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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 349

São Paulo, de 5 a 11 de novembro de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br

Monumento a la Mujer Originaria

Governo RJ/Subsecretaria de Comunicação Social

A Argentina reescrita com outros símbolos

No RJ, a paz na favela por meio do controle e da coerção

O artista plástico Andrés Zerneri está trabalhando em prol de uma mobilização massiva e popular para substituir a estátua do General Julio Roca por um monumento feito de bronze que resgate as raízes argentinas, homenageando os povos indígenas. O escultor pretende concluir a imagem da “Mulher Originária” para as celebrações do Bicentenário da Independência do país, em 2010. No século 19, Roca dizimou 20 mil indígenas durante a expansão do território argentino. Pág. 8

Celebradas pelos meios de comunicação fluminenses como a solução definitiva para a violência no Estado, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), programa do governo estadual, vêm preocupando moradores de favelas e analistas pelo excesso de controle, desrespeito à cidadania e elevação do custo de vida nas comunidades “beneficiadas”. “Você continua com a ideia de que favela é um lugar perigoso e precisa ser controlado”, acusa Itamar Silva, coordenador do Ibase. Pág. 3

Aracruz demite trabalhadores lesionados No Espírito Santo, cerca de 400 funcionários da Fibria, monocultora de eucaliptos resultante da união entre Aracruz Celulose e Votorantim Celulose e Papel, desenvolveram doenças oriundas do trabalho. As lesões são comprovadas por laudo de 142 folhas elaborado pela Delegacia Regional do Trabalho (DRT), que recebeu a concordância do Ministério Público do Trabalho de São Mateus, no norte do Estado. Os problemas físicos

são decorrentes das longas jornadas a que são submetidos os empregados da colheita, que ainda chamam a empresa de Aracruz. O manual de instrução da máquina que ajuda no serviço estabelece que, para cada hora trabalhada, deve haver 20 minutos de descanso. Entretanto, a jornada chega a oito horas ininterruptas. Incapazes de exercer a função em decorrência das lesões, muitos funcionários foram demitidos. Págs. 6 e 7 Ricardo Almeida/SMCS

Relatores não tocam o cerne do projeto do pré-sal

Em Curitiba, a luta por “Minha Casa, Minha Vida”

A Câmara dos Deputados precisa votar até o dia 10, independentemente da aprovação dos relatórios, os quatro projetos de lei sobre a exploração do pré-sal enviados pelo governo federal. Entretanto, nenhum dos relatores tocou nos eixos principais das propostas, deixando vários pontos em aberto, como a definição da parcela da União nos contratos. Pág. 4

Na capital paranaense, trabalhadores se organizam no movimento “Nossa Luta, Nossa História”, para garantir o acesso ao programa de habitação “Minha Casa, Minha Vida”, do governo federal. O programa prevê a construção de 1 milhão de casas por meio de financiamento a empresas da construção civil pela Caixa Econômica Federal. As incorporadoras e empreiteiras executam projetos, que podem ser elaborados por elas mesmas, a partir de cadastramento centralizado pelo banco público e fornecido por prefeituras, Cohabs e movimentos sociais. O “Nossa Luta, Nossa História” surge nesse caldo, em curto espaço de tempo, com 2,5 mil cadastrados em bairros e vilas da periferia de Curitiba. Pág. 5

Casas da Cohab no Bairro Novo, em Curitiba (PR) Reprodução

Cuba e Bolívia: contra a lógica da medicina privatizada Iniciado em fevereiro de 2006, o trabalho da Brigada Médica Cubana na Bolívia, posto em marcha por meio de acordo entre o então presidente cubano, Fidel Castro, e o mandatário boliviano, Evo Morales, já contabiliza mais de 30 milhões de atendimentos e 25 mil vidas salvas. Hoje, estão na Bolívia mais de 1,6 mil profissionais da saúde vindos de Cuba. No entanto, a cooperação enfrenta obstáculos, como a cultura da medicina privada e as ações da oposição a Evo. Pág. 10

Hondurenhos responderão a golpista

20 anos depois, queda do Muro de Berlim ainda afeta a esquerda Em novembro de 1989, o muro que separava a Berlim ocidental da oriental ruiu, após protestos de cidadãos alemães. Com ele, caiu o governo socialista da Alemanha oriental e, posteriormente, de todo o leste europeu e URSS. A derrocada do bloco socialista trouxe uma crise ideológica à esquerda. À época, parte dela entusiasmou-se com as manifestações por liberdades na Alemanha oriental, mas hoje lamenta o processo de empobrecimento da região. Pág. 12

O Congresso de Honduras vai referendar ou não o acordo de Guaymuras, que prevê a restituição do presidente deposto, Manuel Zelaya, à presidência. No entanto, o membro da Resistência hondurenha Rafael Alegría afirma ao Brasil de Fato que os movimentos chamarão pela abstenção nas eleições de novembro caso Zelaya não seja restituído em breve. Pág. 9 ISSN 1978-5134

Artista pinta painel em pedaço do muro que dividia Berlim e que ainda está de pé


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de 5 a 11 de novembro de 2009

editorial A PARTIR DO dia 8 de novembro, militantes de movimentos sociais e sindicalistas de todo o Brasil começam a se concentrar na Esplanada dos Ministérios em Brasília, capital federal, para a realização de uma grande passeata no dia 11, rumo ao Congresso Nacional. Essa mobilização está sendo coordenada pelas oito centrais sindicais existentes no país e pretende reunir milhares de trabalhadores para, com pressão popular, fazer com que a Câmara dos Deputados acelere a votação do projeto de lei que propõe a redução da jornada de trabalho – atualmente em 44 horas semanais – para 40 horas. O projeto de lei já foi aprovado nas diversas comissões que percorreu e pode ser colocado em votação no Plenário da Câmara a qualquer momento; depende apenas da presidência ou do colégio de líderes. Ele ainda precisa passar por duas votações na Câmara e depois segue para o Senado, onde passará por mais duas votações. Depois disso, segue para a sanção do presidente da República. Esse trajeto demorado deve-se ao fato de que esse projeto altera a Constituição brasileira. Mas o seu rito pode ser acelerado se houver pressão popular e vontade política da maioria dos partidos.

debate

Redução da jornada de trabalho é uma luta histórica Em outros temas em que houve unidade dos partidos, como a liberação de recursos públicos do Tesouro Nacional para enfrentar a crise econômica, o rito foi rapidíssimo. Agora, os partidos de direita, da oposição, financiados pelos empresários e grandes empresas, colocam seus parlamentares a serviço do patronato para não aprovar a redução da jornada. Em recentes audiências públicas, a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) mostraram todas as suas forças ao mobilizarem sua bancada parlamentar para impedir um rito mais rápido. E ameaçam com demissões e “blecautes” de financiamento a seus prepostos. Os movimentos sociais, o movimento sindical, as centrais sindicais, as igrejas, as entidades populares e os partidos comprometidos com os interesses do povo têm

nesse tema a grande oportunidade histórica de obtermos avanços para a classe trabalhadora e para toda a população. Reduzir a jornada de trabalho é mais do que uma bandeira de direitos sociais. É uma bandeira histórica, socialista até, pois ela altera as condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora. Reduzir o tempo de trabalho sem reduzir o salário significa aumento de renda, menos tempo de trabalho dado de graça aos patrões. Significa mais tempo da classe trabalhadora para a família, para sua saúde, seu bem-estar, para o estudo e a cultura. Ou seja, alteram-se as condições históricas de exploração. Além disso, aumentam as vagas de emprego em toda a economia que tem contratos formais de trabalho. Por isso, todos devemos acompanhar com muita atenção e nos empenharmos ao máximo, pressionando os parlamentares para que acelerem a aprovação desse projeto de redução da jornada de trabalho para 40

crônica

Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Documento final da 18a Assembleia Geral do Cimi

Aldeia indígena Sassoró em Tacurí MS

Grosso do Sul, sofrem violências sistemáticas pela expansão do agronegócio, especialmente pelo monocultivo da cana e da soja. Grandes e pequenas hidrelétricas são projetadas e construídas sem respeitar os povos que sofrerão terríveis impactos e sem levar em conta riquezas naturais que serão destruídas. Belo Monte, no rio Xingu; Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira; a transposição do rio São Francisco; e centenas de outros empreendimentos afetarão os povos indígenas em todas as regiões do país. De modo particular preocupa-nos os povos em situação de isolamento que serão atingidos pelo complexo hidrelétrico do rio Madeira e dezenas de outros que sofrerão impactos em função do avanço do desmatamento e da exploração mineral na Amazônia. Representantes de diversos povos indígenas participaram dessa assembleia e externaram, uma vez mais, seu clamor e sua indignação diante da violência, criminalização de lideranças, omissão do poder público e devastação decorrentes da implantação dos grandes projetos de morte – e não de vida – para a grande maioria da população. Em sua firme resistência e esperança, lançaram o apelo para que mais setores da sociedade compreendam e apoiem seus direitos e suas lutas. Fizeram um apelo especial aos missionários, insistindo que, além de continuarem solidários e compromissados com eles, se esmerem em conseguir sempre mais aliados para essa causa. Como missionários e missionárias do Cimi, seguindo a tradição da entidade desde a primeira Assembleia Geral em 1975, assumimos o compromisso de apoio irrestrito aos povos indígenas na luta pela demarcação e garantia de seus territórios tradicionais, conforme determina a Constituição Federal e convenções e declarações internacionais das quais o Brasil é signatário. Definimos como ação estra-

Frei Betto

Passeio por Havana Fabio Pozzebom/ABr

“PAZ E TERRA para os Povos Indígenas”! Este foi o tema da 18a Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), realizada em Luziânia, Goiás, de 27 a 30 de outubro de 2009. O tema se inspira no texto do Profeta Isaias – “O fruto da justiça será a Paz, e a obra da justiça consistirá na tranquilidade e na segurança para sempre” (Is 32, 17) – e enfatiza que o direito assegurado dos povos indígenas à terra tradicional é condição prioritária para que haja paz na terra. Sem justiça não haverá demarcação das terras, não haverá respeito às diferenças, não haverá tranquilidade e segurança, não haverá futuro com dignidade para os povos indígenas. Ao analisarmos a conjuntura indigenista, política, econômica e social, concluímos que, embora haja êxitos e conquistas no que tange à participação indígena nas esferas públicas de controle social, vivemos um período de profundas e graves adversidades porque estão sendo consolidados programas e políticas que desrespeitam os direitos humanos, sociais, ambientais e culturais. As prioridades absolutas do governo federal são empreendimentos exploratórios dos recursos naturais existentes nas terras e nas águas. Para viabilizar tais projetos desenvolvimentistas, o Estado disponibiliza suas estruturas administrativas, financeiras, jurídicas e políticas. As leis precisam corresponder a essas expectativas e, quando isso não acontece do ponto de vista dos setores da produção, novas leis serão criadas. O governo entende que os demais entraves que comprometem os planos desenvolvimentistas – tais como os povos indígenas, os quilombolas e outras populações tradicionais, o Ministério Público, o meio ambiente e suas riquezas não-monetárias – devem ser removidos. Para a remoção desses entraves, o Estado também se estrutura com departamentos e secretarias que atuam em três frentes: no convencimento pela persuasão, na cooptação e na repressão quando as primeiras não surtirem o efeito desejado. Nessa mesma direção vão as ações do governo federal que objetivam impedir a presença e acesso de aliados dos povos indígenas às aldeias. Esta é mais uma das estratégias dos interesses econômicos e do governo para facilitar a extração dos recursos naturais das terras indígenas. Como consequência desse modelo de desenvolvimento, nenhuma terra indígena foi regularizada nos dois últimos anos. Os povos guarani kaiowá e terena, em Mato

horas semanais. E sem redução de salários! Portanto, no dia 11 de novembro teremos essa marcha nacional em Brasília, que pretende reunir milhares de pessoas. Todas as organizações que defendem os interesses dos trabalhadores e do povo devem colocar todo empenho possível para massificá-la ao máximo, em especial com as delegações mais próximas da capital. Mesmo assim, temos claro que só isso não basta. Somente essa pressão será insuficiente diante do poder de um congresso conservador e caudatário dos financiamentos privados de campanha feitos pelos empresários, que certamente vão cobrar a fatura agora . Devemos levar esse debate a todas as esferas do movimento sindical – que está unido nessa bandeira – e para os movimentos sociais. Essa é uma luta de todo o povo brasileiro. E urge nos prepararmos para batalhas mais duras e permanentes.

Oxalá o movimento sindical brasileiro tenha visão suficiente e capacidade de liderar greves nas empresas e fábricas e, junto com outras organizações da classe trabalhadora, preparar mobilizações nacionais em todas as cidades, culminando com uma possível paralisação nacional. A luta pela redução da jornada de trabalho é um bom motivo para a retomada das lutas massivas nas cidades. A causa é justa. É unitária. Nenhum setor pode atribuir a si a paternidade da ideia, e todos têm o dever e a obrigação de se engajar nessa luta. Essa luta é tão importante que não será decidida apenas no Congresso, por ação de lobbys ou pelos argumentos de sua necessidade. É uma luta social de todo o povo brasileiro, que deve ser levada para as fábricas, comércio, bancos, transportes e ruas de todo 0 país. Somente nesse terreno podemos derrotar a força econômica, política e ideológica que o empresariado da Fiesp e CNI exerce sobre os parlamentares e a mídia. Esta é uma das brigas boas, e todos os militantes sociais brasileiros deveriam se sentir instigados a entrar nela. Todos à luta!

tégica prioritária o apoio aos povos guarani kaiowá, do Mato Grosso do Sul. A expulsão desses povos de suas terras ancestrais configura-se em verdadeiro processo genocida e etnocida. Continuaremos a denunciar os órgãos de Estado que praticam atos de violência contra os povos indígenas, a exemplo do caso dos indígenas tupinambá, torturados pela Polícia Federal na Bahia. Revigoramos nessa assembleia o espírito de justiça e compromisso missionário junto aos povos indígenas deste país e do continente. Reafirmamos nossa abertura para o diálogo inter-religioso e ecumênico. Celebramos o testemunho dos lutadores e lutadoras, que consagram suas vidas a essa causa, e dos que já partiram, em especial nossos companheiros de décadas de luta e trabalho em favor dos povos indígenas de pouco contato ou em situação de isolamento e risco, como o padre Günter Kroemer e Carlos Tavares dos Passos. Unimo-nos ao clamor da natureza, contra a destruição da vida no planeta Terra. Os povos indígenas continuam a oferecer a todo o mundo seus projetos históricos de convivência harmoniosa com a natureza. Mesmo que campanhas antiindígenas tentem abafar nossos gritos por terra e justiça, jamais conseguirão matar nossos sonhos e nossa decisão inquebrantável de lutar pela vida, a dignidade e os direitos dos povos indígenas. A primavera em flor em Luziânia, Goiás, tornou a assembleia mais alegre e esperançosa. A resistência dos povos indígenas desabrocha na luta por seus direitos e fundamenta a nossa mística militante. Acreditamos que “um outro mundo é possível”, que coincide para nós com o Reino de Deus em que “Amor e verdade se encontram, justiça e paz se abraçam (Sl 85 (84),11)”. Luziânia, 30 de outubro de 2009. Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

