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Ano 1 • Número 35 • São Paulo • De 30 de outubro a 5 de novembro de 2003

Circulação Nacional

R$ 2,00

Paraná resiste e veta transgênicos

O Aqüífero Guarani, maior reserva de água doce do mundo, está na mira dos Estados Unidos. Esse seria o objetivo da estratégia estadunidense de militarizar a região da Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai). Oficialmente, Washington diz que quer combater o terrorismo. O presidente dos EUA, George W. Bush, pretende obter imunidade para os militares e funcionários estadunidenses na região, mas não vem conseguindo sucesso. O aqüífero está no subsolo dos três países do Mercosul. Pág. 10

E mais: IDEOLOGIA – José Arbex Jr. comenta o Congresso da Internacional Socialista e discute o socialismo de resultados. Para o jornalista, é preciso ter cuidado com os exemplos de sucesso a seguir. Pág. 9 ÁFRICA – Votação na Suazilândia elege deputados naquela que é a única monarquia africana. A votação definiu 55 deputados. No entanto, mais 10 parlamentares foram indicados pelo rei Mswati III. Pág 12 ELEIÇÃO 2004 – Chico Alencar, pré-candidato a prefeito do Rio de Janeiro, e Plínio de Arruda Sampaio Jr., indicado como pré-candidato a prefeito de São Paulo, debatem as prévias do Partido dos Trabalhadores. Pág.14

STJ autoriza libertação de sem-terra Plebiscito sobre Alca ganha adesões Os presos políticos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) não são “bando”, nem podem ser acusados por “formação de quadrilha”. Por isso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu pela liber-

tação de três dos catorze detidos. Foram beneficiados Márcio Barreto, Cledson Mendes e Sérgio Pantaleão. José Rainha Júnior e Felinto Procópio vão continuar na cadeia. Pág. 6

Vereadores de São Paulo aprovam moção de apoio ao plebiscito sobre a participação do Brasil nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Ideli Salvatti, relatora do projeto de Roberto Saturnino

(PT/RJ), que propõe o plebiscito, cogita dar parecer contrário. Em entrevista ao Brasil de Fato, Saturnino ironiza: “Se é para ter Alca, prefiro a anexação do país aos EUA”. Pág.9

Mês a mês, o brasileiro ganha cada vez menos

Soldado estadunidense retira à força civil iraquiano que procurava por seus parentes, após o ataque à sede da Cruz Vermelha dia 27de outubro. O atentado mais violento após a invasão ao Iraque deixou 40 mortos

Marcio Baraldi

EUA armam estratégia para dominar água

Manifestação em apoio a nova lei assinada pelo governador Roberto Requião (PR), que proíbe o plantio, a industrialização e a comercialização de soja transgênica

Hadi Mizban/AP/AE

A

pesar das pressões, Roberto Requião, governador do Paraná, se manteve firme: no dia 27, sancionou a lei que proíbe o plantio e o comércio de sementes transgênicas no Estado. Responsável por cerca de 30% da produção brasileira de grãos, o Paraná tem em vista os mercados europeu e chinês, que tendem a restringir as importações de transgênicos. Requião decidiu não esperar pelo Congresso, que tanto poderá proibir como liberar, de vez, o plantio de soja modificada. Mesmo em caso de liberação, o Paraná manterá a proibição: “O Estado tem autonomia para legislar. E, neste caso, a lei estadual prevalece sobre a federal”, afirma o procurador geral do Estado, Sérgio Botto de Lacerda. Pela lei, o Porto de Paranaguá não poderá escoar ou receber sementes transgênicas, e caminhões com o produto só poderão circular pelo Estado se a carga estiver lacrada e a origem da semente for comprovada. Os governadores Wellington Dias (PT), do Piauí, e Blairo Maggi (PPS), do Mato Grosso (maior produtor mundial de soja convencional) anunciaram idêntica disposição. Há informações segundo as quais os governadores de Goiás e de São Paulo fariam o mesmo. Pág. 3

Orlando Kissner/AE

Requião não espera pelo Congresso, que tanto pode proibir como liberar definitivamente o plantio de soja modificada

O rendimento médio real recebido pelos brasileiros ocupados continua caindo: em setembro, encolheu 2,4% em relação a agosto, e 14,6% frente a setembro de 2002. A redução da renda familiar levou mais pessoas a correr atrás de emprego. Mas, na TV, diante de quase 2,8 milhões de desempregados, mais de 8 milhões de empregados sem registro, e outros 2,3 milhões que nem recebem um salário mínimo, o ministro da Fazenda voltou a prometer “um tempo novo daqui para a frente”. Págs. 4 e 5

Petras: violência Plano propõe fim no campo é falha de privilégio do governo a latifundiários Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o sociólogo estadunidense James Petras critica a política agrária do governo Lula e culpa o presidente pelos crimes cometidos no campo. Para ele, está em prática, hoje, um “liberalismo taleban”, pois a não concretização das mudanças prometidas estimula o aumento da violência. Antes de ir para Belém (PA), para participar do Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio, Petras falou da Organização das Nações Unidas (ONU), Área de Livre Comércio das Américas (Alca), Fundo Monetário Internacional (FMI), militarização da América Latina e sobre a sucessão presidencial e política externa dos EUA. Pág. 11

Pág. 6

Ambientalistas cobram promessas Pág. 13

Máquina inédita garante livros a preços baixos Pág. 16


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De 30 de outubro a 5 de novembro de 2003

NOSSA OPINIÃO

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • Claus Germer • Dom Demétrio Valentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes • Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • César Benjamim • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Eduardo Greenhalgh • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

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A coragem vem do Paraná

O

governador do Paraná, Roberto Requião (PMDB), sancionou, na última segunda-feira, dia 27, lei que proíbe o cultivo, manipulação, importação, industrialização e a comercialização de transgênicos destinados à produção agrícola, alimentação humana e animal no Estado, exceto para fins de pesquisa científica. A lei também veda a utilização do Porto de Paranaguá para a exportação e importação de transgênicos e proíbe que instituições financeiras operadoras do sistema de crédito rural apliquem recursos no financiamento do cultivo ou manipulação de organismos geneticamente modificados. Com este conjunto de medidas, Requião é, até agora, o governador a tomar posição mais firme e inequívoca contra os organismos geneticamente modificados. Adversários do governador o acusam de estar fazendo uso políticoeleitoral da questão dos transgênicos. Requião estaria procurando cativar os descontentes com as recentes medidas tomadas pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no sentido de liberar a produção de soja transgênica na safra deste ano.

A estratégia do governador, dizem seus desafetos, é viabilizar-se como candidato das forças de esquerda à Presidência da República em 2006, valendo-se de uma atuação mais ao gosto desta parcela da sociedade nos quatro anos de administração no Paraná. A argumentação dos inimigos de Requião é, na verdade, uma tentativa de desqualificar a atuação do governador, que estaria tomando atitudes arrojadas apenas em função das ambições eleitorais, e não por acreditar no que faz. A bem da verdade, as alegações da oposição ao governador do Paraná são falaciosas e não se sustentam. Em primeiro lugar, todo político tem ambições eleitorais e as atitudes que toma obedecem a uma lógica simples: serão julgadas pelo conjunto da população. Em segundo lugar, uma breve análise sobre o conteúdo da campanha do então candidato Roberto Requião revela que tudo que o vencedor do pleito do ano passado vem fazendo à frente do governo paranaense foi prometido no período eleitoral: rever as privatizações das gestões

anteriores, em especial no que diz respeito às estradas estaduais, executar um programa efetivo de reforma agrária, investigar as denúncias de corrupção envolvendo integrantes do governo Lerner e trabalhar duro para gerar empregos. Desta forma, cai por terra o argumento de que Requião estaria executando uma gestão sob medida para agradar a base de esquerda da sociedade brasileira: estava tudo lá, no programa de governo. A ação firme do governador do Paraná nas questões da transgenia e das privatizações, mais do que simples demagogia, como querem seus adversários, é a prova cristalina de que existe espaço para avanços substanciais na direção de uma administração ética e promotora do bem-estar social, mesmo em uma conjuntura difícil e em meio a uma correlação de forças adversa. O exemplo de Requião mostra que basta um pouco de coragem para enfrentar os reclames dos adversários e as pressões dos poderosos. E coragem, pelo que os fatos estão a mostrar, não tem faltado no Paraná.

FALA ZÉ OHI

CARTAS DOS LEITORES

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PARA LEITOR COMUM Muitas vezes me perguntei por que a esquerda não tinha um jornal de grande circulação que pudesse ser lido pelas pessoas comuns, com as notícias apresentadas sem distorções. Acho que Brasil de Fato pode vir a preencher esta lacuna. Entretanto, acho que deveria conter mais seções e reportagens, encontradas em outros jornais, que atraíssem o leitor comum, para não ficar com o rótulo de um jornal para iniciados. É necessário atingir o cidadão comum, massacrado pelas informações distorcidas da imprensa capitalista. A equipe é de primeira e tem tudo para dar certo. Boa sorte! Luiz Rogério Corrêa Clemente Naviraí (MS) SAUDAÇÕES Quero parabenizá-los pela iniciativa de instituir um veículo de comunicação independente e voltado aos movimentos sociais. Apenas lamento a presença de tão poucas mulheres nos conselhos político e editorial do jornal, contrariando a significativa contribuição quantitativa e qualitativa das mulheres às causas em pauta. André Valente de Barros Barreto por correio eletrônico

SERÁ A BENEDITA? Será que o motivo de a (ministra) Benedita estar sendo atacada, como único flanco de desgaste do PT Light, não é pelo simples fato de ela ser negra, crente, carioca e favelada? Sim, porque é mesmo um disparate comparar os R$ 4.600 que ela devolveu – e já acionou o Tribunal de Contas para auditar se ela é culpada – com o crime tucano do Banestado, do Maluf, do juiz Lalau, da alta grana que FHNistão, o pai da fome repassou a fundo perdido (caixa preta do caixa dois) a um banco falido de um parente dele. Estão querendo achar pêlo em ovo, chifre em cavalo? Ah, se todos os corruptos e ladrões, máfias e quadrilhas, desses oito anos de um tucanato amoral, inumano e decadente – a falência do ensino público e da segurança pública, entre outras barbaridades – gastassem só 4.600 reais indo a um culto evangélico na Argentina! Que bom seria, hein? Estão usando a Benedita de vítima da vez. Já vi o babaquara líder do PSDB no governo se alegrando feito uma vaca louca, a dizer que a carreira da Benedita no Rio de Janeiro acabou. Azar dos cariocas? Sim, pois com o PFL e o PSDB ficando forte

no Rio, será uma vergonha e estarão todos condenados, mais ainda do que já estão com essa violência generalizada, corrupção institucionalizada em todos os níveis, o narcotráfico mandando e desfazendo vestígios de impunidade por atacado, tudo isso depondo contra esse belo cartão postal do país, e a corja localizada, vejam só, com medo da Benedita que é da Silva como o Lula Light. Querem, via Benedita, queimar o filme do Lula, vão usar isso à exaustão, quando os oposicionistas suspeitos que lá estiveram fizeram milhões de vezes pior do que isso, e tudo caiu numa boa, uma seqüência de privatizações-roubos, o crime do Banestado, paraísos fiscais, e vai por aí o fox-trote de escândalos que a mídia, vá lá, em grande parte bem tucana, sem nenhuma ética jornalística, deixou por isso mesmo (levando vantagem). Eu, por mim, defendo a Benedita, dentro daquele próprio conceito básico de direito, que diz que a pena não deve ser maior do que o crime. Realmente, ser negro, exfavelado, crente e ainda petista nesse país não é fácil. Silas Correa Leite Rio de Janeiro, (RJ)

Brasil de Fato estimula o debate Brasil de Fato completa oito meses de existência. O caminho até agora percorrido foi muito longo, árduo e gratificante. Multiplicamos a criação de comitês de apoio por todo o país, estampamos em nossas páginas as notícias do Brasil e do mundo ignorados pela grande mídia, oferecemos perspectivas distintas de interpretação dos fatos políticos, culturais e econômicos, e criamos feição e estilos próprios. Não é pouco, mas ainda não é suficiente. Faz parte do nosso desafio incorporar

ao processo de produção, divulgação e distribuição do jornal um número cada vez maior de pessoas, movimentos sociais e mídias independentes. Queremos multiplicar os comitês de apoio, ampliar a rede nacional de todos os envolvidos na sustentação do jornal. Com esse objetivo, resolvemos intensificar a organização, em todo o território nacional, de debates, palestras e mesas redondas envolvendo os integrantes de nosso Comitê Editorial. Consideramos isso tão importante que

resolvemos liberar o jornalista José Arbex Jr. de suas funções como editorchefe do Brasil de Fato para dedicar a essas atividades um tempo ainda maior do que o já dispensado. Estamos certos de que a aposta na crescente interação entre o Comitê Editorial e os comitês de apoio já formados, as universidades, os sindicatos e os movimentos sociais é o caminho mais seguro para a consolidação do Brasil de Fato como um jornal independente de expressão nacional.


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De 30 de outubro a 5 de novembro de 2003

NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR

Paraná, território livre de transgênicos Dimitri do Valle e Claudia Jardim de Curitiba (PR) e da Redação

Epitácio Pessoa/AE

Sobram razões ao governo estadual para manter firme a decisão de proibir o plantio e a circulação de soja modificada Ao contrário do Rio Grande do Sul, onde 80% da safra de soja são grãos transgênicos, o Paraná manteve o cultivo tradicional. De 2002 para 2003, o Estado conseguiu produzir 1 milhão a mais de toneladas de grãos, passando de 29 milhões para cerca de 30 milhões.

A

ESTADOS LIMPOS Agora, o governo do Paraná quer que o Ministério da Agricultura passe a exigir os exames de transgenia na soja que entra no Estado pela fronteira com o Paraguai. E também aguarda resposta do ministério sobre o pedido para que o Estado seja declarado área livre de transgênicos, caso a lei federal autorize o cultivo em todo o país.

MERCADO EXTERNO

O governador Roberto Requião fechou estradas e pretende fazer testes na carga de cerca de mil caminhões de soja

O governador Wellington Dias (PT), do Piauí, também anunciou a mesma disposição. Se declarado livre de transgênicos, mesmo que a lei federal libere o cultivo em todo o país, o Estado poderá manter a proibição. Blairo Maggi (PPS), governador do Mato Grosso, foi pelo mesmo caminho, reitando que a MP só libera o cultivo para os Estados que produzem transgênicos. “Como não é o nosso caso, o plantio permanece proibido”, afirma. O Estado do Mato Grosso é o maior produtor mundial de soja convencional.

CUMPRA-SE A LEI Se a barreira de fiscalização aos caminhões que transportavam soja pelo Paraná provocou conflitos entre governadores, agora a situação tende a se agravar. Entre os dias 18 e 24 de outubro, o governo estadual desencadeou uma operação para apertar o cerco contra os transgêni-

Persiste o vício das medidas provisórias Claudia Jardim da Redação Se precisar saber sobre o prazo de assinatura do documento que os agricultores devem assinar atestando o plantio de soja transgênica, não tente encontrar a informação em qualquer texto específico sobre o assunto. Procure a Medida Provisória 133, que trata do Programa Especial de Habitação Popular, que lá no fim estará a informação que os produtores têm até o dia 9 de dezembro para declarar se utilizam semente modificada. Para atender, mais uma vez, às pressões dos agricultores gaúchos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva incluiu na MP 133 um artigo que prorroga o prazo para assinatura do Termo de Compromisso, Responsabilidade e Ajustamento de Conduta (TAC). A justificativa do governo federal é que até a data em que vencia o prazo para assinatura do documento (26/10), apenas dois mil dos 150 mil agricultores do Rio Grande do Sul tinham assinado o TAC. O jurista Dalmo de Abreu Dallari explica que não há restrições constitucionais para que um artigo sobre um tema distinto seja incluído em um mesmo documento. No entanto, “não é de boa técnica legislativa”, avalia. Mas Dallari critica a dificuldade de acesso à informação, já que é improvável que alguém interessado em transgênicos vá averiguar um documento referente à habitação. “Lamentavelmente, o governo Lula, além de repetir a política econômica de Fernando Henrique

cos no Estado. Mais de 500 caminhões foram parados nos 28 postos de fiscalização, localizados nas divisas com Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Após inspeções constatarem que transportavam soja transgênica, catorze veículos tiveram de retornar para o Mato Grosso do Sul. O governo do Paraná informou que a medida representa, na prática, o cumprimento da Lei federal 10.688, de junho deste ano, que determina que os transportadores apresentem documentos comprovando a origem da soja. O governador do Mato Grosso do Sul, José Orcírio dos Santos, o Zeca do PT, tentou obter uma liminar no Supremo Tribunal Federal (STF) para liberar os caminhões, mas o Supremo não aceitou o pedido. O governo sul-matogrossense sinalizou que o próximo passo é ingressar com uma Ação Direta de

Inconstitucionalidade no STF para anular a lei.

ÀS AVESSAS Apesar das demonstrações do governo paranaense contrárias aos transgênicos, na semana passada, produtores do Estado oficializaram, na delegacia do Ministério da Agricultura, em Curitiba, pedidos para plantar soja modificada. Ao que o vice-governador e secretário da Agricultura, Orlando Pessuti, avisou que os cultivos serão fiscalizados e suspensos, caso seja comprovado o plantio de transgênicos. O governo paranaense diz que tem razões de sobra para barrar a soja transgênica no Estado: o setor agrícola responde por 33% do Produto Interno Bruto estadual (indicador de todos os bens e serviços produzidos). Ou seja, é a atividade que mais rende divisas aos cofres do Paraná.

