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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 347

São Paulo, de 22 a 28 de outubro de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Zô Guimarães/Folhapress

Trabalho escravo no corte da cana no norte do RJ Como que originada dos livros de História do período colonial, a morte de Cristina Santos, que teve seu corpo queimado em canaviais no norte do Estado do Rio de Janeiro, traz à tona a recorrência do trabalho escravo no país. A fatalidade ocorreu em outubro, um mês antes de Cristina completar 50 anos. Sua família está em estado de choque. As queimadas que a mataram estão condenadas em instâncias internacionais devido ao aumento das concentrações de ozônio e de monóxido de carbono na atmosfera. Pág. 8

Polícia mata, omite seus mortos e fica impune Parte da polícia brasileira esconde e embaralha o número de mortos por forças de segurança do Estado. A adolescente Ana Cristina Macedo, vitimada por bala perdida em setembro, na zona sul de São Paulo, ainda não teve sua morte atribuída a um agente do Estado, mesmo comprovado o disparo do PM. Especialistas denunciam que impunidade é a marca dos crimes cometidos por autoridades, que se utilizam do chamado “auto de resistência” para legitimar sua ação criminosa. Págs. 4 e 5

Dançando com o Diabo, a favela por fora e por dentro

Policiais militares realizam patrulha nos arredores do morro dos Macacos, em Vila Isabel, zona norte do Rio de Janeiro

No Rio, combate ao tráfico justifica extermínio de pobres A política pública de segurança no Estado do Rio de Janeiro tem se baseado na repressão às comunidades e se mostrado ineficiente, já que os focos de violência só fazem aumentar. O recente episódio em que um helicóptero da polícia foi abatido por traficantes deu novo fôlego à repressão e parece ter dado aval ao extermínio das populações pobres. Para João

Tancredo, do Instituto de Desenvolvimento dos Direitos Humanos, todas as esferas governamentais têm culpa nesse processo. Para ele, além de perversa, a política de extermínio é ineficiente, pois,“a cada 20 mortos, há 100 para entrar no lugar”, já que, por falta de mercado de trabalho, o tráfico de drogas tem uma grande reserva de mão-de-obra. Pág. 3 Vinicius Mansur

Governos da Alba selam aliança com movimentos

O documentário Dançando com o Diabo, que aborda a realidade das favelas cariocas, foi recentemente lançado durante o Festival do Rio. Em entrevista, o jornalista e cineasta sulafricano Jon Blair, diretor do filme, e o jornalista Tom Phillips, correspondente do The Guardian e coprodutor do longa, discutem o documentário e falam sobre a responsabilidade social do jornalismo. Pág. 12

Realizado entre os dias 15 e 17, em Cochabamba, na Bolívia, o sétimo encontro oficial da Alternativa Bolivariana para as Américas – Tratado de Comércio dos Povos (Alba-TCP) teve como saldo principal o estabelecimento de uma aliança entre os governos do bloco e os movimentos sociais do continente. O objetivo é consolidar o Conselho de Movimentos Sociais, que terá o mesmo status dos demais conselhos da articulação, mas com autonomia. Pág. 9 ISSN 1978-5134

Milhares de Bolivianos foram a Cochabamba para a cerimônia de encerramento do 7º encontro dos presidentes da Alba Aline Scarso

Vale afeta milhares em Moçambique A Vale está prejudicando milhares de famílias, agora também em Moçambique. Ela planeja atuar em lugares atualmente agricultáveis e habitados, forçando pessoas a abandonar suas terras, sem direito a indenização pela perda de bens. Pág. 11

Laranjas valem mais do que seres humanos O episódio envolvendo o MST e as terras griladas da transnacional Cutrale foi exemplar para perceber a posição da imprensa corporativa em favor do agronegócio internacionalizado e oligopolizado. Págs. 2, 6 e 7


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editorial HÁ DUAS SEMANAS, as elites dominantes brasileiras usaram todo seu arsenal a disposição: rádios, redes de televisão, jornais impressos, colunistas de plantão, jornalistas pré-pagos, parlamentares oportunistas, ruralistas e até autoridades judiciais para denunciar um vandalismo sem precedentes: a destruição de mil pés de laranjas por militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Isso era inconcebível. “Queremos punição!” Bradavam, exigindo nova Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para criminalizar o MST e todos os que lutam por mudanças neste país. Afinal, nada melhor do que manter o mundo perfeito em que vivemos; não precisa mudar nada e muito menos lutar por mudanças. Alguns mais afoitos chegaram a concluir: é o fim do MST. Outros, com verso e prosa declaravam o fim dos movimentos sociais e da reforma agrária. E num só coro, todos clamavam: basta de vandalismo, desses pobres diabos do campo! Mas a realidade brasileira e a luta de classes é bem mais dura do que

debate

O vandalismo da classe dominante brasileira expulsam. Os indígenas perderam tudo, menos a dignidade. Não houve mortes, milagrosamente, porque realizaram a ação à luz do dia, certos da impunidade. Detalhe: as terras da fazenda são dos povos indígenas. Quem é o verdadeiro invasor?; 5. Não bastassem os fatos do Brasil rural, eis que a violência social emerge sem controle nas cidades. Num final de semana no Rio de Janeiro, um helicóptero derrubado, dezenas de mortos, entre moradores, traficantes e policiais. Oito ônibus incendiados. A notícia poderia ser algum distante cenário de guerra, mas não, é na “cidade maravilhosa”. Muitos bairros do Rio vivem em guerra entre traficantes, polícia e milícias armadas e alimentadas pela classe dominante; 6. E a enfermidade social desse vandalismo estrutural, praticado

essas condições de vida e riscos absurdos, na maior e mais rica cidade do hemisfério sul; 2. Enchentes e temporais transformam pacatas cidades do interior e grandes metrópoles em verdadeiros infernos. Mas ninguém explica para a população a causa das mudanças climáticas e das “vinganças” da natureza; 3. Oitenta e três trabalhadores da construção civil foram resgatados pela Polícia Federal, pois estavam trabalhando “em condições análogas à escravidão”. Sabe onde? Nada menos do que numa hidrelétrica, na região dos Parecis (MT). Logo as hidrelétricas, que representam tanto progresso; 4. Fazendeiros armados atacam um acampamento dos povos indígenas Kaiowa-guaranis, na região de Dourados (MS), colocam fogo em seus barracos e pertences e os

seus confortáveis apartamentos e seus diferenciados rendimentos, pagos pelas empresas de comunicação (ou pelo povo?). Independente das pacatas laranjas e das manipulações da Cutrale/Coca-Cola, detentora de 50 mil hectares distribuídos por mais de 30 fazendas, as duas semanas que se seguiram deram uma demonstração cruel do vandalismo estrutural e ideológico que domina as mentes e a política da classe dominante. Vamos recordar apenas alguns fatos, já que a memória tão curta da grande imprensa os calou: 1. Um incêndio mal explicado numa favela da região oeste de São Paulo deixou centenas de famílias sem absolutamente nada. Ninguém procura explicar porque, em pleno século 21, famílias de trabalhadores ficam expostas a

crônica

Joãozinho Ribeiro

O Latifúndio que mata e maltrata UMA PRAGA ENCRAVADA no solo brasileiro conseguiu atravessar quase intocável a totalidade dos regimes políticos que já experimentamos, do império à federação republicana, chegando ao século 21 com um rastro de cruéis consequências, que até os dias de hoje enlutam milhares de famílias em todas as regiões do país – a praga do latifúndio. A incontestável melhoria nos índices de qualidade de vida da população brasileira, usufruída nos anos da gestão do presidente Lula, ainda contrastam com o aumento da concentração da propriedade de terra e com a ampliação do financiamento público para o agronegócio voltado única e exclusivamente para a exportação, em detrimento do crédito de mesma natureza dirigido à agricultura familiar, responsável pela produção de mais de 80% dos alimentos que chegam diariamente às nossas mesas. O Censo Agropecuário, divulgado recentemente pelo IBGE, abrangendo um ciclo iniciado em 1995 e encerrado em 2006, revela números que atestam graves distorções na concentração da propriedade e da produção no Brasil. Os pobres do campo – nesse conjunto, incluídos aqueles que possuem propriedades inferiores a 10 hectares – tiveram a propriedade de suas áreas reduzidas de 9,9 milhões para 7,7 milhões de hectares, representando apenas 2,7% de todas as propriedades agrícolas do país. Por outro lado, 31.889 fazendeiros, possuidores de propriedades com extensões acima de mil hectares, respondem pela titularidade de 98 milhões de hectares. Voltados exclusivamente para o agronegócio, temos ainda 15.012 proprietários (1% do total dos estabelecimentos), com propriedades acima de 2.500 hectares, representando 46% do total de todas as terras. Saindo da concentração da propriedade e entrando na concentração da produção, as distorções são ainda mais alarmantes. Para um Valor Bruto de Produção Agrícola equivalente a R$ 141 bilhões em 2006, o Estado disponibilizou em créditos para o agronegócio, através de diversificadas linhas de financiamento, um total de R$ 80 bilhões, que resultou numa produção avaliada em R$ 91 bilhões, utilizando para tanto uma área de 32 milhões de hectares, ocupada pelo plantio de soja, milho, cana-de-açúcar e pecuária. Na contramão dessa história, para a agricultura familiar, responsável pela produção de mais de 80% dos alimentos que chegam às nossas mesas diariamente, foram destinados apenas R$ 6 bilhões de crédito, que ainda assim produziram R$ 50 dos R$ 141 bilhões do Valor Bruto da Produção Agrícola de 2006, ocupando uma reduzida área de 7 milhões de hectares, com o plantio de arroz, feijão, mandioca, trigo etc. Se não levarmos em conta para uma análise menos apaixonada esse elenco de dados, o terrorismo jornalístico perpetrado pelos maiores veículos de comunicação do país, representados

nomadas personalidades do mundo intelectual, do quilate do jurista Fábio Konder Comparato, do fotógrafo Sebastião Salgado, incluindo o escritor uruguaio Eduardo Galeano e o ensaísta norte-americano Noam Chomsky. Se as cenas de “vandalismo” na plantação da Cutrale repetidas exaustivamente pelos principais canais de televisão são objeto de comoção nacional, igualmente deveriam ser considerados estarrecedores os dados apresentados pelo IBGE sobre a concentração da propriedade e da produção agropecuária e os dados apresentados pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ acerca da impunidade dos mandantes dos assassinatos de trabalhadores rurais. As insinuações televisivas chegam a produzir afirmações caluniosas do tipo “recebem subsídio para praticar crimes” (Ministro Gilmar Mendes), ou “crimes cometidos pelos movimentos sociais” (Alexandre Garcia), taxando de mero eufemismo o termo “movimentos sociais”. Em conjunto questionam e reprovam o “orçamento destinado aos assentamentos em 2010”. O país mudou, mas esses senhores feudais permanecem com os seus valores vinculados aos tempos do Brasil Colônia. Caso a chibata ainda fosse permitida, com certeza seria utilizada sem dó nem piedade no couro dos assentados. Joãozinho Ribeiro é poeta/compositor, ex-Secretário de Estado da Cultura do Maranhão.

Homicídios levados a julgamento entre 1985 e 2008 Região

Casos

Vítimas

Casos julgados

Mandantes condenados

Mandantes absolvidos

Executores condenados

Executores absolvidos

Norte

504

760

25

16

1

22

15

Nordeste

336

377

18

1

1

12

11

Centro-Oeste

114

165

11

1

2

11

2

Sul

113

144

27

1

4

23

19

Sudeste

62

75

4

0

0

3

2

1.129

1.521

85

19

8

71

49

Total

Frei Betto

Brasil, país de velhos Gama

pelas vozes de profissionais do ramo como Alexandre Garcia e Miriam Leitão, diante das imagens de um trator dirigido por um membro do MST derrubando alguns pés de laranja em plantação da Cutrale, passam para a população que a única cultura dos assentamentos de trabalhadores rurais sem-terra no país é a da violência sem justa causa; coisa de criminosos, que deve ser punida com todos os propalados rigores da lei. Os mesmos rigores da lei não são invocados por esses ilustres arautos do latifúndio para pedir a punição dos mandantes dos homicídios das centenas de trabalhadores rurais que lutam com suas famílias por um pedaço de terra. Pior ainda, dos 1.521 casos de homicídios levados a julgamento entre 1985 e 2008, somente 7,5% foram concluídos. Tal levantamento foi apresentado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias, vinculado ao Conselho Nacional de Justiça, no 1º Encontro do Fórum Nacional para monitoramento e Resolução dos Conflitos Fundiários Rurais e Urbanos, na semana passada, em Campo Grande / MS (ver quadro abaixo). A criminalização dos movimentos sociais hoje tornou-se objeto de várias iniciativas da direita reacionária, visando à abertura de CPIs nas duas casas do Congresso Nacional. Se contrapondo a essas iniciativas, a presidência do Senado recebeu um manifesto em apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), contendo assinaturas de re-

pelas elites, aparece também nas atitudes pessoais de uma classe disposta a tudo para proteger seu patrimônio material. O irmão de um ex-governador de São Paulo, da “fina flor” paulistana, assassina o próprio filho, por causa do mau uso do seu automóvel, e depois se suicida. Triste pobreza ética; 7. O capitalismo propagandeado pela imprensa é o melhor dos mundos. Na agricultura seria um sucesso, com suas empresas e seus venenos. Ledo engano. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) acaba de anunciar que neste mês a humanidade atingiu a marca de 1 bilhão de seres humanos que passam fome todos os dias. É mais do que vandalismo dos que controlam os estoques de comida, já que a produção existente é suficiente. É um verdadeiro genocídio acobertado pelas elites e por seus meios de comunicação. Como se vê, os fatos nos remetem a uma boa reflexão sobre os vandalismos praticados todos os dias pela classe dominante. Isso nos ajuda a pensar sobre quem são os responsáveis e até quando se repetirão.

