Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 350
São Paulo, de 12 a 18 de novembro de 2009
R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Caio Guatelli/Folha Imagem
Setor energético está voltado exclusivamente para o lucro
Fascismo se volta contra universitária e seu vestido
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das tarifas de energia elétrica revelou o que organizações sociais, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), denunciavam há anos: desde 1996, quando foi criada com a privatização do setor, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) tem como principal objetivo garantir os rendimentos das concessionárias. A constatação ganhou força com a divulgação de um erro no cálculo da tarifa que pode ter custado aos consumidores até R$ 15 bilhões. Pág. 4
MST desmente as depredações na fazenda de Daniel Dantas Após a divulgação de imagens de casas depredadas na fazenda do banqueiro Daniel Dantas, no Pará, a imprensa e o governo estadual iniciaram nova ofensiva contra o MST na região. No entanto, o movimento nega que tenha sido autor das depredações. Em entrevista, o dirigente Charles Trocate afirma que a atribuição do ato ao MST serve como um álibi para o latifúndio. Ele e mais seis dirigentes tiveram pedido de prisão preventiva. Dantas é réu em diversos processos. Pág. 3
Em apoio à estudante Geisy Arruda, UNE e grupos feministas realizam protesto em frente à Uniban
“Precisamos de uma Internacional de movimentos”, diz vice boliviano Talvez o mais destacado teórico do processo em marcha na Bolívia, o vice-presidente boliviano Álvaro García Linera defende, em entrevista ao Brasil de Fato, uma maior articulação entre os movimentos sociais que radicalize as transformações vividas na América Latina.
Para ele, deve-se resgatar as reflexões de Marx sobre a Primeira Internacional,“na qual se juntaram partidos, sindicatos, anarquistas, socialistas, que articulavam-se continentalmente com debilidade, mas com firmeza e vinculação de suas decisões”. Págs. 10 e 11 Reprodução
CMI Brasil
Hondurenhos criticam apoio dos EUA às eleições As eleições em Honduras, marcadas para o dia 29, vêm perdendo cada vez mais credibilidade. O candidato independente Carlos Humberto Reyes renunciou à sua candidatura. “Para nós, participar nas eleições significa nos somarmos à estratégia dos golpistas”, disse. O presidente deposto Manuel Zelaya aplaudiu a decisão do ex-candidato e sua postura de “desconhecimento ativo” nas eleições. A resistência hondurenha critica o reconhecimento que os EUA dão ao pleito. Pág. 9
Redução da jornada é pauta prioritária dos trabalhadores A 6ª Marcha Nacional da Classe Trabalhadora leva a Brasília a bandeira da redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais. A pauta é unitária entre todas as centrais e movimentos sociais. Mas outros temas, como a desapropriação de terras onde há trabalho escravo, a reforma agrária e o investimento social com os recursos do pré-sal, serão debatidos. Os organizadores esperavam reunir cerca de 40 mil manifestantes e levar suas reivindicações ao presidente Lula. Pág. 3
As imagens da violenta onda que se formou contra a estudante Geisy Arruda, na Uniban, expuseram o machismo e o reacionarismo que se encontram nas instituições de ensino superior. A decisão de expulsar a universitária e a cobertura dos meios de comunicação reforçam a inversão de culpa entre os agressores e a vítima. Em artigo, a psicanalista Maria Rita Kehl analisa o caso sob diversos aspectos, como o comportamento dos alunos, da Uniban e da própria Geisy. Págs. 2 e 8
Manifestantes se reúnem na Cinelândia, no Rio de Janeiro, para homenagear Marighella
A esquerda relembra Carlos Marighella “Carlos Marighella é importante não só por sua presença, mas também por sua ausência. A ausência dele pesou muito no que foi a história depois. Talvez por isso
a esquerda recorre muito ao que ele foi”, comenta o advogado Aton Fon Filho sobre os 40 anos da morte do histórico guerrilheiro e membro do PCB. Na ocasião desse
aniversário, militantes realizaram uma série de atos para homenageá-lo e, ao mesmo tempo, cultivar e construir a memória histórica das lutas sociais no Brasil. Pág. 6
Extradição de Battisti coloca em xeque asilo político no país O pedido de extradição do italiano Cesare Battisti para seu país deve estar na pauta do STF no dia 12. Para Carlos Lungarzo, militante de direitos humanos, se o Brasil decidir por entregá-lo, o fato não só poderá abrir precedentes para a extradição de outros italianos como poderá jogar por terra o sistema de concessão de refúgio político do país. Pág. 7 Verena Glass
Belo Monte: prenúncio de novos desastres A construção daquela que será a segunda maior hidrelétrica brasileira, Belo Monte, poderá causar no rio Xingu um dos maiores desastres ambientais e sociais da região amazônica. O leilão está previsto para 21 de dezembro. Pág. 5 ISSN 1978-5134
Cachoeira no rio Xingu, que será afetada pela usina de Belo Monte
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editorial UM ESTUDO REALIZADO pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser) demonstrou em números o que tem se tornado rotina na vida da população de baixa renda do Rio de Janeiro. Entre janeiro de 1998 e setembro de 2009, 10.216 pessoas foram assassinadas nos chamados “autos de resistência” ou casos de “resistência seguida de morte”. Esse termo supostamente significa que essas mortes ocorreram em confrontos entre a polícia e os agentes do tráfico de drogas, mas na verdade serve para esconder centenas de homicídios cometidos por policiais. A grande maioria desses casos não chega a ser investigada porque, em tese, a polícia teria respondido a agressão de supostos criminosos. Isto gera um ciclo vicioso de impunidade e violência. A média de mortes levantada pela pesquisa chega a 2,4 pessoas por dia, o que significa uma taxa 40% maior do que em São Paulo e também superior a de países em situação de guerra civil. Este número cresceu nos últimos anos. Em 2007, a média de mortes foi de 3,6 pessoas por dia, seguida de 3,1 em 2008 e 2,9 em 2009. Este é o resultado da política repressiva estimulada pelo governo de Sérgio Cabral (PMDB), que implementou uma gratificação especial para os chamados “atos de bravura”, o que significa
debate
Assassinatos cotidianos recompensar policiais repressores. Em nível nacional, os homicídios representam a principal causa de mortes de pessoas entre 15 e 44 anos. Ocorrem, em média, entre 45 mil e 50 mil homicídios por ano no Brasil. As vítimas são, em grande maioria, jovens, do sexo masculino, negros e pobres. Os executores raramente são punidos, e a sociedade se vê diante de uma certa “normalização” ou banalização dessas mortes. A política repressiva do Estado brasileiro tem raízes no período da ditadura, mas é realimentada pela ideia de que “bandido bom é bandido morto” ou de que “pobre tem que morrer”. A propaganda ideológica que acompanha a suposta política de “segurança” pública é tão letal quanto as execuções sumárias, pois, no cotidiano, essas notícias já não causam tanta indignação. A polícia normalmente utiliza o termo “guerra” para descrever suas incursões nas favelas cariocas. Quando se fala em “guerra”, portanto, não significa buscar e prender indivíduos suspeitos. A própria terminologia
mostra que a ofensiva policial coloca em risco toda a população dessas comunidades. Um caso emblemático ocorreu em 2007 no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, quando 1.350 policiais ocuparam a comunidade. Após 24 horas, os policiais apreenderam apenas 13 armas. Porém, a chamada “megaoperação” resultou em 19 pessoas mortas. Nos últimos anos, aumentou também a presença de milícias nas favelas do Rio. Em outros períodos, esse tipo de milícia já foi chamada de “grupo de extermínio” ou “esquadrão da morte”. São grupos paramilitares que agem com violência, praticam execuções extrajudiciais e ameaçam moradores das favelas com chantagem, para extorquir dinheiro e manter a comunidade sob seu controle. Pessoas suspeitas de colaborar com outras facções são mortas. Diversos especialistas apontam que o caminho para garantir uma verdadeira segurança da população é totalmente inverso. Seria necessário mudar as estratégias e a cultura do policiamento e acabar com a impuni-
crônica
Altamiro Borges
Redistribuir a publicidade oficial A PUBLICIDADE É a principal fonte de recursos da mídia hegemônica. O faturamento com anúncios publicitários, que superou R$ 21,4 bilhões em 2008, garante os investimentos neste setor de alta tecnologia e os lucros dos empresários, reforçando os impérios midiáticos. Nada é dado de graça, como costuma tergiversar a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) para se contrapor ao controle público. A exibição “gratuita” do conteúdo é paga pela publicidade, e os altos custos de produção e veiculação são repassados ao preço da mercadoria. Além de seduzir o consumidor, o anúncio cumpre o papel ideológico de “vender” um estilo de vida, individualista e consumista. Para o sociólogo Pedro Hurtado, “a publicidade, à margem da sua finalidade comercial, é pura e dura propaganda do modo de vida e de pensamento inerente à ideologia social predominante na atualidade: o consumismo-capitalismo. A publicidade não apenas vende produtos, mas também impõe um modo de vida, valores morais e culturais, códigos simbólicos e, em definitivo, uma ideologia... O consumismo é uma forma de pensar segundo a qual o sentido da vida consiste em comprar objetos e serviços. Essa forma de pensar se converte na principal ideologia que sustenta o sistema capitalista”. Tímidos avanços do governo Se a correlação de forças na sociedade não possibilita, ainda, adotar medidas mais rigorosas de controle da publicidade comercial, o atual estágio das lutas sociais no país já permite, ao menos, rediscutir os critérios de distribuição das verbas publicitárias dos governos. Afinal, esse dinheiro é oriundo dos tributos da sociedade. O montante de recursos é expressivo e serve para “alimentar cobras”. Os barões da mídia que abocanham esses recursos públicos são os mesmos que pregam golpes, desestabilizam governos, criminalizam as lutas dos trabalhadores e idolatram o “deus-mercado”. A publicidade oficial reforça a monopolização do setor, quando poderia servir para estimular a diversidade e pluralidade informativas numa sociedade mais democrática. De forma discreta, o governo Lula promoveu algumas mudanças nessa área. Ele descentralizou a distribuição das verbas oficiais. “Os comerciais do Palácio do Planalto atingiram no ano passado 5.297 veículos de comunicação. O número representa uma alta de 961% sobre os 499 meios que recebiam dinheiro para divulgar propaganda do governo Lula em 2003, quando o petista tomou posse”, resmungou a Folha. A descentralização da publicidade oficial diminuiu o montante abocanhado por poucos barões da mídia. Irri-
dade nos casos de execuções extrajudiciais cometidas pela polícia. Porém, a raiz do problema está na negação dos direitos sociais e econômicos dessas comunidades. A presença do tráfico deve ser substituída por políticas universais que garantam o direito ao trabalho, à habitação, saúde, educação, alimentação, entre outros, a toda população brasileira. Após décadas de luta contra a ditadura, permanece o desafio de acabar com a desigualdade econômica e social no Brasil. Portanto, lutar na defesa dos direitos básicos é tarefa cotidiana. Uma questão central é a necessidade de mudar a política macroeconômica, como estrutura fundamental das desigualdades no país. Nos últimos anos, as políticas neoliberais aprofundaram essa desigualdade, o que significa um aumento de violações de direitos. Historicamente, sabemos que as mais graves violações de direitos humanos ocorrem contra as populações de baixa renda. Movimentos sociais que lutam por direitos básicos também são alvo de criminalização e repressão.