O Paraná responde por cerca de 25% da produção brasileira de grãos, boa parte dos quais são importados por países da Europa, muitos deles refratários aos transgênicos. Assim, raciocina o governo estadual, uma lei liberando o cultivo de sementes geneticamente modificadas poderia causar desequilíbrios à balança comercial pelo declínio das exportações. Além dos fatores econômicos, o governo paranaense enumera as alegações tradicionais dos que são contra os transgênicos: não há estudos conclusivos sobre os efeitos para a natureza e a saúde de pessoas e dos animais. Mais: os agricultores estariam à mercê de um monopólio, ou seja, da única empresa que detém a tecnologia da semente transgência, a estadunidense Monsanto. Por lei, a empresa pode cobrar royalties (espécie de imposto sobre o direito de uso) dos produtores que usem suas sementes. A lei estadual contra os transgênicos também pretende ser um instrumento de ponta na ampliação de negócios agrícolas do Paraná. De acordo com fontes da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, o próximo passo é conquistar o mercado chinês, de 1,3 bilhão de habitantes. Por se tratar de um país que tem um embate estratégico com os Estados Unidos, pátria de origem da cultura transgênica, as autoridades paranaenses vêem a chance de participar, na China, de um mercado lucrativo de sementes puras, como as produzidas no Estado.

EXPORTAÇÕES BRASILEIRAS DE SOJA EM GRÃO Segundo o porto de embarque (toneladas métricas líquidas) - 1999/2002 Gicelle Archanjo

pesar da polêmica e da reação dos outros Estados, o governador do Paraná, Roberto Requião, não recuou: no dia 27, sancionou a lei que proíbe o plantio e o comércio de sementes transgênicas no Estado. De olho nos mercados europeu e chinês, que rejeitam produtos geneticamente modificados, o Paraná decidiu se antecipar à discussão no Congresso, de onde sairá uma lei federal que pode proibir, ou liberar de vez, o plantio de soja modificada em todo o país. Mesmo se o governo federal liberar os transgênicos, o Paraná pode manter a proibição.”O Estado tem autonomia para legislar. E, neste caso, a lei estadual prevalece sobre a federal”, explica o procurador geral do Estado, Sérgio Botto de Lacerda. De acordo com a nova lei, o Porto de Paranaguá também não poderá escoar ou receber sementes transgênicas. Caminhões com o produto só serão autorizados a circular pelo Estado se a carga estiver lacrada e a origem da semente for comprovada. O superintendente do porto, Eduardo Requião, anunciou, no dia 28, que estão suspensas as exportações de soja por Paranaguá, até que sejam feitas análises nas 62 mil toneladas do produto estocadas nos terminais.

Cardoso, repete os mesmos vícios de técnica legislativa, que é tratar vários assuntos em um único texto”, acrescenta o jurista Fabio Konder Comparato. O modelo de “governar por meio de MPs”, era uma das principais críticas do Partido dos Trabalhadores ao governo FHC, lembra Comparato.

FISCALIZAÇÃO? Até o dia 24, quando foi estendido o prazo para assinatura do TAC, o Ministério da Agricultura afirmava que só poderia começar a fiscalizar o plantio da soja transgênica após as assinaturas do acordo. Prorrogado o período, em tese, a fiscalização só começaria em 9 de dezembro. Porém, Maçao Tadano, secretário de Defesa Agropecuária, garante que a fiscalização será feita “antes, durante e depois do plantio”. Os produtores começaram a cultivar a soja em 1º de outubro e, de acordo com agrônomos, o período de plantio vai até novembro. Para o deputado federal João Grandão, do núcleo agrário do PT, o argumento do governo mostra que mais uma lei não será cumprida. “Querem tapar o sol com a peneira. Com isso, a segurança dos agricultores familiares e dos consumidores está ameaçada”, diz. Enquanto a rigidez na fiscalização anunciada pelo ministro José Dirceu, da Casa Civil, não se transforma em prática, as áreas de preservação e de reservas indígenas podem estar em perigo. “Como vão saber se a soja é transgênica depois que estiver plantada?”, questiona João Grandão.

Crescem restrições dos consumidores Se ainda não existe consenso entre os cientistas sobre os riscos do cultivo de transgênicos no Brasil, os índices de rejeição do mercado internacional indicam por que o Paraná, segundo maior produtor e exportador do país, não quer a soja transgênica em sua agricultura. Cerca de 16 milhões de toneladas das 18 milhões exportadas pelo porto de Paranaguá (PR), têm como destino a União Européia (UE), que endureceu as regras para os transgênicos, e exige a rotulagem

de todos os alimentos. Devido às restrições da legislação, as exportações de soja transgênica dos EUA para a UE cairam cerca de 25%. Na China, principal mercado importador da soja brasileira, as regras de rotulagem ainda não foram definidas, mas o país já iniciou negociações com o Paraná, para importar soja convencional do Estado. Diante deste cenário pouco favorável aos alimentos geneticamente modificados, a decisão do governo brasileiro de liberar o cul-

tivo da soja transgênica provocou contrariedades do mercado consumidor internacional. A crítica é de Renate Künast, ministra da Defesa do Consumidor, Alimentos e Agricultura da Alemanha, para quem os produtos transgênicos são rejeitados pela maioria da população de seu país. “Pesquisas de opinião na Europa apontam reservas para esses alimentos”, afirma. Só neste ano, a Alemanha importou 1.717,5 milhão de toneladas de soja em grão do Brasil.


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De 30 de outubro a 5 de novembro de 2003

NACIONAL DESEMPREGO

A saída é uma só: crescimento econômico O BID também constata a rotatividade do emprego e a precarização do mercado de trabalho na América Latina da Redação

UM RETRATO DO CONTINENTE

D

esemprego, baixos salários e instabilidade do emprego. Essas são as preocupações mais urgentes dos latino-americanos, à frente da corrupção, a criminalidade e as drogas, que aparecem com destaque no relatório 2004 do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O documento, divulgado na segunda quinzena de outubro, analisa as razões do alto desemprego e dos baixos salários na América Latina. Entre outras coisas, chama a atenção ao número crescente de mulheres na força de trabalho e à importância da tecnologia, produtividade e educação para gerar oportunidades de emprego. O documento “Procuram-se bons empregos: o mercado de trabalho na América Latina” é o último da série anual sobre progresso econômico e social do continente, e foi escrito e produzido por uma equipe de 55 economistas, pesquisadores, acadêmicos e outros especialistas, sob a direção geral de Guillermo Calvo, chefe do Departamento de Pesquisa do BID. Em um dia comum, mostra o relatório, mais de 210 milhões de latino-americanos estão na labuta. Cerca de cinco milhões de novos trabalhadores incorporam-se ao mercado de trabalho a cada ano. A taxa de crescimento da força de trabalho, 2,5%, situa-se entre as mais altas do mundo. As tendências demográficas e a crescente participação de mulheres – que continuam a ganhar menos – são dois dos principais fatores que estão por trás desse perfil. Enquanto isso, a emigração – a maior do mundo – é responsável por um declínio muito pequeno da taxa de crescimento da população economicamente ativa.

Os maiores temores*

Os problemas mais importantes

Desemprego

Uruguai

Corrupção

Chile

Pobreza

Peru

Violência

Nicarágua

Instabilidade no emprego

Argentinaa

Baixos salários

Panamá

Terrorismo

Bolívia

Baixa qualidade da educação

Colômbiaa

Inflação

Equador 0

5

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15

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25

0

* Média das respostas de 17 países

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40

Baixos salários

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70

Instabilidade no emprego

Fonte: Latinobarometer 2001 / BID

Taxa média de desemprego por região - 2001

Categorias de trabalhadores pobres (Percentual)

Total

América Latina

Homens

Europa Oriental

Mulheres Europa

Terciário Paises desenvolvidos de língua inglesa

Secundário Primário

Ásia Oriental

Urbanos Rurais

Estados Unidos

0 0

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6

8

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rado em alguns países, isso ocorreu em ritmo muito lento”, constata o BID. E acrescenta que o salário de muitos trabalhadores é baixo demais para permitir que escapem da pobreza, e a desigualdade salarial, uma das maiores do mundo, não está melhorando. Segundo o BID, o crescimento é condição necessária para romper o quadro de pobreza e pouco emprego. Mas não basta. São necessárias outras políticas, inclusive as de transferência direta de renda para, no mínimo, 10% da população que vivem abaixo do nível de pobreza. Tecnologia, produtividade e educação são as chaves para fortalecer os enfraquecidos mercados

10

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30

40

50

60

70

12

Fonte: Organização Internacional do Trabalho / OCDE/BID

O estudo menciona importantes diferenças de mercado de trabalho entre os países. Nos anos 90, enquanto o desemprego aumentava em vários países latino-americanos – Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Uruguai e Venezuela –, declinava no Caribe, na Bolívia, no México e no Panamá. “O desemprego chegou a seu nível mais alto em muitos anos, e, embora os salários tenham melho-

de trabalho da América Latina. Conforme a pesquisa, cada ano de escolaridade secundária aumenta a renda em 11% em relação à renda dos trabalhadores que têm apenas instrução primária. Mas só educação também não basta. A sugestão é que os governos formulem “políticas para reduzir a volatilidade macroeconômica e criar condições macroeconômicas estáveis e favoráveis ao crescimento”. Ao mesmo tempo, o BID recomenda uma “nova pauta”de políticas trabalhistas a ser realizada por “uma autoridade trabalhista fortalecida”e por uma “rede complexa de instituições públicas e privadas”.

Cibele Aragão/Arquivo SOF

Violência e estresse atingem mulheres Mulheres são vítimas de violência e estresse quando trabalham em ambientes onde predominam homens. O alerta é da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que acaba de recomendar medidas preventivas a governos, empresas, trabalhadores e sindicatos. As principais vítimas são mulheres solteiras, separadas, viúvas e divorciadas. Segundo a OIT, elas ficam vulneráveis quando estão sobrecarregadas de responsabilidades familiares ou diante de atos de violência como assédio sexual. As conseqüências são dias de trabalho perdidos, aumento de medidas de segurança e atenção sanitária, recuperação de longo prazo e custos sociais indiretos, o que pode transformar o local de trabalho em lugar perigoso. As ocupações mais vulneráveis são as dos setores do ensino, saúde, hotelaria, espetáculos e transporte.

20 Desemprego

Fonte: Latinobarometer 2001 / BID

BAIXOS SALÁRIOS

da Redação

10

Fonte: Duryea, Jaramillo e Pagés - 2003

Sindicato é declarado herói e vilão da história O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) confirma o que trabalhadores do mundo todo sabem: os sindicatos propiciam melhorias substanciais nas condições de trabalho. Um dos principais ganhos é sentido no bolso: os aumentos de remuneração variam de 5% a 10%. Segundo o relatório, os sindicatos garantem benefícios como redução da rotatitividade no mercado de trabalho e geração de empregos. E também são eles que possibilitam a comunicação entre trabalhadores e administradores, contribuindo para a produtividade. “A negociação coletiva pode facilitar a conciliação entre os interesses dos trabalhadores e das empresas, e impedir as conseqüências adversas geradas por negociações não coordenadas”.

Mas a benevolência do BID para com os sindicatos pára por aí, já que a instituição acusa as organizações dos trabalhadores de “reduzir os investimentos nas empresas”, criando dificuldades para o aumento futuro de salários. No nível macro, os sindicatos são responsabilizados pela redução da capacidade de ajustamento e de adoção de reformas das economias. “Um elemento preocupante é que, segundo empregados e empregadores, as relações de trabalho na América Latina parecem estar marcadas pela desconfiança”, pondera o BID. E acrescenta que os conflitos podem impedir que empresas e trabalhadores realizem os investimentos de longo prazo em treinamento e novas tecnologias, “essenciais para o crescimento sustentado”.

Adeus ao sonho da carteira assinada

AMÉRICA LATINA

Mulheres solteiras, separadas, viúvas e divorciadas são as principais vítimas

Segundo dados da OIT, que incluem números de 1994 a 2000, do conjunto de mulheres trabalhadoras na América Latina, 58% têm emprego informal. No Brasil, 67%

das trabalhadoras não têm registro em carteira ou trabalho formal. Nas estatísticas sobre emprego informal nos países em vias de desenvolvi-

mento, a OIT não inclui as atividades agrícolas, os trabalhos domésticos ou empresas criminais e outras formas de trabalho clandestino.

O relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) demonstra: a cada ano, de cada quatro pessoas, uma fica desempregada, ou muda de emprego. Metade dos trabalhadores não conta com a cobertura de leis trabalhistas e sistemas de proteção contra desemprego, doenças, acidentes de trabalho ou velhice. E um em cada dois trabalhadores recebe salário demasiado baixo para tirar sua família da pobreza. Na América Latina, a cada ano, cerca de um em cada quatro empregos é criado ou destruído nos países do continente. Ou seja, um grande número de trabalhadores perde o emprego, enquanto outros são contratados, o que significa altíssima rotatividade. Muitos trabalhadores, especialmente os mais

pobres, não podem ficar longos períodos buscando emprego e são obrigados a aceitar a primeira vaga que aparece. Em 60% dos casos, encontram empregos que pagam menos do que os salários que recebiam antes. O trabalho do BID derruba a idéia de que a carteira assinada é o sonho dos trabalhadores no Continente. Para provar sua tese, cita estudos realizados no Brasil e no México, onde a maioria dos que trabalham por conta própria prioriza o rendimento à segurança. Na lista de trabalhadores informais o BID coloca tanto os que trabalham em empresas não regulamentadas até os que ganham baixa remuneração na economia informal, como vendedores ambulantes e empregados domésticos.


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De 30 de outubro a 5 de novembro de 2003

NACIONAL CONJUNTURA

Emprego e renda continuam de mal a pior Em setembro, mais de 90% das vagas foram para empregados sem registro e o rendimento dos ocupados caiu 14,6%

N

a televisão, diante de quase 2,8 milhões de desempregados, mais de 8 milhões de empregados sem registro, ou forçados a fazer um “bico” aqui e ali para sobreviver, e outros 2,3 milhões que sequer recebem um salário mínimo regular, o ministro Antonio Palocci, da Fazenda, não titubeou: “Começaremos, sim, a viver um tempo novo daqui para a frente”. A novidade, no entanto (que, naturalmente, não apareceu no discurso solene), é que, mesmo fora da pauta, a reforma trabalhista, com o correspondente desmonte de direitos assegurados após anos de lutas sindicais, está sendo implantada na prática. Está nas ruas, nas filas de brasileiros de todas as idades que procuram emprego. E os dados apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram o que a fala ministerial não mostrou no dia 24. Em setembro, nas seis principais regiões metropolitanas, enquanto a taxa de desemprego permanecia estacionada em 12,9% da população economicamente ativa (ou seja, em idade e condições para trabalhar),

R$ 1.000

Rendimento Médio Real Habitual das Pessoas Ocupadas

980 960 940 920 900 880 860 840 820 800 09/02

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09/03

Fonte: IBGE

os novos empregos criados pela economia ficaram largamente concentrados em ocupações de baixa qualificação, e salários menores ainda. Em relação a agosto, o total de pessoas ocupadas aumentou 1,2%, representando a criação de 224 mil novos empregos. O grande problema é que 207 mil, ou 92,4% daquelas vagas, foram ocupadas por empregados sem carteira, trabalhadores sem remuneração e trabalhadores por conta própria – exa-

tamente aqueles que são expulsos do mercado formal, que buscam sobreviver fazendo “bicos”, trabalhando como camelôs, vendedores autônomos, ou fazendo consertos e pequenos reparos domésticos. Sem garantia alguma, sem férias, sem 13º, sem FGTS, sem futuro.

INFORMALIDADE Nos doze meses terminados em setembro, a economia continuou criando empregos, a maioria de

Um mercado de trabalho precário O aumento da oferta de mãode-obra, em número superior à capacidade de geração de empregos pela economia, além de ajudar a derrubar a renda, termina reproduzindo situações cada vez mais desiguais. Até setembro de 2002, por exemplo, o subemprego, os trabalhadores sem carteira, por conta própria ou não remunerados, e os empregos com salários abaixo de um mínimo, representavam 53,5% do total de pessoas ocupadas nas seis regiões metropolitanas observadas pelo IBGE. Aquela relação saltou, neste ano, para praticamente 60%. O perfil do desempregado, traçado pelo IBGE, diz tudo: jovens com 18 a 24 anos, com mais de 11 anos de estudo, dentre os quais, a maioria

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jamais teve um emprego na vida. Os empregos sem registro e os “bicos”, somados, acolhem o correspondente a 43% do total de pessoas com algum emprego, relação que havia alcançado, em setembro do ano passado, menos de 41%. O percentual de trabalhadores que recebem menos de um salário mínimo/hora passou de 9% para quase 11%. De um total de 21,5 milhões de pessoas em condições de trabalhar naquelas regiões, cerca de 11 milhões (51%) estavam desempregados ou não tinham carteira assinada, faziam “bicos” ou não recebiam salários. O cenário se complica quando a região mais rica do país atinge níveis recordes de desemprego num mês em que se esperava que-

da das taxas de desocupação. Na região metropolitana de São Paulo, segundo pesquisa mensal do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) e do Seade, o desemprego retornou a 20,6% em setembro, depois de ter recuado para 20% no mês anterior – um recorde para o mês de setembro desde que a pesquisa foi iniciada em 1985. São 2,030 milhões de desempregados, outro recorde, cerca de 10,5% mais do que o total de 1,837 milhão sem emprego em setembro do ano passado. Os salários, que perderam 6,6% em 12 meses, atingiram em agosto os níveis mais baixos, para aquele mês, desde 1985.

baixa qualidade. Foram contratados 772 mil trabalhadores no período, dos quais 685 mil não foram registrados pelas empresas, decidiram trabalhar por conta própria ou não recebem qualquer remuneração. Uma tendência que se repete pelo menos desde 2002, como já noticiou Brasil de Fato. Naquele ano, 96,3% dos empregos abertos não ofereciam remuneração alguma, ou pagavam uma renda mensal inferior a um salário mínimo. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), do IBGE, mostram que 62,2% dos mais 2,7 milhões de novos empregos abertos no ano passado (1,693 milhão de vagas) foram ocupadas por empregados sem carteira, trabalhadores por conta própria, empregados não remunerados, ou que trabalhavam para produzir seu próprio sustento ou construir sua casa própria.