HAVANA, NESTA época do ano, é banhada por suave temperatura. O calor é amenizado pelo hálito de frescor que sopra das águas azuladas por trás do Malecón. A umidade reflui, embora a população se mantenha atenta à meteorologia: outubro e novembro são meses de furacões. Ano passado, ceifaram quase 20% do PIB, hoje calculado em 50 bilhões de dólares. Não há sinal de que o desastre se repita este ano. Impossível, contudo, prever as reações vingativas de Gaia, cruelmente estuprada por nossa ambição de lucro e solene desprezo à mãe ambiente. A visita à Cuba, na penúltima semana de outubro, não tinha agenda de trabalho. Fui a convite do querido amigo José Alberto de Camargo, que, para comemorar aniversário, escolheu a cidade re-encantada pela literatura de Lezama Lima, Alejo Carpentier e Nicolás Guillén. A comitiva (comitiva do coração) incluiu os jornalistas Chico Pinheiro e Ricardo Kotscho, este acompanhado de Mara, sua mulher. Alojados no octogenário Hotel Nacional, brindamos o desembarque com o daiquiri de La Floridita, onde Hemingway tomava seus porres. Visitamos a casa de praia em que ele morou e escreveu O velho e o mar, bem como o Hotel Ambos Mundos, no qual viveu seis anos e redigiu Por quem os sinos dobram. Foram dias de boa culinária caribenha no El Templete, à beira do porto, e em El Oriente, frequentado por Saramago e García Márquez. Entre mojitos e o aroma perfumado dos charutos Cohiba, cuja fábrica percorremos, mantivemos proveitosas conversas com cidadãos anônimos e autoridades do país, como Ricardo Alarcón, presidente da Assembleia Nacional; Eusébio Leal, historiador da cidade (e responsável pela restauração da área colonial de Havana); Homero Acosta, secretário do Conselho de Estado (no qual se congregam ministros e dirigentes do país); Armando Hart, do Centro de Estudos Martianos; Abel Prieto, ministro da Cultura; e Caridad Diego, responsável pelo Gabinete de Assuntos Religiosos (que cuida da relação entre Estado e denominações confessionais). Permaneci um dia a mais para encontrar-me com Raúl Castro, atual presidente, com quem almocei no sábado, 24, e Fidel, que, na tarde do mesmo dia, me recebeu em sua casa, com direito a jantar. Cuba se encontra grávida de si mesma. Após 50 anos de Revolução, é hora de analisar erros e impasses. Mira-se o passado para enxergar melhor o futuro. Em 2010, o 9º congresso do Partido Comunista deverá submeter o país à verificação de suas contradições e elaboração de novas estratégias, sobretudo no que concerne à economia e à emulação ética. Engana-se quem supõe Cuba retrocedendo ao capitalismo. Ainda que se multipliquem aberturas à economia de mercado, devido à globalização e ao mundo unipolar hegemonizado pelo neoliberalismo, não interessa à Ilha priorizar a acumulação privada da riqueza em detrimento da maioria da população. A América Central é o espelho no qual Cuba não quer se ver: ali os índices de violência são, hoje, os mais altos do mundo, com 23 assassinatos/ano por cada grupo de 100 mil habitantes. No Brasil, o índice é de 31/100 mil e, em Cuba, 5,8/100 mil. Basta dizer que, no Rio, a polícia matou, em 2007, 1.330 pessoas. No ano anterior, em todo os EUA foram mortas pela polícia 347 pessoas. Os cubanos são conscientes de as falhas do país não poderem ser todas atribuídas ao criminoso bloqueio imposto, há mais de 40 anos, pela Casa Branca (e, agora, em vias de distensão pela administração Obama). A manutenção, por longo tempo, de medidas justificadas pela Guerra Fria começa a ser questionada. É o caso do caráter paternalista do Estado que assegura, a 11 milhões de habitantes, gratuitamente, cesta básica, saúde e educação de qualidade. Por essa razão, a qualidade de vida em Cuba, onde o analfabetismo está erradicado, figura em 51º lugar, entre 182 países, no Índice de Desenvolvimento Humano 2009, da ONU. O Brasil mereceu a 75ª classificação. Não se cogita alterar o direito universal e gratuito à saúde e à educação. Porém, a redução dos subsídios à alimentação deverá coincidir com o aumento de salários e da produtividade agrícola, de modo a diminuir a importação de 80% dos alimentos consumidos. Busca-se solução a curto prazo para a duplicidade de moedas: o CUC adquirido pelos turistas (evita o câmbio paralelo e a evasão de divisas) e o peso utilizado pelo cidadão cubano. O turismo, ao lado da exportação de níquel, é das principais fontes de arrecadação de Cuba, que, com tamanho 64 vezes inferior ao Brasil, recebe 2,5 milhões de turistas por ano, metade dos que desembarcam em nosso país no mesmo período. Toda a América Latina se opõe, hoje, ao bloqueio e apoia a reintegração de Cuba nos organismos continentais. A questão política mais relevante nas relações internacionais é a urgente libertação dos cinco cubanos presos nos EUA desde 1998, condenados a penas elevadíssimas, acusados – acreditem! – de evitar atos terroristas. Os cinco lograram abortar 170 atentados planejados contra Cuba dentro da comunidade cubana de Miami. Fernando Morais, com quem jantamos em Havana, promete lançar, em 2010, livro em que conta a esdrúxula história do processo movido pela Justiça usamericana contra os cinco cubanos. Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


de 5 a 11 de novembro de 2009

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brasil Fotos: Leandro Uchoas

Paz sem voz é medo VIOLÊNCIA Sob o pretexto do combate ao tráfico, Unidades de Polícia Pacificadora criam Estado policial: além do excesso de controle sobre comunidades, há aumento de custo de vida e repressão cultural Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) QUEM ACOMPANHA os jornais de maior tiragem e os principais canais de TV do Rio de Janeiro logo conclui que encontramos a solução. Ao ler ou assistir a reportagens sempre otimistas sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), o cidadão carioca comemora. Finalmente se teria encontrado a solução para a violência historicamente alarmante da cidade. Já o morador das comunidades “pacificadas” – denominação atribuída às favelas onde há UPP – nem sempre é tão otimista. Este acompanha sem véus o programa do governo estadual do Rio de Janeiro, que não é tão fabuloso como supõe os soldados de Ali Kamel, diretor da Central Globo de Jornalismo. Embora se tenha de fato expulsado os traficantes de algumas favelas, o programa preocupa pelo excesso de controle, desrespeito à cidadania, elevação do custo de vida e utilização do projeto como propaganda, apenas para citar alguns problemas. Boa parte dos moradores acolhe com relativa simpatia a iniciativa, movida pela repulsa à ditadura imposta pelos traficantes em outros tempos. Entretanto, também é grande o número dos que se preocupam com a possível implantação de um Estado policial na favela, com excessivo controle. São fartas as reclamações de que os policiais tratam o morador de comunidade como suspeito, uma forma histórica de criminalização da pobreza que faz parte da cultura nacional. “Qual a proposta da polícia ‘pacificadora’? Inibir o tráfico ou o pobre? O tráfico já foi extinto. Hoje em dia este é o lugar que mais respeita a lei”, afirma o rapper Fiell, líder comunitário de Santa Marta. Em todas as comunidades “pacificadas” – Cidade de Deus, Santa Marta, Batam, Chapéu Mangueira e Babilônia –, as acusações se repetem. Cartilha “Como nada ali pode dar errado, há excesso de controle. A polícia ‘pacificadora’ acaba

repetindo velhos erros. Você continua com a ideia de que favela é um lugar perigoso e precisa ser controlado”, acusa Itamar Silva, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Um dos moradores dessas comunidades, Alan Barcelos, relata a “dura” que tomou da polícia sem justificativa. “Foi sem critério nenhum. Me mandaram encostar no carro, me revistaram e não acharam nada. Então me coagiram a ir à delegacia. Alegaram que eu estava sem identidade, e que nunca tinham me visto no morro. Fora o constrangimento que me fizeram passar na frente de todo mundo. Isso está se tornando comum aqui”, conta. As UPPs seriam uma política pública correta se não fosse a maneira truculenta e preconceituosa como são implantadas. De fato, programas sérios de combate à violência recomendam a utilização de policiamento comunitário. Mas não aquele que implanta estratégias de controle pela coerção e trata favelados como suspeitos.

Boa parte dos moradores acolhe com relativa simpatia a iniciativa (…) Entretanto, também é grande o número dos que se preocupam com a possível implantação de um Estado policial na favela Em Santa Marta, os moradores resolveram enfrentar esses problemas com criatividade. Até o final de novembro, devem lançar uma cartilha para os moradores. Idealizada em parceria com a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa (Alerj), ela explica o que o policial pode ou não fazer. Tem apenas dez centímetros, para que o morador a carregue no bolso. Moradores inexistentes Algumas lideranças comunitárias incomodam-se com o posicionamento dos principais veículos midiáticos, de apoio irrestrito à iniciativa. “É impressionante. É quase absoluto. E qualquer questionamento que se faça é visto como apoio ao tráfico”, diz Itamar, que reconhece pontos positivos na iniciativa. No Santa Marta, morro onde ele nasceu e cresceu, os moradores sempre falam da propaganda do governo com risos. Veiculada na TV, a publicida-

Moradores falam da propaganda do governo com risos

Unidade Pacificadora no morro Santa Marta; programa preocupa pelo excesso de controle e desrespeito à cidadania

de exibe supostos moradores dizendo como a vida deles teria melhorado com o programa. Entretanto, ninguém nas imagens mora no Santa Marta. Fora do morro, poucos sabem disso. Outra reclamação constante é o aumento do custo de vida dessas localidades. Com a alegação de sempre, de que se está levando “ordem” a essas localidades, os moradores passaram a ter algumas despesas inéditas. Água, energia e sinal de TV passaram a ser cobrados. Soma-se a isso o aumento do valor dos aluguéis, com a valorização do local. Alguns moradores já começaram a sair das favelas, na impossibilidade de arcar com as despesas. O efeito é conhecido como “remoção branca”, a expulsão do território pelo mercado. Projeções do Instituto Pereira Passos (IPP) parecem ignorar o problema. Divulgou-se com otimismo que, com a implantação dos tributos inéditos, recursos da ordem de R$ 90 milhões seriam arrecadados (caso as UPPs fossem universalizadas). Só de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) haveria um crescimento de 4%; de ISS (Imposto Sobre Serviços), 1,6%. O Instituto não explica como trabalhadores pobres que vivem com o dinheiro contado arcariam com o acréscimo tributário.

Outra preocupação constante é a repressão das manifestações culturais da favela, muitas vezes por preconceito. A Cidade de Deus ficou meses sem ouvir funk Repressão cultural Outra preocupação constante é a repressão das manifestações culturais da favela, muitas vezes por preconceito. A Cidade de Deus ficou meses sem ouvir funk. Moradores acusavam a polícia de proibir a comunidade de tocar música até dentro das casas. Após muitos protestos e a mobilização da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), a repressão diminuiu. Mas há relatos de que o excesso de controle sobre o bairro – onde as UPPs não conseguiram inibir o tráfico por completo – se mantém. No morro Santa Marta, o tradicional Pagorap, organizado por Fiell, foi proibido durante muito tempo. Após muita reclamação, foi liberado, com hora para começar e acabar. “É um crime você calar uma comunidade que já tem dificuldade de se expressar pelos seus direitos. A comunidade deixa de se manifestar. Ela tem que se calar porque essa é a possibilidade de ela ter a ‘paz’. A médio prazo, isso é muito negativo”, avalia Itamar.

Santa Marta, a favela-outdoor Localizada no coração da zona sul, a mais midiática das comunidades tem sido utilizada, pelo governo estadual, como propaganda da política de “pacificação” do Rio de Janeiro (RJ) Na mais íngreme das favelas cariocas moram cerca de 6 mil pessoas – 0,1% dos cariocas. Jamais esteve entre as mais violentas da cidade, mas está localizada na beira da principal avenida de Botafogo, bairro central da zona sul (região rica do Rio de Janeiro). Na história do morro Santa Marta, uma série de acontecimentos e iniciativas sempre a colocou no centro dos debates sobre violência na cidade. O governo estadual de Sérgio Cabral (PMDB) a elegeu como primeira a receber o muro de contenção construído para, oficialmente, separar a favela de áreas de vegetação, iniciativa condenada por diversas instâncias internacionais (90% da obra já estariam prontos). Também foi pioneira na implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Ao se observar a propaganda da política de “pacificação”, fica claro: a favela é um outdoor usado pelo governo para dar publicidade à sua atuação. “O Santa Marta é o laboratório. É a matriz da experiência. Eu não tenho dúvida de que ali vai dar certo, porque o Estado quer muito que dê. Há um investimento muito grande. Os quadros são muito novos, e há um acompanhamento muito fino do que está acontecendo. Em laboratório tudo funciona. O problema é fora dele”, avalia Itamar Silva, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

A comunidade é chamada pelo governo de favela-modelo. “Não existe em lugar nenhum do mundo uma favela-modelo. Se é favela, não é modelo. Tiraram as drogas, e continuam as necessidades”, reclama o rapper Fiell.

“Não existe em lugar nenhum do mundo uma favela-modelo. Se é favela, não é modelo. Tiraram as drogas, e continuam as necessidades”, reclama o rapper Fiell Ocupada por 120 policiais em três postos de polícia, a pequena favela já recebeu banda larga gratuita e relógios de medição de energia. A capitã Priscila de Oliveira, coordenadora da UPP, vai ganhar da revista Veja Rio o prêmio Cidadão Carioca 2009. Há dois anos, o vencedor foi o secretário de segurança José Mariano Beltrame, o mesmo que coordena a polícia do mundo que mais mata e que mais morre. Câmeras de vigilância Recentemente, a reclamação principal da comunidade foi a instalação de nove câmeras de vigilância. Co-

mo o muro de contenção e a UPP, o equipamento foi instalado sem que os moradores fossem ouvidos. Souberam pela televisão. Pela arquitetura local e geografia do morro, fica evidente que as câmeras têm acesso a imagens do interior das casas. O grupo Eco organizou três debates sobre o tema. “Em qualquer lugar do mundo hoje se discute câmera e vigilância. Mas no Santa Marta não se pode discutir nada. Qual o objetivo do Estado? É apenas responder a um apelo da sociedade, ou é para exercer controle e mostrar à sociedade que há uma limpeza na zona sul?”, protesta Itamar. O morro começou a ficar mais conhecido em meados dos anos 1980, com a guerra entre os traficantes Zaca e Cabeludo. O filme Duas semanas no Santa Marta ganhou certa projeção. Dos anos 1990 em diante, muitas iniciativas colocaram o morro Santa Marta no centro do debate sobre a violência. O documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Salles, que versava essencialmente sobre certa insolubilidade intrínseca à violência carioca, foi filmado no local. O traficante Marcinho VP, nascido e criado no morro, destacouse pelo carisma e discurso politizado. Já o livro Abusado, de Caco Barcelos, abordou a história de Marcinho e da comunidade de Santa Marta, sendo sucesso de vendas. Por sua vez, o cantor estadunidense Michael Jackson gravou na favela imagens do clip “They don’t care about us”. (LU)

Números das UPPs Comunidades onde já existem: Santa Marta, em Botafogo; Chapéu • Mangueira e Babilônia, no Leme; Cidade de Deus, em Jacarepaguá; e Batam, em Realengo. O governo estadual já teria uma lista das próximas. Para alcançar toda a cidade, seria preciso 77 UPPs.

Babilônia e Chapéu Mangueira, com 6 mil moradores, contam com 100 • policiais. Próxima de Jacarepaguá, a Cidade de Deus tem 120 mil habitantes

convivendo com 190 policiais. No Jardim Batam, em Realengo, onde os jornalistas de O Dia foram torturados pela milícia local há dois anos, os 40 mil moradores convivem, hoje, com 55 policiais da UPP. No Santa Marta, de 6 mil moradores, há 120 homens.

O governo do Rio está investindo R$ 15 milhões na formação de policiais. Até • 2016, pretendem contar com 60 mil novos recrutas. O especialista da ONU em programas de assentamentos urbanos visitará a • UPP de Babilônia e Chapéu Mangueira para conhecer o projeto. O governo

estadunidense também estaria interessado em conhecer o programa, visando implantar algo semelhante no Afeganistão.

A página oficial do programa (www.upp.rj.gov.br) já recebeu visitas de • internautas de 13 países, de três continentes.


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Pré-sal: parecer de relatores não estabelece um teto para o Estado Roosewelt Pinheiro/ABr

PETRÓLEO Mesmo após receber 823 emendas, alterações até o momento não tocam nos eixos centrais de projeto do governo

denuncia a advogada Clair da Flora Martins, alertando ainda para a possibilidade de as empresas consorciadas com a Petrobras negociarem a participação a partir de uma mesma oferta rebaixada, uma prática de cartel.

