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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 345

São Paulo, de 8 a 14 de outubro de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Guilherme Gonçalves/Folhapress

Censo mostra a urgência da reforma agrária Os estabelecimentos com área superior a mil hectares concentram mais de 43% da área total das propriedades rurais brasileiras, enquanto as terras menores que 10 hectares ocupam menos de 2,7%. Tal desigualdade consta do Censo Agropecuário 2006, divulgado, após mais de 10 anos da última edição, no dia 30 de setembro pelo IBGE. O estudo também revela que, apesar de representar pouco mais de 30% do total das áreas, os pequenos estabelecimentos respondem por mais de 84% das pessoas empregadas no campo. Págs. 2 e 3

Anvisa aponta irregularidades na Bayer e na Syngenta A Anvisa encontrou irregularidades em instalações da Bayer e da Syngenta, duas das maiores corporações mundiais de agrotóxicos. Na primeira, foram interditados 1 milhão de litros de veneno adulterados. Comprovada a infração, a transnacional alemã pode pagar multa de até R$ 1,5 milhão. Já na suíça Syngenta, foram encontradas mil toneladas de agrotóxicos com data de fabricação e validade alteradas. Pág. 7

No Complexo da Maré, o limite do insuportável Desde maio, quando traficantes do Terceiro Comando Puro tomaram a Vila dos Pinheiros da facção Amigo dos Amigos, os conflitos armados passaram a ser diários no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Moradores estimam que o número de vítimas já ultrapassou 50 e denunciam que as autoridades só agirão quando se chegar ao “limite do insuportável”. Pág. 8

Na praia de Copacabana, cariocas celebram a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016

Olimpíadas são oportunidade, mas em si não alteram a desigualdade “A justa empolgação com a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016 não pode ofuscar o espírito crítico.” O alerta do sociólogo Maurício Murad, da Uerj, sintetiza a compreensão que especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato têm dos Jogos. Se, por um lado, a vitória carioca é a cereja no bolo de conquistas atingidas recentemente pelo Brasil, como o protagonismo na crise

em Honduras e a consolidação do G-20, por outro, não se pode esperar que as Olimpíadas em si alterem relações sociais. O péssimo exemplo do Pan 2007 indica que a cobrança da população é o único meio de aproveitar a oportunidade dos Jogos para equipar o Rio com políticas e serviços públicos mais igualitários e consolidar no Brasil uma cultura esportiva. Págs. 4 e 5 Joel Silva/Folha Imagem

Com crise, terra vira alvo de investidores na África

Retorno de Zelaya ao poder se aproxima

Cerca de 20 milhões de hectares de terra foram cedidos a investidores nos últimos meses, principalmente na África. Esse fenômeno ganhou forma com as crises alimentar e financeira de 2007 e 2008. A nova demanda, principalmente a partir dos agrocombustíveis, fizeram da terra um bem muito mais raro e cobiçado. Frente a isso, já se discute a necessidade de criar mecanismos de salvaguarda para proteger os interesses das populações locais Pág. 10

Acontecimentos das últimas semanas vêm mostrando que a restituição do presidente de Honduras, Manuel Zelaya, está próxima, enquanto a ditadura liderada por Roberto Micheletti perde sustentação e dá seguidos sinais de recuo. Primeiro, anunciou, no dia 5, a suspensão do estado de sítio que limitava direitos civis. Depois, aceitou diálogo com uma comissão da Organização dos Estados Americanos (OEA) que chega ao país no dia 7. “Não há dúvida de que Zelaya vai voltar à presidência”, completa Nildo Ouriques, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pág. 9

ISSN 1978-5134

Soldados hondurenhos observam manifestação pró-Zelaya próxima à embaixada brasileira em Tegucigalpa Reprodução

Jefferson Bernardes/Palácio Piratini

Gracias, Mercedes Sosa. Não seremos indiferentes Pág. 12

No RS, relatora tucana quer barrar impeachment de Yeda Governistas tentam salvar a governadora Enquanto a oposição busca forças nas ruas, a base governista de Yeda Crusius aproveita a maioria na Assembleia Legislativa para tentar barrar o impeachment. Na Comissão Especial para analisar o pedido de

afastamento, a relatora – deputada Zilá Breitenbach, líder da bancada do PSDB –, sem nenhuma reunião nem audiência, como pedia a oposição, encaminhou o pedido de arquivamento do impeachment. Pág. 6

A governadora Yeda Crusius no programa Roda Viva, da TV Cultura (SP)


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editorial NA SEMANA PASSADA, o IBGE divulgou, com algum atraso, os resultados do Censo Agropecuário relativos a 2006. Os dados são um retrato estatístico da realidade agrária brasileira, medida pela visita dos pesquisadores em todos os estabelecimentos rurais do país, e tomando depoimentos dos seus titulares. A sua publicação ensejou muitos comentários em toda imprensa. E somente com estudos mais apurados e cuidadosos poderemos ter, a partir de agora, análises que possam nos explicar melhor a realidade do meio rural e suas tendências. Enquanto isso, um olhar sobre as principais tabelas divulgadas já nos permite tirar diversas conclusões – algumas delas apresentadas, inclusive, pelos comentaristas do próprio IBGE – que são de suma importância. 1 – A propriedade da terra no Brasil continua se concentrando cada vez mais, comparando os dados do último censo, de 1996, com o atual, de 2006. Diminuiu o número de estabelecimentos com menos de 10 hectares. Eles representam os pobres do campo, cerca de 2,5 milhões de famílias. A área ocupada por eles baixou de 9,9 milhões de hectares para apenas 7,7

debate

Aumenta a concentração da propriedade da terra no Brasil milhões, correspondendo a apenas 2,7% da área total brasileira. No outro lado, temos apenas 31.899 fazendeiros que dominam 48 milhões de hectares em áreas acima de mil hectares. E outros 15.012 fazendeiros com áreas superiores a 2.500 hectares, que totalizam 98 milhões de hectares. São os fazendeiros do agronegócio, que representam menos de 1% dos estabelecimentos, mas controlam 46% de todas as terras. 2 – Esse dado fez com que a concentração da propriedade da terra medida pelo índice de Gini pulasse de 0,852, em 1996, para 0,872 em 2006. Assim, o Brasil ultrapassou o Paraguai, e hoje, certamente, somos o país de maior concentração da propriedade rural. 3 – A produção também se concentrou e se diferenciou. De um lado, a grande propriedade do agronegócio se especializou em produtos para exportação, como soja, milho, cana e pecuária, que dominam a

maior parte das terras. Esses três produtos usam 32 milhões de hectares, enquanto os principais alimentos da dieta brasileira usam apenas 7 milhões de hectares para plantar arroz, feijão, mandioca e trigo. 4 – A agricultura capitalista do agronegócio ficou mais dependente do capital financeiro e das empresas transnacionais. O valor bruto da produção agrícola (PIB agrícola) foi de R$ 141 bilhões em 2006. Destes, R$ 91 bilhões produzidos pelo agronegócio, mas precisando de R$ 80 bilhões de crédito rural dos bancos e da poupança nacional para poder produzir. Já a agricultura familiar produziu R$ 50 bilhões, e utilizou apenas R$ 6 bilhões. 5 – A agricultura familiar produziu comida, e para o mercado interno. O agronegócio produziu commodities, dólares, para o mercado externo. Por isso é dominada pelo controle das grandes empresas transnacionais que controlam o mercado e os preços. As 20 maiores

empresas que atuam na agricultura tiveram um PIB de R$ 112 bilhões no ano de 2007. Ou seja, praticamente toda produção do agronegócio é controlada na verdade por apenas 20 grandes empresas. E, em sua maioria, estrangeiras. 6 – O rosto social do povo que vive no meio rural: há também no censo um retrato da realidade social do meio rural. E a dura realidade emerge nos indicativos de educação. Cerca de 35% de todos os homens adultos e 45% das mulheres que moram e trabalham no meio rural não sabem ler e escrever. Apenas 7% da população que mora no meio rural tem o ensino fundamental (oito anos de escola) completos. Esses dados e outros que não pudemos comentar aqui, por questão de espaço, são reveladores das graves consequências desse modelo do capital financeiro e das transnacionais sobre a nossa agricultura, que produziu essa dicotomia entre o modelo do agronegócio e a

crônica

Luiz Bassegio e Luciane Udovic

Um Grito pela Mãe Terra e pela Vida Reprodução

Jornadas continentais do Grito dos Excluídos/as O 11O GRITO dos Excluídos por Trabalho, Justiça e Vida realiza-se em conjunto com a jornada Global em Defesa da Mãe Terra, contra o neocolonialismo e a mercantilizacão da vida. Na declaração das Jornadas Continentais de 2009, mantém o compromisso e a disposição de lutar por um mundo humano, inclusivo, democrático e justo. Todos estão convidados a participar da manifestação continental que terá como eixos a Defesa da Mãe Terra, a luta contra o golpe militar de Honduras, em solidariedade com o povo e os movimentos hondurenhos, além das lutas regionais e nacionais de cada país. A articulação dos movimentos sociais, juntamente com o respeito e o reconhecimento dos direitos da natureza, constitui um dos pilares básicos para qualquer proposta alternativa ao sistema capitalista; a crise revela-se cada vez mais como uma crise do paradigma capitalista, porque é insustentável a médio e longo prazos. Um modelo de produção baseado no saque constante das riquezas naturais, com seu uso irracional e desmedido, que acaba por destruir os delicados equilíbrios dos quais depende a vida em seu conjunto; na atroz concentração da riqueza em poucas mãos e a favor de poucos países; e na mercantilização de tudo, dos valores, da dignidade humana e da própria vida. O Grito dos Excluídos/as une-se aos movimentos e setores críticos da sociedade que apontam com insistência que não será com “mais do mesmo” que superaremos a crise civilizatória que enfrentamos. Não será cortando direitos e salvando bancos, transnacionais e fábricas de automóveis que venceremos essa encruzilhada, mas, pelo contrário, mantendo e ampliando os direitos sociais e realizando investimentos públicos capazes de reverter a atual desigualdade social.

Mobilizações pelo mundo

No Caribe, as jornadas do Grito tiveram início com o Grito de Lares, no qual diversas organizações celebraram o dia da independência de 1868. Em Porto Rico houve uma jornada de uma semana em solidariedade ao Haiti. Participaram Chalmers, reconhecido economista catedrático da Universidade do Haiti, e Pedro Franco, da República Dominicana, coordenador caribenho do Grito dos Excluídos e membro da Coordenação da Aliança Internacional de Habitantes. É uma iniciativa do Grito do Haiti com o apoio do Comitê Pro Niñez Dominico-Haitiana, do Projeto Caribenho de Justiça e Paz, do Conselho de Igreja de Porto Rico, da Aliança Internacional de Habitantes e da Campanha Desalojo Zero. Na República Dominicana, o Grito está envolvido numa intensa campanha em defesa do direito à moradia. Foi realizada uma Tertúlia Juvenil da Coophabitat sobre o direito à moradia. No dia 12 de outubro haverá um grande encontro de lideranças sociais “por um país sem discriminação e exclusão social”. No dia 14 haverá uma marcha até o Congresso Nacional.

No Paraguai as manifestações também coincidem com a Campanha Desalojo Zero, pelo direito à moradia e melhores condições de vida. Haverá um grande encontro no Assentamento 12 de outubro para debater esses temas. Na Argentina haverá um ato do Grito na Honorable Legislatura da Província de Buenos Aires. No Chile, o Grito participa da grande marcha indígena no dia 12. Haverá um vídeo-fórum sobre as resistências indígenas do Chile e do Peru. Estará presente, em Santiago, um dos líderes do levantamento Amazônico peruano e um porta-voz da resistência mapuche do sul do Chile. Haverá também o 5o Encontro de Migrantes do Chile pelos direitos de cidadania e pela integração regional. Na América Central, o Grito se realizará em vários países. Na Guatemala, diversas entidades, como CNP-Tierra e COMKADES, farão um plantão de solidariedade a Honduras, na cidade da Guatemala. No Panamá haverá a chegada da Caminhada Indígena e Campesina e uma Tribuna Aberta no dia 12. No interior do país haverá manifestações nas cidades de David, Chiriquí e também ações na Província de Bocas del Toro.

Na Nicarágua haverá um plantão na Rotonda de Metrocentro, junto com os afetados por insuficiência renal. Na Costa Rica, um Ato Cultural MAIZ, no dia 11, e um plantão de solidariedade nas embaixadas de Honduras ou dos Estados Unidos. Em El Salvador, ações de solidariedade na Puente La Integración, em parceria com ADES y COPINH. Em Cuba, o Grito será animado por jovens latino-americanos que estudam nos centros de educação superior da ilha. Haverá debates sobre a militarização na América Latina e a solidariedade aos povos hondurenho e colombiano. Na Bolívia, no dia 12 de outubro, haverá projeção de vídeos na Cumbre Social Alternativa, que se realizará em Vallegrande, Santa Cruz, local onde foi assassinado Ernesto Che Guevara. No dia seguinte haverá o Fórum de Rádios e transmissão de TV via Internet da Primeira Audiência do Tribunal Internacional sobre Justiça Climática. Acompanhe na página do Grito as informações sobre o 12 de outubro: www.gritodelosexcluidos.org Luiz Bassegio e Luciane Udovic são da Secretaria Continental do Grito dos Excluídos/as.

agricultura familiar. Revela como as políticas públicas paliativas do Pronaf, Bolsa Família, Luz para Todos, e algum apoio para moradia são insuficientes para corrigir as graves distorções econômicas e sociais, resultantes da concentração da propriedade da terra e da produção. Daí a atualidade e urgência de uma verdadeira política de reforma agrária, que não seja mais apenas distribuir terras, como o capitalismo industrial clássico fez, mas sim um processo de reestruturação e democratização amplo, de acesso à terra e de reorganização da produção, para abastecimento do mercado interno com alimentos saudáveis, respeitando o meio ambiente. A chamada reforma agrária popular. Esperamos que o governo e as diversas instituições que atuam no campo levem em conta a dramaticidade dos dados, que os movimentos da Via Campesina e as pastorais sociais já vinham denunciando, pois está em curso no Brasil, na verdade, uma contrarreforma agrária, um processo de maior concentração da propriedade e da produção nas mãos de apenas 1% de fazendeiros capitalistas, subordinados aos bancos e às empresas transnacionais.