REFORMA, NA MARRA Instala-se, na prática, a desregulamentação das leis trabalhistas proposta na reforma que o Congresso sequer votou, com impacto não desprezível sobre as contas da

Previdência. Sem crescimento e sem empregos com carteira assinada, a tendência é de queda das contribuições à Previdência, com conseqüente descompasso entre receitas e despesas. Em setembro, o número de empregados sem registro em carteira cresceu 8,7% em relação ao mesmo mês de 2002, e 2,3% diante de agosto, para 4,167 milhões – taxas que suplantam o aumento do total de ocupados na economia (mais 4,3% em relação a setembro de 2002 e apenas 1,2% em relação a agosto passado), que, por sua vez, cresceu menos do que o total de pessoas em condições de trabalhar (mais 6,1% em doze meses, e 1,1% frente a agosto). Detalhe: entre os empregados, o que exclui patrões, trabalhadores por conta própria e sem remuneração, nada menos do que 30,4% não têm registro em carteira, percentual que chegava a 28,7% há um ano. Nem mesmo criando empregos de menor qualificação foi possível absorver todos os que chegam ao mercado de trabalho, o que explica a persistência de taxas elevadas de desemprego em um período em que, tradicionalmente, deveria ocorrer o contrário. Neste caso, a queda da renda familiar, causada duplamente pelo arrocho dos salários e pelo desemprego, parece ter sido o fator determinante para o aumento do número de pessoas em busca de emprego. O rendimento médio real habitualmente recebido pelo total de ocupados, já atualizado com base na inflação, caiu pelo nono mês consecutivo, encolhendo 2,4% em relação a agosto, e nada menos do que 14,6% frente a setembro de 2002. A redução da renda familiar levou um maior número de pessoas, que haviam desistido de procurar colocação ou estavam fora do mercado de trabalho por algum outro motivo, a correr novamente atrás de um emprego.

Renato Stockler

Lauro Jardim de São Paulo (SP)

Onde estão as bases para a retomada sustentada? No discurso elegante do ministro Antonio Palocci, e nas entrevistas de seus auxiliares, o tom tem sido monocórdio: as “bases para o crescimento” estão lançadas. O que significa dizer que, na ótica de Brasília, a queda dos juros básicos, reduzidos de 20% para 19% na semana passada, o ajuste fiscal (arrocho dos gastos públicos), a redução do “risco Brasil” e a sobra de dólares na balança comercial (exportações superiores a importações) devem fornecer o suporte de que a economia necessita para voltar a crescer, ainda neste final de ano.

FÔLEGO CURTO Na prática, o buraco é um pouco mais embaixo. A economia deve respirar com algum alívio nos últimos meses de 2003, como acontece todos os anos, em função das festas de Natal e reveillon. O suspiro, no entanto, tende a ter fôlego curto. E não é preciso ser um sábio da economia para perceber isso. Enquanto os salários mantiverem a tendência de encolhimento, o desemprego continuar elevado e os gastos do setor público arrochados, as chances de uma retomada sustentada do crescimento são baixas, para dizer o mínimo.

Os dados mais recentes, infelizmente, parecem mostrar que a redução dos juros, a criação de linhas de crédito e microcrédito para o consumidor de renda mais baixa tiveram pouco ou nenhum impacto, ainda, sobre o nível de atividade na economia. Surpreendendo o setor, que esperava crescimento, as vendas dos supermercados desabaram 7,7% em setembro, em relação a agosto, experimentando retração de quase 10% em relação a setembro de 2002. Em São Paulo, as vendas do comércio caíram 3,5% no mês passado, na quinta retração consecutiva. O governo federal investiu, até setembro, menos da metade dos recursos previstos no orçamento de 2003, tudo para economizar dinheiro para pagar os juros da dívida pública. Para o próximo ano, será mantida a meta de gerar um superávit entre receitas e despesas de 4,25% de todas as riquezas que a economia brasileira produzir. Mais claramente, será preservada a política de arrocho, o que reduz as chances de uma retomada. Na área externa, o crescimento via exportações parece se desenhar como um caminho um pouco mais complicado do que foi neste ano, quando o salto das vendas externas

aparentemente também não teria sido suficiente para injetar ânimo no restante da economia (exatamente porque os salários estão em queda vertical e o desemprego avança). As previsões do Banco Central estimam um aumento de apenas 4,4% para as exportações em 2004, com vendas de US$ 71,5 bilhões.

SALDO COMERCIAL Supondo um crescimento de 3% no próximo ano, o BC projeta, ainda, um avanço de 14,6% para as importações, para US$ 55 bilhões, depois de três anos de queda. Como resultado, a diferença entre exportações e importações baixaria 19,5%, para US$ 16,5 bilhões, valor claramente insuficiente para fazer frente aos vencimentos e juros da dívida externa no próximo ano, estimados em US$ 55,9 bilhões (mais de três vezes o valor do superávit comercial esperado, e cerca de 180% acima das reservas internacionais projetadas pelo BC para o ano que vem, na faixa de US$ 20 bilhões). Isso significa que o país terá que fazer um esforço extra para atrair recursos externos, o que poderá exigir novos aumentos dos juros internos, a ser mantido o modelo econômico atual. (LJ)

Na região metropolitana de São Paulo, desemprego atinge nível recorde


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NACIONAL REFORMA AGRÁRIA

Plano quer fim de prêmios para latifúndios Jorge Pereira Filho da Redação

Arquivo JST

Plano Nacional de Reforma Agrária propõe mudanças no lucrativo cálculo do valor das desapropriações de terras

Orçamento ainda não é suficiente

O cálculo é simples: se, em 1994, um latifundiário recebesse TDAs no valor de R$ 100 mil, em 2003 os títulos valeriam R$ 160 mil. No entanto, sem a desapropriação para fins de reforma agrária, o valor seria de R$ 40 mil. A medida baixada por Collor de Mello não foi alterada durante os últimos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso. “Foi uma absoluta cumplicidade com o latifúndio e atendia aos interesses da base conversadora de FHC, premiados com essa política”, analisa o pesquisador do IPEA. O impacto dessa transferência de renda para o latifúndio foi enorme para a reforma agrária. Os assentamentos perdiam cada vez mais recursos, enquanto os donos de terras improdutivas eram premiados. “Em vários anos, os serviços da dívida agrária e precatórios consumiram mais do que a implantação de assentamento e incentivos à produção”, afirma Delgado. De acordo com o Orçamento Federal, em 1999 o governo gastou R$ 1,1 bilhão em investimentos com novos assentamentos, assistência financeira e gastos com o Incra. Nesse mesmo ano, foram gastos R$ 1,5 bilhão com serviços da dívida e precatórios.

MUDANÇA DE CRITÉRIOS A única forma de reverter esse quadro, segundo Delgado, é um decreto do presidente Lula alterando a correção do TDA. O pesquisador considera que, sem pressão, não haverá mudança. “É a lei da inércia. Às vezes, por timidez ou cumplicidade, tolera-se esse mecanismo”. O Plano Nacional de Reforma Agrária sugere atrelar a variação do TDA ao valor real da terra onde ocorre a desapropriação, evitando o mau uso do dinheiro público.

Famílias semterra esperam assentamento. Orçamento para 2004 é de apenas R$ 500 milhões

Retirada das famílias acampadas em Getulina (SP), em junho de 1994

Normas ambientais nos assentamentos da Redação

dos junto ao Incra, com adequação às normas ambientais. Levará em conta a realidade das comunidades e a aceleração do trâmite dos pedidos de licenciamento sem custo para o agricultor. Um grupo de trabalho será criado para acompanhar o andamento do trabalho e a cada seis meses apresentará um relatório com os resultados alcançados. O termo de compromisso de ajustamento de conduta foi assinado no dia 21. O documento foi firmado pelos ministros Miguel Rossetto (Desenvolvimento Agrário) e Marina Silva (Meio Ambiente),

Os assentamentos da reforma agrária adotarão as normas ambientais estabelecidas pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). A iniciativa tem como objetivo garantir o desenvolvimento sustentável das comunidades rurais, conciliando a necessidade de preservação dos recursos naturais e as expectativas de crescimento socioeconômico dos assentados. O acordo prevê o levantamento de informações referentes à situação de todos os assentamentos cadastra-

o presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart, o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, e o presidente do Ibama, Marcus Barros. Para o ministro Rossetto, a falta de regularização ambiental dos assentamentos provoca problemas, tanto em relação ao acesso a crédito como no desenvolvimento de um projeto produtivo e sustentável. “A partir desse termo de compromisso, assumimos um trabalho intenso de regularização da situação ambiental para os próximos três anos”, disse.

SEM-TERRA

Juízes votam pela liberdade de presos Laura Muradi de Brasília (DF) Os sem-terra não são criminosos, como insiste em qualificar o juiz Átis de Araújo, de Teodoro Sampaio (SP). A conclusão é do ministro Paulo Medina, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que pediu o arquivamento dos processos contra militantes do Pontal do Paranapanema. Assim como os outros ministros do STJ, ele votou a favor da libertação dos cinco presos políticos do MST. Medina afirmou que as ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) não podem ser classificadas como crime e, portanto, “não há como falar em bando ou formação de quadrilha”. O relator do habeas corpus em favor dos cinco sem-terra, ministro Paulo Gallotti, e os ministros Fontes de Alencar e Medina votaram pela concessão de liminar favorável a liberdade de José Rainha Júnior e Felinto Procópio (Mineirinho), presos no município de Dracena (SP), e Márcio Barreto, Cledson Mendes e Sérgio Pantaleão, que têm ordem de prisão decretada. Apesar da decisão, Rainha e Mineirinho per-

A proposta de Orçamento para 2004, enviada pelo Ministério do Planejamento ao Congresso Nacional, mostra que será necessária muita pressão social para a reforma agrária sair do papel. Pela previsão, apenas R$ 500 milhões serão destinados aos novos assentamentos. Enquanto isso, R$ 85 bilhões estão reservados para a rolagem da dívida pública federal. Os recursos previstos pelo Orçamento atenderiam apenas 25 mil famílias sem-terra. O número representa 10% da meta indicada pelo Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que sugere o assentamento, sendo 200 mil famílias em 2004 e de um milhão de famílias até 2008. Já a verba destinada para a rolagem da dívida custearia o assentamento de 3,7 milhões de famílias. “Nossa proposta é compatível com o tamanho do problema, que não será resolvido com uma reforma agrária de projetos-piloto”, avalia Guilherme Delgado, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atualmente, 140 mil famílias vivem em acampamentos. E o número tende a aumentar. “A migração continuou grande nos anos 90. O agronegócio não resolve o problema dos que não têm terra pois não gera emprego. Pelo contrário, concentra produção, propriedade e renda”, analisa Delgado. Para ele, um projeto de desenvolvimento sócio-econômico estruturado no agronegócio é “uma forma patológica de crescimento econômico”. Em um cenário econômico marcado pela recessão e o desemprego, crescem desilução e violência. “A reforma agrária não é uma questão dos confins do Brasil, mas sim da própria nacionalidade. Ou resolvemos esse problema da população pobre ou teremos de arcar com as conseqüências”, opina Delgado.

Fatos do Brasil

manecerão presos pois respondem a mais dois processos. A pedido dos senadores João Capiberibe (PSB-AP), Geraldo Mesquita Júnior (PSB-AC) e Heloísa Helena (PT-AL), os trabalhadores

sem-terra devem ser convocados pelo Senado para prestar esclarecimentos em audiência pública sobre as circunstâncias de suas penas e a luta pela posse da terra que os levou a condenação pela Justiça paulista.

João Roberto Ripper

CÁLCULOS DISTORCIDOS

Luludi

O

Plano Nacional de Reforma Agrária, apresentado ao governo federal, propõe alterar o cálculo do valor das desapropriações de terras. A proposta, coordenada pelo professor Plínio de Arruda Sampaio e atualmente em discussão nos ministérios, visa colocar fim a práticas em que reforma agrária é sinômimo de negócio lucrativo para latifundiários. “Hoje, a reforma agrária premia o latifúndio e pune o contribuinte e a terra produtiva”, avalia Guilherme Delgado, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e integrante do grupo que elaborou o plano. Atualmente, nas desapropriações para fins de reforma agrária o governo paga valores acima dos praticados no mercado. “O atual critério valoriza a terra desapropriada”, alerta o economista. O motivo da distorção, segundo Delgado, está na correção monetária do pagamento, que varia conforme indicadores financeiros. Pela atual legislação, quando ocorre uma desapropriação, o proprietário recebe Títulos da Dívida Agrária (TDA) no valor avaliado da terra. Esses papéis, emitidos pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária, só podem ser descontados em um prazo de 20 anos. O problema começou em 1992, quando o então presidente Fernando Collor de Mello baixou decreto estabelecendo que o TDA seria corrigido pela Taxa Referencial (TR), mais 6% ao ano. A medida privilegia donos de terras que não cumprem função social, pois propicia um título garantido pelo governo, com correção acima da inflação e livre das flutuações do valor do imóvel no mercado de terras. “Entre 1994 e 2000, os TDAs valorizaram 59%, enquanto o valor real da terra caiu, em média, 60%”, contabiliza Delgado.

> Prisão em Tocantins

No dia 22, a Polícia Federal invadiu a sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) do Tocantins e prendeu nove sem-terra que ocupavam o local. Os acampados exigiam a substituição do superintendente do Incra José Cardoso. Os trabalhadores foram libertados dia 24. Para Maria da Graça Amorim, da Confederação Nacional de Trabalhadores em Agricultura (Contag), o problema da região é que “alguns fazendeiros permanecem em áreas já desapropriadas pelo governo”. Segundo ela, já ocorreram diversas mortes e prisões nos locais.

> Ameaça de despejo

Mística de abertura do Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio, no Pará

Trabalhadores rurais do Assentamento Rochedo, no município de Professor Jamil (GO), receberam uma ordem de despejo para ser cumprida até o dia 31. Apesar de há cinco anos o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ter reconhecido a posse do terreno, as 26 famílias legalmente assentadas podem ter de deixar suas propriedades. Essa é a segunda vez que os trabalhadores recebem ordem de despejo. A área, desapropriada e paga em juízo pelo governo federal, ainda está em disputa na Justiça com o antigo proprietário.


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De 30 de outubro a 5 de novembro de 2003

NACIONAL SEM-TETO

Prédios públicos podem servir de moradia Bruno Fiúza e Tatiana Merlino da Redação

Renato Stockler

Na Conferência Nacional das Cidades, presidente promete unificar políticas habitacionais, reivindicação das entidades

“É

preciso adotar medidas imediatas para atender as famílias que não têm onde morar ou estão vivendo em condições muito precárias nas nossas cidades”. A afirmação é do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que defendeu o uso de prédios públicos desocupados para ações emergenciais do programa de habitação do governo. A política habitacional em vigor – que oferece financiamento para famílias com renda superior a cinco salários mínimos – é um dos alvos da crítica do presidente pois 92% das famílias que precisam de moradia têm renda inferior a esse patamar. Lula esteve na abertura da 1ª Conferência Nacional das Cidades, onde declarou que pretende unificar as políticas habitacionais dos governos federal, estadual e municipal. De acordo com ele, a unificação é fundamental para que haja planejamento na construção de moradias populares. Para atender a essa necessidade, foi criada uma comissão que avaliará todo o patrimônio da União e definirá quais prédios desocupados do governo federal podem ser habitados. “Se descobrirmos prédios que possam virar moradia ficará mais fácil viabilizar as instalações, pois já haverá redes de luz, de esgoto, de água, tudo pronto. Se o prédio está lá, não custa nada adequá-lo para uma parte das pessoas que não têm onde morar”, disse. O presidente defende o levantamento patrimonial federal porque o governo não conhece o contingente de prédios públicos de todas as instituições federais. O pronunciamento do presidente vai na direção das reivindicações dos movimentos sociais em relação a política urbana. De acordo com

Movimentos de moradia pressionam para que o governo cumpra suas promessas, como unificação de políticas habitacionais e abertura de linhas de crédito

Luiz Gonzaga da Silva, Gegê, coordenador da Central de Movimentos Populares (CMP), “são reivindicações de mais de 20 anos. Mas os movimentos têm de ir para as ruas e fazer pressão para as promessas serem efetivadas”.

SEM MUDANÇAS João Albuquerque, integrante da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), também recebeu as declarações do presidente de forma positiva, mas acha que ainda não houve

mudanças: “O governo sinaliza, mas ações práticas não ocorrem”. Albuquerque acredita na boa vontade por parte do governo federal, que estaria “chamando a responsabilidade da moradia para sí mesmo”, mas lamenta o tratamento do governo de São Paulo: “É possível combater o problema da falta de moradia jogando mais gente na rua?”, questiona. Lula anunciou para o próximo mês a divulgação do programa especial de habitação popular, destinado a cooperativas, associações

CONSELHO DAS CIDADES

METALÚRGICOS

No início da noite do dia 28, os metalúrgicos das montadoras do ABC paulista, na Grande São Paulo, decidiram entrar em greve por melhores salários. A paralisação vai até a assembléia que discutirá eventual nova proposta do empresariado. A decisão foi tomada por cerca de 10 mil trabalhadores presentes. Em outubro, por 15 dias os metalúrgicos protestaram contra a proposta feita pelo sindicato patronal. A sugestão era de reajuste dos salários em 80% da inflação, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Recusaram a oferta e intensificaram as mobilizações. Os empresários foram obrigados a fazer nova proposta. Para quem ganha até R$ 4.200, ofereceram correção integral pelos índices de inflação do INPC (15,7%). A database da categoria em 2003 foi antecipada para outubro e, em 2004, para setembro. Já os trabalhadores com salário superior a R$ 4.200 (praticamente todos os mensalistas, que são aqueles funcionários do setor administrativo) receberiam aumento fixado em R$ 659,40. Na assembléia do dia 28, os trabalhadores da produção defenderam a paralisação por aumento real nos salários. No entanto, são os mensalistas que manifestaram maior insatisfação e promovem mobilização inédita, já que os funcionários administrativos nunca entraram em greve. Eles seguem orientação de José Lopez Feijó, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. “Isso sig-

Mauricio Lima/AFP

ABC inicia mobilização Luís Brasilino da Redação

e grupos de mutirões de famílias que ganham até três salários mínimos. Afirmou que o problema não é só fazer a casa, pois mesmo que a prestação seja de R$ 50, “tem pessoas sem condições de pagar, embora tenham o mesmo direito à moradia”. Lula garantiu empenho para que o Fundo Nacional de Moradia Popular seja aprovado. Para os movimentos de defesa da moradia, essa é uma luta importante: “Precisamos pressionar para que isso ocorra”, afirma Albuquerque. O projeto de lei tramita há doze anos no Congresso Nacional.