Pedro Carrano da Redação A RESPOSTA DA Câmara dos Deputados para os quatro projetos de lei enviados pelo governo sobre a exploração do petróleo abaixo da camada pré-sal foi nada menos do que 823 emendas, 301 delas apenas para o projeto do Fundo Social. Os números dão uma dimensão do interesse que o destino da renda petrolífera desperta nos diferentes setores da sociedade, tanto que o parecer dos relatores teve a sua votação adiada na comissão encarregada pelos trabalhos. A Câmara tem até o dia 10 para votar, independentemente de os pareceres tiverem sido aprovados ou não. Além do projeto do Fundo Social, as demais propostas enviadas pelo governo tratam da criação de uma nova estatal, do novo marco regulatório para exploração do présal e da capitalização da Petrobras. Os PLs foram anunciados no dia 31 de agosto, com forte tonalidade nacionalista. A partir daí, o debate político do último trimestre elevou-se acima da disputa real no Congresso, uma vez que a mídia corporativa assumiu a defesa do marco regulatório anterior (lei 9.478, de 1997) e apresentou os atuais projetos como “estatizantes” – cenário que encobriu reais pontos populares e antipopulares da proposta governamental. O parecer dos relatores de cada um dos quatro projetos reforça que, sem a pressão das ruas, as propostas devem ser aprovadas sem modificação em seus eixos principais. Uma vez aceitos pelos deputados, os PLs serão encaminhados para o Senado, palco considerado mais conservador. Até o momento não hou-

Reunião da Comissão Especial da Câmara que analisa o sistema de partilha da produção da camada pré-sal

Quanto

77% das reservas de

óleo estão hoje nas mãos dos estados nacionais ve, por exemplo, denúncia de inconstitucionalidade nos projetos do governo – apesar de declarações e lobby do Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP) contra a operação da Petrobras em todas as áreas do pré-sal não leiloadas. Atualmente, a principal disputa nos corredores se dá por um pedaço pequeno da fatia do pré-sal: a cobrança de royalties, também chamada renda indireta. Após pressão dos três principais estados produtores (Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo), a hierarquia no acesso à renda indireta não se alterou. Os estados não-produtores, no entanto, conseguiram um pequeno aumento na alíquota. A ideia do governo era deixar o assunto para outro período, mas se viu no cabo de guerra entre as duas partes. De forma geral, os projetos governamentais continuam

deixando sérios pontos em aberto. A definição do marco regulatório das áreas do pré-sal no formato de contrato de partilha não estabelece a porcentagem de óleo que deve ficar com o Estado brasileiro. Cabe, portanto, à União fazer o acordo a partir da melhor oferta dentro de cada consórcio – tendo em vista que a Petrobras parte com 30% de direito à partilha.

No caso do projeto do governo, movimentos sociais como Via Campesina e Assembleia Popular, coincidindo com outras entidades, apontam o fato de que o projeto não estabelece a plataforma de apropriação do petróleo pelo Estado. A análise coincide com a opinião de especialistas, entre eles o físico Luiz Pinguelli Rosa (Coppe-RJ), que, em audiência pública em Brasília, revelou que na concepção origi-

nal do projeto havia essa prerrogativa, mas ela foi retirada para não gerar confronto com o mercado. O Instituto Reage Brasil, de Curitiba, levantou o mesmo ponto. “O principal nesse tema é a participação da União, o que não está configurado. Dentro do contrato com a Nova Empresa (Petrosal), a lei não estabelece qual é o percentual da União, que fica ao sabor dos governos”,

Modelos de contrato e a atual conjuntura No Brasil, a Lei 9.478 (1997) caracteriza-se como uma medida anacrônica, vigente nas áreas que já passaram por leilões, no pré-sal e fora dele: o tipo de contrato estabelecido pela norma é utilizado por países cujas reservas estão esgotadas e tornam-se dependentes do controle da comercialização de óleo, a exemplo do Canadá e dos Estados Unidos. Outro modelo é o de partilha de produção, no qual o petróleo excedente é dividido entre Estado e empresa, combinando renda direta e indireta, como o exemplo do modelo norueguês e de países africanos. Há ainda o de prestação de serviços, no qual o Estado controla as reservas e contrata uma petroleira para a exploração, que pode ser 100% estatal – o que ocorre, por exemplo, no Irã. Os contratos de concessão surgem em um período de início da extração do petróleo, relacionado ao risco nas descobertas. Já o de partilha é próprio da segunda metade do século 20, um período de expansão da indústria e do uso do petróleo. Segundo os movimentos sociais brasileiros reunidos na campanha “O petróleo tem que ser nosso”, o modelo do monopólio e do controle das reservas é o adequado para o momento histórico atual, devido à necessidade de controle e gestão racional do ritmo da exploração, em uma conjuntura de possível escassez de reservas. (PC)

No plano do debate De acordo com certos analistas, existe um aumento da demanda de óleo e energia por parte da China e da Índia, procura que cresce mais rapidamente do que as descobertas de novas reservas. Outro grupo de especialistas diverge da questão da escassez. No entanto, é certo que as potências imperialistas se orientam para garantir fornecedores estáveis de energia. Após a apresentação dos projetos e o trâmite na Câmara, o Instituto Brasileiro de Petróleo, representante de 220 transnacionais e empresas do ramo, elevou o tom e manifestou-se contra a escolha da Petrobras (apesar de associada ao instituto) como operadora exclusiva do pré-sal. A postura do representante das empresas está na contramão da tendência mundial, uma vez que hoje 77% das reservas de óleo estão em mãos dos estados nacionais. As corporações do setor e as cinco principais delas, dos Estados Unidos e Inglaterra, contentam-se com 3% das reservas, assumindo o papel de apropriação da oferta dos países produtores. O Brasil, atualmente, fica apenas com 20% da renda sobre o petróleo extraído. Especialistas têm dito que o montante poderia ser, no mínimo, de 80%, isto sem escandalizar a conjuntura mundial. Não foram só os “jornalões” que criaram a celeuma entre o projeto ser “estatizante” ou “manter-se eficiente como a lei anterior”. Mesmo a mídia corporativa mais qualificada, como o Valor Econômico, tem questionado a capacidade de a Petrobras possuir infraestrutura para a operação do pré-sal, crítica feita em comparação com o mercado, dono de maior eficiência, de acordo com a análise do periódico. Omite-se, neste sentido, a própria inserção que a Petrobras possui hoje no mercado – é a quinta maior empresa mundial, capitalizada na Bolsa de Nova York (NYSE).

Movimentos veem debate rebaixado

Entenda os principais pontos dos quatro projetos de lei do governo

Para integrantes da campanha “O petróleo tem que ser nosso”, proposta do governo foi tímida

Contrato de Partilha (PL 5.938/09)

da Redação A melhor imagem para a apresentação da lei do petróleo é a conciliação de interesses divergentes. Um passo tímido. Esta é a avaliação de grande parte dos movimentos sociais, uma vez que o horizonte da campanha “O Petróleo tem que ser nosso” é o da retomada do monopólio estatal, operado por uma Petrobras 100% estatal e pública. As organizações que constroem a campanha possuem unidade para colocar em prática três eixos: mobilizar as massas e os setores não organizados, chegar até aqueles setores organizados que ainda não se somaram à luta – caso da Igreja, dos militares etc. – e fazer com que a correlação de forças altere nas ruas, e não so-

mente nos espaços institucionais. Debates e a criação de grupos e comitês da campanha avançaram em estados como Rio de Janeiro, Paraná e Bahia. Uma referência para a campanha tem sido o projeto de lei (5.891/09) dos movimentos sociais, protocolado no Congresso, a partir das bandeiras unitárias da campanha. Dentre os principais pontos da proposta está a garantia da retomada do monopólio estatal sobre o óleo brasileiro, explorado por uma Petrobras 100% estatal e pública. No horizonte imediato, a campanha sinaliza a participação em audiência pública/ ato sobre o PL 5.891/09. A audiência pública foi agendada para o dia 4 no auditório Teotônio Vilela, no Senado federal, que tem capacidade para 800 pessoas. O objetivo é que membros da campanha circulem pelos gabinetes de presi-

dentes e relatores dos projetos do governo, reforçando as propostas da campanha. No dia 14, a campanha das centrais sindicais pela “Redução da jornada de trabalho para 40 horas” irá levantar as bandeiras da campanha do petróleo. Debate político Enquanto debate político, a descoberta das reservas na camada do pré-sal tem se reproduzido neste período, no contexto de audiências em Brasília organizadas pelos relatores dos projetos, assim como em outros estados. No dia 22 de outubro, o governo do Paraná organizou o evento “Pré-sal – O Brasil no caminho certo”, assinado por todos os partidos da Assembleia Legislativa. O ato contou com a presença do governador Roberto Requião, do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, além do ministro do Planejamen-

Colocação de Paulo Bernardo sobre uma possível anulação da oitava rodada dos leilões abre espaços para pressão futura dos movimentos sociais

to, Paulo Bernardo, com forte tonalidade de nacionalismo e considerando o projeto do governo como uma conquista máxima já alcançada. Também participaram da mesa o coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP), João Antonio de Moraes, além de Fernando Siqueira, da Associação dos Engenheiros (Aepet). A partir do ponto de vista dos movimentos sociais, Moraes reconheceu que há um avanço no novo marco regulatório, porém apontou que é necessário atingir o monopólio estatal e a Petrobras 100% estatal e pública, os dois principais eixos que deram origem ao projeto dos movimentos sociais. Na avaliação de advogada Clair da Flora Martins, do Instituto Reage Brasil, os pontos que ainda estão pendentes na nova lei proposta são a questão dos blocos licitados fora das áreas do pré-sal e a continuidade dos leilões. A partir disso, sobre o seminário, Clair expõe que a colocação de Paulo Bernardo sobre uma possível anulação da oitava rodada dos leilões abre espaços para pressão futura dos movimentos sociais, em caso de licitações de blocos. (PC)

Modelo previsto para as áreas do pré-sal ainda não licitadas (71%). A Petrobras (BR) é a operadora em todos os consórcios. Na proposta, a empresa tem direito a, no mínimo, 30% do contrato de partilha em cada consórcio, o que pode aumentar de acordo com cada poço. A BR pode sair sozinha ou participar dos leilões com outras empresas, de acordo com decisão do governo.

Criação de uma nova empresa 100% pública (PL 5.939/09)

A nova estatal, apelidada “Petrosal”, é a empresa que representa a União nos contratos de partilha. À União cabe a partilha do óleo excedente (“óleo-lucro”), impostos e royalties sobre a extração, combinando a renda direta e indireta sobre o petróleo descoberto.

Criação de Fundo Social (PL 5.940/09)

Prevê investimentos em educação, combate à pobreza e em pesquisa e tecnologia. Após os pareceres da Câmara, acena para novas áreas, como saúde. Fonte de recursos do fundo: parte da parcela do valor do bônus de assinatura (valor pago no momento do leilão pela empresa), da parcela dos royalties que cabe à União, a receita da comercialização advinda da Petrosal e os resultados sobre aplicações financeiras.

Capitalização da Petrobras (PL 5.941/09)

A União oferece 5 bilhões de barris de petróleo do pré-sal para a exploração da Petrobras. O passivo da Petrobras será pago com a compra de títulos mobiliários da União. Esses títulos podem ser integralizados com o aumento de ações da União dentro do capital da empresa. A polêmica está se a União deve ceder essa quantidade de óleo, dada a configuração atual da Petrobras, que representa mais o mercado do que uma política de Estado.


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O cadastro da casa, a luta e a história Fotos: Ricardo Almeida/SMCS

HABITAÇÃO Movimento Nossa Luta, Nossa História, nascido em Curitiba, luta para garantir o acesso ao programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal Pedro Carrano de Curitiba (PR) CLÁUDIO CORREIA não havia se organizado antes, a não ser nos trabalhos da igreja da comunidade. Ele vive de favor na casa do sogro. É pai e desempregado. Define a fila da Cohab (Companhia de Habitação) de Curitiba como desmotivadora. Agora, ajuda na coordenação do movimento “Nossa Luta, Nossa História”, organizado a partir da demanda do programa “Minha Casa, Minha Vida”, do governo federal. Pode-se dizer que quase 8 milhões de “Cláudios” vivem a mesma situação incômoda no Brasil, pois este é o número de unidades necessárias para se atender o deficit habitacional do país. Nesses números, cabem aqueles que, a exemplo de Cláudio, moram de favor. Assim como os assalariados que não têm como adquirir a própria moradia e conhecem o peso mensal do aluguel. Com o anúncio de construção de 1 milhão de casas, por meio da injeção de R$ 33 milhões, e na vanguarda das medidas anticíclicas do governo federal, o programa Minha Casa, Minha Vida financia empresas da construção civil, por meio da Caixa Econômica Federal. As incorporadoras e empreiteiras executam projetos, que podem ser elaborados por elas mesmas, a partir de cadastramento centralizado pelo banco público e fornecido por prefeituras, Cohabs e movimentos sociais. Os terrenos podem ser vendidos pelas próprias empreiteiras ou reservados pelas Cohabs. Uma pequena parte dos cadastros e projetos – em torno de 3% dos recursos – é organizada pelo movimento social (associações, entidades da sociedade civil, movimentos

Moradias da Cohab de Curitiba: programa do governo para habitação despertou setor com maior capacidade de mobilização

Pode-se dizer que quase 8 milhões de “Cláudios” vivem a mesma situação incômoda no Brasil, pois este é o número de unidades necessárias para se atender o deficit habitacional do país de moradia). No Brasil, já são 18 milhões de cadastrados, o que indica que a demanda reprimida é muito maior que a oferta. Despertar O movimento Nossa Luta, Nossa História surge nesse caldo, em curto espaço de tempo, com 2,5 mil cadastrados em bairros e vilas da periferia de Curitiba. A maior assembleia de bairro atingiu 170 pessoas. Hoje, 15 grupos estão organizados na periferia e possuem seus coordenadores, o que resultou, no dia 27 de setembro, em uma assembleia com a participação de cerca de 1,5 mil pessoas – mobilização rara no movimento popular de Curitiba. “Percebemos, quando a Cohab começava a cadastrar, que o pessoal dormia nas filas e que em todo o lugar encheu de gente”, relata Adenival Gomes, um dos idealizadores do movimento. O programa do governo, na análise de Gomes, despertou um setor com uma capacidade de mobilização maior do

que a daqueles moradores em situação crítica, na iminência de despejos forçados. O movimento Nossa Luta, Nossa História é composto por pessoas que pagam aluguel. “Todo mundo tem sentimento de que aluguel é dinheiro jogado fora, sendo que podia estar pagando a mesma coisa no futuro, como um investimento”, avalia. Minoria Gomes reconhece as críticas na análise do programa (leia nesta página). Para ele, no entanto, trata-se de uma oportunidade para organização e debate de temas que são tabus para a questão da moradia, como o número gigantesco de imóveis vazios. “Temos de conseguir um instrumento de pressão sobre a Cohab e avançar na bandeira da taxação progressiva dos imóveis”, aponta Gomes, ao referir-se ao chamado IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) progressivo sobre imóveis vazios, que não cumprem a função social.

Os debates do Nossa Luta, Nossa História apontam para a entrada no programa a partir da modalidade de construção organizada por movimento social, na qual o cadastramento é feito pela organização, aberto à possibilidade de contratação de empresas ou do uso de mão-de-obra própria. No entanto, a característica do programa faz com que iniciativas como o novo movimento sejam, na realidade, uma franca minoria, visto que “97% do subsídio público disponibilizado pelo pacote habitacional, com recursos da União e do FGTS [Fundo de Garantia por Tempo de Serviço], são destinados à oferta e produção direta por construtoras privadas, e apenas 3% a entidades sem fins lucrativos, cooperativas e movimentos sociais, para produção de habitação urbana e rural por autogestão”, descreve Pedro Fiori Arantes, em artigo publicado no Correio da Cidadania, assinado em conjunto com a urbanista Mariana Fix. Pode-se dizer que alguns se arriscam pela primeira vez na luta. “Nunca me organizei, mas achei que agora era o momento”, afirma o cozinheiro Severino Rocha, que calcula que o aluguel devora 40% do que é pago por sua força de trabalho. Rocha passou a atuar como coordenador do Nossa Luta, Nossa História na sua localidade e realizou cadastra-

mento junto a 120 famílias da região, na periferia de Curitiba. Percebe que o aluguel é a questão para a maioria. Outro motivo seria a moradia de favor, situação de 16 entre os 120 cadastrados da sua comunidade. Não ter imóvel e nunca ter sido subsidiário de algum programa é a condição. Contradições A relação do movimento popular com o Programa Minha Casa, Minha Vida tem sido áspera noutras situações. Em Minas Gerais, os movimentos sociais urbanos denunciam

que a aprovação do projeto de lei, submetido à legislação local, apresenta o componente de que “as invasões” não serão contempladas pelo programa, em uma cidade com ocupações organizadas pelo movimento social. Bruno Meirinho, advogado da Ambiens Cooperativa, Planejamento e Gestão do Desenvolvimento Urbano e Rural, enxerga uma desvinculação do programa com o planejamento urbano e produção da cidade mais justa. “Está focado na resolução do problema das construtoras, e em faixas mais altas de rendas, na lógica do mercado”, opina. Sobre a característica dos cadastros, três modalidades se apresentam: de 0 a 3 salários mínimos; de 4 a 6; e de 6 a 10; atingindo, portanto, trabalhadores com salário de até R$ 4,5 mil. A primeira modalidade, embora represente a maioria da demanda, não será a maior contemplada pelo programa (leia nesta página). O teto mínimo de pagamento para essa faixa é de R$ 50 por prestação, incluindo desempregados. Com faixa de salário acima de R$ 500, as prestações correspondem a 10% da renda do trabalhador. O problema, na avaliação de Meirinho, consiste no fato de que os empreiteiros vão optar pelas maiores faixas de renda, fonte de maior lucro, “favorecendo uma faixa populacional que não demanda para o programa o dispêndio de tantos recursos, uma vez que é uma faixa menor da população”, comenta.