Felipe Dias Carrilho

O futebol e o Brasil na marca do pênalti TODOS ACOMPANHARAM nos noticiários que o presidente da Fifa, Joseph Blatter, pretende proibir a paradinha nas cobranças de pênalti. O mandatário suíço considera a jogada “uma maneira de roubar”, que deveria ser punida com “cartão amarelo e, na insistência, o vermelho”. Segundo Blatter, ludibriar o goleiro assim já é um desvio de postura condenado pela Fifa, e a permissividade com que alguns árbitros têm tratado o lance seria resultado de uma má interpretação das regras. A Fifa estaria, por isso, preparando uma reedição do regulamento, cujo objetivo é reforçar a condenação à jogada, que deve entrar em vigor ainda neste mês. Para além das discussões protagonizadas nas grandes mídias do futebol, em que os jornalistas, em geral, não conseguem ultrapassar o âmbito de suas preferências pessoais, é preciso desvendar o substrato do embate que se coloca. Em seu livro Futebol ao sol e à sombra, o escritor uruguaio Eduardo Galeano assim definiu a importância de Friedenreich para o nosso futebol: “Este mulato de olhos verdes fundou o modo brasileiro de jogar. Rompeu com os manuais ingleses: ele, ou o diabo que se metia pela planta de seu pé. Friedenreich levou ao solene estádio dos brancos a irreverência dos rapazes cor de café que se divertiam disputando uma bola de trapos nos subúrbios. Assim nasceu um estilo, aberto à fantasia, que prefere o prazer ao resultado. De Friedenreich em diante, o futebol brasileiro que é brasileiro de verdade não tem ângulos retos, do mesmo jeito que as montanhas do Rio de Janeiro e os edifícios de Oscar Niemeyer.” De uma sociedade, do início do século 20, marcada por desigualdades e tensões raciais e, portanto, caracterizada pela presença da malandragem no jogo social, nasceu um futebol calcado no improviso e movimento ilusório dos corpos brancos, negros e mulatos dos jogadores. O Brasil moldava o seu futebol, mas por este forjava a sua própria identidade. Para Roberto DaMatta, a capoeira, arte por excelência da ginga e ludíbrio corporal, seria a grande matriz desse jeito de praticar o futebol. De fato, o propalado “modo brasileiro de jogar” pode ser visto, historicamente, como uma resposta do país ao reconhecimento anterior de uma escola de futebol argentina e uruguaia, evidenciando também a sua singularidade em relação ao jogo verificado em seus países vizinhos. Apesar de a atual discussão não ser direcionada explicitamente ao Brasil pelo presidente da Fifa, não há dúvida de que foi o recrudescimento da paradinha nessas terras o fato que desencadeou tal reação normalizante. O fenômeno é tão revestido de brasilidade que vale lembrar o caso do jogo entre Palmeiras e Argentinos Jr., pela Copa Sul-americana de 2008, em que o árbitro colombiano José Buitrago puniu o jogador brasileiro Diego Souza com cartão amarelo por fazer uso da jogada. Pier Paolo Pasolini, nos anos 70, falava de um futebol praticado em prosa, o europeu, e de outro jogado em poesia, referindo-se ao sul-americano e, principalmente, ao brasileiro. Era a ideia de que, grosso modo, os europeus exerciam um jogo mais linear e finalista, enquanto os brasileiros jogavam de maneira digressiva e imprevisível. Resultado contraditório da implantação de um ideal de civilização europeu, o Brasil gerou, assim, um futebol que se revelou uma espécie de efeito colateral de tal experiência histórica. Sob essa perspectiva, o ressurgimento da paradinha pode ser lido como uma nova (e hoje rara) demonstração radical da identidade do futebol brasileiro e do próprio país. Assim, o que a Fifa pretende fazer ao proibi-la soa, num nível mais profundo, como uma imposição cultural europeia com raízes no período colonialista, que vai ao encontro do ideal de massificação do futebol, pasteurizando o seu conteúdo e tornando-o mais “civilizado” e chato. Felipe Dias Carrilho é historiador.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil Roosewelt Pinheiro/Abr

No Brasil, a lógica da “antirreforma agrária”

O avanço do agronegócio: 43% da área de propriedades rurais do país estão nas mãos dos latifundiários

CAMPO Censo Agropecuário aponta quem deveria receber mais financiamento público: a agricultura familiar Eduardo Sales de Lima da Redação OS ESTABELECIMENTOS maiores que mil hectares concentram mais de 43% da área total de propriedades rurais brasileiras, enquanto as terras menores que 10 hectares ocupam menos de 2,7%. A gritante desigualdade consta do Censo Agropecuário 2006, divulgado, após mais de 10 anos da última edição, no dia 30 de setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Utilizando-se do índice de Gini, o estudo mostra a ferida aberta da concentração de terras no país e a falta de estímulo ao pequeno agricultor. O censo revela ainda a opção por um projeto primárioexportador em detrimento da realização da reforma agrária. O agravamento da concentração de terras nos últimos dez anos é comprovado pelo índice de Gini da estrutura agrária. Quanto mais perto esse índice está de 1, maior a concentração. O censo do IBGE mostrou um índice de 0,872 para a estrutura agrária brasileira, superior aos índices apurados nos anos de 1985 (0,857) e 1995 (0,856). “A conclusão política dessa constatação do IBGE é óbvia: a total inutilidade, em termos redistributivos, dos programas de reforma agrária aplicados no Brasil. Dá razão, assim, aos discursos dos movimentos sociais”, compreende Gerson Teixeira, agrônomo e ex-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra). O que “particularmente” o preocupa nos dados do censo é o processo de definhamento dos estabelecimentos menores que 10 hectares, “notadamente no Norte e no Nordeste”. “Chama a atenção que na região Norte esses estabelecimentos tenham perdido mais de um quarto do seu território (ou 125 mil hectares) de 1996 para 2006”, relata Teixeira. De acordo com o agrônomo, em relação a 1980, a área acumulada pelo grupo de estabelecimentos em questão, naquela região, foi 38% menor. “Em 2006, a área acumulada por esses estabelecimentos correspondeu a 50% da acu-

mulada em 1980”, explica. Em relação à região Nordeste, o agrônomo destaca que o território ocupado por essas pequenas propriedades em 2006, em relação a 1980, foi “erodido” em 707 mil hectares. “Sobre 1996, a perda de área foi de 325 mil hectares (-8%)”, informa. Opção

“O grosso do financiamento público também se concentrou nas grandes propriedades de terra”, explica Teixeira. Dos 5,2 milhões de propriedades existentes, somente 920 mil obtiveram financiamentos para produção. Dos que não foram beneficiados, 3,63 milhões (85,42%) são pequenas propriedades. As grandes captaram 43,6% dos recursos. Para o agrônomo, estes e outros “fatos tidos como essenciais para a economia e a governabilidade continuarão a se opor às possibilidades de uma efetiva estratégia para a reconfiguração mais simétrica da estrutura de posse e uso da terra no Brasil”. Ele lembra que isso é reflexo do apoio direto do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no investimento para a criação de empresas nacionais globais, especialmente na área do agronegócio, a exemplo dos casos recentes da Sadia/Perdigão e da JBS/Bertin. Trata-se do esforço brasileiro empenhado em conquistar uma “posição de proeminência na inserção do país na globalização. Com isso, o agronegócio tende a se fortalecer ainda mais internamente; situação que não favorece qualquer otimismo com relação à reforma agrária”, reforça Teixeira. Contrariado com o excesso de apoio financeiro dado ao agronegócio, Osvaldo Russo, ex-presidente da Abra e do Incra, utiliza-se do mesmo censo do IBGE para argumentar os benefícios concretos de uma reforma agrária para o Brasil. Ele lembra que, apesar de representar pouco mais de 30% do total das áreas, os pequenos estabelecimentos respondem por mais de 84% das pessoas empregadas. Os dados também demonstram que esses trabalhadores fazem parte da agricultura familiar, cujos 12,8 milhões de produtores representam 77% (ou 12.801.179) do total de pessoas ocupadas. O estudo ainda revela que a agricultura familiar é mais eficiente na utilização de suas terras, gerando um valor de produção de R$ 677 por hectare, enquanto que a não-familiar gera um valor de R$ 358 por hectare.

Herança colonial é “turbinada” pelo agronegócio Para diretor da Abra, dados do novo censo podem contribuir para que governo e sociedade se mobilizem da Redação É consenso que o Brasil possui concentração de terras, excesso de latifúndio. Mas sabe-se também que essa concentração aumentou? O Censo Agropecuário 2006 (que comparou dados de 1996 a 2006) aponta que as pequenas propriedades (com menos de 10 hectares) ocupam apenas 2,7% da área ocupada por estabelecimentos rurais. Já as grandes propriedades (com mais de mil hectares) ocupam 43% da área total. Mas, em quantidade, as pequenas propriedades representam 47% do total de estabelecimentos rurais no país, enquanto os latifúndios correspondem a apenas 0,91% desse total. Sobre o agronegócio, um dado sintomático também em relação à concentração de terras: a soja foi a cultura que mais se expandiu no país na última década. No período entre 1995, quando foi realizado o levantamento anterior, e o censo atual, a soja apresentou um aumento de 88,8% na produção. Em entrevista, Osvaldo Russo fala do aumento da concentração de terras no Brasil, da soja e de outros assuntos. Ele é estatístico, diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e coordenador do Núcleo Agrário Nacional do PT. Foi presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) entre 1993 e 1994. Brasil de Fato – A impressão que se tem é a de que, entre 1996 e 2006, houve muita luta social no campo, mas mesmo assim aumentou a concentração. Por quê? Osvaldo Russo – A concentração escandalosa de

terras no Brasil é o retrato da nossa herança colonial e escravista. Em 1996, deu-se o Massacre de Corumbiara (RO). Em 1997, ano do Massacre de Eldorados dos Carajás (PA), deu-se a Marcha do MST (100 mil), que ganhou grande destaque nacional e internacional. A mobilização social foi intensa a partir de 1993, quando foram promulgadas a Lei Agrária e a Lei do Rito Sumário, que regulamentaram o capítulo da reforma agrária da Constituição de 1988. No governo FHC, entretanto, foi grande a criminalização do movimento sindical e dos movimentos sociais, em especial do MST.

O modelo agrícola hegemonizado pelo agronegócio, com uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, é responsável pelo envenenamento da agricultura brasileira Ficou provado com o estudo que a pequena propriedade emprega e produz muito mais que o latifúndio. Qual será o peso político dessa informação para que o governo se sinta mais pressionado a fazer a reforma agrária de fato ou, ao menos, faça a atualização dos índices de produtividade? O Censo Agropecuário de 2006 confirma aquilo que pesquisadores e ativistas vêm dizendo: apesar de representar pouco mais de 30% do total das áreas, os pequenos estabelecimentos respondem por mais de 84% das pessoas empregadas. Os dados também mostram que esses trabalhadores fazem parte da agricultura familiar, cujos 12,8 mi-

lhões de produtores representam 77% do total de pessoas ocupadas. As informações do IBGE revelam ainda que a agricultura familiar é mais eficiente na utilização de suas terras, gerando um valor de produção de R$ 677 por hectare, enquanto que a não-familiar gera um valor de R$ 358 por hectare. Acredito que esses dados podem contribuir para que governo e sociedade mobilizem e acelerem as mudanças necessárias nas políticas para o campo, dando maior ênfase à reforma agrária e à agricultura familiar. Isso deve ser expresso em maiores recursos para o setor e na adoção de novos índices de produtividade, já que os atuais estão defasados 34 anos. Os serviços públicos de extensão rural (auxílio técnico) foram desestruturados especialmente na década de 1990. Por quê? Em primeiro lugar, a extinta Embrater estava aglutinando, como em geral e historicamente as empresas públicas e estatais, uma cultura de política pública de Estado voltada para os interesses nacionais e da maioria do povo brasileiro. O sucateamento da assistência técnica e da extensão rural fez parte da política neoliberal de liquidação do Estado promovida pelos governos Collor e FHC. Em segundo lugar, a desestruturação da assistência aos pequenos agricultores favoreceu ao agronegócio. Em que pesa mais negativamente a expansão de 63,9% na área de soja no Brasil? É uma cultura que mais amplia a concentração de terras e a dependência econômica num único setor? Mais que a cana? A expansão da monocultura da soja, da pecuária extensiva e do agronegócio, ao lado da ação criminosa de grileiros e madeireiros na Amazônia e no Centro-Oeste, é a responsável pelo crescimento do desmatamento e pela concentração de terras na região. O cultivo da cana-deaçúcar ganhou escala preo-

cupante em São Paulo e em outros estados, o que pode vir a competir com a produção de alimentos internamente se não houver uma regulação, sem o que haverá danos para a soberania alimentar do país. Foi verificado no censo um intenso uso de agrotóxicos nos estabelecimentos rurais brasileiros. A baixa taxa de assistência e a falta de conhecimento contribuem com o excesso de uso de agrotóxicos? De um lado, o modelo agrícola hegemonizado pelo agronegócio, com uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, é responsável pelo envenenamento da agricultura brasileira. De outro, a ausência de educação ambiental, desde as escolas até a mídia, cria um vazio na conscientização da sociedade, na qual o lucro e a ganância prevalecem em detrimento das necessidades de uma alimentação saudável da população brasileira. Qual década foi mais importante para que ocorresse o aumento da concentração de terras, a de 1990 ou a partir dos anos 2000? O quadro de concentração fundiária é endêmico na história brasileira. O censo do IBGE mostra que em 2.600 municípios a concentração diminuiu, mas nem por isso ela deixou de ser elevada e de crescer nacionalmente. Os dados revelam a concentração tanto na década de 1990 quanto nesta metade dos anos 2000. Ainda que, de 1 milhão de assentamentos realizados no Brasil desde a criação do Incra, em 1970, mais da metade se deu de 2003 pra cá; e de o Pronaf ter crescido de pouco mais de R$ 2 bilhões, na safra 2002-2003, para R$ 15 bilhões previstos para a safra 2009/2010; ainda assim nos preocupa a articulação de interesses entre o agronegócio, as grandes empresas multinacionais de insumos e alimentos e os bancos, o que anula qualquer esforço de distribuição da terra. (ESL)


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brasil

Rio 2016: chance histórica de criar legado esportivo e social OLIMPÍADAS Brasil obtém vitória, mas jogos em si não acarretam obrigatoriamente desenvolvimento social e ganho de autoestima Ricardo Stuckert/PR

Renato Godoy de Toledo da Redação Após a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez o seu discurso mais emocionado desde que foi diplomado no cargo, em 2003. O tom do mandatário foi de mudança de época. O Brasil enfim conquistou a cidadania internacional, tornando-se país de primeira classe, disse o presidente. A Olimpíada veio completar sucessivas vitórias do governo brasileiro em plano internacional. Ao mesmo tempo em que cumpre papel decisivo em Honduras, o país é visto como protagonista na extinção do G-8 e formação do G-20, o que aparentemente deve consolidar uma ordem mundial que gira menos em torno das determinações dos EUA e da União Europeia. Na cerimônia do Comitê Olímpico Internacional (COI) em Copenhague (Dinamarca), a candidatura do Rio de Janeiro derrotou potências como Madri, Tóquio e a então favorita Chicago, representada pelo presidente dos EUA, Barack Obama – talvez o maior derrotado nesse processo. Apoio de Chicago Após a decisão, a imprensa internacional atribuiu grande parte do êxito brasileiro ao presidente Lula. Esta foi a quarta vez que o Brasil pleiteou sediar os Jogos Olímpicos. A candidatura de Brasília 1992 nem chegou a ser votada. As do Rio de Janeiro, 2004 e 2012, foram derrotadas antes da fase final. Pela evolução dos votos nos três turnos da eleição da sede, pode-se notar que praticamente todos os votos de Chicago, eliminada na pri-

Em Copenhague, na Dinamarca, a delegação brasileira comemora a escolha do Rio de Janeiro como cidade-sede das Olimpíadas de 2016

“A autoestima não pode ser baseada no que os outros pensam de nós, mas sim em nossas condições; ela tem que estar baseada na qualidade de vida”, diz a historiadora Virgínia Fontes meira rodada, migraram para o Rio, assim como os votos de Tóquio, eliminada na segunda rodada. O Rio somou 66 votos, contra 32 de Madri, configurando um recorde de vantagem. No entanto, nem só de boas expectativas vive o país, que lembra-se dos gastos excessivos com o Pan-ameri-

cano 2007 e a falta de legados sociais e esportivos (veja matéria na página 5).O Pan do Rio contou com um orçamento 793% maior do que o previsto inicialmente, saltando de R$ 410 milhões para R$ 3,7 bilhões. O Comitê Olímpico Brasileiro (COB) planeja um orçamento de R$ 27 bilhões para o Rio 2016.