Gama
A publicidade não apenas vende produtos, mas também impõe um modo de vida, valores morais e culturais, códigos simbólicos e, em definitivo, uma ideologia... tados, eles agora criticam a rotulada “bolsa-mídia de Lula”, afirmando que ela serve para “alimentar a rede chapa-branca do governo”. Estimular a diversidade Apesar da gritaria, a administração direta e indireta é uma das maiores anunciantes do país. Os gastos publicitários dos governos FHC e Lula oscilaram entre R$ 900 milhões e R$ 1,2 bilhão. O pico de FHC foi em 2001, com R$ 1,114 bilhão em anúncios; em 2008, o governo Lula investiu R$ 1,027 bilhão. Isto sem contabilizar os custos da produção dos comerciais e os gastos com os patrocínios nas áreas de esporte, cultura e outras – que atingiu R$ 918 milhões em 2008. A soma de publicidade e patrocínio injetou quase R$ 2 bilhões na mídia. Na comparação com a iniciativa privada, o maior anunciante em 2008 foi a Casas Bahia, com R$ 3,2 bilhões; o segundo lugar ficou com a Unilever, dona das marcas Kibon, Omo, Dove e Rexona, que gastou R$ 1,75 bilhão. Quase a totalidade da publicidade oficial engorda os bolsos dos barões da mídia. O governo Lula nunca teve coragem para investir em veículos alternativos e estes estão à míngua. Até a revista Carta Capital, que adota uma linha jornalística mais independente, sofre com esta tibieza, como já criticou Mino Carta. A desculpa usada pelo governo é que ele adota critérios mercadológicos, medidos pela audiência e tiragens. Com essa postura aparentemente “neutra”, o governo reforça a monopolização do setor. É urgente redefinir os critérios para a publicidade oficial. Países como a Itália e a França adotam normas legais para incentivar a diversidade e pluralidade informativas,
barateando os custos de impressão e garantindo cotas de publicidade para veículos alternativos. Propostas concretas O Fórum de Mídia Livre (FML) defende o estabelecimento de critérios democráticos e transparentes de distribuição dos recursos oficiais, e não apenas a partir da reprodução da lógica de mercado. “O Estado não vende mercadoria, presta serviço público. O critério de veiculação não deve ser o da circulação, pois este está ligado à lógica da audiência como mercadoria. A mídia comercial vende audiência, isto é, circulação ou pontos de Ibope, remunerando seus fatores de produção em função da receita que o anunciante lhe proporciona devido ao público que pode atingir. Ora, o Estado não precisa se subordinar a tais critérios. O Estado não vende nada, apenas presta contas, logo pode e deve chegar ao cidadão através de muitos canais pelos quais este se informa”, explica Marcos Dantas, professor da UFRJ e integrante da coordenação executiva do FML. Duas propostas concretas teriam forte impacto no estratégico quesito publicidade: - Reserva de no mínimo 20% das verbas da publicidade oficial para os veículos alternativos e comunitários, visando estimular a pluralidade e diversidade informativas e inibir os monopólios; - Instituição de um comitê de ético, no interior do Conselho Nacional de Comunicação Social, para fiscalizar a publicidade e coibir abusos, em especial contra o público infanto-juvenil. Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB.
Mesmo após o período de democratização, constatamos a permanência de todo o tipo de violação aos direitos políticos, civis, econômicos, sociais e culturais. Essas violações têm origem no processo de colonização de nossos povos e se mantêm até hoje, através das desigualdades econômicas e, quando necessário, da repressão militar. No Brasil, 50% da população mais pobre detém 14% da renda e 1% dos mais ricos detêm 13% da renda. Nas favelas do Rio de Janeiro (e de todo o país), além da pobreza e da dor da perda de pessoas queridas, os moradores têm a sensação de que a justiça é um objetivo distante. Apesar disso, eles se organizam e contam com um sentimento que mais parece teimosia do que esperança. Como veículo de informação, o Brasil de Fato procura quebrar a barreira da indiferença e retratar a rotina diária de violência sofrida por trabalhadores, jovens, crianças, idosos, que vivem sob fogo cerrado. Acreditamos que os movimentos sociais tem papel fundamental nessa luta e devem ser protagonistas e construtores de sua própria história. Somente com muita luta e organização seremos capazes de acabar com todas as mazelas do capitalismo e construirmos uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária.
Luiz Ricardo Leitão
De São Bernardo ao Forte Hood: a morte das ideias DE TUDO QUANTO já se escreveu – e decerto se escreverá – sobre o obscuro episódio ocorrido no campus da Uniban, em São Bernardo (onde uma aluna do curso de turismo foi hostilizada e escapou de ser violentamente agredida por cerca de 700 estudantes que se indignaram com o fato de ela usar um ‘microvestido’ vermelho), o mais interessante que li até agora foi uma carta publicada na seção de leitores de um grande jornal paulistano. Lembra o missivista que, em 1977, policiais a cavalo invadiram a PUC-SP, espancaram e prenderam centenas de alunos, a fim de reprimir o movimento estudantil, que lutava para reabrir suas entidades. Pois em 2009, vejam só que triste ironia, a PM de um ex-presidente da UNE (o sr. José Serra) foi chamada para “salvar uma aluna acuada por centenas de cavalos matriculados”... Muita coisa aconteceu ao longo desses 30 anos, para que um evento aparentemente absurdo como esse pudesse eclodir. De imediato, porém, constatamos que a Universidade, com maiúscula, há muito deixou de ser aquela ágora grega em que dávamos curso ao livre debate das ideias. A Uniban, em especial, é um exemplo claro do novo ‘padrão’ universitário do país, em que a educação nada mais é do que uma mercadoria vendida por traficantes de ensino, que são subsidiados pelo Estado para negociar títulos e diplomas a preços módicos, em autênticas franquias comerciais que se espalham como cadeias de fast food Brasil afora. Foi o empório de São Bernardo, aliás, que estampou em enormes painéis de rua a imagem do ex-líder sindical e ex-deputado Vicentinho, apregoando os méritos da instituição onde ele próprio estudara, a fim de “qualificar-se” para a vida pública – e, em 2006, já formado, o amigo de Lula candidatou-se a prefeito da cidade, em chapa cujo vice-prefeito era exatamente o dono da Uniban... Naqueles anos 1970, em plena ditadura, 70% das universidades de Bruzundanga eram públicas e apenas 30%, privadas. Em duas décadas, os índices inverteram-se por completo, de sorte que ao final do reinado FHC atingíamos quase 80% de escolas privadas e só 20% de públicas. A pequena expansão da rede federal na era Lula, com a criação das IFF e a ampliação de vagas e cursos, logrou reduzir essa proporção (70% aquelas, 30% estas). Tamanha explosão do “mercado” teve efeitos drásticos entre nós. E, não por acaso, aquelas empresas que mais investem em propaganda, como a Unip e a Uniban, em São Paulo, obtêm os piores resultados no ENADE (o exame anual de desempenho estudantil que o MEC realiza). Em 2008, por exemplo, 11 cursos do empório de São Bernardo receberam nota 2 do Ministério, não possuindo, portanto, na avaliação oficial, quaisquer condições de continuar funcionando. Não estranho os números do MEC. Pela atitude de alunos, docentes e direção da Uniban, é fácil avaliar o seu ‘conteúdo’ ético e pedagógico. O Depto. Jurídico, é óbvio, tratou de criminalizar a vítima, valendo-se dos mesmos ‘argumentos’ que os estupradores usam para suas presas: ela provocou os colegas (“levantou a saia”, disse textualmente um advogado) e, por isso, recebeu o que merecia... Mais triste, porém, foi o comportamento dos professores: em lugar de conter o ânimo fascista da horda que cresceu em meio ao tenebroso caldo de cultura do neoliberalismo (‘educados’ na sociedade espetacular de BBB, Ratinhos, Casoys, Faustões e Galvões Buenos), os docentes somaram-se ao coro histérico da maioria. Ninguém teve sequer a iniciativa de promover um debate acadêmico sobre o surto coletivo – até porque, condicionados a repetir o que os manuais lhes ditam, eles nada teriam a dizer a seus alunos. Assim caminha a nossa era de consumo hipertrofiado, caro leitor, em que prospera o moralismo hipócrita neopentecostal e sua contraface, o liberalismo desenfreado do consumidor que não possui superego e cede às pulsões mais banais. Em lugar da energia dialética das ideias, cresce a intolerância e a exclusão social. As consequências, já vimos, podem ser incontroláveis e devastadoras. Que o diga o bom-mulato Obama, em sua desesperada esgrima retórica, tentando debelar as chamas de Forte Hood, no Texas, onde um oficial ianque, de origem palestina e credo muçulmano, resolveu solucionar à moda de um faroeste a segregação de que se sentia vítima nas forças armadas de Tio Sam. “Deus é grande!”, bradou o major antes de disparar o primeiro tiro na gigantesca base militar dos EUA; “In God we trust”, espelham as notas de dólar, o mais poderoso fetiche do imperialismo estadunidense; “Deus é fiel”, propagam bancos, empresas e até mesmo várias escolas de Bruzundanga... Parece que o mundo laico está com seus dias contados – e, se nossa resistência fraquejar, quem velará pela sobrevida das ideias Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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Redução da jornada: bandeira prioritária dos trabalhadores TRABALHO 6ª Marcha da Classe Trabalhadora une centrais em torno do tema; pré-sal e reforma agrária também estão em pauta José Cruz/ABr