O ministro das cidades, Olívio Dutra, também presente à Conferência, disse que seriam necessários R$12 bilhões ao ano em habitação e saneamento, nas próximas duas décadas, para que toda a população tenha moradia e serviços de esgoto. O ministro afimou que o déficit ha-

bitacional do país é de 6,6 milhões de unidades novas, e há necessidade de recuperar 12 milhões de unidades para que as pessoas possam morar com dignidade. Participaram da Conferência 2.510 delegados, entre representantes dos governos municipal, estadual e federal, de movimentos sociais e populares, organizações não-governamentais, universidades, instituições de pesquisa, organizações trabalhistas e pessoas ligadas a setores de financiamento e de produção de desenvolvimento urbano. O documento com as sugestões da sociedade para uma política nacional de gestão urbana será entregue em um mês ao novo Conselho Nacional das Cidades, órgão consultivo formado por 70 representantes eleitos durante a Conferência. “O conselho é uma conquista, não uma vitória”, avalia Gegê.

JUSTIÇA

Magistrados defendem transparência e eleições Lígia Maria Lopes da Redação

Trabalhadores endurecem posição contra patrões e garantem benefícios

nifica que nós estamos num processo de luta”, disse o líder após a decisão.

CONQUISTAS Os metalúrgicos seguem os passos dos funcionários do Banco do Brasil (BB) e da Caixa Econômica Federal (CEF), que fecharam acordo nos dias 16 e 22, respectivamente. Os bancários protestaram contra a proposta das empresas, de aumento de 10% mais pagamento de abono de R$ 1.320, sem Participação nos Lucros e Resultados (PLR). Depois de greves de três dias

feita pelos funcionários do BB, e de oito dias na CEF, os bancos ofereceram reajuste de 12,6%, pagamento de R$ 1.500 de bônus até 10 dias após a assinatura do acordo e PLR de R$ 650 acrescidos de 80% da remuneração-base para os funcionários da Caixa, e R$ 325 mais 40% do salário para os do BB. Os petroleiros também estão na fase final da negociação. A Petrobras e suas subsidiárias, finalmente, elevaram a proposta para 15,5% de aumento. Até dia 30, serão realizadas assembléias para saber se o reajuste será aceito.

Defender a harmonia entre os poderes, agir na intenção de preservar o interesse público e atuar com transparência para implantar uma “nova Justiça para um novo tempo”. Esses são alguns pontos da Carta de Salvador, documento resultante do 28º Congresso Brasileiro de Magistrados, realizado em Salvador, de 22 a 25 de outubro. Um colegiado – formado por 56 entidades estaduais, de todas as esferas do Judiciário – defendeu eleições para cargos de presidência dos tribunais, inclusive os de primeira instância. Segundo os magistrados, a medida visa a democratização interna do Judiciário. Outras medidas que podem ser adotadas são o combate ao nepotismo e a publicação das decisões judiciais, incluindo as de ambito administrativo. No documento, os juízes reclamam da perda de garantias funcionais e previdenciárias originadas na reforma da Previdência. “É ato que afeta os princípios fundadores da República e compromete a presta-

ção de servições públicos à sociedade, algo que consideram como sendo de desmonte do Estado”. Na Carta de Salvador, eles prometem buscar “a preservação da ordem pública e o resgate do direito dos cidadãos à segurança, por meio de políticas voltadas a superação dos desequilíbrios sociais e da atuação coordenada entre os poderes”. Para eles, as medidas devem estar baseadas em princípios de direitos humanos, idéias que vão além da simples repressão penal. Eles se comprometem também em investir na formação ética e humana dos magistrados e incentivar a interação entre o juiz e o contexto social. Querem atuar de forma ativa, por meio de projetos e iniciativas que possibilitem a afirmação dos direitos coletivos e individuais. O documento também repudia a exploração do trabalho infantil e em condições degradantes, bem como a precarização dos direitos sociais. Os juízes dizem que vão defender a harmonia entre os três Poderes da União e agir de forma transparente, na intenção de preservar o interesse público.


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De 30 de outubro a 5 de novembro de 2003

NACIONAL CRIMES DO LATIFÚNDIO

Conferência debate reforma agrária Maria Luisa Mendonça de Belém (PA)

U

ma conferência sobre questões fundiárias na América Latina, dia 28, antecedeu o Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio em Belém (PA). O objetivo do debate foi preparar o contexto para a realização do tribunal, dias 29 e 30, e servir como espaço de formação para cerca de mil trabalhadores rurais de diversas regiões do Estado. No contexto do Tribunal, os trabalhadores montaram um grande acampamento no centro de Belém para denunciar a violência e a impunidade. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam que, de 1971 a 2002, foram assassinados 725 camponeses no Pará. Somente este ano ocorreram 33 assassinatos de trabalhadores rurais no Estado. De janeiro a agosto de 2003, a CPT registrou 60 mortes de camponeses no país. Segundo o professor Aluisio Leal, da Universidade Federal do Pará, a violência no campo é fruto não só da concentração da terra, mas do próprio processo colonial na América Latina. No Brasil, a primeira Lei de Terras, no século XIX, buscava manter a estrutura escravocrata e marcar a diferença de direitos entre proprietários e posseiros. Nos anos 60, a ditadura militar estabeleceu o modelo agrícola exportador, que se mantém até hoje, através da imposição do mercado internacional. A ditadura criou também a Polícia Militar, que passou a servir como braço institucional da pistolagem, não só no Brasil como em diversos países latino-americanos.

Marcello Casal Jr.

No Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio, em Belém (PA), conferência discute distribuição de terra no continente

Lavradores exigem indenização da Redação

Moradia em péssimas condições em fazenda denunciada por trabalho escravo

A Procuradoria do Trabalho do Pará ingressou, dia 22, com uma ação civil pública contra a Lima Araújo Agropecuária, com pedido de indenização de mais de R$ 22 milhões. A empresa é acusada de reincindir no uso de trabalho escravo nas fazendas Estrela de Alagoas, município de Piçarra, e Estrela de Maceió, município de Santana do Araguaia. O valor é recorde absoluto em pedidos de indenização por danos morais a lavradores escravizados. O pagamento de indenização em casos de trabalho escravo varia de R$ 30 mil a R$ 60 mil. A petição, protocolada na Vara do Trabalho de Marabá, deixa claro que a intenção é punir a empresa de forma exemplar. A Procuradoria diz que a Lima Araújo, além de descumprir a legislação trabalhista, demonstrou “total descaso” com a Justiça e “desprezo” pelos trabalhadores “de forma reiterada”. Entre 1998 e 2002, o Ministério do Trabalho fiscalizou quatro vezes as duas fazendas. Somadas as ações, foram encontrados cerca de 180 trabalhadores em condições consideradas de escravidão e degradantes, pelo menos cinco deles menores de idade. Segundo a fiscalização do Ministério do Trabalho,

eram submetidos a servidão por dívidas: trabalhavam para pagar por alimentação, transporte e ferramentas. Como agravantes, a Procuradoria cita a presença de vigilância armada, retenção de documentos, ameaças e omissão de primeiros-socorros. Na fiscalização da fazenda Estrela de Maceió, em fevereiro de 98, o relatório descreve que os peões “foram transportados em caminhão com carroceria tipo gaiola, destinado ao transporte de gado”. Em outubro de 2001, o Ministério do Trabalho encontrou na fazenda Estrela de Alagoas trabalhadores sob a vigilância de dois capatazes armados; um deles foi preso em flagrante por porte ilegal de arma. Havia peões alojados num curral para gado, dormindo em redes sob chão sujo de fezes de animais. O valor da indenização pedida - R$ 22.528 mil - equivale, segundo a Procuradoria, a 40% do valor estimado das fazendas e do gado encontrado nelas. De acordo com o texto da ação, o pedido “considera os malefícios causados com a reiterada e constante intermediação ilegal de mão-deobra, privando os trabalhadores de todas as garantias trabalhistas e previdenciárias”.

CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA “O modelo agrícola baseado na exportação nos transforma em países supridores, principalmente de matéria-prima e proteína animal”, afirma Leal. A expansão do cultivo da soja em grande escala na Amazônia faz parte da imposição desse modelo. Para ele, um projeto de reforma agrária e de democratização da terra iria contra essa lógica exportadora, chamada de modelo neocolonial.

Na Amazônia, as grandes hidroelétricas servem como infraestrutura de geração de energia, tanto para o armazenamento da soja quanto para a extração de minério. Ao mesmo tempo, 32% da população do Pará não têm acesso a energia elétrica. Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), existem mais de duas mil barragens no país, que inundaram 3,4 milhões de hecta-

res de terras férteis e deslocaram cerca de 1 milhão de pessoas. Os movimentos sociais expressaram sua preocupação com a continuidade da implementação de grandes barragens na Amazônia pelo governo Lula. Alguns projetos propostos pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso continuam na agenda do atual governo. Entre eles, o da barragem de Belo Monte, que seria construída em território

indígena no Xingu. A energia gerada na região serviria principalmente para subsidiar a exploração de minério por empresas privadas.

BANCO DOS RÉUS O Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio envolve vários segmentos organizados da sociedade, como Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Comissão Pastoral da Terra (CPT),

Movimento dos Pequenos Agricultores e Federação dos Trabalhadores na Agricultura. O tribunal é presidido pelo jurista Hélio Bicudo. Entre os jurados, a juíza federal Salete Maccalóz; o professor James Petras; membro da Fundação Internacional Lélio Basso (Itália), Dalmo Dallari; presidenta das Madres da Plaza de Mayo (Argentina), Hebe Bonafini.

ALCÂNTARA

Tatiana Merlino da Redação Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Leonid Koutchma, da Ucrânia, assinaram, dia 21, um convênio de cooperação técnica espacial no valor de 160 milhões de dólares. O acordo prevê a utilização da Base de Alcântara, no Maranhão, para lançar foguetes ucranianos portadores de satélites. Segundo o deputado estadual Domingos Dutra (PT-MA), o acordo comercial coloca em risco várias comunidades, em especial as remanescentes de quilombos que resistem no local. A região de Alcântara, considerada “porta de entrada” para a Amazônia brasileira, é formada por várias comunidades negras tradicionais, cujo direito à terra é reconhecido na Constituição brasileira. Brasil de Fato – Como está a situação das comunidades remanescentes de quilombos? Domingos Dutra – A situação dos quilombolas em Alcântara é igual à que ocorre no Brasil inteiro. Até agora o governo brasileiro não cumpriu o artigo 61 da Constituição federal, que determina que os remanescentes têm direito às terras que ocupam. O presidente Fernando Henrique Cardoso tentou regulamentar a

matéria. Editou um decreto imoral, considerando remanescentes de quilombos apenas as comunidades que ocupavam a terra de 5 de outubro de 1888 até 5 de outubro de 1988, ou seja, por 100 anos. BF – E o governo Lula? Dutra – O governo Lula também não conseguiu avançar, demorou três meses para indicar o presidente na Fundação Palmares. Se o governo Lula não demarcar as terras dos quilombos até o final do mandato, manterá uma dívida muito grande com a nação brasileira. No caso de Alcântara, os antropólogos concluíram um trabalho que considera o município um território étnico, que não se confunde com território físico. BF – Qual a situação da base militar? Dutra – A base é incompatível com os quilombos, porque as comunidades se inter-relacionam sob o ponto de vista da cultura, da religião, das trocas comerciais, dos laços de parentesco. Há um decreto do Executivo federal declarando de utilidade pública uma área de 62 mil hectares, que corresponde a 62% do território de Alcântara, para a construção de uma base. Esse decreto é de 1991, mas temos uma Constituição federal de 1988, que esta-

Renato Stockler

Base espacial ameaça remanescentes quilombolas Quem é Domingos Dutra é deputado estadual (PT/MA) e fundador do PT no Maranhão. Advogado, foi deputado estadual, federal e vice-prefeito de São Luís.

belece ser obrigação do Estado demarcar e identificar as terras remanescentes de quilombos. BF – E como fica o discurso de soberania, utilizado para defender a base de Alcântara? Dutra – Quando se fala de soberania em Brasília, está se falando em espaço aéreo e milhas. Em Alcântara, o que está em jogo são os negros, os remanescentes índios, o caboclo pobre. Não aceitamos mais relocar ninguém, porque retirar famílias de suas terras à beira do oceano, com fartura de peixes e recursos naturais, é genocídio. Se o governo tem sido incapaz de garantir os serviços públicos e não garante

emprego nas cidades, que ao menos deixe o povo viver. BF – Quais prejuízos a base causa para as comunidades? Dutra – A área da base é restrita. Ninguém entra, nem mesmo as autoridades do Estado. O governo tem tratado Alcântara como se lá não tivesse gente. Nos estudo de impacto ambiental, estudaram o macaco, a onça, mas não se lembraram dos cidadãos. Não respeitam as pessoas que vivem lá. Cito um exemplo: há um cemitério ancestral localizado em área de onde a comunidade foi deslocada. Hoje os quilombolas não podem cultuar seus mortos porque o cemitério fica dentro da base. BF – Os remanescentes de quilombos da região vivem na pobreza? Dutra – Atualmente vivem na pobreza. Mas Alcântara já teve

muita riqueza. Boa parte da elite portuguesa viveu lá. Cem anos antes da abolição, negros já eram donos de terras. Antes da instalação da base, ninguém pedia lugar para fazer roça, colocar o boi para pastar, pescar ou para pegar palha e cobrir suas casas, porque todo mundo é parente. BF – Quantas pessoas foram deslocadas de suas terras para a instalação da base? Dutra – Alcântara tem 22 mil habitantes, dos quais 70% moram no campo e 30%, nas cidades. Foram deslocadas 312 famílias, cerca de 1.500 pessoas, e cada família ficou com um lote de 15 hectares. Os jovens que casaram depois da relocação hoje não têm onde fazer sua casa, porque seus pais não podem dividir a terra com os filhos. A produção agrícola e a pesca enfraqueceram, pois o governo não incentivou novas tecnologias. Hoje há três coisas que não havia no passado: fome, sem-terra e sem-teto.


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SEGUNDO CADERNO ALCA

Aumenta a pressão por plebiscito oficial Jorge Pereira Filho da Redação

aumento do desemprego e ao enfraquecimento do mercado interno”. Para os legisladores, assinar o acordo significa aceitar uma inserção subordinada do Brasil no mercado mundial. Eles pedem, ainda, que sejam notificados da moção o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e o presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha (PT-SP). “Antes de assinar qualquer acordo, o governo tem de ouvir a população. A Alca vai ter repercussão profunda no país e pode acabar com nossa capacidade de fazer política pública”, avalia Guedes. O vereador considera o plebiscito necessário para esclarecer a sociedade brasileira sobre os impactos do acordo: “Precisamos pressionar o governo para fazer esse plebiscito”.

O

s vereadores de São Paulo apóiam a realização de um plebisicito oficial sobre a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Dia 22 de outurbro, os 53 representantes do poder legislativo paulistano assinaram, por unanimidade, uma moção de apoio a uma consulta onde o povo decida se o Brasil deve negociar o acordo. Vereadores de outras cidades paulistas como Americana, Poá e Santos também promoveram audiências públicas sobre a Alca. As manifestações fortalecem politicamente a reinvidicação de 13 milhões de cidadãos que participaram de um abaixo-assinado pedindo a saída do Brasil das negociações e a realização de um plebiscito oficial. “Somos a câmara mais importante do país. Houve unanimidade entre os vereadores, que representam cerca de 10 milhões de pessoas”, comenta o vereador Odilon Guedes (PT), autor do texto da moção. O texto diz que “a adesão à Alca contém princípios que levam ao

PERÍODO DECISIVO A posição dos vereadores paulistas esquenta ainda mais o debate sobre o tema. Tramita no Senado um projeto de lei do senador Roberto Saturnino (PT/RJ) propondo um plebiscito nacional imediatamente (veja reportagem nessa página). O texto sugere que, enquanto a socie-

ENTREVISTA

Brasil de Fato – O que o senhor acha da moção de apoio ao plebiscito, aprovada pelos vereadores de São Paulo? Roberto Saturnino – É uma manifestação política de peso, fortalece a causa. Ainda não forcei a votação no Congresso pois estou esperando o melhor momento. É preciso que ocorram manifestações para conseguirmos aprovar o projeto. BF – A senadora Ideli Salvatti (PT-SC) dá aos parlamentares a posição final sobre o tema. O senhor concorda? Saturnino – Esse não é um tema para ser decidido pelo Congresso ou pelos negociadores. Se o acordo da Alca for assinado, definirá os destinos da nação. Ficaremos em uma posição subalterna. O Brasil até poderia ter alguns ganhos específicos, em setores agrícolas, como exportação de suco de laranja. Em todos os outros setores, os EUA ganhariam. BF – Por que realizar agora esse plebiscito? Saturnino – Ora, a Alca está em discussão. Se não estivesse, não precisaríamos do plebiscito. Quem dá o prazo é a realidade. Já há prazos estabelecidos. Os Estados Unidos querem concluir o acordo e implatá-lo no início de 2005. BF – A senadora acredita que o plebiscito poderia impedir o Brasil de ter ganhos nas negociações. Saturnino – Essa hipótese eu não consigo enxergar. O Brasil teria vantagens pontuais. Mas qual o preço a pagar? Serviços financeiros, tecnologia de ponta, indústrias ficariam comprometidas. Seríamos importadores

Agência Estado

Senador ironiza: “vamos nos anexar aos EUA” “Se for para aceitar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), prefiro que o Brasil seja anexado aos Estados Unidos. Pelo menos teríamos representação parlamentar”, ironiza o senador Roberto Saturnino (PT/RJ). O parlamentar é o autor do projeto que propõe a realização de um plebiscito oficial e a suspensão das negociações enquanto a população não se manifestar.