O antiexemplo do Pan-americano Ricardo Stuckert/PR

da Redação

Exagero No entanto, Murad diz considerar um exagero a afirmação de Lula de que

Evento não resolve questões básicas do país

“A empolgação justa não pode fazer com que a gente perca o espírito crítico”, alerta o sociólogo Maurício Murad o país ganhou “cidadania internacional” com a conquista do direito de sediar o evento. “A Olimpíada é uma grande oportunidade e um imenso esforço, mas nenhum evento esportivo resolverá nossas questões sociais básicas, que são estruturais e históricas. Poderá ajudar, sem dúvida, mas não será panaceia de nada. A empolgação justa não pode fazer com que a gente perca o espírito crítico. O ‘legado’ do Pan 2007 está aí ou, melhor dizendo, não está aí, para servir de prova. Fizemos um evento esportivo de alto nível, mas o ‘legado’ foi e é lamentá-

transporte público, coisa que a maioria das cidades brasileiras não tem. E o Rio não foge a essa regra”, explica. A professora diz considerar “lamentável” o discurso de que o evento pode recuperar a autoestima do povo carioca, que vem tendo perdas desde 1960, com a transferência da capital para Brasília e com o estigma de cidade violenta. “É lamentável que se pense que os indivíduos do Rio tenham que esperar a promoção de um evento para recuperar sua autoestima. Antes acreditávamos que, com o Brasil alcançando o status de país em desenvolvimento, a população tivesse melhorias no sistema de transporte e no sis-

Olimpíada faz parte de “choque de capital”, diz economista

País carece de política esportiva efetiva, dizem especialistas

Para o sociólogo Maurício Murad, especialista em Esporte da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), a realização dos jogos na capital fluminense abre uma janela de oportunidade de desenvolvimento social que deve ser aproveitada. “Acho ótimo o Brasil poder sediar um megaevento desse porte, especialmente dois anos depois de outro megaevento, que é a Copa do Mundo de 2014. É uma grande oportunidade para a cidade do Rio de Janeiro e para o Brasil, do ponto de vista dos investimentos, do turismo, da visibilidade internacional, da geração de empregos, de políticas públicas de inclusão social, meio ambiente, educação, cultura e segurança. Agora, o mais importante é como vamos aproveitar tudo isso, é a herança social e democrática que os Jogos poderão (e deverão!) deixar sobretudo para as camadas desfavorecidas de nossa sociedade, tão carentes de oportunidades básicas, e mais ainda na autoestima da cidade e, por extensão, do Brasil”, analisa.

Autoestima Para Heloísa Reis, doutora em Sociologia do Esporte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), as Olimpíadas em si não devem alterar as relações sociais na cidade. “O evento por si só não altera nada. O que se pode esperar, caso os políticos trabalhem de maneira adequada, é a construção de políticas públicas de acesso à prática esportiva e a consolidação de uma cultura esportiva no Brasil. Se isso for feito de modo adequado, podemos conseguir um número recorde de participantes brasileiros nos jogos. É a maior oportunidade histórica de equipar a cidade com rede hoteleira e

tema público de esportes, mas isto não ocorreu. É lamentável que se espere um evento para que as pessoas tenham essas condições, que são direitos”, avalia. A historiadora Virgínia Fontes, da Universidade Federal Fluminense (UFF), acredita que o termo autoestima tem sido mal empregado. “A autoestima não pode ser baseada no que os outros pensam de nós, mas sim em nossas condições; ela tem que estar baseada na qualidade de vida – que a população mais pobre do Rio hoje não tem”, defende. Já para o historiador e cronista esportivo José Geraldo Couto, a escolha do Rio de Janeiro trouxe uma melhora na autoestima, mas esta não pode ser considerada definitiva. “Como pudemos ver pelas comemorações no Rio e pelos depoimentos das pessoas nas ruas das principais cidades, a escolha do Rio 2016 já teve um efeito imediato de elevação da autoestima dos brasileiros. Mas é cedo para saber o quanto a escolha da cidade poderá alterar de modo permanente e substancial a lógica do complexo de viralata. Na verdade houve outros momentos de euforia que depois tiveram a sua ressaca, a sua contrapartida de depressão. Vai depender muito de como o Brasil vai se desempenhar nas Olimpíadas, tanto na organização do evento como nos resultados esportivos”, prevê. Para Couto, os jogos podem alterar a imagem do Brasil no mundo ou reforçar a imagem vigente sobre o país. “De todo modo, o Brasil tem uma grande chance agora de mostrar ao mundo que é um país sério. Ou, ao contrário, de reforçar o estereótipo de república da corrupção e da bagunça”, define.

vel, sem nenhuma explicação de qualquer governante que seja. Lamentável também para a nossa democracia”, critica. O historiador e jornalista José Geraldo Couto afirma que a falta de apoio aos atletas tem sido a principal marca da política esportiva brasileira. “O que temos visto é a escassez de investimento no setor e, de um modo geral, uma ausência de política nacional de esportes. Continuamos dependendo do talento e da abnegação pessoal de alguns atletas, que no mais das vezes não contam com apoio algum, público ou privado”, relata. (RGT)

no Rio é um processo de choPara Sandra que de capital, no qual a poQuintella, país pode pulação negra, pobre e favelada não está incluída”, resume até crescer com Quintella. evento, mas sem distribuir renda “Na região portuária, estão da Redação planejando uma revitalização, junto O projeto olímpico carioca não está isolado do contexto com entidades de grandes empreendimen- patronais, sobre a tos econômicos no Estado fluminense, que correspondem qual as cerca de unicamente ao interesse do capital nacional e internacio- 45 mil pessoas nal. Esta é a análise de Sandra que moram no Quintella, economista do Instituto de Políticas Alternativas local não serão para o Cone Sul (Pacs). consultadas”, critica De acordo com ela, dois projetos estão em curso no Rio de Sandra Quintella Janeiro. Um primeiro, de embelezamento e criação de uma cidade-modelo, com a revitalização de áreas degradadas, como a zona portuária. Outro, de expansão empresarial, sobretudo siderúrgicas, que envolve poluição e o emprego de uma pequena massa de mãode-obra, mas com lucros astronômicos para empresários como Eike Batista, que investe na construção de portos no norte fluminense e na baía de Sepetiba. Batista, aliás, é tido como um dos grandes mecenas dos jogos no setor privado. Suas empresas já realizam trabalhos de despoluição na Lagoa Rodrigo de Freitas, que deve sediar as competições de vela. “O que está acontecendo

Mesmo modelo Na apresentação da candidatura brasileira em Copenhague, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, propagandeou aos membros do COI que, em 2016, o país deve ter a 5ª maior economia do mundo. Para Quintella, o fato pode até ocorrer, mas não significa desenvolvimento social. “Acho essa previsão meio megalomaníaca. Mas o produto interno bruto do país pode até crescer com a Copa e as Olimpíadas, mas com base na exportação de milhões de toneladas de minério de ferro e commodities. E isso não au-

menta a renda no país. Podemos ser a 5ª economia do mundo, mas isso não mensura as condições humanas”, afirma a economista, que acredita que o Brasil continuará mal posicionado no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). No dia 5 de outubro, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento divulgou que o Brasil se mantém na 75ª posição no IDH, apesar de uma pequena melhora em relação ao ano passado. Segregação De acordo com a economista, as mudanças na cidade fazem parte de um projeto de exclusão territorial dos povos mais pobres. “Está prevista a construção de uma arquibancada para 10 mil pessoas para as competições na Lagoa, sendo que são esportes para os quais não há público. Na prática há uma privatização da orla da Lagoa. Na região portuária, estão planejando uma revitalização, junto com entidades patronais, sobre a qual as cerca de 45 mil pessoas que moram no local não serão consultadas”, critica a economista. Para a historiadora Virgínia Fontes, da UFF, o mais provável, com a realização dos jogos, é que “os recursos sejam investidos em bairros de classe média emergente, como a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes, que já têm maior infraestrutura, e ainda aproveitando para expulsar as pessoas pobres dessas regiões”. (RGT)


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Que seja maravilhosa para todos Marcelo Horn/Subsecretaria de Comunicação Social-RJ

LEGADO SOCIAL O grande desafio dos Jogos Olímpicos é deixar o legado social que foi sonegado pelo Pan Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) QUANDO O SOM do envelope rompeu o angustiante silêncio de Copenhague e a voz árida de um estrangeiro pronunciou “Rio de Janeiro”, milhares de braços se ergueram ao longo de toda a Cidade Maravilhosa. Mais do que depressa, um Carnaval se instalou na cidade, enfeitada por uma linda tarde que parecia encomendada aos céus. Não era hora de pessimismo. As Olimpíadas chegavam à América do Sul. Os cariocas – em boa parte céticos até a véspera quanto às vantagens dos Jogos – não perderam a chance de celebrar. Entretanto, já não é segredo pra ninguém que nem todos comemoravam o mesmo. Por um lado, os amantes do esporte, da confraternização entre povos e das possibilidades de retorno social do evento celebravam o imenso potencial de benesses que uma Olimpíada pode legar. Por outro, alguns empresários e políticos comemoravam a grande chance que terão de desviar recursos, superfaturar orçamentos e concentrar benefícios. Ninguém mais é inocente na cidade bela. Os cariocas festejaram na sexta, mas já estavam atentos no sábado. Embora o Rio tivesse o maior índice de apoio popular entre as quatro finalistas (84,5%), sabe-se da possibilidade dos Jogos se tornarem um fracasso. As razões já foram repetidas em toda parte. As Olimpíadas podem trazer enorme retorno social, como em Barcelona 1992, ou quase nenhum, como em Atenas 2004. Tudo vai depender do desejo das autoridades, com acompanhamento popular, de deixar um legado social. Caso as movimentações permaneçam como estão, de utilização da escolha da cidade como estratégia de promoção política, subserviente aos interesses dos setores econômicos, o fracasso será inevitável.

Milhares de cariocas foram à praia de Copacabana acompanhar a decisão do Comitê Olímpico

“A gente não pode cair na armadilha de achar que o desenvolvimento do Rio está atrelado à Olimpíada. Senão vamos ter que organizar uma a cada quatro anos”, alerta o vereador Paulo Pinheiro (PPS) Retrospecto negativo A trajetória recente do Rio de Janeiro não é nada empolgante. A realização do Panamericano na cidade, em 2007, aconteceu nas datas e locais previstos de forma razoável e com nível aceitável de segurança pública. Porém, no que se refere à herança para a cidade e aos escândalos da pré-organização, o evento foi uma catástrofe. No Pan, houve cronograma atrasado, orçamento multiplicado por dez, compra sem licitação, pagamentos sem entrega, superfaturamento, falta de sentido social, desvinculação entre esporte e educação e uma quantidade in-

calculável de “elefantes brancos” (equipamentos esportivos que se tornam ociosos depois do evento). Segundo o sociólogo e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Maurício Murad, 83% dos cariocas afirmaram após o Pan, em pesquisa realizada por sua equipe, não acreditar em promessas de políticos relacionadas a legado de qualquer evento esportivo. Controle social O pediatra Daniel Becker criou um movimento com mais de 20 entidades para acompanhar a organização das Olimpíadas de 2016.

Provisoriamente denominado “Participação 2016”, envolve lideranças do Legislativo, do setor privado e da sociedade civil e pretende estruturar o movimento para acompanhamento das contas, votações na internet e discussões públicas, reivindicando a transparência dos recursos, ausente no Pan. O movimento quer também que a população seja chamada a participar da organização das Olimpíadas. O médico tentou assinar um acordo de compromisso com as autoridades antes da viagem a Copenhagen, sem sucesso. “Nós temos plenas condições de organizar uma Olimpíada. Mas o que vai ficar depende da mobilização da sociedade. O carioca tem que participar”, afirmou Daniel. Um dos três decretos assinados recentemente pelo prefeito Eduardo Paes (PMDB) busca mapear a herança que as Olimpíadas de 2016 podem deixar à cidade. Foram anunciadas a licitação de dois corredores expressos de ônibus, da Barra à Penha e de Santa

Cruz à Barra, além do portal Transparência Olímpica, de acompanhamento dos gastos. No que se refere à segurança pública, principal preocupação no exterior, o governador Sérgio Cabral (PMDB) anunciou que, até 2016, de 7 a 10 mil novos policiais serão preparados. Prefeito e governador voltaram a prometer a linha 4 do metrô. Paes sugere que pretende aceitar auxílio de outras capitais nos investimentos. Cidade Olímpica* É consenso que não se pode perder a oportunidade de deixar certas iniciativas como legado. A despoluição da Baía de Guanabara e de lagoas é uma das demandas que não podem perder a chance histórica. Outras seriam a urbanização das áreas de favela, a integração entre metrô, trens e barcas, a duplicação das vagas da rede hoteleira e a reforma de instalações. Entretanto, não faltam vozes para alertar que a população não pode associar a demanda por melhorias apenas aos Jogos. “A gen-

Foi um Rio que passou em nossas vidas... Wilson Batista/ABr

Embora seja a prova de que o país é capaz de realizar grandes eventos, o Pan de 2007 queimou recursos incalculáveis, sem nada deixar do Rio de Janeiro (RJ) Como hoje, as promessas também eram muitas. Investimentos maciços em transporte, reestruturação urbana, meio ambiente (com despoluição de lagoas), educação, esportes e tecnologia. As possibilidades de o Pan-americano de 2007 trazer grandes melhorias ao Rio de Janeiro saltavam aos olhos. O que se viu, especialmente antes e depois do evento, foi uma sucessão de absurdos. Antes, foram as obras atrasadas, o orçamento multiplicado, a busca de socorro estatal, os pagamentos sem entrega, investimentos quase inexistentes em transporte e meio ambiente e reformas urbanas sob a lógica de criminalização da pobreza. Depois, foi a manutenção da política conservadora de esportes e a inacreditável quantidade de edificações caríssimas que, agora, não têm qualquer utilidade.

