Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 348
São Paulo, de 29 de outubro a 4 de novembro de 2009
www.brasildefato.com.br
Vinicius Mansur
Distribuidoras erram na conta de luz e lucram R$ 7 bilhões Desde 2002, 63 distribuidoras de energia elétrica brasileiras acumularam R$ 7 bilhões oriundos de um erro no cálculo para o reajuste anual. O fato foi apurado pelo Tribunal de Contas da União. Para o professor da Universidade Federal do Mato Grosso Dorival Gonçalves Júnior, a distorção é apenas uma das maneiras das distribuidoras lucrarem sobre os consumidores. Segundo ele, a própria Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) cria mecanismos para tornar legal o lucro dessas empresas. Pág. 6
R$ 2,50
Presidencia República Oriental del Uruguay
Universidade na praça em Cochabamba
Uruguai deve ter segundo turno acirrado
A partir da efervescência política pela qual atravessa a Bolívia nesta década, a Rede Tinku criou, em 2007, uma universidade na principal praça de Cochabamba. Há cerca de três meses, as aulas públicas são realizadas todos os dias. Pág. 10
O candidato à presidência do Uruguai Pepe Mujica (foto), da Frente Ampla, disputará o segundo turno das eleições contra o conservador Luis Alberto Lacalle, do Partido Nacional. A revogação da anistia a agentes da ditadura foi rejeitada em referendo. Pág. 9
Os impactos do megaprojeto de Eike Batista no norte do RJ Homem mais rico do Brasil, Eike Batista está encabeçando o projeto de construção do Complexo Portuário do Açu, na região de São João da Barra, no norte fluminense. Trata-se do maior investimento privado em terminal marítimo na história recente, com gastos previstos em R$ 6 bilhões para a construção, em 7 mil hectares, de um porto para receber navios gigantes, usinas termoelétricas, um complexo siderúrgico, um polo
metal mecânico, indústrias cimenteiras e pátios de armazenagem. Mas os impactos da obra já começam a acumular. Para começar, cerca de 6 mil pessoas devem ser desapropriadas, quase a mesma quantidade de empregos que serão gerados. Além disso, o Ministério Público pede a paralisação das obras por inúmeros problemas no licenciamento ambiental, como a destruição de um sítio paleontológico. Págs. 4 e 5 Leandro Uchoas
Reprodução
Obras da ponte que já avançou 0,5 km sobre a terra e 1,5 km sobre o mar: série de irregularidades e ameaça de desastre ambiental
ONU denuncia massacres de Israel contra palestinos O Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou o relatório do juiz Richard Goldstone que aponta diversas violações de Israel contra o povo palestino durante a incursão militar na Faixa de Gaza, entre dezembro
de 2008 e janeiro de 2009. O relatório exorta a ONU e Israel a investigarem os abusos e, se necessário, encaminhar as denúncias ao Conselho de Segurança e a um Tribunal Internacional que julgue crimes de guerra.
O Hamas, que governa a Faixa de Gaza, também foi denunciado no relatório, mas em menor intensidade. A própria organização palestina comemorou a aprovação do parecer dado por Goldstone. O partido
que controla a Autoridade Nacional Palestina, o Fatah, também elogiou a medida, apesar de, inicialmente, ter sido contra a aprovação, que, segundo eles, poderia atrapalhar as negociações de paz com Israel. Pág. 12
Reprodução
No Brasil, 14 milhões de analfabetos
Marcha Popular pelo Brasil completa 10 anos Pág. 7
O Brasil vai levar 19 anos para erradicar o analfabetismo. O índice atual é de 10%. Os números fazem parte do estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ele destaca que o primeiro quinto mais pobre da população apresenta uma taxa de analfabetismo de 19%, enquanto que, no quinto mais rico, ela é de apenas 1,9%. A análise indica que há “baixa eficácia” nos programas de alfabetização e em todo o sistema educacional brasileiro. Pág. 3
A luta dos presos políticos durante a ditadura O diário de um jovem militante escrito há 37 anos dentro de uma cela de penitenciária virou livro. O escritor Maurice Politi narra como ocorreu o enfrentamento político contra a ditadura militar por meio de uma greve de fome. Eles tinham como objetivo resistir aos planos das autoridades da época de dividir os presos políticos em vários pequenos grupos, levando-os para diversas cadeias do Estado. A greve durou 33 dias. Sob certo ângulo, não foi vitoriosa, já que os presos em São Paulo continuaram separados até o ano de 1976. Porém, chamou a atenção da imprensa internacional, o que pressionou o regime autoritário. Pág. 8 ISSN 1978-5134
Porcentagem de analfabetos por região, segundo dados do Ipea
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de 29 de outubro a 4 de novembro de 2009
editorial A BATALHA DE Honduras não começou em 28 de junho (dia do golpe civil-militar contra o presidente Zelaya) e não terminará em 29 de novembro (data em que os golpistas dizem que serão realizadas as eleições presidenciais). Tudo indica que se desenvolverá um longo processo de acirramento das lutas sociais e populares naquele país, e 2010 começará com uma intensa disputa entre dois projetos bastante definidos: de um lado o das forças conservadoras, antidemocráticas e pró-imperialistas (golpistas de todas as origens, com a cumplicidade de Obama e o apoio de países como Israel, Colômbia, Peru e México); e do outro, o das forças sociais democráticas, populares, progressistas, anti-imperialistas/anticapitalistas, representadas pela Alternativa Bolivariana para as Américas – Tratado de Comércio dos Povos (Alba-TCP), por governos progressistas e pelos movimentos e organizações da resistência hondurenha antigolpista. A truculência, agressividade e falta de flexibilidade e de disposição dos golpistas em aceitar uma saída negociada para a atual crise política acabou criando condições mais favoráveis para que sejam explicitadas as finalidades daqueles que hoje
debate
Continua a batalha de Honduras estão no comando do governo de Honduras. Sua firmeza em não fazer nenhuma concessão em questões que consideram fundamentais para legitimar suas posições golpistas acabou resultando num fracasso de qualquer possibilidade de saída “pelo alto”, sem a efetiva participação das massas populares. Durante as negociações, exigências absurdas eram colocadas ao legítimo presidente de Honduras, Manuel Zelaya. O presidente derrubado por uma ação armada violenta e antidemocrática foi cotidianamente agredido, ofendido, desqualificado pelo principal chefe da quadrilha que se apoderou do governo, senhor Roberto Micheletti. Criaram uma operação midiática internacional, unindo todas as forças mais reacionárias do planeta, no sentido de mostrar que Zelaya estava sendo intransigente, que dificultava as negociações com suas declarações sobre a legitimidade dos movimentos da resistência pacífica e popular. Os golpistas demonstraram que estão dispostos a ir até as últimas consequências na defesa de sua ação
antidemocrática e pró-imperialista. Sua intransigência é na verdade uma mensagem bem explícita para o povo de nosso continente: a direita latino-americana existe, resiste e iniciará/incitará novas guerras e ondas de perseguição, tortura e violência, se este for o preço a pagar pelo enfraquecimento e/ou derrota de qualquer nova estratégia progressista e/ou verdadeiramente de esquerda. Mas agora a resistência não quer só a volta imediata do presidente Manuel Zelaya; quer uma nova Assembleia Constituinte para criar novas leis que possibilitem mais democracia e mais poder para o povo. Também a Frente de resistência conclama o boicote ao processo eleitoral de novembro enquanto não houver a volta à normalidade democrática, que significa Manuel Zelaya na presidência, libertação dos presos políticos, fim dos processos e perseguições contra os membros da resistência, eleições livres e democráticas, continuidade dos programas sociais e manutenção de Honduras na Alba-TCP.
Diante dessa nova ofensiva imperialista, fica evidente que a AlbaTCP precisa se fortalecer e ir criando também estruturas conjuntas de defesa diante da possibilidade de golpes de estados contra os países membros. Já existe inclusive aqueles que acreditam que seria o caso de se pensar na criação e desenvolvimento de uma Escola Latinoamericana de Defesa, organizada sob os princípios e valores da Alba, com uma nova doutrina militar, comprometida com o programa democrático, popular e anti-imperialista, que inspira os governos chamados hoje por alguns de “bolivarianos”. Também acreditam ser necessário um “Conselho Bolivariano de Defesa”, com países membros da Alba-TCP e com a colaboração de países que podem contribuir de alguma maneira para um projeto dessa natureza. Outra iniciativa defendida é um amplo e forte movimento de solidariedade e defesa da “Revolução Bolivariana” e do governo de Hugo Chávez, pois, se a Venezuela cair novamente nas garras do im-
crônica
Roberta Traspadini
Mujica: de ex a eterno guerrilheiro? A disputa eleitoral no Uruguai está centrada, segundo a mídia conservadora latino-americana protetora dos interesses burgueses, entre um exguerrilheiro – Mujica – e os demais candidatos “honrosos”, que se opõem a ele. Frente às violentas ondas de exclusão, exploração do trabalho, militarização das fronteiras e fragilização de parte expressiva dos estados nacionais latino-americanos, essas disputas reiteram alguns elementos-chave a serem destacados: 1. A leitura de crime e violência efetivada pelo capital A guerrilha para o capital é fonte de preocupação permanente. Ela é primeiramente um inimigo militar. Logo se desdobra para um inimigo ideológico, político e pode culminar, ao longo de sua trajetória, em um rival econômico que disputa no território a produção de outro modelo de desenvolvimento. A discussão sobre a trajetória de Mujica reside, em realidade, sobre quem são de fato esses sujeitos, que grupos representam, e que ameaça real imprimem no jogo do tabuleiro liderado pelos estadunidenses em seu afã de poder-lucro onipotentes. Os zapatistas no México, os sem-terra no Brasil, os cocaleiros na Bolívia, os guerrilheiros na Colômbia, os campesinos na América Central, enquanto são uma ameaça por liderarem seus respectivos movimentos, são tratados como um problema a ser contido pelos EUA e seus pares no espaço em que atuam, para não ganharem projeção tanto ideológica quanto territorial. 2. A disputa institucional pelo poder: de ameaça potencial à ameaça real Mas, quando esses grupos resolvem dar uma visibilidade política institucional às suas ações que culmine na disputa pelo poder do Estado nacional, a briga muda de sentido: o capital reforça sua ação militar, ideológica-midiática, institucional. Até então eram ameaças potenciais a serem contidas nos territórios específicos em que atuam. As bases aparentemente firmes do capital tremem quando esses grupossujeitos brigam abertamente pelo poder. De ameaça potencial a disputa vira ameaça real. Os candidatos líderes de movimentos fortes e contestatórios ao longo da história se transformam em criminosos, terroristas, sujeitos cuja honra deva ser questionada pelos demais patriotas e povos latinos. A ameaça se torna real quando o que se reivindica é a disputa de um poder institucional que não deve ser questionado ao longo da história, segundo seus poderosos mandatários. Ou seja, quando esses grupos e sujeitos começam a representar seus interesses e divulgar seus projetos em um território para além do que ocupam, o capital, na explicitação da ameaça real, joga seu histórico jogo sujo de revelar o que deseja, enquanto oculta o que não deve ser visto pela sociedade. Neste momento da briga, a conten-
Víctor Santa María/CC
ção do inimigo do capital deixa de ser local e passa a ser continental, internacional. 3. O crime e a violência: a leitura de quem domina, oprime, explora Bertold Brecht, um dos mais importantes sujeitos políticos engajados na produção de outro mundo necessário e possível, via socialismo-comunismo, escreve o seguinte sobre a violência: “A corrente impetuosa é chamada de violenta/Mas o leito do rio que a contém Ninguém chama de violento/A tempestade que faz dobrar as betulas É tida como violenta/E a tempestade que faz dobrar/Os dorsos dos operários na rua” É nesta lógica dual de revelar-ocultar aquilo que lhes interessa que os históricos donos do poder criam e reforçam os estereótipos que devem ser questionados ou banidos da história de nossos países. Revelam as guerrilhas como criminosas, os movimentos como perigosos, os sujeitos de esquerda como rancorosos, loucos, quando o que de fato temem é a possibilidade de que seus inimigos cheguem ao poder, se mantenham nele e criem outro universo possível de decisões políticas institucionais. O criminoso e suas facetas violentas é explicitado com base em quem ocupa/projeta o discurso, interpreta a ação, julga os casos e relata sua verdade. Neste caso, o criminoso é aquele que questiona com as armas que tem os múltiplos poderes do capital em sua tentativa onipotente de execução ilimitada de poder sobre as condições de trabalho e a vida dos trabalhadores. As múltiplas violências (da relação capital-trabalho, da concentração da riqueza e da renda, da fome, da exploração, da opressão, da falta de terra, das condições subumanas de parte expressiva da população latina) são formas e conteúdos do poder que não são questionadas como consequência do modo dominante e hegemônico de produção ao longo da história. E, se não são tomadas como violentas, não há porque procurar os criminosos. Mas lutar com as armas que se tem em cada época para consolidar outro mundo necessário e possível com posicionamento de classe, com interesses claros antagônicos aos dos que oprimem, excluem, exploram, se transfor-
perialismo, o projeto de integração sonhado pela esquerda do continente estará seriamente ameaçado de desaparecer em alguns poucos anos. Independente do resultado das negociações e dos resultados eleitorais da farsa e da fraude ilegal/ilegítima de 29 de novembro, Honduras nunca mais será a mesma, pois se elevou o nível de consciência política das massas, cresceu a capacidade de mobilização e de organização dos partidos e movimentos da resistência nacional antigolpista e a classe trabalhadora conseguiu construir no dia-a-dia das lutas um instrumento fundamental de unidade na ação: a Frente Nacional Contra o Golpe de Estado. Todo esse esforço ainda não é suficiente para impor uma derrota definitiva e contundente ao projeto imperialista, mas resultou num acúmulo de forças e numa importante lição para os próximos e, talvez, ainda mais decisivos passos. Diversas formas de luta e diversas formas de mobilização estão e estarão se desenvolvendo nesta legítima resistência popular para garantir que se cumpra o artigo 3º. da Constituição hondurenha: “Ninguém deve obediência a um governo usurpador!”.
Luiz Ricardo Leitão
Tiros em Bruzundanga
ma em crime e violência dos grupos e sujeitos que se contrapõem à ordem do capital. São crimes e violências contra a humanidade, interpretados e projetados para a sociedade pelos donos do capital. 4. O que está em jogo realmente O que está em jogo é a possibilidade sempre aberta de a América Latina tomar outro rumo que não o projetado pelo capital para o continente. O que está em jogo é a possibilidade do grito de parte dos excluídos transformar-se em orquestra sinfônica em sintonia e projetar o desejo de outros tantos sujeitos oprimidos. O que está em jogo é a possibilidade de um poder, primeiro nacional que migre para um nacional popular, tomar as bases reais de projeto viável no continente. O que está em jogo é a integração latina sem a presidência e os vínculos de dependência com o predador continental e seus pares mundiais (EUAG6). O que está em jogo é a retomada de um socialismo real que, ao aprender com sua própria história política, supera tanto seus limites quanto as históricas duras cadeias levantadas pelo capital contra o trabalho. O que está em jogo é o poder, a leitura de poder, a possibilidade de poder fazer outro tipo de poder. O que está em jogo é a democracia representativa dos governos burgueses, frente à possível instauração de uma democracia participativa popular. Enfim, o que está em jogo é a histórica luta de classes no nosso território latino-americano e para além dele. Oxalá que, com base nas armas que tem Mujica, não faça como muitos históricos sujeitos de esquerda do nosso continente e relembre aquilo pelo que um dia lutou. Oxalá que, com base nos fuzis viáveis da luta anticapitalista no nosso continente hoje, ele, vencendo ou não, se some aos que acreditam que outro rumo, nacional, transição para o popular, seja o projeto necessariamente possível para o Uruguai e o continente, para além do capital.