Renato Stockler

Vereadores paulistanos pedem que Lula convoque consulta popular; parlamentares do PT se dividem sobre a questão

Quem é Em seu terceiro mandato como senador, o engenheiro Roberto Saturnino Braga (PTRJ) é o titular das Comissões de Assuntos Econômicos, Relações Exteriores e Fiscalização e Controle. Também é integrante do Conselho de Ética, onde relatou, em 2001, o caso da violação do painel do Senado. de ciência e tecnologia. Se for para aceitar isso, prefiro que se faça uma anexação. O Brasil se tornaria um Estado dos EUA. Pelo menos, seria representado em Washington e teríamos como mudar algo. BF – Os defensores da Alca utilizam a grande mídia para defender o acordo. O plebiscito poderia mudar tal dinâmica? Saturnino – Todo plebiscito é mobilizador. O debate público torna-se necessário, com espaço na televisão e no rádio. A grande mídia vai fazer uma ofensiva para manter a subalternidade do Brasil. Essa elite conservadora está associada ao grande capital. Todo esse processo de globalização, de abertura de mercado favoreceu esse grupo, que se enriqueceu ainda mais. O pior é que a elite considera que seus interesses são os interesses nacionais. (JPF)

Movimentos sociais querem plebiscito para dia 3 de outubro de 2004, quando serão realizadas as eleições municipais

dade brasileira não se manifestar, o país não negocie nenhum acordo. O projeto estabelece o uso de veículos de comunicação de massa, como televisão e rádio, para debater a questão com a população. “A Alca não deve ser decidida pelo Congresso ou pelos negociadores”, considera Saturnino. A Campanha Nacional contra a Alca, coordenada por movimentos sociais, pede a realização de um plebiscito em outubro de 2004. Segundo Sandra Quintela, socioeconomista do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), o debate é fundamental: “À medida em que negocia, você desenvolve um ambiente onde é difícil recuar, pois cria-se um fato consumado”. As negociações iriam assumindo uma série de compromissos que alterariam o funcionamento da máquina pública. Os movimentos sociais propõem o plebiscito no período das eleições municipais, para otimizar os recursos públicos e politizar o debate. A relatora do projeto de Roberto Saturnino, senadora Ideli Salvatti (PT/SC), não está convencida da necessidade de a população participar da discussão sobre o acordo,

neste momento. Segundo documento que o jornal Brasil de Fato obteve com exclusividade, Ideli vai apresentar um parecer contrário ao projeto e propor um projeto substitutivo de plebiscito após terminada a negociação da Alca. “A senadora entende que o Brasil não deve sair das negociações pois tem competência política para fazer uma negociação soberana”, revela Lizeu Mazzioni, coordenador político da senadora.

TUMULTO Antes de decidir, a senadora consultou o chefe da Casa Civil, José Dirceu. Segundo ela, Dirceu informou em nota técnica que a saída das negociações poderia “colocar em risco os interesses comerciais da nação, especialmente considerando a possibilidade de outros países (...) aderirem ao acordo”. Para Dirceu, a suspensão das negociações para a sociedade decidir o posicionamento do Brasil “poderia sinalizar aos investidores uma indisposição do país em manter relações globalizadas, prejudicando o ingresso de capitais para investimento direto”. “A senadora Ideli Salvatti está tumultuando o projeto do Saturni-

no”, afirma o presidente do Sindicato dos Advogados de São Paulo, Ricardo Gebrim, da coordenação da Campanha contra a Alca. “O plebiscito só tem sentido antes que o processo se conclua. Mas o parecer dela é apenas um parecer. Vamos nos mobilizar para a votação na Comissão Mista do Mercosul”, avalia Gebrim.

PROPOSTAS CONCRETAS O deputado Adão Preto (PT/RS) defende a consulta imediata: “Nada melhor do que o povo para decidir, com direito a espaço na televisão e na rádio”. O parlamentar é favorável à realização de duas consultas: uma para decidir se o Brasil deve participar das negociações; outra no fim do processo, caso a sociedade aceitasse a negociação. O deputado Dr. Rosinha (PT/PR) também apóia um plebiscito popular, mas é a favor de uma consulta que debata uma proposta fechada do Brasil. “Não adianta dizer sim ou não à Alca, temos de votar em cima de propostas concretas”, opina Rosinha, ressaltando que não é favorável a um modelo como o do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta).

ANÁLISE

“Socialismo de resultados” quer a adesão do Partido dos Trabalhadores José Arbex Jr. da Redação O Partido dos Trabalhadores quer enfrentar de forma “nãodogmática os grandes desafios do país”, afirmou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no discurso de abertura do 22º Congresso da Internacional Socialista (IS), dia 27, em São Paulo. Lula atacou o “sectarismo” da esquerda e defendeu o respeito à diferença. “Nas derrotas do socialismo, sempre a desunião ocupou um lugar importante. Nas vitórias, a unidade foi fundamental”, afirmou diante de 500 pessoas, incluindo 50 chefes de governo e de Estado e representantes de 150 partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas. Não há como discordar da avaliação genérica de que o sectarismo e a falta de unidade das esquerdas sempre contribuíram para as derrotas sofridas pelos trabalhadores. Mas isso não significa que qualquer união seja desejável. E impõe-se saber a que “vitórias do socialismo” Lula se refere, ainda mais quando se trata de uma con-

ferência mundial que reúne alguns dos principais responsáveis pela implantação do neoliberalismo na Europa, como é o caso dos partidos socialistas da França (François Mitterrand e Lionel Jospin), Espanha (Felipe González) e Portugal (Mário Soares).

PALAVREADO OCO Em nome de uma suposta guerra ao sectarismo e às visões ultrapassadas pela história, especialmente após a queda do Muro de Berlim (9 de novembro de 1989), a IS adotou a perspectiva neoliberal, com alguns resquícios envergonhados de preocupações sociais. O “pragmatismo político” – uma espécie de “socialismo de resultados” – tornou-se o norte da nova internacional, totalmente divorciada da organização socialista criada em 14 de julho de 1889, em Paris, durante as celebrações do primeiro centenário da Queda da Bastilha. Os “pragmáticos” na nova IS abandonaram os principais postulados do marxismo, incluindo a necessidade de lutar pela unidade mundial dos trabalhadores no qua-

dro da luta de classes, com o objetivo de conquistar o poder político e promover a mudança radical e revolucionária do mundo e da vida. Da IS de 1889 – aquela que instituiu o 1º de maio como Dia do Trabalhador e dirigiu grandes jornadas internacionais de luta – mal resta um palavreado oco, sem qualquer substância de esquerda. Não por acaso, os “novos socialistas” resolveram fazer o seu congresso no Brasil. O seu objetivo é cooptar organicamente o PT, que, segundo o seu presidente, José Genoíno, já foi convidado e estuda a proposta. Atualmente, o Partido Democrático Trabalhista de Leonel Brizola é o único integrante brasileiro da IS. A eventual adesão do PT à IS, caso ocorra, marcará uma nova etapa na história do partido. Com a voz ampliada pelo poder da organização internacional, o PT ganharia uma nova relevância no âmbito mundial, especialmente na qualidade de “bombeiro” e apaziguador dos movimentos revolucionários na América Latina. Mas não é essa a essência do “socialismo de resultados”?


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AMÉRICA LATINA AQÜÍFERO

Militarização: o alvo é a água doce três países, é a reserva de água pura mais importante do mundo, capaz de prover “indefinidamente cerca de 360 milhões de pessoas”. Além disso, a região tem uma enorme reserva de água doce nos glaciais. Considerando-se o valor estratégico (menos de 3% da água do mundo é doce), não seria de estranhar que agora seja visto como um recurso de alto valor comercial, como o petróleo.

Sob pretexto de combater o terrorismo, os Estados Unidos intensificam sua presença militar na Tríplice Froteira, área rica em recursos naturais Stella Calloni de Buenos Aires (Argentina)

OFENSIVA

O

s Estados Unidos pressionam para militarizar a região sul-americana e romper o eixo Brasil-Argentina com vistas a uma nova agenda geopolítica em que está em jogo a maior reserva de água doce do mundo, o Sistema Acqüífero Guarani. A região resiste, apesar da administração de George W. Bush tentar impor sua visão, como ficou claro por ocasião do curso sobre terrorismo que Washington negociou com a polícia argentina, passando por cima do Ministério das Relações Exteriores. O jornalista Horacio Verbitsky revelou, no diário Página 12, um acordo da Gendarmeria (polícia de fronteiras da Argentina) com os EUA para um “Curso sobre Terrorismo”, no qual se ensina que a Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai) é um “assentamento” de terroristas. A chancelaria argentina detectou o plano e ordenou que o curso fosse descontinuado. Recentemente, o Paraguai se recusou a assinar um acordo que desse imunidade a militares e funcionários estadunidenses em missão em território paraguaio, concessão que Washington tampouco conseguiu arrancar da Argentina. Em julho, os EUA divulgaram a lista dos 35 países a que suspenderam ajuda militar este ano, por terem negado imunidade a seus soldados.

MERCOSUL

cícios multinacionais em território brasileiro. Lembrou ainda que a Argentina decidiu negar imunidade total – oferecia imunidade parcial, apenas no âmbito dos exercícios – a militares estadunidenses, o que causou a suspensão das manobras militares Águia III, previstas para

O jornal paraguaio ABC Color considerou que a posição do presidente do Paraguai, Nicanor Duarte, foi um passo importante no caminho da integração do Mercosul, recordando que o Brasil reiterou sua negativa a que se realizem exer-

a região argentina. Outro tema que une Argentina, Brasil e Paraguai é o das reservas do Acqüífero Guarani. De 12 a 15 de novembro, será realizado o Forum Social da Água do Acqüífero Guarani, em São Paulo, onde se discutirá esse tema-chave da geoestratégia

EQUADOR

de defesa dos recursos da região. O assunto já é uma questão de Estado colocada pelos presidentes argentino, Nestor Kirchner, e brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva. Pesquisas indicam que o aqüífero, que abrange 1 milhão e 200 mil quilômetros do subsolo dos

Esse fator, entre outras coisas, transformou a região em ponto de mira dos interesses estrangeiros. A insistência estadunidense em sinalizar a Tríplice Fronteira como um “ninho de terrorismo”, sem qualquer prova, seria parte dessa ofensiva pela apropriação dos recursos. A Declaração sobre a Água e a Pobreza, realizada recentemente por Kirchner e Lula, na cidade argentina de Santa Cruz, e a formação da chamada Rede Parlamentar da América Latina pela soberania da água são passos importantes para a defesa desses recursos, à medida em que aumenta a demanda de água potável e a contaminação dos rios em países altamente industrializados. Assim, é preocupante para a América Latina a reativação militar dos EUA na região e a estratégia armada por Bush para o Cone Sul, em relação à segurança e à atuação de forças armadas em conflitos internos, com o objetivo de militarizar a área. As pressões dos EUA se renovam e missões do Pentágono tentam por todos os meios envolver os exércitos da região em uma força multilateral que sirva – entre outras coisas – para conter os conflitos sociais. Dia 25 de março, na reunião de militares dos países do Cone Sul, convocada pelos Estados Unidos em Miami, tentou-se criar essa força multilateral, que seria em apoio ao Plano Colômbia, claramente um esquema de contra-insurgência. Seria um novo Plano Condor – coordenação repressiva e assassina das ditaduras do Cone Sul, nos anos 70, conforme denúncia de Martín Almada, descobridor dos arquivos do terror no Paraguai. (La Jornada)

HAITI

Anamárcia Vainsencher da Redação “Estamos convocando a unidade nacional, a solidariedade de todos os setores sociais para enfrentar as dificuldades por que passa o Equador. A economia vai mal, a corrupção campeia”, afirma GilbertoTalahoa, dirigente da Confederação de Nacionalidades Índigenas do Equador (Conaie), que, desde 1990, representa os povos e as nacionalidades índigenas do país, um contingente de 4,5 milhões de pessoas. Enquanto o governo Lucio Gutierrez quer privatizar terras, água e recursos naturais, a Conaie – um dos movimentos sociais mais ativos da sociedade civil, cujas propostas se contrapõem à política globalizante dos dirigentes equatorianos – defende as empresas estatais de petróleo, energia elétrica, telefonia, e reivindica que serviços básicos como saúde e educação atendam às necessidades do povo equatoriano.

ENCRUZILHADA Coluna vertebral do Movimento Plurinacional Pachakutik (PK), a Conaie foi um dos integrantes da ampla aliança que possibilitou a eleição de Gutierrez, em 2002. E que também abriu espaço para que representantes indígenas fossem eleitos prefeitos, conselheiros,

Renato Stockler

Indígenas pedem avanços sociais Dois séculos de pobreza

Gilberto Talahoa

deputados nacionais e provinciais. “Trabalhadores com capacidade, inteligência, ética e transparência nas suas ações”, destaca Talahoa. Mas, menos de um ano depois do início da era Gutierrez, o movimento indígena enfrenta momentos difíceis, segundo o dirigente da Conaie. A começar pela ruptura da aliança com o o governo. “Gutierrez tenta, por todos os meios, dividir o movimento indígena, fracionar as organizações usando estratégias clientelistas como a oferta de car-

gos, distribuição de víveres e brinquedos nas comunidades. Uma política suja”, diz Talahoa. Ele acrescenta que o presidente está, inclusive, usando as forças armadas, que “deveriam cuidar da soberania nacional e dos recursos do povo”. Face a tudo isso, a Conaie se declarou em assembléia permanente, disseminando informações sobre os atos de Lucio Gutierrez, que “obedece as políticas econômicas liberais ditadas pelo Fundo Monetário Internacional, como privatizações, reformas de leis e prestação de serviços, aumentos de impostos e da gasolina”. De acordo com Gilberto Talahoa, 80% dos equatorianos concordam com a ruptura com o governo Gutierrez; 60% acusam o governo de traição, por não ter efetivado as mudanças prometidas; 65% se dizem dispostos a ajudar nas mobilizações. Às vezes, admite o dirigente, os governos caem e o povo não está preparado para assumir o poder. Ele ressalta, porém, que a meta da Conaie não é derrubar o governo, mas fazer propostas alternativas, inclusive para políticas de Estado, para o Congresso, para a Justiça.

Adailma Mendes de Porto-Príncipe (Haiti) Às vésperas de completar dois séculos da independência, dia 1° de janeiro de 2004, o Haiti – segundo país americano a se tornar independente, após os Estados Unidos – continua em extrema pobreza, sem um Estado verdadeiramente democrático. Um relatório da Organização dos Estados Americanos/Comunidade do Caribe (OEA/Caricom), de março, aponta que o governo haitiano continua incapaz de pôr fim à impunidade e de garantir a segurança dos cidadãos. Desde o final de agosto, o enviado especial dos Estados Unidos, embaixador Terence Todman, tem consultado o governo haitiano, partidos políticos e sociedade civil para encontrar uma forma de viabilizar as eleições locais e para o Legislativo ainda este ano.

SEM CREDIBILIDADE O economista Camille Chalmers, secretário executivo da Plataforma Para Advogar o Desenvolvimento Alternativo (Papda) – organização antineoliberal –, explica: “O que existe hoje é o chefe de Estado JeanBertrand Aristide e a Convergência Democrática (que reúne partidos de oposição), dois pólos sem credibilidade, que querem aplicar a política estadunidense e a do FMI”.

Aristide, eleito presidente há três anos, representava uma esperança de recomeço para um país onde 3,8 milhões de habitantes passam fome, de acordo com a Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO/ONU). O chefe de Estado se pronunciou contra a intervenção dos EUA no Iraque, não aplicou o acordo de privatização da água, portos e aeroportos, mas não tem um projeto popular claro. Tanto que mandou reprimir um congresso camponês realizado em fevereiro. Em 1990, houve eleições presidenciais vencidas por Aristide – derrubado por um golpe de Estado em 1991 e reposto em 1994, por pressão do EUA e da ONU. Em novembro de 2000, Aristide foi eleito pela terceira vez, com menos de 50% de participação do povo na votação, apesar dos 60% estimados pelo Conselho Eleitoral Provisório, o que tornou as eleições presidenciais uma grande farsa. Para Chalmers, “o Estado instituído a partir de 1994 foi inimigo dos elementos básicos da cultura nacional. Um Estado que funciona em francês, quando o povo se comunica em crioulo. Um Estado que apóia a economia de exportação, quando o povo tem uma economia de subsistência e produção de alimentos”. (Adital)


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INTERNACIONAL ENTREVISTA

Sociólogo chama Lula de Pôncio Pilatos é preciso esperar etc. Então, não só nos Estados Unidos, no Peru, e em outras partes do mundo, Lula segue tendo a imagem de pessoa progressista, especialmente pelas críticas em Cancún (na reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio). E não analisam a fundo que a campanha de Cancún não era uma oposição completa, e sim uma crítica pontual a algumas medidas dos Estados Unidos, que não queriam entregar nada.