Fonte: Comissão Pastoral da Terra

O BRASIL ESTÁ cada vez mais velho. Daqui a 20 anos a pirâmide da faixa etária brasileira vai virar de cabeça para baixo. O número de idosos com mais de 80 anos crescerá 6% ao ano (hoje, aumenta 4% ao ano), enquanto haverá queda de fecundidade e a população total começará a diminuir. Em 2010 começará a decrescer a faixa entre 15 e 29 anos. São dados da pesquisa de Ana Amélia Camarano, do Ipea. Na década de 1980, acreditava-se que a população brasileira chegaria aos 200 milhões em 2000. Não chegou. Hoje, somos 190 milhões. Devido à queda de fecundidade – hoje, de 1,8 filho por mulher – só atingiremos aquele patamar em 2020. Em 2030 o Brasil terá 206,8 milhões de habitantes. Dez anos depois cairá para 204,7 milhões. Tais mudanças terão impacto na previdência social, que hoje dá cobertura a 60% da força de trabalho do país, sem no entanto alcançar os 33,2% de trabalhadores informais. Haverá também efeitos no mercado de trabalho. Para evitar um número excessivo de inativos, o país terá de investir em saúde ocupacional e derrubar os preconceitos contra o trabalho de idosos. Em alguns países, idosos têm preferência em certas ocupações profissionais. As grandes famílias, como a minha – 8 irmãos –, ficam para os álbuns de retrato. Hoje, a média nacional, tanto entre ricos quanto entre pobres, é de 2,2 filhos por família. No Brasil, o número de idosos (21 milhões) já supera o de crianças (19,4 milhões). O Rio de Janeiro é o Estado com o maior índice de pessoas com mais de 60 anos (14,9%). A fecundidade entre jovens de 15 a 19 anos, crescente até 2000, devido à erotização da cultura consumista e à sexualidade precoce, hoje encontra-se em queda. Porém, aumenta o número de meninas mães que moram com os pais ou avós. A média nacional de durabilidade conjugal é de sete anos. O número de mulheres se dilata no mercado de trabalho e, hoje, elas já são responsáveis por 40% da renda familiar e chefiam 43% das famílias brasileiras. Contudo, se por um lado elas têm menos filhos, mais renda e mais escolaridade, por outro continuam a assumir, ao contrário dos homens, dupla jornada de trabalho. A pesquisa constata que a mulher que trabalha gasta 20,9 horas semanais com o cuidado da casa, enquanto os homens dedicam apenas 9,2 horas. Ficar velho virou tabu. Uma das causas é a desistorização do tempo provocada pela ideologia neoliberal, de modo a nos incutir a noção grega de tempo cíclico, que neutraliza os projetos históricos e nos incute a ideia de perenização do presente; leia-se: fora do capitalismo a humanidade não tem futuro. Assim, todos queremos morrer jovens e esbeltos. É o elixir da eterna juventude em frascos de virtualidade... Haja malhação e cirurgias plásticas! Na minha infância, criança era a idade entre zero e 11 anos; adolescente, entre 11 e 18; jovem, entre 18 e 30; adulto, entre 30 e 50; velho, com mais de 50. Hoje, tem-se a impressão de que criança é de zero a 20 anos – quando se depende excessivamente dos cuidados paternos; adolescente, dos 20 aos 40, pela insegurança nas opções de vida; jovem, dos 40 em diante, ainda que se tenha 70 ou 90... Ninguém quer ser chamado de velho. Criam-se eufemismos: a terceira idade, a dign/idade, a melhor idade (mentira, sou velho e tive a melhor idade entre 20 e 30 anos). Ora, se é para adotar um eufemismo realista, sugiro aos idosos se considerarem a turma da eterna idade – já que estamos próximos a ela. A contradição é que, enquanto aumentam os direitos sociais dos velhos com mais de 65 anos – transporte coletivo gratuito, filas exclusivas, aposentadoria etc. –, reduzem-se os hábitos de respeito a eles. Raro ver um jovem ceder lugar no ônibus ou metrô ao idoso ou mesmo ajudá-lo numa dificuldade na rua. Há dias, vi uma gerente de loja negar a uma senhora com mais de 80 anos o acesso ao banheiro. Nada mais ridículo do que os idosos que se recusam a aceitar os sinais de velhice e buscam todo tipo de tratamento estético para encobri-los. Esquecem que jovialidade não é uma questão de aparência, e sim de cabeça. Conheço velhos gagás com apenas 30 anos e pessoas joviais com 92, como é o caso de minha mãe, que lê dois jornais por dia, acompanha o noticiário televisivo e participa de movimentos de reflexão e solidariedade. É preciso saber envelhecer com sabedoria. E os antigos, como Aristóteles, já nos prescreviam a receita: amizades, exercícios físicos, alimentação saudável e cultivo da espiritualidade. Envelhecemos irremediavelmente quando deixamos de sonhar de olhos abertos. Frei Betto é escritor, autor de Aquário negro (contos), editora Agir, entre outros livros.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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Ataque a helicóptero da PM no Rio de Janeiro “legitima” o extermínio SEGURANÇA PÚBLICA Violência em morro carioca desencadeia repressão, com execuções e invasão de moradias Renato Godoy de Toledo da Redação A DISPUTA POR pontos de tráfico de drogas no Rio de Janeiro (RJ) recrudesceu nos últimos dias e contou com acontecimentos inéditos, como o abatimento de um helicóptero da polícia por traficantes, próximo ao morro São João, na zona norte da capital fluminense, no dia 17. Três policiais militares que estavam na aeronave morreram e outros dois ficaram feridos, mas já tiveram alta. O ocorrido despertou a atenção da mídia internacional, que abordou a questão da segurança nos Jogos Olímpicos de 2016. E, como já é de praxe, desencadeou um processo repressivo por parte das forças policiais. Na guerra entre traficantes e policiais, cerca de 24 pessoas morreram, entre policiais, traficantes e civis – o governo admitiu a morte de, ao menos, três inocentes. O efeito midiático da queda de um helicóptero parece ter dado um aval à Polícia Militar do Estado para praticar extermínio e outros abusos de poder, como a invasão de casas sem mandado. A violência no Rio de Janeiro deixou o âmbito municipal e ganhou contornos de assunto da política nacional. O ministro da Justiça, Tarso Genro, ofereceu tropas federais ao governador fluminense Sérgio Cabral, que recusou. Mas aceitou um repasse de R$ 100 milhões da Secretaria Nacional de Segurança Pública para reforçar a situação. O próprio secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, admitiu que houve execuções após os acontecimentos, inclusive por parte de policiais. Apesar de ter admitido a morte de “inocentes”, as atribuiu ao tráfico de drogas.

A classe média carioca, estimulada pela imprensa, nutre um sentimento de apoio ao extermínio dos pobres, sem ter conhecimento da ineficiência dessa política Entre os policiais que ocupavam o helicóptero abatido, estava o major João Jaques Busnello, que em setembro executou um rapaz que fazia uma mulher de refém, em Vila Isabel, também na zona norte do Rio. Após a ação, o policial afirmou que optou por “neutralizar” o criminoso e que guardaria a cápsula como lembrança de um “tiro certeiro”. Ineficiência Para João Tancredo, presidente do Instituto de Desenvolvimento de Direitos Humanos (IDDH), a classe média carioca, estimulada pela imprensa, nutre um sentimento de apoio ao extermínio dos pobres, sem ter conhecimento da ineficiência dessa política.

Zô Guimarães/Folhapress

“A classe média, mal informada e desesperada, começa a acreditar nessa política e no extermínio como forma de diminuir a violência. Mas não sabe que isso não resolve nada. A cada 20 mortos, existem 100 para entrar no lugar. Isso porque não há mercado de trabalho”, explica Tancredo. Ainda de acordo com ele, o tráfico é movimentado por um número pequeno de funcionários e possui um extenso exército de reserva. Com a morte prematura de seus membros, a reposição é feita imediatamente. Dados do Complexo do Alemão – região com histórico de ocupações militares e desfechos violentos – comprovam a afirmação de Tancredo. Com cerca de 200 mil habitantes, apenas 0,05% da população é ligada a tais atividades. “Não é preciso muito mais do que isso para movimentar o tráfico. E há um imensa reserva de mão-de-obra esperando para entrar”, comenta.

Para João Tancredo, o Estado pode ter feito vistas grossas ao confronto entre traficantes para poder retomar o controle em áreas da cidade Apenas siglas A imprensa noticiou a violência na zona norte do Rio como, inicialmente, uma disputa por pontos de tráfico realizada entre duas facções do crime organizado, o Comando Vermelho (CV) e a Amigos dos Amigos (ADA). Segundo essa versão, chefes do tráfico do morro São João invadiram o vizinho Morro dos Macacos. No entanto, é uma análise recorrente, entre especialistas em criminalidade e direitos humanos, que tais siglas têm mais relevância no plano simbólico e midiático do que no dia-a-dia do crime. Tal análise dá conta de que os criminosos se intitulam como membros de determinada organização, mas não têm uma relação orgânica com traficantes em nível municipal, menos ainda regional. “Esse argumento tem toda a razão, [a existência dessas siglas] é mais marketing do que algo concreto. Se fosse organizado como se fala, o crime já teria tomado a cidade. Não há nenhuma organização, não há isso na prática. Fala-se muito em ‘aquele morro é do CV, aquele é de não sei quem’. O que existe é um gerente em cada morro que controla o tráfico. Se essas organizações existissem, o crime teria controlado a cidade, porque mão-deobra tem e exército de reserva eles têm de sobra”, analisa João Tancredo. Pretexto Com a derrubada do helicóptero da PM, a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro iniciou uma operação preventiva na cidade, sitiando outros sete morros da zona norte. Para João Tancredo, o Estado pode ter feito vistas grossas ao confronto entre traficantes para poder retomar o controle em áreas da cidade. O governo do Estado admitiu que sabia da intenção de alguns traficantes de tomar o controle do morro São João. “Existe a possibilidade de que o Estado tenha deixado isso acontecer para depois tomar essas medidas de execução e de invasão da casa das pessoas sem mandado. Primeiro, deixam instaurar o caos, para depois controlar as favelas”, afirma.

Polícia patrulha área próxima ao morro dos Macacos, em Vila Isabel, na zona norte do Rio de Janeiro

População de morros da cidade vive com terror cotidiano Entre guerras de facções e abusos da polícia, comunidades enterram seus mortos e tentam resistir Claudia Santiago do Rio de Janeiro (RJ) Gizele Martins tem 24 anos. Ela nasceu e vive até hoje no Complexo da Maré, conjunto de favelas localizado na zona norte do Rio de Janeiro, onde moram mais de 132 mil pessoas. “A vida aqui não é fácil, é uma procura diária pela sobrevivência, pela existência, pela afirmação da nossa identidade e humanidade. Uma busca diária da afirmação de que somos gente”, afirma Gizele. Ela cita, como exemplo de vida difícil, “a terrível situação que sofremos com a invasão dos caveirões [veículos blindados do Batalhão de Operações Policiais Especiais] em nossas ruas. Isso quando não atiram na gen-

te, nos chamam de ‘vagabundos’, ‘fofoqueiros’, além de nos mandarem correr, pois, se não corrermos o mais rápido possível, os policiais podem ‘roubar a nossa alma’, como dizem”, declara. Recentemente, Gizele, que também é editora do jornal comunitário O Cidadão, participou de um ato na Maré que teve como objetivo denunciar a violência cotidiana contra as classes populares. A passeata reuniu cerca de 200 pessoas. O ponto de encontro foi a Igreja São José Operário. A manifestação foi um grito de alerta. Há mais de quatro meses, três comunidades da Maré sofrem com um conflito diário entre facções rivais, que já ceifaram mais de 50 vidas. “Não podemos mais caminhar, sonhar, ir em busca da nossa própria sobrevivência. Escolas fecham nos momentos mais intensos, comerciantes não conseguem abrir suas lojas”, conta Gizele. Durante o ato, moradores denunciaram que caveirões chegaram a ser alugados por traficantes para que uma facção conseguisse invadir a outra com mais facilidade. “Todos os dias somos excluídos de tudo. Nossa vida dura, de lágrimas e dor, não é levada

em conta por nossos governantes, aqueles em quem votamos de quatro em quatro anos, quando definem a sua política de segurança. Nós, os pobres, somos criminalizados, somos os feios, sujos e malvados. A ordem é matar e exterminar os favelados, já que somos considerados, por eles, como os grandes problemas da sociedade, a sujeira da nação”, afirma. As mães de Vila Isabel Um novo grupo de mães acaba de ser formado no Rio de Janeiro. As Mães de Vila Isabel vão, tristemente, juntar-se às mães de Acari, às mães do Borel, às mães da Chacina da Baixada. Na madrugada do dia 17 de outubro, mães choraram e velaram a morte de seus filhos no Morro dos Macacos, também na zona norte do Rio. De acordo com a política de segurança pública do Estado, foi mais uma ação correta. Em entrevista à jornalista Katarine Flor, do jornal Vozes das Comunidades, a socióloga Vera Malaguti afirmou que, em nome da ordem e da segurança, operações policiais promovem caos, medo e violência nas favelas cariocas. A atual “política de segurança” inclui a

construção de muros em torno das favelas; ações aterrorizantes dentro das comunidades; repressão aos camelôs; e remoção de moradores de rua para bem longe dos olhos da elite. No início deste mês, o telefone tocou no escritório do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), no Rio de Janeiro. Do outro lado da linha, moradores da Vila Autódromo, na Barra da Tijuca, alunos do Curso de Comunicação Comunitária do NPC. As 2 mil famílias da comunidade estão sob ameaça de remoção. O fantasma que atormenta os pobres do Rio de Janeiro desde o início do século passado está de volta com a escolha da cidade para sediar as Olimpíadas de 2016. O Estado do Rio de Janeiro é o titular da área onde está localizada a comunidade de Vila Autódromo. “A política de segurança do Estado criminaliza os camelôs, os sem-teto, os semterra e os moradores das favelas. É uma política contra os pobres e que só é boa para a classe A”, conclui Gizele Martins. A jornalista Renata Souza, também moradora da Maré, concorda: “É uma política para proteger a burguesia e segregar os pobres”.

ANÁLISE

Os reféns do medo Rosane de Souza É no mínimo extemporânea a invasão do Morro dos Macacos, na zona norte do Rio de Janeiro. Uma quadrilha rival de Scooby, antigo chefe do tráfico local, ocupou a favela depois de 12 horas de confronto armado, submeteu seus mais de 30 mil moradores a momentos de terror, matou uma dezena de pessoas, procurou jovens de 10 a 17 anos para executar e, com a ajuda da polícia, expropriou identidades, uma vez que a Secretaria de Segurança se apressou em di-

vulgar a mesma ladainha – para a qual a imprensa diz amém com obediência canina – de que os mortos eram bandidos, uma gente que nasce com a estranha maldição da pobreza e da morte a caminho do hospital. Segundo a versão de alguns moradores, os bandidos invasores teriam contado com a ajuda de alguns policiais, inconformados com a suspensão da mesada do tráfico local, para invadir o Morro dos Macacos na madrugada do dia 17 de outubro. Há testemunhas de que alguns dos “estrangeiros” entraram na favela de caveirão. O atraso no

pagamento teria sido motivado pela queda do movimento de venda de maconha e cocaína. Com bastante propriedade, o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, garantia no dia 19 que a rotina tinha sido retomada no Macacos. Sabe que a violência faz parte do cotidiano da população pobre do Rio. Já os moradores da favela não escondem o medo de um novo confronto, assim que a poeira baixar e a polícia sair das ruas. Os traficantes expulsos da favela, abrigados hoje na Rocinha e no São Carlos, juraram vingança. Eles eram mais tolerados porque o “chefe” impôs regras “civilizadas” ao comércio de entor-

pecentes: proibiu os assaltos constantes a pedestres e a carros no bairro. Duramente, o povo das favelas do Rio aprendeu que pior do que o crime organizado é a bandidagem na sua versão desorganizada. Por isso, os moradores da antiga Fazenda dos Macacos, do famoso Barão de Drummond, são hoje reféns do medo de uma iminente invasão e da estratégia usada pelos novos donos da área para zerar os prejuízos com a recente batalha e ainda lucrar o suficiente para honrar o compromisso com a propina. Vila Isabel, garantem, vai virar o inferno na terra. Rosane de Souza é jornalista do Núcleo Piratininga de Comunicação.


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Polícia esconde seus mortos SEGURANÇA PÚBLICA Números de mortes de civis provocadas pela polícia não são reais na maioria dos estados brasileiros Rubens Cavallari/Folha Imagem

Marcio Zonta de São Paulo (SP) A POLÍCIA BRASILEIRA é cada vez mais letal. Segundo a historiadora Ângela Mendes de Almeida, coordenadora do Observatório das Violências Policiais de São Paulo (OVPSP), no entanto, o número de mortos por agentes do Estado é ocultado e embaralhado. “Nenhum órgão oficial quer contar, com métodos científicos, os mortos”, completa. Nesse sentido, o OVP-SP contabiliza as mortes cometidas por policiais no Estado de São Paulo que não entram nas estatísticas oficiais da Secretaria de Segurança Pública, através de um levantamento diário de notícias veiculadas em aproximadamente 100 jornais. Assim, aos 272 civis mortos por policiais divulgados pelo governo do Estado no primeiro semestre, um levantamento da OVP-SP acrescenta mais 149 óbitos provocados por agentes do Estado. As formas de execução, segundo Ângela, são variadas: “temos a ‘morte em confronto’, que é o homicídio frequentemente praticado por agentes do Estado fora de serviço, quando estão em bicos irregulares e em atividades privadas; a morte por bala perdida, casos que só acontecem em bairros pobres e favelas; as chacinas executadas por encapuzados ou homens de preto, que nada mais são do que grupos de extermínio formados por policiais; e a perseguição tresloucada a um suspeito, quando não hesitam em colocar em risco a vida dos habitantes dos territórios da pobreza”.