Raio-x da habitação no Brasil Trabalhadores que recebem menos de três salários • mínimos são responsáveis por 82,5% do deficit

habitacional brasileiro, mas receberão 35% das unidades do programa Minha Casa, Minha Vida, ao passo que os que se posicionam na faixa entre 3 e 10 salários mínimos ficarão com 60% das unidades*;

A política do Banco Nacional de Habitação (BNH), • vigente do regime militar até os anos 1980, resultou

em 4 milhões de moradias e uma prática de construção às margens das cidades e dos imóveis vazios para especulação*;

O setor da construção liderou a alta da Bovespa em • 2006*; Curitiba apresenta 40 mil imóveis vazios sem utilização • no centro da cidade**. *Fonte: Pedro Arantes e Mariana Fix (publicado no Correio da Cidadania). **Fonte: Plataforma de lutas pelo direito à cidade e à moradia, Coletivo Despejo Zero.

Companhias de habitação não socializam a terra urbana Programa federal não se caracteriza pelo planejamento urbano. Especulação imobiliária, exclusão das regiões valorizadas e falta de regularização de áreas de ocupação são contradições que se acentuam ou que seguem pendentes

Analisado como um todo, um dos riscos do Programa Minha Casa, Minha Vida, lançado recentemente pelo governo federal, está nas políticas das companhias de habitação locais, isso porque a Caixa Econômica avalia os cadastros que são repassados por aquelas. As empreiteiras apresentam-se com um projeto pronto, em busca do cadastramento em mãos do banco federal, que não deixa de fazer uma análise de mercado. “Pode ser um terreno de terceiros, apresentado pela construtora, avaliamos e fazemos a proposta. O terreno é sem-

pre apresentado para nós, como opção de compra e venda”, comenta representante da Caixa para a reportagem do Brasil de Fato. Em Curitiba, a Cohab acena utilizar os cadastros já realizados ao longo de dez anos. A fila para o acesso aos programas da construtora pública já amarga mais de 50 mil famílias. “Ainda que a demanda seja até maior, em dez anos, muitas famílias talvez tenham buscado outras alternativas”, aponta Bruno Meirinho, advogado da Ambiens Cooperativa, Planejamento e Gestão do Desenvolvimento Urbano e Rural.

As companhias de habitação começam a reclamar dos preços dos terrenos, que passaram a se inflacionar devido justamente à especulação da terra Especulação Por sua vez, Adenival Gomes, um dos idealizadores do movimento Nossa Luta, Nossa História, defende que o problema é o critério de tempo de espera. “Não precisa fazer outro cadastramento. O problema é quando não se atende o critério de maior

Especulação e valor da terra

de Curitiba (PR) “Se for com a Cohab, o projeto não anda!”, exclama uma das coordenadoras do movimento Nossa Luta, Nossa História, em reunião da coordenação do movimento, em Curitiba. Uma outra integrante denuncia o padrão de casa no formato “pombal”, com apenas 37 metros quadrados, modelo padronizado pela Companhia de Habitação. “O movimento tem de denunciar a Cohab, para mostrar que a cama de casal não cabe no quarto”, comenta.

necessidade, e sim o de tempo na fila”, analisa. Na opinião da coordenação do Nossa Luta, Nossa História, o programa federal prevê a possibilidade de construção em terrenos para até três unidades habitacionais. Por esse motivo, estão mobilizando os coordenadores de bairros

para buscar imóveis à venda nas suas regiões. Por outro lado, as companhias de habitação começam a reclamar dos preços dos terrenos, que passaram a se inflacionar devido justamente à especulação da terra. De acordo com informações da Caixa à reportagem do Brasil de Fato, desapropriações com indenização não devem acontecer, dentro da ideia de ser um projeto para construção, e não de planejamento urbano. Ainda não há uma normativa de como o programa será operacionalizado. (PC)

de Curitiba (PR)

Família comemora casa recebida da Cohab Curitiba; mas, segundo movimentos, nem cama de casal cabe na casa

De acordo com Adenival Gomes, um dos idealizadores do movimento Nossa Luta, Nossa História, o preço dos terrenos em Curitiba subiu até 30% logo depois do anúncio do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal. Bruno Meirinho, advogado da Ambiens Cooperativa, Planejamento e Gestão do Desenvolvimento Urbano e Rural argumenta que a inflação do preço da terra nas cidades

pode ser a desculpa das companhias para não realizarem desapropriações, buscando, então, terrenos em regiões periféricas da cidade, longe de uma infraestrutura completa. São as “periferias extremas”, na expressão de urbanistas. “O programa poderia suprir lacunas se a Cohab não tivesse interesse de mercado, mas a própria Cohab argumenta que os preços de terreno aumentaram. O programa poderia então congelar o valor da terra ou atender os preços do mercado de 2008”, problematiza. (PC)


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Aracruz explora e demite trabalhadores lesionados

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Esquema Opportunity

Reprodução

A Polícia Federal conseguiu identificar os aplicadores do esquema de Daniel Dantas no Banco Opportunity, aqueles que toparam enviar seu dinheiro de origem desconhecida para paraísos fiscais, praticaram os crimes de evasão e de sonegação e que utilizaram vários mecanismos para fazer a “lavagem” do dinheiro. A maior parte é de empresários. Falta agora saber quem vai processar e punir esses criminosos.

Esquema Banestado

Vale lembrar que o esquema Banestado, ocorrido durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso (1998-2002), parecido com o do Opportunity, foi investigado por força-tarefa da Polícia FederalMinistério Público, mas uma CPI na Câmara dos Deputados conseguiu abafar o caso e esconder da sociedade a relação dos envolvidos – centenas de empresários, figurões das elites e políticos de todos os partidos.

Contas maquiadas

O vereador Eliomar Coelho, do Psol do Rio de Janeiro, denuncia que a prefeitura municipal do Rio está fazendo malabarismo contábil com verbas do Fundeb para alcançar a aplicação dos 25% da receita municipal em educação, conforme determina a Constituição Federal. Cálculos da Câmara Municipal do Rio de Janeiro indicam que a prefeitura investe apenas 18,6% em educação. É pouco e está fora da lei!

Desgaste tucano

Monocultura de celulose no ES deixa trabalhadores lesionados; Aracruz impõe jornada que contraria manual de instruções da máquina utilizada

DENÚNCIA Fabricante de celulose provoca doenças laborais ao impor jornadas excessivas aos seus funcionários Andréa Margon de Vitória (ES) “INVESTIMOS NO cultivo de florestas como fonte renovável e sustentável de vida, para produzir riqueza e crescimento econômico, promover desenvolvimento humano e social e garantir conservação ambiental”. Estas são palavras encontradas no site da Fibria, resultado da união da Aracruz Celulose (do Espírito Santo) e da Votorantim Celulose e Papel, fortes empresas no mercado global de produtos florestais. Mas, se por um lado ela produz “riqueza e crescimento econômico”, por outro não promove “desenvolvimento humano e social”. Quem denuncia isso são funcionários lesionados que atuavam ou atuam na colheita do eucalipto. Os trabalhadores contam com o apoio da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH). São horas excessivas de trabalho em terreno acidentado que levam os cerca de 400 trabalhadores do Espírito Santo e da Bahia a desenvolverem, precocemente, problemas físicos relacionados às atividades, ou seja, doenças do trabalho. Os mais antigos cultivam uma relação de amor e ódio pela empresa, que ainda chamam de Aracruz. “O amor que tinha na empresa, trabalhei 24 anos, doei até a última gota do meu sangue. Infelizmente na empresa somos uma matrícula, um número. Não querem saber que trabalhador é humano e tem família”, lamenta Anjo Gabriel Martins, operador de máquina de processamento florestal, afastado há quatro anos. Em encontro no município de Aracruz (norte capixaba), alguns trabalhadores lesionados conversaram com a reportagem e revelaram suas angústias, mágoas e dores (literalmente), já que as lesões são irreversíveis, conforme laudos médicos. Eles informam que um fiscal da perícia médica da Previdência Social foi ao campo de trabalho com um funcioná-

rio da Aracruz para checar a máquina, que é de origem sueca. Entretanto, o equipamento estava parado, impedindo uma avaliação completa sobre a sua responsabilidade com relação às enfermidades. Segundo os lesionados, esse fiscal ainda falou que trabalhar na máquina é melhor que no escritório. Eles dizem que o equipamento é bom para se trabalhar, mas deveria ser utilizado de forma correta. Outro problema enfrentado pelos trabalhadores é com relação aos médicos peritos da Previdência Social. Segundo eles, os atendimentos, realizados em São Mateus (norte do Espírito Santo), são feitos por profissionais de diversas áreas, como cardiologia e clínica geral. Nunca em ortopedia, que é o caso em questão. Além disso, esses peritos não concordam com os laudos dos ortopedistas que atendem os trabalhadores. Em 2007, os trabalhadores entraram com processos na Justiça e também ingressaram com denúncia junto ao Ministério Público do Trabalho. A Delegacia Regional do Trabalho (DRT) fez um laudo de 142 folhas dizendo que as lesões são decorrentes da função. E o Ministério Público do Trabalho de São Mateus concorda. “Não temos apoio dos órgãos públicos. É como se nós estivéssemos errados e a empresa certa”, reclama um trabalhador. E mais: os exames periódicos não contemplam a ortopedia (só raio-X e exames sanguíneos), “porque sabem que o problema vai aparecer”. Os trabalhadores não questionam a ergonomia da máquina, mas sim o tempo de trabalho. Não há intervalos. Anjo Gabriel fala que “o ritmo da Aracruz é acelerado. A empresa pede três viagens de florestal por hora. Se você trabalha oito horas, dá uma média de 22 viagens. Em cada operação o trabalhador faz cerca de 30 movimentos com os braços [joystick], se não houver erro. Por ano são cerca de 7 milhões de movimentos”. Enquanto a Fibria se vangloria do alto desempenho na colheita, o manual da máquina fala que, para cada hora trabalhada, deve haver um período de descanso de 20 minutos. Além disso, ele indica que não se trabalhe diariamente. O Sindicato dos Trabalhadores em Atividades de Extração e Exploração de Madeira e Lenha (Sintral) também foi denunciado pelos trabalhadores. Segundo eles, a entidade não se manifesta a favor dos representados por manter estreitas relações com a Aracruz (Fibria). Procurados pela reportagem, Sintral e Fibria não se manifestaram até o fechamento desta edição.

Equipamentos da colheita Corte e descascamento: escavadeiras harvester (For Word – Valmet) adaptadas às condições florestais e equipadas com cabeçotes processadores. Adquiridas pela Aracruz Celulose em 1997. Transporte: tratores forwarder com capacidade de carga de 14 a 18 toneladas por viagem.

Perfis Nome: Sebastião Peverotti Idade: 43 anos Lesões: ombro direito (já fez cirurgia), ombro esquerdo (não fez cirurgia porque não acredita no resultado, já que no direito não deu certo), joelho (já fez a cirurgia), hérnia de serviçal e hérnia de disco. Resultado: depois de sete meses da última cirurgia (joelho), a Fibria demitiu o trabalhador, ignorando a lei que prevê um ano de estabilidade após esse tipo de intervenção. Já ingressou com ação na Justiça e aguarda resultado. “Vamos ver se a Justiça dá o direito do trabalhador. Tento trabalhar e não consigo. Tento sobreviver do dinheiro que recebi. Mas um dia vai acabar”. Foram 22 anos trabalhando para a Aracruz (hoje Fibria). Tenta retornar ao mercado de trabalho, mas não consegue passar nos exames médicos. “Nenhuma empresa quer pegar um trabalhador doente como eu”. Segundo ele, a empresa exige produção e “não pensa que o ser humano não é uma máquina. A empresa não olhou para o que eu fiz por ela nesses 22 anos, a única empresa em que trabalhei na vida”. Nome: Geraldo Sarmegui Júnior Idade: 37 anos Lesões: ombro, coluna cervical, lombar e coração. Resultado: está há um ano e quatro meses afastado e aguarda decisão da Justiça para a aposentadoria. Depois de 19 anos na empresa, tendo como última função operador de máquina, hoje, “estou vivendo do jeito que posso”. Nome: Paulo Henrique Nunes Rezende Idade: 37 anos Lesões: lesão cervical, lombar e ombros, lesão renal no 4º estágio e, por consequência, hipertensão. Resultado: a empresa diz que é doença degenerativa. “O médico da Fibria chegou a dizer que somos vagabundos, que não queremos trabalhar”. Chorando, Paulo Henrique lamentou não conseguir pegar a filha nos braços porque não tem mais forças. “Tudo isso poderia ser evitado. Me revolta ver os colegas lesionados. Os novatos, também, vão ficar como eu”. Segundo ele, trabalhadores com quatro anos na empresa já apresentam lesões graves. Há 22 anos na empresa, hoje atua como vigia após um período de licença e teme que, com o término da estabilidade pós-cirurgia, seja mais um demitido. Nome: Anjo Gabriel Martins Idade: 48 anos Lesões: coluna cervical – todos os elos (cartilagens) estão desgastados, lombar, perdeu a força nas mãos (dedos adormecidos), fez cirurgia e tem síndrome de impacto no corpo. Resultado: há quatro anos afastado. Fez duas cirurgias no ombro direito e o esquerdo está inflamado. De acordo com ele, o médico que o atendeu falou que não vale mais a pena operar, “virou crônico”. “Depois de 24 anos na empresa, a dedicação não valeu nada. Ela nos pagou, mas demos nosso suor. Cheguei ao ponto de pensar em cometer suicídio. Pensei em maltratar meu próprio corpo para alguém ver o que estava acontecendo”. Em um dos inúmeros delírios operando a máquina colheitadeira, Gabriel disse que sonhava com a família morta em casa e que o delírio somente parava quando terminava o enterro dos familiares (mulher e duas filhas). Ele fala que a empresa tenta descaracterizar a doença. “Para eles tudo é degenerativo. Só queremos que se utilize a ética médica. A Aracruz pressiona os médicos para fazer o que ela quer”.

Organizada pela Frente Nacional dos Prefeitos e pela Associação Brasileira de Municípios, a Marcha Paulista em Defesa dos Municípios realiza dias 11 e 12 de novembro manifestação na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Os prefeitos reclamam que os municípios pagam despesas que são do governo estadual, com prejuízo para as populações locais. Pedem o repasse imediato das verbas estaduais.

Mamata esportiva

O BNDES divulgou proposta do governo federal para preparar os estádios de futebol para a Copa do Mundo de 2014. O banco vai financiar até 75% das obras, no máximo R$ 400 milhões por estádio, com três anos de carência e prazo de 12 anos para o pagamento. Os juros serão calculados pela taxa de longo prazo, mais 1,9% ao ano. Maior mamata do que esta não existe, é a farra do dinheiro fácil e barato.

Direita irritada

Os principais jornais diários do Brasil, entre eles a Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Valor Econômico veicularam editoriais de protesto contra o ingresso da Venezuela no Mercosul. Chamaram a ampliação do bloco econômico de “retrocesso”, “tumulto” e “imposição bolivariana”. A direita não consegue conter seu ódio ideológico nem mesmo no comércio que tem favorecido o empresariado brasileiro.

Crise permanente

Um dos maiores símbolos do poderio econômico dos Estados Unidos, o Citi Group pediu concordata no dia 1º de novembro, tem uma dívida de 65 bilhões de dólares e deverá dar calote de 2,3 bilhões de dólares no governo estadunidense, que injetou recursos justamente para evitar a quebra do grupo. Com certeza a concordata terá desdobramentos nas filiais e nas empresas que operam com esse banco.