O

sociólogo estadunidense James Petras, professor da Universidade de Binghamton, em Nova York, é um dos mais contundentes críticos do imperialismo e do neoliberalismo. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Petras, que veio ao Brasil para participar do Tribunal Internacional do Latifúndio, em Belém do Pará, afirma que a falta de iniciativa do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, no que se refere à reforma agrária, está estimulando a violência dos latifundiários. Petras afirma também que Lula pratica um “liberalismo Taliban”, na defesa dos interesses dos agroexportadores. Brasil de Fato - Qual a importância da iniciativa de um tribunal informal para julgar a violência no campo? James Petras - Em todas as partes do mundo, há uma grande preocupação não só pela falta de avanço do governo Lula, mas também pelo retrocesso. As Nações Unidas enviaram uma representante (Asma Jahangir, relatora especial para execuções sumárias) que avaliou a situação dos direitos humanos no Brasil como muito crítica. Todo o mundo está perguntando por que a situação no Brasil está se deteriorando, e não melhorando. Creio que os latifundiários estão estimulados pela política neoliberal. A falta de iniciativa na reforma agrária está incentivando a agressão. Creio que Lula os está apoiando como Pôncio Pilatos. Isso seria como sinal verde para as forças mais retrógradas atuar com impunidade. Não temos um líder que faça a reforma agrária e ponha os latifundiários e os corruptos na cadeia. Lula não apóia os assassinatos no campo, mas os fomenta pelo liberalismo Taliban que está promovendo. BF – O que o senhor quer dizer com “liberalismo Taliban”? Petras - Bem, é um governo que tem defendido a privatização e aumentado a desregulamentação da economia. Tudo isso é em favor dos bancos internacionais, do comércio internacional que entra aqui ocupando mercados. Em vez do “Fome Zero”, temos o “Emprego Zero”... E creio que essa é uma política de mão-deobra barata. Tudo isso influi no aplauso do grande capital no exterior. Creio que isso também estimula a ofensiva das forças direitistas. BF - Como o senhor avalia a possibilidade de mais um acordo brasileiro com o Fundo Monetário Internacional? Petras - Acho natural. Como Lula cumpre toda a austeridade, cortes sociais, aumento do desemprego, o FMI está disposto a fazer um outro acordo e acredito que Lula também. O grande problema – e isso é interessante – é que, apesar de todas as concessões que Lula tem feito, o nível de investimentos aqui é muito pobre. Porque, na realidade, não se irá investir no Brasil enquanto o poder aquisitivo estiver caindo. BF – E as negociações sobre a Área de Livre Comércio das Américas? Petras – A verdadeira aliança de Lula é com os agroexportadores. É preciso derrubar as barreiras protecionistas dos Estados Unidos. O grande tema desse conflito é que Bush quer proteger os setores agrícolas não competitivos porque são setores que controlam o poder eleitoral. Bush necessita do apoio desses agricultores atrasados para

se reeleger. Por isso, não irá permitir a entrada de suco de laranja, por exemplo, de forma desimpedida, porque quer ganhar votos na Flórida, onde a oposição é forte. BF – O projeto estadunidense envolve a militarização da América Latina? Petras - Sim, creio que, neste caso, o projeto dos EUA é muito extremista. Mas quero assinalar que Washington ficou muito feliz quando o ministro do Exterior brasileiro, Celso Amorim, tomou a iniciativa de formar o Grupo de Amigos da Venezuela, com líderes da Espanha, Portugal, México, Chile, Estados Unidos e Brasil. Todos são contra Lula. Por isso, quando Lula disse que queria ser intermediário na Venezuela, apoiou de fato a oposição, apoiou o referendo, por exemplo. Adotou uma posição pró-ianque. De fato, o Brasil desaprovou a intervenção dos EUA no Iraque, mas é o mínimo que se pode esperar porque, se aprovasse a invasão ao Iraque, quem poderia dizer algo contra uma invasão amazônica, por exemplo? BF - Como as forças sociais estadunidenses estão vendo a posição do Brasil quanto à Alca? Petras - Eu diria que há um questionamento da política do Brasil desde o momento em que Lula esteve em Davos. Foi o primeiro golpe para muitas pessoas: organizações não-governamentais, grupos eclesiásticos... Depois, houve outro questionamento sobre a falta de uma política

Quem é James Petras é sociológo e professor de ética política na Universidade de Binghamton em Nova Iorque. Pequisador reconhecido em todo o mundo, publicou diversos ensaios sobre economia política, globalização e direitos humanos, entre eles Brasil e Alca e Política Antiimperialista - Formação de Classe e Formação Sócio-política. Seu último livro América Latina, A Esquerda Devolve o Golpe está disponível na Internet (www.rebelion.org/petras.htm). Colaborador do linguísta e crítico da politica imperialista estadunidense, Noam Choamsky, publicou, junto com o colega, um livro sobre Clinton, em que tratou da política externa de Washington e seu projeto para aumentar a hegemonia continental. Petras também é membro do Tribunal Bertrand Russel de Direitos Humanos e idealizador da revista Ajoblanco, publicação do Centro Superior de Investigação Cientifícas (CSCI), sediado em Madri. econômica progressista. Mas, por outro lado, eu diria que, por falta de informação, Lula tem ainda uma imagem de presidente metalúrgico, sindicalista, popular, porque a grande imprensa segue aplaudindo Lula como um esquerdista pragmático, um homem realista. Além do mais, muitas pessoas são influenciadas por alguns assessores de Lula, que provêm da esquerda e da igreja popular, que dizem que

BF – Qual é a situação da economia estadunidense? Petras - Aí há duas coisas que devemos entender. O imperialismo dos EUA e o imperialismo econômico não estão em crise. Fala-se da China, mas 50% das exportações da China são por parte das empresas estadunidenses. Agora, o imperialismo está tirando dinheiro dos Estados Unidos para financiar guerra, ocupação, crédito, subvenções para os exportadores, o que tem custo interno: baixam os salários, torna-se precária a situação do emprego. São 50 milhões sem nenhuma cobertura de saúde. Há duas realidades. Pessoas que falam de crise estão se referindo à economia doméstica, com déficits, desemprego etc. Mas não se deve confundir essa crise da economia local com o crescimento do poder imperialista. E creio que os comentaristas superficiais, como Antoni Negri, que falam do fim do imperialismo, estão totalmente equivocados. O imperialismo segue mais forte do que nunca. Está embebido no comércio, está promovendo invasões. Não creio que haja desaparecimento do Estado nacional estadunidense. Ele está fortalecido. E o mesmo acontece no outro lado. O povo no Brasil está lutando para fortalecer o Estado-nação, para proteger e estimular o mercado interno e fazer a reforma agrária. Não há uma entidade supranacional que funcione, porque a multinacional tem uma matriz. Em primeiro, os Estados Unidos; em segundo, a Europa; e em menor grau, o Japão. E essas multinacionais tomam a decisão a partir dos interesses da matriz.

Cerca de 40 mil pessoas participaram, dia 24, em Washington (EUA), dos protestos contra a ocupação estadunidense no Iraque. Convocada por duas das maiores organizações pacifistas dos Estados Unidos, a UFPJ (do inglês União pela Paz e Justiça) e a Answer (do inglês Aja Agora para Estancar a Guerra e pelo Fim do Racismo), a manifestação reuniu ativistas de todo o país.

BF - Como o senhor avalia a situação da Organização das Nações Unidas? Há uma falência total diante do imperialismo? Petras - Existem duas coisas. O voto contra Israel mostra que 99% são contra os Estados Unidos, mas os poderes imperialistas, como é o caso da Europa, não podem se opor ao projeto do imperialismo. Os europeus estão contrários ao controle absoluto dos benefícios do imperialismo por parte dos Estados Unidos. Os europeus querem compartilhar o petróleo, querem repartir os contratos de reconstrução no Iraque. Quando os EUA não aceitam a co-participação, os outros imperialistas se negam a financiar os benefícios para os Estados Unidos. Isso provoca um desgaste nos EUA, porque o ponto débil de todo o projeto imperialista é o custo humano em soldados. Todos os períodos de grande auge antiimperialista nos Estados Unidos aconteceram precisamente em situações em que eles sofreram muitas baixas por um período prolongado... Coréia, Vietnã e, agora, Iraque. O desgaste de Bush é bastante forte. BF – De que forma esse desgaste pode influenciar as eleições no ano que vem? Petras - Creio que dependerá muito da convergência de três fatores. Uma é a trajetória de baixas: se continuarem com 25 ataques diários, três mortes por dia, isso vai desgastar o governo. O segundo é o custo da guerra, que segue aumentando. O que implica mais cortes sociais; as pessoas estão se perguntando por que estão construindo projetos lá fora e eliminando projetos em casa. O terceiro é que a volatilidade do mercado interno está relacionada com o grande déficit externo. Os EUA dependem do financiamento do déficit pelos países asiáticos – chineses e japoneses – que reciclam os déficits comerciais nos Estados Unidos, comprando bônus do Tesouro estadunidense. Se os EUA começarem a restringir as exportações da China, os chineses terão menos interesse em reciclar a economia estadunidense, poderão retirar seus fundos e isso criaria uma crise tremenda.

Fotos: CMI

Paulo Pereira Lima da Redação (SP)

Arquivo JST

James Petras vê liberalismo “talibã” na defesa dos agroexportadores e prevê aumento do desgaste de Bush


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INTERNACIONAL ÁFRICA

Suazilândia elege deputados do rei Eleições legislativas na última monarquia da África são vistas como anti-democráticas pela comunidade internacional Lobão João e Marilene Felinto Especial para o Brasil de Fato, na Suazilândia e da Redação

PAÍS FICA DENTRO DE TERRITÓRIO SUL-AFRICANO Localização: África Austral (do Sul) Nacionalidade: suazi Capital: Mbabane Línguas: inglês, suazi Divisão política: quatro regiões Regime político: monarquia parlamentarista População: 948 mil habitantes Moeda: lilangeni Religiões: protestante, cristã africana; animista Hora local: + 5

Ú

MOÇAMBIQUE

ZIMBÁBUE BOTSUANA

NAMÍBIA

SUAZILÂNDIA

Á F R I C A

D O

S U L LESOTO

Mbabane

OCEANO ATLÂNTICO

OCEANO ÍNDICO

mais conhecido dissidente da família real suazi. Ele chegou a ocupar o posto de primeiro-ministro entre 1989 e 1993. O líder oposionista disse ao

contra o que considera a falta de democracia no país. Afirmou também que seu partido, banido em 1973, “nem por isso deixou de ter milhares de membros e apoiantes que têm o desejo de ver mudanças no governo da elite” que, desde séculos tem o poder no país Na África do Sul, o partido opo-

SUAZILÂNDIA

Brasil de Fato que decidiu se candidatar a deputado, apesar da falta de transparência do processo eleitoral, por se tratar da única forma de elevar sua “voz de contestação”

Alexander Joe/ France Press

nica monarquia da África, um pequeno país incrustrado no território da África do Sul, a Suazilândia realizou eleições parlamentares no dia 15 de setembro. O pleito, cujo resultado final saiu na semana passada, elegeu 55 deputados mais 10, estes últimos escolhidos pessoalmente pelo rei Mswati III. Cabe também ao rei escolher o primeiro-ministro, o qual, por sua vez, selecionará os ministros de governo. Mas as eleições têm sido vistas como inúteis pela oposição interna e por diversos críticos de outros países africanos. No regime suazi, o poder é centralizado pelo rei. Partidos políticos não são permitidos, não há separação entre poderes nem liberdade de associação ou imprensa livre. A única função do parlamento é aconselhar o rei Mswati, que está no poder desde 1986. Em diversos postos de votação, tanto em Mbabane, a capital do reino, quanto em Manzine e Siteki, segunda e terceira cidades do país, a reportagem do Brasil de Fato notou a baixa freqüência de eleitores, num universo total de 228 mil. No entanto, não faltavam policiais “de olho” no processo eleitoral. Alguns eleitores com quem a reportagem conversou indicaram a falta de transparência como o principal motivo do fracasso das eleições. Num posto de votação numa região chamada Nhlembene Region, a cerca de 90 quilômetros de Mbabane, a reportagem encontrou Obede Ndhlamini, líder oposicionista do partido clandestino Nguane National Liberation Congress (NNLC), o mais antigo da Suazilândia, criado em 1963. Ndhlamini, 67 anos, é o

Cidadão suazi protesta em Mbabane, capital da Suazilândia, contra inconstitucionalidade do regime

sicionista da Aliança Democrática (DA) reagiu às eleições legislativas suazis tecendo duras críticas ao regime monárquico que chamou de absolutista. Segundo a agência de notícias Panapress, o porta-voz da DA, Graham McIntosh, disse que a realização de eleições é um passo muito pequeno em direção à democracia. “As eleições tiveram lugar num país que é governado por um líder tradicional hereditário, que não permite a formação de partidos políticos e demite os seus juízes por tomarem decisões com as quais ele está em desacordo”, afirmou McIntosh. O sul-africano observou ainda que a Suazilândia, como membro da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) e da União Africana (UA), tem a obrigação de respeitar os direitos humanos e democráticos.

MONARQUIA REAGE A autoridade suazi tem respondido com indignação às críticas dos opositores da comunidade internacional. Jabulane Nxumalo, vice-prefeito do município de Mbabane, disse ao Brasil de Fato que o povo suazi ao votar nestas eleições está mostrando ao mundo que o sistema em vigor no país serve a seus interesses. Ele afirmou que a África do Sul quer introduzir no “pacífico reino” tudo que o que é vício estrangeiro. Para ele os regimes políticos que se dizem dos mais democráticos do mundo, como os Estados Unidos, “fazem das coisas mais horríveis no planeta terra”. “George Bush consultou os americanos antes de invadir o Iraque?, questionou Nxumalo. E completou: “Como é que essa gente tem o direito de dar aulas aos suazis sobre como devem escolher o seu destino? Por favor deixem o povo suazi em paz.”

Reinados foram destruídos pelo colonizador Até o século 19, a nação suazi era um grande reino, que ocupava área três vezes maior que a da atual Suazilândia. Como outros antigos reinos da África, foi destruído e desmembrado pelo invasor branco vindo da Europa. No caso, os ingleses e holandeses. A origem do povo suazi data do século 16, resultado de um grupo que, sob a hegemonia do clã Dlamini, se separou do conjunto de bantos que então migrava para o

sul, ao longo da costa de Moçambique. Sempre perseguidos pelos zulus, os suazis deslocaram-se para o norte. O rei Sobhuza I morreu em 1836. Acredita-se que seu sucessor, Mswati (ou Mswasi) II, deu seu próprio nome ao povo. A sociedade, patriarcal e formada por clãs, admite a poligamia. O atual rei, Mswati III, é filho de Sobhuza II, que morreu em 1982. Mswati é acusado de autoritarismo e corrupção. A Suazilândia é um

dos países de maior desigualdade social do mundo, ao lado de Brasil, República Centro-Africana, Lesoto e outros países muito pobres. A economia se baseia na agropecuária, mas o país não é auto-suficiente na produção de alimento. A cana-de-açúcar é o principal produto de exportação. Existem ainda importantes reservas de carvão. O reino enfrenta sérios problemas de saúde pública: cerca de 40% da população de quase 1 milhão de habitantes

EVENTO COMEMORA INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA

8h às 10h – Poesia e ficção: marcas da diferença •Calane da Silva – O sangue da poesia no negro da terra •Elisalva Madruga – O ontem e o hoje da poesia angolana •Selma Pantoja – Cotidiano e sociedade mestiça: as Elmiras, as Ximinhas e as Ngas Muturis na Angola dos séculos 18 e 19 •Simone Caputo – Rostos, gestos, falas, olhares de mulher: o texto literário de autoria feminina em Cabo Verde

PROGRAMAÇÃO Data: 1º de novembro de 2003 Local: Biblioteca Municipal Mário de Andrade Rua da Consolação, 94, Centro, São Paulo

14h45 às 15h15 – Apresentação cultural: Grupo CICOPOA – Grupo Internacional de Contos Populares de Angola ” 15h30 às 15h45 – Projeção de vídeo sobre Angola 15h45 às 18h15 – Debate “Angola – desafios para o futuro”

ÚLTIMO DIA DAS LITERATURAS AFRICANAS

QUINTA – FEIRA – 30 DE OUTUBRO

O FÓRUM ÁFRICA realiza em São Paulo no dia 1º de novembro o evento “Conheça um pais africano - Angola”, em comemoração ao 28º aniversário da proclamação da independência da República de Angola, a ser celebrado dia 11 de novembro.

ATIVIDADES 14h30 às 14h45h – Abertura do evento

Vista de Luanda, capital de Angola CONVIDADOS •Ladislau Dowbor, PUC São Paulo •Kabengele Munanga, USP São Paulo e presidente de honra do Fórum África •Carlos Serrano, USP São Paulo e presidente do Centro de Estudos Africanos da USP •Guilherme Costa, empresário angolano no Brasil •José Castilho Marques Neto, dir. Bi-

por democracia no país. As primeiras eleições legislativas aconteceram em 1993. Em 1996, houve conflitos na greve geral pelo fim da monarquia. Mswati III instalou então um Comitê de Revisão Constitucional (CRC). Em janeiro de 2001 a oposição rejeitou o projeto de reformas elaborado pelo CRC. Em maio, o governo proíbe a circulação de duas publicações independentes. A decisão é considerada ilegal pela Alta Corte de Justiça, que a anula.

II ENCONTRO DE PROFESSORES DE LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Comboni Press

EVENTO Conheça um país africano - Angola

estão contaminados pelo vírus HIV, que causa Aids, a maioria mulheres. A epidemia deverá baixar a expectativa de vida no país de 60 anos para 38 anos até 2005. Diante disso, o monarca impôs leis de restrição de sexo a todas as mulheres virgens e menores de idade, até 2006. A Constituição de 1978 atribuiu os poderes executivo e legislativo ao rei, que é o chefe de Estado. Na década de 1990, o fim do apartheid na África do Sul impulsionou o anseio

blioteca Mário Andrade •João Melo, escritor e deputado angolano •Manuel Rui Monteiro, escritor angolano Transmissão em vídeo conferência para todo o Brasil, das 15h45 às 17h45. 18h30 às 19h30 – Noite de autógrafos

10h15 às 12h15 – Literatura, teoria e crítica: o cânone em discussão •Filimone Meigos – Sobre a produção, disseminação e legitimação da arte: riscos transnacionais e a estruturação do campo artístico moçambicano •Francisco Soares – Teoria da Literatura e Literaturas Africanas •Inocência Mata – O crítico como escritor - o exercício da crítica das literaturas africanas de língua portuguesa Laura Padilha – Africanas vozes em chama ALMOÇO

14h às 15h30 – Comunicações simultâneas 16h às18h – Mesa com escritores •Calane da Silva ( Moçambique) •Luís Kandjimbo ( Angola) •Fragata de Moraes (Angola) •Uanhenga Xitu ( Angola) 18h:00 – Sessão de autógrafos 13h30 às 18h – Mini cursos 18h30 – Encerramento Local: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo Endereço: Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 - Prédio de Letras (Centro de Estudos Portugueses) Tel.: 3091-3751 ou 3819-9400


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NACIONAL MEIO AMBIENTE

Ambientalistas fecham cerco ao governo Luís Brasilino da Redação

Renato Stockler

Documento assinado por mais de 500 organizações não-governamentais cobra promessas de campanha ção definitiva. “Os integrantes do núcleo do poder ficaram surpresos com a forte reação da sociedade a essas medidas. Eles não imaginavam tamanha repercussão”, avalia. O ativista ambiental conta com o apoio do PT para virar esse quadro uma vez que, historicamente, o partido sempre foi contra a produção dos transgênicos. “Espero que eles acordem”, conclui.