EU JÁ ESCREVERA, aqui nesta coluna, há duas semanas, sobre as mazelas do Rio 2009, que, para desespero de nossos cínicos governantes e da mídia chauvinista, ainda está a anos-luz da paradisíaca urbe que os marqueteiros contratados a peso de ouro pelo COB retrataram com muito brilho nos salões de Copenhague. Diante de tantas maracutaias e absurdos que se sucedem em nossa Bruzundanga, este cronista sequer imaginara que teria de voltar ao tema de imediato, mas não há como ignorar os graves fatos ocorridos nos últimos dias... Eles nos propiciam lições agudas sobre a degradação do tecido social em meio à crescente impunidade, corrupção e desfaçatez patrocinada pela burguesia que se apoderou da máquina pública nesta província – e que em nada difere de outras plagas da República. A série de episódios violentos dessas semanas decerto assusta e impressiona qualquer cidadão, mas, como qualquer crise, ela representa, ao mesmo tempo, uma rara chance de reflexão – e denúncia – das causas mais profundas desse verdadeiro caos social, que, bem o sabemos, não é privilégio do Rio, disseminando-se como metástase por esse imenso gigante “emergente” que, desde o nome de batismo, já acusa o terrível legado da exploração e pilhagem colonial. Afinal de contas, o que mudou, em essência, na terra do pau-brasil? Derrubou-se o poder secular do latifúndio e se aboliu o regime da monocultura de exportação (ora convertido no voraz agronegócio), por acaso? Onde está a reforma agrária e o incentivo à agricultura familiar, que sustenta a alimentação da maioria dos brasileiros? Contudo, a pior de nossas mazelas ainda é a sinistra equação de iniquidade + impunidade, que há muito se tornou a única pedagogia das elites de Bruzundanga. A fórmula deveras “cristã” com que nossa burguesia se habituou a autoperdoar-se em suas práticas sociais, que Machado de Assis logrou captar com rara sutileza nas páginas sarcásticas de Memórias póstumas de Brás Cubas, tornou-se um princípio quase ‘universal’ no país. “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei” – diz o clássico bordão dos ‘coronéis’ da terrinha. Ou seja: para banqueiros, como Daniel Dantas, flagrados em fraudes bilionárias, conceda-se o habeas corpus; para os lavradores sem-terra e sem-teto famintos, a execração da mídia e as CPI do Congresso... Essa sensação de impunidade é visível no comportamento das torcidas organizadas de futebol, que promovem verdadeiras batalhas campais dentro e fora dos estádios, sem que nenhuma pena mais grave recaia sobre elas. E isso não é prerrogativa da Cidade Maravilhosa, em que facções de um mesmo clube, como o Flamengo, combatem violentamente entre si. É assim em São Paulo, onde diversos jovens já morreram em confrontos desse tipo, e até mesmo na outrora pacata e ‘civilizada’ Curitiba, onde cerca de 28 ônibus foram apedrejados por hordas incontroláveis no último clássico Atle-tiba. É claro que há ingredientes singulares no Rio 2009, a começar pela nova conjuntura do tráfico nos morros cariocas. Sem dúvida, diminuiu a clientela de classe média, que já possui suas próprias quadrilhas de distribuição de maconha, cocaína e, sobretudo, dos produtos sintéticos tão consumidos nas ‘baladas’ e festas rave. Isso acelerou, por certo, a liberação do venenoso crack, cuja venda era vetada pelas organizações criminosas, o que só fez aumentar a disputa pelas “bocas de fumo” nas favelas. Divididas entre três grandes grupos (CV, ADA e TC), elas nada mais possuem em comum com aquele Comando Vermelho criado por Lúcio Flávio, Carlinhos Gordo e outros bandidos de discurso social mais afiado (“Paz, Justiça, Liberdade” – pregavam eles nos anos de 1970). A palavra de ordem agora, em estrita sintonia com a hipertrofia consumista neoliberal, é faturar a todo custo, o que, aliás, nada difere das corporações que, sob a anuência do Estado, monopolizam as principais áreas econômicas do país. Não posso prever o desdobramento dos fatos nas próximas semanas. Talvez seja preciso tornar ao mote, já que, afinal, sequer pude falar sobre outra personagem chave deste enredo: a PM carioca. Acabo de ver 1.500 policiais desfilando em Copacabana, exigindo “investimentos na segurança pública”, poucos dias depois de dois colegas de farda protagonizarem a lamentável cena de omissão e conivência no assassinato do líder do Afro Reggae. Logo adiante, 40 cidadãos comuns distribuíam rosas brancas às pessoas, homenageando o amigo morto. Seria possível reunir tudo isso em uma única crônica?
Roberta Traspadini é economista, educadora popular e integrante da Consulta Popular/ES.
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 29 de outubro a 4 de novembro de 2009
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brasil
Analfabetismo zerado? Só em 2028 EDUCAÇÃO Segundo o Ipea, redução do número de analfabetos no Brasil se deve a mortes na população mais velha Eduardo Sales de Lima da Redação O BRASIL VAI levar mais 19 anos para erradicar o analfabetismo. O cálculo é do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A queda no valor da taxa tem sido permanente desde o começo da década de 1990, quando era de 17,2%, fazendo esse índice recuar para 10,0% em 2008. Entretanto, o número total de analfabetos no Brasil continua praticamente o mesmo nos últimos anos, girando em torno de 14 milhões de pessoas. Segundo o instituto, o analfabetismo só sofreu quedas até o momento por causa da morte de pessoas mais velhas e que eram analfabetas. O estudo destaca que o primeiro quinto mais pobre da população apresenta uma taxa de analfabetismo de 19%, enquanto que no quinto mais rico ela é de apenas 1,9%. A análise indica que há “baixa eficácia” nos programas de alfabetização. “Entre os atuais analfabetos, apenas uma pequena parte está frequentando a escola”, aponta o texto. A pesquisa observa ainda que há “problemas de desinteresse dos analfabetos em procurar os programas” e também “erro de foco”, de “estratégias pedagógicas” e “sérias dificuldades de aprendizagem” dos alunos do ensino de jovens e adultos. Para Jorge Abrahão de Castro, autor do estudo e diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, “é uma população difícil de lidar porque grande parte é mais velha e já está há muito tempo no mercado de trabalho”. Porém, a educadora Ana Lourdes Barbosa, coordenadora do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova) na localidade de Heliópolis (bairro da zona sul de São Paulo), vai mais a fundo. “Posso falar da realidade de Heliópolis, onde vivo há 20 anos. O nosso trabalho é árduo e a dificuldade é diária porque parte mais do nosso interesse de atuação nas bases da periferia do que do interesse no campo da política, do poder público, a quem competiria agir também”, explica.
“A educação é uma ferramenta para a própria libertação do povo. Isso interessará a quem?”, questiona a educadora Ana Lourdes Barbosa Vovó é mamãe
Sobre as pessoas a serem atendidas, Ana Lourdes verifica que não há autoestima, motivação e expectativa nenhuma de vida melhor. Ela conta que, seja jovem ou idoso, as dificuldades são variadas. “Há aqueles que, depois de um longo dia de trabalho, trazem seu cansaço para a sala de aula e, sendo a maioria mulheres, há o medo da violência de sair à noite para estudar”, relata. Para a pedagoga e educadora popular Ana Paula Valadares, que leciona em outro bairro da zona sul da capital paulista, o Capão Redondo, e que já trabalhou em um núcleo de proteção de adolescentes em “conflito com a lei”, os programas de alfabetização são ineficazes porque insistem em trazer modelos de “1900 e bolinha, sem sentido, aulas sem emoção; nas quais o professor adota práticas pedagógicas explicando que o ‘xale é da vovó’. “A vovó hoje é chamada
de mamãe e trabalha, também não usa xale, saiu de moda”. Já a coordenadora do Mova de Heliópolis aponta que muitos grupos de alfabetização, por exemplo, que se dizem ter inspiração no método do educador Paulo Freire não atuam de acordo com o verdadeiro conhecimento que ele deixou, desestimulando o aluno. “Alfabetizar não é só ensinar a ler e a escrever, vai além. É necessário lidar com a realidade na qual cada indivíduo está inserido e fazê-lo refletir sobre essa realidade”, lembra. A educadora acredita que existem questões tão importantes quanto a falta de investimento no setor da educação para a resolução de problemas como o analfabetismo, e resume seu ponto de vista sobre a omissão do poder público em relação ao setor: “A educação é uma ferramenta para a própria libertação do povo. Se ela é integral e direcionada para a formação do povo, inclusive política, este irá perceber as contradições e o descaso do poder público. Isso interessará a quem?”
Segundo o coordenador-geral da Ação Educativa, Sérgio Haddad, muitas vezes os programas de alfabetização não têm diálogo com as necessidades do aluno Sobre as políticas de alfabetização de adultos, Ana Lourdes pondera que elas são tratadas “sem interesse real” por parte, sobretudo, da prefeitura de São Paulo. “Tratam-na como mercadoria, sem qualidade na formação do indivíduo. Temos um trabalho difícil e árduo no dia-a-dia, mas depois vem o poder público (municipal) e só apresenta críticas ao trabalho”, sustenta. Para ela, se houvesse uma aplicação correta de uma política de alfabetização, talvez o índice se igualaria a exemplos de países nos quais ele é baixíssimo. “Mas só se pensa na propaganda que isso irá gerar, isso é política eleitoreira”, dispara. Outro problema. Segundo o coordenador-geral da Ação Educativa, Sérgio Haddad, muitas vezes os programas de alfabetização não têm diálogo com as necessidades do aluno. “É preciso pensar naquele trabalhador que gasta no mínimo duas horas de seu dia dentro de transportes públicos. Por que não ensiná-lo dentro do próprio horário de trabalho?”, questiona. Para ele, ainda é preciso criar programas com continuidade, para gerar autonomia nas pessoas e não somente alfabetizá-las. Isto, segundo ele, principalmente em regiões onde a tradição oral é bastante forte, como nas zonas rurais, em que o analfabetismo contabiliza um alto índice (23,5%). Sem ousadia
Haddad, ao ser lembrado do fato de que a Bolívia, um país muito mais pobre que o Brasil, se tornou um território livre do analfabetismo, conclui que “nós fomos pouco ousados para um programa de alfabetização e lá ainda existe o bi, o trilinguismo, o que torna mais difícil”, lembra. Segundo ele, somente ampliando as inter-relações entre os governos e melhorando as áreas sociais paralelas à educação, permitindo a existência de uma democracia social de fato, é que a educação será mais desenvolvida no país. (Com informações da Agência Brasil)
Média de anos de estudo da população de 15 anos de idade ou mais, por categorias selecionadas – 1992 a 2008 Categorias
1992
1993
1995
1996
1997
1998
1999
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
Brasil
5,2
5,3
5,5
5,7
5,7
5,9
6,1
6,3
6,5
6,7
6,8
6,9
7,1
7,3
7,4
Norte
5,4
5,3
5,5
5,6
5,7
5,8
6,1
6,3
6,5
6,6
6,2
6,5
6,7
6,8
7,0
Nordeste
3,8
4,0
4,1
4,3
4,3
4,5
4,6
4,9
5,1
5,3
5,5
5,6
5,8
6,0
6,2
Sudeste
5,8
6,0
6,2
6,3
6,4
6,6
6,7
7,1
7,2
7,4
7,5
7,6
7,8
7,9
8,1
Sul
5,6
5,7
5,9
6,1
6,1
6,3
6,5
6,7
6,9
7,2
7,3
7,4
7,5
7,6
7,8
Centro-Oeste
5,4
5,5
5,6
5,8
6,0
6,1
6,2
6,5
6,8
6,9
7,1
7,2
7,4
7,5
7,7
Urbano Metropolitano
6,6
6,7
6,9
7,0
7,1
7,3
7,4
7,6
7,8
8,0
8,1
8,2
8,4
8,5
8,6
Urbano Não Metropolitano
5,4
5,4
5,6
5,8
5,9
6,0
6,2
6,4
6,6
6,8
6,9
7,0
7,2
7,3
7,5
Rural
2,6
2,8
2,9
3,1
3,1
3,3
3,4
3,4
3,6
3,8
4,0
4,1
4,3
4,5
4,6
Masculino
5,1
5,2
5,4
5,6
5,6
5,8
5,9
6,2
6,4
6,6
6,7
6,8
7,0
7,1
7,2
Feminino
5,2
5,4
5,6
5,7
5,8
6,0
6,2
6,5
6,7
6,8
6,9
7,1
7,3
7,4
7,6
Branca
6,1
6,2
6,4
6,5
6,7
6,8
7,0
7,3
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Negra
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25 a 29 anos
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40 anos ou mais
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6,0
Localização
Sexo
Raça ou Cor
Faixa Etária
Fonte: Microdados da PNAD (IBGE). Elaboração: Disoc/Ipea. Nota: A partir de 2004, a PNAD passa a contemplar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
Qualidade e acesso são péssimos Ensino fundamental é o único universalizado, mas eficiência sistêmica deixa muito a desejar da Redação No estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a desigualdade social apontada por meio do analfabetismo também é constatada em outros níveis da educação brasileira. A taxa de frequência à creche entre crianças de 0 a 3 anos é de 18,1%, e menos de 80% dos meninos e meninas de 4 a 6 anos frequentam a pré-escola. O reflexo disso se dá no ensino fundamental, depois com consequências no ensino médio, até se chegar à faculdade. “É tudo se retroalimentando”, como lembra Sérgio Haddad, coordenadorgeral da Ação Educativa. Detendo-se no ensino fundamental, em que o acesso à escola é considerado universal (97,9% das crianças e adolescentes estão nas carteiras), o Ipea reforça que “a eficiência sistêmica deixa muito a desejar”, pois apenas 55% dos que concluem o ensino fundamental estão na idade adequada (9º ano, com 14 anos de idade).“No ensino fundamental já existe oferta, mas houve uma piora da qualidade”, afirma Haddad. A realidade atual forçanos a vislumbrar a existência de muitos futuros adultos com prováveis dificuldades de assimilação do saber e de conscientização. Haddad salienta que é um grande problema as
Quanto
35 a 40 milhões de brasileiros são analfabetos funcionais
pessoas entrarem na escola e, por falta de qualidade, não assimilarem o que devem aprender. Por isso, o mais grave é o analfabetismo funcional, que atinge o dobro de pessoas no Brasil, entre 35 e 40 milhões. Sobretudo, a escolaridade fundamental deve ser boa para não produzir esse tipo de adulto.
