante de uma ditadura militar. Então, por agora, mantemos as mobilizações e também contamos com o apoio da comunidade internacional.

bilizações continuam em todo o país, mas estão sendo muito reprimidas pelas forças armadas e pela polícia. Há um estado de ingovernabilidade que creio que deve ser solucionado nas próximas horas. Creio que um país não pode viver em convulsão, a não ser que queiramos viver como no Afeganistão. A América Latina não merece isto, o povo hondurenho não merece. Reverter o golpe de Estado em Honduras vai ser uma vacina contra os golpes de Estado em todos países da América, incluindo Brasil; reverter vai ser parte da história do Brasil e da América Latina, por sociedades mais democráticas que respeitem a soberania popular. Estamos escrevendo história junto com o Brasil. Como o senhor avalia a postura do governo brasileiro? O governo brasileiro e o presidente Lula têm demonstrado sua vocação democrática ao aceitar que seja feito um diálogo a partir da embaixada, e que quem deve fazer parte desse diálogo é o presidente que eles reconhecem, o governo eleito pelo povo. Isso fala muito da estatura moral e política continental que tem o presidente do Brasil. Nós queremos que esse

O presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, atende a imprensa na embaixada brasileira no país

No Brasil, existe uma especulação a respeito de uma possível participação de Lula em algum plano para sua volta. O governo nega e diz que foi avisado uma hora antes. O senhor confirma essa informação? Nem o presidente Lula, nem Marco Aurélio [Garcia, assessor da Presidência para assuntos internacionais], nem o chanceler [Celso] Amorim sabiam da minha chegada a Tegucigalpa com antecedência. Quando cheguei tinha várias opções. Mas escolhi o Brasil. Falei com o Amorim, expliquei que queria tentar algum diálogo a partir daqui, também por motivos de segurança, por temor a represálias ou de ser sacrificado pelo regime. E me disseram que podia ir. Mas só souberam nesse momento.

VENEZUELA

EQUADOR

Fortalecer a integração da América do Sul-África

Indígenas do Equador em defesa da água e da vida

INTEGRAÇÃO A crise financeira, energética e alimentar, a mudança climática, a pobreza e a fome foram alguns dos desafios identificados pelas 61 nações representadas na II Cúpula América do Sul-África

MOBILIZAÇÃO Organizados pela CONAIE, indígenas pressionam Rafael Correa por projeto que abre as portas à privatização da água, entre outros aspectos

de Caracas (Venezuela) A II Cúpula América do SulÁfrica (ASA) realizada entre os dias 26 e 27 de setembro, na Ilha Margarita, Venezuela, traçou o caminho da integração política, econômica e social para enfrentar os flagelos que açoitam ambas regiões. O foro, que teve a participação de servidores públicos, ministros, chanceleres e 27 chefes de Estado e governo (19 africanos e oito sul-americanos), gerou documentos e passos concretos para materializar alianças. A crise financeira, energética e alimentar, a mudança climática, a pobreza, a fome, as assimetrias pela desigual distribuição das riquezas e o hegemonismo de algumas potências foram identificados como os grandes desafios das 61 nações representadas no encontro. De acordo com o presidente venezuelano, Hugo Chávez, é urgente ações conjuntas para conseguir a médio prazo avanços no confronto de tais problemas. “Uma vez disse que andamos de cimeira em cúpula e os povos de abismo em abismo, mas agora queremos nos integrar, e é imprescindível para que nossos projetos tenham futuro”, advertiu Chávez ao recordar o pouco fruto apreciado desde a primeira reunião de ASA, na Nigéria, há três anos. Luiz Inácio Lula da Silva, em uma de suas intervenções, seguiu na mesma linha do presidente venezuelano: “Não há melhor resposta que a integração. Entre nós, descobriremos oportunidades