Crime organizado

Em protesto contra o livro Espírito Santo, escrito pelo atual secretário de Segurança Pública do Espírito Santo, Rodney Miranda, em coautoria com o juiz Carlos Eduardo Lemos e o antropólogo Luiz Eduardo Soares, 13 coronéis da Polícia Militar colocaram seus cargos à disposição. O livro trata do assassinato do juiz Alexandre Martins de Castro Filho, em 2003, morto pelo crime organizado naquele Estado.

Ciência contaminada

Participantes do 33º encontro anual da Anpocs – Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais – não gostaram nem um pouco de saber que o governo dos Estados Unidos contribuiu financeiramente para a realização do evento, em Caxambu (MG). Acham que o apoio de entidades nacionais de pesquisa, tudo bem, mas de um país estrangeiro intervencionista e belicista, não tem nada a ver. Pisaram na bola!


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brasil

“Não é possível que todos os casos sejam congênitos”, afirma médica Reprodução

DENÚNCIA Denise Rosindo Bourguignon, médica do trabalho, contesta versão da Aracruz de que as lesões dos trabalhadores são congênitas

Fundação aponta que Aracruz impõe jornada excessiva

Andréa Margon de Vitória (ES) ALGO NO AMBIENTE de trabalho propicia a ocorrência das lesões encontradas nos funcionários da Fibria no Espírito Santo. A avaliação é da médica do trabalho Denise Rosindo Bourguignon. Segundo ela, não é possível que todos os lesionados da Fibria sejam casos congênitos. “Não é possível que as pessoas sejam escolhidas a dedo para o surgimento de um quadro determinado”. Ela, que já foi procurada por diversos trabalhadores lesionados da empresa, afirma ter observado que há coincidência em transtornos de ombro em operadores florestais (aqueles que trabalham na colheita do eucalipto). “Todos os indivíduos que me procuraram apresentavam lesão de ombro e eram de faixa etária precoce”, relata. Ela conta que detectou a síndrome de impacto do ombro com ruptura e observou que a frequência foi aumentando, principalmente, em indivíduos com mais de dez anos naquela atividade. Bourguignon orientou o sindicato representativo e alguns trabalhadores a se reunirem e entrarem com ação no Ministério Público para investigar o setor do trabalho. A médica citou a classificação do grupo III de Schilling, que diz que alguns agravos vão ser desenvolvidos ou desencadeados pelo trabalho, independente de o sujeito ter uma determinada predisposição. “Se a pessoa é alérgica e for trabalhar com produtos químicos, trata-se, sim, de doença relacionada ao trabalho. O ambiente aflora a doença”. Ela reiterou a tese de que é impossível que tenha sido feita uma seleção prévia de pessoas e só serem chamadas as

todo o corpo dos trabalhadores, causando lesões nos tendões. “A pessoa chega ao limite de ansiedade e transtorno do trabalho e passa a tomar ansiolítico [tranquilizante]. É a fuga que ela tem. Ou vai para o alcoolismo ou outras drogas. Quando o trabalhador afastado lembra que pode voltar, entra em pânico”. Segundo Garcia, esta é uma constante comprovada cientificamente.

Fundacentro diz que fabricante de celulose contraria indicações do manual de instruções dos equipamentos que utiliza de Vitória (ES)

Quando não consegue mais operar na colheita, trabalhador vira vigia

predispostas à doença. “Para entender, é só fazer o cruzamento dos seguintes itens: primeiro, descrição das atividades; segundo, existência de inúmeros casos decorrentes do setor; e terceiro, tipo de lesão”. Bourguignon fala que uma coisa é operar em terreno plano, outra, em terreno acidentado, que necessita de manobras, como é o caso do trabalho na colheita do eucalipto. “Este é um indicativo sério de que aquele tipo de operação está causando problemas”. Risco ergonômico

Uma visita técnica aconteceu, mas não houve uma avaliação do posto de trabalho, e sim da máquina. Além disso, as atividades executadas não foram alvo de análise. Segundo ela, a avaliação de posto de trabalho não é de equipamento, e o problema está no local de sua utilização. “Existe relatório médico que fala em risco ergonômico na função”. Inicialmente, a Previdência Social aceitava os pedidos de afastamento e aposentadorias em função da doença do traba-

lho. Entretanto, depois que a empresa solicitou mudança no reconhecimento, a Previdência acatou a solicitação e mudou o atendimento aos lesionados. Quando o trabalhador chega ao ponto de não conseguir mais trabalhar na função de operador florestal, é inserido em outra função na empresa. “Depois da colheita vão para vigia de campo (operador de apoio de operação de colheita). Quando acaba a estabilidade são demitidos. É muito fácil mandar embora no Brasil. O país não ratifica uma legislação de proteção do indivíduo. Resultado: tem indivíduo sequelado fora da faixa de mercado”. Bourguignon ainda questiona: “qual a estrutura do sujeito para enfrentar uma demissão? Qual o impacto pela perda da capacidade profissional? Não dá para lesionar um sujeito e conceder uma estabilidade hipócrita, que é mal interpretada quando a limita em apenas um ano. A empresa tem responsabilidade social. Se lesionou, tem que ser indenizado”.

“As pessoas deveriam entrar na Justiça comum requerendo indenização por dano. O Código Civil diz que colocar a vida e a saúde do indivíduo em risco é crime. Quando se coloca o trabalhador 12 horas numa máquina que deve ser operada somente durante seis horas, é crime”. A avaliação é de Antonio Carlos Garcia Júnior, técnico da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro). Ele foi procurado por trabalhadores que foram lesionados após jornadas excessivas na Aracruz Celulose (Fibria) e adiantou à reportagem que já foi solicitada uma audiência pública para debater o caso, que deverá acontecer até o final deste mês. O objetivo é fechar um acordo entre os trabalhadores e a empresa. Garcia lembra que o fabricante da máquina utilizada na colheita do eucalipto determina que a cada hora deve-se ter 20 minutos de pausa. “Isso não ocorre. Estão trabalhando 12 horas sem parar. Pelo que vimos, a lesão do trabalho é inevitável. Não tem como trabalhar mais de seis horas por dia”, relata. Além disso, ele lembra que se tratam de máquinas mais baratas, que foram adaptadas e têm um tipo de vibração que atinge

Parecer técnico “Agora, cabe ao Ministério Público, pois a denúncia já foi feita. Trata-se de uma grande empresa, e a questão política é pesada”. Garcia acrescenta, ainda, que o laudo elaborado pela Delegacia Regional do Trabalho (DRT/ES) é claro e comprova a doença do trabalho. Outra ajuda deverá vir da Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia (Emescam), que deverá fazer um estudo técnico da máquina. Com base nas denúncias dos trabalhadores da Fibria, a Fundacentro elaborou um parecer técnico. Dentre os aspectos apontados, está claro que, dentre “os problemas existentes quanto à utilização dos equipamentos de processamento florestais (harvest e forwader) [...], vários trabalhadores na função denominada operador de máquina de processamento florestal estão adoecendo com patologias osteomioligamentares nos ombros e coluna vertebral (cervical e lombar), problemas estes que, ao que tudo indica, possuem nexo com o trabalho deles, fato que a empresa não reconhece”. E continua: “A falta de resposta efetiva por parte da empresa por quase 2 (dois) anos demonstra o seu descaso pelos problemas e pelos trabalhadores, tendo como consequência: danos físicos e morais aos trabalhadores; não reconhecimento da estabilidade dos

trabalhadores lesionados; sobrecarga nos custos arcados pela Previdência Social em benefícios pagos aos trabalhadores por doenças causadas pela empresa”. O parecer ainda acrescenta que, “pelo que entendemos lendo os documentos existentes de todos os processos, grande parte dos problemas poderia ser sanada se a empresa Aracruz Celulose S.A. seguisse as recomendações dos próprios fabricantes de máquinas, que, preocupados com a ocorrência de doenças osteoligamentares nos usuários dos seus produtos, procuram oferecer as melhores condições ergonômicas possíveis para a sua utilização”. Acidente de Trabalho Ainda conforme o parecer, em ações fiscais junto à empresa foi constatado que, das 200 Comunicações de Acidente de Trabalho (CATs) emitidas nos últimos cinco anos, referentes à matriz e às filiais do Espírito Santo e Posto de Mata (sul da Bahia), apenas três casos se referem a doença ocupacional ou do trabalho. “Com base nessas informações, pode-se deduzir que as atividades da Aracruz Celulose praticamente não geram doenças ocupacionais, pois, com o número de empregados que tem nos estabelecimentos analisados (mais de 1.700), registrou em cinco anos apenas três casos de enfermidades relacionadas ao trabalho”, diz o parecer. Além disso, os argumentos apresentados pela empresa, até o momento, foram considerados “de extrema pobreza e carentes de sustentação. Os números de trabalhadores com enfermidades do trabalho apresentados pela ação fiscal da Superintendência Regional do Ministério do Trabalho e Emprego são, apenas, parte das evidências que a empresa diz não existirem”. (AM)

ENTREVISTA

PAC é desenvolvimentismo de morte para os povos indígenas Dom Erwin Kräutler, presidente do Cimi, analisa política indigenista do governo Lula e os impactos do PAC para os povos da floresta Michelle Amaral da Redação COM O TEMA “Paz e Terra para os Povos Indígenas”, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) acaba de realizar, entre os dias 27 e 30 de outubro, em Luziânia (GO) sua 18a Assembleia Geral. O modelo desenvolvimentista adotado pelo governo federal e os impactos dos grandes projetos sobre os povos indígenas foram debatidos pelos representantes indígenas e missionários. Também foram avaliadas as consequências dos projetos do Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC) em áreas indíge-

nas, com atenção às hidrelétricas do Belo Monte, no rio Xingu, e de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, além da transposição do Rio São Francisco. Em entrevista ao Brasil de Fato, Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu (PA) e presidente do Cimi, analisa a política governamental e afirma: “Esse modelo desenvolvimentista naturalmente tem um grande impacto sobre as aldeias indígenas”. Brasil de Fato – Quais são os principais projetos que impactam os povos indígenas hoje? Dom Erwin Kräutler – Muitos projetos. A maioria dos projetos elencados no PAC tem incidência sobre aldeias indígenas. Creio que nós não podemos fechar os olhos diante de tudo isso, temos que denunciar essas agressões que fatalmente repercutem por meio dos povos indígenas e não são projetos de vida para esses povos, mas de morte. Que avaliação o Cimi faz do PAC? O PAC segue o modelo desenvolvimentista que nós não

concordamos; modelo desenvolvimentista que quer aproveitar ou abrir todo o espaço para o capital, logicamente em áreas indígenas, reservas indígenas, determinadas como tais. Hoje tem todo um movimento para rever essa determinação em detrimento dos povos indígenas, exatamente para abrir essas áreas ao grande capital. Uma aldeia indígena, uma reserva indígena, naturalmente não presta para esse tipo de coisa; são áreas reservadas aos povos para viverem segundo seus ritos e seus mitos em suas terras ancestrais. E nós defendemos essas áreas e achamos que desenvolvimento que coloca a vida humana em segundo plano não é desenvolvimento. De que forma a construção das usinas hidrelétricas, como Belo Monte, no rio Xingu, e Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, afetam os povos indígenas? Exatamente no caso do rio Xingu, que eu conheço mais de perto, tem incidência sobre aldeias indígenas. Por exemplo, na grande volta do Xingu, se o

projeto for executado, esta ficará seca. Então, aquelas áreas indígenas estarão num rio que secou, e isso tem consequências drásticas para os povos indígenas, além dos ribeirinhos que moram ali. A mesma coisa no Rio Madeira, que eu não conheço tão de perto, mas também há incidências sobre áreas indígenas. No meu modo de ver, não está sendo levado a sério esse impacto que os povos indígenas sofrem. Como o senhor avalia os sete anos do governo Lula do ponto de vista da política indigenista? Em relação à política indigenista, infelizmente o governo Lula não fez grandes avanços, pelo contrário, eu acho que os povos indígenas constituem mais um entrave, um obstáculo para a visão que esse governo tem de desenvolvimento. Então, esses entraves têm que ser retirados do caminho. E, infelizmente, nos últimos dois anos, nenhuma área indígena foi registrada, não houve mais avanços em termos de demarcação de terras indígenas. A nossa Constituição de 1988 prevê a demarcação e

homologação de todas as áreas indígenas no país no prazo de cinco anos. Esse prazo há muito tempo esgotou, em 1993, e até hoje grande parte dessas áreas não foi demarcada. Pensávamos que o governo Lula fosse mais atento para os anseios dos povos indígenas, infelizmente não estamos satisfeitos com a maneira como ele age em relação à causa indígena. E a própria Funai agora praticamente liberou o caso da hidrelétrica do Xingu e opinou que não há nenhum obstáculo para a construção dessa hidrelétrica. Ela praticamente fecha os olhos diante da calamidade que esses projetos podem ser para os povos indígenas e os povos ribeirinhos. Os guarani kaiowá, xavante e a Raposa Serra do Sol seguem com impasses de terras já homologadas, mas que os indígenas não podem ocupar. O senhor poderia falar um pouco sobre essa questão? Os guarani kaiowá, talvez, são a maior calamidade que nós atualmente temos no país.

É inconcebível que um povo seja literalmente expulso e violentado em todos os sentidos, tirado de suas terras ancestrais, que sucumbe às investidas vergonhosas por parte dos grandes latifundiários e do agronegócio. É uma situação que clama ao céu, é terrível! Esse povo foi condenado a morrer. E, em pleno século 21, ficarmos diante de um fato como este é vergonhoso para o país. Eu comparo com os anos de 1960, quando o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) foi extinto exatamente por não cuidar dos povos indígenas, como era previsto. Foi simplesmente extinto. No exterior se soube de grandes calamidades em torno dos povos indígenas e então o governo o extinguiu, substituiu o SPI pela Funai. E parece que hoje estamos diante de uma calamidade semelhante, que atinge os povos em cheio, condenandoos a morrer. E isso nós denunciamos e gritamos realmente em favor desses povos. (A íntegra desta entrevista encontra-se em www.brasildefato.com.br)


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cultura Reprodução

HISTÓRIA Argentinos mobilizam doações de chaves para substituir estátua de militar por homenagem aos povos indígenas, em comemoração ao Bicentenário da independência Cristiano Navarro da Redação REUNIR CHAVES e outros objetos de bronze doados por milhares de pessoas de diferentes partes do mundo para reabrir a memória e o imaginário de um povo. É assim que o artista plástico argentino Andrés Zerneri deseja marcar, em 2010, as comemorações do Bicentenário da Independência da Argentina. Com as doações, a ideia de Zerneri é criar uma mobilização massiva e popular na substituição da estátua de uma figura que retrata a história oficial da formação do país, o General Julio Roca, por um monumento feito de bronze que resgate as raízes argentinas, homenageando os povos indígenas. Apesar de historiadores apontarem que a campanha da expansão do território Argentino, liderada pelo General Roca no século 19, dizimou cerca de 20 mil indígenas – especialmente do povo Mapuche, que resistia na região da Patagônia –, a substituição deve já encontrar resistência entre políticos, imprensa e militares conservadores. A homenagem aos povos originários será simboliza-

da na figura de uma “Mulher Originária” – como tem sido chamado o projeto – de 10 metros de altura e milhares de quilos de bronze. Todos os povos indígenas estarão representados no monumento na bandeira Wiphala (bandeira multicolor quadriculada que representa a união de todos os povos indígenas), enrolada em seus braços. A previsão de inauguração da obra é para outubro de 2010. A “Mulher Originária” só será considerada concluída pelo autor quando for colocada no lugar da estátua do general. Por isso, Zerneri considera importante o envolvimento de uma frente de luta que conte com o apoio do movimento indígena e outras organizações sociais pela substituição das estátuas, até que uma conjuntura política e jurídica seja favorável. Dentro desse mesmo processo organizativo, Zerneri ergueu a primeira estátua em bronze para Ernesto “Che” Guevara na Argentina. Das mãos de todos O recolhimento dos objetos de bronze foi iniciado há dois meses em escolas, sindicatos, bibliotecas, clubes e

fábricas. Zerneri explica que a divulgação do projeto é feita artesanalmente, por meio do boca-a-boca. “A estátua é feita de bronze, mas não pedimos recursos porque não queremos interferência financeira nem na construção, nem na divulgação. Esta é a forma mais difícil, mas mais legítima de realizar uma obra verdadeiramente participativa”, conta o artista.