Taxa de frequência da população entre 15 e 17 anos no ensino médio no Brasil é de 50,4%
Ipea, o analfabetismo está fortemente concentrado na população de baixa renda, sobretudo nas zonas rurais e nas periferias de grandes cidades. Adolescência
De acordo com Ana Paula, a escola não está preparada para a fase da adolescência, época em que os alunos começam a contestar o fato de não saberem ler. “Dentro da escola há tantos anos, os alunos começam a contestar o sistema que está falho há décadas”, relata Ana Paula. A partir daí, segundo ela, cria-se, dentro da própria escola, um movimento de “expulsão” do aluno. “E é difícil eles terem vontade de voltar a esse ambiente perverso. Mas a grande verdade é que todos querem aprender a ler e tudo o mais que puderem, e querem também passar o que sabem, só não têm um espaço para isso ainda”, conclui. Para ela, em todo sistema escolar, nas secretarias das escolas, o aluno é visto como mais uma carteira. “E isso tem que mudar”, reforça.
Desafios
Em relação ao professor, a pedagoga o vê sem apoio na escola, “está cansado e doente, não tem voz, não acredita em si”. Ela acredita que ele ainda é autoridade na sala, ainda é admirado pelo aluno, que sabe quando o professor quer dar aula, quando ele a planejou. “Mas o professor não tem como ser visto assim pelo aluno se ele não acredita em seu trabalho”, pondera. O grande desafio é atingir a universalização na conclusão do ensino fundamental, não apenas seu acesso. Agora, o problema é que o Ipea demonstra que, se houver a correção de fluxo do ensino fundamental e ampliação do acesso ao ensino médio em direção à universalização, a capacidade instalada atual para oferta de ensino médio é insuficiente para incorporar, imediatamente, o contingente de todos os jovens de 15 e 17 anos que deveriam frequentar esse nível de ensino. Hoje, a taxa de frequência da população entre 15 e 17 anos no ensino médio no Brasil é de 50,4%. (ESL) Repórter do Futuro-CC
Periferias
Mas o que está por trás desse analfabetismo funcional? “O que vejo, infelizmente, são alunos na 5ª e 6ª séries analfabetos e fora da escola há pelo menos um ano”, conta a pedagoga e educadora Ana Paula Valadares, que trabalha no bairro do Capão Redondo, zona sul da cidade de São Paulo. Para ela, a grande dificuldade é fazer com que o aluno perceba que é importante para ele estar dentro da sala de aula. “Tarefa difícil, pois há, principalmente nas escolas das periferias, uma mobilização de diretores e professores dizendo que o aluno é inútil, incapaz, que ele não deveria estar ali”, revela. Segundo o
Sérgio Haddad, coordenador-geral da Ação Educativa
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brasil
Porto do Açu ameaça desapropriar 6 mil Jorge Marinho/Governo RJ
SUBDESENVOLVIMENTO Para viabilizar empreendimento de Eike Batista, despejo afetará 170 propriedades em 7 mil hectares Leandro Uchoas de São João da Barra (RJ) “QUANDO ME disseram que vinha um porto para cá, eu pulava dessa altura de alegria”, conta seu Anadilopes Cabral, de 78 anos. “Mas agora eu vou falar a verdade. Tenho medo de que tirem o velho daqui”. Não por acaso. O simpático agricultor aposentado – que não sabe dizer quantos filhos tem – é apenas uma entre mais de 6 mil pessoas ameaçadas de desapropriação pelas obras do Porto do Açu, no norte do Rio de Janeiro. 170 propriedades em 7.032 hectares de terra estão prontas para ser desalojadas pelo poder público, para a construção do porto privado. Programado para o 5° distrito de São João da Barra (RJ), o despejo é a mais grave das incontáveis denúncias contra o projeto, encabeçado por Eike Batista, o homem mais rico do país, com uma fortuna estimada em 7,5 bilhões de dólares.
“Dizem que somos contra o desenvolvimento. Querem rotular a gente”, protesta o agricultor João Toledo “O Estado pode desapropriar para entregar a um empreendimento privado?”, questiona o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Arthur Soffiati. Há respostas divergentes a essa pergunta. Enquanto isso, representantes da empresa de logística de Eike Batista, a LLX, já pressionam os proprietários a vender suas terras. Oferecem R$ 1,17 o metro quadrado, valor muito abaixo do cotado hoje – e infinitamente inferior às cotações para depois do início da operação do Porto. A ameaça de despejo terminou por provocar o que os danos ambientais e sociais
ainda não haviam criado: resistência. Dezoito famílias se uniram no movimento “Desenvolvimento sim, desapropriação não”, disposto a lutar pelo cancelamento da medida. Registrado em cartório, o movimento organizou um protesto em agosto. Também levou um manifesto com 2 mil assinaturas ao secretário estadual de Desenvolvimento Econômico, Júlio Bueno. Pressão política Eles acusam a prefeitura de São João da Barra de ter pressionado a Câmara a aprovar a desapropriação a toque de caixa. Em 31 de dezembro de 2008, véspera da posse de novos vereadores, foi aprovada a lei 115/08, que regulamentou o despejo. “Nós só ficamos sabendo em junho”, acusa o agricultor João Marcos. Assim que tomaram conhecimento, os trabalhadores buscaram auxílio entre vereadores próximos. Atualmente, têm apoio de cinco dos nove integrantes da Câmara, entre eles o presidente, Alexandre Rosa (PPS), ex-aliado da prefeita Carla Machado (PMDB). Os vereadores estão pressionando pela revogação da lei, mas enfrentam a sintonia entre empresa, município e Estado e a rejeição dos habitantes da área urbana, simpáticos ao empreendimento. Seduzida pela propaganda pró-Eike Batista, a população do 1° distrito os considera “um movimento político”. “Dizem que somos contra o desenvolvimento. Querem rotular a gente”, protesta o agricultor João Toledo. Os vereadores aguardam o resultado de estudo socioeconômico realizado por pesquisadores da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). “Estou sentindo que não vai ser positivo”, sussurra o vereador Alexandre, como quem conta um segredo. Segundo ele, a pesquisa está sendo paga pela LLX. Na região, já houve 38 desapropriações para a construção do mineroduto que levará matéria-prima ao porto. A negociação foi feita de casa em casa, e as terras receberam maior valor quanto maior era a resistência da família. Mas, até hoje, ninguém recebeu o pagamento. De acordo
Eike Batista durante a apresentação dos projetos do Complexo do Porto do Açu; à direita, o governador Sérgio Cabral
com os produtores, duas pessoas já teriam morrido de ataque cardíaco na região desapropriada. Os agricultores No início, quem tomava a frente do movimento era dona Noêmia Magalhães. Ela chegou a dar entrevista para a revista Carta Capital, denunciando o empreendimento. Mas, subitamente, passou a defendê-lo, exibindo faixas de apoio. “Todo mundo viu a prefeita e o secretário [Júlio Bueno] saindo do quintal da casa dela para um comício. Ela serviu um almoço a eles”, acusa João. Os agricultores dizem ter certeza de que as faixas não foram produzidas pelas poucas gráficas de São João da Barra. Dona Noêmia tenta, agora, criar uma comissão de apoio ao empreendimento. Outra acusação que recai sobre os agricultores é a de que as terras seriam improdutivas. Eles contam que produzem mais de 300 toneladas de verduras e 5 mil litros de leite por semana. Dizem que, efetivada a desapropriação, o Rio de Janeiro e Macaé teriam crise de abastecimento. “Daqui sai mais de dez caminhões de verdura para o Rio, todos os dias”, afirma José Jorge Alvarenga. “Será que esse povo
Suntuosidade do projeto não mascara volatilidade Maior porto da América Latina representa um modelo baseado em produtos primários de São João da Barra (RJ) Envolvendo recursos da ordem de R$ 6 bilhões, o Complexo Portuário do Açu ocupará, pelo projeto, uma área de 7,5 mil hectares. Com profundidade de 18,5 metros, permitirá a atracação de grandes navios, capazes de transportar até 230 mil toneladas, e promete abrigar usinas termoelétricas, um complexo siderúrgico, um polo metal mecânico, indústrias cimenteiras e pátios de armazenagem. É o maior investimento privado em terminal marítimo na história recente. A LLX acredita que o Porto do Açu pode atrair até R$ 36 bilhões em investimento. Eike Batista já correu o mundo em busca de empresários
interessados em investir no Complexo, com pouco sucesso por enquanto. O porto terá três terminais. O maior para exportar ferro, outro para importar carvão mineral e o terceiro para grãos e cargas. “Do ponto de vista da matriz energética é desastroso”, considera o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) José Luis Vianna. Abundante na China, de onde será importado, o carvão mineral é considerado poluente e pobre.
“Representa uma forma volátil, insegura e fluida de desenvolvimento. Só é voltado para commodities”, critica o professor José Luis Vianna “Representa uma forma volátil, insegura e fluida de desenvolvimento. Só é voltado
para commodities, que oscilam muito no mercado mundial. Se o carvão tem um bom preço, vai bem. Se cai o preço, não vai. Continua, o Brasil, se especializando em produtos primários”, protesta José Luis. Eike Batista é conhecido por gostar de investimento de risco. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o francês Frédéric Monié argumenta na mesma direção. “A riqueza no mundo não é mais gerada por setores industriais clássicos (têxtil, siderurgia, petroquímica), e sim pelos serviços e setores de alta tecnologia”, diz. O projeto do Porto do Açu já tem uma década. O ex-governador Anthony Garotinho assinou um decreto em 1999 para sua criação, mas não encontrou parceiros. Com base eleitoral na região, Garotinho ajudou a eleger a prefeita Carla Machado, que depois virou adversária. Foi outro ex-aliado seu, Wagner Victer, quem apresentou o projeto a Eike Batista. Presidente da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) no governo Sérgio Cabral (PMDB), Wagner é muito próximo do empresário. (LU)
“Será que esse povo que vai vir pra cá vai comer gusa com minério?”, ironiza o produtor Chiquinho Toledo que vai vir pra cá vai comer gusa com minério?”, ironiza o produtor Chiquinho Toledo. Os agricultores contam que um ano e meio antes das obras, um estranho inseto passou a contaminar o caju, então a principal fruta produzida nas terras. Teria surgido, inicialmente, do mar. Desconfiam que tenha ligação com a instalação do porto. “É especulação demais dizer que isso foi lançado pela empresa. Mas era para, pelo menos, alguma universidade ter feito algum estudo”, diz Marcelo Peixoto, ex-secretário do Planejamento da cidade. Petróleo A quantidade de terras do 5° distrito é pequena perto das já disponíveis a Eike Ba-
tista na região. Desconfia-se que a ambição pela área está relacionada a um mineral abundante no norte fluminense, o petróleo. “Já fizeram várias perfurações e sondagens. E eles levam amostras”, conta João. O produtor Arialdo Páscoa tem, em suas terras, uma chama acesa desde 1981. Perfurando suas terras, encontrou gás natural e ateou fogo. Na ocasião, a Petrobras o orientou a não estancar a chama, o que causaria uma explosão. Mas disse que ele não tinha direito de exploração. No dia 14 de outubro, a petroleira de Eike Batista, a OGX, anunciou ter encontrado um volume de até 1,5 bilhão de barris de petróleo em terras da bacia de Campos, que explorava há um mês.
Marcelo Peixoto sugere que se pague R$ 10 o metro quadrado, mas admite que valerá dez vezes mais em poucos anos. Os quase mil alqueires da Fazenda Caruara, comprados por Eike Batista junto ao Grupo Othon, foram destinados, pelo governo, à área de proteção ambiental exigida por lei. Com isso, abre-se caminho para exploração de outras terras. O secretário Julio Bueno chegou a visitar o distrito em agosto para, supostamente, ouvir os agricultores. “Só eles falaram de novo”, protesta Rodrigo Santos, um dos líderes. Os produtores protestam ainda contra um possível bloqueio midiático à desapropriação. As duas principais rádios, Barra e Ultra, estariam exaltando o empreendimento a todo momento, e um jornalista da Bandeirantes que visitou a região teria desistido da pauta por pressões superiores. “Infelizmente não temos dinheiro para comprar espaço na mídia”, protesta, com ironia, Cecília Rodrigues.
São João da “Farra” O controle de Eike sobre a prefeitura é apenas reprodução regional de uma ampla rede de conexões políticas de São João da Barra (RJ) Virou até lugar comum dizer que Carla Machado está deslumbrada. A, até pouco tempo atrás, inexpressiva prefeita de São João da Barra, cidade de 31 mil habitantes, agora viaja à China com Eike Batista e o governador Sérgio Cabral (PMDB). A interpenetração entre os setores público e privado é completa. A marca da LLX aparece em obras de hospitais e escolas da cidade. Os discursos da prefeita e do secretário de Planejamento, Victor Aquino, parecem escritos no escritório de Eike Batista. Aquino é acusado, nas ruas, de receber um salário “extra” de R$ 30 mil do em-
presário. “É a primeira vez que ouço isso. Não acredito”, admite o adversário político, vereador Alexandre Rosa (PPS). Trata-se apenas da reprodução regional de um sintoma maior. Eike Batista é o empresário favorito do governador e do prefeito da capital, Eduardo Paes (PMDB). Ambos viajaram no jatinho do empresário para Copenhague, onde o Rio de Janeiro ganhou o direito de sediar as Olimpíadas 2016. Eike Batista já havia investido R$ 23 milhões na campanha da cidade. Pouco dinheiro perto do que tende a ganhar após a vitória do Rio. Os empreendimentos do empresário no Estado não são poucos – Leandro Uchoas
Praça de São João: obras da LLX se espalham pela cidade
como fartas também são as denúncias sobre eles. Entretanto, a amizade mais almejada é a do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Eike Batista chegou a preparar uma homenagem ao mandatário em Nova York (EUA), em setembro, na qual o chamou de “presidente dos deuses”. Foi o maior financiador, como pessoa física, da campanha de 2006, com R$ 1 milhão. Foi também o principal patrocinador privado do filme Lula, o filho do Brasil, que tende a alavancar ainda mais a popularidade do presidente.