A prefeitura anunciava que os equipamentos esportivos seriam disponibilizados a todas as crianças da rede pública de ensino: 750 mil. Hoje, a afirmação parece piada de bar. Só para o programa favela-bairro, o então prefeito César Maia (DEM) anunciava R$ 1 bilhão em recursos, nunca efetivados. Os prometidos investimentos privados não vieram, as obras atrasaram uma enormidade e lá foi o governo federal disponibilizar recursos públicos. O orçamento de R$ 400 milhões chegou muito próximo a dez vezes o previsto. Os motivos? Até hoje não se pode definir. O evento foi concebido, organizado e realizado sem qualquer transparência. A Câmara Municipal do Rio, por iniciativa do vereador Eliomar Coelho (Psol), tentou aprovar em 2008 uma CPI para investigar o Pan, sem sucesso. Os principais atores dessa história, para desespero de muitos, são os mesmos de ho-

O Parque Aquático Maria Lenk, que foi abandonado após o Pan-americano

Parece que o único legado positivo do Pan 2007 é a própria Olimpíada je. Do governador Sérgio Cabral (PMDB), que deve utilizar o feito de Copenhague para estimular sua reeleição, ao antigo secretário de Esportes Eduardo Paes (PMDB), hoje prefeito. Há pessoas que não aguentam mais ouvir Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), fazer as mesmas

promessas de dois anos atrás. Ricardo Leyser Gonçalves, cotado para liderar a organização das Olimpíadas, acaba de ser condenado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) a devolver R$ 18,4 milhões à União por irregularidades cometidas na administração do Pan. Só em serviços sem execução comprovada teriam si-

do gastos R$ 6,8 milhões. Em pagamentos com duplicidade, outros R$ 4,1 milhões. Os valores de superfaturamento são ainda mais assustadores. Arbitrariedades Pouco antes do evento, os patrocinadores viraram as costas à instalação de um velódromo e de um parque aquático na região da antiga pista do autódromo Nelson Piquet. A concessão para que a Marina da Glória e o aterro do Flamengo se tornassem área de complexo turístico e comer-

te não pode cair na armadilha de achar que o desenvolvimento do Rio está atrelado à Olimpíada. Senão vamos ter que organizar uma a cada quatro anos. Existem muitos interesses em jogo. Muita gente vai usar o evento para se eleger”, alerta o vereador Paulo Pinheiro (PPS). Que a cidade apresentada ao mundo em Copenhague, no filme de Fernando Meirelles, é o Rio ficcional das novelas de Manoel Carlos todos sabem. A cidade real é um pouco menos maravilhosa. É dever dos cariocas, contudo, buscar utilizar o evento para criar no Rio de Janeiro a cidade encantadora que se forjou nas telas e que por vezes consegue ser. A mobilização e a cobrança são os únicos caminhos para se evitar que as raposas hoje famintas não encontrem brechas para agir. Para isso é preciso lutar todos os dias. Durantes as noites, aí sim, pode-se abrir o vinho de novo e celebrar. * O adjetivo “olímpica” também quer dizer “maravilhosa”.

cial privado foi renovada por meio século. Comunidades como a do Canal do Anil foram afetadas de forma maléfica pelas intervenções urbanas, que desprezaram áreas mais pobres. Houve até remoções parciais. O Estádio Olímpico, conhecido como Engenhão, construído às pressas com recursos públicos, é uma bela obra de difícil acesso. O Botafogo herdou sua utilização muito mais pelo desprezo dos outros três grandes clubes do que por vontade própria. A linha 4 do Metrô mais uma vez ficou só na promessa. As vilas olímpicas permanecem subutilizadas. Remodelado para o Pan, o parque aquático Julio Delamare, por ironia, corre riscos de ser derrubado já para a Copa de 2014. Fica próximo ao Maracanã e atende, diariamente, quase mil pessoas, mas pode transformar-se em estacionamento. O parque aquático Maria Lenk, na Barra da Tijuca, está abandonado. Parece que o único legado positivo do Pan 2007 é a própria Olimpíada, por ter comprovado a capacidade do país de realizar eventos desse porte. A título de comparação com a herança trágica do evento, a capital de Cuba viveu experiência diferente. Sede do Pan 1991, Havana destinou aos trabalhadores que ergueram as vilas as próprias dependências que construíram. (LU)


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O impeachment de Yeda no tabuleiro de Xadrez

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Jogada marota

Ronaldo Bernardi/Folhapress

CORRUPÇÃO TUCANA Yedistas e oposição ampliam estratégias em torno do afastamento da governadora do Rio Grande do Sul

Base alimentar

Está provado: dados do censo divulgado pelo IBGE confirmam que a voracidade exportadora do agronegócio (soja, cana, gado, eucalipto) só contribui para aumentar a concentração das terras no país. Em compensação, a agricultura familiar, que é pouco prestigiada pelo Ministério da Agricultura, continua responsável pela produção de mais de 70% dos alimentos da cesta básica. Por que não ampliar a agricultura familiar?

Miguel Enrique Stédile de Porto Alegre (RS) ÀS VÉSPERAS DA decisão da Comissão Especial que analisa o pedido de impeachment da governadora Yeda Crusius (PSDB), oposição e yedistas apostam em movimentos diferentes para definir a situação política do Rio Grande do Sul. A governadora ganhou o primeiro páreo com o pedido de arquivamento do impeachment pela relatora do processo na Assembleia Legislativa. Para a oposição, capitaneada pelo Fórum dos Servidores Estaduais, a estratégia é ampliar as mobilizações de rua. Na última semana, os movimentos sociais e sindicais que compõem o Comitê pelo Impeachment iniciaram um plebiscito popular, com urnas espalhadas pelo Estado e votação pela internet, com uma única pergunta: “Yeda, inocente ou culpada?”. A intenção é reunir milhares de votos para pressionar os deputados da base yedista – PMDB, PP, PSDB, PPS – , que formam a maioria tanto na CPI da Corrupção quanto na Comissão Especial que analisa o processo de impeachment. Além do plebiscito, o Comitê Fora Yeda organizou, no último final de semana, um ato-show no Parque Marinha do Brasil. A intenção é converter a opinião da população em mobilizações. Segundo pesquisa do Ibope, 62% dos gaúchos são favoráveis ao impeachment de Yeda. Relatora pede arquivamento Enquanto a oposição busca forças nas ruas, a base governista de Yeda aproveita a maioria na Assembleia Legislativa para barrar a possibilidade de impeachment. A Comissão Especial para analisar o pedido de afastamento também é composta majoritariamente pelos defensores da governadora. O deputado Pedro Westphalen (PP), líder do governo, foi eleito para a presidência da Comissão, e a rela-

Crise adiada

Manifestação em Porto Alegre pede o impeachment da governadora Yeda Crusius

tora é a deputada Zilá Breitenbach, líder da bancada do PSDB. Sem nenhuma reunião, nem audiência, como pediam os deputados da oposição, a relatora já encaminhou o pedido de arquivamento do impeachment. O parecer deve ser votado na Comissão na quinta-feira, 8, e 72 horas depois poderá ser votado em plenário pela Assembleia Legislativa. O Comitê pelo Impeachment pretende anunciar o resultado do plebiscito popular um dia antes da Comissão votar o relatório. “Como o governo tem maioria na Comissão Especial do impeachment, está dando como certo a negativa desse pedido. Então queremos ouvir a opinião do povo gaúcho e conferir se é a mesma da base governista na Assembleia”, explica a presidente do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul - Sindicato dos Trabalhadores em Educação (CPERS/Sindicato), Rejane de Oliveira. Fora da Assembleia, a governadora também aposta nos processos judiciais para coagir a oposição. No mês passado, Rejane de Oliveira e Celso Woyciechowski, presidente da CUT gaúcha, foram denunciados pela campanha publicitária contra Yeda. Agora, oito ações judiciais contra jornalis-

tas e empresas de comunicação foram movidas pelos netos da governadora, de 9 e 11 anos de idade (leia texto abaixo). Embates continuam na CPI Com a Comissão Especial controlada pelos yedistas, a oposição conta com a CPI da Corrupção para anunciar provas que fortaleçam o pedido de afastamento. Porém, nas últimas sessões, descumprindo um acordo anterior, os deputados do PMDB, PP, PSDB e PPS voltaram a retirar o quórum da sessão. A bancada de oposição, então, voltou a tornar públicos os depoimentos do processo do Ministério Público e da Polícia Federal que não estão sob sigilo de Justiça. Em um vídeo apresentado pela presidente da CPI, deputada Stela Farias (PT), o vice-governador Paulo Feijó (DEM) revelou a existência de uma “caixa 3” na campanha da governadora. “Campanha é um momento de fazer poupança. Tu não é deste ramo e está atrapalhando o processo”, teria dito a governadora tucana a seu vice. Segundo Feijó, uma doação da empresa Braskem teria sido desviada da campanha diretamente para o então marido de Yeda, Carlos Crusius. “Este dinheiro

foi um dos que não apareceu na campanha. Os recursos trazidos pelo Chico Fraga e o dinheiro que o Lair Ferst emprestou ou intermediou também não entraram no caixa. Talvez apenas 10%. O resto desapareceu”, afirmou o vice-governador aos procuradores. Na segunda-feira, 5, no primeiro depoimento à CPI, a delegada de polícia Estela Máris Simon, ex-presidente do Detran, admitiu que pelo menos dois secretários estaduais – da Administração (Elói Guimarães) e da Transparência (Carlos Otaviano Brenner de Moraes) – agiram em defesa dos interesses da empresa Atento, que cobrava uma dívida de R$ 16 milhões do governo gaúcho, cujo valor era questionado pela ex-presidente. A delegada também confirmou que a empresa pertence a Carlos Ubiratan Santos, também ex-presidente do Detran e ligado ao deputado José Otávio Germano (PP). Em seguida, a Comissão ouviu outro ex-presidente da autarquia, Sérgio Buchmann, que confirmou que o secretário adjunto da Administração, Genilton Macedo Ribeiro, exigiu que evitasse a imprensa e que a governadora estava no centro da disputa pelo controle da propina.

ANÁLISE

A covarde vilania da governadora tucana Reprodução

Dona Yeda e dona Tarsila instrumentalizaram torpemente os dois pequenos familiares como escudo de defesa Cristóvão Feil VILANIA SEM LIMITES. Covardia sem igual. É o que comete a governadora Yeda e a sua filha, Tarsila, com os netos e filhos, respectivamente. Ambas colocaram dois menores – 9 e 11 anos de idade – como autores de oito ações judiciais contra jornais e jornalistas. Os jornais são: Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Zero Hora. Os jornalistas são: Marco Aurélio Weissheimer (do blog RS Urgente), Ricardo Noblat (O Globo) e André Machado (grupo midiático sulino RBS). O ato é legal, mas moralmente frágil. O núcleo argumentativo da ação da governadora Yeda alega que os netos sofreram constrangimentos múltiplos e que por isso tiveram melindrados os seus direitos fundamentais de criança. Ora, caso o legal e legítimo direito de reunião do Centro dos

Defensor dos interesses dos banqueiros privados e do capital financeiro internacional, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, já entrou na onda do “fim da crise econômica” para iniciar nova escalada nas taxas de juro. Todo mundo sabe que o juro alto praticado no Brasil é mecanismo de transferência de renda dos trabalhadores – via cofres públicos – para os especuladores financeiros. Alguém duvida?

Professores do Estado do Rio Grande do Sul - Sindicato dos Trabalhadores em Educação (CPERS/Sindicato), na rua Araruama em 16 de julho último, tenha causado – em segundo plano – os alegados danos psicológicos a dois menores (sujeito ainda à devida perícia profissional especializada), por que mesmo a própria governadora, avó extremosa, e a sua filha, mãe amantíssima, cuidaram de conduzir – de maneira industriosa e cerebral – os referidos menores à frente da residência com o intuito subjetivo de escudar-se atrás dos mesmos? Mais: por que valer-se do recurso à tutela de direitos de crianças, tornando os menores autores da presente ação judicial, se os mesmos ainda estão vincados pelo trauma sofrido de “forma tão bárbara e selvagem” na infausta data de 16 de julho último? Por que insistir no submetimento dos menores à exposição pública continuada e insalubre, mesmo que em nome da reparação de direitos esbulhados? Em julho, dona Yeda e dona Tarsila instrumentalizaram torpemente os dois pequenos familiares como escudo de defesa – na falta de argumentos políticos e morais mais robustos – para simbolicamente posarem de vítimas de uma manifestação pública legal e legítima do movimento social de funcionários do Estado. Agora, com a presente ação ju-

Durante o primeiro ano da crise econômica, até o final de agosto, o BNDES liberou R$ 98 bilhões em financiamentos para agropecuária, indústria, comércio e empresas de infraestrutura (usinas, estradas, saneamento). É claro que essa injeção de dinheiro barato contribuiu para dinamizar esses setores e empurrar com a barriga eventual agravamento da crise. Quem garante que a bolha não vai estourar logo mais?

Partido destruído

Parece piada de mau gosto, mas não é: o presidente da mais poderosa entidade de empresários do Brasil, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, acaba de se filiar ao Partido Socialista Brasileiro, o mesmo que abriga Ciro Gomes, Gabriel Chalita e outros personagens estranhos a qualquer luta em defesa do socialismo. É pena que a sigla histórica do PSB tenha sido jogada na lata do lixo.

Enem furado – 1

O jornal O Estado de S. Paulo deu um “furo” de reportagem no vazamento da prova do Enem, mas teve o cuidado de não citar na matéria o nome da gráfica Plural, onde pode ter ocorrido o crime – com sérios danos a 4 milhões de jovens e ao Ministério da Educação. O “lapso” do jornal foi, na verdade, uma cortesia com a empresa do concorrente Folha de S.Paulo, que é sócia da gráfica suspeita. Uma postura de classe!

Enem furado – 2

Por sua vez, o jornal Folha de S.Paulo entrou no assunto no dia seguinte e não escondeu que a sua empresa é sócia da gráfica Plural, a qual nega a responsabilidade pelo vazamento da prova do Enem. Como a operação toda estava a cargo de empresas privadas, com a obrigação de garantir o sigilo do material até o exame, a Folha tentou criar um bode expiatório para o caso: a ausência de proteção da Polícia Federal. Pode?