Na Bahia, a frase “Pai faz, Mãe cria e Caatinga mata!” vem exposta nas viaturas da Polícia da Caatinga Não-contabilizados Porém, dentre todas as circunstâncias apontadas por Ângela, muitas não entram nos números oficiais das secretarias, já que ela não contabiliza as mortes provocadas por outros agentes do Estado, tais como: guardas civis metropolitanos, policiais rodoviários federais e todos os assassinatos cometidos por policiais encapuzados, organizados em grupos de extermínio. Por esse motivo, a adolescente de 17 anos, Ana Cristina Macedo, vitimada por bala perdida durante uma perseguição da polícia civil no dia 31 de setembro, na Favela de Heliópolis, na zona sul de São Paulo, não teve sua morte atribuída a um agente do Estado, mesmo comprovado que o disparo foi efetivado por um. A morte de Ana Cristina é contabilizada junto aos homicídios culposos. É o que explica a advogada do Programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos, Marcela Fogaça Vieira. “Esses números não englobam os casos de homicídios dolosos ou culposos cometidos por policiais, que são diluídos no número geral de homicídios. Ou seja, o número de homicídios cometidos por policiais é mais elevado do que aqueles oficialmente divulgados”. Procurada, a Ouvidoria da Polícia Militar de São Paulo não quis dar explicações sobre as maneiras da contagem de civis vitimados pela polícia. Um dossiê preparado por diversas organizações sociais, entre elas o OVP-SP, sobre execuções extrajudiciais e mortes pela omissão do Estado de São Paulo, lançado no dia 9 de outubro, dia mundial contra a pena de morte, traz observação do relator da ONU para execuções sumárias, Phi-

Em Heliópolis, Polícia Civil faz reconstituição do tiroteio que resultou na morte da estudante Ana Cristina de Macedo

lip Alston, constatando “que as polícias de São Paulo utilizam a força letal e não a inteligência para controlar o crime. Mais do que isso, esta força letal é utilizada para a proteção do patrimônio, e não da vida”. “Caatinga mata!” Na Bahia, a situação não é diferente. Segundo Carla Akotirene, assistente social e coordenadora do Fórum Nacional de Juventude Negra, a frase “Pai faz, Mãe cria e Caatinga mata!” vem exposta nas viaturas da Polícia da Caatinga, “uma divisão policial assassina, conhecida por abordagem violenta”. Segundo o Centro de Documentação e Estatística Policial, em 2008, pelo menos 2.237 pessoas foram assassinadas em Salvador e região metropolitana. Números divulgados de maneira generalizada e que, segundo Carla, escondem os dados reais da repressão policial na Bahia. “Dentre esses números cabíveis institucionalmente, escondem-se milhares de homicídios praticados pelos aparelhos de repressão em seus diversos departamentos, não computados à ação policial”, denuncia. Na ação da Polícia da Caatinga está a maior prova, segundo ela, da mentirosa divulgação dos números pelo governo baiano. “Sobre a Polícia da Caatinga, não há sequer dados estatísticos, uma vez que a totalidade das notícias enaltece a corporação e o alto índice de letalidade, cada vez mais assustador, produzido contra os corpos negros e jovens”, aponta. À frente da Campanha contra o Extermínio da Juventude Negra, lançada na primeira semana de outubro na Bahia, Carla aponta um viés ideológico acintoso que se tornou jargão na Bahia. “A afirmação de que aqui morre mais negros por conta do contingente populacional ser majoritariamente de afrodescendentes pode ser encontrado em documentos oficiais e em declarações dos gestores e agentes da segurança pública do Estado baiano, independente da conjuntura política ideológica”, declara. Carla diz que a afirmação é uma falácia e apresenta outra premissa: “é uma tentativa de classificar a seletividade do sistema de Justiça criminal como uma mera coincidência, escondendo a gênese desse sistema, que foi formado para oprimir a população negra e pobre”.

Impunidade é a marca dos crimes cometidos por autoridades Polícia se utiliza de “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte” para legitimar sua ação criminosa de São Paulo (SP) Paulo Maciel foi executado por policiais militares em uma viela próxima à avenida Marginal do Oratório, na altura do número 900, por volta das 4h50, em São Paulo (SP). Recebeu tiros no tórax, no coração e nas pernas. O jovem Sandro Wellington de Jesus, de 21 anos, que passava pelo local, testemunhou a sua execução e também foi vítima de disparos de arma de fogo. Posteriormente, os mesmos policiais que executaram Paulo Maciel prenderam Sandro e o conduziram ao 70º Distrito Policial. Hoje, Sandro está condenado a 24 anos de prisão, acusado de ter tentado, junto com Paulo, assassinar os policiais militares. Nesse processo nebuloso, a mãe do rapaz morto e a defensora de direitos humanos Valdênia Paulino estão sendo acusadas de falsidade ideológica, já que testemunharam em favor de Sandro. E

a morte de Paulo permanece sem nenhuma investigação como sendo uma “resistência seguida de morte”. Casos como esse são corriqueiros na periferia das grandes cidades brasileiras. O registro de “resistência seguida de morte”, chamado em outros estados da federação de “auto de resistência”, segundo a historiadora Ângela Mendes de Almeida, coordenadora do Observatório das Violências Policiais de São Paulo (OVP- SP), tem como objetivo “desviar a investigação para a figura do morto, além de legitimar assassinatos praticados pela polícia em territórios da pobreza: favelas e bairros periféricos das cidades”. Segundo Ângela, a resistência seguida de morte não está no código penal, “é uma invenção, um hábito, que não encontra guarida em nenhuma legislação”. O auto de resistência foi criado no auge da ditadura civil-militar brasileira no Estado da Guanabara, em 1969, e serviu para legitimar o assassinato de militantes de esquerda. Hoje, o expediente segue a todo vapor, como no Rio de Janeiro, onde ocorre uma média de três execuções policiais por dia atribuídas ao auto de resistência. Impunidade

A advogada do Programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos MarceLatuff

Ação policial no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro

la Fogaça Vieira observa que tudo é feito para ajudar os policiais assassinos a ficarem impunes. “O maior problema está no boletim de ocorrência feito pelos próprios policiais como resistência seguida de morte ou auto de resistência, justamente pelo fato de que são invertidos os papéis; os policiais figuram como vítimas do crime de resistência, enquanto a pessoa que morreu figura como indiciado, e não como vítima de homicídio. Ou seja, o homicídio praticamente desaparece, e, como o ‘indiciado’ está morto, o inquérito policial é frequentemente arquivado”, explica. Marcela chama atenção, ainda, para a recente implantação do governo paulista: o registro digital de ocorrência (RDO), substituindo o boletim de ocorrência (BO). Com isso, os policiais, que já dominavam os BOs colocando suas próprias versões, passam a ter uma ajuda extra, “pois a palavra ‘morte’ foi abolida do título da ocorrência, uma vez que os casos deixaram de ser registrados como resistência seguida de morte e passaram a ser registrados apenas como ‘resistência’. É necessário ler todo o histórico da ocorrência para tomar conhecimento de que uma pessoa foi morta. Isso diminuiu ainda mais a transparência e dificulta em muito o acompanhamento dessas mortes”, denuncia Marcela. Em São Paulo, em 2008, foram atribuídas como resistência seguida de morte 431 ocorrências. No Rio de Janeiro, só no primeiro semestre de 2008, foram 750 mortes. Na Bahia, em levantamento estatístico feito pelo jornal A Tarde, no primeiro trimestre deste ano, somente em Salvador, policiais das Rondas Especiais (Rondesp) estão envolvidos em 50,7% dos óbitos registrados como auto de resistência. No entanto, Marcela alerta que nos estados onde não

são contabilizados esse tipo de ocorrência pode-se esconder ainda mais a violência policial. “Oficialmente, parece que só os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais divulgam e contabilizam os dados”, conclui. A assessoria de imprensa do Ministério da Justiça diz que tais dados chegam prontos apenas para divulgação em índices gerais e não sabe responder quais outras federações brasileiras se utilizam do auto de resistência ou resistência seguida de morte para contabilizar esses homicídios. População mais violenta?

Uma das argumentações do Estado, segundo Marcela, “é que o uso sistemático de força excessiva por agentes de segurança pública faz parte do modo de atuação do policiamento no Brasil como justificativa para combater os altos índices de criminalidade”. No entanto, segundo dossiê do OVP-SP organizado junto a outras organizações sociais, os números revelam que a atuação da polícia é desproporcional quando se compara a quantidade de civis e policiais mortos. O Brasil está quase 50% acima do que se considera internacionalmente justificável, que seria menos de dez civis mortos para cada policial. Entretanto, só em São Paulo, a média na década é de 14,9 civis mortos para cada policial, o que acusa que a polícia age de forma desproporcional à ameaça representada, segundo o dossiê. No Rio de Janeiro, são 43 civis para cada policial morto em ação, o que também aponta o auto de resistência como forma de maquiar execuções sumárias nas comunidades pobres, o que, para Ângela, “é uma política de extermínio da pobreza, um braço armado para o controle social, que se combina com as políticas assistencialistas”. (MZ)


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Lutas contra a violência policial se intensificam em todo Brasil SEGURANÇA PÚBLICA Mulheres que lideram movimentos vêm se qualificando e formando um grupo cada vez mais forte Nelson Antoine/Folhapress

Marcio Zonta de São Paulo (SP) “NOS ÚLTIMOS ANOS, os diversos grupos familiares, sempre capitaneados por mulheres, vêm buscando desenvolver uma atuação conjunta, com base na compreensão de que o problema não está concentrado em uma ou outra matança, mas em um processo político”. É o que observa a mestre em Antropologia Social e doutora em Sociologia Barbara Musumeci Soares, que coorganizou no Rio de Janeiro o livro que traz relatos de 21 famílias, chamado Auto de resistência - Relatos de familiares de vítimas de violência armada” (editora 7Letras). Ela entende que uma nova forma de organização vem sendo feita nos últimos tempos pelas famílias do Rio de Janeiro que perderam seus entes por consequência da violência policial, “a consolidação de um grupo abrangente vem lentamente ganhando força. Não se trata apenas de mobilizações eventuais. Mas o mais importante é que essas mulheres vêm se qualificando de diversas formas (em cursos, conferências, encontros e seminários) e aprendendo, cada vez mais, a lidar com os organismos do Estado e com a mídia”. Para Barbara esse processo de luta contra as injustiças que sofrem já dão frutos. “Com isso, estão encontrando canais de visibilidade, formulando estrategicamente suas demandas e ganhando espaço no cenário público”, conclui. Mães de Maio Em São Paulo, As Mães de Maio, mulheres que perderam seus filhos em maio de 2006, no revide da polícia aos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), culminando em 493 pessoas mortas, também vão à luta para provar a inocência de seus filhos.

Ato realizado na avenida Paulista, dia 2 de outubro, pela associação Mães de Maio, formada por mães, parentes e amigos de vítimas do confronto entre o PCC e a Polícia Militar

“Eu não vou ficar no sofá chorando a morte do meu filho”, desabafa a presidente da organização das Mães de Maio, Débora Maria da Silva Segundo relatório divulgado no primeiro semestre pelo Programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos, o perfil das vítimas daquele maio de 2006 e das mortes praticadas pela polícia em geral no Brasil é de “homens jovens, com reduzida escola-

ridade, solteiros e sem antecedentes penais”. A constatação leva a presidente da organização das Mães de Maio, Débora Maria da Silva, que também perdeu seu filho morto pela polícia no dia 15 de maio de 2006, a desabafar: “Eu

não vou ficar no sofá chorando a morte do meu filho”. Ela diz que vem se envolvendo com movimentos sociais e buscando apoio à organização. “As Mães de Maio estão sofrendo, muitas com depressão, se tratando, embora abandonadas, sem auxílio nenhum do Estado”, complementa. Descrença Na Bahia, os jovens são os protagonistas, por meio do Fórum Baiano da Juventude Negra, de campanhas nacionais. Conforme informa a as-

sistente social Carla Akotirene, que coordena as campanhas, “estamos provocando politicamente a implantação do PCRI (Programa de Combate ao Racismo Institucional) junto aos profissionais de segurança, visto que a vida do jovem vem sendo ceifada cotidianamente pela mão branca do Estado”. A advogada do Programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos Marcela Fogaça Vieira, no entanto, pondera, diante das dificuldades enfrentadas pelas famílias nessa luta diária, e aponta as

principais barreiras encontradas para se fazer justiça: “há descrença nessas instituições em razão do alto grau de impunidade, por acreditarem que a denúncia não irá gerar uma responsabilização dos policiais envolvidos. Infelizmente, apenas em uma irrisória minoria dos casos, há algum tipo de punição. Outra dificuldade enfrentada é o acesso à Justiça, principalmente em decorrência do quadro insuficiente da Defensoria Pública no Estado de São Paulo e em outros estados”.

RIO GRANDE DO SUL Itamar Aguiar/Palácio Piratini

Adeus ao impeachment de Yeda? Judiciário e Assembleia livram governadora tucana do afastamento. Para oposição, decisão é vitória de Pirro Miguel Enrique Stédile de Porto Alegre (RS) DEPOIS DA ASSEMBLEIA Legislativa, o Poder Judiciário. Quase uma semana depois de ver o processo de impeachment arquivado na Comissão Especial, a governadora Yeda Crusius (PSDB) comemorou a decisão da Justiça federal de retirar seu nome da ação de improbidade administrativa, movida pelo Ministério Público Federal, e que poderia levá-la ao afastamento do cargo. A 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu excluir a governadora tucana da ação do MPF no dia 14. Por unanimidade, o TRF entendeu que “a governadora, como agente política, não pode responder por improbidade administrativa, mas apenas em caso de crime de responsabilidade”. No mesmo julgamento, os juízes decidiram liberar os bens dos deputados federal José

Otávio Germano (PP) e estadual Luiz Fernando Zachia (PMDB), mas mantiveram o bloqueio dos bens do ex-presidente do Tribunal de Contas do Estado, João Luiz Vargas; Todos investigados pela Operação Rodin, que apurou desvios no Detran. Para o deputado Elvino Bohn Gass, líder da bancada do PT na Assembleia, a decisão não significa absolvição da governadora. Para ele, a comemoração pode não passar de uma vitória de Pirro da base yedista. “Os magistrados sequer fizeram uma análise das provas contra Yeda, apenas deram provimento a um recurso do advogado dela, não houve debate sobre o mérito, mas sobre a forma de como a ação estava sendo encaminhada”, explica. “Vale lembrar que nem mesmo essa decisão é definitiva, pois ainda cabe recurso aos procuradores federais”. Com a derrota na Comissão Especial, cujo parecer ainda será votado em plenário, e com a exclusão da governadora da ação civil, a oposição joga peso agora na CPI da Corrupção. O mesmo TRF liberou os documentos da Operação Solidária da Polícia Federal, que investigou fraudes na prefeitura de Canoas (RS) sob administração do PSDB, para a CPI no dia 15. “O material abre uma nova fase na CPI e nos oferece subsídios para apurar uma fraude que envol-

“Ao que tudo indica, o rombo apurado pela Operação Solidária ultrapassa a casa dos R$ 300 milhões, configurando o maior escândalo de corrupção da história do Rio Grande do Sul”, enfatiza a deputada Stela Farias (PT) ve uma soma de recursos dez vezes maior do que o montante desviado do Detran”, comemorou a deputada Stela Farias (PT), presidente da Comissão. “Ao que tudo indica, o rombo apurado pela Operação Solidária ultrapassa a casa dos R$ 300 milhões, configurando o maior escândalo de corrupção da história do Rio Grande do Sul”, enfatiza. A deputada espera que os documentos e novos fatos forcem uma mudança de postura da base yedista que retirou o quorum de 11 sessões da CPI. Era uma casa... As decisões da Assembleia Legislativa e da 4ª turma do TRF não impediram que as denúncias de desvios no governo Yeda Crusius seguissem vertendo semanalmente. No centro das acusações está a mansão adquirida pela governadora após as eleições de 2006. A oposição acusa a governadora tucana de ter comprado a mansão com recursos do

caixa 2 da campanha. Há ainda suspeitas de que o antigo proprietário teria sido beneficiado com renegociações pelo banco estatal Banrisul. O imóvel teria sido comprado por R$ 750 mil, valor considerado abaixo do mercado. Agora, os deputados da oposição denunciam que recursos públicos foram utilizados para reformar e mobiliar a mansão. A Casa Militar teria comprado materiais de construção e móveis infantis para a residência particular de Yeda. Ao todo, as denúncias de aquisição irregular de material de construção, móveis, produtos para jardinagem e alimentos somam cerca de R$ 100 mil. O governo estadual admitiu as compras e considerou a medida legal. O deputado Coffy Rodrigues (PSDB), relator da CPI da Corrupção, justificou a medida de forma inusitada: “Eu pergunto para qualquer vovó que more junto com os netos, se viesse a se eleger governadora do Estado e viesse a morar dentro do Palácio Pi-

A governadora Yeda Crusius

ratini, não teria que comprar uma cama para o neto? Ou iria colocar o neto para dormir no chão? É a mesma coisa”. No dia 16, a presidente da CPI da Corrupção, Stela Farias, entregou ao Ministério Público de Contas (MPC) novos documentos de despesas da Casa Militar, dessa vez com a aquisição de objetos de cama, mesa e banho. Entre lençóis especiais, toalhas de rosto e de banho amaciadas foram gastos R$ 3.140. “Todos são artigos de luxo adquiridos com dinheiro público, sem tomada de preço e sem justificativa, comprados em uma loja de artigos sofistica-

dos e cujo destino é desconhecido, o que mostra, mais uma vez, a confusão que a governadora faz entre o público e o privado”, argumentou a parlamentar. A deputada denuncia que essa não foi a única compra de bens de luxos na mesma loja. Segundo Farias, foram gastos mais de R$ 31 mil em objetos de cama, mesa e banho, adquiridos na mesma empresa. Como a legislação determina a obrigatoriedade de licitação para despesas acima de R$ 8 mil, a suspeita é que o fracionamento do gasto seja uma forma de burlar a exigência legal.