Eike Batista chegou a preparar uma homenagem para Lula em Nova York Para completar, Eike tentou desestabilizar a administração de Roger Agnelli na Vale, movendo suas peças para tomar a frente da empresa. Incrivelmente, a mídia comercial tratou da possibilidade de controle da Vale por Eike como “estatismo” do governo brasileiro. (LU)
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MP solicitou paralisação das obras SUBDESENVOLVIMENTO Além da ausência de licitação, licenças ignoraram provável devastação ambiental no Porto do Açu Leandro Uchoas
Leandro Uchoas de São João da Barra (RJ) PROFESSOR DA Universidade Federal Fluminense, Arthur Soffiati não é um sujeito que se cala diante de uma injustiça. Ao se deparar com o anúncio da instalação do Porto do Açu, e com o obscuro processo de licenciamento ambiental, decidiu reagir. Estudou minuciosamente cada ponto da documentação e entregou o resultado ao Ministério Público Federal (MPF). Em agosto, baseado no trabalho de Soffiati, o procurador do MPF Eduardo Santos entrou com uma ação civil pública na Justiça Federal solicitando a paralisação das obras. Em essência, são três principais irregularidades. Primeiro, para construir um porto privado deveria haver licitação, o que não ocorreu. Depois, a cessão da área para o empreendimento foi obscura. Por último, a licença ambiental foi obtida sem aprovação do estudo de impacto ambiental. O procurador do MPF pede ainda que a lei 8.630/93, que regulamenta os portos brasileiros, seja declarada inconstitucional. Nela se permite o funcionamento da região portuária privada sem fiscalização pública, ferindo a garantia constitucional de controle da União sobre o espaço marítimo. Questiona-se na região como
Obras do Porto do Açu: série de irregularidades e ecossistema ameaçado
As obras poderão destruir vários ecossistemas, como o da Lagoa Salgada, prestes a ser considerada pela Unesco monumento paleontológico da humanidade o Estado conseguirá controlar o fluxo de mercadorias em um porto privado enorme. O Ministério Público denuncia duas instituições, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), que concedeu licença ao porto sem estudos de impacto ambiental, e
a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), que autorizou a exploração do porto, por tempo indeterminado, alegando que era de pequeno porte – o Açu será o maior porto latino-americano. Para completar, uma rápida análise nos papéis di-
Crescimento desordenado provoca caos social São João da Barra terá orçamento de R$ 369 milhões em 2010, mas infraestrutura está abandonada de São João da Barra (RJ) Mendicância, prostituição, tráfico de drogas, violência, urbanização caótica e especulação imobiliária. Milhares de experiências no Brasil comprovam: o desenvolvimento desordenado traz consigo uma série de danos sociais. Em São João da Barra, já se vê muitos desses males. Nos alojamentos dos trabalhadores, a polícia encontrou recentemente 13 prostitutas. Entre elas, uma menor. Migração de jovens sem emprego começa a se tornar comum – somados aos desapropriados, serão os protagonistas da favelização local. Capacidade para enfrentar o problema a cidade tem. Por conta dos royalties do petróleo, o orçamento de São João da Barra para 2010 é de
R$ 369 milhões – R$ 1 milhão por dia. Entretanto, não se vê investimento em infraestrutura e urbanismo. Os empregos diretos gerados, segundo a empresa, podem chegar a 10 mil – número pouco superior ao de agricultores desempregados com a desapropriação. A prefeitura afirma que há cursos de formação para o empreendimento. Na prática, trabalhadores estão sendo “importados” de outros estados. Os muitos alojamentos construídos comprovam. “As condições neles são subumanas. E a comida, muitas vezes, é estragada”, conta o produtor José Jorge Alvarenga. A prefeita Carla Machado (PMDB) prometeu até curso de mandarim para emprego nas prováveis montadoras chinesas. “O pessoal daqui não tem nem segundo grau, vai aprender mandarim?”, questiona Rodrigo Santos, um dos líderes do movimento “Desenvolvimento sim, desapropriação não”. A especulação imobiliária disparou. Há regiões que estariam valendo seis vezes mais. As anunciadas ampliações na estrutura viária tendem a não suportar o volume. A duplicação da BR-101 está pre-
vista para começar apenas em 2013, depois do início da operação do porto. O caso de São João da Barra tende a reproduzir o da vizinha Macaé, que cresceu a passos largos com o petróleo. Hoje, há enorme desigualdade social e caos urbano na cidade. Macaé está entre as cinco cidades mais violentas do país. Em São João, há ainda o agravante do risco do empreendimento. “No mundo, existem inúmeras experiências desse tipo. Enquanto a commodity é estratégica, você tem um dinamismo econômico fantástico. Quando deixa de ser, vira deserto”, denuncia o professor José Luis Vianna. Alheio a esses problemas, Eike Batista planeja criar na região a Cidade X (usa o X, símbolo de multiplicação, em todos os seus empreendimentos). Trata-se de área urbana hierarquizada para os trabalhadores. “São cidadesempresas. Experiências horríveis. Controlam quem entra e quem sai”, diz o professor. O empresário teria, inclusive, oferecido para a prefeita a contratação de uma empresa para formular um novo Plano Diretor para São João da Barra. Seria cômico se não fosse trágico. (LU)
vulgados pela LLX demonstra que a criminosa devastação ambiental prevista foi maquiada. No vídeo institucional de propaganda, fala-se com clareza: “Com a preservação de lagoas e a recuperação de áreas degradadas de restin-
gas, o Porto do Açu irá assegurar a sustentabilidade ambiental de um ecossistema até hoje ameaçado”. Nada no empreendimento aponta nessa direção. As obras poderão destruir os ecossistemas de várias lagoas. Entre elas, a Lagoa Salgada, prestes a ser considerada monumento paleontológico da humanidade pela Unesco. O Complexo Portuário também invade área de proteção permanente. E haverá, certamente, significativa mortandade de peixes, camarões e tartarugas.
Soffiati denuncia também o transporte de pedras para construção dos quebra-mares do porto, que causará danos irreparáveis ao Morro da Itaóca, considerado Reserva da Biosfera da Mata Atlântica desde 1992. A pedreira fornecerá 2 milhões de metros cúbicos de granito para a construção dos quebra-mares do Porto do Açu. Há erro tanto na retirada das pedras quanto na concepção dos quebramares. “É uma excrescência em termos de geologia. Ele vai construir um porto de pedra dentro do mar, criando uma espécie de ilha em forma de L que não existe nesse trecho da costa”, denuncia o professor. A lista das projeções de devastação ambiental segue grande. A instalação do retroporto tende a destruir restingas e manguezais. O carvão mineral importado da China causará poluição irreparável. O aumento do nível de ferro na área de influência do porto tende a contaminar as águas superficiais e subterrâneas. Não houve levantamento dos sítios arqueológicos porventura existentes. Estudos do professor Luciano Moreira Lima, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), revelam que a lista divulgada pelo estudo prévio de impactos ambientais (Epia), de animais afetados, é incompleta e omite seis espécies ameaçadas na região.
O que há por trás da maior fortuna do país Eike é filho de Eliezer Batista, duas vezes presidente da Vale e secretário do governo Collor de São João da Barra (RJ) A revista Forbes se atrasou ao anunciar, neste ano, em sua lista de bilionários, que Eike Batista era o homem mais rico do Brasil. Ele próprio já o alardeava há mais tempo. Dono de 7,5 bilhões de dólares – 14% a mais do que em 2008 –, o empresário se tornou o 61° bilionário do planeta. Eike Batista, que levou duas décadas para acumular 500 milhões de dólares, multiplicou sua fortuna por 15 nos últimos cinco anos. Suas quatro empre-
sas com capital aberto – LLX, OGX, MMX, MPX – são cotadas em 22 bilhões de dólares. Como é de hábito dessas pessoas, o empresário acha pouco. “Meu objetivo é passar o Bill Gates em cinco anos. O Brasil tem de ser o número um”, disse em 2008, referindo-se a um país de IDH igual a 0,813, o 70° no mundo. Em conversas privadas, o bilionário costuma destacar como grande mérito a quebra dos monopólios da Petrobras e da Vale. Ambas tornaram-se empresas de capital misto durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Seduzindo executivos das duas companhias, montou o dueto que deu base a seu império – o petróleo com a OGX e o minério com a MMX. Hoje, Eike Batista também tem projetos nas áreas de energia elétrica (MPX) e logística (LLX). No Rio de Janeiro, comprou o Hotel Glória e a Marina da Glória. Nes-
te, pretende investir R$ 150 milhões em melhorias, além de criar um projeto turístico e de entretenimento vinculado ao hotel e a seu navio Pink Fleet. O empresário afirma também estar investindo na suposta despoluição da lagoa Rodrigo de Freitas. Embora tenha se tornado conhecido dos brasileiros ao se casar com a rainhade-baterias profissional Luma de Oliveira, Eike Batista já traz a pujança do berço. O bilionário é filho de Eliezer Batista, duas vezes presidente da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Exministro das Minas e Energia de João Goulart, Eliezer se opôs ao golpe civil-militar de 1964. Entretanto, sua segunda passagem pela CVRD se deu no governo do general João Figueiredo (19791985). O pai de Eike Batista também seria secretário de Assuntos Estratégicos do expresidente Fernando Collor, em 1992. (LU)
Um currículo emblemático Uma pequena amostra das irregularidades que constam no histórico do empresário dá noção precisa de sua forma de atuação Minas-Rio: 525 quilômetros estão sendo construídos de Conceição • Mineroduto do Mato Dentro (MG) até o Porto do Açu, para transporte de minério. Na cidade, a
população denuncia a contaminação da água, desapropriações, sítios arqueológicos soterrados e circulação cerceada nessas terras. Em dezembro de 2008, o governo de Minas admitiu o sepultamento da perspectiva turística que ajudou a promover. Os técnicos do Estado admitem os impactos irreversíveis nas águas superficiais e subterrâneas locais.
de ferro do Amapá: a MMX é acusada de fraude em licitações para a • Estrada construção da estrada entre Serra do Navio e Santana. A operação da Polícia Federal
(PF) recebeu o nome de “Toque de Midas”, em referência ao rei mítico que produzia ouro com seu toque. Eike Batista foi o maior patrocinador da campanha do governador do Estado, Waldez Góes (PDT), em 2006. Waldez recentemente foi absolvido em julgamento por suposto uso da máquina eleitoral na campanha. A atuação da PF se desdobrou em outros 13 estados.
Brasil: o empresário começou a construir em Peruíbe, sul do litoral paulista, • Porto outro projeto portuário megalomaníaco, o Porto Brasil. Visava uma área de 19 milhões
de metros quadrados. Populações indígenas foram ameaçadas de despejo. Houve violações. Atualmente, Eike afirma ter desistido do projeto para priorizar o Açu. Porém, jornais locais anunciaram, no fim de outubro, o retorno das obras.
Consultoria e Franchising: o bilionário foi considerado pelo Tribunal de • FLX Justiça do Rio de Janeiro, em 2006, responsável pela falência de dez franqueadas da
FLX. A empresa comercializava produtos da marca Clarity. As indenizações atingiam R$ 4 milhões.
de silêncio: Eike Batista foi multado em R$ 100 mil pela Comissão de • Período Valores Imobiliários (CVM) por romper o chamado “período de silêncio”. Ele teria dado declarações públicas sobre a oferta de ações ordinárias da OGX. Antes da publicação do anúncio do encerramento da oferta, é exigido silêncio para evitar interferência no processo. Com a punição, o empresário perdeu 0,7% de sua fortuna. (LU)
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brasil Sérgio Alberti/Folha Imagem
Distribuidoras de energia lucram R$ 7 bi por erro na conta de luz CRIME Desde 2002, empresas roubam R$ 1 bilhão por ano de cerca de 63 milhões de consumidores brasileiros Alexania Rossato e Sílvia Alvarez de São Paulo (SP) REAÇÕES DE TODO tipo vieram à tona com o anúncio de que as 63 distribuidoras de energia elétrica do país acumularam, desde 2002, um valor de R$ 7 bilhões a mais pelo preço cobrado nas tarifas de energia elétrica devido a um erro no cálculo para os reajustes anuais. As irregularidades foram reveladas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) ao realizar uma auditoria nas companhias energéticas de Pernambuco (CELPE), Minas Gerais (CEMIG), Maranhão (CEMAR), Piauí (CEPISA) e Alagoas (CEAL) para saber por que as contas de luz tinham aumentos superiores à inflação. Para todos os brasileiros, as tarifas de energia elétrica aumentaram cerca de 400%, justamente no período da maior onda de privatização do setor elétrico.
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Luta estudantil
Mais de 100 dirigentes da UNE, UEEs, entidades de base, decidiram mobilizar os estudantes e a sociedade para a caravana de recomposição dos orçamentos do MEC, Ministério dos Esportes e Ministério da Ciência e Tecnologia, que acontecerá no dia 10 de novembro, em Brasília. No dia seguinte, também em Brasília, os estudantes participam da marcha dos trabalhadores em defesa do petróleo. Sem luta não tem conquista!
Mais picaretagem
Conhecida por empresariar jogadores de futebol, controlar a propaganda nos estádios e montar uma rede de jornais e emissoras de TV no interior de São Paulo, a empresa Traffic acaba de comprar o jornal Diário de S. Paulo, que foi do Grupo Associados e estava nas mãos da Globo. Todos os jornalistas foram demitidos, mas receberam a promessa de contratação pelo novo dono – que é mais um aventureiro na comunicação social.
Quanto
63 milhões de
clientes das empresas foram lesados em todo o país
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) é a responsável pelos cálculos no reajuste das tarifas aplicado pelas distribuidoras. No entanto, a agência reguladora não admite a distorção, mesmo considerando necessária a revisão no processo de reajuste tarifário determinada pelo TCU. Irregularidade nos cálculos Além dos serviços prestados pelas distribuidoras de energia, são cobrados 11 encargos setoriais na conta de luz, embutidos na tarifa. Esses encargos financiam programas federais, como o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) e o Luz para Todos, e deveriam ser pagos pelas distribuidoras. No entanto, irregularmente, as empresas repartem esse custo entre o seu total de consumidores, cerca de 63 milhões em todo o território nacional. Já que o total de consumidores aumenta a cada ano e o preço cobrado pelos encargos continua o mesmo, as distribuidoras arrecadam cada vez mais. Se uma companhia arrecada R$ 50 bilhões a
63 empresas distribuidoras de energia elétrica fizeram cobranças indevidas
mais, por exemplo, esse valor não é repassado para os programas do governo, muito menos devolvido aos consumidores. O destino dele é certo: aumentar as taxas de lucro. No reajuste, a Aneel verifica se a distribuidora pagou o valor que devia ao governo, e os adicionais são embolsados pelas empresas – ou melhor, roubados. Isso não poderia ocorrer porque a distribuidora não pode obter nenhum ganho no recolhimento de um encargo, e a remuneração da companhia só deve acontecer pela prestação do serviço de distribuição. Ou seja, desde 2002, as distribuidoras de energia estão tirando do bolso dos consumidores
R$ 1 bilhão ao ano, num total de R$ 7 bilhões nesse período. Silêncio As distribuidoras de energia não têm se manifestado, e a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) se limitou a emitir uma nota segundo a qual compete à Aneel o reajuste das tarifas, logo, “é impossível atribuir às distribuidoras qualquer responsabilidade pela tarifa fixada ou, muito menos, qualquer inadequação jurídica, ética ou de qualquer outra natureza por haver apenas praticado a tarifa fixada pela Aneel e cuja legalidade é incontroversa”.