que não vimos durante séculos de nexos com o mundo rico”, apontou. Propostas A partir dessa vontade política, os debates permitiram estabelecer a Declaração de Margarita e um plano de ações para a aproximação birregional. Na agenda ficaram 14 áreas estratégicas encabeçadas pelo impulso ao multilateralismo nas relações internacionais, incluindo a reforma do Conselho de Segurança da ONU, a luta pela paz, a democracia, o respeito aos direitos humanos e a governabilidade. No que diz respeito ao social, africanos e sul-americanos coincidiram em travar cruzadas contra a fome e a pobreza, e a favor da educação, do desporto e da cultura. Para o mandatário sul-africano, Jacob Zuma, promovendo esses pontos se darão passos firmes na superação de penúrias de milhões de seres humanos. “Devemos criar capacidades e aumentar a cooperação em temas sociais”, assinalou. Economicamente, a reunião da ASA potenciou os setores energético e mineiro, aliança firmada que tem em conta as riquezas de ambas regiões (24% das reservas petrolíferas provadas) e a tradicional exploração destas por multinacionais. Também lembrou projeções para o desenvolvimento comercial, agrícola, hídrico, rural, turístico e do transporte. Particular importância foi dada pelas delegações participantes à destruição do meio ambiente. Nesse sentido acor-

daram levar posturas comuns à conferência sobre Mudança Climática prevista para Copenhague, na Dinamarca, no final do ano. Além disso, determinaram que vão exigir dos países industrializados compromissos concretos na redução das emissões de gases do efeito estufa, a partir de sua responsabilidade histórica pelo fenômeno. Outros pontos relevantes para os nexos entre sul-americanos e africanos foram traçar as pautas do intercâmbio em ciência, tecnologia e o combate ao narcotráfico e delitos conexos. O encontro de Margarita deixou convênios que sugerem a aplicação prática da vontade de aproximação expressa pelos mandatários. Na questão energética, a Venezuela assinou acordos com África do Sul, Mauritânia, Cabo Verde, Nigéria e Sudão. A II Cúpula resultou também no espaço para fazer a efetiva constituição do Banco do Sul, iniciativa dirigida para financiar projetos socioeconômicos de seus membros, Argentina, Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela. Segundo a Declaração respaldada pelas 61 delegações, reuniões de ministros, mesas de trabalho e uma secretaria permanente serão mecanismos para o seguimento das estratégias traçadas durante o foro, o qual o presidente equatoriano, Rafael Correa, considerou um caminho para a segunda e verdadeira independência das nações do Sul. O próximo encontro birregional será em setembro de 2011 na Líbia. (Prensa Latina).

Reprodução

Osvaldo León de Quito (Equador) “A ÁGUA NÃO se vende, a água se defende”. Esta é a palavra de ordem do movimento indígena agrupado na Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), que desencadeou, desde o dia 27 de setembro, uma mobilização nacional progressiva em “defesa da água e da vida”. A mobilização, como medida de pressão, foi convocada inicialmente com o caráter de indefinida, mas foi suspensa temporariamente no dia 29 de setembro, quando o presidente Rafael Correa anunciou sua disposição para sentar-se à mesa de negociações. Atualmente tramita na Assembleia Nacional a Lei de Águas proposta pelo governo. E, segundo a CONAIE, a base do projeto governamental contém artigos que violam a Constituição, abre as portas à privatização, prioriza o uso da água para as atividades extrativistas, descumpre as auditorias das concessões de água, protege os contaminadores, desconhece a plurinacionalidade e as formas organizativas camponesas e indígenas, entre outros aspectos. O porta-voz do governo tem dito que se trata de um “mal entendido”, e que o projeto oficial, desde os primeiros artigos, estabelece que não poderá haver privatização da água, conforme disposto na Constituição – que a considera um direito humano.