Renato Godoy de Toledo da Redação A Constituição Federal de 1988 determinou que a jornada de trabalho máxima fosse reduzida de 48 para 44 horas. Com os avanços tecnológicos, os últimos 20 anos foram marcados por grandes saltos de produtividade e lucratividade das empresas. No entanto, a jornada de trabalho permanece no mesmo patamar desde então. O tema tem sido recorrente nas mobilizações das entidades dos trabalhadores, promovendo uma unidade inédita no sindicalismo brasileiro. Todas as centrais sindicais reúnem-se em Brasília no dia 11 (após o fechamento desta edição) na 6ª Marcha Nacional da Classe Trabalhadora, carregando a bandeira das 40 horas semanais. Quarenta mil manifestantes são esperados na Esplanada dos Ministérios. A Marcha ocorre anualmente e acumula conquistas como a política de reajuste do salário mínimo. O movimento sindical busca fazer pressão sobre o parlamento para que a proposta de emenda constitucional (PEC), apresentada pelo deputado federal Vicentinho (PT-SP), seja aprovada. O projeto do petista, além de reduzir a jornada de 44 para 40 horas semanais, sem diminuição de salário, implementa o aumento de 50% para 75% do adicional sobre o valor da hora-extra. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já afirmou ser favorável à medida, no entanto, para chegar até ele, a PEC precisa obter apoio de dois terços dos plenários da Câmara e do Senado, em dois turnos. No dia 30 de junho, ela foi aprovada na comissão especial da Câmara criada para analisá-la
Sindicalistas se reúnem com o ministro Luiz Dulci (ao centro) para pedir apoio na marcação da data de votação da proposta de Emenda de redução da jornada de trabalho
Pela primeira vez, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) engrossará a Marcha da Classe Trabalhadora Além de propiciar maior qualidade de vida ao trabalhador, a jornada de 40 horas deve gerar mais empregos, já que podem ser criados novos turnos. Os defensores da PEC apresentada por Vicentinho afirmam que a redução pode gerar 2 milhões de novos empregos. Resistência
A Confederação Nacional das Indústrias (CNI) se movimenta para barrar a proposta. Desde que ela foi aprovada na
comissão, os dirigentes da entidade patronal fazem campanha atribuindo à PEC um aumento do desemprego. Vicentinho afirma que a posição da CNI tem argumentos antigos. “Respeito a posição da CNI, mas o argumento é o mesmo de 25 anos atrás, quando conseguimos diminuir a jornada de trabalho no ABC e, posteriormente, na Assembleia Constituinte. No final, todos saíram ganhando, com cidadania no trabalho”, avalia o deputado, ex-presi-
dente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e da CUT. De acordo com Altamiro Borges, do Comitê Central do PCdoB, a redução da jornada é uma bandeira que não tem grandes consequências econômicas para o patronato. “É uma bandeira muito factível, mesmo dentro do capitalismo, pois reflete no aumento da produtividade. Ela não implicará em perda de lucros”, prevê. Porém, o cenário no Congresso pende mais para os interesses da CNI do que para o dos trabalhadores. Borges acredita que, nesse contexto, cabe aos movimentos realizar pressão, como a do dia 11 de novembro. “Só tem uma forma de passar: pressão popular. Posteriormente, tem a sanção do presiden-
te. Não acredito em veto presidencial, seria muita incoerência, pois o Lula já afirmou ser favorável, por conta de os empresários já terem lucrado demais”, afirma. Pauta ampla
Pela primeira vez, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) engrossará a Marcha da Classe Trabalhadora. A jornada de trabalho não é a única pauta da manifestação. Também são bandeiras a reforma agrária, o repúdio à perseguição aos movimentos sociais e a aprovação da PEC do Trabalho Escravo, que expropria terras com tais práticas para assentar famílias, além da renovação dos índices de produtividade. “Estão em nossa pauta os temas ligados à reforma agrá-
ria, em especial o limite de propriedade da terra, a criação de novos índices de avaliação de produtividade da terra e a aprovação da PEC do trabalho escravo, que está parada em banho-maria no Congresso”, disse o presidente da CUT, Artur Henrique, em entrevista coletiva. Outro ponto importante é a luta pelos rumos do pré-sal. Sob o lema “O pré-sal é nosso”, os trabalhadores pedem uma destinação social aos recursos oriundos do petróleo. “Defendemos que o fundo social que vai gerir o dinheiro preveja investimentos na reforma agrária e na seguridade social, além dos programas que o governo federal já propôs”, afirmou o cutista. (Com informações do Portal do Mundo do Trabalho)
ENTREVISTA
Depredações no Pará foram forjadas, diz MST Movimento sofre perseguição no Pará após ação na fazenda grilada do banqueiro Daniel Dantas da Redação Após o caso Cutrale, o novo foco da imprensa corporativa são as ações do MST no Pará, sobretudo nas terras do banqueiro Daniel Dantas, réu na Operação Satiagraha da Polícia Federal. A imprensa veiculou imagens de casas depredadas na fazenda do Grupos Santa Bárbara, mas o movimento nega que tenha sido o autor da ação. A terra é grilada e já foi ocupada diversas vezes. A governadora Ana Júlia Carepa pediu reintegração de posse após a divulgação das imagens. Além disso, a Polícia Civil do Pará pediu a prisão preventiva de Charles Trocate, coordenador do MST no Estado. O dirigente sem-terra concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato e rebate as acusações do governo estadual, da imprensa e dos fazendeiros. Veja a seguir. Brasil de Fato – Como tem sido a jornada de luta do MST no Pará e o que tem motivado
essa ofensiva contra o movimento? Charles Trocate – O MST do Pará iniciou uma jornada de lutas reivindicando uma pauta bem básica: desapropriação das terras do Daniel Dantas – o que é responsabilidade do Estado e do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) –, licença ambiental para os assentamentos e infraestrutura social. É uma pauta que já se arrasta há dois anos, desde a mobilização de 2007, quando ocupamos a ferrovia da Vale. Passado esse período, nenhuma resposta foi obtida e resolvemos nos mobilizar, o que levou a essa reação do governo estadual. Ele não dialoga e nem responde a nossa pauta, não nos espantamos com tal comportamento e imaginamos que, de agora para frente, o conflito tende a se agudizar. Qual é a situação das famílias acampadas e da reforma agrária no Pará? Há uma ofensiva dos ruralistas da região e o governo cedeu deliberadamente em favor dos fazendeiros, não nos deixando outra opção senão a luta. Desde 2006, lutamos para não sermos despejados. São 2,2 mil famílias em 11 acampamentos em todo Estado, enfrentando cotidianamente as empresas de segurança, os pistoleiros, a falta de interesse do Incra e do Iterpa e, por outro lado, enfrentando um processo de satanização pela imprensa do Estado.
Como você analisa a organização das milícias no Estado? O que está acontecendo é a repetição de um tempo histórico. Por exemplo, nos anos 1980, em que os fazendeiros grileiros reivindicavam a violência estatal para despejos, repressão, esmagamento dos acampamentos pelos pistoleiros e eliminação física dos dirigentes. O que está acontecendo hoje está no mesmo patamar.
exemplo, não deixa espaço para a reforma agrária e isso é tido como um aspecto avançado pelo atual governo.