Só a ponta do iceberg
Consumidores cobram compensação por prejuízos
Segundo professor, distribuidoras têm vários outros mecanismos para lucrar às custas da população
Atingidos por barragens também estudam ações para denunciar empresas
de São Paulo (SP)
de São Paulo (SP)
Para o professor da Universidade Federal de Mato Grosso, Dorival Gonçalves Júnior, o fato das distribuidoras de energia terem lucrado R$ 7 bilhões com a cobrança indevida da conta de luz “é só a ponta do iceberg”. Segundo ele, as empresas têm vários outros mecanismos para lucrar às custas da população, além deste evidenciado pelo TCU. “A própria Aneel, é bom dizer, atua, através de suas leis e regras, para garantir o funcionamento do setor elétrico brasileiro de modo que beneficie o lucro das empresas”, critica. “Como a hidreletricidade – que é a base da matriz energética brasileira – têm um baixo custo de produção, a Aneel teve que criar uma metodologia para as empresas conseguirem lucrar ‘legalmente’ com ela. O sistema de mercado livre é um exemplo. Nele, as empresas compram energia livremente, não precisando se submeter à tarifa imposta pela Aneel”, denuncia Gonçalves. Um outro exemplo é o preço cobrado pela energia aos consumidores cativos (aqueles que não compram no mercado livre, ou seja, a maioria da população). Mesmo com o baixo custo, o preço da energia elétrica deixou de ser cobrado pelo seu custo de produção real (baseado na hidreletricidade), para ser definido pelos padrões internacionais e determinado pela energia que tem o maior custo de produção, predominante nos demais países: a energia térmica, proveniente principalmente do petróleo. (AR e SA)
Logo após a divulgação do erro nos reajustes tarifários praticados pela Aneel e por distribuidoras contra o povo brasileiro, entidades de defesa dos consumidores reagiram. A Pro Teste protocolou um processo administrativo na agência reguladora pedindo para que sejam criados mecanismos de compensação, a partir dos próximos reajustes de energia, dos valores cobrados a mais nos últimos sete anos. A Fundação Procon, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública e outros órgãos do consumidor estiveram reunidos com distribuidoras no dia 22 de outubro, em São Paulo, com o objetivo de obter o compromis-
so de que esse montante pago a mais pelo consumidor seria devolvido e também receber a garantia de que esse valor a mais não continuaria a ser cobrado. No entanto, não houve acordo, porque as distribuidoras insistem no argumento de que não estariam ocorrendo irregularidades na cobrança. CPI Já a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Tarifas de Energia Elétrica da Câmara dos Deputados informou que pretende exigir a devolução do valor pago a mais pelos consumidores. Durante depoimento à CPI, em setembro, o diretor da Secretaria de Fiscalização de Desestatização do TCU, Marcelo Gomes, já alertava para o fato de o cálculo do reajuste tarifário anual não levar em conta o aumento de demanda por energia elétrica. “A concessionária acaba ficando com essa receita de forma indevida – do ponto de vista regulatório geral de eficiência –, em vez de passar para o consumidor.” Renato Araújo/ABr
O diretor da Aneel, Nelson Hubner
Voltado para o lucro Para Gilberto Cervinski, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), essa denúncia só reforça o que a sua organização e diversas entidades da Via Campesina e da Assembleia Popular têm afirmado desde o início da Campanha contra os Altos Preços da Energia Elétrica, em 2007.
“O atual modelo elétrico não favorece o povo, e sim as grandes empresas, quase todas estrangeiras”, observa Cervinski, do MAB
Ameaça denunciada A Comissão Pastoral da Terra do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, alerta as autoridades que a irmã Geraldinha, freira da Congregação das Irmãs Romanas de São Domingos, está recebendo ameaças de morte por intermédio de jagunços ligados a latifundiários e políticos de Salto da Divisa, onde ela integra o Grupo de Direitos Humanos e apoia as lutas dos movimentos sociais. Até quando?
Fachada social
O governo de José Serra, em São Paulo, tem sido extremamente danoso para as áreas sociais, não apenas pela redução de investimentos nos programas para as populações mais carentes, mas também por promover a terceirização da saúde e de outras atividades que deveriam ser mantidas pelo Estado. A Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social não esconde que a única preocupação é o marketing para a eleição de 2010.
Terceirização
Não é piada não: a entidade Justiça Global encaminhou à Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, no dia 19 de outubro, denúncia sobre o aluguel dos caveirões (carros blindados da Polícia Militar) para uma facção criminosa que disputa os pontos de droga no complexo da Maré. Está cada dia mais difícil saber quem é polícia e quem é bandido. O povo trabalhador favelado é vítima de ambos.
Criminalização
Depois de realizar manifestações em defesa dos sem-terra e do meio ambiente no município de Cajamar, na Grande São Paulo, integrantes do Movimento de Moradia foram intimados pela juíza Adriana Nolasco para prestar depoimentos no dia 5 de novembro. Como se trata de uma juíza reconhecidamente reacionária, eles temem que possam ser presos a qualquer momento. Lutar por direitos está cada dia mais proibido!
Perseguição Nem os policiais escapam da criminalização e da repressão aos movimentos sociais. A Associação dos Praças de Santa Catarina está denunciando a perseguição da corporação e da Justiça Militar aos soldados, cabos e sargentos que participaram de um movimento reivindicatório no final de 2008, em todo o Estado. Segundo a entidade, o governador Luiz Henrique Silveira (PMDB) já excluiu oito soldados dos quadros da PM.
Fraude elétrica
“O atual modelo elétrico não favorece o povo, e sim as grandes empresas, quase todas estrangeiras. No plebiscito popular que realizamos em 2007, mais de 3 milhões de brasileiros disseram não a essa exploração no preço da luz. Viemos sistematicamente denunciando a atuação das geradoras na violação dos direitos dos atingidos e das distribuidoras na ineficiência do serviço e no verdadeiro roubo que representa hoje o preço da energia elétrica pago pelas famílias”, afirmou. O MAB estuda também formas e possíveis ações a serem realizadas para, mais uma vez, denunciar a estratégia das empresas e órgãos reguladores que a cada dia praticam atos legais ou ilegais, mas que sempre visam ao mesmo objetivo, que é explorar ao máximo o povo brasileiro. (AR e SA)
Só agora o Tribunal de Contas da União está investigando a fraude no programa federal “Luz Para Todos”, no Maranhão, onde foram constatadas mais de 13 mil ligações fictícias de energia elétrica. O caso tinha sido denunciado, há pelo menos dois anos, pelo ex-governador Jackson Lago, que foi afastado do cargo por manobra da família Sarney – a oligarquia que controla todo o setor de energia elétrica naquele Estado. É o Brasil moderno.
Conquista salarial
Os bancários da Caixa Econômica Federal deram exemplo de combatividade. Fizeram uma greve de 28 dias e obtiveram várias conquistas, entre as quais o reajuste salarial de 6% (com 1,5% de aumento real), participação nos lucros com ganhos de até R$ 10 mil a mais por ano, contratação de mais 5 mil funcionários e abono salarial de R$ 700,00 a ser pago até janeiro de 2010. Quem não luta não ganha!
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brasil
Passos para mobilização e lutas RESGATE Marcha Popular pelo Brasil, uma ação pedagógica para pautar a necessidade de um projeto para o Brasil, completou 10 anos Pedro Carrano de Curitiba (PR) A saída da Marcha Popular pelo Brasil aconteceu no dia 26 de julho de 1999, no centro do Rio de Janeiro, da frente da sede da Petrobras e do BNDES. Os locais escolhidos para partida e chegada da Marcha eram simbólicos, em uma conjuntura de privatizações controladas pelo capitalismo financeiro – como foi o caso da privatização da Vale, da abertura de capital da Petrobras e tantos outros exemplos. De lá, os marchantes atravessaram os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Distrito Federal. Foram necessários 90 dias, inumeráveis debates, mutirões, acampamentos, até a chegada ao prédio do Banco Central, em Brasília, onde também fica instalada a sede do Fundo Monetário Internacional (FMI). Primeira atividade prática da Consulta Popular, a “Marcha Popular pelo Brasil” reuniu 1.100 militantes de diferentes movimentos sociais, da cidade e do campo, vindos de 23 estados, que percorreram ombro a ombro o equivalente a 1.600 quilômetros. Os caminhantes levavam duas tarefas na mochila: um abaixo-assinado contra a privatização da Eletrobras (um dos setores estratégicos colocados à venda no período); o objetivo principal, porém, era lançar o debate sobre a necessidade de um “Projeto Popular para o Brasil”. A marcha resgatou a simbologia do trabalho militante e de agitação de casa em casa, pessoa por pessoa. Por onde passava, realizava debates nas ruas, nas escolas, associações, universidades e igrejas. Alimentava-se nas bandeiras e necessidades do povo. Mais de 200 mil pessoas tiveram contato com o debate, apesar do bloqueio realizado pela mídia empresarial, contornado com o trabalho militante nos meios de comunicação de cada localidade. “A marcha foi recebida pela sociedade por onde passava com ações de solidariedade, respeito e admiração. Seu exemplo de luta mostrava para a sociedade um brasileiro diferente, resgatava a coragem, a luta e a resistência do povo brasileiro quando questionava a política econômica de Fernando Henrique Cardoso e apresentava a proposta de um Projeto Popular para o Brasil”, enfatiza Diva Braga, de Minas Gerais, militante da coordenação nacional da Consulta Popular. Participante da coordenação geral da marcha, Dilei Aparecida Schiochet, da Assembleia Popular da Paraíba, enfatiza o aprendizado de cada militante naquele processo. “Não existia acúmulo de tarefas na marcha, cada um tinha sua função, portanto não acumulávamos funções. A equipe pedagógica ia à frente, o estudo era organizado internamente nas paradas, procurávamos não fazer distinção entre o trabalho intelectual e braçal, o cozinheiro era tão importante quanto o outro, pois sem ele a marcha parava”, recorda. Chegada e unidade Chegaram em outubro, no dia 7, quando outros militantes somaram-se à caravana. A Marcha Popular pelo Brasil foi concluída ao longo de dois dias (de 8 a 10 de outubro)
Reprodução
com a Assembleia dos Lutadores do Povo, com a presença de 5 mil pessoas e a “Carta aos lutadores do povo”. O projeto popular ganhava, a partir de então, cinco eixos principais: soberania, solidariedade, desenvolvimento, sustentabilidade e democracia popular. “O momento mais feliz foi a chegada. O fato de vencer todos os obstáculos. É inesquecível quando confeccionamos uma bandeira do Brasil e desse painel sai uma criança no meio – construir o novo país será obra de muita gente, persistente, audaz, solidária, se colocarmos os pés na estrada e aprendermos com nosso povo, com coragem de dizer todos os dias que um novo Brasil é possível”, sintetiza Dilei. Parte desses apoiadores que se somaram à assembleia final eram militantes que atuaram na infraestrutura da caminhada, buscando recursos como comida, sandálias, lonas, o que garantiu a caminhada do início ao fim. Outro grupo de militantes ia à frente, abrindo espaço para debates e discussões nas cidades onde passavam. Ricardo Gebrim, da coordenação nacional da Consulta Popular, avalia que a marcha foi um passo inicial para a consolidação das linhas de ação da Consulta Popular e do seu horizonte programático. “Permanentemente, a Consulta Popular se caracterizou pela necessidade de retomar o debate estratégico, ter um projeto com a combinação de propostas programáticas, construindo força social e apontando a luta pelo poder. A Marcha Popular foi o grande desencadeador de todo esse processo”, afirma. Confluência de marchas Um ato de coragem, nas palavras de um militante quando busca resgatar o espírito da época. Dez anos se passaram desde a Marcha Popular pelo Brasil. A atividade pedagógica surgiu no caldo de lutas anteriores. Mais exatamente, em 1997, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) deslocou 100 mil militantes até a capital federal, no episódio da Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça. Em 1998, foi a vez da “Marcha pelo Brasil”, quando marchas do MST deslocaram colunas do interior para a capital dos estados. A Marcha de 1997 deu fôlego para a convocatória da Conferência de Itaici, com a presença de cerca de 300 militantes de entidades e movimentos sociais, do campo e da cidade, onde surge o embrião da Consulta Popular. Como recorda Gebrim: “Em 1997, o MST tinha realizado uma formidável marcha, que chegou a Brasília com 100 mil pessoas. A partir disso, nasceram no MST muitas esperanças, um estímulo para que os dirigentes do movimento convocassem a Conferência de Itaici, no mesmo ano. A Marcha foi a primeira grande ação da Consulta Popular, quando a ofensiva neoliberal vinha com muita intensidade, e teve o papel de renovar a esperança nas pessoas”, comenta. Ação pedagógica As derrotas da classe trabalhadora no final dos anos 1980, a ofensiva neoliberal e o período de descenso na luta de massas produziram um resultado adverso na prática militante e, de forma bastante visível, na entrega ao trabalho de base – um fator de reflexão desencadeado pela Marcha Popular pelo Brasil. A educadora Ana Inês de Souza, da Assembleia Popular de Curitiba, relembra que uma frase de Fernando Henrique Cardoso à época sintetizava o intenso ataque aos valores socialistas: “O resto é ideologia”, repetia o ex-presidente, para justificar suas ações de ataque aos trabalhadores e descaracterizar o pensamento socialista. “A marcha era um momento de olhar para si e se ver. Havia uma an-
Marcha reuniu 1.100 militantes de diferentes movimentos sociais vindos de 23 estados
gústia da falta de mobilização daquele momento, uma crise homérica de valores”, relata Ana Inês. Ricardo Gebrim enfatiza a ação da marcha como fator que permitiu ao debate do projeto popular ser pautado com mais força. “O mais importante foi a experiência de exemplo pedagógico. Para apresentar um projeto diferente, os militantes não iam de ônibus ou de avião, ao contrário, foi uma marcha real, de ação pedagógica, tanto para os marchantes, que se qualificaram dando cursos, debates, como para a população, que passou a entender a questão do projeto popular, por meio desse exemplo, em milhares de locais. Grande experiência de exemplo pedagógico, fundindo a ideia do projeto popular enquanto ação”, analisa. Mesmo em meio à concentração da mídia nas mãos dos empresários, Milton Viário, da Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul, defende que a ação militante e o trabalho de base atingem uma escala considerável de conscientização. A Marcha Popular foi um exemplo disso. “Subestimamos o trabalho pequeno, mas ele, ao se multiplicar, torna-se um poder muito grande, não um poder que atinge 50 milhões de pessoas num dia, como o da televisão, mas tem uma capacidade de colocar ideias nas ruas, pautálas para debate”, comenta.