Policiais reprimem manifestantes ao norte de Quito, no Equador

Tentativa de diálogo Para resolver essas discrepâncias, a diligência indígena vem demandando, sem êxito, um diálogo direto com o presidente Correa, e não somente para abordar o tema do direito da água, mas também sobre “o problema do modelo econômico e político excludente”. No entanto, dias antes, até a manhã do dia 28 de setembro, o governo vinha sistematicamente desqualificando a mobilização, caracterizando-a inclusive como um “fracasso”. Porém, com a mobilização o governo recuou e se encarregou de abrir o diálogo. Até o fechamento desta edição (29 de setembro), no entanto, não houve nenhum avanço concreto, e o governo estabeleceu que não haverá diálogo até que cessem as ações em todo o país. As organizações da Amazônia decidiram mantê-las. Incerteza As organizações regionais indígenas têm convocado consultas ampliadas para determinar se retomam ou não a mobilização geral. Caso não ocorra mais diálogo, já tem antecipado que se tratará de uma

nova “burla” do regime político governamental e que, portanto, resultará adiante em uma radicalização maior por parte das organizações indígenas. Neste momento, o regime político do governo se encontra em confronto com vários setores sociais organizados, por razões específicas. O de maior beligerância é com os professores (União Nacional de Educadores), com raiz na implementação de provas de rendimento pedagógico. O mesmo acontece com outras organizações (sindicais, particularmente), que, a seus olhos se converteram em um cenáculo de privilégios, sobretudo para seus dirigentes. A possibilidade de que a mobilização impulsionada pela CONAIE articule esse conjunto de organizações confrontadas pelo governo e desencadeie uma paralisação nacional foi, sem dúvida, um dos fatores que gravitaram na súbita abertura do presidente Rafael Correa ao diálogo com a organização indígena, deixando claro que com os outros setores sociais não abrirá diálogo algum. Tudo parece indicar que os próximos dias chegarão carregados de tensão.


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internacional Ricardo Stuckert/PR

A economia real está corroída por um câncer ENTREVISTA Para o jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues, a crise do capitalismo é estrutural, e não cíclica, e os senhores da finança não têm soluções para ela; gigantescas lutas sociais se esboçam no horizonte Nilton Viana da Redação O MUNDO ESTÁ num caos. É assim, como Fidel Castro, que o jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues vê o atual cenário mundial. Segundo ele, Obama mente conscientemente ao repetir exaustivamente que o pior da crise já passou. “Nos EUA e na União Europeia vão ser suprimidos muitos milhões de postos de trabalho para ‘modernizar e racionalizar a produção’, avalia Urbano. Para ele, a economia real está corroída por um câncer, e gigantescas lutas sociais se esboçam no horizonte. E afirma: “a crise do capitalismo é estrutural, e não cíclica, e os senhores da finança não têm soluções para ela.” Em entrevista, Urbano fala também sobre a Assembleia Geral da ONU, na qual, segundo ele, na caixa de ressonância única, foram proferidos discursos de sinal contrário; analisa o quadro atual da América Latina – o golpe militar em Honduras, as bases militares na Colômbia – e reafirma sua total solidariedade com a Revolução Bolivariana, “baluarte na América do Sul da luta anti-imperialista”. Mas adverte: “Para transformar uma sociedade capitalista numa forma de organização socialista com ela incompatível, a receita não pode ser uma teorização confusa e contraditória que rejeita ou ignora a herança de Marx, Engels e Lenine”. Brasil de Fato – Passado mais de um ano da eclosão da crise no centro do capitalismo, uma das maiores enfrentadas pela humanidade nos últimos séculos, que avaliação o senhor faz do momento atual? Miguel Urbano Rodrigues – O mundo está num caos, como tem afirmado Fidel Castro. A responsabilidade da crise de civilização que a humanidade enfrenta – econômica, financeira, social, cultural, política, militar, energética, ambiental – é do capitalismo. As medidas adotadas pelos capitalistas têm, de certa forma, amenizado os efeitos da crise? Como o senhor avalia essas medidas? Elas são apenas paliativas? As medidas adotadas pelos governos dos países industrializados variam de Estado para Estado. A recente reunião do G-20 em Pittsburgh (leste dos EUA) iluminou divergências profundas entre os poderosos e os chamados “emergentes”. O G-20 decidiu transformar-se num fórum permanente de administração da economia global. Alguns analistas concluíram que foi instituída uma espécie de “nova ordem econômica mundial”. Mas inventam. Na realidade a montanha pariu um rato. As únicas medidas concretas saídas de Pittsburgh foram decididas no dialogo entre EUA e Europa.