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Cutrale, símbolo do agronegócio internacionalizado capital internacional.

ANÁLISE Empresa representa o processo de concentração de terras, produção e capital ensejado pelo modelo de subordinação da agricultura brasileira aos interesses do capital internacional Ariovaldo Umbelino O EPISÓDIO DA ocupação pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de uma das fazendas “invadidas” pela empresa Cutrale, de terras públicas da União na região de Iaras (SP), suscitou todo tipo de especulações na imprensa e, sobretudo, motivou os parlamentares ruralistas a pedirem uma nova CPI do MST e da reforma agrária. Sobre o caso, ficou evidente a manipulação da mídia ao veicular a cena da derrubada de pés de laranja pelas famílias. Reprisado insistentemente em todos os programas, por todos os canais de televisão, foi o suficiente para demonizar todas aquelas pobres famílias que estão há mais de cinco anos debaixo de lonas pretas esperando o direito de trabalhar na terra. Vandalismo! A chamada “grande” imprensa não quis continuar pesquisando as outras denúncias de depredação de máquinas e “roubos” de casas de empregados, pois ficou evidente o circo armado pelo serviço de inteligência da Polícia Militar (PM), em conluio com a empresa, para criar um clima desfavorável às famílias. Logo, todas as autoridades, colunistas, políticos e assemelhados foram para a mídia esbravejar: vandalismo, vandalismo! Sem pensar

ciada (joint venture) à Coca-Cola mundial nos EUA, de quem é fornecedora exclusiva em escala mundial. Por isso sua condição de empresa “Ltda.”, pois já é parte (menor) do monopólio mundial da Coca-Cola. Numa reportagem de 2003, a insuspeita revista Veja denunciou a empresa Cutrale de ter subsidiária nas ilhas Cayman, como forma de aumentar seus lucros, ou quem sabe de evasão fiscal... e saiba Deus mais o quê.

e se perguntar quem teria feito de fato aquilo. As famílias negam que tenham furtado qualquer objeto e destruído tratores. Aliás, para destruir tratores, precisariam, convenhamos, de uma certa dose de força bruta. E mais. Por que não se fez uma investigação? Uma simples perícia iria identificar que aqueles tratores estavam desmontados há muito tempo pela oficina de reparos da empresa, existente na fazenda. Mas tudo isso é manobra dispersiva. Primeiro, para esconder que na região há 200 mil hectares de terras da União que vêm sendo sistematicamente griladas. E griladas por empresas cujos donos circulam por altas rodas da socialite paulistana. Mas mesmo assim o Incra já recuperou mais de 20 mil hectares que hoje assentam famílias de trabalhadores. Segundo, para esconder que a Cutrale “comprou” a área há apenas 5 anos, sabendo que não havia titulação, que havia um processo na Justiça por reintegração de posse pelo Incra. Por que então a Cutrale apostou em comprar terras baratas e griladas e enchê-las de laranja? Graças a seu poder de influência na sociedade brasileira e paulista. A Cutrale é o símbolo do processo de concentração de terras, produção e capital ensejado por esse modelo de subordinação da agricultura brasileira aos interesses do

Omissão Ninguém da “grande” imprensa noticiou que a Cutrale possui nada menos do que 30 fazendas em São Paulo e Minas Gerais, totalizando 53.207 hectares. E que, destes, seis fazendas com 8.011 hectares são classificadas pelo Incra, no recente cadastro de 2003, como improdutivas; portanto, passíveis de desapropriação. Entre as 30 fazendas não consta a área grilada de Iaras, pois não é de sua propriedade (veja tabela abaixo). Uma colunista teve coragem de noticiar os vínculos partidários e as polpudas verbas gastas pela empresa nas campanhas eleitorais, em apoio a todos os partidos. O fato é que a Cutrale é símbolo desse modelo de agronegócio subordinado ao capital internacional. Uma empresa de origem familiar do interior de São Paulo se vincula ao mercado externo, se associa com a Coca-Cola e passa a controlar, em poucos anos, a maior parte do mercado de laranja do Brasil e 30% de todo o mercado mundial de sucos. Hoje, cerca de 90% do suco produzido no Brasil é exportado. Monopólio Em poucos anos, o setor se transformou, de muitas e médias agroindústrias e de milhares de pequenos e médios produtores de laranja, num setor altamente oligopolizado. Hoje são apenas quatro grupos que controlam toda laranja: Cutrale (mais ou menos 60%); Citrosuco; Louis Dreifus Commodities – LDC (francesa); e Citrovita, da Votorantim. A Cutrale tem esse poder todo porque possui uma empresa asso-

Exploração Essas empresas passaram a comprar terras e assim garantem uma base da produção de laranja suficiente para impor preços e condições draconianas aos pequenos e médios agricultores que antes produziam laranja para um mercado concorrencial. Os trabalhadores dos laranjais são superexplorados com salários ridículos, pagos por produção, sem nenhum direito trabalhista. O resultado de todo esse processo foi que milhares de pequenos e médios agricultores tiveram que abandonar a produção de laranja. Entre 1996 e 2006, foram destruídos, segundo o Censo Agropecuário do IBGE, somente em São Paulo, nada menos do que 280 mil hectares de laranjais. Mas a Globo não fez nenhuma reportagem. Nem o serviço de inteligência da PM de São Paulo se preocupou em filmar porque os pequenos e médios agricultores estavam destruindo seus laranjais! Os parlamentares ruralistas realmente não têm consciência de sua classe – da burguesia rural. Em vez de defendê-la, ficam sempre puxando o saco da burguesia internacional. Razão tinha mesmo o nosso saudoso Florestan Fernandes: faltou-nos uma revolução burguesa nesse país, que pelo menos lhe desse sentido de classe e consciência de nação. Ariovaldo Umbelino de Oliveira é doutor em Geografia, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de Geografia Humana – da Universidade de São Paulo (USP). É estudioso dos movimentos sociais do campo e da agricultura brasileira e autor de vários livros.

Levantamentos de áreas da Cutrale São Paulo

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Exemplo chileno

Ao deliberar sobre um caso de vítimas da ditadura militar comandada pelo general Augusto Pinochet, a Corte Suprema do Chile considerou a tortura como crime contra a humanidade. A decisão abre caminho para outros julgamentos e para o reconhecimento das convenções internacionais assinadas pelo país em respeito aos direitos humanos. É um grande avanço a ser seguido pelo Supremo brasileiro.

Ação comprada

Durante o bombardeio sensacionalista da grande imprensa contra a ação dos trabalhadores sem-terra na área grilada da Cutrale, o economista Ladislau Dowbor afirmou, em mensagem na internet, que as corporações do agronegócio cortam 2.700 hectares de árvores da floresta amazônica por dia, 1 milhão de hectares por ano, e nada disso aparece na mídia. Para ele, “Um hectare de mata é muito mais que um hectare de laranja”.

Câncer pulmonar

O Ministério da Ciência e Tecnologia promete concluir até o início de 2010 o estudo de saúde ambiental, realizado por pesquisadores de seis universidades, sobre os danos causados aos moradores de casas cobertas por telhas de amianto. Esse estudo é inédito no Brasil. As avaliações feitas com trabalhadores da indústria do amianto comprovaram várias doenças pulmonares, inclusive alta incidência de câncer.

Ensino público

A União Nacional dos Estudantes (UNE) iniciou campanha para que os lucros de extração do petróleo do pré-sal sejam investidos na educação pública. De acordo com a entidade, “os estudantes exigem que metade de todos os recursos destinados ao Fundo Social, que será criado pela União, seja aplicada na educação do país”. A causa é justa e urgente, falta agora convencer o Congresso Nacional.

Discriminação

Não é piada não: no dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, uma procissão realizada por católicos do Assentamento da Reforma Agrária Dom Mauro, na periferia de Uberlândia (MG), foi cercada por forte aparato da Polícia Militar, inclusive com o uso de helicóptero. O pretexto para o bloqueio policial foi apreender veículos em situação irregular, mas tudo indica que o objetivo era mesmo intimidar a comunidade.

Alvo correto

Classificação Fundiária

(ha)

Fazenda Boa Esperança

Cajobi

Grande propriedade produtiva

1.672

José Cutrale Júnior

Fazenda Santa Alice

Bebedouro

Grande propriedade produtiva

2.508

José Cutrale Júnior

Fazenda Ronda - Gleba 3

São José dos Campos

Média propriedade produtiva

113

José Cutrale Netto

Fazenda Santo Antônio

Rincão

Grande propriedade produtiva

1.011

José Luís Cutrale

Fazenda Tropical

Tambaú

Grande propriedade produtiva

1.821

José Luís Cutrale

Fábrica de suco Araras

Araras

Média propriedade

Fazenda São José

Rincão

Fazenda Boa Vista

Da mesma forma que a guerra no Iraque e no Afeganistão não é feita pelos soldados estadunidenses que estão no campo de batalha, mas pelo governo de Washington, pelo complexo industrial militar e pelos interesses dos grupos econômicos, a guerra contra o crime organizado no Brasil não será decidida nos morros e favelas do Rio de Janeiro e São Paulo, mas no alto comando do narcotráfico, que não mora nas favelas. Evidentemente!

41

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Grande propriedade produtiva

184

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Bebedouro

Grande propriedade produtiva

363

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Campo Grande

Colômbia

Grande propriedade produtiva

5.592

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Capim Verde

Pitangueiras

Grande propriedade produtiva

2.157

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Colorado

Barretos

Grande propriedade***

1.947

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Graziela

Ibaté

Grande propriedade***

1.634

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Guarapiranga

Capela do Alto

Grande propriedade produtiva

15.400

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Olímpia

Olímpia

Média propriedade

147

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Santa Amélia

Araraquara

Grande propriedade produtiva

2.908

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Santa Maria da Figueira

Rincão

Grande propriedade produtiva

1.209

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Finalmente chegou à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo a denúncia – publicada na edição 328 do Brasil de Fato – sobre os sequestros ocorridos nos últimos três anos no município de Itaquaquecetuba, onde o Conselho Tutelar retirou 48 crianças de famílias pobres e entregou-as para a adoção de terceiros. Por iniciativa dos deputados José Candido e Raul Marcelo, a Comissão de Direitos Humanos vai realizar uma audiência pública no dia 5 de novembro.

Fazenda Santa Rosa

Barretos

Grande propriedade produtiva

1.699

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Aposentadoria

Fazenda São João

Bofete

Grande propriedade produtiva

1.507

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda São Jorge

Colina

Grande propriedade***

808

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda São José

Luís Antônio

Grande propriedade produtiva

1.850

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda São Luís

Botucatu

Grande propriedade***

2.218

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Sítio Santo André

Colina

Média propriedade

81

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Boa Sorte

Barretos

Média propriedade

115

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Santa Terezinha

Frutal

Média propriedade

233

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Santa Rita

Frutal

Grande propriedade***

2.014

Sucocítrico Cutrale Ltda.

BIM Frutal

Frutal

Minifúndio

2

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Novo Mundo

Comendador Gomes

Grande propriedade produtiva

522

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Rio Verde

Comendador Gomes

Grande propriedade produtiva

1.854

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Fazenda Cocal

Prata

Grande propriedade***

1.597

Sucocítrico Cutrale Ltda.

Triângulo Mineiro (Minas Gerais)

53.207 *** = 6 fazendas grandes e improdutivas, totalizando 8.011 hectares.

Fonte: Cadastro do Incra, 2003.

Direitos humanos

A proposta de extinção do fator previdenciário da aposentadoria, apresentada pelo senador Paulo Paim (PT-RS) em 2003, sofreu alterações e ainda depende de aprovação na Câmara dos Deputados e no Senado. As centrais sindicais esperam que seja aprovada até o final do ano. Quando se trata de algo de interesse dos trabalhadores, os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não têm a menor pressa, fazem corpo mole.

100% estatal

Os petroleiros que entraram em greve no dia 15 de outubro, em vários estados, não apenas aprovaram reivindicações trabalhistas e sociais específicas da categoria, como também a defesa do projeto que prevê a redução da jornada de trabalho, em tramitação no Congresso Nacional, e de “uma Petrobras 100% estatal e a volta do monopólio da empresa sobre a exploração do petróleo, incluindo o pré-sal”. Só com mobilização!


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brasil

As laranjas podres da Cutrale LUTA PELA TERRA Novo “Eldorado” foi prometido para trabalhadores sem-terra, mas é invadido ilegalmente pelo agronegócio Luciano Garcia

Aline Scarso de Iaras (SP) QUANDO AS 250 famílias, entre acampados e assentados, ocuparam, em 28 de setembro, a fazenda Capim pela quinta vez, não imaginavam que a ação repercutiria em nível nacional e colocaria novamente às claras a questão do conflito pela terra e a morosidade da reforma agrária no campo brasileiro. A fazenda está instalada em 10 mil hectares de terras públicas, na mesma região em que famílias de sem-terra estão acampadas há pelo menos dois anos. A área é utilizada ilegalmente para o plantio de laranjas pela empresa Sucocítrico Cutrale e pertence a uma extensão ainda maior de terras da União, chamada de Núcleo Monções. O Núcleo compreende cerca de 30 mil hectares de terras localizadas entre os municípios de Iaras, Lençóis Paulista e Borebi, no centrooeste do Estado de São Paulo. A maior parte dessas terras é ocupada ilegalmente por empresas ligadas à pecuária extensiva e ao agronegócio de madeira, cana-de-açúcar e laranja. O mesmo local, entretanto, foi prometido pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) aos sem-terra, que se deslocaram pela mesma motivação: a abundância de terras públicas. Em 8 de agosto de 2007, 78 famílias migraram para a regional de Iaras, acompanhadas posteriormente por outras 66 famílias. A maioria era oriunda da região do Pontal do Paranapanema, localizada a mais 320 km dali, próxima às divisas dos estados de Mato Grosso do Sul e Paraná, no extremo oeste paulista. Pressionar o governo

Numa dessas levas, veio o dirigente regional da Frente de Massas do Movimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra (MST), Légas (que teve o sobrenome omitido como forma de resguardar sua identidade). Ele explica que a área é ocupada pelos sem-ter-

“Sem vandalismo”

Polícia Militar filma ação do MST: apesar da acusação, nenhuma imagem da depredação foi apresentada

Com a denúncia da grilagem das terras, os sem-terra têm expectativa de viver delas um dia. No entanto, passados quase 15 anos, a maior parte dos hectares continua sob domínio de empresas privadas, a exemplo dos 1,5 mil ocupados por madeireiras

de Iaras (SP) Após a ação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na fazenda Capim, 35 acampados que trabalhavam para a empresa Sucocítrico Cutrale foram demitidos. Assim como eles, outros dependem do agronegócio como opção de emprego na região ou se deslocam até as cidades para trabalhar. É o caso de Daílton, que trabalha como pedreiro em Tatuí, distante 156 km. Ele e a esposa Neide moram com os filhos em um barraco de lona no acampamento Rosa Luxemburgo há dois anos. “Enquanto eles grilam terras, nós temos que ficar todo esse tempo acampado. A terra nunca sai”, afirma Neide. A dificuldade dos acampados também se repete para quem já conseguiu a posse definitiva da terra. A diferença é que nos assentamentos a pobreza está dividida em lotes. A demora na liberação dos recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) impede

quanto aguardam a desocupação das terras públicas pela Cutrale. A saída da empresa significaria o assentamento de mais 400 famílias. Motivadas por essa expectativa, assentados e acampados partiram para a quinta ocupação da fazenda Capim no dia 28 de setembro e por lá ficaram dez dias. A derrubada das laranjas

ra desde 1995. A tática é pressionar o governo ao explicitar a contradição existente no fato de áreas públicas serem ocupadas por empresas privadas e acelerar, assim, a reforma agrária na região. Com a denúncia da grilagem das terras, os sem-terra têm expectativa de viver delas um dia. No entanto, passados quase 15 anos, a maior parte dos hectares continua sob domínio de empresas privadas, a exemplo dos 1,5 mil ocupados por madeireiras. A terra – já desgastada e poluída pelos resíduos da monocultura de pinhos – será destinada às famílias apenas em 2012, quando serão cortados os pés da cultu-

ra. Onze áreas na região também estão em processo lento de desapropriação. Já a Sucocítrico Cutrale instalou-se em terras públicas há pouco mais de quatro anos. O próprio órgão do governo reconhece a ilegalidade. De acordo com nota divulgada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Justiça Federal deu a posse do imóvel ao Incra em 2007. De fato, apenas 30% da área foi desapropriada. No local, existe o assentamento Zumbi dos Palmares, que abriga 18 famílias desde outubro de 2008. O restante delas está acampado em um antigo horto florestal da União, en-

A realidade dos sem-terra Acampados e assentados sofrem com a falta de recursos, políticas públicas e estrutura

José Serra, e do próprio presidente Lula. Toda a grande imprensa se posicionou contrária ao MST. O deputado federal Ronaldo Caiado (DEM/ GO) chegou a declarar que o movimento seria “terrorista”.

o desenvolvimento das linhas de produção planejadas para os assentamentos da região: mandioca, leite, hortaliças e madeira. A ideia era abastecer os assentados e vender o excedente. No entanto, com a falta de recursos, só é possível a produção de itens básicos para a subsistência. Sem recursos

O casal Josias e Maria Inês é exemplo disso. Quando foram assentados no Zumbi dos Palmares, em outubro de 2008, eles receberam R$ 5,2 mil do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Parte desse dinheiro, R$ 1,4 mil, foi destinado para alimentação. O que sobrou foi usado na pequena propriedade, com a construção de uma casa de tijolos. “É preciso economizar para sobreviver”, conta Maria Inês. Hoje, eles conseguem criar galinhas e ter uma horta, um avanço para quem ficou quase oito anos acampado. O casal usa os R$ 68 do Bolsa Família para comprar, no município de Iaras, os mantimentos não produzidos. Segundo Légas, dirigente regional da Frente de Massas do MST, além da liberação de recursos, os assentados também precisariam receber ajuda técnica. “O solo é arenoso e precisa de correção”. Em toda área de Zumbi dos Palmares, não há água, energia elétrica nem estradas.