Um projeto para o país e para a esquerda Em 1999, ano de realização da Marcha Popular pelo Brasil, o governo de Fernando Henrique Cardoso estava com a popularidade abalada. A esquerda, aglutinada em torno do Partido dos Trabalhadores (PT), já à época apresentava sinais da falta de um projeto de enfrentamento e de acúmulo de forças para mudanças estruturais, a exemplo do papel cumprido na luta pelas Reformas de Base, nos anos 1950 e 1960. Pautada pelo imediatismo eleitoral, a esquerda vivia uma crise que
se estende até o momento. Na avaliação de Milton Viário, da Federação de Metalúrgicos do Rio Grande do Sul, o foco estratégico na questão eleitoral – excluído o debate de organização, teoria revolucionária e construção de correlação de forças – é uma dificuldade que as organizações da classe carregam desde então. “Temos a necessidade de mobilizar um grupo de esquerda noutros patamares, noutra estratégia, fundamentalmente em um outro objetivo”, provoca Viário, para
quem a necessidade de um projeto popular torna-se mais urgente na atualidade. Dentro da ideia da necessidade de um projeto, Viário faz o balanço: “A única diferença para as lutas pelas Reformas de Base (das lutas das décadas de 1950 e 1960), de acordo com a consciência que adquirimos, é que havia à época uma capacidade de arrancar concessões do capitalismo apenas com as reformas, e agora o sistema capitalista não faz nenhuma concessão”, reflete. (PC)
No Paraná, preparativos ocorreram Depoimentos em contexto de criminalização Preparação para marcha confluir com luta contra criminalização, marcha de sete colunas do MST e acampamento de Curitiba (PR) A Marcha Popular pelo Brasil desencadeou o debate do projeto popular, uma palavra de ordem para a militância semear nos estados. Assembleias de lutadores do povo disseminaram-se. O Paraná não fugiu à regra. Para dar uma ideia, em atividade da Consulta Popular realizada na cidade de Umuarama, a simbologia escolhida para dar nome à assembleia foi a de Augusto Cesar Sandino, o “general de homens livres”, presente na luta anti-imperialista e na revolução do povo nicaraguense. O sentido era a retomada da simbologia e do ânimo da militância. “Era um momento de discutir o Brasil, de fazer formação. Uma ação política muito forte, com um sentido forte. A assembleia dos lutadores do povo (Brasília) foi emocionante; nos encontros de formação da Consulta Popular participavam sempre 200 militantes, de diferentes organizações”, recorda Fernanda Striker Baggio, do Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo (Cefuria), que à época articulava a Consulta Popular junto aos movimentos sociais. Logo depois, em Curitiba, no ano 2000, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) estava acampado em frente ao Palácio Iguaçu, na Praça Nossa Senhora de Salete, para denunciar a política do arqui-
teto e governador à época, Jaime Lerner, notório pela truculência contra o movimento na realização de despejos forçados. No mesmo ano, foi marcante para o movimento a morte do militante do MST Antônio Tavares, na rodovia próxima a Curitiba, em um confronto com a polícia. Todos esses fatores fizeram parte da conjuntura local naquela época. Uma “Fábrica de mobilização” é a imagem usada pela educadora para falar do trabalho da Consulta Popular naquele período. Em paróquias de bairros, como a Vila São Pedro – periferia de Curitiba –, foram organizadas assembleias com 700 militantes de comunidades de base da igreja. A educadora Ana Inês de Souza, da Assembleia Popular de Curitiba, reconhece o momento de descenso que as pastorais vivem hoje. Ressalta, entretanto, o protagonismo das comunidades de base em ações como os plebiscitos populares. Ana Inês recorda de um caderno publicado sobre o não-pagamento da dívida, editado pelas CEBS, que tinha como título: Deus disse que não paguemos as dívidas. Na memória da educadora, a Marcha Popular impulsionou o trabalho para os plebiscitos que seriam realizados nos anos seguintes: o primeiro, sobre o pagamento da dívida pública interna e externa, em 2000; e logo após, contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), em 2002. Como avaliação daqueles trabalhos, ela coloca que o saldo de debate do projeto popular – marcado por mutirões, atividades e debates em escolas, entre a militância e a sociedade – não se capilarizou naquele momento em nucleação e assembleias permanentes, nos locais de trabalho e moradia, ainda que tenha sido uma ação de formação e luta para toda uma geração de militantes. (PC)
O sentido principal de uma marcha prolongada, com militantes caminhando por muitos dias, passando por muitas cidades e povoados, é o sentido da pedagogia de massas. Através da marcha você dá o exemplo da seriedade, do espírito de sacrifício, em defesa de um ideal, e ao mesmo tempo ao passar você provoca o debate. E provoca também a prática de valores, pois as comunidades por onde a marcha passa se organizam para solidariedade, com água, comida, pouso e debates. Ou seja, mescla-se estudo, espírito de sacrifício, solidariedade, debate , João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST. A diversidade [de movimentos sociais] foi o que mais enriqueceu o debate. Todos os compromissos que foram assumidos tanto na caminhada como na assembleia dos lutadores e lutadoras do povo brasileiro por um conjunto de atores de diferentes movimentos enriqueceu muito mais as linhas de discussão, fortalecimento do projeto popular, da Consulta, do que se fosse por um ou por outro movimento social , Sonia Roseno, educadora do MST de Minas Gerais. Para nós, que vínhamos de uma luta muito antiga, a ideia da marcha era de ouvir, mais do que contar algo, ouvir o que os brasileiros estavam pensando do Brasil, como uma espécie de retomada, uma forma de contrabalançar o que era dito como certo e não estava funcionando. Fomos ouvir o povo sem ideias preconcebidas, sem efeitos doutrinaristas, para conseguir uma massa de informações que fornecesse uma nova síntese de um projeto para o país, que ajudou até hoje, desde então, em nossa tática e estratégia , Plínio Arruda Sampaio, advogado e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).
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cultura
A opção pela
resistência
MEMÓRIA Diário de prisão de 1972 revela detalhes da luta política atrás das grades
Eduardo Sales de Lima da Reportagem O DIÁRIO DO jovem militante foi escrito há 37 anos dentro de uma cela de penitenciária e agora virou livro, lançado no dia 24 de outubro, no Memorial da Resistência, em São Paulo (SP). Resistência atrás das grades, de Maurice Politi, narra o contexto do enfrentamento político contra a ditadura militar por meio de uma greve de fome realizada por 32 homens. Eles tinham como objetivo resistir aos planos das autoridades da época de dividir os presos políticos em vários pequenos grupos, levando-os para diversas cadeias do Estado. A greve durou 33 dias, de 9 de junho até 11 de julho de 1972. “A greve de fome foi uma resposta dizendo que nós não aceitávamos, queríamos estar todos juntos. Por quê? Não era por capricho. Quando se isola cinco aqui e ali, pode-se sumir com um e, até todos ficarem sabendo, demora”, argumenta Politi. De acordo com o escritor, 1972 foi o ano em que a repres-
são começou a matar, isso porque os militares concluíram que certas pessoas “não tinham mais jeito”, eram “terroristas”.
Dividir Em seu livro, Politi retoma as lembranças do terror que invadia as mentes, dele e de todos os presos políticos, quando, nos meses iniciais da prisão, tanto nos centros da Operação Bandeirantes (Oban) como no Departamento de Ordem e Política Social (Deops), o carcereiro aproximava-se das grades das celas, balançava as chaves e chamava pelo nome um dos militantes presos, avisando: “Preparem-se para viajar”!
“Em todas as prisões políticas acontece muito o debate político interno”, conta Politi Ele e mais cinco companheiros tiveram que se preparar para uma viagem. Hoje, ele sabe que seu destino era a Penitenciária de Presidente Venceslau, extremo oeste do Estado de São Paulo. Mas no dia 8 de junho de 1972 não sabia. Porém, a ideia de uma morte iminente cedeu espaço ao nascimento de um diário. “As portas de seis celas da Casa de Detenção em São
de iríamos? Esta era a pergunta atroz que ninguém respondia”, assim começava seu diário, escrito na sexde 1972.
panheiros, como era habitual, ao som da ‘Internacional’, cantada por todos, e descemos para uma sala onde aguardamos nossa condução”, escrevia. Politi conta que, fora os erros de português, nada foi mudado no diário. “Tem parte que diz coisas como ‘Nós, os revolucionários’. Eu ia mexer porque fica muito bravata. Mas resolvi deixar, é um documento”, argumenta o escritor. Antes dessa greve de fome, realizada após a chegada de Politi e seus companheiros na Penitenciária de Presidente Venceslau, entre 9 de junho e 12 de julho de 1972, havia ocorrido uma primeira, de cinco dias (entre 12 e 17 de maio) na cidade de São Paulo com a participação de 34 homens e 13 mulheres nos presídios Tiradentes, Casa de Detenção e Penitenciária do Carandiru, também contra o isolamento
dos presos políticos como reivindicação principal. Barricada final Politi explica que não foram todos os presos políticos que optaram pela greve de fome porque tal escolha se configurava também como uma opção tanto política como individual. “Em todas as prisões políticas acontece muito o debate político interno. E existem as diferentes tendências. Existia uma que dizia ‘nós já fomos presos, e o papel do revolucionário é sair da prisão, porque a revolução se faz na rua, não se faz aqui dentro’”, lembra Politi. De acordo com ele, os integrantes dessa vertente de pensamento preferiram não provocar nenhuma autoridade, tendo como objetivo sair da prisão o mais rápido possível para ajudar os militantes que estavam do lado de fora. O outro grupo, do qual Politi fazia parte, pensava dife-
“Não foi uma coisa de tendência política. Foi mais de visão de qual era o seu papel dentro da prisão”, explica o escritor rente, que o pessoal “lá fora” precisava da ajuda dos militantes também dentro da prisão, por meio de denúncias, contando para os que estavam nas ruas quem eram os torturadores e provocando fatos dentro da prisão que pudessem ajudar na luta. “Uma greve de fome dentro da prisão podia significar solidariedade para a luta lá fora”, defende Politi. Os que cerraram fileiras para realizar as greves de fome integravam partidos como Aliança Libertadora Nacional (ALN), grande maioria, e Movimento Revolu-
cionário Tiradentes (MRT). “Até mesmo uma ou duas pessoas do Partidão [Partido Comunista do Brasil – PCB] entraram na primeira fase da greve. Não foi uma coisa de tendência política. Foi mais de visão de qual era o seu papel dentro da prisão”, explica Politi. O livro também traz vários documentos, entre eles mensagens de membros do exército a juízes importantes, cobrando endurecimento em relação aos militantes presos. Segundo o escritor, esses papéis nunca foram publicados.
Derrota passageira, vitória histórica Fim da greve de fome foi um ato de solidariedade da Reportagem A segunda fase da greve de fome durou 33 dias e não foi vitoriosa, já que os presos em São Paulo continuaram separados até o ano de 1976. Porém, o balanço histórico desse acontecimento é mais complexo. “Depois da greve, nós fomos integrados à população carcerária lá em Presidente Venceslau [SP], nos tornamos presos comuns. Só que essa resistência permitiu que os repressores vissem que havia gente combativa e a repercussão internacional foi muito grande”, lembra Maurice Politi. Por isso, segundo o escritor, se os militares ainda tivessem planos de sumir com as pessoas, já não poderiam mais.“Os 32 presos que entraram na greve de fome e ficaram 33 dias sem comer, eles não sumiram”, reforça. E de fato a ditadura havia sido pressionada. Em 16 de julho de 1972, Politi escreve sobre as notas internacionais que ele e seus companheiros presos leram. Chamou-lhe a atenção um artigo publicado no dia 7 de julho, no Financial Times, de autoria de um repórter chamado Kevyn Rafferty, cor-
respondente no Rio de Janeiro. O título era “Prisoners on hunger strike may die soon” (“Prisioneiros em greve de fome podem morrer logo”, em inglês). Somado a isso, Politi e seus companheiros souberam que várias cartas e telegramas enviados ao governo foram censurados, o que só provocou mais curiosidade da imprensa.
O escritor afirma que os seis presos políticos da penitenciária de Presidente Venceslau só cessaram a greve de fome em solidariedade a seus companheiros presos na capital Não deu O diário de Politi esmiúça fatos do dia-a-dia da greve de fome, como as pioras
de saúde de alguns militantes, as mudanças de humor e a dificuldade de “encontrar” as veias para a injeção de soros. Somado a isso, segundo ele, houve na penitenciária de Presidente Venceslau tanto fases de repressão total, “em que a gente não podia se ver”, como também fases mais abertas, mesmo durante a greve, “em que o diretor abria as portas e deixava a gente se encontrar”. “Quando nos encontrávamos, os freis dominicanos cantavam e a gente fazia piadas com as cartas que chegavam”, recorda. Mas, já no dia 17 de junho de 1972, quando seu pai e sua mãe lhe visitaram, chegou a primeira, de uma série outras péssimas notícias sob o ponto de vista da resistência à ditadura dentro da prisão. “Trouxeram algumas notícias bastante ruins de São Paulo. Segundo eles, 12 companheiros estão na enfermaria já se alimentando! Não é preciso dizer que nenhum de nós acreditou. Outra notícia que nos deixou abismados foi a de que os torturadores da Operação Bandeirante, depois de iniciada a greve de fome, estiveram na Casa de Detenção para buscar Paulo de Tarso Venceslau e Paulo de Tar-
so Vannuchi [atual ministro da Secretaria Geral de Direitos Humanos] e ‘obrigá-los’ a comer. Levaram um pau bastante violento, mas parece que já voltaram ao convívio dos demais”, relata no diário. Apesar do fim da greve no dia 11 de julho de 1972, Politi consegue ver um lado positivo. Para ele, o momento mais solidário da greve de fome foi o final. “O pessoal em São Paulo eram 26 pessoas e nós éramos seis. Nós lá [Presidente Venceslau] tínhamos condições melhores que eles, porque é mais fácil cuidar de seis do que cuidar de 26. Eles estavam muito pressionados com a repressão e nós poderíamos aguentar um pouco mais. Quando veio um comunicado que eles (em São Paulo) tinham parado, nós não queríamos parar”, lembra Politi. O escritor afirma que os seis presos políticos da penitenciária de Presidente Venceslau só cessaram a greve de fome em solidariedade a seus companheiros presos na capital do Estado. “Refletimos: ‘se eles, que são 26, pararam, e eles acham que devemos parar, devemos segui-los’. A gente não estava concordando, mas resolveu assumir isso”, conclui. (ESL)
Amargo Santo da Purificação Para lembrar os 40 anos do assassinato do guerrilheiro Carlos Marighella, a Companhia de Teatro “Ói Nóis Aqui Traveiz” apresenta em São Paulo o espetáculo O Amargo Santo da Purificação. A exibição acontecerá no dia 7 de novembro, às 13h, na abertura da exposição “40 anos - Marighella Vive”, no Memorial da Resistência. No dia 4, haverá um ato político às 11h na alameda Casa Branca, nº 806, Jardim Paulista, onde serão colocadas flores no local de sua morte. Às 18h, será projetado o filme Marighella: retrato falado de um guerrilheiro, de Silvio Tendler, no Salão Nobre da Câmara Municipal e, em seguida, em sessão solene, será concedido a Marighella o título de cidadão paulistano “in memoriam”. Marighella foi executado por agentes do Dops no dia 4 de novembro de 1969 em uma emboscada comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.
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américa latina
Eleição presidencial já é ilegítima Reprodução
HONDURAS Nova escolha para presidente ocorre dia 29 de novembro; para especialistas, conjuntura faz com que pleito seja apenas formal
que o de um governo golpista e ilegítimo”. Por isso, acredita que a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA) é puramente retórica.