Obama tem repetido exaustivamente que o pior da crise já passou. Mente conscientemente. Ele próprio reconhece que, embora o PIB possa voltar a crescer no próximo ano, o desemprego continuará aumentando. Nos EUA e na União Europeia vão ser suprimidos muitos milhões de postos de trabalho para “modernizar e racionalizar a produção”. A economia real está corroída por um câncer, e gigantescas lutas sociais se esboçam no horizonte. A crise do capitalismo é estrutural, e não cíclica, e os senhores da finança não têm soluções para ela.

Como pode lutar pela paz quem fez da vitória na guerra do Afeganistão a primeira prioridade da política de Washington na Ásia? A crise tende a se agravar mais ou os capitalistas vão conseguir alternativas para controlá-la? Quais consequências ainda virão? A administração dos EUA e os governos da União Europeia insistem em apresentar a crise como resultado de erros cometidos na área da finança; mas, uma vez corrigidos através de um controle dos mercados financeiros, tudo voltará à normalidade. Na realidade o sistema está podre. Não é somente a quebra de grandes bancos e a salvação in extremis dos gigantes da indústria de automóvel estadunidense (graças à injeção pelo governo de dezenas de bilhões de dólares) que refletem essa putrefação. A engrenagem da finança que controla o establishment sobreviveu intacta e, no fundamental, impõe a sua vontade à Casa Branca. É significativo que o secretário do Tesouro de Obama seja Geithner, um homem-chave de Wall Street. Igualmente significativa é a impotência do presidente para impor limites aos vencimentos e prêmios bilionários que se atribuem aos banqueiros, responsáveis pelo tsunami financeiro desencadeado. As medidas aplicadas até agora visaram sobretudo a salvar os responsáveis pela crise. A ONU acaba de realizar sua 64ª Assembleia Geral. A tônica dos discursos, especialmente do presidente do Brasil, foi no sentido de pedir regulação do mercado e reforma das instituições, afirmando que é preciso “construir um novo mundo” após a crise financeira. Que avaliação o senhor faz desse cenário da ONU? Não subestimo a importância para a Humanidade da Assembleia Geral da ONU. Mas, sendo um órgão consultivo, ca-

Lula abraça Obama sob o olhar da primeira-ministra alemã, Angela Merck, durante encontro do G-20

rece de poder para tomar decisões vinculativas. Esse papel cabe ao Conselho de Segurança, hegemonizado pelos EUA com o apoio firme da França de Sarkozy e do Reino Unido de Brown, dois membros permanentes quase sempre solidários com a estratégia imperial de Washington. Na atual Assembleia Geral, caixa de ressonância única, foram proferidos discursos de sinal contrário. Os grandes meios de comunicação ocidentais cumpriram o seu papel, privilegiando a oratória humanista de Obama, sugerindo que o presidente tudo fará para lutar por uma paz universal e promover a desnuclearização do planeta. Mas, se despojarmos da retórica a fala do presidente dos EUA, o que dela fica é pouquíssimo. Dias depois, na reunião do G-20, informou que não exclui a “opção militar” se o Irã não se submeter às exigências dos EUA e dos grandes da União Europeia. Como pode lutar pela paz quem fez da vitória na guerra do Afeganistão a primeira prioridade da política de Washington na Ásia? Como acreditar no pacifismo de um presidente que mantém Robert Gates como secretário da Defesa e nomeou para comandante supremo no Afeganistão o general Stanley Mc Chrystal, um oficial com currículo de criminoso de guerra? É oportuno lembrar que o discurso de Ahmadinejah – uma veemente denúncia das políticas imperiais e dos crimes do sionismo contra o povo da Palestina – foi praticamente ignorado pela mídia ocidental, que chamou sobretudo a atenção para o fato de as delegações dos EUA e de uma dezena de aliados seus terem se retirado do anfiteatro como forma de protesto. A importante intervenção de Hugo Chávez para condenar o gorilazo de Honduras e exigir solidariedade à luta do presidente Zelaya também mereceu escassa atenção da mídia internacional. E como o senhor analisa os discursos na Assembleia da ONU sobre a crise mundial, especialmente a participação do presidente Lula ? Não atribuo grande significado aos discursos pronunciados na Assembleia Geral sobre a crise financeira e econômica. Na maioria foram exercícios de retórica. Nada concreto vai resultar dos apelos e sugestões ali formulados. No tocante a Lula, creio que, em vez de debitar lugares-comuns sobre a necessidade de se “construir um mundo novo”, deveria, como chefe de Estado de uma grande nação, batalhar pela construção de um Brasil verdadeiramente soberano e lutar contra desigualdades afrontosas da condição humana nele existentes, isto é, assumir os desafios que tem desconhecido. Sobre a América Latina, como o senhor analisa o atual cenário que aqui vivemos? Numa entrevista como esta, seria cair em banalidades en-