Quem não desenvolve nenhum tipo de plantação trabalha – assim como os acampados – para o agronegócio. É o caso da assentada Irene, que recebe R$ 600 na colheita de laranja para o grupo holandês Fischer. O restante da renda familiar vem da venda de cascas de pinho. É preciso encher um caminhão com cascas para conseguir R$ 200. A dura vida dos jovens

Irene é mãe de Jueniri e Juciara, de 16 e 12 anos respectivamente. A mais nova está organizada na luta pela terra desde os sete anos. Somente no ano passado, a família foi assentada em condições semelhantes as de Josias e Maria Inês. A falta de energia elétrica obriga Juciara a dormir cedo. “Às vezes, eu fico sozinha em casa e não tem nada para fazer. Depois que escurece, a gente deita e dorme”. Assim como outras crianças, Juciara se desloca mais de 20 km para cursar a 6ª série. Os filhos de Neide também estudam. Com as idades de 8, 10 e 13 anos, eles acordam por volta das 5 horas para percorrer, de ônibus, a distância entre a zona rural e a escola. A realidade dos filhos motiva a luta de pais pela terra e infraestrutura. Em comum, todos os entrevistados apoiaram, organizaram e/ou ocuparam as terras da Cutrale. (AS)

Nesse mesmo dia, a Polícia Militar gravou as imagens de sem-terra manejando tratores que derrubaram 7 mil de pés de laranja, de acordo com as estatísticas da própria corporação. Em protesto, os trabalhadores rurais plantariam feijão no lugar de parte da monocultura. A quantidade derrubada corresponde a 0,7% do 1 milhão de pés de laranja existentes na fazenda. Com a ocupação, os semterra tentavam garantir uma reunião com o superintendente do Incra para tratar da situação jurídica da fazenda. No entanto, uma decisão da Justiça de Lençóis Paulista determinou que os sem-terra deixassem a área, sob pena de

pagamento de multa diária de R$ 500 por pessoa. No dia 7 de outubro de 2009, as famílias voltaram de caminhão aos acampamentos e assentamentos, após ameaças de prisão e uso da força de 200 policiais. Dois dias antes, a Rede Globo resolveu mostrar as imagens filmadas pela PM e as repetiu, constantemente, em seus jornais. O fato reascendeu o debate no Congresso para a instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), formada por deputados e senadores com o objetivo de questionar se recursos públicos são supostamente utilizados de forma ilegal pelo MST. A primeira tentativa de instalação da CPMI havia sido barrada quando 44 deputadores retiraram suas assinaturas do requerimento de instalação da Comissão. Lideranças políticas de nível nacional se manifestaram contra o ato dos acampados, caracterizando a ação como vandalismo. Este foi o posicionamento de autoridades como o governador de São Paulo e futuro possível candidato do PSDB à presidência,

Foi sem surpresa que Légas recebeu o teor das declarações. “A própria Justiça age de má-fé com os movimentos sociais, principalmente o MST. Eles são governo e devem defender o patrimônio do governo. Nós defendemos nossas terras, que estão nas mãos dessas empresas”, sentencia. “Não estamos aqui para fazer vandalismo, como dizem. A Cutrale acha que tem mais direito sobre essas terras do que todos que estão aqui, mas nós não achamos isso. Da minha parte, eu volto lá e ocupo novamente. Não me intimida o que eles falam na imprensa”, afirmou a acampada Cristina, que participou ativamente da ocupação. Pouco tempo depois da divulgação das imagens, os ocupantes passaram a ser acusados de destruir maquinários e outros bens da Cutrale, roubar 15 mil litros de combustíveis e furtar pertences das famílias que trabalham para a empresa. Os sem-terra negam a depredação. “Isso foi invenção da cabeça deles. Por que não nos revistaram? O que nós faríamos com combustível aqui?”, indaga Cristina. “Quando nós chegamos ao local, parte dos tratores já estava em manutenção. Tinha vários desmontados e estes nós não utilizamos. Utilizamos apenas alguns para preparar o solo para a produção”, conta Légas. Os sem-terra não imaginaram que poderia haver manipulação dos fatos e forjamento de provas, explica Cristina. “Não imaginamos que a polícia pudesse forjar a destruição”. Apesar da acusação, a Polícia Militar não tem nenhuma imagem da depredação. A desocupação pacífica foi filmada pela imprensa. O MST, que organiza as famílias, anunciou que seria favorável à criação de uma comissão independente para as investigações.

A realidade da Cutrale Formação de cartel, danos ambientais e grilagem de terras públicas são algumas das irregularidades cometidas pela empresa de suco

as contas do grupo. Fiscais de Brasília e São Paulo procuraram entender como a Cutrale ganha tanto dinheiro. Não localizaram nenhuma irregularidade. Uma autoridade da Receita relatou à Veja que a estratégia para elevar a lucratividade do grupo passa por contabilizar uma parte dos resultados por intermédio de uma empresa sediada no paraíso fiscal das Ilhas Cayman. Com isso, informa a autoridade da Receita, a Cutrale conseguiria pagar menos imposto no Brasil”.

de Iaras (SP) Reportagem da revista Veja, publicada na edição de 14 de maio de 2003, traça o perfil do dono da Cutrale, o brasileiro José Luís Cutrale, que “detém 30% do mercado global de suco de laranja, quase a mesma participação da Opep [Organização dos Países Exportadores de Petróleo] no negócio de petróleo”. O repórter conta a receita do sucesso: “o principal segredo do negócio consiste em adquirir fruta a um preço baixo – preço de banana, brincam os fornecedores –, esmagála pelo menor custo possível e vender o suco a um valor elevado”. A mesma matéria afirma que “a Receita Federal se interessou pela questão e teve dificuldade em analisar

Os donos da companhia também são réus por posse ilegal de armas de fogo O repórter destaca acordos de bastidores de José Luís Cutrale com os governos e lista que os pequenos produtores acabam desenvolvendo “uma relação que mistura temor e dependência” com “o rei da laranja”. “Produtores ouvidos por Veja afirmam que a família Cutrale costuma fazer enorme pressão para conseguir preços melho-

res na fruta ou mesmo adquirir fazendas.” Processos Além da formação de cartel, a Sucocítrico Cutrale responde na Justiça pela utilização de terras públicas griladas e danos ambientais. Os donos da companhia também são réus por posse ilegal de armas de fogo. Apesar de os movimentos sociais divulgarem as “laranjas podres” da Cutrale, o presidente Lula, o governador paulista, José Serra, e os líderes da bancada ruralista no Congresso – o deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO) e a senadora Kátia Abreu (DEM-TO) – calaram-se sobre o assunto e continuaram a criminalizar os sem-terra da regional de Iaras. Parte deles é expressão das mais de 1,6 mil famílias acampadas no Estado de São Paulo, e das 90 mil no território brasileiro. A avaliação é a mesma entre os entrevistados: enquanto o governo federal não fizer de fato a reforma agrária, os conflitos no campo devem continuar. Segundo dados colhidos até 2006 no Censo Agropecuário elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os latifundiários monopolizam 75,7% das áreas agricultáveis do país, apesar de representarem apenas 15,6% dos imóveis no campo. (AS)


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Entre a morte e a escravidão Leandro Uchoas

SUPEREXPLORAÇÃO Trabalhadora morre queimada em plantações de cana-de-açúcar e traz à tona recorrência do trabalho escravo e degradante no norte do Estado do Rio de Janeiro Leandro Uchoas de Campos dos Goytacazes (RJ)

A IMAGEM ENEGRECIDA já não chocava mais. Era natural na altamente poluente fuligem de cana que se apegava a seu corpo todos os dias, desde a infância precoce. Também o foram as mãos carcomidas e o rosto sofrido durante mais de quatro décadas. Mas, dessa vez, Cristina Santos havia morrido. Fora engolida pelas chamas das queimadas nos canaviais nos quais ela viveu quase toda a sua vida. O fogo que consome a cana, agride os céus e inferniza o cotidiano dos trabalhadores foi ateado, no distrito de Ponta Grossa dos Fidalgos, em plena luz do dia. A morte de Cristina nada tem de ineditismo, exceto sua revelação. Outros casos se dão com frequência na triste planície de Campos dos Goytacazes, mas raramente tornam-se conhecidos. Essas histórias, como tantas outras da região, parecem saídas dos livros de história do período colonial. Mas não são. A fatalidade ocorreu no início de outubro, um mês antes de Cristina completar 50 anos. O marido está chegando aos 60, e, agora, só espera o fim da safra, em dezembro, para se aposentar. Não suportará permanecer. A irmã e companheira ainda está em estado de choque, e não voltou a trabalhar. Os sete filhos perderam aquela que consideravam “o alicerce de sua família”. Tida como uma liderança entre os cortadores de cana, Cristina ocupava há alguns anos a função de encarregada. Segundo seus companheiros, era afetuosa e justa, porém rígida.

As queimadas que a mataram já estão condenadas em instâncias internacionais há anos. Provocam aumento das concentrações de ozônio e de monóxido de carbono na atmosfera Queimadas As queimadas que a mataram já estão condenadas em instâncias internacionais há anos. Provocam aumento das concentrações de ozônio e de monóxido de carbono na atmosfera. No Brasil, alega-se que a mudança para uma colheita sem queimadas deve ser gradual, por questões econômicas. É verdade. O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc (PT), anunciou no início do ano planos de reduzir as queimadas em 20% até o ano que vem, e 50% até 2014. Em

11 anos, as eliminaria. Entretanto, o princípio de se queimar apenas à noite, para poupar o trabalhador, é completamente desrespeitado em Campos. Na cidade, há entre 8 e 10 mil trabalhadores vivendo da monocultura de cana. Estima-se que pelo menos metade seja “clandestina” – não tem registro nem direitos. A região é fértil em denúncias de trabalho escravo ou degradante. Em julho, foram libertados 280 trabalhadores em condições de escravidão na cidade e redondezas. Entre eles, 22 mulheres e quatro adolescentes, sendo um de 13 anos. “A degradação aumentou nos últimos anos porque a fiscalização é menor”, diz um dos coordenadores do Comitê Popular de Combate e Erradicação do Trabalho Escravo, que não quis se identificar. Em Campos, as queimadas são apenas um problema pequeno perto de uma realidade que deveria ter sido abandonada nas páginas da história. Os trabalhadores são roubados em diversos momentos. Saem de casa para o trabalho sem saber quanto vão ganhar. O patrão é quem define o valor da cana, geralmente abaixo do preço justo. Em seguida, pode ser roubado na pesagem, na conversão de valores e até pelo programa de computador – os patrões chegaram a desenvolver softwares “desonestos” de cálculo. “O trabalhador faz o serviço sem saber quanto vai ganhar. Nem Marx previu tanta exploração”, comenta o mesmo coordenador. Bebe-se água insalubre, come-se comida estragada, mora-se em lugares sujos. Uma amostra da água bebida pelos trabalhadores chegou a apontar 100 vezes o índice máximo aceito de coliformes fecais. Clandestino Hipertensão, diabete e alcoolismo são bastante comuns. A câimbra, então, é frequente. Há trabalhadores que morrem quando o coração – um músculo – contrai. Só procuram o hospital quando o corpo já está retorcido. Valdeir Teixeira é um desses trabalhadores; fez hora-extra durante uma tarde e voltou para casa feliz com os R$ 66,00 que tirou da roça. No outro dia, acordou com os músculos completamente contraídos. Aos 59 anos – mais de 50 na profissão – passou o dia internado. “Cana que vale 15 centavos, eles oferecem oito. Dizem que é porque perderam R$ 8 mil. E quando eles ganham? Dão pra gente?”, ironiza Valdeir. Ele trabalhou três anos na usina de Barcelos, pertencente ao Grupo Othon, que fechou as portas em 2008 alegando falência (o grupo Othon tem uma rede de 38 hotéis, duas posadas e dois resorts. As ações do grupo subiram 5% quando, recentemente, foram anunciadas as Olimpíadas no Rio em 2016). Além disso, Valdeir, que agora trabalha com carteira assinada, não recebeu os últimos pagamentos e o Leandro Uchoas

Cidade foi a última do país a acatar a abolição da escravatura

Em Campos (RJ), homem se encaminha para o corte da cana: região é fértil em denúncias de trabalho escravo

Hipertensão, diabete e alcoolismo são bastante comuns. A câimbra, então, é frequente. Há trabalhadores que morrem quando o coração – um músculo – contrai. Só procuram o hospital quando o corpo já está retorcido FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). Ser clandestino acaba sendo mesmo, em parte, melhor negócio. Ganha-se 40% a mais, em média, do valor. Entretanto, trabalha-se em condições ainda mais degradantes. Trabalhadores são aliciados pelos chamados “gatos” em estados como Bahia, Alagoas, Maranhão, Piauí e Sergipe. Chegam em Campos com a promessa de carteira assinada e boas condições de trabalho. Terminam presos ao trabalho, sem dinheiro para voltar para casa. Emanuel é um alagoano que chegou há seis meses na região, com a promessa de ser “fichado”. Terminou prisioneiro do trabalho. O Ministério Público esteve em sua casa, há dois meses, entrevistando moradores e recolhendo provas. Desde então, não voltou mais. “Só consigo dinheiro para comida e aluguel. Se pudesse, voltava pra casa [em Alagoas] hoje mesmo”, diz. Emanuel, às vezes, se nega a cortar cana por considerar o preço muito injusto. Os alagoanos são considerados bravos na região. Talvez seja apenas um aspecto cultural. Em Campos é comum o trabalhador enxergar a si mesmo como mercadoria. Quem vem de fora nem sempre reproduz esse comportamento. Encontro O tratamento escravagista não coloca as usinas em boas condições de competitividade no setor sucroalcooleiro. “Eles continuam com a

postura aristocrática do século 19 e acabaram perdendo espaço para São Paulo e Minas”, comenta o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Arthur Soffiati. O próximo encontro itinerante da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) está marcado para acontecer em Campos, com a provável presença do secretário de Direitos Humanos do governo federal, Paulo Vanucchi. Tripartite – sociedade, Estado e empresariado –, a Comissão escolheu o município por conta das denúncias recentes de trabalho escravo ou degradante. No último ano, 4.418 pessoas foram libertadas no território nacional por trabalho escravo. A cultura da cana teve forte aumento em proporção. Em 2003, representava apenas 11,4% dos casos. Em 2008, após as políticas de incentivo ao etanol, ultrapassavam 50%. O Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo foi lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2003 com o objetivo, na época, de eliminar a prática até 2006. A União Europeia chegou a ameaçar, recentemente, não importar etanol do Brasil se o trabalho escravo não fosse combatido. Segundo o artigo 149 do Código Penal, há condições análogas à escravidão quando a pessoa for submetida a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, seja pelas condições degradantes ou por dívida provocada pelo empregador.