Dafne Melo da Redação PASSADOS QUATRO meses do golpe e um mês da chegada de Manuel Zelaya à embaixada brasileira em Tegucigalpa, a situação política hondurenha segue no impasse. “Talvez tenham havido ilusões. Os golpistas sabem o que querem e nunca deram um único sinal de boa vontade para negociar”, avalia José Reinaldo Carvalho, secretário de relações internacionais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). As negociações entre Zelaya e o ditador Roberto Micheletti iniciaram no dia 7 de outubro e terminaram no dia 22, sem que um acordo tenha sido feito. As duas partes consensualizaram em quase todos os pontos do Acordo de San José, proposta do primeiro mediador da crise, o presidente da Costa Rica, Oscar Arias. O ponto em que não houve consenso foi justamente a restituição de Zelaya à presidência. A proposta de Micheletti era de uma renúncia dupla, o que não foi aceito pelo presidente destituído, por entender que, por ser o mandatário eleito democraticamente, é ele quem deve conduzir o próximo processo eleitoral. “O mundo não vai reconhecer as eleições, então qual o destino de Honduras? Continuar ilhada, sem nenhum embaixador
O ditador Roberto Micheletti: governo golpista insiste em conduzir o processo eleitoral
“O processo já não vai ser democrático, não há mais volta; não adianta colocar Zelaya de volta 15 dias antes”, aposta Nildo Ouriques, presidente do Instituto de Estudos Latino-americanos da UFSC do mundo trabalhando aqui, continuar sem cônsul, sem relações internacionais?”, questionou Zelaya. Eleições Valter Pomar, secretário de relações internacionais do Partido dos Trabalhadores (PT), é taxativo quanto à possibilidade de Micheletti estar à frente do país durante o pleito de 29 de novembro: “Eleições sob ditadura não são legítimas”. Marcelo Buzetto, professor do curso de Relações Internacionais
da Fundação Santo André, tem opinião semelhante: “Esse processo eleitoral já nasce morto”. Ele ainda explica que o nível de participação da população nas eleições é baixo (o voto não é obrigatório) e uma possível campanha de boicote por parte da esquerda pode tornar o processo ainda mais ilegítimo. Nildo Ouriques, presidente do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acrescenta que mesmo que Zelaya volte ao
poder pouco antes, o próximo presidente do país não encontrará um cenário ameno. “O processo já não vai ser democrático, não há mais volta; não adianta colocar Zelaya de volta 15 dias antes. Isso só vai dar um verniz democrático, e a essa altura só será um formalismo jurídico”. Ouriques acredita que há um setor do governo estadunidense que ainda pressiona pela volta do mandatário, justamente para dar ares mais democráticos à votação e evitar maiores instabilidades na região. Tática da direita Antes das negociações começarem, representantes de movimentos sociais chamavam a atenção para o perigo da questão acabar sendo adiada e o problema, empurrado até o limite. De fato, parece ter sido isso o que aconteceu. “Até o momento, o diálogo não le-
vou a uma solução, porque a tática dos golpistas é adiar o retorno de Zelaya ao máximo, ou mesmo fazer com que seu retorno ocorra depois das eleições”. Para Marcelo Buzetto, todo o jogo de cena das negociações acabou arrefecendo as manifestações e desgastando a esquerda, que hoje está menos mobilizada em relação aos primeiros meses. “Mas essas manifestações podem ser retomadas, sobretudo após as eleições. De certa forma, agora está todo mundo esperando o que vai acontecer a partir de 29 de novembro”, opina. José Reinaldo Carvalho acredita que a ditadura de Micheletti nunca entrou nas negociações para tentar resolver o conflito, apenas para ganhar tempo. “Negociar com golpista é uma contradição; é como se nós, que defendemos a democracia, nos colocássemos no mesmo patamar
Saídas Há certo consenso de que somente fortes mobilizações por parte do povo hondurenho ou uma postura mais enérgica por parte dos Estados Unidos podem por fim à ditadura. Hoje, entretanto, em grande parte devido à forte repressão, as manifestações não têm alcançado o impacto que tinham no início. Já o apoio estadunidense é visto como justamente um dos pontos de sustentação do regime. Pomar avalia que, além de ter a simpatia de um setor interno que se opunha às medidas reformistas adotadas pelo governo Zelaya, também “contam com o apoio de um setor importante do establishment dos Estados Unidos, inclusive setores da administração [Barack] Obama”. Marcelo Buzetto acredita que nenhuma saída progressista, entretanto, poderá vir dos EUA. “Não adianta nada esperar algo dos EUA, ou mesmo da ONU ou OEA”, afirma, acrescentando ainda que a esquerda hondurenha vai ter o desafio de popularizar e intensificar a luta contra o regime de Micheletti e talvez também contra um futuro governo ilegítimo. O professor de Relações Internacionais, que esteve em Honduras após o golpe, acredita que, apesar da repressão e da diminuição das mobilizações, nesses quatro meses “elevou-se o nível de conscientização e de organização dos movimentos”, o que se concretizou na formação da Frente Nacional de Resistência contra o Golpe de Estado. “A esquerda terá que desenvolver novas formas de luta para retomar o processo democrático em Honduras”, finaliza.
ELEIÇÕES MAJ
poucas declarações sobre a questão dos direitos humanos, disse reconhecer apenas o desaparecimento de seis uruguaios no período da ditadura. Ou seja, ele negou a existência comprovada de 176 uruguaios desaparecidos e assassinados, sobretudo na Argentina, no contexto da Operação Condor.
Uruguai terá segundo turno
Mudanças
Pepe Mujica e Luiz Alberto Lacalle irão disputar a presidência voto a voto no último domingo de novembro Mario Augusto Jacobskind
de Montevidéu (Uruguai)
OS URUGUAIOS vão escolher em segundo turno, no dia 29 de novembro, seu próximo presidente entre os candidatos Jose Pepe Mujica, da Frente Ampla (de esquerda), e Luis Alberto Lacalle, do Partido Nacional (conservador). O vencedor toma posse em 1º de março e governará por cinco anos. De acordo com as primeiras pesquisas, a disputa será definida voto a voto, já que Mujica está apenas a dois pontos percentuais de Lacalle. No 1º turno, realizado no dia 25 de outubro, o candidato da esquerda obteve 48% dos votos e Lacalle ficou com 29%. Pedro Bordabery, do Partido Colorado – que até a vitória, em 2004, do atual presidente Tabaré Vázquez (Frente Ampla) alternava-se no comando do país com o Partido Nacional –, teve 18%, enquanto Pablo Mieres, do Partido Independente, conseguiu 2,5% e Raul Rodriguez, da Assembleia Popular, 0,5%. Os brancos e nulos totalizaram 2%.
A campanha do segundo turno começou com os discursos dos dois candidatos que disputarão a preferência antes mesmo de serem conhecidos os resultados oficiais do primeiro turno. Para Mujica, por exemplo, a próxima eleição será um plebiscito entre duas formas, a de um projeto nacional, que é o da Frente Ampla, e a dos conservadores. Ou seja, entre um país que vivia em crise e sem perspectivas e um outro de esperança, criado pelo governo Vázquez. Já Lacalle, que durante a campanha disse que passaria uma motosserra no que foi feito pelo governo da Frente Ampla, logo após serem definidos os resultados do primeiro turno disse ser uma “opção pela paz e diálogo”. Pedro Bordabery já admitiu que apoiará o candidato do Partido Nacional, inimigo histórico do Colorado, mas, por enquanto, não se comprometeu a pedir que seus eleitores votem em Lacalle, enquanto Pablo Mieres, do Partido Independente, disse que não apoiará nenhum dos dois candidatos.
Manifestação da Frente Ampla, que apoia a candidatura de Jose Pepe Mujica
O candidato frente-amplista observou ainda que a questão da Lei de Caducidade continuará em discussão na sociedade uruguaia Direitos humanos Simultaneamente ao primeiro turno para a presidência, foram realizados plebiscitos sobre a anulação da Lei de Caducidade (que anistia criminosos do período ditatorial) e do direito de voto para os uruguaios no exterior. Ambos acabaram rejeitados. Com o resultado, questões relacionadas com crimes contra a humanidade ocorridas na época da ditadura permanecerão sendo decididas caso a caso. Três dias antes da eleição do primeiro turno, um general que governou de fato o Uruguai foi condenado a 25 anos de prisão por ser considerado culpado de 37 assassinatos no contexto da Operação Condor, de 1981 a 1984. Gregório Alvarez não compareceu ao Tribunal que ditou a
sentença alegando estar com diarreia. Juan Carlos Larcebeau, oficial do setor de inteligência da área militar no governo Alvarez, foi condenado a 20 anos por homicídios de militantes uruguaios sequestrados na Argentina e levados clandestinamente para Montevidéu. E Jorge Trocoli, também do setor de inteligência e acusado pelos mesmos crimes, livrou-se da punição por viver na Itália. Como o militar adquiriu nacionalidade italiana, não será extraditado. Embora lamentando a impunidade de Trocolli, o veredicto contra Alvarez e Lacerbeau foi comemorado pelos militantes de entidades defensoras dos direitos humanos, que desejam que o ex-ditador de 84 anos tenha uma
longa vida e deixe a prisão aos 109 anos. Mesmo reticente em abordar a questão do “sim” em favor da revogação da Lei de Caducidade, três dias antes da eleição, Mujica encontrou-se com familiares de vítimas da ditadura, entre as quais Victoria Julien, que foi descoberta no Chile, onde retomou sua verdadeira identidade e veio testemunhar na Justiça uruguaia sobre o desaparecimento dos pais biológicos, Victoria Grisonas e Roger Julien, assassinados em Buenos Aires. O candidato da Frente Ampla se comprometeu a apoiar as reivindicações dos familiares. Ao comentar a decisão dos uruguaios em não anular a Lei de Caducidade, Mujica assinalou que o tema acabou ficando em segundo plano em função da polarização da campanha presidencial e parlamentar. O candidato frente-amplista observou ainda que a questão da Lei de Caducidade continuará em discussão na sociedade uruguaia. Já Lacalle, candidato do Partido Nacional, numa das
No Senado e na Câmara, a Frente Ampla alcançou maioria absoluta. Para a senadora Lucia Topolanski, esposa de Mujica e líder da lista da Frente Ampla para o Senado , a vitória no parlamento se deve à militância, que levou cerca de 200 mil pessoas a participarem do ato final da aliança de esquerda em Montevidéu. Embora uma parte da esquerda uruguaia manifeste discordância com a Frente Ampla, nos cinco anos de governo Vázquez, houve um aumento da participação popular nos movimentos sociais. Segundo o cientista político Gerardo Caetano, os sindicatos triplicaram o número de filiados, os movimentos de direitos humanos se consolidaram, assim como o movimento feminista. Diante desse quadro, Caetano não vê possibilidades dos setores conservadores voltarem às práticas dos anos 1990, quando os políticos que aplicavam e defendiam as políticas neoliberais dominavam totalmente o cenário uruguaio. Hoje, ainda segundo o cientista político, os setores conservadores têm consciência de que houve uma grande mudança no cenário político. Ou seja, Caetano e outros cientistas políticos não acreditam que ocorra uma restauração conservadora no Uruguai e mesmo nos demais países da América Latina.
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américa latina
Lugar de universidade é na praça BOLÍVIA Em Cochabamba, ativistas mantêm universidade popular em plena praça pública e afirmam:“O povo está pedindo formação política. Agora é a hora de trabalhar a educação popular” Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) PARA QUALQUER brasileiro que tenha algum interesse em política, especialmente se for identificado com a esquerda, conhecer a Bolívia atualmente será uma riquíssima experiência. O intenso processo que vive o país desde o início dos anos 2000, levado adiante com a eleição do presidente Evo Morales em 2005, contrasta com o caso brasileiro, que viu emergir seu presidente de trajetória de esquerda baseado em uma paulatina amenização dos conflitos políticos. As distintas intensidades dos processos históricos parecem, hoje, ter reflexo nas ruas. Diferente da apatia que reina nos espaços públicos no Brasil, em termos de discussão política, uma rápida caminhada pelos centros urbanos bolivianos já oferece indícios sobre a vivacidade do debate sobre os rumos do país. Brasileiros mais exigentes ou militantes mais “caxias” podem questionar a qualidade ou a forma das discussões, mas um fato é inegável: a política está na boca do povo. A praça 14 de Setembro, na cidade de Cochabamba, capital do departamento que leva o mesmo nome, localizado no centro da Bolívia, talvez seja a melhor comprovação disso. A principal praça da cidade de pouco mais de 500 mil habitantes possui movimento intenso durante o dia e a noite dos sete dias da semana. Numa agradável noite de sexta-feira, dia 16 de outubro, em plena primavera cochabambina, a reportagem do Brasil de Fato se deparou com o local lotado. Além de ocupar as dezenas de bancos da praça, a população formava, pelo menos, duas rodas de cinquenta pessoas rindo de piadistas, uma outra admirando um artista plástico que pintava suas telas, uma quarta que apreciava o som de cerca de 40 charangos (uma espécie de cavaquinho boliviano), diversas outras pequenas rodas de conversa, além de um aglomerado que assistia a um filme projetado em
Vinicius Mansur
tela branca, mas suportado por uma larga lona preta. Caminhar até a projeção de imagens significava desviar das inúmeras rodas e ouvir de relance frases como “um partido não pode ter divisões”. Dando uma volta sobre o aglomerado que assistia ao filme, podia-se perceber que a lona preta que suportava a tela levava, em letras garrafais, os dizeres: “Si al proceso de cambio”. Ali estava sendo exibido um documentário sobre a Guerra do Gás, ocorrida em outubro de 2003, na cidade de El Alto, no departamento de La Paz. A realização é obra da organização Rede Tinku e faz parte das atividades da Universidade Popular Libertária.
Rede Tinku: organização urbana estimulada pelo campo Movimento surgiu do ponto de chegada das marchas camponesas e indígenas: a praça
Caminhar até a projeção de imagens significava desviar das inúmeras rodas e ouvir de relance frases como “um partido não pode ter divisões”
correspondente em La Paz (Bolívia)
Hora do trabalho de base
De acordo com o fundador da Rede Tinku, Ramiro Saravia, as aulas na praça 14 de Setembro começaram em outubro de 2007. Até 2008, elas eram irregulares, acontecendo uma vez ao mês ou uma vez por semana. Em seguida, elas passaram a acontecer todas as terças e quartas, mas não satisfizeram o grupo. “Duas horas de aula em sete dias não é nada. E aí dissemos: ou fazemos de verdade, ou não fazemos. Então, começamos, há um ano, com aulas todos os dias e aí teve mais impacto. Algumas vezes falhávamos porque nos faltavam professores e, assim, o povo não vinha. Nos últimos três meses já conseguimos fazer isso permanentemente; compramos cadeiras e temos um programa da semana, que define que professor vai dar que aula em que dia”, descreve. Segundo Saravia, a ideia de criação da universidade foi uma evolução das atividades que a Rede Tinku, que nasceu na praça em 1998, já fazia. Da venda de livros e CDs, dos debates e exposições de vídeo, que aconteciam de forma esporádica, o grupo evoluiu na sistematização das discussões e resolveu organizar um espaço público de formação, justamente no momento em que o povo está interessado na política. “Há dez anos tudo era mais difícil, o povo era muito mais indiferente. Mas agora ele tem interesse, tem esperan-
“Sim ao processo de mudança”, mensagem da Universidade Popular Libertária
ça, te escuta e é agora que temos que fazer educação popular, comunicação popular, enfim, mover a gente de baixo para aprofundar o processo de mudanças. É interessante ver que hoje apenas colocamos as cadeiras e eles já sentam e esperam as aulas! Antes eles não sabiam do que se tratava”, compara Saravia. Não se calar
O pedreiro Delfin Machicado, 50 anos, é uma prova desse interesse. Tendo cursado até o segundo ano básico, ele afirma ir todos os dias à Universidade Popular Libertária, que o ensinou a despertar. “Éramos como animais em currais, mas a universidade nos orienta, diz que não podemos nos calar”. Porém, Saravia lamenta que esse tipo de trabalho não seja feito por mais gente, que segue “a velha lógica partidária de mobilizar o povo somente por interesses particulares”. “O MAS (partido de Evo Morales) e as organizações camponesas-indígenas que apoiam o governo são muito grandes, mas falta trabalho ideológico e político. Isso nos preocupa, porque às vezes nos sentimos sós fazendo isso. Se todos os movimentos trabalhassem seus secretários de imprensa e propaganda, se todos tivesVinicius Mansur
A praça 14 de Setembro pouco antes do anoitecer: espaço público de formação
sem seus secretários de educação trabalhando, todos teriam grupos de reflexão política, educação popular, mas não há nada, isso morreu. Temos que assentar as bases para ir avançando no processo de mudanças, e isso significa trabalhar culturalmente de baixo para cima, não há outra forma de construir o poder popular. O povo boliviano necessita de maturidade política”, aponta.