Atraso político

Contrário ao ingresso da Venezuela no Mercosul, o parecer do senador Tasso Jereissati, do PSDB-CE, expressa o mais arcaico pensamento da direita brasileira e seu compromisso com o que existe de mais reacionário na América Latina. Será uma grande vergonha para o Brasil se o Senado não adotar uma posição diferente da do “coronel” cearense. Virar as costas aos países vizinhos é coisa do colonialismo. Chega!

Esclarecimento

A governadora e sua filha usam os menores como escudos

Na falta de argumentos políticos e morais mais robustos, a governadora usa seus netos para posar de vítima de uma manifestação pública legal e legítima do movimento social de funcionários do Estado dicial, insistem com a mesma estratégia vil e imoral, mas desta vez instrumentalizando-os como ferramenta de ataque – ou odiosa vindita – a movimentos sociais, jornais e jornalistas, que apenas cumpriam um direito constitucional – o de informar ao Rio Gran-

de do Sul e ao Brasil que a governadora Yeda carece de condições mentais e morais para continuar no cargo que ocupa. Cristóvão Feil é sociólogo e editor do blog Diário Gauche: www.diariogauche.blogspot.com.

Várias entidades sindicais e de defesa dos direitos humanos protocolaram pedido na Procuradoria da República em São Paulo, dia 29 de setembro, para investigar a morte de Virgílio Gomes da Silva, militante político da esquerda que foi preso, torturado e assassinado pelos órgãos de repressão durante a ditadura militar. O corpo de Virgílio não foi encontrado até hoje, e os assassinos continuam impunes.

Anticapitalista

Documento assinado por dezenas de intelectuais e militantes das esquerdas lança a candidatura de Plinio Arruda Sampaio para a presidência da República, em 2010. Diz o documento: “O povo tem o direito de conhecer formas não capitalistas de sair da crise, por isso nos propomos a construir as bases de um autêntico projeto socialista para o Brasil.” Primeiramente precisa ser aprovado na convenção do Psol.


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brasil

Fiscalização da Anvisa na Bayer e na Syngenta revela irregularidades Bayer/Divulgação

DENÚNCIA Cerco da Anvisa sobre transnacionais revela produtos comercializados com composição nociva à saúde Pedro Carrano de Curitiba (PR) NO ESPAÇO DE uma semana, duas entre as maiores corporações mundiais do ramo de agrotóxicos tiveram produtos interditados. A primeira foi a Bayer, transnacional de origem alemã. A unidade de produção de Belford Roxo (RJ), uma das três da corporação no Brasil, teve 1 milhão de litros de agrotóxicos autuados pelo período de três meses devido à composição irregular encontrada em onze produtos, nocivos à saúde humana. Caso sejam comprovadas as irregularidades, a Bayer poderá pagar multa de até R$ 1,5 milhão. Logo depois, em São Paulo, mil toneladas de agrotóxicos, com data de fabricação e validade alteradas, foram encontradas na fábrica da suíça Syngenta Seeds, em Paulínia. De acordo com organizações especializadas no tema, esse expediente é comum na produção e comercialização dos agrotóxicos, que hoje circulam com alterações nos rótulos e nas composições. O operativo de fiscalização nas duas empresas foi feito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com o apoio da Polícia Federal. Ao todo, quatro empresas foram autuadas neste ano, duas delas no Paraná (veja mais abaixo). Ausência de tarjas de identificação de produtos, etiquetas arrancadas e falta de controle das impurezas de um produto são algumas das faltas graves encontradas pela Anvisa nas instalações da Syngenta. Um dos produtos necessitava da tarja de risco mediano, encoberta com outro tipo de embalagem. As empresas rompem o que foi determinado. Na avaliação da gerente de normatização e avaliação da Anvisa, Letícia Rodrigues da Silva, duas possibilidades são postas: ou o produto não contém a dosagem para ser eficaz no uso ou então possui uma dosagem de um elemento superior ao que havia sido registrado e concedido oficialmente. Este é o pior cenário, pois o aumento da toxicidade do produto pode causar danos a trabalhadores e ao povo em geral. “Chegou um ponto que havia incoerências entre o que havia sido informado e o que estava sendo informado agora; na obtenção de uma informação pós-registro, vimos componentes diferentes. Foi nesse sentido que se passou a buscar fiscalização: de um lado tem uma pressão por parte de alguns setores para se colocar mais produtos no mercado; por outro há também uma pressão por parte da sociedade organizada, de organizações não-governamentais, para que haja maior controle. Temos buscado equilíbrio, autorizando produtos, mas também controlando seus riscos,”, explica Letícia Rodrigues da Silva. Realidade exposta

O operativo na realidade deflagra um cenário inquietante: o crescimento no Brasil do consumo de agrotóxicos, hoje o principal usuário mundial. O Censo Agropecuário 2006, divulgado pelo IBGE, informou que 56% das propriedades brasileiras usam venenos sem assistência técnica. Hoje, são consumidas no Brasil cerca de 713

Fábrica da Bayer localizada no Parque Industrial de Belford Roxo, no Rio de Janeiro

Relatório recente da Anvisa revelou que 15% dos alimentos pesquisados pela agência apresentaram taxa de resíduos de veneno em um nível prejudicial para a saúde milhões de toneladas, uma média de 3,7 mil quilos por pessoa. Então, os lucros das dez corporações que detêm o monopólio do setor não são à toa. O grupo Bayer, por exemplo, atuante nos setores de saúde, agrotóxicos e materiais, alcançou R$ 3,7 bilhões em vendas em 2008, o que representa um crescimento de 21% em relação a 2007, segundo dados da própria empresa. Na outra ponta, a do trabalhador que se alimenta, relatório recente da Anvisa revelou que 15% dos alimentos pesquisados pela agência apresentaram taxa de resíduos de veneno em um nível prejudicial para a saúde. O uso de alguns venenos vem sendo retomado – caso do 2,4D, um dos compostos do agente laranja, veneno com alto índice de contaminação, usado na Guerra do Vietnã. O Brasil tem sido o depósito de produtos cujo uso é proibido noutras fronteiras. Um exemplo é o Paration. Desde que foi banido da China (2006), a importação brasileira do produto duplicou de 2,3 milhões de quilos para 4,6 milhões de quilos em 2007. Um outro exemplo: o Brasil importava 82 toneladas do produto Paraquat em 2006, ano em que ele foi proibido pela União Europeia sob a suspeita de ser cancerígeno. Em 2008, o país comprou uma quantidade 311 vezes maior. Entre os que vendem tal produto, está a Dinamarca. Só que lá o Paraquat não é permitido.

Insatisfação

A Anvisa é o órgão responsável pela avaliação toxicológica dos agrotóxicos. A avaliação ambiental e a concessão de registro cabem ao Ibama e ao Ministério da Agricultura, respectivamente. A Anvisa é uma agência reguladora, vinculada ao Ministério da Saúde, criada em 1999, em meio ao período neoliberal de privatizações e criação de organismos fiscalizadores. Sujeita a pressões dos monopólios do ramo, o atual operativo de fiscalização da Bayer e da Syngenta é avaliado como um importante avanço político, a partir da pressão de organizações civis e movimentos sociais. “A Anvisa durante muito tempo não se manifestou sobre os agrotóxicos e agora tem se manifestado sobre os prejuízos à saúde. O simples contato com o agrotóxico traz o aumento dos casos de câncer, afeta o trabalhador rural, o consumidor e o meio ambiente. As corporações colocam essas questões para segundo plano, priorizando questões econômicas em detrimento de questões ambientais e de saúde”, avalia Juliana Avanci, da organização Terra de Direitos, localizada em Curitiba (PR). Desde o começo deste ano, há disputas judiciais encabeçadas pela indústria de agrotóxicos contra a Anvisa. Uma decisão proíbe o órgão de divulgar os resultados de estudos sobre o acefato, utilizado na fabricação de 19 agrotóxicos, aplicado em cultivos como o algodão, cacau, café, cana-de-açúcar, soja, batata, brócolis, couve-flor, cravo, feijão e tomate. “A atual fiscalização é um avanço político e estratégico no sentido de afrontar a hegemonia das transnacionais; abre precedente e é um órgão público se posicionando”, analisa Avanci. No caso da Bayer, não é a primeira derrota sofrida pela transnacional. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou a corporação, em primeira instância, a indenizar produtores de soja no Rio Grande do Sul – Estado brasileiro recordista no uso de venenos. No mesmo sentido, no Mato Grosso, cerca de 40 produtores a estão processando devido ao uso de herbicida sem resultado na safra de soja.

Em Cascavel, herbicida tem aumento de mais de 400% no consumo Uso do agrotóxico não tem justificativa técnica, afirma Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do Paraná de Curitiba (PR) De acordo com Adriano Riesemberg, do Departamento de Fiscalização da Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do Paraná (Seab), o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos, superando países dependentes desses insumos, como é o caso dos Estados Unidos. Apenas no Paraná, foram comercializadas 80 mil toneladas de veneno em 2008. O aumento do uso de agrotóxicos é sensível em regiões como a de Cascavel, polo do agronegócio e da substituição dos cultivos comuns por transgênicos. Nas lavouras de soja transgênica, houve aumento na comercialização dos herbicidas nas seguintes porcentagens: glifosato, com 45,56%; 2,4-D, com 112,36%; e Paraquat, com 416,09% – tudo isto mesmo não havendo ampliação na área cultivada, de acor-

A Seab informa que coletou 400 análises em diferentes propriedades agrícolas no Estado, entre as quais perto de 17% das amostras continham substâncias tóxicas em excesso do com dados da Secretaria, entre 2005 e 2008. A partir da fiscalização nacional sobre a Bayer e Syngenta, aos governos dos estados cabe fiscalizar a circulação das mercadorias e autuá-las, pedindo interdição cautelar, enquanto a agência nacional pode interferir na produção. No Paraná, tal ação aconteceu recentemente nas unidades produtivas das empresas Yara e Milenia, com interdição de lotes de produtos. A Seab informa que coletou 400 análises em diferentes propriedades agrícolas no Estado, entre as quais perto de 17% das amostras continham substâncias tóxi-

cas em excesso. Na opinião de Riesemberg, o aumento não se justifica, a não ser por questões de marketing e mercado. “Não se justifica tecnicamente. A prática de combater pragas com agentes da própria lavoura caiu no esquecimento, o controle da praga da soja justifica-se apenas se a praga interferir no nível econômico. Depende também do clima e da fase da soja. Antes do florescimento da planta, a lagarta pode atacar a folha da planta, pois não tem perda nenhuma”, exemplifica. Na avaliação dele, essa enxurrada de químicos arrasta latifundiários e pequenos agricultores. (PC)

Mais informações o site da Anvisa, a agência apreendeu 4,5 milhões de litros de agrotó• Segundo xicos adulterados apenas em 2008. As fiscalizações ocorrem, principalmente, quando são identificados indícios de irregularidades nos produtos acabados.

feita em 2008 pela Anvisa revelou que 64% das amostras de pimentão, • Análise 36% de morango, 33% de uva e 30% de cenoura vendidos em supermercados tinham agrotóxicos acima do recomendável.

maiores empresas do ramo: Syngenta (Suíça), Bayer (Alemanha), Basf (Ale• Dez manha), Monsanto (EUA), DuPont (EUA), Dow (EUA), Makhteshim (Israel), FMC (EUA), Nortox (Brasil), Iharabras (Japão), Cheminova (Dinamarca). (Fonte: Agrotóxicos, Centro de Documentação e Informação – Coordenação de Publicações, Brasília, 2009)

acordo com o Censo Agropecuário de 2006, realizado pelo IBGE, práticas al• De ternativas – como controle biológico (67 mil, ou 1,3%); queima de resíduos agrícolas e de restos de cultura (45 mil, ou 0,9%); uso de repelentes, caldas, iscas etc. (405 mil, ou 7,8%) –, que poderiam gerar redução no uso de agrotóxicos, também são pouco utilizadas.


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brasil Gustavo Mehl

Sangue nas calçadas, silêncio nos gabinetes RIO DE JANEIRO Na Maré, disputas territoriais de narcotraficantes, com conivência policial, levam terror diário aos moradores Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) PARA ELES NÃO era um chão novo, nem aquela era uma história distante. As mais de mil pernas que marchavam pela Maré na tarde de 20 de setembro conheciam aquele chão como poucos. As cerca de 600 pessoas que clamavam por paz sobre o asfalto sujo de sangue conheciam cada uma das histórias trágicas que se fizeram comuns nos últimos quatro meses. Sentiam na pele todas as suas dores. Entre eles, nenhum jornalista da mídia comercial, nenhum policial, nenhum secretário de governo e apenas um parlamentar. O que poderia ser um roteiro de um filme triste nada mais é do que a vida desse lugar. Enquanto os moradores se entregavam à fúnebre e invisível procissão, três cidadãos do bairro eram assassinados. Apenas mais três. O ato “Outra Maré é possível” era, até aquele momento, somente o capítulo último de uma tragédia tão próxima quanto inverossímil. O Complexo da Maré é composto por 16 comunidades entre a avenida Brasil, a Linha Amarela e a Linha Vermelha. Três facções do tráfico e a milícia dividem o domínio da região. Ali, tiroteio e disputa de território fazem parte do cotidiano há anos. Mas, a partir de maio, quando traficantes do Terceiro Comando Puro (TCP) tomaram a Vila dos Pinheiros da facção Amigo dos Amigos (ADA), os conflitos armados passaram a ser diários, durante todos os períodos do dia. Ninguém tem noção do número de vítimas. Sabe-se apenas que já ultrapassou meia centena. Esse lugar não fica na África, nem no Oriente Médio. Está no coração do Rio de

Cerca de 600 pessoas participaram do ato “Outra Maré é possível”, realizado no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro

Janeiro, a alguns metros da Baía da Guanabara. Mais do que a notória conivência da polícia, impressionam a omissão do governo estadual e da mídia comercial. “O desprezo da autoridade pública com o pobre, o marginalizado, é também uma forma de violência. Se estivesse acontecendo em qualquer bairro de classe média, teria outra repercussão”, afirma o deputado federal Chico Alencar (Psol), único parlamentar presente no ato. O comportamento de governo e mídia tem dado margem a conjecturas tenebrosas. “Talvez seja mais do que simples omissão”, afirma Camilla Ribeiro, da Justiça Global. Ganha corpo na cidade a hipótese de que se estaria esperando a situação atingir nível insuportável para agir. As duas formas prováveis de atuação policial, tanto a megaoperação quanto a “pacificação”, teriam problemas sérios segundo organismos de direitos humanos. “Quando entrarem, vão chamar a mídia para acompanhar. Querem ser tomados pela população como salvadores da pátria”, afirma Flavia Tavares*, moradora da Vila do João. O Complexo do Alemão viveu situação semelhante em 2007. Por dois meses, facções travaram disputas de território com conivência policial e omissão governamental. Uma megaoperação tomou conta do bairro, em noite trágica: 19 mortos. Recentemente, em entrevista ao jornal O Globo, os comandantes admitiram a ineficácia da operação. Inspiração colombiana Entretanto, a chamada “pacificação” é a hipótese mais provável. A Maré está na lista das regiões da cidade a serem “pacificadas”. Inspirada na