“É possível reinventar a história dos monumentos impostos pelo poder, que são construídos sem nos consultar. Podemos inverter: o povo se organiza, constrói e doa o monumento ao Estado”, declara o artista plástico argentino Andrés Zerneri Porém, mesmo sem dinheiro, o apelo da obra sen-

sibilizou nomes importantes do cinema local e conta com o apoio de inúmeras personalidades do mundo artístico, como do ator Ricardo Darín e da atriz Julieta Diaz. Além da homenagem prestada aos povos indígenas, o projeto tem como objetivo a disputa do imaginário e a memória pública dos argentinos. “Há décadas fomos educados com histórias oficiais, como a de que Roca é um herói assim como San Martí. Mas essa história é fundada em um racismo, já que o próprio General chamava os indígenas de sub-humanos”, esclarece Zerneri. Para o artista plástico, a cidade de Buenos Aires tem uma particularidade que coloca mais simbolismo ao projeto, “porque se trata de uma das cidades com um dos maiores patrimônios históricos a céu aberto do mundo. E a história da Argentina se escreve nesses monumentos históricos expostos”. Os espaços públicos por onde circulam argentinos é o campo de disputa do artista. A subversão desses espaços e sua releitura da história fazem parte dos processos de sua criação participativa. “Queremos mostrar que é possível reinventar a história dos monumentos impostos pelo poder, que são construídos sem nos consultar. Podemos inverter: o povo se organiza, constrói e doa o monumento ao Estado. Não acredito que com uma escultura se possa fazer uma revolução, mas pode ser uma nota de nossa capacidade de participação e organização”.

Reprodução

Na disputa da memória, um General por uma Mulher Originária

Argentinos querem reescrever a história de seu país substituindo a estátua do General Roca, que comandou o genocídio contra indígenas na Campanha do Deserto, pela imagem de uma mulher indígena

A primeira estátua de Che No dia 14 de junho de 2008, junto com diversos movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda, Andrés Zerneri inaugurou na cidade de Rosário a primeira estátua de bronze argentina em homenagem a Ernesto “Che” Guevara. A inauguração marcou os 80 anos de nascimento do líder revolucionário. A estátua, primeira fora de Cuba em toda América e Caribe, tem quatro metros e foi construída com três mil quilos de bronze, o que equivale a cerca de 75 mil chaves. A imagem de Che remonta à famosa foto do cubano Alberto Korda, e seu olhar está direcionado a milhares de quilômetros – à outra estátua de Che Guevara, erguida na cidade de Santa Clara, Cuba. Na construção da figura de Che, o artista plástico utilizou a mesma estratégia de envolvimento, com uma campanha massiva de doação de objetos de bronze, que utiliza na confecção da imagem da “Mulher Originária”. (CN)

CRÔNICA João Zinclar

Os vândalos já estão aqui Silvia Beatriz Adoue EM 2007, TRÊS estudantes da Unesp de Araraquara (SP) foram expulsos da universidade sob acusação de vandalismo. Os bancos do campus da instituição pública, utilizados pelas empresas privadas para fazer propaganda de seus produtos, apareceram pichados com dizeres que defendiam o uso público do patrimônio público. Não longe dessa cidade, desta vez no município de Iaras, trabalhadores rurais sem-terra ousaram ocupar terras públicas apropriadas por uma grande empresa privada, a Cutrale, que controla 30% do mercado mundial de suco de laranja. Os sem-terra limparam uma parte do terreno para fazer um roçado de feijão. Também dessa vez, os que questionam o uso privado do patrimônio público foram acusados de vandalismo. Mas quem eram os vândalos? Em 2007, e a propósito da expulsão dos estudantes da Unesp, o professor João Bernardo foi atrás da origem dessa palavra. No seu artigo “Os vândalos”, ele lembrou daquele povo germânico que, quando aconteceram as grandes revoltas de escravos que trabalhavam nos latifún-

Quase todos os povos germânicos que viviam nas fronteiras da Roma imperial serviam de tropa mercenária para esmagar as revoltas antiescravistas. Os vândalos, não dios do Império Romano, se uniu aos trabalhadores em rebelião contra os grandes proprietários do império. O que era um escândalo, já que quase todos os povos germânicos que viviam nas fronteiras da Roma imperial serviam de tropa mercenária para esmagar as revoltas antiescravistas. Os vândalos, não. E, por essa ousadia, ganharam a pecha de desordeiros, recalcitrantes e irredutíveis. Hoje, vandalismo é sinônimo de ação destrutiva e irracional, de violência descontrolada. É muito curiosa a história das palavras. Elas envelhecem conservando, nas rugas que os acontecimentos deixaram marcadas na sua pele, significados ocultos, insuspeitados pelos seus portadores do presente. Os que hoje enunciam a acusação de vândalos, se valendo para isso do controle dos meios de comunicação, estão lon-

ge de pensar que se tratava de um povo valente, que não se curvava à lei dos mais poderosos e se aliava aos oprimidos e humilhados da época. Eis que a palavra, que na boca dos que a pronunciam pretende ser insulto, recupera hoje algo do seu sentido original. No dia 29 de outubro, o MST realizou um ato no assentamento que homenageia um outro vândalo – este do século 17, Zumbi dos Palmares. A área é a mais antiga conquista da reforma agrária na região de Iaras. Do alto do assentamento, dava para ver um vale que se espalha no meio das colinas suaves. Atrás e aos lados de uma faixa de um verde escuro de eucaliptos, se estende um mar de cor verde um pouco mais clara que parece não ter fim: são os pés de laranja que a Cutrale plantou em terra pública comprada de grileiros. Enquanto os olhos dos par-

Ato em solidariedade ao MST realizado em outubro, na cidade de Iaras (SP)

ticipantes se enchiam desses dois únicos tons de verde, um dos vândalos do nosso tempo explicava com uma racionalidade implacável os procedimentos do agronegócio da madeira e da laranja na região: 180 mil hectares de terra pública grilada, 11 assentamentos sufocados por falta de apoio do Incra. Bem no coração de Iaras, a Escola Popular Rosa Luxemburgo cresce em meio aos assentamentos. No início deste ano, começou a estudar nela a primeira turma de Agronomia, curso conveniado com a Unesp. Na escola, um biodigestor em construção, uma

horta em forma de mandala, na qual os futuros agrônomos aprendem a produzir uma variedade de cultivos com técnicas que dispensam agrotóxicos, imprescindíveis na produção em grande escala de um cultivo só. Na beira da estrada de saída da região, centenas de famílias acampadas acenam do lado dos barracos de lona preta. Acenam para os passantes e para o porvir. Para um dia em que possam pintar aquele vale com uma paleta multicolorida, que possam proteger essa terra do estrago do monocultivo, para que ela seja morada e fonte de alimen-

tos para suas famílias e para todos os brasileiros. Esses novos vândalos não precisam de intérpretes e nem de porta-vozes. E o povo das cidades precisa ouvir suas razões. Motivos mais do que lógicos para cometer a ousadia de se opor aos romanos de hoje. Silvia Beatriz Adoue, argentina radicada no Brasil, é mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo, doutora em literatura latinoamericana pela FFLCH-USP e professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).


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américa latina

Golpistas procuram ganhar tempo em Honduras, diz Rafael Alegría

Reprodução

ENTREVISTA Segundo membro da Resistência hondurenha e da Via Campesina Internacional, movimentos chamarão pela abstenção nas eleições de 29 de novembro caso o presidente Manuel Zelaya não seja restituído em breve Manuela Sisa de Caracas (Venezuela) A CRISE POLÍTICA em Honduras, que se arrasta há mais de quatro meses, entrou em um período decisivo. Nas mãos do Congresso Nacional está a possibilidade de referendar, ou não, o acordo de Guaymuras, que prevê a restituição do presidente deposto, Manuel Zelaya, à presidência do país. Antes de votar o acordo, discutido por uma comissão mediada pelo representante do departamento de Estado, Thomas Shannon, os congressistas decidiram “ouvir” o parecer da Corte Suprema de Justiça antes de votar o acordo no plenário. A decisão da Corte – que emitiu um mandado de prisão à Zelaya por suposta violação à Constituição – não é vinculante. Em entrevista ao Brasil de Fato, Rafael Alegría, um dos dirigentes da Resistência contra o Golpe de Estado e membro da Via Campesina Internacional, denuncia que a estratégia “é dilatar o processo” para atrasar o retorno do presidente deposto. Refugiado há mais de um mês na embaixada do Brasil em Tegucigalpa, Zelaya advertiu que não há acordo para a formação de um governo de unidade nacional se a sua restituição não for garantida. Entre os pontos do pacto acordado entre os membros do governo eleito e o governo golpista, decidiu-se conformar uma comissão de verificação, composta pelo ex-presidente chileno Ricardo Lagos e pela ministra do trabalho do governo de Barack Obama, Silvia Solis. Do lado hondurenho, um representante do governo de fato e outro de Zelaya devem acompanhar a efetivação do acordo.

Governo de Roberto Micheletti adota estratégia para retardar a volta do presidente Manuel Zelaya (foto) ao poder: objetivo é permitir seu retorno apenas uma semana antes das eleições

Já houve um acordo. Não acredito que o Congresso possa rejeitá-lo. No entanto, as pressões são fortes A última queda de braços, porém, se dará no Congresso Nacional, onde os setores golpistas são majoritários. Especula-se, no entanto, que o representante do Departamento de Estado, Thomas Shannon, teria pactado um acordo com a bancada do partido Liberal para que a restituição de Zelaya fosse aprovada. Para os EUA é conveniente que o presidente hondurenho presida as eleições (marcadas para 29 de novembro) para legitimá-las, ainda que seu retorno seja apenas simbólico, já que as condicionantes do acordo proíbem que o mandatário promova a iniciativa de uma Assembleia Nacional Constituinte no que lhe resta de mandato, até 27 de janeiro de 2010. Alegría – que entende que, com ou sem Zelaya, os movimentos sociais hondurenhos lutarão por uma Assembleia Constituinte – é pessimista ao afirmar que dificilmente NewsHour/CC

Rafael Alegría, dirigente da Resistência contra o Golpe de Estado

Zelaya será restituído na primeira semana de novembro, como era previsto. Para entender os detalhes do acordo e a posição da Frente de Resistência contra o Golpe diante da crise, leia a seguir os principais trechos da entrevista com Alegría. Brasil de Fato – O Congresso Nacional decidiu, no dia 3, pedir opinião à Corte sobre a possibilidade de restituição do presidente Manuel Zelaya. O que pretendem os congressistas com essa medida?

Rafael Alegría – A intenção é dilatar o assunto, como tem sido a prática deste governo de fato. Não colocaram prazo à Corte e eles não têm pressa nenhuma. Nada nos faz pensar que nesta semana tenhamos uma resolução sobre isso. A situação se complica. Qual a avaliação da Frente de Resistência contra o Golpe em relação ao acordo firmado entre as comissões de Zelaya e Micheletti e que será votado pelo Congresso Nacional?

Esse acordo está baseado no pacto de San José. Foram negociados vários pontos, entre eles o que determina a restituição do presidente Zelaya. Sob pressão muito forte do Departamento de Estado dos Estados Unidos e da OEA [Organização de Estados Americanos], foi firmado o ponto que contempla que há que retroceder o poder Executivo instituído antes do dia 28 de junho [antes do golpe]. Isso pode ser feito pelo Congresso Nacional derrogando o decreto que destituiu Zelaya e colocou Roberto Micheletti [na presidência]. O problema é que o Congresso, em aliança com os grupos golpistas, pretende dilatar ainda mais a restituição do presidente Zelaya e, na medida em que se aproxima o processo eleitoral, a situação fica ainda mais tensa.

Há possibilidade de o Congresso rejeitar a proposta?

Acredito que isso não é fácil para eles. Já houve um acordo. Não acredito que o Congresso possa rejeitá-lo. No entanto, as pressões são fortes. Os grupos de poder [do governo de fato] continuam atuando, mas ao mesmo tempo consideramos que o Congresso Nacional poderia ser mais vulnerável diante da Resistência, que está pressionando por uma saída política.

Quem são os grupos de poder que continuam travando a restituição do presidente eleito?

Os mesmos grupos que deram o golpe são os que hoje continuam barrando o acordo. Os dez grupos empresariais, as igrejas Católica e Evangélica, Micheletti e membros do partido Liberal. Mas acredito que, para o Congresso, será difícil dizer à comunidade internacional que não estão de acordo com o pacto acordado. Há uma posição forte da Resistência nas ruas, que nos mobilizamos todos os dias, e o país enfrenta uma enorme crise, tanto política como econômica. Os congressistas devem estar conscientes de que o país vive uma encruzilhada que necessita de uma solução pacífica urgente. Agora a bola está no Congresso Nacional.

Se não há restituição do presidente Zelaya, nós, da Resistência, consideramos que não deve haver processo eleitoral Se Zelaya não for restituído, que medidas a Resistência pretende tomar?

Se não há restituição do presidente Zelaya, nós, da Resistência, consideramos que não deve haver processo eleitoral. Não reconhece-

remos as eleições e chamaremos a população a não participar, a não legitimar o golpe. Isso gerará uma crise institucional no país. Por outro lado, a comunidade internacional e a OEA vêm dizendo que o retorno à ajuda financeira ao país está condicionado à restituição do presidente Zelaya. Se isso não ocorrer, a crise se aprofundará. Se optam pela abstenção nas eleições de 29 de novembro, quais partidos e candidatos podem renunciar ao pleito?

Se não há restituição, Carlos H. Reyes (candidato presidencial independente), César Ham (candidato presidencial da União Democrática), os deputados do bloco “Liberais em Resistência” e Unidade Nacional também se retirariam. Viria uma crise eleitoral de enormes proporções. Isso está claro.

A presença dos Estados Unidos como mediador final da crise era parte da estratégia dos setores golpistas, que arrastaram durante semanas as negociações?

Sim, por um lado. Mas também os EUA reconheceram publicamente que estavam pressionados por governos da América Latina para que tomassem uma postura mais forte. Os EUA também se sentiram pressionados. No entanto, não confiamos 100% na boa-fé e boa vontade do governo estadunidense. Por isso, estamos pressionando tanto o setor golpista como a comunidade internacional. Essa semana será decisiva. Se não se restitui o presidente Zelaya esta semana [até o dia 8], à Resistência não restará outra coisa senão chamar à abstenção no processo eleitoral, denunciar que o golpe de Estado se mantém.

Independentemente da restituição de Zelaya ou não, a menos de um mês das eleições, a estratégia golpista acabou funcionando.

Eles apostaram no tempo e alguns de nós consideramos que eles apostam que a restituição de Zelaya ocorrerá uma semana antes das elei-

ções. O tempo os favorece. Por outro lado, a Resistência continua viva, militante, com muita esperança, e nos manteremos em vigília dia e noite. Essa semana é muito importante. Já é um avanço que um acordo tenha sido assinado. A Resistência continua mobilizando-se, apesar das ameaças de repressão. Há alguns dias nos impuseram toque de recolher, proibiram manifestações públicas, fecharam meios de comunicação, reprimiram as manifestações, mas ainda assim a Resistência saiu. Não deixamos de nos manifestar nem um dia sequer. Quando suspenderam o decreto de estado de sítio, a repressão continuou. E agora nos concentraremos em frente ao Congresso, dia, tarde e noite, para pressionar a aprovação do acordo.

Iniciamos um processo de construção de um movimento poderoso e vigoroso, de grandes transformações sociais e políticas em Honduras. Nisto já não há retorno. O povo despertou Apesar das dificuldades, qual o balanço dos movimentos sociais depois de quatro meses de mobilização contra o golpe?

O saldo de tudo isso é que já não há retorno na mobilização popular. A demanda por uma Assembleia Nacional Constituinte continua, a articulação dos movimentos sociais em todo o país continua. Iniciamos um processo de construção de um movimento poderoso e vigoroso, de grandes transformações sociais e políticas em Honduras. Nisto já não há retorno. O povo despertou.