O

As organizações ambientalistas começaram a aumentar a pressão contra o governo em setembro, quando o vice-presidente José Alencar assinou a Medida Provisória 131, aprovando o plantio de sementes transgênicas. A atitude causou mal-estar na bancada petista ligada ao meio ambiente, principalmente no deputado federal Fernando Gabeira (RJ) – que decidiu sair do partido no início de outubro, quando o governo anunciou o início da produção de urânio enriquecido, combustível de usinas nucleares. “As promessas feitas no início

Crianças de comunidade ribeirnha no rio Paraguai,área onde a pesca é proibida e a agricultura é impraticável

do governo estão caindo em descrédito, assim como a expectativa gerada pela indicação da Marina para o Ministério do Meio Ambiente”, afirmou von der Weid. Para ele, as grandes linhas definidas pelo governo anterior na questão ambiental não foram alteradas. Frank Guggenhein, diretor executivo do Greenpeace Brasil, concorda e cita um bom exemplo desse continuismo: as obras com forte potencial de desmatamento da Floresta Amazônica, incluídas no Plano Plurianual (PPA) 2004-2007. Segundo ele, durante as discussões do PPA, os ambientalistas avisaram o governo que essas iniciativas seriam barradas na justiça, assim como já tinha acontecido no plano feito pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: “O porta-voz da Presidência, André Singer, afirmou que nunca um programa foi tão discutido com a sociedade. O problema foi que, apesar de ouvida, nossa opinião não foi levada em conta”, protesta.

PANTANAL

Lula apóia pólos de gás, minério e siderurgia Adriana Gomes de São Paulo (SP) Primeiro foi a decisão favorável à liberação dos transgênicos que causou espanto aos ambientalistas. Agora, no início de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou, durante um evento em Mato Grosso do Sul, seu apoio à proposta do governador do Mato Grosso do Sul, José Orcírio dos Santos, o Zeca do PT, de instalar no o Pantanal pólos de gás, minério e siderurgia. A região é nada mais nada menos que o centro de um dos maiores biomas do mundo, reconhecido pela Unesco como patrimônio natural mundial. Ao contrário do que os ambientalistas presentes esperavam, Lula sequer tocou no assunto da liberação de recursos para o Programa Pantanal (PP), orçado em 400 milhões de dólares e cujas negociações se arrastam por oito anos. O programa tem como propostas oferecer saneamento básico para 22 cidades de Mato Grosso do Sul e dar início às negociações para o financiamento das ações de saneamento em Mato Grosso, impedindo, assim, que sejam despejados esgotos na Bacia do Alto Paraguai. RECURSOS Cerca de cem principais entidades ambientalistas – representadas pela organizações não-governamentais (ONGs) Rede Pantanal,

Fóruns de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e a Coalizão Rios Vivos – resolveram entregar ao presidente uma carta solicitando que a proposta do PP seja revitalizada e que também sejam destinados ao programa recursos do Plano Plurianual (PPA) 2004/2007. Alcides Faria, secretário-executivo da Coalizão Rios Vivos e presidente da Ecologia e Ação (Ecoa), ONG sediada em Mato Grosso do Sul, explicou que a atitude dos ambientalistas “foi motivada pelo fato preocupante de Lula, além de não ter se referido em momento algum a recursos para o PP, declarou apoio à implantação de pólos petroquímicos e siderúrgicos”. Os ambientalistas pedem ao presidente as seguintes providências: o compromisso do fluxo de recursos ao PP em 2004; a abertura no PPA 2004/2007 de uma janela orçamentária que permita a execução do PP; a garantia do cumprimento da carteira de projetos contratada; a implantação de ações corretivas no PP para otimização dos recursos alocados; a inclusão do PP no rol de ações prioritárias do governo federal; o engajamento prioritário do Ministério do Meio Ambiente na execução do PP; o resgate do compromisso dos governos estaduais de MS e MT; e o fortalecimento da participação social em todas as instâncias do PP. (Estação Vida)

Outro ponto incômodo para os ambientalistas é a questão dos transgênicos. Guggenhein lembra um episódio do ano passado: “Enviamos a todos os candidatos um questionário no qual, entre outras questões, perguntávamos se o plantio

de transgênicos seria liberado, caso o candidato fosse eleito. A maioria respondeu sim; Lula disse não”. No entanto, apesar de achar que o governo não está cumprindo o prometido na campanha, Guggenhein acha cedo para uma avalia-

No texto enviado ao governo, além do PPA e da liberação dos transgênicos, os ambientalistas denunciam a omissão do governo quanto às mudanças climáticas e às terras indígenas, apontam a expansão da fronteira agrícola sobre as matas, entre outras práticas prejudiciais ao meio ambiente. Eles reivindicam respeito ao princípio da precaução e atendimento à legislação ambiental, combate ao desmatamento, estímulo ao desenvolvimento sustentável, fortalecimento do Ministério do Meio Ambiente e do Sistema Nacional de Meio Ambiente; e maior participação da sociedade civil nos processos, programas e decisões de governo sobre políticas socioambientais.

POVOS INDÍGENAS

Comissão leva denúncia à OEA André Vasconcelos de Boa Vista (RR) Os deputados federais Orlando Fantazzini (PT/SP) e Pastor Reinaldo (PTB/RS), integrantes da 5ª Caravana Nacional de Direitos Humanos, vão denunciar o governo brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pela violação de tratados internacionais que asseguram direitos aos povos indígenas. O anúncio foi feito durante a Caravana de Direitos Humanos, dia 13 de outubro, na aldeia Maturuca, área Raposa Serra do Sol, em Roraima. Durante a Caravana, cerca de 200 líderes Macuxi, Wai Wai, Wapichana, Taurepang, Ingarikó, Patamona e Yanomami denunciaram agressões físicas, mortes, violação aos direitos territoriais, venda e consumo de bebidas alcoólicas, além de abusos sexuais praticados por militares. Para todas as denúncias apresentadas já existem processos tramitando na Justiça Federal. A advogada do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Joênia Wapichana, reforçou: “São violados direitos ambientais, à vida, à justiça, à liberdade, à saúde e à educação. Direitos indígenas não

André Vasconcelos

NADA MUDOU

A CARTA

evitada caso a terra estivesse homologada e livre de invasores. O delegado da Polícia Federal, Osmar Tavares de Melo, do Serviço de Repressão aos Crimes Contra as Comunidades Indígenas, confessou que aquele foi o seu primeiro contato com comunidades indígenas. “Nós chegamos até a nos emocionar com a grande maioria dos relatos aqui trazidos. Como representantes do governo federal, nós temos que dar respostas”, ressaltou Melo, ao explicar que a PF de Roraima conta com apenas 30 agentes, o que dificulta Crianças macuxi da Raposa Serra do Sol, uma atuação mais efetiva. pedem homologação das suas terras Para Ivair Santos, assessor da Secretaria Nacional de estão fora dos direitos humanos. Combate à Discriminação, o Direito humano é o direito de ser contato pessoal com os indígenas diferente”. confirmou todos os relatórios que A comitiva da Caravana recebeu ele já havia recebido sobre a violao dossiê “Crime e Impunidade em ção de direitos na Raposa Serra do Roraima”, elaborado pela advoga- Sol: “Pude ver as marcas das balas da Ana Paula Souto Maior. O docu- nos corpos das pessoas. Em nosso mento cita mais de vinte indígenas relatório, vamos propor a necesassassinados desde os anos 1980, sidade da homologação”. Santos na disputa pela terra Raposa Serra também defendeu o chamado Diádo Sol, e destaca que a execução logo de Manaus, que estabelece redo macuxi Aldo da Silva Mota, em gras de convivências entre militares janeiro deste ano, poderia ter sido e indígenas nas áreas de fronteira.

André Vasconcelos

governo vive um momento tenso no que se refere à política ambiental. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva acaba de receber uma carta aberta assinada por 500 organizações não-governamentais (ONGs) ligadas a ecologia – entre elas a AS-PTA, o Greenpeace e o Instituto Socioambiental. O economista Jean Marc von der Weid, diretor da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternatica (AS-PTA) e coordenador da Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos, avisa que está sendo alinhavada uma forte resistência para lutar contra as medidas que afetam o ambiente – como a liberação do plantio de transgênicos – e em favor de avanços concretos – como a demarcação de terras indígenas. Dia 21, um dia depois da entrega do documento a Lula, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva se reuniu com outros ministros, senadores e deputados federais do Partido dos Trabalhadores (PT) para exigir mais espaço para a sua pasta. Mais de uma vez, disse que não é ministra “de jardinagem” e que “não pode mais ficar isolada como está”. Para von der Weid, Marina foi “colocada de escanteio”.

“Direitos indígenas não estão fora dos direitos humanos”, diz Joênia Wapichana, advogada do Conselho Indígena de Roraima


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DEBATE POLÍTICA PARTIDÁRIA

A estrela do PT e o brilho de aluguel Chico Alencar Partido dos Trabalhadores se construiu como uma novidade decisiva na política brasileira. O número de votos foi crescendo a cada eleição e a representação institucional do partido se ampliou de maneira continuada. Mas isso não é tudo, e talvez nem seja o mais importante. A força eleitoral do partido se firmou como expressão de uma outra realidade mais ampla: a presença combativa de uma militância que opera diretamente no tecido social. Um partido de militância, inserido nas lutas cotidianas da população, que ao mesmo tempo se mostra capaz de chegar junto nas disputas eleitorais não foi, por certo, resultado do acaso. No quadro da nossa tradição política autoritária, ele resultou de um imenso trabalho coletivo, ancorado no movimento popular organizado e na cultura cidadã forjada na luta contra a ditadura. Mas a novidade do PT não se esgota nisto. Para além das questões políticas e programáticas que faz emergir, o partido foi portador de uma espantosa novidade formal. Suas formas de organização se abriram para experiências novas na trajetória da esquerda. Sem doutrina oficial, mas convivendo com as múltiplas teorias da esquerda, plural por constituição, soube firmar um pacto partidário ancorado na ética militante, marcado pela livre manifestação das diferenças e pelo respeito ao direito das minorias. Até a famosa, e algumas vezes deplorada, luta interna do PT foi, na realidade, um dos fatores responsáveis pelo crescimento

O

importante partido da esquerda brasileira. Transita da lógica do partido de militância para a do partido de notáveis com voto de massa, gente que manda na burocracia partidária a partir das fortalezas do poder de Estado. Vai saindo de fininho da condição de um partido da sociedade, profundamente vinculado ao dinamismo social, para a condição de instrumento passivo do poder dominante, acoitado em máquinas do continuísmo renovado. Expulsar a senadora Heloisa Helena e colocar tapete vermelho para a entrada de Narriman Zito são dois símbolos deste movimento inaceitável. Punir deputados coerentes com os princípios partidários, sintonizados com a nossa agenda histórica, e adular aqueles que sempre militaram na tropa de choque dos nossos adversários estratégicos simbolizam a mesma coisa. Esse processo, que se agravou com a chegada do partido ao governo da República, pode nos

afastar da tradição militante, plural e democrática, e mergulhar o partido no pântano do autoritarismo e da geléia geral brasileira. Não podemos concordar e vamos lutar em defesa da democracia interna. Afinal, o brilho da nossa estrela não pode se apagar na planície nem se transformar, no Planalto, em brilho de aluguel. Chico Alencar é deputado federal pelo PT e pré-candidato a prefeito do Rio de Janeiro

A quem serve o ataque à democracia interna do PT

Kipper

partidário e pela qualidade da sua formulação política. A vitalidade tumultuária na luta das idéias sempre ajudou na adequação contínua da organização partidária ao movimento real da sociedade. E, no curso deste processo, a democracia interna foi um dos pilares fundamentais da experiência petista. Não se trata de uma questão menor, meramente interna, mas do elo fundamental por meio do qual o partido sempre acertou o passo com o dinamismo dos movimentos sociais. Um partido que cresce, no entanto, passa a administrar burocracias e corre o risco de ser administrado por elas. É a famosa “lei de ferro” das oligarquias partidárias. Ao invés de “tomar” o poder – e mudar a natureza do poder – um partido pode ser tomado pela lógica do poder dominante – e mudar a sua natureza original. Esse risco é permanente nas experiências da esquerda que chegam aos governos, uma vez que governar para transformar requer um tipo de governabilidade radicalmente distinta da do mero continuísmo. O PT está vivendo, ao longo dos últimos anos, um processo de abandono silencioso da cultura que lhe projetou como o mais

Plinio de Arruda Sampaio Jr. novo Estatuto garante os instrumentos, (...), para incrementarmos de maneira ainda mais radical a democratização interna no Partido e fortalecermos as instâncias de base (...). Estabelece também as condições necessárias para que possamos aumentar a participação dos filiados, ampliar o debate político, garantir a transparência da ação dos diretórios e o seu controle pela base (...)”, (José Dirceu e Sílvio Pereira, “Prefácio ao Estatuto do Partido dos Trabalhadores de 2001”)

“O

A decisão da direção do Partido dos Trabalhadores de vetar a realização de prévias nas cidades onde a cúpula já possui candidatos pré-definidos é um inaceitável ataque à democracia interna do partido que fere frontalmente o cristalino desiderato do Estatuto, cuja essência não poderia ter sido melhor explicada do que na epígrafe acima citada.

É importante ressaltar que o veto às previas não é um caso isolado mas parte de uma escalada autoritária dentro da qual se destaca o bloqueio ao debate interno, a licenciosidade das alianças eleitorais, a massificação do processo de filiação, a intimidação dos militantes, as ameaças aos parlamentares que não se enquadrarem nas vontades palacianas, a cooptação dos movimentos sociais, a punição e a expulsão de lideranças das mais combativas. Nada mais estranho a um partido que se caracterizou e se fortaleceu pelo permanente embate das tendências do que a adoção de uma política repressiva de caça às bruxas. Nada mais artificial na vida do PT do que as medidas de patrulhamento, proibições, punições e expulsões contra os companheiros que defendem as bandeiras históricas do partido. Sem Estado de Direito, nós no PT ficamos sem a intermediação de regras civilizadas para regular nosso modus vivendi e a vida partidária regride para um estado primário em que a política se manifesta como força bruta. Assim, o PT corre o risco de afugentar

sua militância mais aguerrida e terminar com os mesmos cacoetes dos partidos políticos tradicionais, virando mais uma máquina eleitoral à caça de voto. O ataque à democracia interna é um elemento essencial da estratégia de acomodação do PT aos parâmetros da ordem estabelecida. Os conservadores sempre temeram as manifestações de força política que brotam de baixo para cima. Por isso, a oligarquia partidária teme abrir qualquer fresta à manifestação das bases. A aliança com o grande capital, com as oligarquias tradicionais e com as velhas e as novas raposas da política brasileira, aliança que garante a “governabilidade conservadora”, exige que os rebeldes do PT sejam todos domados. Para não matar a galinha dos ovos de ouro, a burguesia sabe que é preciso evitar a qualquer custo a emergência do povo na história. O ataque à democracia petista é, portanto, um profundo

golpe da oligarquia partidária nos milhares de militantes petistas e nos milhões e milhões de brasileiros que, de diferentes maneiras, ajudaram a construir o PT na esperança de que ele fosse um instrumento de mudança do Brasil. Para os atuais formuladores da política petista o único que importa é vencer eleições e conquistar o maior número de postos legislativos e executivos. Perdeu-se a noção de que o itinerário para o poder condiciona o exercício do poder. Por tudo isso, todos os que desafiam a escalada autoritária no PT estão convictos de que, sem a defesa intransigente da democracia interna, será impossível corrigir os graves desvios ideológicos, políticos e éticos que afasta o PT de seus compromissos históricos com o povo brasileiro. Plinio de Arruda Sampaio Jr. é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – IE/Unicamp – e é indicado por 1377 petistas à disputa da prévia que definirá o candidato do PT à Prefeitura de São Paulo


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De 30 de outubro a 5 de novembro de 2003

AGENDA

agenda@brasildefato.com.br

CEARÁ MINAS GERAIS, RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO

> CELEBRAÇÃO DOS 24 ANOS DA MORTE DE SANTO DIAS 30 de outubro, 19h30 Em todo o Brasil serão realizadas palestras, caminhadas e celebrações. Santo Dias da Silva era militante da Pastoral Operária e foi assassinado por um policial quando participava de protestos por melhores condições de vida e trabalho em São Paulo. Os acusados pela morte do sindicalista continuam impunes. Em 2004, quando serão celebrados 25 anos de morte de Santo Dias, a pastoral realizará manifestações abordando a reforma trabalhista. Local: Sede da Pastoral Operária, Av. Francisco Sá, 1833, Jacarecanga Mais informações: (85) 238-1400; poceara@bol.com.br

> JORNADA PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA 8 e 9 de novembro, em Belo Horizonte (Mineirinho e Universidade Federal de Minas Gerais) 10 de novembro, no Rio de Janeiro (Teatro da Associação Brasileira de Imprensa) 11 de novembro, em São Paulo (Teatro da PUC-SP) Participarão João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST; Gustavo Petta, presidente da UNE; Antonio Carlos Spis, diretor de comunicação da CUT; Norman Solomon, jornalista especializado na guerra contra o Iraque e autor de diversos livros, como O Iraque na mira: O que a mídia não conta;

Blanca Eekout, diretora do Canal Comunitário da Venezuela; Moaya Dragme, da União Geral dos Estudantes Palestinos. A Jornada nasceu da necessidade de fortalecer uma comunicação mais democrática no Brasil, denunciando as freqüentes tentativas de criminalização das lutas populares.