Nesse cenário, como você vê a postura da governadora do Estado, principalmente por se tratar de uma pessoa do PT? Há uma nova questão agrária na Amazônia, e o governo, embora progressista em muitos aspectos, é deliberadamente conservador na questão agrária. Além do mais, o Pará é um Estado de conflitos sociais. Dos 7 milhões de habitantes, aproximadamente 4 milhões estão abaixo da linha da pobreza. É um Estado de conflitos ambientais e agrários. Há uma crescente disputa pelo território, pelo uso intensivo dos recursos naturais (terra, água, floresta, minério, biodiversidade etc.), gerando assim um conflito em que o Estado tem decidido pelos megainvestimentos, esgotando assim a possibilidade de avançarmos na democratização, em especial da terra. A regularização fundiária, por
Você poderia esclarecer o que de fato ocorreu nas fazendas de Daniel Dantas? Como o movimento responde às acusações de depredação? A luta que agora travamos, contra o latifúndio e o capital travestido de megainvestimentos, tem resultado em muitos impasses. No dia 25 de julho, data em que ocupamos a Fazenda Maria Bonita, da agropecuária Santa Bárbara, 22 companheiros foram baleados pela empresa de jagunços e um foi assassinado. Não há nenhuma investigação, tampouco prisão ou algo parecido. Nesse processo há mais morosidade do Incra e Iterpa para resolver o problema. Foi sendo criado um clima de hostilidade. De um lado os fazendeiros e seus mecanismos de pressão e coerção, de violência deliberada e, de outro, os trabalhadores esperando que
Queremos que a governadora tenha a mesma coragem em relação aos fazendeiros da região, que matam, ameaçam e torturam os trabalhadores. Pessoalmente, estou tranquilo o governo agisse como intermediador da negociação e da desapropriação. Nossas ações não têm nada a ver com as imagens publicadas na televisão e nas matérias da imprensa dominante. Isso é um álibi criado pela agropecuária. Tal como no caso da tentativa de massacre [em 25 de julho], em que ela comprou a imprensa e criou toda uma distorção do que realmente aconteceu. Como você avalia o papel da mídia nesse processo? Essa ofensiva está relacionada à CPI contra o MST? A grande imprensa opera sempre à margem da verdade. Como faz um papel de partido ideológico da burguesia, faltar com a verdade é algo tão natural. Desinformar para governar, desinformar para desorganizar e desinformar para eliminar são as máximas deles. O papel desempenhado pela imprensa visa criar um ambiente de justificação permanente, criando uma grande confusão de opinião que sempre coincide com uma opi-
nião conservadora sobre uma questão tão crucial para a sociedade brasileira. A CPI contra o MST é contra o pensamento progressista da sociedade e demonstra o grau de impasse. Há uma perspectiva de rebaixar a pauta da reforma agrária e, por último, os movimentos que a reivindicam. As contradições do atual momento encurtarão sim o espaço da reforma agrária na sociedade. Mas as verdades pré-fabricadas são de papel e se desmancharão nas primeiras chuvas do inverno. Em relação ao pedido de sua prisão, o que você tem a dizer sobre essa decisão da Polícia Civil? É uma prerrogativa do Estado, da polícia e até mesmo da governadora. Mas, no meu caso, nada mais é do que uma senil e descabida necessidade de produzir uma vítima: o MST e seus dirigentes. Toda vez que o governo se posicionar dessa maneira estará se produzindo um nível de equívoco que mais policializa a questão agrária do que cria um ambiente para resolver os conflitos. Queremos que a governadora tenha a mesma coragem em relação aos fazendeiros da região, que matam, ameaçam e torturam os trabalhadores. Pessoalmente, estou tranquilo. Não há provas que indiquem o pedido, não passa de um marketing para ficar bem com a burguesia agrária. (RGT)
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Uma agência regulada para o capital ENERGIA CPI das tarifas de eletricidade revelou o fracasso da Aneel em garantir os interesses da população brasileira Elza Fiúza/ABr
Eduardo Sales de Lima da Redação A AGÊNCIA CRIADA em 1996 para equilibrar o interesse público junto ao das empresas concessionárias de distribuição de energia elétrica reflete, no dias de hoje, as consequências dos interesses que visaram a privatização do setor. O alto lucro das distribuidoras e a hesitação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em resolver o problema dos elevados preços das tarifas expõem, além da falta de autoridade da reguladora, o objetivo de garantir os rendimentos de concessionárias e de grandes empresários ligados ao setor de energia. Instaurada no dia 18 de junho, a CPI das tarifas de energia elétrica reforçou-se politicamente quando ficou evidenciado que o rombo no bolso dos trabalhadores era gritante. Uma falha na metodologia de cálculo dos reajustes tarifários, presente desde 2003, produziu uma distorção que transfere todos os anos, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), R$ 1 bilhão do bolso dos consumidores para o caixa das concessionárias. “Um erro que persiste sete anos não é mais erro”, sentencia Luiz Dalla Costa, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Segundo especialistas, o valor pago a mais pelos consumidores, ante estimativa inicial de R$ 7 bilhões, pode atingir R$ 15 bilhões. Além do TCU, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) elaborou outro estudo apontando que, de 1995 a meados de 2008, a tarifa média teria subido nada menos que 398%. Essa alta nos preços da energia elétrica é conferida, de acordo com o estudo, ao modelo pós-privatização, que teria criado uma “enormidade de custos desnecessários e tornado o sistema menos confiável”. Para o professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP (IEE) Ildo Sauer, a Aneel sabia, desde 2007, que havia sérios problemas
A diretoria da Aneel em reunião: cobranças indevidas nas tarifas de energia desde 2002
nos contratos de concessão, porém, permitiu a permanência das cobranças. A afirmação de que o problema está no contrato de concessão também faz parte do relatório em fase de conclusão assinado por ele, pelo consultor em energia Roberto Pereira D’Araújo e pelo diretor de energia do Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo (Seesp), Carlos Augusto Ramos Kirchner. “Os contratos de concessão contêm uma fórmula que calcula o reajuste da tarifa elétrica ano a ano sem levar em conta ganhos em produtividade, ganhos em escala. O consumo cresce, mas alguns fatores de custo (para as distribuidoras) não crescem na mesma proporção. Essa diferença econômica é embolsada e vira lucro”, explica Sauer. O professor do IEE acrescenta ainda que, pelas contas do TCU, com o crescimento da demanda por energia, o preço deveria baixar aproxi-
madamente 2%. Mas ocorreu o contrário. Com autorização da Aneel, as distribuidoras reajustaram linearmente as tarifas quando algumas variáveis utilizadas na formulação do preço não poderiam receber correção.
Direção da Aneel pode ser acusada de omissão e ter que responder por ato de improbidade administrativa Carlos Kirchner denuncia que a sociedade não possui um mecanismo de controle. Ele cita que, dentre outros problemas de cálculos para obter os preços das tarifas, se
“Tiros” de misericórdia na energia pública Apesar de governo tucano ter privatizado o setor elétrico, governo Lula lavou as mãos da Redação Após a privatização, cada concessionária passou a cobrar de acordo com os seus custos. Atualmente, a tarifa residencial cobrada no Maranhão é de R$ 0,41 o kilowatt/ hora. No Rio Grande do Norte, o preço é de R$ 0,29. Essa diferença é apenas um exemplo das variações causadas após a privatização do setor. Em 2008, a maranhense Cemar registrou lucro líquido de R$ 228 milhões, ante R$ 180 milhões em 2007. Como lembra o professor Roberto D’Araujo, em artigo, esses R$ 0,41 pagos por um morador do Maranhão significam quase o dobro do que paga um cidadão de Toronto e 300% da tarifa de Quebec, no Canadá. Embutido na tarifa de energia elétrica cobrada ao maranhense e à população brasileira em geral, o erro no cál-
culo da tarifa de energia elétrica, que gera cobrança indevida de R$ 1 bilhão a mais por ano, tem origem, segundo especialistas, nos contratos de concessão firmados no ato das privatizações das elétricas. No entanto, foi o governo Lula que, mesmo tendo a oportunidade política, optou em não realizar uma reforma profunda no setor elétrico brasileiro.
“É o governo anterior [de Fernando Henrique] o principal culpado”, atesta Ildo Sauer Enfim, o tiro de misericórdia no conceito de serviço público foi feito pela lei 8.987/ 95 das concessões, como lembra o professor D’Araujo. Além de estabelecer que a tarifa não seria subordinada à legislação específica anterior, a grosso modo, dava plenos poderes à empresa concessionária que vencesse a licitação, permitindo que ela executasse o preço que lhe era mais aprazível.