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Saúde para dar, não para vender Vinicius Mansur

SOLIDARIEDADE Mesmo diante do pesado embargo econômico e da oposição boliviana, Cuba dá exemplo com cooperação médica no país governado por Evo Morales Vinicius Mansur de El Alto e La Paz (Bolívia) MAIS DE 30 milhões de atendimentos médicos. Mais de 25 mil vidas salvas. Mais de 15 mil partos realizados. Mais de 3 milhões de exames laboratoriais. Mais de 45 mil operações cirúrgicas, sem contar as quase 450 mil operações oftalmológicas, feitas através da chamada Operação Milagre. Este é o saldo, até setembro deste ano, da atuação da Brigada Médica Cubana na Bolívia. Os números, divulgados pela Embaixada de Cuba em terras bolivianas, são resultado do trabalho médico começado em fevereiro de 2006, mas frutos da boa relação política mantida pelo presidente da Bolívia, Evo Morales, e Fidel Castro, comandante da Revolução Cubana e ex-presidente da ilha caribenha. Em dezembro de 2005, antes mesmo de Morales tomar posse, os presidentes dos dois países selaram um amplo acordo de cooperação. Diante de uma inundação provocada por fortes chuvas nos primeiros meses de 2006, a cooperação médica teve seu início antecipado, com os primeiros profissionais cubanos chegando à Bolívia em fevereiro. Infraestrutura avançada

De lá para cá, essa brigada cresceu, chegando hoje a mais de 1,6 mil profissionais da saúde, sendo aproximadamente 1,1 mil médicos. De acordo com o embaixador cubano na Bolívia, Rafael Dausá, 43 hospitais de segundo nível já existentes – aqueles considerados de médio porte pelos órgãos de saúde bolivianos, localizados, sobretudo, em zonas rurais – foram completamente equipados por Cuba e contam, por exemplo, com salas de cirurgia e de terapia intensiva completas, equipamentos de raio-x móveis e fixos, serviços de endoscopia e ultrassom. Toda essa infraestrutura e recursos humanos são bancados

por Cuba, em uma prova de solidariedade que surpreende os próprios bolivianos. A dona de casa Sandra González, de 39 anos, por exemplo, se diz encantada com o atendimento recebido: “Eu até agradeço o seu jornal por ser nosso porta-voz e nos permitir agradecer a estes anjos que caíram do céu. Eles nos tratam com tanto carinho que parecem ser mais bolivianos do que nós”. González conta que conheceu os médicos cubanos em 2007, quando buscava uma alternativa para operar a vesícula, procedimento que, na medicina privada, lhe custaria 1,3 mil pesos bolivianos (cerca de R$ 350), fora remédios e consultas pós-operatórias. Chegando ao Hospital Geral Chacaltaya, na cidade de El Alto, a dona de casa descobriu que não precisava operar e foi curada por um tratamento que durou um ano e que não lhe custou um centavo. “Quando cheguei aqui, desconfiei da qualidade, porque, quando é de graça, a gente desconfia. Mas eu não paguei uma consulta, nem os remédios e hoje estou bem melhor. Já trouxe minha filha e minha cunhada para serem atendidas aqui e já comecei outro tratamento porque quero ser mãe outra vez”, revelou. Barreiras da oposição

De acordo com o coordenador departamental (estadual) da Brigada Médica Cubana de La Paz, Eudisel Spinoza, sua equipe encontrou muitas dificuldades para atuar na Bolívia, como a barreira linguística nos locais que falavam aimara, quéchua e outras línguas originárias, e as barreiras geográficas e climáticas. “Em um Estado plurinacional, as dificuldades também são plurinacionais. Em nosso país é verão quase todo o ano, aqui as temperaturas chegam a 40 graus nas terras baixas e no altiplano estão abaixo de zero”, afirma. Porém, o coor-

Hospital Chacaltaya, mantido pelos cubanos na cidade de El Alto

Em dezembro de 2005, antes mesmo de Morales tomar posse, os presidentes de Bolívia e Cuba selaram um amplo acordo de cooperação denador destaca que o caso de Sandra González é emblemático para exemplificar a barreira mais cruel que encontraram: a cultura da medicina privada. Segundo Spinoza, o atendimento médico e a distribuição de remédios de forma gratuita chocava, e ainda choca, parte da população, “acostumada a não ver com bons olhos o que lhes chega de graça e desacostumada a ver a saúde como um direito”. As dificuldades encontradas pelos médicos cubanos foram agravadas porque essa cultura predominante foi utilizada pela oposição a Evo Morales e por setores conservadores da Bolívia. Recorrendo à lógica do “o que é bom não chega de graça”, os opositores ao governo criticaram a presença dos médicos cubanos, afirmando que, na verdade, isso signifi-

cava a infiltração de “enviados de Fidel Castro” para “tornar a Bolívia comunista”. A fundadora do Movimento de Solidariedade com Cuba na Bolívia, Tereza Quiroga, recorda que esse discurso foi incorporado pela classe médica boliviana e reformulado na forma de corporativismo pelo Colégio Médico do país, que assumiu, então, o posto de principal opositor à atuação cubana. “Eles foram à televisão e às rádios diariamente para denunciar que os cubanos não eram médicos, mas estudantes, que vieram fazer política e que tiravam trabalho dos bolivianos. Diziam que o Evo deveria pagar aos bolivianos desempregados, mas na verdade o dinheiro é todo de Cuba”, recorda. A violência conservadora foi forte a ponto de artefatos explosivos serem detonados

Prioridade é a medicina primária Segundo coordenador de uma das brigadas cubanas na Bolívia, índice de mortalidade infantil em áreas de cooperação caiu de 60 para 34 mortes para cada mil nascimentos de El Alto e La Paz (Bolívia) A atuação dos médicos cubanos em território boliviano é regida de acordo com as prioridades eleitas pelo governo do presidente Evo Morales. Segundo o embaixador de Cuba na Bolívia, Rafael Dausá, a cooperação médica está nos locais onde o Ministério de Saúde entende como mais necessitados ou onde eles são requisitados por governos departamentais, prefeituras e organizações da sociedade civil. O coordenador da Brigada Médica Cubana do departamento de La Paz, Eudisel Spinoza, afirma que os critérios fundamentais que norteiam os médicos cubanos são fazer chegar o atendimento ao maior número de bolivianos possível e estar em zonas onde há menos possibilidade de acesso à saúde. “Atualmente, estamos em 256 dos 327 municípios bolivianos, em 43 hospitais, cerca de 700 consultórios, atendendo a 54% da população da Bolívia”, descreve. Segundo Spinoza, apesar de modernas instalações que permitem a realização das mais delicadas cirurgias, a prioridade está no atendi-

Os 15 centros oftalmológicos espalhados pelos nove departamentos (estados) da Bolívia rendem destaque à Operação Milagre, que dá atenção integral à recuperação ou melhoramento da vista dos pacientes mento primário de saúde e medicina geral, sobretudo, no combate à mortalidade infantil. De acordo com o coordenador, nesse quesito, a Bolívia possui um dos piores índices do continente. No ano passado, ele era de 60 crianças mortas em seu primeiro ano de vida para cada mil nascidas no mesmo período. Spinoza afirma que esse índice caiu para 34 nas áreas de atuação cubana. Operação Milagre Os 15 centros oftalmológicos espalhados pelos nove departamentos da Bolívia rendem destaque à Operação Milagre, que dá atenção integral à recuperação ou melhoramento da vista dos pacientes. Segundo Spinoza, dos mais de 450 mil beneficiados pe-

la operação, cerca de 20 mil eram brasileiros, outros 20 mil, argentinos, e quase 17 mil, peruanos, o que simboliza bem a proposta da cooperação cubana.

“A Bolívia não só acolheu a Operação Milagre, como foi capaz de prestar ajuda a outros países. Enquanto governos mandam exércitos destruírem povos, Cuba, que não tem muitas sobras, divide o que tem. Nossa mensagem é que, com pouca coisa, mas unidos e organizados, se pode fazer muito pelo povo. Isto é o que nosso comandante sempre nos ensinou e o que queremos espalhar pelo mundo. Quando sairmos daqui, não levaremos nenhum mineral, só o agradecimento e o sorriso do povo boliviano”, conclui. (VM) Embaixada de Cuba na Bolívia

Cirurgia oftalmológica da Operação Milagre

perto dos locais de trabalho e moradia dos médicos cubanos, além de ocorrerem agressões físicas registradas no departamento de Santa Cruz, por parte da União Juvenil Crucenhista, entidade aliada à oposição regional que costuma realizar ações violentas contra o governo Evo. A resposta

Quiroga, que também é médica, liderou um movimento em defesa dos cubanos e, por isso, esteve à beira de ser expulsa de sua entidade representativa. “Durante uma semana buscamos quem já havia sido operado da vista, e já eram centenas, nos locais onde era feito o controle pósoperatório. Dizíamos que médicos bolivianos egoístas queriam expulsar os cubanos porque tiveram seus bolsos afetados e que não podíamos ficar calados. Assim, organizamos uma marcha com mais de 500 pessoas, que passou pelo Colégio Médico e pelo Ministério da Saúde”, lembra. Segundo ela, com a polarização do conflito, a população começou a comparar os serviços médicos, fazendo com que o Colégio Médico, claramente pior

avaliado, desistisse de fomentar a polêmica. O embaixador cubano Rafael Dausá também destacou o trabalho cubano como fator fundamental para neutralizar as críticas: “Nos vinculamos aos programas de saúde mais importantes do país, como o programa de Atendimento às Gestantes, o programa Desnutrição Zero, o combate à dengue e ao vírus AH1N1. E os bolivianos entenderam que nosso interesse era levar saúde àqueles esquecidos durante séculos, não ingerir nos assuntos internos da Bolívia”. Spinoza, coordenador da brigada em La Paz, também ressalta a importância da ação médica cubana, que vai diretamente à casa dos bolivianos: “É um tipo de ação preventiva, que é a nossa prioridade, porque se gasta mais e se expõe mais a vida do paciente quando se espera que ele adoeça. Essa ação foi difícil, porque a cultura aqui, às vezes, não permite que um estranho entre em sua casa, mas, dividindo os problemas com a população, ganhamos terreno e pouco a pouco eles entenderam que têm o direito de ser atendidos”.

Solidariedade cubana se estende a outras áreas de El Alto e La Paz (Bolívia) Além de todo aporte dado à saúde pública boliviana, a Revolução Cubana também transforma em cooperação internacional outras de suas conquistas. Graças à solidariedade cubana, a Bolívia pôde se declarar, em dezembro do ano passado, território livre do analfabetismo. De acordo com o embaixador de Cuba na Bolívia, Rafael Dausá, o país caribenho levou à Bolívia 30 mil televisores, 30 mil videocassetes, milhares de cartilhas de alfabetização, além de 144 especialistas cubanos que, junto a outros 47 venezuelanos, organizaram o trabalho de 60 mil bolivianos para a aplicação do método “Yo sí puedo”. Tendo como política não só respeitar, mas fortalecer as tradições culturais da população local, o processo de alfabetização na Bolívia também foi aplicado nos idiomas indígenas aimara e quéchua, além do castelhano convencional. Ao final, cerca de 820 mil pessoas foram alfabetizadas. “Em 22 de março deste ano começaremos, numa comunidade indígena de Oruro, o programa ‘Yo

sí puedo seguir’, ou seja, a pós-alfabetização, porque um alfabetizado que não dá continuidade aos seus estudos pode regredir, e não queremos isso”, informa o embaixador. Cooperação ampla

Ainda na área da educação, mais de 5,4 mil bolivianos estudam em universidades cubanas. A ilha ainda oferece cooperação técnica, na produção de açúcar e cítricos, e esportiva. Desde o segundo semestre deste ano, treinadores cubanos estão trabalhando na preparação de equipes nacionais bolivianas. Segundo Dausá, Cuba estabelece relações de cooperação internacional com mais de 100 países: “Em termos de cooperação médica, estamos em 75 países, de forma solidária, desinteressada. Não buscamos lucrar, mas ajudar os países que não tiveram a oportunidade de desenvolver essas esferas, como tivemos após a Revolução Cubana. Nossa cooperação está distribuída basicamente nos países do Terceiro Mundo e se consolida apesar do bloqueio econômico dos EUA, que representa um alto custo político e econômico para o nosso país”. (VM)


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américa latina

Bases estadunidenses acirrarão tensões entre Colômbia e Venezuela Reprodução

MILITARIZAÇÃO Acordo entre país governado por Álvaro Uribe e Estados Unidos é oficializado; conflitos devem aumentar no continente da Redação Agora é oficial. Colômbia e Estados Unidos assinaram, no dia 30 de outubro, o polêmico acordo militar que permite a presença de pelo menos 800 militares e 600 funcionários civis estadunidenses em território colombiano, distribuídos em sete bases militares. O anúncio do acordo tinha sido feito em agosto deste ano, mas só agora foi formalizado. O projeto sequer passará pelo Congresso colombiano, mas terá que ser aprovado pelos parlamentares dos Estados Unidos. O conteúdo integral do acordo – que tem duração de dez anos, renováveis – ainda não foi divulgado pelo governo colombiano. Mas sabe-se que, à revelia do que afirmam os dois governos, a presença militar dos Estados Unidos deve aumentar. Além disso, também devem centrar esforços em seguir de perto os governos progressistas da região, sobretudo o de Hugo Chávez, na Venezuela. De acordo com o embaixador dos Estados Unidos na Colômbia, William Brownfield, hoje há 250 militares estadunidenses no país latino-americano, mais 400 funcionários civis. Seu país também já tinha presença em seis das sete bases, alega, amenizando a investida. A base aérea de Palanquero (centro), a única ainda sem a presença dos EUA, receberá, sozinha, 46 milhões de dólares para sua “readequação”. Além disso, o acordo engloba o acesso a mais duas bases aéreas – Apiay (sul) e Malambo (Atlântico norte) –, duas bases navais – Cartagena (norte) e Bahía Málaga (pacífico oeste) – e duas instalações do Exército – Larandia (sul) e Toleimada (centro). Motivos

O grande argumento usado pelos dois países é o combate ao narcotráfico. Mas, segundo alguns analistas, na prática, a presença militar dos EUA no país, que se intensificou há dez anos, com o início do Plano Colômbia, está relacionada com o combate à guerrilha rural no país e, principalmente, ao controle de países vizinhos – Venezuela e Equador –, com os quais o governo colombiano vive em clima de tensão, e também de outros países com governos progressistas – como Bolívia. Um documento do próprio Pentágono, direcionado ao Congresso dos EUA, conforme divulgou reportagem do jornal Folha de S. Paulo, explicitou que o acor-

Hugo Chávez e Álvaro Uribe: acordo entre EUA e Colômbia visa frear avanços progressistas na América Latina

Políticos colombianos, bem como vários partidos locais, têm manifestado que o pacto vulnera a soberania nacional e converte a Colômbia em um país hostil para os vizinhos da área do com Álvaro Uribe é uma oportunidade para aumentar a presença a custos mínimos em uma área constantemente agitada por governos anti-imperialistas. Políticos colombianos como os senadores Piedad Córdoba e Gustavo Petro, entre outros, bem como vários partidos locais, têm manifestado que o pacto vulnera a soberania nacional e converte a Colômbia de fato em um país hostil para os vizinhos da área. Advertem também que o uso das bases por soldados estadunidenses poderá isolar a Colômbia da América Latina, que nos últimos anos tem experimentado a eleição de governos progressistas. O Conselho de Estado da Colômbia, órgão máximo de controle do Executivo, recomendou que o Congresso estude o projeto, o que foi negado pelo presidente. O Conselho também ressaltou que o país tem um papel de cooperação, ficando subordinado às diretrizes do Departamento de Estado estadunidense. Tensões

Dias depois da oficialização do acordo, Colômbia e Venezuela já protagonizaram mais dois episódios de tensão. Parte da fronteira entre os países foi fechada após o assassinato de dois soldados venezuelanos. Há uma semana, oito corpos foram achados no lado venezuelano. O governo afirmou que eram paramilitares colombianos em treinamento na Venezuela. The White House

Uribe e Obama: subordinação às diretrizes estadunidenses

Dias antes, em 28 de outubro, a Venezuela havia capturado dois agentes secretos do Departamento Administrativo de Segurança (DAS), agência de inteligência da

Colômbia, em seu território. O ministro do Interior e Justiça venezuelano, Tareck El Aissami, afirmou que, com os prisioneiros, foram encontrados documentos sobre os planos de espionagem específicos “para obter informação estratégica e desestabilizar o vizinho”. O projeto Falcão, como é chamado, teria dentre seus objetivos compilar informação militar, mapear os movimentos do chefe de Estado Hugo Chávez e outros dirigentes, bem como subornar

funcionários públicos e recrutar figuras da oposição. El Aissami também apontou que quem dá apoio à Colômbia é a Agência Central de Inteligência estadunidense (CIA), o que justificaria a preocupação da Venezuela com a instalação das novas bases. O presidente Hugo Chávez declarou que o acordo militar entre EUA e Colômbia tem como objetivo frear os avanços obtidos nos últimos anos pelos governos progressistas da América Latina.