saiar uma análise mesmo sintética da conjuntura latinoamericana, tal a diversidade de situações existentes. Limito-me, por isso, a chamar a atenção em primeiro lugar para um fenômeno que é global: a contestação crescente dos povos ao sul do Rio Grande à dominação imperial dos EUA. O fracasso total das políticas do chamado Consenso de Washington criou condições favoráveis à eleição em muitos países de presidentes com programas anti-imperialistas moderadamente antineoliberais. O andamento da história não tardou contudo a demonstrar que era ingênua a convicção de que essas vitórias eleitorais, em alguns casos esmagadoras, garantiam o respeito pelos compromissos assumidos perante o povo. No Brasil, na Argentina, no Uruguai, as expectativas de mudanças radicais foram rapidamente defraudadas. O economista argentino Cláudio Katz, num brilhante ensaio intitulado, “Socialismo ou Neodesenvolvimentismo”, ilumina bem dois campos com projetos divergentes (para não dizer antinômicos). De um lado identificamos a opção do Brasil de Lula, da Argentina dos Kirchner, do Uruguai de Tabaré Vasquez. Para os defensores dessa linha de compromissos com o inimigo, a tarefa prioritária seria a construção de um “capitalismo regulado”, dependente, sem os males do neoliberalismo. O Mercosul é o instrumento eficaz desse neodesenvolvimentismo, comandado no fundamental por uma classe empresarial moderna, sucessora da burguesia nacional que tantas esperanças suscitou após a 2a Guerra Mundial.

O discurso de Ahmadinejah – uma veemente denúncia das políticas imperiais e dos crimes do sionismo contra o povo da Palestina – foi praticamente ignorado pela mídia ocidental No outro campo, três países – a Venezuela, a Bolívia e o Equador –, embora sem se afastarem da via institucional, escolheram um caminho diferente. Hugo Chávez e Evo Morales, ao proclamarem a sua opção pelo socialismo, enfrentam-se abertamente com Washington. No Equador, Rafael Correa não vai tão longe, mas a sua política de defesa intransigente da soberania nacional transformou-o, aos olhos do imperialismo norte-americano, num inimigo. Não lhe perdoam o encerramento da Base de Manta, a expropriação de empresas estadunidenses e a sua firmeza na condenação