“Nesse conflito, tinha policial que invadia casa de moradores. Invadiam, dormiam, comiam. Agiam como o tráfico”, denuncia morador política de segurança colombiana, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) funcionam muito mais como estratégia de controle social. Sem inviabilizar o tráfico, transformam as favelas em territórios sitiados. Não são poucos os casos de abuso de autoridade nas comunidades “pacificadas”. Como ocorrem em regiões anteriormente muito afetadas pela criminalidade – caso da Maré hoje –, encontram apoio em parte dos moradores. Acostumada à coerção e à restrição de liberdade, veem vantagens no domínio policial. Por isso a desconfiança de que a omissão não se dê por acaso. Em junho, no encontro da Conferência Livre de Segurança Pública na Maré, por exemplo, os tiroteios misteriosamente foram interrompidos. Havia diversas autoridades. Após o seminário, as trocas de tiro voltaram. Durante a primeira quinzena dos conflitos, oito escolas e cinco creches fecharam, e 10 mil alunos ficaram sem aulas. O movimento do comércio é interrompido com frequência. As missas noturnas da paróquia São José Operário, a principal da região, foram interrompidas. Segundo o padre João Carlos, a interrupção se deu “devido à falta de fiéis”, com redução de 20% a 25%. As milhares de pessoas que trafegam pelas grandes avenidas não têm noção do que ocorre no Complexo. Os dois caveirões estacionados, um próximo à avenida Brasil, o outro

próximo à Linha Amarela, dão certa sensação de controle. “É para que as pessoas de fora achem que dentro da Maré está tudo bem”, conta Elias Passos*, morador de Salsa e Merengue. Aluguel do Caveirão Elias, que em outros anos viu até bandido jogando futebol com cabeça, denuncia a conivência policial. “Nesse conflito, tinha policial que invadia casa de moradores. Invadiam, dormiam, comiam. Agiam como o tráfico”, diz. Na invasão de maio que iniciou os conflitos (ver box), há denúncias de que os traficantes da TCP teriam alugado três caveirões por R$ 130 mil. “Minha vizinha viu os caras do Bope comemorando no bar. Onde a gente

Violência crescente Os assassinatos tendem a se agravar. O ADA teria uma lista de pessoas a morrer, caso revertam a desvantagem atual na disputa territorial (ver box). As vítimas prioritárias seriam moradores submissos à facção invasora e à polícia, além de ex-viciados determinados a abandonar as drogas. Um morador conhecido como Russo morreu quando foi obrigado a transportar um corpo em sua kombi. A facção rival viu e o matou. Moradores da Vila do João dizem que só sabem qual facção está contro-

lando a comunidade quando acaba o tiroteio, após ver a sigla pichada nas paredes. Algumas das mais de 100 Ongs que trabalham na Maré – símbolo da ausência do Estado no bairro – já admitem a “pacificação”. “Quando a gente chega em casa, nunca sabe o que está acontecendo. E ainda é obrigado a dar bom dia e a sorrir [para o traficante]. Você sabe que de manhã vai ter um cadáver na sua porta. Ou sabe que tem gente na sua laje com granada. Quantas vezes eu recebi ligação à noite dizendo para eu procurar outro lugar para dormir! A gente quer ser reconhecido como cidadão. A luta é pelo direito a uma vida que a gente ainda não conhece. Tem finais de semana em que o tiroteio começa na sexta e só termina no domingo. O desgaste emocional é muito grande. Aquilo fica na cabeça 24 horas. Enlouquece qualquer um”, denuncia Elias, com a voz marejada. *Nomes fictícios.

Maré, mortes emblemáticas da tragédia carioca Dois dos mais trágicos assassinatos recentes da polícia no Rio aconteceram na Maré. Em dezembro de 2008, o jovem Matheus Rodrigues, de oito anos, saía de sua casa para comprar pão. Foi atingido no rosto por um tiro de fuzil. Morreu na porta de sua casa. Os policiais chegaram a divulgar que o menino de oito anos trabalhava para o tráfico. A perícia chegou ao local do crime quatro horas depois. Estavam sem qualquer utensílio, de máquina fotográfica a caneta. Os moradores, então, documentaram por si mesmos a tragédia. A foto da mão do menino segurando uma moeda de um real transformou-se em símbolo da luta por direitos humanos. Quatro meses depois, em abril, o jovem Felipe Correia, de 17 anos, conversava com amigos a cerca de dez metros de sua casa. Quatro policiais sem uniforme dispararam contra o grupo, acertando em cheio a cabeça do garoto. A morte foi instantânea. Na manifestação que se seguiu, policiais do 22° Batalhão da Polícia Militar jogaram um veículo sobre os manifestantes. O assassino de Felipe seria da unidade (o aluguel dos Caveirões também teria sido feito por eles). As mães de Matheus e Felipe, Gracilene e Gilmara, descobriram que eles faziam aniversário no mesmo dia, 20 de setembro. A data foi escolhida para o ato “Outra Maré é possível”. (LU)

O mapa do conflito Nas 16 comunidades que compõem o Complexo da Maré há, pelo menos, 135 mil moradores (censo de 2000). O controle político, econômico e social das favelas é exercido por três facções – Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA) – e milícia. Os conflitos recentes começaram na madrugada de 30 de maio. Traficantes da Baixa do Sapateiro e do Morro do Timbau, ambos pertencentes ao TCP, uniram-se para tomar as “bocas” da Vila dos Pinheiros, então da ADA. Teriam alugado três caveirões da polícia. Desconfia-se que policiais tenham participado da invasão. Nos sangrentos dias seguintes, conseguiram tomar, além da Vila dos Pinheiros, Salsa e Merengue. Na sequência dos conflitos, conseguiram tomar também a Vila do João da ADA, que ficou então restrita ao Conjunto Esperança. Embora tivessem muitas “baixas” no conflito, havia na comunidade narcotraficantes oriundos das outras três tomadas pelo TCP. Com essa concentração de “combatentes”, a ADA conseguiu retomar a Vila do João. Favela que mais sofreu nos conflitos, a Vila do João pertenceu às duas facções por diversas vezes. Enquanto isso, na fronteira entre Nova Holanda e Baixa do Sapateiro, o CV faz pequenas in-

chegava, nessa época, se falava nisso”, conta Elias. O caveirão, aliás, é chamado pelo governo de “pacificador” ou, na ironia popular, de “passae-fica-a-dor”. O secretário de segurança pública, José Mariano Beltrame, desqualificou a denúncia porque teria sido feita em sigilo. Contraditoriamente, o próprio secretário já havia ressaltado a importância de denúncias anônimas.

cursões diárias. Chegou a tomar a principal rua, Dezessete de Fevereiro, e outras próximas. Entram, atiram, e voltam. Às vezes ferem alguém, às vezes matam. Ora o TCP reage, ora o Caveirão entra. “Os moradores nessa fronteira não vivem”, afirma Rafael Adão*, morador da Dezessete. As milícias ocupam apenas a região do piscinão de Ramos. Colocaram portão na favela e cobram por todo tipo de serviço, enriquecendo muito mais que o tráfico – o que pode acarretar conflitos futuros. A ADA foi criada por Celsinho da Vila Vintém, preso há anos em Bangu. Quando morava na Maré, era aliado do Terceiro Comando (TC). Em “celebração” ao primeiro ano dos atentados de 11 de setembro, Fernandinho Beira-Mar promoveu uma rebelião no presídio em 2002. Celsinho teria facilitado o acesso do CV à galeria do TC, que resultou em matança generalizada. A partir desse episódio, a ADA e o TC romperam as relações de cooperação que mantinham. Surgia o Terceiro Comando Puro (TCP), comandado por Ney da Conceição Cruz, o Facão, o mesmo que invadiu e tomou metade do território da ADA na Maré. (LU) *Nome fictício.


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américa latina

O retorno de Zelaya é quase certo Reprodução

HONDURAS Cem dias depois de sofrer golpe de Estado, presidente deve retornar ao poder; porém, com restrições Dafne Melo da Redação “NÃO HÁ DÚVIDA de que [Manuel] Zelaya vai voltar à presidência”. Essa é a opinião de Nildo Ouriques, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Os acontecimentos das últimas semanas vêm mostrando que a restituição de Zelaya parece, de fato, bastante provável. Aos poucos, a ditadura golpista liderada por Roberto Micheletti parece contar cada vez mais com uma base de apoio menor, recuando posicionamentos anteriores. Se, no começo da recente crise desencadeada após a chegada de Zelaya à embaixada brasileira em Tegucigalpa, o tom do discurso era de intransigência e ameaças, duas semanas depois, Micheletti tem mostrado mais “disposição” para dialogar. Após não permitir a chegada de membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), os golpistas aceitaram dialogar com a comissão que deve chegar ao país no dia 7. Micheletti também suspendeu, no dia 5, o estado de sítio que vigorava no país desde o dia 27 de setembro e admitiu, em entrevista, que os responsáveis pela prisão de Zelaya, no dia 28 de junho, deveriam ser punidos, embora sem citar nomes. Já o governo brasileiro segue apoiando Zelaya. No dia 6, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a pedir que Micheletti renuncie. “Para nós, a solução em Honduras é fácil: se as partes envolvidas no golpe deixarem o poder e restituírem o presidente Zelaya, então, as eleições seriam realizadas em novembro e teríamos resolvido o problema”, declarou. Jogo de cena O deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), que esteve em Tegucigalpa entre os dias 30 de setembro e 2 de outubro, em uma missão parlamentar, também acredita que o retorno de Zelaya parece ganhar mais concretude, mas alerta para o fato de que o governo golpista “oscila muito” e pode retardar ou continuar impedindo a restituição do governo legal. Zelaya manifestou também sua desconfiança em relação à ditadura e relativizou a permissão para a entrada da OEA. “Não tenho nenhuma confiança [neles], nem credibilidade, me parece que é um jogo a mais, ao qual a comunidade internacional não de-

Enfraquecida, ditadura golpista pode permitir que Zelaya retorne ao governo do país

“Se houve irregularidades em seu governo, deveriam ter buscado um processo legal de diálogo, e não expulsá-lo do país a toque de baioneta”, avalia Ivan Valente ve se prestar”, disse à imprensa. O mandatário enfatizou que é essencial sua participação nessas negociações para que sejam bem-sucedidas. Os movimentos sociais hondurenhos denunciam que, apesar da suspensão do estado de sítio, as manifestações ainda estão sendo reprimidas, e as rádios e canais de TV fechados não foram reabertos, a exemplo da rádio Globo e do canal 36, ambos de Tegucigalpa. Segundo Ivan Valente, o clima na capital é de tensão, embora não haja excessivo aparato policial nas ruas. “A cidade vive uma situação muito inusitada, que é a presença do governo golpista e do presidente legítimo no mesmo espaço”. Já perto da embaixada brasileira – que fica bem próxima à embaixada estadunidense –, afirma Ivan, há fortes barreiras policiais. Perda de apoio Nos últimos três meses, os golpistas foram gradativamente perdendo apoio dentro do país, o que se agravou com a chegada de Zelaya à capital. Empresários chegaram a apresentar uma proposta da volta de Zelaya ao país, embora com condicionantes bastante rígidas. Ivan Valente

diz que esse posicionamento mostra um recuo das classes dirigentes, mesmo que tímido. “O estado de sítio e toque de recolher gerou instabilidade e descontentamento dos comerciantes e industriais. O PIB do país caiu muito nos últimos três meses”, aponta. Analistas financeiros afirmam que o índice deve recuar pelo menos 6% em 2009. Já do ponto de vista do poder político, Valente conta que ainda há apoio de boa parte das instituições político-jurídicas do país. “Estivemos com [representantes do] órgão que aqui seria equivalente ao Supremo Tribunal Federal e com a mesa diretora do Congresso e eles ficaram o tempo todo tentando justificar o golpe de Estado”, conta. Entretanto, o deputado observa que a argumentação é falha. “O ponto principal é que um presidente de um partido conservador adotou medidas populares e por isso foi deposto. Se houve irregularidades em seu governo, deveriam ter buscado um processo legal de diálogo, e não expulsá-lo do país a toque de baioneta”, avalia. A oposição acusa Zelaya de tentar mudar a Constituição para se reeleger, versão reiterada cotidianamente pela imReprodução

Sem apoio, Micheletti está mais propenso ao diálogo

prensa corporativa brasileira. Entretanto, Zelaya propôs para o dia 28 de junho uma consulta popular extraoficial para verificar a possibilidade de, nas eleições de novembro, colocar uma urna extra em que seria feito um plebiscito sobre a instauração ou não de uma Assembleia Constituinte – e não um projeto de reeleição – para o ano seguinte. Como Zelaya já estaria fora do poder durante a Constituinte, a tal tentativa de um segundo mandato, na prática, além de uma invenção, seria impossível. Restrições Em entrevista ao jornal argentino Clarín, Roberto Micheletti não falou em tentativa de reeleição ao ser questionado do porquê do golpe. “Tiramos Zelaya por seu esquerdismo e corrupção. Ele foi eleito presidente como liberal, como eu. Mas se aproximou de Daniel Ortega, [Hugo] Chávez, [Rafael] Correa, Evo Morales”, e finalizou: “Foi para a esquerda, colocou toda aquela gente comunista [no governo] e nos preocupou”. Por isso, se as elites permitirem a volta de Zelaya, não permitirão que retome seus plenos poderes no que lhe resta de mandato – até 27 de janeiro de 2010. Para Nildo Ouriques, ele “voltará praticamente algemado”. Além disso, a restituição seria necessária também do ponto de vista dos interesses de Washington, que não vê com bons olhos a instabilidade que se criou no continente a partir do golpe, rechaçado por toda a comunidade internacional. “Se as eleições de novembro forem feitas com o governo golpista no comando, não seria um processo legítimo e manteria a instabilidade na região. Assim, a volta de Zelaya para reconduzir esse processo dará o verniz democrático necessário”, opina. Outra consequência apontada por Ouriques é o fortalecimento da diplomacia brasileira no continente. “Esse desfecho certamente dará um ponto positivo para o Brasil. A vitória dessa diplomacia tem um efeito bom para a política imperialista dos Estados Unidos, uma vez que enfraquece a diplomacia bolivariana, pois, se o Brasil não hostiliza Chávez, também não encaminha a integração”. Ivan Valente opina de forma diferente e acha que o não-envolvimento direto dos governos mais progressistas, sobretudo a Venezuela, foi prudente. “Isso só iria fomentar, nesse momento, mais resistência ao Chávez”, conclui.