Por isso, “é o governo anterior [de Fernando Henrique] o principal culpado”, atesta Ildo Sauer. Mas o problema, segundo o professor, poderia ter sido corrigido já em 2003, quando da posse do novo governo federal. “Havia autoridade política, técnica e ética para fazer isso. Optou-se por não fazer”, lembra Sauer. Foi feita, segundo ele, uma reforma superficial em 2004. “Como o próprio governo disse, foi um conjunto de medidas negociadas entre os agentes, somente com a sua arbitragem”, afirma. O problema central nesse “processo participativo” é que as vozes hegemônicas defendiam os interesses das empresas. “Não havia movimentos sociais, especialistas de universidades e nem representantes dos consumidores. O diagnóstico profundo e necessário para verificar o que estava em jogo e o que estava prejudicando os interesses populares não foi feito”, conclui. Luiz Dalla Costa, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), acrescenta que foi justamente neste governo que “inventou-se um monte de regras para justificar” os altos preços pagos pelas tarifas de energia elétrica. (ESL)
insere a questão da empresa de referência, um dispositivo contábil que legitima a existência de inúmeras variáveis de gastos. Resumindo, tratase de uma empresa “fantasma” que funciona como base para que se calcule os gastos da distribuidora. Segundo Kirchner, as pessoas pagam, na verdade, por essa “empresa referência”. Outro problema, de acordo com Kirchner, é o fato de as distribuidoras contratarem empresas que fazem o cálculo da tarifa. “A Aneel mesmo poderia contratar. É muito fácil pôr um intermediário e colocar o erro nele”, explica. Fracasso Sauer lembra que o governo federal ficou negando “essa história”. “Primeiro tentou não instalar a CPI, depois tentou desqualificar o trabalho dela”. Finalmente, segundo ele, as próprias distribuidoras de energia elétrica reconheceram que havia algo prejudicial aos interesses
da população brasileira e até sinalizaram promover o seu ressarcimento. “Está ficando claro agora de onde vêm esses lucros; vêm de instrumentos contratuais errados, inclusive sem base legal, mas que o órgão regulador, criado no governo anterior para ser o protetor do grande capital dos investidores, criou por meio de mecanismos que permitiram fazer isso”, arremata o professor do IEE. De acordo com a lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 (instrumento que balizou todos os contratos de concessão para a privatização), a agência é responsável direta por manter o equilíbrio econômico-financeiro, seja em defesa das distribuidoras, seja em defesa dos consumidores, como agora. Por este e outros motivos, daqui para a frente é a Aneel que deve tomar as rédeas da situação. No entanto, ela parece não querer fazê-lo. A agência encaminhou nota na qual diz que, em nome da
“segurança jurídica”, a correção do problema que gera a distorção para os consumidores implica alteração do contrato de concessão. Mas, na mesma nota, ela diz que isso “depende necessariamente de negociação prévia entre as partes [Aneel e concessionárias]”. Para a agência, mesmo sendo a responsável pelos contratos, não pode fazêlo sem negociação. Ildo Sauer pensa diferente. Segundo ele, o agente público que cometeu o equívoco não só tem o direito como a obrigação de refazer os contratos e impor unilateralmente as condições, porque, se fosse o contrário, perderia o sentido. “Eu posso até admitir que o erro inicial na fórmula que está no contrato possa ter sido cometido sem má-fé. Só que, no momento em que o erro foi constatado, a obrigação do órgão é corrigi-lo imediatamente para impor o equilíbrio e restaurar o império soberano da Lei. Isso não foi feito pela Aneel nesse caso”, afirma Sauer. Para o presidente da CPI das tarifas de energia elétrica, deputado Eduardo da Fonte (PP-PE), a agência não quer se confrontar com as distribuidoras, e é por isso que insiste na publicação de uma nova portaria interministerial, sem mexer nos contratos de concessão. O problema de uma nova portaria é que daria solução apenas de agora em diante, sem uma solução para os valores pagos pelos consumidores até agora. Segundo a Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Pro Teste), ao não reconhecer o problema, a direção da Aneel pode ser acusada de omissão e ter que responder por ato de improbidade administrativa. Serão realizadas audiências públicas até o dia 27 para chegar a um posicionamento final da Aneel e das distribuidoras em relação a como será feita a correção dos preços de agora em diante. Para Sauer, toda essa demora demonstra o fracasso total da agência reguladora do Ministério de Minas e Energia e do governo em olhar para o problema e identificá-lo.
Um mercado “livre” da CPI Para especialista, CPI deveria ir mais a fundo e investigar os meandros das negociatas de energia elétrica da Redação “O modelo atual está dando certo. Com os leilões e o mercado livre, temos garantia de oferta e espaço para tarifas menores para os grandes consumidores”. Foi o que afirmou recentemente Antônio Machado, presidente da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Sob o ponto de vista dos 660 grandes consumidores de energia elétrica do país, que pagam tarifas irrisórias, Machado está corretíssimo. O problema é que ele representa apenas algumas grandes empresas, e não os milhões de brasileiros que pagam uma das mais caras tarifas de energia elétrica do mundo e que, por conta disso, sustentam esse tal “mercado livre” de energia elétrica, uma redoma de especulação financeira composta, justamente, por essas empresas. Ildo Sauer argumenta que, com as vendas abaixo do
custo desde 2003, existe um considerável excedente econômico transferido das geradoras para esses compradores livres. E isso também estaria embutido nos cerca de R$ 15 bilhões cobrados a mais do povo brasileiro e que foram revelados pela CPI. “É isso que a CPI também deveria investigar”, defende Sauer.
As tarifas para residências subiram 209% entre 1995 e 2002, contra 95% das industriais Segundo o especialista, nos últimos anos, as geradoras estatais foram compelidas pelo modelo regulatório, implantado em 2003, a vender energia que custa de R$ 80 a R$ 120 o megawatt/hora por algo como R$ 18 a R$ 20 o megawatt/hora, e “essa energia beneficiou essencialmente esses 660 grandes consumidores industriais brasileiros”, informa. “Beneficiou também umas duas dúzias de intermediárias comercializadoras, algumas delas pertencentes às distribuidoras de energia elétrica, que compravam ener-
gia a R$ 22 por megawatt/ hora, revendia para sua distribuidora ao preço cheio de mais de R$ 100 megawatt/ hora e embolsavam o lucro”, explica. Por consequência, o prejuízo ficou em cima do chamado “mercado cativo”, formado pela ampla maioria dos consumidores e pequenas empresas. Dados do consultor em energia Roberto D’Araújo demonstram que as tarifas para residências subiram 209% entre 1995 e 2002, contra 95% das industriais. Acrescentam-se a esses números os lucros de até 103% obtidos pelas distribuidoras sobre seus patrimônios líquidos entre 2007 e 2008. Em média, segundo o cálculo de Sauer, a rentabilidade das empresas do setor ficou em 26% no período, contra 8% das geradoras, na sua maioria estatais. Com todas as benesses às distribuidoras e grandes indústrias não desveladas, reserva-se um futuro ainda injusto no setor elétrico brasileiro. Sauer cita que, em 2004, o governo federal renovou o contrato por mais 20 anos, obrigando a Eletronorte a vender energia por metade do custo a empresas eletrointensivas.“Todas essas coisas deveriam ser investigadas, mas não são; tanto governo como oposição não querem investigar”, dispara. (ESL)
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Hidrelétrica de Belo Monte: grana, seca e caos nos caminhos do Xingu Renato Araújo/ABr
ENERGIA Ibama está prestes a ceder licença ambiental para construção de usina; leilão está marcado para o dia 21 de dezembro
ção ribeirinha tradicional da Amazônia, além de famílias indígenas dispersas pela beira do rio. Os pesquisadores concluíram que os efeitos sobre a população da Volta Grande serão equivalentes a uma seca permanente, com importante perda de fauna aquática e terrestre, além de escassez de água, o que incidirá diretamente na vida dos indígenas que vivem na região. Segundo outra integrante do “Painel”, Nirvia Ravena, professora da UFPA, “ao deixar de existir, a segurança hídrica é um direito violado, mas uma vez que ela sequer é mencionada não há como detectá-la no estudo de impactos ambientais [EIARima]”, afirma.