Um escravocrata amigo de presidente de Campos dos Goytacazes (RJ) Um nome se destaca entre os empresários do setor sucroalcooleiro. O presidente da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool, José Pessoa de Queiroz Bisneto, é a quarta geração de uma família que se construiu com a exploração da monocultura da cana. Além do Estado do Rio, tem plantações em São Paulo, Mato Grosso e Sergipe. Suas empresas têm a capacidade de moer mais de 8 milhões de toneladas de cana por ano (a título de com-

paração, a safra no Estado do Rio, este ano, deve ser próxima desse valor). “É o grande escravocrata hoje”, define Marcos Pedlowski, professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Em 2004, deu R$ 1,2 milhão à Salgueiro, que levava à passarela do samba o enredo “A cana que aqui se planta tudo dá, até energia... Álcool, o combustível do futuro”. A música satanizava o petróleo, alavancando a imagem do álcool. J. Pessoa, como é conhecido, chegou a ser cogitado para ministro do governo Lula, de quem é bastante próximo. (LU)

Cidade se caracteriza por conservadorismo e desigualdade O contraste entre o volume de recursos dos royalties do petróleo e a precariedade social começa a despertar mobilização e resistência de Campos dos Goytacazes (RJ)

Talvez seja suficiente lembrar que Campos é o berço político do casal Anthony e Rosinha Garotinho, e do falecido presidente da Federação de Futebol do Rio de Janeiro Eduardo Viana, o “Caixa d’Água”. A história da maior cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro é repleta de tradição, conservadorismo e frágil mobilização social. “Basta verificar as colunas sociais. São as mesmas famílias há anos”, resume o professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) Marcos Pedlowski. Com 432 mil habitantes, e a maior extensão territorial do Estado, Campos é a sexta cidade mais rica do país. Qualquer um que visita suas ruas duvida do que vê. Ruas sujas, habitações precárias, comércio pouco desenvolvido e transporte sucateado marcam a paisagem a todo momento. Negro e pobre, o povo campista parece não ser beneficiado por um centavo dos R$ 1,4 bilhão do orçamento do município. Se pudesse ser simplesmente distribuído à população, cada habitante receberia R$ 3,2 mil. O valor bilionário se deve aos royalties do petróleo. TFP A cidade, não por acaso, foi a última no Brasil a acatar a abolição da escravidão no século 19. Os ultraconservadores barões da cana, entretanto, enfrentaram uma resistência heroica. José do Patrocínio, o “Tigre da Abolição”, é campista. Com o jornalista Luís Carlos de Lacerda, liderava a Sociedade

Campista Emancipadora. Nos anos 1960, a cidade seria o berço da organização de extrema-direita católica Tradição Família e Propriedade (TFP). Liderada pelo jornalista Plínio Correia, a TFP deu base social ao golpe civil-militar de 1964. O bispo Castro Maia apoiou Plínio até o momento em que o jornalista passou a santificar a própria mãe. Ainda forte na cidade, a TFP tem hoje duas tendências. Politicamente, parece que toda a institucionalidade campista está interligada. Basicamente, o poder se divide entre os que orbitam em torno de Garotinho e os que começaram a trajetória a seu lado mas mudaram de rumo. Sua esposa e ex-governadora Rosinha é a prefeita da cidade e, com a política de uniformização do preço das passagens de ônibus a R$ 1,00, tende a manter o domínio.

Ruas sujas, habitações precárias, comércio pouco desenvolvido e transporte sucateado marcam, a todo momento, a paisagem de Campos dos Goytacazes A resistência ao poder das oligarquias começou a tomar corpo em 2009. Uma série de assentamentos foi surgindo nas terras do município. Zumbi dos Palmares, Dandara, Che Guevara e Ilha Grande são os principais. Reunindo 18 organizações, o Comitê Popular de Combate e Erradicação do Trabalho Escravo é o movimento mais forte que a cidade já teve. Em 2003, seu primeiro ano, conseguiram importantes vitórias. Entretanto, sofrem com a invisibilidade e a força institucional das tradições medievais. (LU)


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américa latina Vinicius Mansur

Alba avança em aliança com movimentos sociais INTEGRAÇÃO O VII Encontro de presidentes dos países que compõem o bloco serviu, também, para alavancar campanha de Evo Morales Vinicius Mansur de Cochabamba (Bolívia) COM AS ARQUIBANCADAS e o gramado do estádio Félix Capriles, na cidade de Cochabamba, Bolívia, completamente tomados pelo povo boliviano, os presidentes dos países membros da Alternativa Bolivariana para as Américas – Tratado de Comércio dos Povos (Alba-TCP) encerraram o sétimo encontro oficial do bloco regional, que aconteceu entre os dias 15 e 17 de outubro. Em uma tarde de céu aberto, o sol forte intensificou o colorido das diversas bandeiras de países, partidos políticos e movimentos sociais, com destaque para as bandeiras indígenas quadriculadas e multicolores – as sagradas whipalas –, e também inflamou o público, que entoava como palavra de ordem: “Evo de nuevo!”, em alusão às eleições presidenciais bolivianas, que ocorrerão em dezembro. Embalados pela manifestação popular, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, e a chanceler de Honduras, Patricia Rodas, fizeram coro pela reeleição de Morales, afirmando que o atual mandatário boliviano ganhará o pleito “porque ele dá vida à luta permanente pelos pobres” e, por isso, “o povo está do seu lado”. Em seu discurso, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, aproveitou para rechaçar as acusações de que financia a campanha de Evo e dizer que o apoia “com a alma, com o coração, como apoia a Bolívia”. Também estavam presentes no encontro as representações oficiais de Cuba, através do primeiro vice-presidente, José Machado, e os primeirosministros da República Dominicana, Roosevelt Skerrit; de São Vicente e Granadinas, Ralph Gonsalves; e de Antígua e Barbuda, Baldwin Spencer; além do presidente equatoriano, Rafael Correa. Aliança Durante a cerimônia de encerramento, um conjunto de militantes entregou aos repre-

sentantes oficiais as conclusões finais da 1º Reunião dos Conselhos de Movimentos Sociais da Alba. As propostas estão dividas em sete eixos: Economia Comunitária, Direitos da Mãe Terra e dos povos indígenas diante das mudanças climáticas, Soberania Alimentar, Crise Civilizatória, Consulta e Participação Sistemática nos Megaprojetos, Autonomia e Autodeterminação e Fundamentação da Alba. A reunião de movimentos que elaborou o documento é mais um passo na consolidação de uma aliança entre organizações populares e governos, nos marcos da Alba, reivindicada por Chávez durante o Fórum Social Mundial de 2006, em Caracas, Venezuela. O objetivo, traçado em abril de 2007, durante a quinta reunião do bloco, é consolidar o Conselho de Movimentos Sociais, que terá o mesmo status dos demais conselhos da articulação, mas, de acordo com Marcelo Loeiro, membro do Centro Martin Luther King, de Cuba, com autonomia e hierarquia distinta das demais instituições. “Esta será uma instância de diálogo, intercâmbio e de pressão constante junto ao Conselho Presidencial. É a tentativa de conectar de uma vez por todas, em uma só frente, tanto a força governamental dos países da Alba como os movimentos que trabalham dentro dos princípios da Alba”. Simbologia Para o membro do Comitê de Terra Urbana da Venezuela, André Antillano, a criação desse conselho é simbolicamente importante porque faz da Alba o primeiro mecanismo de integração regional a incorporar movimentos sociais, sob a premissa de que uma real integração não deve ser assunto só dos governos, mas dos povos. Porém, Antillano destacou que a reunião dos movimentos não deliberou pela implementação imediata do Conselho, pois esse processo precisa ser construído de acordo com o tempo das organizações, e não dos governos.

Apoiadores do presidente Evo Morales lotaram o estádio Félix Capriles para a festa de encerramento do encontro

“Precisamos dar tempo agora para os países avançarem na constituição de seus capítulos nacionais, que devem ser plurais, democráticos, participativos, consensuais, incluindo movimentos e redes locais que se articulem com grandes referências nacionais. A formação do conselho precisa passar por esse processo para se sustentar em articulações reais. Em Cuba, Venezuela e Bolívia, esses capítulos já foram fundados”, diz.

Embalados pela manifestação popular, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, e a chanceler de Honduras, Patricia Rodas, fizeram coro pela reeleição de Morales Antillano acrescenta que a adesão ao conselho não se restringe aos países cujos governos são signatários da Alba. “Assim, já fazem parte da articulação movimentos brasileiros, peruanos e até estadunidenses”, exemplifica. O dirigente venezuelano afirma, ainda, que os esforços da direção provisória deverão se concentrar em incorporar as articulações em nível continental já existentes, como os Grito dos Excluídos, redes latino-americanas de indígenas, afrodescendentes, camponeses, entre outras. “O intuito é gerar os processos de intercâmbio e de formação, dando vida material e cotidiana à integração, não Vinicius Mansur

“Evo de novo”: militantes se preparam para as eleições de dezembro

fazer dela só um conjunto de atos formais. Já está prevista uma assembleia de movimentos sociais no Brasil, proposta pelo MST, no primeiro semestre de 2010”, conclui. A direção transitória, criada apenas com essa finalidade, existirá pelos próximos seis meses e será presidida pelo dirigente da Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), Isaac Ávalos. Honduras O sétimo encontro oficial da Alba também consolidou a solidariedade dos países membros com o povo hondurenho. Nas resoluções do encontro, consta uma solicitação imediata de uma reunião dos chanceleres da Organização dos Estados Americanos (OEA) para endurecer a pressão econômica sobre o governo golpista de Roberto Micheletti. O documento pede ainda que a Organização das Nações Unidas (ONU) nomeie uma comissão especial para ir a Honduras e exigir o cumprimento da Convenção de Viena, que diz respeito à inviolabilidade das missões diplomáticas, como forma de apoiar o Brasil. Os países se declararam em vigília permanente até que o presidente deposto, Manuel Zelaya, seja restituído, e se comprometeram a não reconhecer nenhum processo eleitoral realizado sob a tutela do regime vigente. A determinação é impedir o ingresso e a permanência nos territórios de todos os países da Alba dos principais responsáveis pelo golpe de Estado em Honduras. A ministra de Relações Exteriores de Honduras, Patricia Rodas, agradeceu o apoio. “Nasceu em Honduras um processo revolucionário que não irá retroceder. E não haveria resistência sem solidariedade. Estamos agradecidos com os irmãos da Alba. O povo hondurenho e Manuel Zelaya se sentem fortalecidos para seguir em luta pela democracia”. O próximo encontro dos chefes de Estado da Alba acontecerá nos dias 13 e 14 de dezembro, em Havana, Cuba, onde se comemorará os cinco anos de fundação da aliança criada por iniciativa de Venezuela e Cuba, em dezembro de 2004. Segundo Hugo Chávez, o oitavo encontro deverá contar com a participação do “pai da Alba”, Fidel Castro, pois o objetivo é aprimorar a estratégia de expansão desse novo modelo de integração, visando “formar um polo de forças mundial”. A Alba, surgida para proclamar os princípios socialistas para o século 21, atualmente conta com mais outros sete membros: Equador, Bolívia, Honduras, Nicarágua, República Dominicana, São Vicente e Granadinas e Antígua e Barbuda.

Encontro também ratifica solidariedade econômica e social de Cochabamba (Bolívia) Os mandatários dos países integrantes da Alba estabeleceram, no encontro realizado em Cochabamba, os princípios fundamentais que irão reger o Tratado de Comércio dos Povos (TCP). Rechaçando a lógica de disputa comercial imposta pelo modelo capitalista, o tratado zela pelo desenvolvimento do comércio regional baseado na complementaridade, solidariedade e cooperação para o “Viver Bem”, como é chamado o conceito de “modo de vida” ideal para os indígenas andinos, que propõe novas relações entre o ser humano e a natureza e o respeito à diversidade cultural.

Moeda comum Para alcançar a soberania monetária e financeira, visando eliminar a dependência do dólar, a redução das assimetrias econômicas regionais e a consolidação progressiva de uma zona econômica de desenvolvimento compartilhado, foi criado o Sistema Unitário de Compensação Regional de Pagamentos (Sucre). De acordo com o ministro de Finanças da Bolívia,

Luis Arce, o plano de implementação do Sucre, que está a cargo de alguns comitês técnicos, deve ser a semente para a criação de uma moeda latino-americana. Na área econômica, o encontro também definiu a criação de duas empresas gran-nacionais, ou seja, que envolvem a participação de mais de um Estado membro; uma voltada às exportações e importações, a Albaexim, para estabelecer mecanismos de complementaridade comercial entre os países membros; e outra que irá impulsionar a extração e o processamento de alumínio, ferro e aço. Na área educacional, os presidentes ratificaram a continuidade do Projeto Gran-nacional de Alfabetização e Alfabetização-postal, além de se comprometerem a agilizar os trâmites de reconhecimento de títulos universitários dos diferentes países integrantes do bloco regional. O Fundo Editorial Educativo da Alba, que tem como objetivo estimular a produção, publicação e distribuição de material didático comum, passou a ser coordenado pela Bolívia. (VM)

Confira outras medidas definidas pela Alba:

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Extensão a curto prazo do Projeto gran-nacional Albamed, que estabelece um Registro Sanitário Único aos países da Alba, possibilitando acesso a medicamentos eficazes, seguros e de qualidade; Criação do Comitê Ministerial de Mulheres e Igualdade de Oportunidades, para elaborar a política de transversalidade de gênero em todas as iniciativas da Alba; Elaboração de uma proposta para a implementação da Rádio del Sur, de uma agência de notícias da Alba, de um canal de TV temático com produção de conteúdo compartilhada pelos países membros e de uma Escola de Televisão e Cinema da Alba. Também está prevista a expansão do projeto “Observatório dos Meios de Comunicação”, já em curso no Equador e na Venezuela; Conformação do Comitê Permanente de Soberania e Defesa da Alba, com o objetivo de consolidar uma estratégia de defesa integral dos países que compõem o bloco, criando a Escola de Dignidade e Soberania das Forças Armadas; Acordo para reconhecimento de certificados de qualidade para o setor têxtil; Construção da Cadeia gran-nacional de Hotéis da Alba, o Instituto gran-nacional de Formação e Capacitação para Especialidades Básicas de Turismo e o Centro de Pesquisa para o Desenvolvimento Turístico.


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américa latina Reprodução

Ex-preso político uruguaio é favorito à presidência ANÁLISE Nos discursos de campanha, Pepe Mujica tem destacado a importância de ser um candidato de esquerda e lembra que,“como disse Lula, o coração está na esquerda” Mário Augusto Jakobskind

NO PRÓXIMO domingo, 25 de outubro, 2,463 milhões de uruguaios vão às urnas escolher o sucessor do presidente Tabaré Vázquez, 66 deputados e 33 senadores. Irão opinar, também, em plebiscito, sobre dois temas relevantes: o fim ou não da Lei de Caducidade, que, em 1986, favoreceu torturadores, tornando-os impunes, e, ainda, se os cidadãos que emigraram e continuam no exterior – cerca de 600 mil – podem ter direito a voto onde se encontram.