BOLÍVIA

Bolívia publicará diário de Che escrito a punho MEMÓRIA Guerrilheiro foi assassinado pelo exército boliviano há 42 anos Vinícius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) O DIÁRIO ESCRITO pelo comandante Ernesto Che Guevara durante sua passagem pela Bolívia será publicado pelo governo de Evo Morales em uma versão facsimilar. De acordo com o ministro de Culturas boliviano, Pablo Groux, serão mil cópias “de uma réplica exata do que Che escreveu com seu punho e letra”. Groux afirmou que o caderno quadriculado e a agenda de anotações de Che, que

Desde a chegada de Evo Morales ao poder, o governo cubano mantém inúmeras ações sociais na Bolívia se encontravam guardados nos cofres do Banco Central da Bolívia em qualidade de segredo de Estado, foram digitalizados em 2008. Os livros serão distribuídos gratuitamente durante a 7a Reunião de Cúpula da Aliança Bolivariana para Nossa América (Alba), que acontecerá nos dias 16 e 17, em Cochabamba. O objetivo da publicação, que custará aproximadamente R$ 45 mil ao Ministério de Culturas, é abastecer bibliotecas públicas e instituições culturais dos países que integram a Alba. O diário começou a ser escrito no dia 7 de novembro de 1966, quando Che entrou na Bolívia para liderar um movimento insurgente e revolucionário no sudeste do país. Capturado no dia 8 de outubro de 1967, na guerrilha de Nancahuazú, pelo

Exército da Bolívia – com ajuda de agentes estadunidenses –, el comandante foi assassinado um dia depois, em uma escola da localidade de La Higuera, na província de Vallegrande, departamento de Santa Cruz. Solidariedade a Cuba O anúncio do lançamento do diário de Che aconteceu paralelamente à realização do 9o Congresso de Solidariedade a Cuba, em Vallegrande, entre os dias 2 e 4. Cerca de 300 pessoas, de organizações de trabalhadores sociais comunitários, familiares de estudantes bolivianos em Cuba e integrantes do movimento de solidariedade à ilha socialista dos nove departamentos do país, compareceram à região onde, por mais de três décadas, descansaram os restos mortais de Che e sua tropa. Além de prestar uma homenagem ao revolucionário argentino-cubano, o congresso também aprovou uma declaração final, na qual, em primeiro lugar, repudiam o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos à Cuba, mantido pela atual administração de Barack Obama. O documento convoca os povos de todo o mundo a realizarem ações concretas em apoio à resolução que será apresentada pelo governo cubano no próximo dia 28, durante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), pedindo o fim do bloqueio. Além disso, a declaração final do congresso pede que os cubanos Gerardo Hernández, René González, Ramón Labañino, Fernando González e Antonio Guerrero, presos há 11 anos nos Estados Unidos acusados de terrorismo, sejam libertados e enviados a Cuba. Desde a chegada de Evo Morales ao poder, o governo cubano mantém inúmeras ações sociais na Bolívia. Entre elas estão a aplicação do método de alfabetização “Yo, si puedo”, responsável por, em dezembro de 2008, consagrar a Bolívia como território livre do analfabetismo, e a Operação Milagre, que devolveu ou melhorou a visão de mais de 450 mil pessoas no país.


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áfrica

Dar voz às populações rurais Reprodução

AGRICULTURA Cerca de 20 milhões de hectares de terra foram cedidos a investidores nos últimos meses, principalmente na África. Face à amplitude do fenômeno, é invocada por muitos a necessidade de criar mecanismos de salvaguarda de modo a proteger os interesses das populações locais Redação do CTA SERÁ QUE ALGUM dia veremos homens de negócios africanos comprar milhares de hectares de terras cerealíferas férteis no Middle West americano ou na França, na região da Beauce, para satisfazer as necessidades crescentes em milho e em trigo do seu continente? A ideia nos faz sorrir. No entanto, tal não está tão longe da realidade, na medida em que cada vez há mais países e empresas privadas que compram ou arrendam terras de cultivo nos quatro cantos do mundo, a fim de satisfazerem as suas necessidades estratégicas e de garantirem os seus aprovisionamentos. Estamos diante de um fenômeno de grande amplitude. Segundo os analistas do Instituto Internacional de Pesquisa em Políticas Alimentares (IFPRI), envolve entre 15 e 20 milhões de hectares, ou seja, quase o equivalente à superfície total cultivada na Alemanha, estimando-se os investimentos efetuados entre 15 e 21 milhões de euros. Esse fenômeno ganhou forma com as crises alimentar e financeira de 2007 e 2008. Essas crises fizeram com que alguns países, totalmente ou em grande parte dependentes das importações para a sua alimentação, ficassem conscientes dos riscos ligados a um mercado mundial, cada vez mais flutuante e incerto, sujeito à escassez.

Por conseguinte, esses países procuram garantir os seus aprovisionamentos adquirindo terras estrangeiras, de forma a alimentarem as suas populações. Entre os maiores compradores figuram aqueles cujas condições geoclimáticas impedem o seu desenvolvimento agrícola. É o caso da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos e do Qatar. Quando da subida em flecha dos preços dos produtos alimentares em 2007, esses três países assistiram, com apreensão, a uma escalada da ira em muitos dos trabalhadores estrangeiros, devido ao aumento brutal do preço do arroz. Outros países, como China, Coreia do Sul e Índia, não possuem terra disponível suficiente, e as suas necessidades crescentes levamnos a “deslocalizar” a sua produção agrícola. Essa corrida às terras aráveis também tem a sua origem na crise financeira de 2008. A nova procura, criada nomeadamente pelos agrocombustíveis, e as limitações impostas ao desflorestamento e à urbanização, fizeram da terra um bem muito mais raro e cobiçado. Os investidores, confrontados com os mau desempenho dos investimentos tradicionais – mercados de ações, matériasprimas etc. – aperceberamse de que as terras agrícolas constituíam um investimento seguro e rentável. Depois de 2008, assiste-se, assim, à multiplicação dos fundos

de investimento especializados na aquisição de terras. Em 2008, o fundo Emergent Asset Management (EAM), especializado em mercados emergentes, criou, com a firma sul-africana de produtos agrícolas Grainvest, o African Land Fund (ALF) para adquirir terras na África austral. Em grande escala

A discrição que envolve essas transações fundiárias torna bastante difícil saber quem adquiriu o que e onde. Mas os relatórios publicados recentemente sobre o assunto permitem fazer uma ideia da amplitude do fenômeno, que afeta sobretudo a África (Etiópia, Gana, Madagascar, Mali, Uganda, Sudão), mas também a Ásia e, desde há pouco, a Europa do Leste (Ucrânia). Muito recentemente, a República Democrática do Congo teria cedido 2,8 milhões de hectares à China, que aí irá realizar a maior exploração mundial de óleo de palma, depois de haver cedido 10 milhões à África do Sul. Madagascar evidenciou-se em finais de 2008 com “o caso Daewoo”: a firma sul-coreana pretendia arrendar 1,3 milhão de hectares, ou seja, a metade das terras aráveis da ilha, a fim de aí produzir milho e óleo de palma para o mercado coreano. Esse negócio suscitou uma grande comoção, mesmo além-fronteiras, e acentuou a impopularidade do antigo presidente. Uma das primeiras medidas

Plantação de arroz no Mali, onde investidores líbios arrendaram 100 mil hectares

Os investidores, confrontados com o mau desempenho dos investimentos tradicionais – mercados de ações, matérias-primas etc. aperceberam-se de que as terras agrícolas constituíam um investimento seguro e rentável do seu sucessor foi denunciar esse contrato. No Mali, o Malibya, um fundo de investimento líbio, arrendou 100 mil hectares na zona do Office du Niger para aí cultivar arroz. A Líbia já tinha obtido anteriormente 15 mil hectares da Libéria, igualmente destinados à orizicultura. O que os governos esperam é que essas cessões passem a arrendamentos a prazo muito longo (99 anos). Tais transações dão lugar (embora nem sempre seja o caso) ao pagamento de rendas anuais ou ao desembolso de uma soma, de uma só vez, no momento do acordo. Os investidores, por vezes, empenhamse para que a região se beneficie com obras de infraestrutura (estradas, sistemas de regadio, centros de saúde e escolas) e na transferência de tecnologias agrícolas. Para finalizar, a introdução de grandes explorações modernas pode constituir uma fonte de empregos locais e atuar como motor de desenvolvimento de setores da produção. Contudo, as negociações desses acordos provocam desconfiança e suscitam interrogações. A aquisição de terras por estrangeiros pode entrar em choque com a mentalidade e as tradições locais. Receia-se que se criem grandes domínios fundiários, como na América Latina ou Central, explorados por empresas multinacionais, para as quais os pequenos camponeses, despojados das suas terras, trabalhem como assalariados agrícolas. Por outro lado, a maioria dos estudos ressalta que a assinatura desses contratos está envolta numa certa opacidade: os camponeses e as populações envolvidas não são nem consultados, nem associados

às transações. As organizações camponesas são desfavoráveis ao princípio dessas cessões. “Liquidam as terras africanas. Constrangem milhares de pequenos produtores à miséria. Isto é intolerável. A terra deve continuar a ser um patrimônio da comunidade em África”, afirma o presidente do comitê executivo da Rede das Organizações Camponesas e Produtores Agrícolas da África Ocidental (ROPPA), Ndiogou Fall, que apela a uma concertação entre os estados, os produtores e os investidores estrangeiros. “Temos necessidade é de melhorar em termos de produção alimentar. Poderemos chegar lá se facultarem os meios aos agricultores locais, dando-lhes as melhores terras cultiváveis”, acrescenta Victor Mhone, da Civil Society Agriculture Network (CISANET), uma Ong do Malaui. Negociações tripartidas

O Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (IIED), que conduziu uma investigação em oito países africanos em colaboração com a FAO e o FIDA, recomenda, num relatório publicado em junho de 2009, associar as populações locais às negociações e tomar melhor em conta os seus interesses. Trata-se, portanto, de transformar as negociações bilaterais entre o Estado vendedor e o comprador potencial em negociações tripartidas que envolvam os representantes agrícolas da região. Isto evitaria ceder terras recenseadas como não-cultivadas, enquanto as comunidades camponesas nelas praticam atividades agrícolas, mesmo que extensivas, recolhem plantas selvagens, no-

meadamente medicinais, e lenha, ou aí praticam a caça. As populações rurais deveriam, também, poder expressar-se sobre a questão da disponibilidade de recursos, a começar pela água: alguns dos grandes projetos estrangeiros preveem um grande consumo de água, correndo-se assim o risco de se reduzir a disponibilidade desse recurso para os camponeses. Essa questão coloca-se no Mali, a propósito de projetos hidroagrícolas líbios, na zona do Office du Niger. A presença de agricultores durante as negociações pode, pois, revelar-se eficaz caso eles se encontrem à altura de, efetivamente, defender os seus interesses face a compradores poderosos. Para isso, devem estar muito bem estruturados, ser representativos e formados para as negociações. Isto se reveste da maior importância na medida em que o relatório do IIED ressalta a falta de transparência e a imprecisão dos contratos, nomeadamente no que diz respeito às intenções dos compradores em matéria de investimentos, de desenvolvimento setorial, de emprego e de destino final da produção (mercado local ou exportação). Até mesmo o Banco Mundial, norteado pelo princípio de investimento privado como meio de aumentar a produção alimentar, apela para o estabelecimento de um código de conduta. Este, segundo Marilou Uy, diretora do Departamento do Desenvolvimento do Setor privado para a região de África, “fixaria normas precisas no que se refere a um determinado número de pontos respeitantes à política fundiária, ao desenvolvimento social, à governabilidade e à transparência.” Mas, para ser aceito por todos, é bem evidente que um tal código de conduta pressuponha debates prévios, contraditórios e escolhas consensuais sobre a segurança e a soberania alimentares, aspectos de política agrícola para os quais as organizações camponesas são muito sensíveis. (Centro Técnico para a Cooperação Agrícola e Rural – CTA: www.spore.cta.int)

Principais aquisições de terras Etiópia

Gana

Madagascar

Superfície total de terras arrendadas

602.760

452.000

803.414

Número de projetos aprovados com mais de mil ha

157

3

6

Maior superfície arrendada em ha

150.000

400.000

452.500

% de terras aráveis do país

1,39%

2,12%

2,29%

Principais compradores

Países do Golfo, Egito, Flora EcoPower (Alemanha)

Brasil, Itália, Noruega, Israel, China, Alemanha, Paises Baixos, Bélgica e Índia

Varun (Índia), GM Biofuels (GB)`

Fonte: Relatório IIED, junho de 2009


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américa latina

América Latina: impasses e desafios ANÁLISE Não se sabe o que há de novo no reino da Dinamarca, mas é certo que há algo de novo em torno da linha do Equador Reprodução

Frei Betto O PRESIDENTE deposto de Honduras, Manuel Zelaya, retornou a seu país e se abrigou na embaixada do Brasil em Tegucigalpa. O Itamaraty tem a obrigação de acolhê-lo e assegurar-lhe integridade física e política. Zelaya, por sua vez, tem o dever de respeitar as normas que regem as representações diplomáticas. O mesmo Brasil que deu refúgio aos generais Stroessner e Oviedo, do Paraguai, não pode, agora, favorecer golpistas militares de Honduras e entregar Zelaya às feras. Será também uma afronta à tradição hospitaleira do Brasil o STF repatriar Cesare Battisti para os cárceres italianos. A América Latina vive seu melhor momento em décadas: com exceção de Honduras, não há ditaduras militares no continente; os governantes neoliberais, fiéis aos receituários do FMI e do Banco Mundial, foram rechaçados pelo voto popular; hoje temos governos democrático-populares que se comprometem em promover reformas de estrutura pelas vias pacífica e democrática. O que há de novo na América Latina? Samuel Huntington, relator da Comissão Trilateral – nefasta conspiração imperialista da década de 1970 –, admitiu que, em nosso continente, a democracia, tal qual o figurino que agrada a Casa Branca, só perduraria se excluísse a participação de parcela do povo. O que há de novo é que os excluídos – indígenas, camponeses, sem-terra, negros,

Hondurenhos protestam diante da embaixada brasileira no país em apoio ao presidente deposto, Manuel Zelaya

desempregados, famílias de baixa renda – agora insistem em seu protagonismo político. Prova disso é que um metalúrgico governa o Brasil; um indígena, a Bolívia; um ex-guerrilheiro, a Nicarágua; uma expresa política, o Chile; outro ex-preso político, o Uruguai; um sociólogo de esquerda, o Equador; um militar revolucionário, a Venezuela; um jornalista apoiado por ex-guerrilheiros, El Salvador; um exarcebispo da Teologia da Libertação, o Paraguai.