Eduardo Sales de Lima da Redação A CONSTRUÇÃO DA Usina Hidrelétrica de Belo Monte poderá causar um dos maiores desastres ambientais e sociais da região amazônica. Submetido à pressão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), das concessionárias de energia elétrica e de mineradoras como Alcoa, Alunorte, Albras e Vale, o Ibama está na iminência de liberar o licenciamento ambiental para que ocorra o leilão de construção da barragem no norte do Pará. Por seu lado, os povos da região se uniram a ambientalistas e a um conjunto de especialistas de diversas universidades brasileiras para denunciar a falta de diálogo por parte do governo federal e a imprecisão dos estudos de impacto da construção de Belo Monte, sobretudo na região da Volta Grande do Xingu. O Painel de Especialistas: Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte foi entregue ao Ibama e ao MPF de Altamira em outubro e aponta diversas omissões e falhas nos estudos de impactos ambientais e sociais e questionou até mesmo a viabilidade econômica da hidrelétrica. “ Os estudos do governo são insuficientes. Há um número subestimado sobre a população afetada. Não há uma metodologia que dê o número exato de pessoas atingidas na região. Até hoje, não se sabe quantas famílias serão compulsoriamente retiradas de suas moradias”, explica a antropóloga Sônia Magalhães, da Universidade Federal do Pa-
Indígenas protestam em frente ao Ministério de Minas e Energia contra a construção da Usina de Belo Monte
Os pesquisadores concluíram que os efeitos sobre a população da Volta Grande, principalmente indígenas, serão equivalentes a uma seca permanente rá (UFPA), uma das coordenadoras do “Painel de Especialistas”. Segundo ela, a própria Aneel afirma que os estudos são insuficientes. Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, lembrou, em carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que não existem cálculos exatos, “fidedignos”. “E as empresas (e o BNDES) não saberão quanto terão de gastar com os custos sociais”, acrescentou. Inviável De acordo com Sônia Magalhães, além da forma ser equivocada, ainda existem muitas dúvidas sobre o custo da obra. “O valor ainda não veio do Tribunal de Contas da União
(TCU). Fato é que o próprio presidente da Eletrobrás falou em custos que podem chegar a R$ 60 bilhões para uma usina que estará parada vários meses durante o ano”. A estimativa é que a eficiência energética de Belo Monte seja reduzida, visto que durante três a quatro meses por ano as águas estarão baixas. Nesse período, a potência não ultrapassará os 1.100 megawatts. Com a alternância de vazão (alta e reduzida), os 11 mil megawatts serão apenas de patente instalada e 4 mil megawatts de energia. O projeto só terá condições de alcançar a potência almejada pelos técnicos da Ele-
trobrás se forem construídas outras três usinas rio acima (Altamira, Pombal e São Félix). Nesse caso, outros territórios indígenas demarcados e homologados e áreas de conservação ambiental seriam atingidos. Para os especialistas do “Painel”, a inédita ineficiência energética do projeto e o processo acelerado e atropelado das audiências públicas mostram que o governo e as empreiteiras pleiteiam uma grande obra a qualquer custo. Volta “seca” Segundo o estudo, o desvio de mais de 80% da vazão do rio Xingu para dois canais artificiais no caminho para a casa de força (onde se produz a energia) deixará as populações da Volta Grande do Xingu em situação de insegurança hídrica e alimentar. Nessa região, os dez municípios que estão ao redor do que seria a área de implantação da hidre-
létrica têm aproximadamente 25 milhões de hectares e cerca de 70% dessa área são protegidos, somando terras de indígenas e unidades de conservação. Ao longo de cerca de 100 quilômetros, diversos impactos biológicos e sociais, como os problemas para a navegação e os efeitos sobre as florestas inundáveis. Como discorre Geraldo Mendes dos Santos, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), no “Painel de especialistas”, “um conjunto das espécies que vivem neste trecho do rio não sobreviverá sob um regime de vazão imposto por decreto ou norma administrativa, quer estas venham do governo, das empresas ou mesmo da ciência”. Os índios que ficarem nessa região sofrerão essa alteração importante, sobretudo os Juruna e Arara. Além dos índios que moram nas terras indígenas, há uma popula-
Caos O EIA-Rima não fez projeções de desmatamento devido à atração populacional, mas estas são fundamentais também se considerando a proximidade das unidades de conservação (UCs) e terras indígenas (TIs) com as áreas que serão ocupadas pelas obras e pelo afluxo populacional. O EIA afirma que serão atraídos para a região pelo menos 96 mil pessoas. Os estudiosos sinalizam para mais de 100 mil, com deslocamento forçado de 20 mil pessoas. “Já existe um deficit grande na saúde e educação das cidades da região, como Vitória do Xingu e Altamira, e nenhuma empresa vai incluir essa ajuda. Como houve em outros casos, haverá um caos social”, defende Sônia Magalhães. Para dom Erwin, todo setor energético envolvido na questão da usina hidrelétrica de Belo Monte tem a obrigação de atentar para esses estudos, “não podem tapar os ouvidos e os olhos”. Ele reforça que é antidemocrático e ditatorial o governo federal não dialogar com os povos da região e acrescenta que o estudo dos especialistas compõe “argumentos insofismáveis”. “Ele [Lula] nos prometeu que [o projeto] não seria imposto goela abaixo”. (Com informações do “Painel de Especialistas”)
População quer ser ouvida, caso contrário... Verena Glass
Diretamente afetados, indígenas querem maior peso no diálogo sobre o projeto da Redação O rio Xingu testemunhou a mobilização de 170 pessoas que, entre os dias 5 e 7, reuniu povos indígenas, ribeirinhos, extrativistas e ambientalistas no 2º Encontro dos Povos da Volta Grande do Rio Xingu, na Vila Ressaca, a duas horas de Altamira (PA). O objetivo central desse encontro foi justamente unir os povos da Volta Grande do Xingu para dialogar sobre o projeto Hidrelétrico de Belo Monte e seus impactos. Os indígenas não descartam a possibilidade de haver sérios conflitos se o Ibama conceder a licença ambiental para que se inicie o leilão da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Isso tudo porque o governo federal ignorou que na região existiam povos indígenas e que, por lei, deveriam ser ouvidos. Os índios ainda não foram ouvidos, conforme recomenda a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “A intenção [do conflito] vem do outro lado, não dos indígenas. As pessoas que encabeçam a construção de Belo Monte são as primeiras
que procuram os confrontos; não nos escutam”, afirma o bispo de Xingu, dom Erwin Kräutler. Segundo o procurador federal Rodrigo Costa e Silva, que acompanha o caso de Belo Monte, são necessárias mais audiências públicas e explicações mais detalhada sobre o que vai acontecer. “Fomos procurados pelas lideranças indígenas, que querem um maior peso de diálogo. Mas não só eles. Os ribeirinhos e os pequenos agricultores também querem saber mais sobre o que está acontecendo. Queremos um processo democrático”, afirma. O procurador federal afirma que, além da pressa em iniciar a construção de Belo Monte, a falta de diálogo e de esclarecimento têm marcado esse licenciamento, que é um dos principais focos de tensão na região. As audiências públicas têm sido questionadas pelo MPF, basicamente, por não proporcionarem condições de participação à população. Havia um regulamento desigual no qual os empreendedores e seus técnicos podiam falar, e a assembleia só podia utilizar três minutos para fazer questões.
ta Grande do Rio Xingu, esse processo desnuda o sucateamento da entidade, realizado pelo próprio Estado. “Ela [Funai] se transformou muito mais para referendar os projetos do governo do que servir como um instrumento de negociação e mediação. Os índios não a reconhecem mais”, afirma Ana Paula.
A cachoeira de Jericoá, no Rio Xingu
Procurador federal afirma que, além da pressa em iniciar a construção de Belo Monte, a falta de diálogo e de esclarecimento têm marcado esse licenciamento Funai Enquanto o Ibama não define sua resposta em relação ao licenciamento, a Fundação Nacional do Índio (Funai)
emitiu um parecer declarando a hidrelétrica viável e considerou não serem necessárias mais consultas populares. Isso causou revolta entre os índios.
Embora a entidade tenha condicionado a viabilidade da obra ao cumprimento de algumas ações, como definição de uma vazão mínima que garanta a sobrevivência dos peixes e quelônios e a navegabilidade das embarcações dos povos indígenas, a antropóloga Sônia Magalhães considera o “parecer contraditório”. Para Ana Paula Souza, coordenadora da Fundação Viver Produzir e Preservar (FVPP) e uma das organizadoras do 2º Encontro dos Povos da Vol-
Pressão Para ela, tanto o “Painel de Especialistas” como a entrada de mais pessoas oriundas no processo das comunidades pressionará um diálogo maior junto ao governo federal. “Agora, até a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) disse que quer fazer uma reunião conosco”, revela. Para que ocorra sua construção, a usina hidrelétrica de Belo Monte precisa passar por três tipos de licenciamento. Primeiro é a licença prévia, requisito para que ocorra o leilão. Após o leilão, para que as obras se iniciem, existe a licença de instalação. Por último, vem a licença de operação. Para o procurador federal Rodrigo Costa e Silva, se deixarem o processo de participação popular para depois, “vai ficar difícil questionar ou estabelecer os cronogramas, as metas de mitigações”. E entende que, se sair o leilão, que saia somente “dentro da legalidade”, com participação de todos os envolvidos. (ESL)
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Apenas um mulato baiano
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Justiça argentina
Reprodução
MEMÓRIA Movimentos e organizações sociais relembraram, no dia 4 de novembro, o assassinato de Carlos Marighella pelo regime militar
Direitos autorais
A entidade patronal Associação Nacional de Jornais acaba de assinar o acordo internacional chamado “Documento de Hamburgo”, que protege a propriedade intelectual de material jornalístico veiculado na internet. Não passa da mais pura hipocrisia, já que as empresas jornalísticas brasileiras não respeitam os direitos autorais de seus funcionários e não remuneram os jornalistas pela reprodução de textos e fotos em outros veículos.
Dafne Melo da Redação APENAS UM MULATO baiano. Assim se definia Carlos Marighella. Mas, para militantes de esquerda de hoje e de ontem, Marighella é muito mais que isso. Prova disso foram os inúmeros atos, em diversas cidades do Brasil, realizados para relembrar os 40 anos do dia em que o militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) foi assassinado pela ditadura civil-militar brasileira, aos 57 anos. “Marighella é importante não só por sua presença, mas também por sua ausência. A ausência dele pesou muito no que foi a história depois. Talvez por isso a esquerda recorre muito ao que ele foi. A ausência dele pesa na história”, avalia o advogado Aton Fon Filho, exmilitante da ALN. Para o historiador Edson Teixeira, que acaba de lançar uma biografia do militante intitulada Carlos, a face oculta de Marighella, o membro da ALN “é mais do que um personagem, é uma forma de educação, de pedagogia para a formação do caráter, para a formação militante”. Por isso, é ainda hoje reverenciado por diferentes gerações de lutadores sociais. Teixeira destaca a importância das celebrações, no sentido de construir uma memória histórica desde uma perspectiva da esquerda. “Produzimos uma identidade do passado recente com o tempo presente, reafirmando que as lutas políticas possuem uma historicidade. E, mais ainda, aprendemos que o conformismo é a morte, como dizia o próprio Marighella. Creio que é fundamental essa recuperação histórica. Ela dimensiona o quanto estamos inseridos numa cultura política mais ampla, de lutas específicas, de lutas atemporais, que contribui para uma identidade dos movimentos sociais”.