12. De 6 a 11 haverá oficinas para crianças e adolescentes da Granja Portugal e do Beira Rio; oficina com grupo de catadores do Parque Santa Rosa e oficina sobre autoestima e dinâmica grupal, no Bom Sucesso. Também acontecerão missões com a população de rua do Lagamar, nas escolas do Conjunto Palmeira, do João Paulo II, do Pirambu, de Itaitinga, de Maracanaú, na Escola de Planejamento Urbano e nas comunidades do Morro da Vitória e Genibaú. Mais informações: (85) 231-882; caritasfor@fortalnet.com.br

ção, aproximando e integrando os meios de comunicação comunitários, além de aproximar e integrar a comunidade acadêmica e a comunidade, sobretudo os gestores dos meios de comunicação comunitários. O evento será direcionado a gestores de meios de comunicação comunitários, representantes do terceiro setor, movimentos sociais, profissionais, estudantes, comunidade acadêmica e comunidade em geral. A organização está sendo feita pelo grupo pelotense SOS Comunicação Comunitária, formado por diversos representantes da sociedade. Local: Auditório do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas Mais informações: (53) 9102-9943

RIO GRANDE DO SUL > 1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA 7 e 8 de novembro A conferência tem como objetivo promover e ampliar o debate sobre a comunicação comunitária na democratização da comunica-

> SEMANA DA SOLIDARIEDADE De 5 a 12 de novembro A semana está sendo organizada pela Cáritas Arquidiocesana de Fortaleza, com o tema “O cuidado com o Alimento e a Vida”. Haverá oficinas, missões, celebrações e visitas a diversas comunidades. Dia 5, a abertura acontecerá na comunidade Parque Santa Rosa, na Capela Beato José de Anchieta, na R. Cisto Albano, a partir das 15 horas. O Museu do Ceará montará a exposição “Patativa um pássaro liberto”, que ficará aberta até dia

MINAS GERAIS > I FÓRUM SOCIAL BRASILEIRO De 6 a 9 de novembro Parte do processo político internacional do Fórum Social Mundial (FSM), o Fórum Social Brasileiro constitui-se em um espaço aberto e plural de articulação, troca de experiências, debate democrático de idéias. Vai abordar os alcances, as conseqüências e as singularidades da globalização neoliberal no Brasil. O Fórum também vai discutir o papel do Brasil no mundo, além de ampliar o enraizamento do FSM no país e mobilizar para o próximo FSM 2004, na Índia. O lema do fórum é “Um outro mundo é possível, um outro Brasil é necessário”. A programação inclui atividades culturais, políticas, conferências, reuniões de articulação e atividades. Haverá três eixos temáticos principais para discussões em conferências: “Imperialismo”, “O Brasil que Temos e o Brasil

Lançamento do livro do jornalista e escritor Renato Pompeu. O personagem é o ponta-esquerda Canhoteiro, do São Paulo Futebol Clube. Nascido no Maranhão, Canhoteiro atingiu o auge de sua fama no final dos anos 50, em São Paulo, no mesmo período em que a cidade se tornava maior do que o Rio de Janeiro e alcançava a projeção nacional. Canhoteiro, que fazia pela esquerda o que Garrincha fazia pela direita, não chegou a alcançar essa projeção nacional – era pouco conhecido fora de São Paulo e foi o primeiro jogador de futebol brasileiro a ter um fã-clube próprio. Local: Livraria Cultura, Av. Paulista, 2073, São Paulo Mais informações: (11) 3170-4033

> DEBATE: AS FARC E O AVANÇO DOS MOVIMENTOS POPULARES: O CONTEXTO DA REVOLUÇÃO LATINOAMERICANA 4 de novembro, 19h30 Depoimentos sobre vivências em acampamentos guerrilheiros; debate sobre o avanço dos movimentos populares latino-americanos e a guerra civil de meio século no coração da América. Depoentes: Edson Albertão (PT-Guarulhos), Yuri Martins Fontes (FFLCH/USP). Mesa: César Cordaro (Conselheiro da OAB/ ex-procurador geral do município de São Paulo), Marcelo Buzetto (Direção Estadual do MST), Osvaldo Coggiola (professor do departamento de HistóriaFFLCH/ADUSP). Participará um representante das Farc. Local: Auditório do departamento de História (FFLCH - USP), Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, nº 374 , São Paulo Mais informações: (11) 3091-2343

SÃO PAULO > ATO PÚBLICO PELA LIBERDADE DOS PRESOS POLÍTICOS DO MST 31 de outubro, 14h A direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) convoca militantes e simpatizantes para participar do ato. Atualmente, no Brasil, 22 militantes do MST estão presos e outros 26 estão com prisão preventiva decretada. Somente este ano, 56 trabalhadores rurais foram assassinados por lutar pela terra. A nota de convocação diz que “essa situação só será revertida se nós, trabalhadores que sempre lutamos pela reforma agrária, nos unirmos para exigir a liberdade de nossos companheiros e companheiras”. Local: Pça. Marília, Teodoro Sampaio Mais informações: (11) 3361-3866 > DEBATE: O BRASIL E A ALCA 1º de novembro, 17h Palestrante: deputado federal Luis Eduardo Greenhalgh (PT/SP) Local: Sindicato dos Bancários, R. Castelo Branco, 150, Osasco Mais informações: (11) 9562-3531 > CANHOTEIRO - O HOMEM QUE DRIBLOU A GLÓRIA 3 de novembro, 19h

que Queremos” e “Movimentos Sociais”. Haverá também painéis, mesas de diálogo, testemunhos, oficinas, seminários, debates, convergências, assembléias e laboratórios organizados pelas entidades participantes. Local: Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6.627, Belo Horizonte Mais informações: (31) 3224-5056; www.fsb.org.br

O evento tem apoio de diversos veículos de comunicação, como as revistas Caros Amigos, Sem Fronteiras e Fórum; os jornais Brasil de Fato, Correio da Cidadania e Unidade; e as páginas da Internet Vermelho e Porto Alegre 2003. Mais informações: (11) 3361-3866 (Cristiane Gomes) Eugênio Neves

> ENCONTRO ESTADUAL DE ECONOMIA POPULAR SOLIDÁRIA De 30 de outubro a 1º de novembro Organizado pela Cáritas Regional, o encontro tem como objetivo contribuir com o processo de reflexão e desenvolvimento de ações solidárias e sustentáveis nas comunidades das áreas rurais e urbanas, a fim de fortalecer as experiências comunitárias e as ações de referências no semi-árido e em economia popular solidária. Durante o encontro, haverá discussão e aprofundamento dos conhecimentos de: agricultura familiar, segurança alimentar, desenvolvimento solidário e sustentável, economia popular solidária, gênero e convivência com o semi-árido. As comunidades com experiências de referência apresentarão suas conquistas e desafios. Dia 1º de novembro haverá uma celebração na comunidade Casa de Pedra. O encontro terá a participação das nove dioceses, da equipe da Cáritas Regional, de representantes de comunidades e de instituições parceiras. Local: Centro Pastoral da Diocese de Tianguá, Carnaubal Mais informações: (85) 231-4783; caritace@fortalnet.com.br

> 3º COLÓQUIO MARX E ENGELS: MARXISMO E SOCIALISMO NO SÉCULO XXI De 3 a 7 de novembro Organizado pelo centro de Estudos Marxistas, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. O tema geral do colóquio são as condições para a reorganização do movimento socialista internacional. Haverá mesas-redondas e sessões de comunicação coordenadas. As mesas-redondas serão integradas por palestrantes convidados, mas as sessões de comunicações são de inscrição livre, abertas à participação de professores, estudantes de pós-graduação e pesquisadores do marxismo. Local: Auditório do IFCH da Universidade Estadual de Campinas, Campinas Mais informações: (19) 3788-1639; www.unicamp.br/ cemarx; cemarx@unicamp.br

Week-end na Guatemala Miguel Ángel Astúrias já é bastante conhecido no Brasil. Seu primeiro romance, O Senhor Presidente, teve aqui várias edições e outras obras suas estiveram e estão à disposição do leitor brasileiro. Morando na Europa ou ocupando cargos na diplomacia de seu país, quando a situação assim o exigia ou permitia, Astúrias viu a Guatemala ser dominada por ditaduras ferozes (o que, na história latino-americana, não é novidade), e também ser invadida por forças mercenárias a serviço dos interesses imperialistas, mais especificamente dos interesses da empresa estadunidense American Fruit Company, a La Frutera. Week-end na Guatemala tem como tema essa invasão, ocorrida em 1954, quando o país tentava estabelecer um projeto popular com os governos de Arévalo e Arbéns. Os Estados Unidos, não querendo intervir diretamente, promoveram um recrutamento em massa em vários países latino-americanos, assolados pelo desemprego e pela miséria, para formar um exército mercenário, que financiou juntamente com a

American Fruit. A elite econômica e setores da pequena burguesia guatemalteca forneceram a base social de sustentação interna da agressão imperialista. Resultado: milhares de crianças, mulheres e homens assassinados, o projeto popular destruído, o país invadido, o povo terrivelmente humilhado... sem o direito de estabelecer o seu próprio destino. A pata do imperialismo não perdoa nem a banana. Que os plantadores de soja e outras porcarias transgênicas se preparem. Com certeza, vamos conferir. CONFIRA Editora Expressão Popular Miguel Ángel Asturias 304 páginas R$ 13


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CULTURA

De 30 de outubro a 5 de novembro de 2003

LIVROS

Em vez de Coca-Cola, compre cultura Letícia Baeta da Redação

U

ma simples máquina está revolucionando o mercado de livros e hábitos brasileiros. Instalada nas estações de metrô de São Paulo, máquinas de vender refrigerante foram adaptadas para comercializar livros por menos de R$ 5, cerca de um quarto do preço nas grandes livrarias. Todo mês, mais de 270 novos leitores compram, pelo menos, um exemplar. Inédita no mundo, de fácil manuseio, luminosa, a máquina expõe uma vitrine de mais de 20 livros e atrai curiosos o dia inteiro. Para comprar, basta inserir moedas ou cédulas no valor do preço indicado, e apertar o botão correspondente ao livro desejado. Instantaneamente, se houver troco, ele cai por um dos orifícios, e o livro sai da máquina. Quem está se beneficiando com a novidade são trabalhadores excluídos dos centros acadêmicos e das caras livrarias. Franquia – concesO inventor são de uso de uma da iniciativa, marca registrada, Fábio Bueno, bem como o de seu processo de produ43 anos, vê a ção, seus produtos e inovação como sistema de negócio, mediante pagamento “forma de ine cumprimento de clusão” e alerdeterminadas conta: “Se o povo dições. não começar a ler, se instruir, vai continuar votando mal. A ignorância é a forma de manter o poder sobre o povo”. A máquina estimula o hábito da leitura, o que, segundo Bueno, ajuda na qualificação profissional. O novo serviço está comprovando que o exigência do leitor brasileiro é alta, segundo Bueno. Muitos deles estão interessados em conhecer os direitos sociais. A Constituição Brasileira e o Código

Fotos: Luciney Martins/Rede Rua

Nas estações de metrô, um máquina vende livros de interesse social e clássicos da literatura por menos de R$ 5,00

Com volumes que custam até R$5,00, as máquinas de vender livros são uma forma de facilitar o acesso à leitura

de Defesa do Consumidor estão entre os mais vendidos. Ao todo são 59 títulos revezando nas máquinas desde março, quando a máquina apareceu. A novidade desta semana é o livro Jeremias, o bom, do cartunista Ziraldo. Entre os clássicos da literatura, pode-se encontrar os suspenses de Sherlock Holmes. Delícias Vegetarianas e

Diabetes, um guia prático, ambos de Elisa Biazzi, também são bastante procurados. Para Bueno, o êxito nas vendas desmente a idéia de que o povo brasileiro não gosta de ler. O problema era financeiro, afirma: “A pessoa que ganha R$ 300 por mês não quer gastar 10% do seu salário, aqui ele gasta 1,5%”. Numa livraria

comum, a edição da Constituição Brasileira custa, no mínimo, R$ 20; na máquina, apenas R$ 5.

BARATEAMENTO Diversos fatores contribuem para que os livros sejam vendidos a baixo custo: as compras são feitas em grandes volumes e Bueno aproveita estoques encalhados. Além

Alessandra Bastos de Brasília (DF) Os livros escolares trazem uma imagem estereotipada do índio, como alguém que mora em ocas e foi colonizado pelos brancos. A diferença cultural de cada um dos povos não é mostrada. Os casamentos, crenças, rituais e costumes – tão diferentes de uma tribo para outra – são ignorados nos livros didáticos. Para se ter uma idéia da diversidade, o Brasil possui 368 mil índios de 215 tribos distintas. “Não dá para aprender. Falam muito que o índio foi escravizado, mas a cultura, língua e rituais não são explicados”, diz a estudante da primeira série Juliana Damasceno. O aluno Thalles Villarino, de 15 anos, tem a mesma opinião: “O ensino não aprofunda, não dá pra ter uma noção completa”. O problema atinge também as crianças indígenas. Até 1999, só existiam no Brasil escolas rurais e urbanas. Por decreto, foi criada a escola indígena, cuja responsabilidade, em 2001, passou da Funai para o Ministério da Educação. O historiador André Ramos explica que os próprios índios estão recebendo formação para serem professores em língua, artes, matemática e ciências. Porém, estão capacitados para dar aula apenas para crianças até a 4ª série. Apenas em Mato Grosso, Roraima e Acre há professores para o ensino fundamental 2 (da 5ª à 8ª série).

CALENDÁRIO RELIGIOSO A falta de escolas para os povos indígenas não é o único problema. A adaptação do estudo aos costumes também é precária. O índio tukano Gabriel Gentil, que vive no Alto Rio Negro (AM), reclama do calendário escolar montado de

Arquivo Cimi

Didáticos ignoram cultura indígena

Formação de crianças Maxakali, no município de Santa Helena e Bertópolis, no norte de Minas

acordo com as festas religiosas do homem branco, como Páscoa e Natal. “Cada tribo tem seus costumes”, diz. Ele defende a criação de um calendário com as festas e

tradições das tribos, “assim o que é oral pode passar para o papel, como fizeram os incas”. Se a preservação das tradições gera preocupação, a perpetuação dos

povos causa muito ciúme. “As mulheres indígenas gostam mais dos brancos porque elas querem filhos bonitos com nariz de branco”, diz Gabriel, indignado. (Agência Brasil)

disso, não é agregado no preço os gastos que uma livraria teria com distribuição, atendimento etc. Depois, as máquinas oferecem livros pequenos e de produção barata, diferente dos de grande sucesso vendido nas lojas por R$ 50 em média. Bueno explica que as livrarias não conseguiriam vender livros tão baratos pois o lucro não cobriria o gasto de toda a loja. Existem sete máquinas na capital paulista, mas esse número deve duplicar em breve. Outras seis máquinas estão em estações metroviárias da cidade do Rio de Janeiro. A hipótese de o investimento se expandir para o exterior não está descartada, afirma Bueno. Os Estados do Maranhão, Pará, Ceará e Mato Grosso poderão ter, em breve, máquinas de livro em rodoviárias, hospitais e shopping centers. A distribuição deverá ser feita por meio de franquia, requisitada por trabalhadores nordestinos que passaram pelas estações de metrô de São Paulo e gostaram do serviço. Os interessados pelo novo investimento deverão receber cursos de manuseio da máquina. A implantação do aparelho, com a primeira remessa de livros, custa R$ 18 mil, o mesmo preço de um carro popular zero quilômetro. Mesmo assim, Bueno acredita que a máquina de livro é a forma mais barata de estímulo à leitura. “Custa menos disponibilizar livros baratos para a população do que o governo promover campanhas milionárias de estímulo à leitura”, afirma. Ele espera que a iniciativa seja incluída no Programa Fome Zero, do governo federal. “A leitura, assim como o Fome Zero, ensina a pessoa pescar, a conseguir o seu sustento”. A única propaganda para anunciar a máquina é uma faixa colocada no equipamento nos primeiros dias de sua instalação: “Fome Zero, aqui tem comida para a mente.”

EDUCAÇÃO

Curso para lideranças mostra o Brasil real Lucas Milhomens de São Luís (MA) Oferecer conhecimento científíco a lideranças populares para transformar o país. Essa é a proposta do Curso de Realidade Brasileira, atualmente com quatro turmas nacionais em andamento e algumas classes regionais nos Estados de São Paulo, Paraná, Paraíba, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul. O curso vai até 2005 e é resultado da articulação entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Consulta Popular, rede de militantes de caráter não-partidária, organizada em todo país A primeira turma, de 100 alunos, teve início em 2001, com apoio da

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais. A idéia, defendida pelas entidades, é fazer com que lideranças sociais entrem no mundo acadêmico e o utilizem para acabar com o “latifúndio do saber”. “É uma grande oportunidade de cumprir o verdadeiro papel da universidade: democratizar o conhecimento para todos os setores da sociedade”, explica a professora Marina Maciel, do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão (UFM), onde o curso aconteceu em julho. Segundo ela, os alunos assumem o compromisso de ser multiplicadores dos conhecimentos adquiridos. Os alunos estudam autores como

Darcy Ribeiro, Milton Santos, Celso Furtado e Gilberto Freire. O Curso de Realidade Brasileira é dividido em quatro módulos, completados até o ano de 2005. As aulas acontecem nas férias de julho e janeiro, para facilitar a participação de lideranças de vários Estados. Segundo os idealizadores do projeto, a proposta poderá ser levada ao Ministério da Educação (MEC), para adoção como curso de extensão nas universidades federais em todo o país.

DIFICULDADES SUPERADAS Às vezes, surgem dificuldades no caminho. Em São Luís do Maranhão, onde aconteceu o primeiro módulo em julho, os organizadores enfrentaram falta de recursos finan-

ceiros, preconceito de setores acadêmicos conservadores e indisposição da reitoria da UFM. Na véspera do início do curso, houve corte de recursos prometidos pelo governo estadual. Os alunos não tinham lugar fixo para alimentação e mudaram de alojamento na última hora. Os problemas não desanimaram a comissão organizadora. “Passamos por muitos problemas, mas não esmorecemos. Podem ter certeza de que realizaremos os próximos módulos também”, afirma Elias Araújo, membro do MST do Maranhão e um dos coordenadores do Realidade Brasileira em São Luís. Outras informações na Secretaria Nacional do MST: setordeforma cao@mst.org.br


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