das intervenções militares, diretas e indiretas, da Colômbia de Uribe. Numa zona intermediária, três países – a Nicarágua, El Salvador e o Paraguai – são hoje governados por presidentes eleitos por forças progressistas. Não cabe aqui refletir sobre o rumo seguido por cada um deles. Registro apenas que, em El Salvador, Funes, levado à presidência pela Frente Farabundo Martí, tem realizado uma política de compromissos incompatível com as grandes tradições revolucionárias daquele partido. Na Nicarágua, Daniel Ortega, o veterano dirigente da Frente Sandinista, mantêm relações privilegiadas com a Venezuela e a Bolívia, mas o discurso anti-imperialista não encontra tradução no plano interno, frente em que pratica uma política apoiada pela direita e que não fere interesses do imperialismo. As importantes lutas travadas pelas forças progressistas do México, do Chile e do Peru inserem-se também na grande onda de rejeição ao neoliberalismo, o projeto a que se submetem os respectivos governos, mas o tratamento do tema extrapola também os limites desta entrevista. Uma referência indispensável a Cuba: sem a resistência da Revolução Cubana a uma guerra não-declarada e a meio século de bloqueio, a atual mobilização dos povos do hemisfério contra a dominação imperialista dos EUA não teria sido possível. Para terminar, julgo útil sublinhar que a minha total solidariedade com a Revolução Bolivariana, baluarte na América do Sul da luta antiimperialista, não impede de me distanciar daqueles que na Venezuela identificam hoje, no chamado “Socialismo do Século 21”, a ideologia que apresentam como o guia teórico e prático para a ação libertadora dos povos latinoamericanos. Para transformar uma sociedade capitalista numa forma de organização socialista com ela incompatível, a receita não pode ser uma teorização confusa e contraditória que rejeita ou ignora a herança de Marx, Engels e Lenine. Que avaliação o senhor faz da crise em Honduras, instalada a partir do golpe militar que derrubou o presidente Manuel Zelaya? É hoje transparente o envolvimento dos EUA no golpe militar que derrubou o presidente constitucional, Manuel Zelaya. Documentação irrefutável prova que o golpe foi concebido com muita antecedência em reuniões realizadas na sede da missão diplomática dos EUA em Tegucigalpa, com a presença do embaixador Hugo LLorens, um cubano de Miami, naturalizado. O presidente Obama, é fato, condenou o golpe, mas o Departamento de Estado nem sequer define como “golpe” o cuartelazo; e o Pentágono continua a manter relações especiais com os generais que as-

saltaram o poder. A sede da Força Aérea Hondurenha funciona, aliás, na Base militar norte-americana de Palmerola. Ou seja, sem a cumplicidade de Washington, a situação em Honduras estaria há muito normalizada. O Equador não permitiu as bases militares dos EUA. No entanto, a Colômbia cada vez mais torna-se fiel escudeiro do império na região. Como o senhor avalia o acordo entre os EUA e a Colômbia que utiliza bases militares no país? A decisão do governo Obama de instalar na Colômbia sete bases militares estadunidenses insere-se na continuidade da estratégia de dominação mundial dos EUA. O discurso pacifista e humanista do atual presidente e uma campanha de propaganda massacrante contribuíram para que centenas de milhões de pessoas acreditassem que a política imperial de George W. Bush seria substituída por uma política orientada para o fim das guerras imperiais. Mas isto não ocorreu, como afirmei na resposta anterior. Não se percebe, aliás, como pode Obama conciliar a política do Departamento de Estado que apresenta a Colômbia como uma democracia respeitada e o fato inocultável de o governo de Álvaro Uribe Velez, aliado preferencial, ter características neofascistas ostensivas. A reunião extraordinária da UNASUR em Bariloche foi, registre-se, convocada para denunciar a instalação das sete bases estadunidenses na Colômbia e identificar nessa iniciativa uma ameaça à segurança das nações da América Latina. Como é do domínio público, o objetivo não foi atingido. E a responsabilidade cabe em parte ao presidente Lula, que se absteve de criticar Uribe e chegou a ser grosseiro ao dirigir-se aos presidentes Chávez, Evo Morales e Rafael Correa. Cabe ao governo brasileiro uma parcela da responsabilidade por uma Declaração Final inócua. João Peschanski

Quem é Miguel Urbano Tavares Rodrigues é jornalista e escritor português. Em Portugal, após a Revolução dos Cravos, foi chefe de redação do jornal do Partido Comunista Português (PCP) Avante! e diretor de O Diário. Foi deputado da Assembleia da República pelo PCP entre 1990 e 1995 e deputado das Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União Europeia Ocidental.


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