Para o historiador Edson Teixeira, o membro da ALN “é mais do que um personagem, é uma forma de educação, de pedagogia para a formação do caráter, para a formação militante” Início Ainda que no imaginário Marighella esteja vinculado à resistência à ditadura civil-militar, sua militância começou décadas antes, em Salvador, onde nasceu, em 1911, fruto da união entre um imigrante italiano e uma mãe negra descendente de escravos. Em 1932, entrou na juventude comunista e já então aprendeu que a repressão faz parte da luta: du-
Desde a posse de Néstor Kirchner na presidência da Argentina, em 2003, foram abertos ou reabertos 800 processos para apuração dos crimes praticados pela ditadura militar (1976-1983), dos quais 18 foram a julgamento, com 51 condenações. No total, a Argentina julgou 548 processos e colocou na prisão 378 acusados por crimes de violação dos direitos humanos, inclusive todos os ex-presidentes militares. No Brasil, nada!
Acordo supremo
Manifestantes na Cinelândia, no Rio de Janeiro, lembram os 40 anos da morte do guerrilheiro
Aton Fon Filho chama a atenção para o fato de que o destaque que se dá à opção de Marighella pela luta armada tem um peso em sua biografia que deve ser relativizado rante uma manifestação estudantil que exigia do governo Getúlio Vargas uma Constituição para o país, foi preso e espancado pela polícia, na primeira de muitas detenções. Estudante de Engenharia, decidiu largar o curso e entregar-se inteiramente à militância. A pedido do Partido Comunista do Brasil (PCB), veio para São Paulo em 1937 quando, segundo Aton Fon, ele já era um nome de peso na organização. “Ele vem com a tarefa de reorganizar o PCB, que havia sido golpeado com o levante de 1935. Então, o Partido precisava de alguém que o reconstruísse e lhe desse um novo ímpeto para se reorganizar”. Pouco tempo depois, é preso de novo e torturado por 23 dias. Após dois anos, já sob a ditadura do Estado Novo, é detido novamente, mas, dessa vez, permanece na prisão por quase seis anos, sendo liberado apenas com a Anistia de 1945. Nessa época, Marighella candidata-se a deputado federal pela Bahia para a Assembleia Nacional Constituinte. Ganha e divide a bancada comunista com outros 14 companheiros, num período em que o PCB gozava de grande popularidade. Mas, com a Guerra Fria se intensificando, a alegria dura pouco e o Partido cai na ilegalidade em 1947. “Nesse momento, a tarefa dele é organizar a base sindical do partido em São Paulo, principal polo industrial do país. Ele atua na organização e participa da greve de 1953, a chamada greve dos 100 mil. Ou seja, Marighella tinha grande capacidade de
organização e uma liderança muito grande dentro do Partido”, explica Fon. Golpe de 1964 A década de 1960 começou conturbada, com a imposição de um regime parlamentarista orquestrado pela direita receosa de passar o poder a João Goulart. Grande parte da esquerda, hegemonizada pelo PCB, não acreditava na possibilidade de um golpe militar caso as agitações sociais se intensificassem, e tampouco pensava em uma saída armada para o conflito. O golpe de 1964 confirma as análises que Marighella e outros integrantes do Partido já faziam há algum tempo, tornando maiores as divergências dentro da organização. Logo de início, o regime militar deixou claro que Marighella era um de seus inimigos principais e não hesitaria em eliminá-lo. Em 9 de maio de 1964, policiais tentam prendê-lo, mas Marighella resiste. Leva um tiro no peito, mas sobrevive. Da experiência, escreve um livro: Por que resisti à prisão, onde já começa a falar da necessidade de uma resposta armada ao golpe. A linha defendida por Marighella começa a ganhar apoiadores. Em 1967, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, em suas conferências estaduais preparatórias para o 6º Congresso do PCB, decidem questionar a linha política oficial do Partido. A resposta do comitê central é afastar esses militantes, acusados de divisionismo. Marighella, junto com outros companheiros, funda a Ação Libertadora Nacional.
Guerrilha Aton Fon Filho chama a atenção para o fato de que o destaque que se dá à opção de Marighella pela luta armada tem um peso em sua biografia que deve ser relativizado. “Alguns têm a impressão de que Marighella se define como revolucionário pela questão da luta armada, mas é uma visão equivocada, porque esquece justamente as três décadas anteriores de militância no PCB. Marighella nunca definiu que ser revolucionário dependesse de apoiar ou não a luta armada. O que ele definiu é que, naquele momento, após o golpe militar, fecharam-se muitas condições para as atividades políticas. Por isso, tendo sido militarizada a situação, também teríamos que dar uma resposta à questão militar”, explica o advogado. Edson Teixeira também afirma que foi a conjuntura que fez de Marighella um guerrilheiro. “As condições objetivas e subjetivas da luta política daquele momento exigiam uma resposta e uma proposta. Se ela foi derrotada é outra história. Ela foi derrotada por uma tirania, mas ela não foi derrotada politicamente. O caminho da guerrilha não está colocado no presente, mas muitas das suas motivações ainda persistem”, opina. Bastante ativa, a ALN realizou diversas operações táticas armadas de expropriações nas cidades com o intuito de financiar uma guerrilha urbana de caráter estratégico. A morte de Marighella, entretanto, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, após uma emboscada coordenada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, foi um duro golpe para as organizações de esquerda, sobretudo para a ALN, segundo Fon. “Ora, se você perde aquele dirigente que tinha essa capacidade de ordenar o pensamento, de atrair militantes e organizálos e dar um sentido de combate a essa força, evidentemente se enfraquece”, avalia.
Serviço
Mostra revela vida de Marighella O Memorial da Resistência, em São Paulo, exibe até 25 de maio de 2010 a mostra “Marighella”, que reúne fotos, textos e depoimentos em vídeo de personalidades sobre o militante.
Memorial da Resistência Estação Pinacoteca Largo General Osório, 66 - Luz São Paulo - SP Telefone: (11) 3335- 4990, ramal 27 E-mail: memorialdaresistencia@pinacoteca.org.br www.pinacoteca.org.br
COOPERATIVA CENTRAL DE REFORMA AGRÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO – CCA/SP Alameda Olga, 399 – Barra Funda – São Paulo – 01155-040 Fone/fax: (11) 3663-5287 Inscrição Estadual: 149.438.279.118 CNPJ 00.163.867/0001-68 NIRE- 35400024925 COMUNICADO Vimos por meio deste, para que surtam os efeitos legais, comunicar o extravio das duas vias originais da Ata de Assembleia Geral da Cooperativa Central de Reforma Agrária do Estado de São Paulo (CCA), datada de 10/10/2003, sob o número de registro de arquivamento na Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp) 426.934/04-0, arquivada na sessão 30/09/2004. Sem mais a comunicar, firmo a presente como representante eleita para o triênio 2009/2012. São Paulo/SP, 6 de novembro de 2009. ROSELY MARIA PAINY CPF 148.539.078-82 Presidente eleita triênio 2009/2012
Ao aceitar as denúncias contra o ex-governador Eduardo Azeredo, de Minas Gerais, no caso do valerioduto ocorrido em 1998, o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, sinalizou que o mesmo poderá ocorrer com os 40 indiciados no mensalão do governo Lula, em 2005. Talvez seja por isso mesmo que o novo ministro José Antonio Dias Toffoli pediu vistas ao processo. A massa da pizza começa a ser preparada.
Brasil desigual
O Estado brasileiro tem sido muito fértil nos exemplos de truculência contra pobres, negros, trabalhadores e movimentos sociais. Todos são cotidianamente criminalizados, enquanto as elites fazem o que bem entendem. Os poderes da República tratam de forma completamente diferente os privilegiados e o povão: para os primeiros, todos os direitos; para os demais, a dureza das leis e a ira do aparelho repressivo. Até quando?
Bancada privada
A Justiça Eleitoral de São Paulo aprovou a cassação de 13 vereadores da capital paulistana, todos porque receberam doações da Associação das Imobiliárias Brasileiras acima do que é permitido na lei. É claro que eles continuam nos seus mandatos e podem recorrer sem se afastar da Câmara Municipal. Trata-se de uma poderosa bancada patrocinada pelo lobby da especulação imobiliária. Basta uma pequena mudança na lei do zoneamento!
Safadeza – 1
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária determinou a suspensão da propaganda do medicamento Abelcet, que é utilizado para combater doenças provocadas por fungos. Segundo a Anvisa, a propaganda era enganosa, adulterava dados de pesquisas para induzir o consumidor a considerar o produto eficiente. Só falta agora recolher o remédio e determinar que o Laboratório Bagó indenize quem foi enganado.
Safadeza – 2
A Anvisa tem apreendido – cada vez com maior frequência – lotes de inseticidas contrabandeados e vendidos a agricultores brasileiros, inclusive com substâncias altamente tóxicas e proibidas para o uso na produção de alimentos. Além de ser o campeão mundial dos agrotóxicos, a maior parte importado de grandes multinacionais, o Brasil é alvo da pirataria de venenos quase sempre com cooperação de empresas locais.