Pepe Mujica é considerado por vários analistas como um dos políticos de maior carisma da história uruguaia recente. Ele fala uma linguagem que todos entendem e seus discursos são, em geral, pronunciados de forma emocional O favorito nas pesquisas, Pepe Mujica, que tem como vice Danilo Astori, o ministro da Fazenda de Tabaré Vázquez, hoje é considerado um político de esquerda moderado e tem como modelo Luiz Inácio Lula da Silva. Os últimos dias vêm sendo sendo decisivos para definir se haverá ou não segundo turno, já que a maioria das pesquisas indica que Mujica, da Frente Ampla, chegava a cerca de 45%, não alcançando, portanto os 50% mais

um necessários para obter a maioria absoluta. O candidato do Partido Nacional, o expresidente Luiz Alberto Lacalle, que estava com 30%, e Pedro Bordabery, com 11%, tinham apenas como vantagem o fato de ocuparem espaços na televisão bem maior do que Pepe Mujica. O percentual de indecisos alcançava cerca de 10%. TVs em campanha

Nos canais privados, as mensagens dos candidatos custam 150 dólares o minuto. Exemplo mais gritante da disparidade entre os tempos de exposição das candidaturas na televisão podia ser visto na emissora Montecarlo, que em seus noticiários jornalísticos diários informam apenas as atividades dos candidatos dos partidos Nacional e Colorado, geralmente de teor conservador e com ênfase na questão da segurança pública, até porque a emissora prioriza o tema violência em sua programação. Na última semana de campanha, os uruguaios aguardavam com muita expectativa o resultado da última pesquisa permitida por lei, que seria divulgada na quartafeira (21) à noite. Depois dessa informação, somente podem ser divulgadas pesquisas boca-de-urna, logo após o último voto ser depositado na urna. Pepe Mujica é considerado por vários analistas como um dos políticos de maior carisma da história uruguaia recente. Ele fala uma linguagem que todos entendem e seus discursos são, em geral, pronunciados de forma emocional, como o do dia 17, no encerramento da campanha de seu agrupamento político integrante da Frente Ampla, o Espaço 609, composto por vários segmentos políticos, como o MPP (Movimento de Participação Popular) e o PVP (Partido pela Vitória do Povo) e agrupamentos de militantes oriundos dos partidos tradicionais, Nacional e Colorado, entre outros. Na ocasião, diante de 30 mil correligionários reunidos na Praça 1 de Maio, em Montevidéu, Pepe Mujica fez o histórico dos avanços conseReprodução

guidos pelo Uruguai na gestão do atual presidente Tabaré Vázquez, desde o aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores até a redução, para 30 anos, do tempo de serviço para homens e mulheres obterem a aposentadoria, passando pela integração digital, que permitiu a 400 mil estudantes do ensino fundamental receberem gratuitamente laptops, disponibilizados em tempo integral, e também utilizados pelos familiares dos alunos. Numa carreata da campanha da Frente Ampla, durante a passagem por bairros populares, estudantes adolescentes exibiam os computadores juntamente com bandeiras uruguaias e fotos de Pepe. Nos discursos de campanha, Pepe Mujica tem destacado a importância de ser um candidato de esquerda e lembra que, “como disse Lula, o coração está na esquerda”. Como saldo da gestão de Tabaré Vázquez, em que Pepe Mujica foi ministro da Agricultura e Pecuária até ser escolhido candidato à Presidência pela Frente Ampla, pode ser mencionado ainda o fato de o governo ter tornado obrigatória, desde 2005, a contratação de funcionários para trabalhar no serviço público apenas por concurso, eliminando com isso a forma anterior de indicação por políticos e partidos tradicionais.

Luiz Alberto Lacalle é um típico representante da oligarquia uruguaia, dividida entre os Partidos Colorado e Nacional, que eram absolutamente majoritários até a chegada ao governo da Frente Ampla Além disso, na área rural, passou a ser obrigatório o respeito à jornada de trabalho de oito horas e o salário mínimo no campo aumentou em 100%, da mesma forma que cresceu o poder aquisitivo dos uruguaios em 30%. Outro ponto que vem sendo mencionado na campanha de Pepe Mujica é o fortalecimento do canal público de televisão, de alcance nacional, bem como o de três rádios em AM e várias em FM. Perfil mostra diferenças

Luiz Alberto Lacalle, do Partido Nacional

Pepe Mujica, 74 anos, não se alinha aos políticos tradicionais latino-americanos. Ex-guerrilheiro do MLN (Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros), foi preso político da ditadura militar durante 13 anos, quando viveu em regime de solitária. Para se ter uma ideia de co-

Pepe Mujica, candidato da Frente Ampla

Na área rural, passou a ser obrigatório o respeito à jornada de trabalho de oito horas e o salário mínimo no campo aumentou em 100%, da mesma forma que cresceu o poder aquisitivo dos uruguaios em 30% mo Mujica foi tratado durante os 13 anos que esteve preso, vale lembrar que, às vezes, nem água lhe davam. Para enfrentar a situação, bebia a própria urina. Já Luiz Alberto Lacalle é um típico representante da oligarquia uruguaia, dividida entre os Partidos Colorado e Nacional, que eram absolutamente majoritários até a chegada ao governo da Frente Ampla, na eleição de outubro de 2004. Lacalle governou o Uruguai de 1990 a 1995, entregando a faixa presidencial a Juan Maria Sanguinetti, colorado. Este a entregou ao também colorado Jorge Battle, que foi sucedido em março de 2005 por Tabaré Vázquez. Lacalle deixou o governo acusado de corrupção e com a rejeição de 80% dos uruguaios, segundo indicavam as pesquisas. Na campanha eleitoral de 2009, Lacalle prometeu maior desenvolvimento para o país e alertou para a necessidade de maior rigor na questão da segurança. Ele garantiu que, se for eleito, melhorará a qualidade de vida dos uruguaios, contando possivelmente com a memória fraca dos eleitores, já que, no seu mandato presidencial, aconteceu exatamente o contrário, em função de sua política econômica neoliberal e de favorecimento ao capital financeiro. Pedro Bordabery, o mais jovem dos candidatos, intitula o seu programa de governo como “Uma nova forma de pensar e fazer política”. Ele é filho do ex-presidente Juan María Bordabery, que atualmente está em prisão domiciliar por ter sido um dos principais responsáveis pelo golpe de Estado que levou o Uruguai a uma ditadura de 12 anos. É acusado de ordenar o assassinato, na Argentina, de opositores do regime ditatorial; entre outros, do senador Zilmar Michellini e do deputado Gutierrez Ruiz. Pedro evita falar sobre o pai, mas, ao ser indagado a respeito, respondeu que o caso está na Justiça. O candidato do Partido Colorado também tem dado ênfase à questão da segurança pública e defende a redução da idade penal para 16 anos. Ele tem feito, ainda, promessas de melhora no padrão de vida dos trabalhadores, esquecendo-se de que o

seu partido, o Colorado, governou o Uruguai por muitos anos e piorou a vida da maioria da população com a política econômica aplicada, sempre em favor do capital financeiro. Tanto Bordabery como Lacalle e os seus seguidores usam, às vezes, uma linguagem que remonta ao período da Guerra Fria, com a advertência sobre um suposto “perigo comunista”, que serviu de argumento para Juan María Bordabery quebrar a ordem constitucional. Lei do Aborto

Na última semana de campanha, a Igreja Católica recomendou a seus seguidores não votarem nos partidos e candidatos que aprovaram no Congresso a lei que descriminaliza o aborto, que acabou sendo vetada pelo presidente Tabaré Vázquez. Sem citar nominalmente a Frente Ampla, autora do projeto, a Igreja Católica, na prática, recomendou a votação nos candidatos do Partido Nacional, cujos representantes no Congresso votaram maciçamente contra o projeto. Ao vetar a lei sobre o aborto, o presidente Tabaré Vázquez alegou que, como médico (oncologista), não seria ético de sua parte assinar a promulgação da mesma, tendo sido muito criticado por isso.

O candidato do Partido Colorado, Pedro Bordabery, também tem dado ênfase à questão da segurança pública e defende a redução da idade penal para 16 anos Em relação à Lei de Caducidade, os uruguaios novamente foram chamados para decidir se torturadores vão continuar impunes e protegidos por uma legislação

aprovada pelo voto em 1986, ainda ao sabor da pressão de militares e civis colaboradores da ditadura, que ameaçavam com represálias se a legislação que os protege fosse abolida. Há casos isolados de militantes dos dois partidos tradicionais apoiarem o fim da Lei de Caducidade. O neto de João Goulart, Marcos Goulart, por exemplo, vinculado ao Partido Nacional, posicionou-se nesse sentido por entender que a revogação ajudará a esclarecer de uma vez por todas como seu avô foi assassinado. A central sindical uruguaia PIT-CNT tem participado ativamente da campanha pela revogação da lei, porque os trabalhadores não aceitam que torturadores que cometeram crimes contra a humanidade permaneçam impunes, segundo explicou um dos coordenadores da entidade, o professor Fernando Pereira. As últimas pesquisas indicavam que 48% dos eleitores tinham decidido votar em favor do “sim”, ou seja, pela revogação da lei. Além disso, 5% estariam propensos a também votar pelo “sim”. Temendo o resultado, setores da direita que se opõem ao fim da Lei de Caducidade estavam dispostos a ingressar na Justiça para que a consulta seja considerada ilegal. Voto no exterior

Como se sabe, nas últimas décadas, centenas de milhares de uruguaios deixaram o seu país, e sucessivos governos, que adotaram políticas econômicas desastrosas e fizeram do Uruguai um país de emigrantes, se opuseram ao voto dos que vivem fora do país. Como a maior parte dos 600 mil uruguaios no exterior tem consciência de que, tanto no período ditatorial como no da democracia formal, foram colocadas em prática políticas econômicas que fizeram com que eles emigrassem, a resposta numa cabine eleitoral, seja no Uruguai ou no exterior, segundo analistas, será possivelmente a de condenação aos responsáveis por isso, ou seja, os políticos dos partidos Nacional e Colorado, que temem por seu futuro com a eventual aprovação do tema no plebiscito. Em outros termos, a oligarquia uruguaia, que ainda imagina que será detentora do poder para sempre, não quer correr riscos e se mobiliza contra a aprovação da medida. Segundo as pesquisas, 45% dos eleitores são favoráveis à aprovação do voto dos que vivem no exterior, e 5% tem a intenção de aderir. A palavra agora está com os uruguaios. Mário Augusto Jakobskind é jornalista.


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áfrica

Milhares de famílias são atingidas por projeto da Vale em Moçambique Agência Vale

MINERAÇÃO Militantes conhecem impactos da atuação da transnacional brasileira em duas comunidades no centro país Enedina de Andrade e Boaventura Monjane de Maputo (Moçambique) A VALE ESTÁ prejudicando a vida milhares de pessoas em Moçambique. Foi o que pôde constatar uma equipe de militantes que esteve no país entre os dias 28 e 29 de agosto. Representantes da União Provincial de Camponeses de Tete, vinculada à União Nacional dos Camponeses de Moçambique (Unac); da Via Campesina em Moçambique; da FIAN – Organização Internacional pelos Direitos Humanos à Alimentação, da Alemanha; e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tomaram contato com os impacto na vida dos camponeses do projeto de exploração mineral da companhia no Distrito de Moatize, na Província de Tete, centro de Moçambique. O plano da Vale de atuar em lugares atualmente habitados e agricultáveis vai obrigar um elevado número de famílias a abandonar suas terras e casas. A Vale está presente no país, mais concretamente em Moatize, desde novembro de 2004, naquela que é considerada uma das maiores reservas carboníferas do mundo. A mina de Moatize deverá produzir 11 milhões de toneladas de carvão durante os próximos 35 anos. Em 2008, a receita do carvão da Vale totalizou os 577 milhões de dólares. Uma das duas comunidades atingidas pela concessão de uso e exploração, de 1.125 famílias, tem seus antepassados, habitantes daquelas terras há mais de 200 anos, ali enterrados. As famílias reivindicam o direito de seus mortos permanecerem no mesmo local, pois a empresa pretende destruir os cemitérios existentes para explorar o carvão que está no subsolo. A remoção dos corpos enterrados para outros locais é considerada pelos camponeses como uma falta de respeito e imposição. Injustiça A empresa tem um plano de reassentamento que oferece casas às famílias, mas a perda dos bens das populações não será indenizada. É o caso da Associação Integrada dos Camponeses de Changara. Ela possui três tanques de piscicultura, 36 bovinos, 10 charruas, 10 carroças, uma bomba de água, sete hectares de terra em uso, onde produzem hortícolas e cereais. A associação adquiriu o título de legalização de 150 hectares de terras e pagou os impostos requeridos, mas a sua retirada não será indenizada, sob pretexto de que a terra é do Estado (ver texto abaixo). Com o reassentamento, a associação vai deixar de existir. Se atualmente a produção é comercializada nas proximidades da cidade de Tete, no lugar do reassentamento, a associação perderá o mercado pois estará 35 km mais distante. Neste momento, ela está numa fase boa de produção e venda, porque está localizada entre Tete e o distrito de Moatize. Se a decisão dependesse dos membros da

associação, eles nunca sairiam das suas terras. Uma das heranças que os camponeses vão perder é a fruta silvestre tradicionalmente conhecida como Massanika. Essa fruta, que é produzida uma vez por ano depois de seca, podendo ser armazenada para o consumo nos momentos de estiagem, é considerada símbolo de resistência, pois em tempos de guerra matava a fome. “Na seca, pegamos essa fruta, pilamos e fazemos uma papa ou colocamos água e tomamos como se fosse café e ficamos saciados. Só precisamos depois beber água, o dia todo”, conta um camponês, membro da associação. Saída forçada Como a saída é obrigatória e forçada, o único jeito agora é reivindicar os direitos e pedir indenização. Nesse momento, existem duas empresas a explorar minérios em Tete, neste caso o carvão. Estão em curso pesquisas para expansão de novas áreas na província de Tete, a fim de se descobrirem novas jazidas. Questionado sobre os benefícios e como as famílias estão negociando com a empresa, um dos responsáveis da Direção Provincial da Agricultura de Tete, o chefe de planificação Benjamim Geme, explica que foi criada uma comissão no nível da província para analisar e tomar decisões referentes ao projeto. Mas essa comissão não vai a campo e não conhece os problemas e as reivindicações das famílias. Ela deveria ter a responsabilidade de dar acompanhamento ao processo de consultas à população, à implementação do projeto e analisar o Plano Operacional da Empresa. A comissão é composta por representantes da Direção Provincial da Agricultura, técnicos que fornecem informações e dados sobre a terra e por representantes da empresa. As famílias não fazem parte dessa instância, a única que toma as decisões. Segundo Geme, existe um documento que está em elaboração, uma espécie de Plano Operacional, que vai guiar o processo do reassentamento das famílias atingidas. Tudo o que a Vale implementa é antes apreciado pela referida comissão: “a empresa planifica e a comissão aprova ou faz as recomendações”, diz. Truculência A comissão não dialoga com as famílias, as relações são estabelecidas com os chefes das localidades e estes, por sua vez, mantêm uma relação com os líderes das comunidades e com algumas pessoas que exercem influência nas mesmas. Como disse um cidadão atingido, “existe um consenso forçado para sair. A Vale veio um dia aqui e disse que a gente tinha que sair. Fecharam estradas e já não podemos plantar e nem fazer investimento, porque já avisaram que não vão pagar”.

Cerimônia de lançamento do projeto da Vale no Distrito de Moatize, na província de Tete, Moçambique

“A empresa chegou em 2006, não falou nada. Em janeiro de 2009, começou a negociar com a administração, que nos comunicou que a gente tinha que sair. Então ficamos preocupados, há muitos anos que estamos aqui. Querem que saiamos. Mas sair para onde? Estão a nos oprimir, não temos o direito de expressão, não podemos fazer campanha. Queremos que as organizações internacionais de direitos humanos nos ajudem, queremos ser ouvidos. Apesar do descontentamento e da vontade de resistir, a situação já está dada: vamos ter que sair e dar lugar ao projeto de exploração dos recursos minerais da Vale do Rio Doce, mas o Plano Operacional não é de conhecimento e aprovação das famílias”, relata outro atingido. Prejuízos Outro problema é o tamanho das manchambas (área de produção) e das casas. No reassentamento, aos camponeses serão dados entre um a dois hectares, que serão adubados no primeiro ano. As casas serão padronizadas, embora variando de tamanho. Quem tivesse um quarto e uma sala terá uma casa chamada de nível 1. Quem tivesse dois quartos e sala estará numa casa de nível 2. As casas maiores são do nível 3. As casas têm formato mais de um cubo do que propriamente de uma casa. As famílias denunciam que seu tamanho será diferente do que foi prometido, e que as manchambas vão ficar muito longe delas. Ainda denunciam o fato de o reassentamento ter controle de entrada e saída, coisa a que não estão acostumados. A questão é que as fa-

mílias não são ouvidas e pedem uma audiência urgente com a Vale e com o governo. Acontece, porém, que existe uma burocracia e uma centralização de informação e de decisões que não passam pelas famílias, embora elas estejam “representadas” pelos líderes e chefes locais. Subrepresentados No entanto, compreender essa relação de poder não é nada fácil, pois os chefes das localidades representam várias comunidades, e os líderes comunitários nem sempre são escolhidos pela comunidade, mas pelo partido e, depois, no nível da comunidade existe uma hierarquia que vai de primeiro a terceiro escalão. As comunidades que não têm esses líderes ficam de fora de muita negociação. A segunda comunidade atingida é composta por 2.826 famílias, que exigem um encontro urgente com a direção da Vale e com o governo, para explicações. Numa reunião com essa comunidade, a delegação de militantes foi confundida com a Vale e os primeiros momentos foram de muita confusão. Depois do esclarecimento do que a delegação era, a comunidade pediu que ela denunciasse internacionalmente a situação que vivem. Os estudos de impacto ambiental e de viabilidade socioeconômica das casas e manchambas das famílias foram feitas por uma empresa encomendada pela Vale. Segundo as famílias, os critérios utilizados pela empresa contratada não respeitam o que os camponeses expressaram. As casas das famílias foram avaliadas a um preço inferior ao que realmente valem, dizem. Agência Vale

Armando Guebuza, presidente de Moçambique, e Roger Agnelli, presidente da Vale

Tete, histórico de exploração Camponeses da região sofrem com um mercado que os desvaloriza de Maputo (Moçambique) A Província de Tete está localizada na região central de Moçambique e faz fronteira com Zâmbia, Malawi e Zimbábue. É uma região rica em minerais, sendo a parte norte da província bastante fértil e com clima tropical chuvoso. Apesar de a província ser a mais quente do país, com a temperatura chegando aos 45 graus, ela apresenta um nível de produtividade elevada de milho, batata, soja, gergelim, tabaco, feijão e trigo. Mas, mesmo com níveis satisfatórios de produção, os preços dos alimentos são altos; não obstante muitos dos cereais produzidos em Tete abastecerem Malawi e Zâmbia. Há também que se destacar o fato de Tete ser a maior produtora de gado e caprino em todo o país e a maior distribuidora de carne. Com escassez de in fraestrutura, como vias de acesso para o transporte dos produtos, silos para armazenamento de comida e com uma frágil “economia de mercado”, os camponeses de Tete ficam à margem dos preços e sofrem com um mercado que os desvaloriza. Os preços não são controlados e nem estabelecidos pelo governo. Os camponeses são obrigados a vender seus produtos a valores muito baixos. A província de Tete enfrenta portanto um problema de comercialização e escoamento da produção, devido à referida falta de vias de acesso. Como a agricultura é a base da economia, para sobreviver, um número muito grande da população ativa compra mercadorias agrícolas para revender, e os camponeses não têm estímulos pa-

ra produzir mais através de programas e subsídios. A província conta também com uma fábrica de tabaco, a Moçambique Leaf Tobacco. Muitos camponeses são obrigados a subordinar-se aos preços dessa empresa sem nenhuma proteção por parte do governo. Neste momento está em construção uma fábrica de processamento de farinha de milho, com investimento de capital britânico.