“Temos que assentar as bases para ir avançando no processo de mudanças, e isso significa trabalhar culturalmente de baixo para cima”, afirma o fundador da Rede Tinku, Ramiro Saravia Avanços da universidade
Em geral, as aulas na Universidade Popular Libertária tratam da história política e social, em especial da Bolívia e da América Latina. Segundo Saravia, como Cochabamba é um lugar de passagem de muitos turistas, muitos militantes estrangeiros passam pela praça, conhecem a Rede Tinku e acabam voltando para contribuir com a universidade, expondo um pouco da realidade de seu país ou de seu movimento. Já passaram pela sala de aula a céu aberto docentes espanhóis, colombianos, hondurenhos, paraguaios, chilenos e uma grande quantidade de argentinos. “Eles têm muito que nos informar, porque são em sua maioria universitários e até mesmo educadores. A praça se transformou em um espaço internacionalista, e isso é muito interessante porque o pessoal daqui não viaja, mas conhece como é do outro lado, e o povo já entendeu que nossa luta é global”, destaca o boliviano. Saravia afirma que o método político-pedagógico da universidade ainda é meio
desordenado e caótico, sendo influenciado pelo materialismo histórico, da teoria marxista, pela Teologia da Libertação, pelo Anarquismo Libertário e, de forma inicial, pela cosmovisão e cultura dos povos andinos-amazônicos. “Isso é algo que não dominamos bem, mas estamos aprofundando porque sabemos que está muito presente na cultura local. Mas queremos qualificar essa parte metodológica e temos interesse de conhecer experiências avançadas de educação popular, como tem o MST do Brasil”, declara. Ampliação
Temas como ecologia e direito também são recorrentes na praça, mas a grande debilidade da Rede Tinku para consolidar seu leque pedagógico está nos recursos humanos. Atualmente, existem três professores que disponibilizam seu tempo livre à Universidade Popular de maneira regular e outros dois que ajudam quando podem. A meta da Rede Tinku é alcançar cinco docentes permanentes e outros dez rotativos, de modo a realizar 15 aulas, de duas horas, durante os cinco dias da semana. Uma aula das 11h às 13h e outras duas entre o período das 18h às 22h, totalizando 30 horas semanais. “Temos que ampliar porque, quando acaba a aula às 20h o povo não quer ir embora ou tem gente chegando. Já estamos envolvendo alunos na organização das coisas e agora vamos começar uma parceria com a universidade do Estado”, conta Saravia. O acordo foi firmado com o professor e os estudantes de uma disciplina do curso de Sociologia e Psicologia da Universidade Mayor de San Simón. Os estudantes farão uma nova modalidade de estágio, ajudando na promoção dos debates, no registro das aulas e também a fazer arte e cultura na praça. O acordo, que será renovado segundo a vontade dos estudantes dessa disciplina no próximo semestre, é visto como um reconhecimento por Saravia: “Supõe-se que o povo é que tem que ir à universidade aprender. Agora, os garotos da universidade estão vindo até a praça”.
O surgimento do movimento Rede Tinku foi no final de 1998, a partir de uma assembleia na praça 14 de Setembro. Porém, a organização é herdeira de uma cultura gestada na praça ainda no início da década de 1990. Segundo o fundador Ramiro Saravia, nesta época, a praça era um espaço de recepção de marchas camponesas e indígenas que chegavam do interior do país, em luta por seus direitos à terra e ao território. Articulados por entidades de direitos humanos, alguns cochabambinos faziam na cidade campanhas de sensibilização sobre a causa indígena, além de arrecadarem medicamentos e suprimentos para os manifestantes que chegavam exaustos. “Talvez o mais importante era a atenção e o apoio moral que dávamos a eles, porque nesta época ninguém da cidade os recebia. Mas nós estávamos metidos aí porque era o que acontecia de mais importante politicamente. As organizações da cidade estavam destroçadas e eu me identificava com os camponeses”, recorda. Assim, Saravia se integrou à Central Obreira Departamental, conheceu líderes importantes como Evo Morales, Rigoberta Menchú e Victor Hugo Cárdenas, mas se cansou do burocratismo que emperrava as organizações urbanas, que pouco faziam além de apoiar os movimentos do campo. Junto a um grupo que reunia universitários, secundaristas, jovens da Pastoral, mulheres camponesas jovens, desempregados, além de algumas pessoas que apareceram por iniciativa individual, incluindo estrangeiros que ali estavam de passagem, Saravia fundou a organização que tinha como princípios a interculturalidade e a autogestão. O objetivo era trabalhar política, cultura e educação. “Nós passamos a usar muitas imagens, letreiros e músicas nas manifestações que antes pareciam marchas fúnebres. Os trotskistas diziam que aquilo não era carnaval e que não deveríamos tocar música, mas as bases exigiam nossa participação e, de 2000 a 2005, todas as organizações nos chamavam para encabeçar as marchas”, afirma Saravia. A partir daí, a Rede Tinku conquistou um escritório, um alojamento solidário e passou a atuar diariamente na praça com debates, exibição de filmes, um painel com notícias atualizado diariamente, festas em homenagem a Pachamama, além da universidade popular. “Reconhecemos o valor das entidades camponesas e indígenas, mas o maior trabalho está em organizar a cidade”, conclui. A rede, que já esteve organizada em seis departamentos bolivianos, atualmente está firme na cidade de Cochabamba e conta com núcleos embrionários em La Paz e Santa Cruz. (VM)
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internacional
Israel sofre derrota histórica na ONU RafahKid Kid/CC
ORIENTE MÉDIO Relatório aprovado em Comissão de Direitos Humanos acusa Estado israelense de crimes de guerra na Faixa de Gaza Renato Godoy de Toledo da Redação NO DIA 16 DE outubro, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas impôs uma derrota inédita ao Estado de Israel – criado em 1948 por essa mesma instituição. Um relatório redigido pelo juiz sul-africano Richard Goldstone, notório especialista em crimes de guerra, apontou violações nos direitos humanos cometidos por Israel na ofensiva contra o território palestino da Faixa de Gaza, entre dezembro e janeiro últimos. O texto obteve aprovação no conselho de Direitos Humanos da entidade, com 25 votos favoráveis, 6 contrários e 11 abstenções. O parecer contou com apoio dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China), da Confederação Árabe e do movimento dos países nãoalinhados. O relatório Goldstone recomenda que a ONU e os países envolvidos acompanhem os eventuais abusos na região. O caso deve ser analisado pelo Conselho de Segurança e, se necessário, pode ser levado a julgamento no Tribunal de Haia. É a primeira vez que se cogita a hipótese de Israel ser levado a um tribunal internacional, o que poderia acarretar em sanções internacionais, em caso de comprovação dos crimes de guerra. Porém, como a medida depende de aprovação no Conselho de Segurança, tal cenário torna-se improvável, já que os EUA têm poder de veto. Washington questionou a legitimidade do relatório. Goldstone desafiou o presidente Barack Obama a comprovar que seu documento apresenta falhas. “Na história recente da ONU não conheço nenhuma outra decisão como esta. Ocorre que no Conselho dos Direitos Humanos não há vetos dos Estados Unidos. Por isso a sua aprovação por ampla maioria. Há casos de propostas de diversos textos de condenação de Israel no Conselho de Segurança, mas nunca foram aprovados pelo veto estadunidense”, analisa Lejeune Mirhan, arabista e presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo. Ainda assim, é a primeira vez na história das Nações Unidas que Israel sofre uma ameaça concreta, que extrapola os limites das usuais reprimendas orais. Isto é, a via jurídica para promover sanções contra o país foi aberta. “O grande problema das outras resoluções [que cri-
Casas e prédios destruídos na Faixa de Gaza durante os ataques israelenses de janeiro
ticavam as incursões bélicas de Israel] é que não se cumpriam as orientações da ONU. O que há de novo com o relatório é que foi aberta a possibilidade de a questão ser remetida ao Conselho de Segurança, para que o conselho peça uma investigação pela corte penal. [O relatório] é uma declaração sem poder de se fazer aplicar, mas a Corte Penal Internacional pode punir os responsáveis e, com a punição, novos crimes podem ser impedidos”, avalia Arlene Clemesha, historiadora especialista na questão palestina.
Cerca de 1,4 mil moradores da Faixa de Gaza foram mortos pelo Exército de Israel, enquanto os mísseis do Hamas teriam tirado a vida de nove israelenses Reação desproporcional
À época dos ataques à Faixa de Gaza, Israel alegava estar reagindo aos foguetes lançados pelo Hamas contra o território israelense. Mas o saldo da ofensiva israelense deixou claro a desproporção da reação de um dos maiores e mais bem treinados exércitos do mundo. Cálculos de grupos de defesa dos direitos humanos afirmam que cerRafahKid Kid/CC
O juiz sul-africano Richard Goldstone
ca de 1,4 mil moradores da Faixa de Gaza foram mortos pelo Exército de Israel, enquanto os mísseis do Hamas teriam tirado a vida de nove israelenses. O Hamas também foi acusado no relatório Goldstone (ver matéria abaixo), mas em menor intensidade, tanto que os seus próprios membros comemoraram a aprovação do relatório. Aliás, o Hamas, que hoje governa a Faixa de Gaza, obteve uma importante vitória política na Palestina, já que o seu adversário eleitoral, o Fatah, apresentou uma postura vacilante no processo que culminou com a aprovação do relatório. Inicialmente, o Fatah, que controla a Autoridade Nacional Palestina (reconhecida pela comunidade internacional), apresentou uma postura que oscilava entre o rechaço ao relatório – com base no temor de que Israel cessasse as negociações – e, por fim, o apoio ao parecer, motivado por pressões dos países árabes. O presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, divulgou declaração de apoio ao relatório. “A decisão do Conselho de Direitos Humanos da ONU de adotar o relatório Goldstone se transformará em um meio de pressão para proteger os palestinos contra Israel”, declarou em nota. Já o Hamas teceu declarações mais efusivas em relação à decisão da ONU. O porta-voz da organização islâmica em Gaza, Taher alNunu, agradeceu os países que votaram a favor do parecer. “Damos as boas-vindas à arrasadora votação do relatório, que deve ser levado imediatamente ao Tribunal Internacional para crimes de guerra, para que sejam processados os líderes da ocupação israelense por seus horrendos crimes”, afirmou. O Hamas aproveitou para criticar a atuação de Abbas, que tentava retardar a votação, alegando que o processo de negociação com Israel seria interrompido. “Dizia-se que a aprovação do relatório seria pretexto para Israel interromper as negociações. Pura balela. Não havia nenhum processo de paz em curso, até porque o atual governo israelense não negocia com os palestinos e é contra a paz. O relatório não muda o que não existia. Não há disposição alguma para a construção da paz por parte dos israelenses”, avalia Lejeune Mirhan.
Netanyahu tenta deslegitimar as Nações Unidas Governo de Israel chama ONU de antissemita; mas entidade é responsável pela criação do Estado da Redação A nova gestão do Estado de Israel, comandada pelo conservador Benjamim Netanyahu, recebeu com revolta a aprovação do relatório Goldstone. Representantes de Israel, entre eles o próprio primeiro-ministro, trataram de questionar a legitimidade da ONU e das leis internacionais. O ministro das Finanças israelense, Yuval Steinitz, chegou a afirmar que a decisão revela um antissemitismo das Nações Unidas, já que a mesma deu aval às invasões do Afeganistão, mas não permite a “defesa na Faixa de Gaza”. Para a historiadora Arlene Clemesha, a crítica que Israel faz à ONU é um contrassenso, já que o país só passou a existir após um rearranjo geopolítico protagonizado pela fundação do órgão multilateral. “A reação do Estado
de Israel mostra o quão importante é essa decisão. Com a aprovação do relatório, Israel tenta mudar a lei internacional. Mas esta tem origem justamente no fim da 2ª Guerra Mundial e visava reparar o crime que foi feito contra os judeus. Agora, eles querem rever essa lei, mas esperamos que isso não surta efeito, pois pode ser muito perigoso”, comenta a historiadora. A atitude de Israel frente à decisão da ONU não é surpresa, segundo o arabista Lejeune Mirhan. “É uma reação natural para quem foi duramente condenado. O relatório mostra a clara violação de todas as convenções de Genebra sobre ataques a civis e a completa desproporção da reação israelense. Esse desequilíbrio fica claro quando morrem 110 palestinos para cada israelense”, explica. Força geopolítica Apesar da reprimenda pública internacional, o poderio de Israel continua grande, sobretudo pelo apoio irrestrito recebido por países como os EUA e grande parte da União Europeia. A França, por exemplo, condenou a ação da ONU, a qual considerou uma “farsa diplomática”.
Para Lejeune Mirhan, a potência bélica e o respaldo político israelense ainda o mantém na condição de país com poder de persuasão na ordem internacional. “Estima-se que Israel tenha 200 ogivas nucleares, sem que isso implique em qualquer condenação dos Estados Unidos, que apoiam esse país, ao qual chamamos de ‘Estado bandido’ ou ‘pária internacional’. Mas tem ainda, além das ogivas, o quarto melhor e mais bem treinado exército do mundo. E o apoio político, militar e econômico da ainda maior potência do planeta. Assim, dizer que Israel perdeu força geopolítica é um exagero”, defende. No entanto, para a historiadora Arlene Clemesha, há um movimento internacional não-violento que visa barrar as investidas de Israel contra o povo palestino. “Há uma movimentação muito semelhante aos boicotes contra a África do Sul na época do apartheid. Esse boicote vem crescendo com os diversos massacres de Israel, como o do Líbano, em 2006, e o último em Gaza. Os governos da Suécia e da Noruega, por exemplo, já cancelaram investimentos em alguns empreendimentos em Israel”, relata. (RGT)
“Maior vitorioso foi o povo palestino” Para historiadora, disputa entre Hamas e Fatah ficou em segundo plano com a aprovação do relatório da Redação A população dos territórios palestinos reagiram com alegria à aprovação do relatório que denuncia as ações de Israel na região. De acordo com a historiadora Arlene Clemesha, a disputa política entre Hamas e Fatah ficou em segundo plano com a aprovação do relatório, já que o povo palestino, em sua totalidade, foi o maior beneficiado no processo.
“A aprovação foi uma vitória para o povo palestino. Hamas e Fatah são só duas das muitas organizações que existem na sociedade palestina. Todas as organizações saíram mais fortalecidas, inclusive a Autoridade Nacional Palestina, mesmo tendo relutado inicialmente a apoiar o relatório”, avalia. Para Arlene, a ANP agora pode ser cobrada por conta de sua postura. “Ela parece colocar a consolidação desse protogoverno acima
dos objetivos de libertação nacional. Isso tem que ser questionado”, defende. Já para o arabista Lejeune Mirhan, o Hamas obteve uma nova vitória com o parecer da ONU, mesmo tendo sido citado no documento. “O Hamas já havia se fortalecido por ter resistido a quase um mês de bombardeio e não ter perdido a batalha. Agora, a menção ao seu grupo é apenas com relação aos ataques de morteiros obsoletos de fabricação soviética, muito antigos, chamados katiucha, que funcionam mais para meter medo na população israelense da fronteira de Gaza do que para matar”, afirma. (RGT)