O sociólogo colombiano Alfredo Molano acredita que hoje há um clima de Guerra Fria na região. “Eu acho que a atitude colombiana frente aos vizinhos, Venezuela e Equador, é perigosa, porque põe em apuros toda a região”. Ele recordou que, nos últimos 25 anos, calcula-se que existam 24.600 desaparecidos na Colômbia, o que demonstra qual tem sido os frutos da aliança entre governos colombianos e os Estados Unidos. (Com informações de Prensa Latina, Página 12 e Telesur)

ANÁLISE

A corrida armamentista terrorista do governo dos Estados Unidos Muitos analistas assinalam que é precisamente a economia de guerra estadunidense que alimenta a demanda de uma economia capitalista insaciável Marco A. Gandásegui O Senado dos Estados Unidos aprovou, em outubro de 2009, o orçamento militar mais elevado para um país na história humana: um total de 626 bilhões de dólares. Essa soma não inclui outros 400 bilhões que os Estados Unidos estão investindo em suas guerras no Iraque e no Afeganistão. A soma representa quase a metade do orçamento total do país. Essa tendência “suicida” não é inovadora. Muitos analistas assinalam que é precisamente a economia de guerra estadunidense que alimenta a demanda de uma economia capitalista insaciável. Dizem que sem guerra não há crescimento. Agora o lema mudou: sem guerra não há recuperação econômica. Os ideólogos de Washington insistem que o armamentismo, as guerras e a destruição massiva são muito saudáveis para um paciente enfermo como o capitalismo estadunidense. (Quando não havia crise, diziam que o armamentismo era o remédio necessário para que ele não adoecesse). A Grã-Bretanha é o país que segue em importância, em termos de gastos militares. Parece inacreditável, mas é verdade: a Grã-Bretanha tem um orçamento bé-

lico de 50 bilhões de dólares. Aproximadamente 7% do dos Estados Unidos. Seguem, em terceiro e quarto lugares, França e Alemanha, respectivamente, com orçamentos de 40 bilhões cada um. E em quinto lugar está a Rússia (39 bilhões), enquanto a China se encontra em sexto lugar, com 35 bilhões. Os cinco países que seguem os Estados Unidos em importância têm, combinados, um orçamento militar de 210 bilhões.

Os ideólogos de Washington insistem que o armamentismo, as guerras e a destruição massiva são muito saudáveis para um paciente enfermo como o capitalismo estadunidense

Gastos na América

No total, os gastos militares no continente latino-

americano somam 34 bilhões de dólares. Quase alcança a China, mas representa apenas 5,5% do orçamento militar dos Estados Unidos. Chile, Colômbia e Brasil se converteram nos países com mais gastos militares da região durante 2008. O Chile lidera o gasto militar por habitante, com 290 dólares per capita em 2008, enquanto que a Colômbia gastou 115; o Equador, 89; e o Brasil, 80. Em termos absolutos, o país que mais gasta é o Brasil, com 45% do total latino-americano, seguido por Colômbia e Chile. Segundo um estudo realizado pelo SIPRI (Suécia) e pela FLACSO (Chile), o Brasil gasta quase 15 bilhões de dólares, seguido por Colômbia, que desembolsa 5,5 bilhões de dólares. O Chile quase chega a 5 bilhões de dólares, e a Venezuela alcança os 2,2 bilhões em gastos militares. Argentina e Peru aparecem em seguida, com 1,7 e 1,1 bilhões. Esses seis países são responsáveis por 89% do orçamento militar da América Latina. Sobre o orçamento colombiano, não se pode calcular com muita certeza desde que os Estados Unidos decidiram implementar o Plano Colômbia, com uma intervenção militar direta nesse país. Os países da

América do Sul (o Conselho Sul-americano de Defesa da Unasul) pediram a Bogotá que apresentasse um comunicado com os detalhes concernentes ao crescimento dos gastos militares. O governo colombiano se negou a cumprir com suas obrigações, jogando a culpa ao secretismo de Washington. Provedor de armas

Os Estados Unidos são, na atualidade, o provedor mais importante de equipamentos militares (que inclui treinamento de contingente e outros “serviços”) aos países latino-americanos. Além do Plano Colômbia, o presidente estadunidense, Barack Obama, recentemente incrementou o orçamento do Plano Mérida, que inclui México, América Central e Panamá. Também mantém uma relação militar privilegiada com Peru, Chile e Argentina. Desde o final do século 19, os Estados Unidos têm sido o principal mercado de armas para a região, muitas vezes promovendo corridas armamentistas entre os países para lhes vender mais e dominá-los. (Alai - http://alainet.org) Marco A. Gandásegui é professor da Universidade de Panamá e pesquisador associado do CELA. Tradução: Eduardo Sales de Lima


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internacional

Um muro que caiu sobre a esquerda HISTÓRIA Há 20 anos, queda do Muro de Berlim desencadeou a maior crise ideológica do campo socialista Renato Godoy de Toledo da Redação NO DIA 9 DE novembro de 1989, caía o Muro de Berlim. Com o acontecimento, o mundo vê o começo do fim do bloco soviético, a vitória do capitalismo encampado pelos EUA e a maior crise ideológica da esquerda socialista mundial. O muro que separava Berlim em duas partes – a oriental, da República Democrática da Alemanha (RDA), e a ocidental, da República Federal da Alemanha (RFA) – fora construído na madrugada do dia 13 de agosto de 1961. A separação física consolidou a condição de Berlim ocidental como um enclave capitalista dentro do território socialista. Tal enclave adveio da divisão feita pelos países aliados na 2ª Guerra Mundial, após a derrota do nazifascismo. A União Soviética (URSS) ficou com o leste da Alemanha, enquanto os aliados capitalistas, Estados Unidos, França e Reino Unido, partilhavam o oeste – porção historicamente mais desenvolvida e industrializada do país. A capital Berlim, no entanto, também foi dividida entre as quatro nações. A sede do governo da RFA ficou em Bohn, a da RDA, em Berlim oriental. A solução drástica de levantar um muro para isolar a parte capitalista de Berlim acabou sobrepondo o fato de as primeiras medidas “separatistas” terem partido do lado ocidental, que proclamou a RFA em 1949, impedindo qualquer esforço de reunificação. Ainda em 1949, a RFA filia-se à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), organismo internacional militar das potências capitalistas que persiste até hoje, mesmo com o fim da Guerra Fria.

“Quem julga os processos da luta de classes pelos seus resultados confunde o que realmente aconteceu. As massas não saíram às ruas pedindo a volta do monopólio”, analisa Valério Arcary Razões econômicas As diferenças econômicas entre Berlim oriental e ocidental eram evidentes, com ampla vantagem para o lado capitalista. A RFA gozava de maior poder econômico por estar do lado mais desenvolvido do país e por contar com aliados que saíram menos devastados da guerra do que a URSS. Apesar de terem sido os principais protagonistas na derrota do nazifascismo, os soviéticos perderam cerca de 50 milhões de habitantes e tiveram sua infraestrutura debilitada pela longa guerra. Assim, Moscou tinha pouca capacidade de investimento na reconstrução da Alemanha Oriental, enquanto os EUA, que não tiveram qualquer resvalo em seu território, puderam capitanear recursos para reconstruir o lado capitalista

europeu, sobretudo a maior vitrine da Guerra Fria, a Alemanha Ocidental. O bunker capitalista em pleno território socialista também era usado como centro de espionagem e de provações ao lado inimigo. Motivado pelas disparidades econômicas e políticas, o governo soviético ergueu o muro repentinamente, dando apenas algumas horas para os cidadãos de Berlim ocidental escolherem de qual lado queriam ficar. Para o historiador Augusto Buonicore, membro do Comitê Central do PC do B, a construção do muro teve eficácia “duvidosa” e serviu para inflar a propaganda anticomunista no ocidente. Já Valério Arcary, historiador e dirigente do PSTU, afirma que a construção do muro foi uma autodefesa econômica da RDA e da burocracia que a dirigia. “A Alemanha ocidental estava tendo um boom econômico do pós-guerra com financiamento dos EUA. Por outro lado, o regime da RDA já era, a partir de 1953, uma ditadura monolítica, e o muro foi uma forma da burocracia se proteger do crescimento do padrão de vida no lado ocidental”, diz. Diferentes teses O Muro de Berlim veio abaixo após diversas manifestações de cidadãos da Alemanha oriental em prol de liberdades democráticas e de uma equiparação econômica ao ocidente. A pressão começou a surtir efeito no governo da RDA. Seu líder máximo, Erich Honecker, viu-se obrigado a renunciar aos cargos que ocupava no governo central no Partido Socialista Unificado da Alemanha, que dirigia o país. Dias depois, o muro caiu. Mais tarde, Honecker foi expulso do partido e condenado pela Justiça por ordenar que soldados da RDA atirassem contra quem tentasse ultrapassar os limites estabelecidos pelo muro. Tais manifestações e a queda do Muro foram analisados de diversas formas pela esquerda mundial. Para as correntes mais alinhadas a Moscou, tratava-se de um movimento reacionário, pró-EUA, que visava restaurar o capitalismo. Já algumas correntes antistalinistas e trotskistas apontavam o movimento como um brado dos trabalhadores contra a burocracia e com potencial para conduzir a RDA a um rumo realmente socialista. Para Valério Arcary, o fato de parte da esquerda ter se entusiasmado com a vitória dos alemães do oriente sobre a burocracia da RDA não significa que esses grupos tenham aplaudido a restauração capitalista. “Quem julga os processos da luta de classes pelos seus resultados confunde o que realmente aconteceu. As massas não saíram às ruas pedindo a volta do monopólio. Elas pediam melhorias no padrão de vida. O processo teve uma derrota histórica – a instauração do capitalismo –, mas ela não é resultado da ação das massas. É um resultado da longa decadência das economias póscapitalistas [da URSS e do

Leste Europeu]. A alternativa histórica de uma nova revolução socialista foi derrotada. De fato, houve uma revolução democrática, mas a restauração capitalista veio como uma contrarrevolução”, avalia.

A esquerda mundial ficou irreconhecível, abateu-se em uma confusão ideológica. A crise atingiu inclusive tendências antistalinistas. O socialismo deixou de ser referência mundialmente Imaginário socialista Para o dirigente do PSTU, o processo poderia ter tido desfecho diferente se fosse desencadeado na década de 1970, por exemplo. “Diversos acontecimentos mostravam que o socialismo ainda estava presente no imaginário dos trabalhadores do Leste Europeu. Em muitas greves contra a burocracia, os trabalhadores cantavam A Internacional, o socialismo era majoritário entre os trabalhadores. Depois, as ideias socialistas perderam espaço entre os trabalhadores da região”, lembra. Entre esses acontecimentos, Arcary cita a Primavera de Praga, em 1968, quando trabalhadores e estudantes que apoiavam as reformas democráticas do PC Tcheco foram reprimidos por tropas soviéticas. Augusto Buonicore critica a visão de que no fim dos anos 1990 havia um movimento revolucionário antiburocrático em curso. “Várias correntes de esquerda comemoraram o fim dos regimes ditos socialistas na URSS e no Leste Europeu. Algumas foram ainda mais longe e defenderam a derrubada de Fidel Castro e a realização de uma ‘revolução política e antiburocrática’ em Cuba. Ingenuamente, achavam que era isso que estava ocorrendo no Leste Europeu. Não conseguiam ver que o que ocorria ali era uma contrarrevolução, sob uma roupagem democrática e libertária. Nesses países, restabeleceu-se o capitalismo na sua forma mais degenerada. Houve um retrocesso em toda linha – quer no campo social, quer no político”, rebate. Para ele, um exemplo desse retrocesso é o crescimento de pequenas elites de magnatas nos países do Leste Europeu e a miséria de parte de suas populações. Natureza de Estado A avaliação sobre o processo de derrubada do muro é influenciada sobre o que cada setor da esquerda pensava sobre o Bloco Soviético. Para as agremiações ligadas à 4ª Internacional – fundada por Trotsky com base na oposição aos rumos da URSS

Alemães se reúnem em Berlim, em novembro de 1989, para acompanhar a queda do muro que dividia a cidade

–, por exemplo, tais estados eram considerados degenerados e nem de socialistas poderiam ser chamados, já que a burocracia consolidou-se como uma nova classe proprietária. Arcary considera-os como “pós-capitalistas”. “Existiam duas grandes interpretações: uma teoria mais influente, liberal, e outra de uma tradição marxista. Ambas concordavam em dizer que aqueles estados eram socialistas. Somente a 4ª internacional afirmava que aqueles eram estados pós-capitalistas, com algumas medidas de transição, um híbrido histórico. Não existem estados puros, são sempre formações complexas. Ali combinavam-se fatores capitalistas e pós-capitalistas”, afirma. Para Augusto Buonicore, o Bloco Soviético era composto por estados em transição ao socialismo e cumpriram importante papel na luta dos trabalhadores e em seu imaginário, durante o século 20. “A União Soviética e o Bloco Socialista, apesar de seus limites, cumpriram um papel fundamentalmente positivo na história do século 20. Eles deram importante apoio aos processos de libertação nacional e de transição ao socialismo. A sua simples existência permitiu que a burguesia de vários países fizesse importantes concessões – econômi-

cas, políticas e sociais – aos trabalhadores”, diz, referindo-se à consolidação do Estado de bem-estar social.

“Poucos anos após a euforia da derrubada do muro, os orientais já consideravam que em vários quesitos a sua situação era melhor no socialismo”, diz Augusto Buonicore Crise existencial Com a queda do Muro de Berlim, a esquerda socialista perdeu a sua maior referência, com o princípio do fim do campo socialista. Mesmo para os críticos do modelo soviético, a derrocada do socialismo do Leste Europeu coincidiu com a fragilização e confusão de suas organizações. “A esquerda revolucionária foi atingida por uma onda oportunista, muito parecida com a do social-patriotismo depois da 2ª Guerra, formada por movimentos na América Latina como os Tupamaros e Montoneros. Houve um giro à direita impressionante. Foi devastador. A esquerda mundial ficou irreconhecível, abateu-se em uma confusão ideológica. A crise atingiu inclusive tendências antistalinistas. O socialismo deixou de ser referência mundialmente. Mesmo com as aberrações do stalinismo, a URSS animava as inspirações igualitárias de parte da classe operária. As novas gerações não têm mais essas referências socialistas”, explica Arcary. Para os Partidos Comunistas, a crise veio com força ainda mais devastadora, como explica Augusto Buonicore: “Infelizmente, uma parte dos Partidos Comunistas, diante do impacto da crise do socialismo, abandonou suas tradi-

ções, símbolos e programas. Passou a rejeitar em bloco toda a rica história do movimento comunista internacional e da própria URSS. Veja o caso do Partido Comunista Italiano, que era o maior partido do ocidente, virou PDS e acabou desaparecendo. No Brasil, o PCB virou PPS, que agora ameaça se unificar com o PSDB. Sinais que vivíamos e ainda vivemos tempos bicudos”, analisa. Leste devastado Quase 20 anos após o fim da experiência socialista no Leste Europeu, a região encontra-se em condições sociais e econômicas muito aquém daquela que os moradores de Berlim oriental sonhavam, ao pedir a derrubada do muro. Tal cenário também é válido para a Alemanha oriental, com nível de desenvolvimento abaixo do restante do país. Segundo pesquisa divulgada pelo jornal Der Spiegel, 57% dos alemães orientais enxergam mais pontos positivos na RDA do que negativos. “Pouco a pouco, a alegre sensação de unificação foi sendo substituída pelo trágico sentimento de anexação. Na Alemanha unificada, o alemão oriental era visto como um cidadão de segunda categoria. Este já era o sentimento de 72% deles em 1997. O número parece ter crescido desde então. Poucos anos após a euforia da derrubada do muro, os orientais já consideravam que em vários quesitos a sua situação era melhor no socialismo. Entre eles: educação, saúde, previdência social, habitação e igualdade das mulheres”, relata Buonicore. A piora na vida dos moradores do Leste Europeu levou a um fenômeno de “reciclagem” na política da região, tendo muitos líderes das antigas repúblicas soviéticas voltando ao poder em partidos social-democratas. “Os sonhos daqueles que pediam a reunificação da Alemanha foram completamente frustrados. Houve uma restauração selvagem do capitalismo. Não é à toa que os ex-Partidos Comunistas e seus líderes voltaram ao poder em alguns países”, conclui Arcary.


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