Não se sabe o que há de novo no reino da Dinamarca, mas é certo que há algo de novo em torno da linha do Equador. Dos 34 países da América Latina, em 15 há presença, em seus governos, de políticos alinhados com o Fórum de São Paulo – organismo que, há décadas, articula no continente grupos e partidos de esquerda e/ou progressistas. Os países da região tratam de criar mecanismos de intercâmbio comercial e unidade política, como a Alba,

o Unasul, a Telesul, o Banco do Sul. Apenas os governos da Colômbia e do Peru destoam desse processo, submissos ainda à dependência ianque. O desafio, agora, é evitar que os governos progressistas sejam cooptados pelo neoliberalismo. É preciso que a América Latina, que abriga o único país socialista do mundo – Cuba –, tenha consciência de suas potencialidades. Muito antes que os EUA criassem suas primei-

ras universidades, Harvard e William & Mary, já funcionavam a de San Marcos, no Peru, e a de Santo Domingo, na República Dominicana. As duas, aliás, fundadas pela Ordem Dominicana. No entanto, entre nós, hoje, a escolaridade média é de 7 anos, e de cada 10 estudantes de ensino médio, apenas 1 termina o curso. A mortalidade infantil média no continente é de 50 em cada 1.000 nascidos vivos, enquanto na Ásia é de apenas 10.

É decepcionante constatar a avidez que certos governantes latino-americanos demonstram frente às ofertas do mercado de armas. Nossos inimigos principais, que precisam ser duramente combatidos, são ainda a fome, a insalubridade, a falta de saúde, de educação, de moradia e de cultura. Se os atuais governantes democrático-populares não forem capazes de empreender as reformas prometidas em suas campanhas, e se deixarem envolver pelo canto das sereias neoliberais, ecoados por partidos conservadores interessados apenas em sugar parcelas de poder, a desigualdade social, ainda gritante, servirá de caldo de cultura para o ressurgimento de conflitos armados. A decepção dos pobres, se resulta em desespero nos casos pessoais, engendra sementes de revolta ao adquirir caráter social. No Brasil, a entrada de Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, na disputa presidencial pode significar um alerta e uma promessa. O alerta, de que o governo Lula foi positivo, mas não o suficiente para implementar reformas estruturais e promover o desenvolvimento sustentável. A promessa, de que é possível, sim, assegurar a governabilidade, graças ao apoio dos movimentos sociais, sem ceder ao que há de mais arcaico, corrupto e conservador na política brasileira. Frei Betto é escritor, autor de Cartas da prisão (Agir), entre outros livros.


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cultura

A voz que foi um continente MEMÓRIA “Tenho amor pelo que canto”, soube dizer uma vez, e talvez nessa frase esteja a chave para entender por que foi tão grande e por que se sente tanto sua partida Karina Micheletto JÁ NÃO HAVIA espaço para a esperança, somente uma triste resignação ampliada pelo peso de sua figura, que transcendeu fronteiras geográficas e artísticas. Na madrugada do dia 4, aos 74 anos, faleceu Mercedes Sosa, devido a uma disfunção renal que levou a uma parada cardiorrespiratória. Desde que se soube da notícia do grave estado de saúde de Mercedes Sosa, internada desde o dia 18 de setembro, havia uma certeza: com “La Negra” iria a grande voz da América Latina. Iria , também, como foi enternecedoramente colocado durante seu velório – onde, desde o meiodia do dia 4, milhares passaram para dar um último adeus –, uma figura em grande medida maternal, acolhedora em mais de um sentido. Se Mercedes Sosa significa tanto para a multidão que quis ir ao seu velório, ou para aqueles que inundaram a internet com mensagens de amor, ou os que em todo o mundo choraram sua morte, não foi somente por sua condição de cantora excepcional (e assim ela se foi, em pleno uso dessas faculdades únicas). Mas também pelo que ela escolheu cantar, aquele canto com fundamento que manteve até o final. Porque teve fundamento, seu canto superou inclusive suas contradições – seu rumo político, seu flerte com Maurício Macri, prefeito conservador de Buenos Aires. E disso nunca se arrependeu. Destino do canto

Mercedes Sosa nasceu no Estado de Tucumán, em 9 de julho de 1935, dia da Independência da Argentina. Toda uma declaração de princípios para uma mulher que terminaria representando um relato possível de identidade argentina e latino-americana. No dia de seu nascimento, os diários ainda ocupavam suas páginas com uma notícia que duas semanas antes havia comovido o país, para além das fronteiras da música: a morte de Carlos Gardel. O mesmo está ocorrendo desde que se soube da notícia do grave estado de Mercedes. Ia chamar-se Julia Argentina, devido à data em que nasceu. Poderia também ter se chamado Marta, segundo o desejo de sua mãe. Mas seu pai, como fazem alguns pais que comparecem somente ao registro civil, a registrou como Haydée Mercedes. A mãe nunca aceitou a mudança sem aviso: da porta para dentro, Mercedes foi Marta. Para além do fugaz nome artístico de Gladys Osorio, para o mundo seria sempre Mercedes, La Negra. No fim dos anos 50, era a esposa do artista. “Me apaixonei por suas canções”, dizia ao explicar porque havia se casado com Oscar Matus, desafiando toda sua família, tendo se mudado para a cidade de Mendoza. Sua voz ainda não havia sido descoberta: o artista, o poeta, era seu marido. Com essas canções pelas quais se apaixonou fez seu primeiro disco. Com Matus, Armando Tejada Gómez, Tito Francia, Horacio Tusoli, Víctor Nieto, entre outros artistas do Estado argentino de Cuyo, fundou o Movimento do Novo Cancioneiro, que marcaria a can-

ção popular argentina e inspiraria outras buscas, tal como sucedia com outros movimentos similares naqueles efervescentes 60. Mercedes Sosa foi Mercedes Sosa não somente por sua voz excepcional, mas também porque escolheu cantar canções com conteúdo, superadora da paisagem, abarcadora do humano, acusadora do social. Ela mesma se definia em função dessa escolha. “Esses prêmios pendurados nas paredes da minha casa não os ganhei somente porque canto, mas porque penso. Penso nos seres humanos, na injustiça. Penso que se eu não tivesse pensando dessa maneira, outro teria sido meu destino. Teria sido uma cantora comum. Isso me faz pensar que não me equivoquei, inclusive quando comecei a pensar ideologicamente”.

Mercedes Sosa foi Mercedes Sosa não somente por sua voz excepcional, mas também porque escolheu cantar canções com conteúdo, superadora da paisagem, abarcadora do humano, acusadora do social A voz sem fronteiras

Em 1965, cantou no Festival de Cosquín. Eram os tempos do “boom” do folclore, quando esse evento realmente consagrava artistas e marcava a agenda do gênero. Ao recordar aquela estreia, Mercedes não economizava críticas à Comissão de Cosquín, encarregada de definir a programação. Até seus últimos dias recordava daquela vez em que atuou “contra os da comissão”. “Cafrune me apresentou no canto do palco porque a Comissão de Folclore não me deixava subir”, detalhou em uma entrevista ao Página 12. “Eu sempre tive problemas com a comissão, não sei por quê... nesse tempo porque era comunista, sigo sendo, mas naquela época era um palavrão. Cantei com uma caixinha somente. Mas fui bem, e aí a Philips me contratou para gravar um disco. Foi uma atuação muito importante na minha carreira. Mais, foi definitiva.” A partir de 1976 começou a ficar cada vez mais difícil trabalhar, assim como para tantos artistas populares argentinos: falta de lugares que os aceitassem em sua programação, espetáculos cancelados pouco antes de começar, ameaças contra suas vidas. Em 1978, a polícia entrou em um recital em La Plata, prenderam-na durante 18 horas e aterrorizaram o público (o episódio é belamente contado numa mensagem deixada na sua página oficial). Durante a última ditadura (19761983), chegou a cantar composições de Víctor Jara e Pablo Neruda. Mas quase já não conseguia trabalho, e em 1979 se exilou em Paris e depois na Espanha. No começo de 1982 voltou a cantar na Argentina. Os shows que fez no teatro Opera – seriam dois ou três, praticamente sem propaganda, mas acabou fazendo 13 com a força do boca-a-boca – não somente marcaram seu regresso, mas também um marco na cena nacional. Entre os convidados para aqueles concertos estavam Raúl Bar-

boza, Ariel Ramírez, Rodolfo Mederos e representantes do rock argentino, como Charly García e León Gieco. Ali, ficou evidente mais uma prova da amplidão acolhedora de sua voz, num repertório que soube incluir Silvio Rodríguez e Fito Páez, Cobián e Cadícamo e Pablo Milanés, Daniel Toro e os novos autores de folclore. Daquela série de shows do Opera se produziram álbuns ao vivo que até hoje são uns dos mais vendidos na Argentina. Assim, passou não só a ser uma voz inquestionável, mas também um símbolo de um certo progressismo urbano, que lhe questionava tanto o fato de ter se definido alguma vez como comunista, como o pecado de ser de esquerda e, ao mesmo tempo, ter um belo carro e uma bela casa. Mas essa esquerda a adotou como a voz comprometida, a voz necessária. Como la cigarra

A história dos últimos anos de sua carreira pode ser contada entre recaídas e retornos com glória, como uma fênix obstinada, com a voz intacta, maravilhando a cada vez. Uma doença a acompanhou nas últimas décadas de sua vida: depressão mascarada, chamava ela, e dizia que a origem da doença era muito clara e se devia ao sofrimento no exílio. A primeira manifestação dessa depressão aguda a levou para a beira da morte em 1997. Mercedes Sosa canta a Charly García, um disco que nunca pôde apresentar ao vivo junto com seu amigo. Demorou quase um ano para recuperar-se e o conseguiu cantando, como todas as vezes que voltou dessas longas temporadas na cama. Deu o nome ao disco desse regresso Ao Despertar e ganhou com ele o Prêmio Gardel de Disco do Ano, voltando a fazer apresentações multitudinárias na Argentina e turnês pelo mundo. Voltou a cantar – sempre em companhia de colegas de todos os gêneros; esteve no estádio do Boca Juniors com Luciano Pavarotti – e, portanto, voltou a ser feliz. “Continuo cantando, como uma cigarra”, anunciava. Em 1999, lançou a Misa Criolla; em 2001, gravou um acústico ao vivo. Em 2002, junto com León Gieco e Víctor Heredia, propôs Argentina quer cantar. As apresentações com seus amigos incluiriam várias turnês pelo interior do país, e também por Europa e Estados Unidos, mas o projeto não pôde ser completado. Mercedes voltou a cair, voltaram as complicações físicas, a velha depressão. Entre 2003 e 2005, passou momentos muito difíceis, com internações, desidratações e descompensações, agravadas nos últimos tempos por um par de quedas no banheiro de sua casa, uma das quais lhe quebrou uma vértebra. Foram dois anos em que passou boa parte de seu tempo na cama. O ano de 2005 marcou seu último grande regresso, e foi com tudo. Voltou com um belo disco, Corazón libre, com direção artística de Chango Farías Gómez, editado pelo prestigioso selo alemão Deutsche Grammophon, que a escolheu por considerá-la “uma das melhores vozes do mundo inteiro”. Voltou também aos cenários, onde começou a cantar sentada, em princípio com um cinturão ortopédico ajustando sua cintura. A debilidade física que exibia, com vários quilos a menos do seu peso habitual, comovia. Precisava de algo em que se apoiar para entrar no palco – em algumas ocasiões, de uma cadeira de rodas – ajudavam-na a chegar até a cadeira de onde cantaria. Mas retirava-se dançando, arriscando uns passos ao ritmo de “La luna llena”, às vezes acompanhada pelos tambores do grupo La Chilinga.

O que comovia, na realidade, era essa transformação operada ao vivo: assim que entoava o primeiro verso, La Negra se tornava poderosa, gigante, indestrutível. Sua voz estava intacta, e isso não é uma maneira de falar: verdadeiramente continuava sendo a grande voz da América, uma das melhores do mundo, uma das escolhidas. O acontecimento que marcou o início daquele regresso foi a edição 2005 do Festival Músicas de Província (a propósito: antes de Maurício Macri, Buenos Aires podia se dar a esses luxos, como um festival de folclore. Alguém lembra? Alguém ainda se importa que a cidade não tem mais isso?). No dia 21 de dezembro desse ano, Mercedes cantou para 15 mil pessoas na sua terra natal, numa visita que significou o reconhecimento, no seu próprio solo, com o Doutorado Honoris Causa da Universidade de Tucumán. Aquela atuação, disse, marcou o reencontro com um público que então a sentia próxima: “Havia muito tempo que não ia, a última vez foi quando morreu minha mãe, em 1999”, contou. “Aí começaram a me tratar como uma artista não somente tucumana, mas de todo o mundo. Porque aqui sempre teve essa coisa com os artistas locais: como pode ser famosa, se vive em frente da minha casa... Senti que Tucumán me adotava”. Dali começou uma turnê que a levou para todos festivais e províncias possíveis da Argentina: seus problemas de saúde não lhe permitiram voltar a viajar de avião. Continuava cantando com uma força de outra ordem, continuava escutando com fruição novas vozes, novos autores, maravilhando-se diante do poder da música. “Que lindo é cantar, meu Deus!”, repetia e explicava: “Me apaixono pelas canções da mesma forma que é possível apaixonar-se de um homem. Tenho amor pelo que canto, por isso nunca pensei em cantar para viver. Canto porque amo cantar, desde sempre”. Se parecia impossível de se deter, se parecia capaz da perfeição vocal em qualquer contexto, parecia também que era possível pedir mais. Começou então a elaborar um projeto ambicioso: um disco – terminariam sendo dois – que apresenta a Mercedes como a grande voz capaz de reunir um amplo leque de canções ibero-americanas, que ia de Joan Manuel Serrat a Shakira, de Caetano Veloso a Luis Alberto Spinetta, passando por Joaquín Sabina, Diego Torres, Jorge Drexler, Marcela Morelo, Soledad, Calle 13, Charly García, León Gieco, Víctor Heredia, Pedro Aznar, dentre outros. Aquela foi sua última produção, Cantora, que não chegou a apresentar formalmente. No DVD que saiu com a edição final do disco duplo, Mercedes é vista como uma mãe que aconselha a Gustavo Cerati gargarejos com bicarbonato de sódio para deixar a voz no ponto; exclamando uma e outra vez o quanto gostava de cantar, mas não muito gravar; abraçando e deixando-se abraçar por todos seus colegas; recebendo afagos, mas também os oferecendo. Se vê, sobretudo, a mulher que continua emocionando com a letra de cada canção, que chora, que diz versos, que explica que ela os viveu e por isso os canta com a alma, com a voz e com todo o corpo. Ficam, como fundo musical de sua vida, aqueles versos de “Barro tal vez”, que escreveu o adolescente Luis Alberto Spinetta e que são parte de seu último disco. Mercedes Sosa cantou o que sentiu, sem uma palavra a mais, até o final. E assim se foi sua vida. (Página 12 - www.pagina12.com.ar) Tradução: Dafne Melo


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