Os camponeses de Tete, assim como os de todo o país, têm o direito de uso e aproveitamento da terra por tempo indeterminado. Em Moçambique a terra é propriedade do Estado No distrito de Moatize, a 20 km da cidade de Tete, existem 90 mil camponeses, numa população de pouco mais de 178 mil habitantes. Nesse distrito, a fonte econômica, social e cultural tem como base principal a agricultura. Aliás, 70% da economia moçambicana vem da agricultura. Os camponeses de Tete, assim como de todo o país, têm o direito de uso e aproveitamento da terra por tempo indeterminado. Em Moçambique a terra é propriedade do Estado. As comunidades camponesas de Moatize vivem modestamente e enfrentam muitas dificuldades para produzir. Vivem em situações precárias, no entanto, numa verdadeira relação de aldeia comunal, com muito respeito à terra, à cultura, às suas tradições, à sua história e aos seus antepassados. (EA e BM)


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cultura

A favela, vista de fora e por dentro CINEMA Documentário Dançando com o Diabo, dirigido por um sul-africano e produzido por um inglês, mostra a realidade dos morros cariocas sob o ponto de vista de seus moradores Sheila Jacob do Rio de Janeiro (RJ) RECÉM-LANÇADO no Festival do Rio, o documentário Dançando com o Diabo aborda a realidade das favelas cariocas, com foco no Complexo da Coreia, zona oeste do Rio. Em entrevista, o jornalista e cineasta sul-africano Jon Blair, diretor do filme, e o jornalista Tom Phillips, correspondente do The Guardian e coprodutor do longa, falam sobre a responsabilidade social do jornalismo, as visitas às favelas do Rio, os contatos com traficantes e policiais e a importância de se humanizar e dar oportunidade de todos esses atores se manifestarem. Para Blair, muitas vezes essas pessoas são tão desumanizadas “que até nos esquecemos de que eles também têm mães”. Como ele lembra, geralmente a mídia trata do tema da favela ou tráfico com adjetivos pejorativos, como “diabólico” e “mau”. Tom conta que a ideia desse documentário é mostrar o outro lado, já que o seu diferencial “é mostrar os olhos desses personagens”. Jon, vamos falar um pouco sobre a sua vida. Sabemos que você nasceu na África do Sul e foi para a Inglaterra quando tinha 16 anos porque não queria trabalhar para o regime do apartheid. Que lembranças você guarda dessa época? Poderia falar um pouco sobre essa fase da sua vida? Jon Blair – Quando eu era muito, muito criança, crescendo na África do Sul, nunca havia sido um problema para crianças negras e brancas brincarem juntas. Então eu, um branco, podia brincar com os filhos dos empregados. Mas, aí, quando você começava a ir para a escola, mais ou menos com quatro ou cinco anos, a separação racial tinha início. E isso me assustava muito, principalmente por começar tão cedo. Comecei a achar estranho e a questionar: por que uma sociedade se organiza dessa maneira? Quando cheguei à adolescência, eu não poderia mais conceber essa injustiça. Isso provavelmente por dois motivos familiares. O primeiro era minha irmã mais velha, que teve que sair do país por estar envolvida em uma organização “terrorista” sul-africana que explodia linhas elétricas e trilhos de trem. Eu tinha muito orgulho dela por isso. Também tinha a minha mãe, que era acadêmica e muito progressista. Estava envolvida em uma revista que promovia contribuições multirraciais; o editorial também defendia o convívio multirracial. Lembro que na África do Sul, por volta de 1950, 1960, tudo isso era muito perigoso, o que é ridículo. Ela trabalhava na mesma publicação que Nadine Gordimer, a famosa escritora sul-africana que recebeu o prêmio Nobel por atuar contra o apartheid. Então tenho tudo isso como antecedente. Assim que eu terminasse a escola, por volta dos 17 anos, eu teria que entrar no exército. Mas eu sa-

bia que não poderia fazer isso. Por motivos pessoais, políticos, físicos, eu sabia que não poderia sobreviver àquele regime. Então eu fui passar um pequeno feriado na Inglaterra, e fiquei por lá. E lá então você se tornou jornalista... Blair – Isso. Então me tornei jornalista e cineasta... Você não separa essas coisas na sua vida, a política é parte da sua vida e, consequentemente, parte de sua profissão. Quando conheci Tom [Phillips, o produtor de Dançando com o Diabo] há alguns anos atrás, eu estava pensando em fazer outro filme, um que tratasse da escravidão no Brasil. Eu estava obviamente interessado em falar sobre o passado racial do Brasil, mas não apenas para contar uma historinha, e sim mostrar como isso influenciou a formação do Brasil de hoje. Uma das coisas que nós conversamos foi como muitas pessoas de classe baixa são negras, e como as classes que comandam o país são brancas. Tom me contou sobre uma revista [IstoÉ ou Época] que mostrava as 100 pessoas “mais importantes”, “mais influentes” do Brasil. Daquelas 100, me lembro que apenas duas eram negras. Então fomos conversando. Tom me contou que trabalhava por dois anos como jornalista no Complexo da Coreia [localizado na zona oeste do Rio, formado pelas comunidades Coreia, Jabour, Rebu, Taquaral e Vila Aliança]. Tom falou como foi ganhando a confiança dos moradores de lá, primeiro do pastor e depois dos próprios traficantes. Ambos concordamos que isso daria um excelente documentário. Foi aí que surgiu a ideia de Dançando com o Diabo.

“Comecei a achar estranho e a questionar: por que uma sociedade se organiza dessa maneira? Quando cheguei à adolescência, eu não poderia mais conceber essa injustiça” Como vocês chegaram até os personagens do filme? Tom Phillips – Bem, no final de 2006, início de 2007, eu conheci um traficante do Rio bem famoso nas décadas de 1980/1990. Eu já o havia conhecido quando ele estava preso, mas dessa vez ele estava vestido de evangélico. Aí eu perguntei o que tinha acontecido. Daí ele quis me apresentar “o cara responsável por salvá-lo” e por ele ter entrado na Igreja. Esse era o Johnny, o pastor do filme. Eu peguei os contatos dele e, algumas semanas depois, nos encontramos.

Como chegou até ele? Já estava no Brasil? Phillips – Eu sou jornalista correspondente do The Guardian, e estou no Brasil há uns seis anos. Procuro contar pequenas histórias como o Jon falou. Então fui conhecer esse pastor, o Johnny, com a ideia de fazer uma matéria para o The Guardian sobre ele, e foi o que fiz. Fiz acompanhado do Douglas [Enes], fotógrafo que trabalha comigo, acompanhando o trabalho dele, visitando as comunidades... A ideia dele é salvar os outros como foi salvo? Phillips – Exato. E então começamos a perceber que tínhamos acesso a realidades que a grande maioria das pessoas, e principalmente dos jornalistas, nunca viu. Conversando sobre isso, tivemos a impressão de que tínhamos a chance de mostrar algo que muita gente não tem a oportunidade de ver. Então eu e o Douglas começamos a ir muito lá, toda semana, várias vezes por mês. Fomos acompanhando, com a ideia de começar a filmar algumas coisas, ele fotografando, registrando, e eu escrevendo algumas coisas sobre o que via. Foi nessa época que conheci o Aranha, um dos chefes da comunidade. Passou um ano e pouco... Você se assumiu sempre como jornalista? Phillips – Sempre, nunca menti. Eu acho que tinha uma facilidade maior por ser jornalista de fora do que qualquer repórter daqui, principalmente os dos jornais cariocas, que não têm acesso. Um dia eu fui lá, fui apresentado ao Aranha, contei que estava fazendo um trabalho sobre a comunidade, ele apertou minha mão e disse que eu era bem-vindo porque estaria levando o bem para a comunidade. Então eu conheci o Jon, que me chamou para trabalhar nesse primeiro filme sobre a herança da escravidão – que acabou não acontecendo. Saímos para jantar um dia, e ele se interessou por esse meu projeto. Jon, quando você veio ao Brasil pela primeira vez? Blair – Em dezembro de 2007. Vim para esse projeto sobre a escravidão, sentamos em um bar e então Tom me contou sobre esse outro trabalho com o pastor Johnny. Foi assim que começamos a trabalhar juntos. Chegamos a ir a Salvador para o primeiro filme, que nunca chegou a acontecer por falta de dinheiro. O que viram em Salvador? Blair – Visitamos partes históricas da cidade, conversamos com pessoas envolvidas com direitos humanos, afrobrasileiros envolvidos em políticas públicas. Passamos por lugares por onde os escravos eram transportados. Não conseguimos dinheiro suficiente, mas alguma verba. Então minha companhia completou essa quantia, e decidimos fazer esse filme sobre a situação nas favelas. Não podíamos demorar muito com isso, porque, quanto mais esperássemos, mais as coisas mudariam. Isso ficou claro quando um dos principais personagens do nosso filme, um traficante chamado “Jogador”, foi assassina-

“Tom me contou sobre uma revista [IstoÉ ou Época] que mostrava as 100 pessoas “mais importantes”, “mais influentes” no Brasil. Daquelas 100, me lembro que apenas duas eram negras” do pela polícia. Essa era a situação difícil de sempre. Por isso tivemos que correr. Li que muitos dos que aparecem no filme morreram? Blair – Exato. Eu e Tom concordamos que seria impossível fazer esse filme de novo. Sei que muitos jornalistas se arriscam para fazer matérias parecidas com essas. Já que nós, estrangeiros, estamos tendo acesso a coisas que os daqui não podem, então temos a responsabilidade de mostrar algo que ninguém tem a oportunidade de ver. Fico muito feliz quando José Junior [coordenador da instituição sociocultural Afro Reggae] diz que esse filme deve ser visto por todos os brasileiros. Apesar de documentário, tem um forte valor de ficção ao contar histórias. Ele é muito visual, e a trilha sonora é muito forte. Em meu trabalho como cineasta, penso que as pessoas devem querer assistir e, quando verem, sentir que valeu a pena, que tem seu valor. Ninguém tem que assistir a nada, é uma escolha que temos que estimular. No filme você entrevista pessoas reais, que se emocionam, são sinceras... Eu penso que é uma abordagem diferente da usual, porque você humaniza essas pessoas... Blair – O que eu posso dizer é que esse filme não está tentando contar a história a partir do nosso ponto de vista. Tenta dar a essas pessoas a oportunidade de contar suas próprias histórias, a partir de seus lugares. Frequentemente, quando se abre um jornal, sempre que se fala sobre favela ou tráfico, há um adjetivo negativo, como “violento”, “diabólico”, “mau”, qualquer outra palavra. Às vezes, esses termos também se referem à polícia, eu sei. E nós não fizemos isso. Deixamos essas pessoas, traficantes, policiais e pastores, mostrarem seus próprios sentimentos. O que descobrimos,

acredito, é que são todos seres humanos. Eles sabem que não são os vencedores nessa batalha. Não é uma questão individual. O tráfico pode mandar em alguns homens; a polícia pode matar alguns; mas nenhum deles é um vencedor. Quem diz isso é o Hélio Luz, na época chefe de Polícia Civil, que foi entrevistado nesse filme. Eu concordo quando ele fala que essa “guerra” nas favelas é na verdade uma questão de status quo, para manter as coisas do jeito que estão. Os dois lados, polícia e traficantes, são vítimas nessa história. Qual você diria que foi a razão para se fazer esse filme? Blair – Quando Tom me contou sobre esse acesso que tinha, me pareceu que isso era um privilégio. Nossa ideia foi fazer um filme importante e, ao mesmo tempo, interessante. A melhor maneira de se fazer esse filme e contar essa história é dar voz a eles, aos próprios personagens. Você tem que ser honesto com essas pessoas, conquistar a confiança deles. Não quero que eles assistam ao filme e se sintam infelizes depois. Quero ter a tranquilidade de mostrar que eu fiz o que eu disse que ia fazer. Acredito que consegui fazer isso. Phillips – O interessante é fazer com que se reconheçam no filme, dizendo as coisas em que acreditam. Você, Tom, que está há mais tempo aqui no Brasil; qual a diferença que sente entre esse filme e outros que tratam das favelas? Você vê alguma diferença entre ele e outros que falam sobre essa temática? Phillips – Eu não gostaria de comparar esse filme com nada. Acho que o que é novo é que, pela primeira vez, você pode ver os olhos dessas pessoas. Não acredito que haja outro documentário em que se veja o brilho no olhar deles. E

também é possível saber como é a vida deles. Um jornalista me disse recentemente que “é uma pena, porque, na maioria das imagens, o Aranha não estava carregando um grande fuzil”. Bem, essa é a grande questão. Essas pessoas não vivem carregando suas armas: eles têm filhos, têm mães, gostam de comer sopa, têm que dormir, ir ao banheiro... Blair – Uma das cenas mais poderosas para mim tem mais ou menos um minuto e meio, talvez não mais do que isso. É uma entrevista com a mãe do Aranha. E eu achei aquilo verdadeiramente emocionante, porque as pessoas se esquecem de que cada um desses caras tem uma mãe. Essa é a realidade. É muito fácil vêlos como apenas crianças com armas, assassinos ou psicopatas. Mas eles são também filhos de alguém, e essa história é a que quero mostrar. É uma história do Brasil, mas que não é única; pertence a diversos outros países que têm o mesmo problema com a violência, como os Estados Unidos, México etc. Eu acho que mostramos algo que não se vê normalmente em filmes sobre favelas. Há dois outros filmes sobre esse tema que eu sei que estão passando aqui nesse Festival. Um deles é como “surfar” para fora da favela; e outro como você pode ser excepcional e sair de lá por causa desse talento incrível, sendo, por exemplo, jogador de futebol, um cantor fenomenal ou então dançarino clássico... Enfim, muitos dos filmes sobre favela focam em exceções, como ser diferente. Mas essa não é a regra geral, e esse filme não faz isso. Mostra os problemas, como, por exemplo, as soluções que o Estado brasileiro tem usado para lidar com a questão da droga. Se você assistir ao filme, e continuar acreditando nas atuais soluções policiais, militares ou da milícia, então você perdeu a mensagem. (Núcleo Piratininga de Comunicação – / www.piratininga.org.br)

Quem é Jon Blair é escritor e cineasta sul-africano. Tom Phillips, jornalista, é correspondente do jornal britânico The Guardian no Rio de Janeiro.


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