Direita aliada
Principal aliada dos Estados Unidos na América do Sul, a Colômbia tem atualmente mais de 7 mil presos políticos: uma parte de integrantes de grupos insurgentes, outra de moradores nas áreas de conflito e um terceiro grupo formado por dirigentes sindicais, líderes sociais e defensores de direitos humanos acusados de pertencerem à guerrilha. E a imprensa brasileira ainda trata a Colômbia como modelo de democracia!
Desprezo oficial
Milhões de aposentados aguardam uma definição do governo federal sobre o reajuste de sua aposentadoria para 2010. Milhões de trabalhadores aguardam a posição do governo federal sobre a mudança de critérios para a aposentadoria e a retirada do fator previdenciário. No entanto, a ausência de acordo entre o governo, o Congresso Nacional e as centrais sindicais deixa aposentados e trabalhadores a ver navios. Pode?
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brasil
“Julgamento de Battisti é uma farsa” Valter Campanato/ABr
ENTREVISTA Para Carlos Lungarzo, militante de direitos humanos e membro da Anistia Internacional, processo no STF sobre extradição de ex-guerrilheiro baseia-se em “fraude” iniciada na Itália Dafne Melo da Redação A LONGA ESPERA do escritor italiano Cesare Battisti poderá chegar ao fim no dia 12 (dia da veiculação desta edição), quando o Supremo Tribunal Federal (STF) dará prosseguimento ao julgamento de pedido de extradição feito pelo governo da Itália. Na primeira audiência, quatro ministros votaram a favor da extradição e três contra. Marco Aurélio de Mello pediu vistas, o que paralisou o processo. Em entrevista ao Brasil de Fato, Carlos Lungarzo, militante de direitos humanos, membro da Anistia Internacional dos Estados Unidos e professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que Mello certamente irá votar contra a extradição. Resta ainda a dúvida se o mais novo membro da casa, José Antonio Dias Toffoli, indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, irá votar ou não. “Tenho expectativas moderadamente otimistas”, diz Lungarzo, que prepara um livro sobre o caso Battisti, ainda sem previsão de lançamento. Cesare Battisti foi preso em 2007 no Brasil. Militante da organização italiana Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) entre 1976 e 1978, é detido em 1979 e condenado, dois anos depois, a 12 anos de prisão por ocultar armas e formação de bando armado. Foge, então, para o México, depois França. Em 1993, na Itália, é acusado e condenado à prisão perpétua por quatro homicídios. Battisti, em entrevistas à imprensa, defende- se das acusações e diz que não era um “militante militar”, ainda que tenha participado de assaltos à mão armada para financiar as atividades de sua organização.
“Todos nós sabemos que, apesar de o STF ter algumas figuras boas, o presidente Gilmar Mendes e Cesar Peluso, o relator do caso, atuam de maneira muito arbitrária” Seus defensores apontam uma série de contradições e irregularidades que põem em dúvida a legitimidade de seu julgamento. Nenhuma testemunha o teria reconhecido. Além disso, o processo de 1993 contou com depoimentos de ex-militantes que receberam benefícios através da “delação premiada” ou que deram as declarações sob tortura. Segundo Lungarzo, não há uma única prova concreta, e o réu foi julgado à reve-
Ministros do STF no julgamento do processo de pedido de extradição de Cesare Battisti, realizado em setembro
“Provas materiais não há nenhuma, nenhum laudo técnico. Sua condenação, em 1993, também se deu com depoimentos de militantes que colaboraram com a Justiça” lia. O fato mais contraditório é que Battisti foi condenado por dois homicídios que ocorreram no mesmo dia, um em Milão, às 15h, e outro em Mestre, às 16h50. A distância entre as cidades é de 275 quilômetros, aproximadamente. Leia a seguir a entrevista com Carlos Lungarzo. Brasil de Fato – Quais são suas expectativas em relação ao julgamento do dia 12 de novembro?
Carlos Lungarzo – Tenho expectativas moderadamente otimistas. A votação está quatro a favor da extradição e três contra. Com o voto do ministro Marco Aurélio de Mello, que certamente votará contra a extradição, teremos um empate. De acordo com o regimento interno do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente, nesse caso, o Gilmar Mendes, não pode dar o voto de minerva, salvo fosse um assunto de grande repercussão pública. Se o regimento for respeitado por Gilmar Mendes, o empate favorece Cesare Battisti. Mas todos nós sabemos que, apesar de o STF ter algumas figuras boas, Mendes e Cesar Peluso, o relator do caso, atuam de maneira muito arbitrária. Isso é perigoso e talvez não se possa manter o equilíbrio necessário. Outra possibilidade é que outros ministros entrem para votar e há, possivelmente, um ministro que teria dito que pode mudar seu voto. Então, sou moderadamente otimista. O senhor poderia fazer um resgate do caso Battisti?
Ele foi capturado por uma operação conjunta da Polícia Federal brasileira, serviço secreto italiano e Interpol em 18 de março de 2007. Imediatamente após ter conhecimento do fato, o governo italiano pediu sua extradição, que começou a ser tramitada. Porém, a Itália não a fez conforme as regras, ou seja, através do Ministério das Relações Exteriores [Itamaraty]. Eles foram direto ao STF, numa postura petulante do governo italiano, que demonstrou menosprezo pelo governo brasileiro. Então, em janeiro deste ano, o ministro Tarso Genro deu a Battisti a condição de
refugiado pela lei 9.474/1997 [que versa sobre concessão de refúgio]. No artigo 33, há a definição de que o reconhecimento da condição de refugiado, que é dada pelo Executivo, impede qualquer pedido de extradição. Ou seja, no momento em que Tarso Genro concedeu o refúgio, o processo de extradição se extinguiu. O STF, entretanto, decidiu aceitar o pedido do governo italiano, mas, a rigor, esse processo não existe, foi eliminado. Três ministros, inclusive – Eros Grau, Joaquim Barbosa e Carmen Dulce, que votaram contra a extradição –, disseram que o processo estava prejudicado. Por isso o julgamento é ilegítimo?
Sim, é uma farsa. E a fraude começa no processo de Battisti na Itália. As dez testemunhas são familiares das vítimas que sequer reconheceram Battisti em fotos. Só não é familiar uma delas, Rosana Trentin, que afirma que viu um casal que poderia ser Battisti e sua namorada, mas não sabe explicar muito o que viu, se mataram alguém ou não. Além disso, há três crianças dentre as testemunhas. Provas materiais não há nenhuma, nenhum laudo técnico. Sua condenação, em 1993, também se deu com depoimentos de militantes que colaboraram com a Justiça, utilizando o recurso da “delação premiada”. Pietro Mutti, na Itália, atribuiu a ele uma série de assassinatos. Foi uma delação premiada, sua pena foi de perpétua para oito anos. Outro delator teve redução de
dois terços na pena e outros dois assinaram sob tortura. No meu livro, há uma parte em que transcrevo o comentário de um deles, que afirmou ter resistido tudo o que pôde e que acabou assinando o que a polícia lhe exigiu. E o STF aceita essas afirmações para dizer que é crime comum, e não político?
Aqui no Brasil, diria que o relatório do STF é ainda pior, pois toma todas essas acusações falsas da Justiça italiana e ainda acrescenta suas próprias ideias, dizendo que Battisti tem “estilo sanguinário” e todo tipo de preconceito. Enfim, não se sabe exatamente o que está por trás disso, mas sabe-se que quando o julgamento foi divulgado, um ex-embaixador da Itália reuniu-se sigilosamente com o Gilmar Mendes e ninguém sabe uma linha do que eles conversaram.
“Aqui no Brasil, diria que o relatório do STF é ainda pior, pois toma todas essas acusações falsas da Justiça italiana e ainda acrescenta suas próprias ideias” Por que o governo italiano quer prender Battisti de qualquer maneira?
Lá há uma sede de vingança muito grande em relação ao que aconteceu há 30 anos, nos “anos de chumbo”. Há um caso famoso, em 1980, em que um grupo que era da direiCMI Brasil
O escritor italiano Cesare Battisti
ta fascista – no qual estava o atual ministro da Defesa italiano [Ignazio La Russa] – colocou explosivos em um trem em Bolonha que mataram 84 pessoas e feriram 200. Como houve acomodação jurídica, nunca se soube se eles eram culpados ou não. Mas os familiares das vítimas e algumas pessoas atribuem o atentado à esquerda: “ah, isso é coisa das Brigadas Vermelhas”. Tentam achar um bode expiatório. Então, junta a sede de vingança com falta de informação e necessidades políticas do governo italiano – não só da parte de Silvio Berlusconi [primeiro-ministro italiano]. O governo italiano pode ter a intenção de, a partir desse caso, gerar algum tipo de jurisprudência para pedir extradição de outros militantes que estão aqui no Brasil?
Certamente, isso é um balão de ensaio. Se Battisti for extraditado, eles não vão parar por aí. Existem uns 600 italianos dos “anos de chumbo” refugiados no Brasil. Acredito que é um plano para usar isso como propaganda. Mais que isso, se eles concedem extradição, todo sistema de concessão de refúgio do Brasil cai por terra.
A Itália tem fama de dar péssimo tratamento a seus presos políticos. Isso poderia pesar na decisão?
Só neste ano, 62 presos políticos se suicidaram nas prisões da Itália. Nos últimos nove anos, a média tem sido essa. No total, parece que nesse tempo cerca de 500 já cometeram suicídio. Há juízes em diversos lugares do mundo que se recusam a extraditar italianos devido às péssimas condições do sistema carcerário. Teve uma juíza americana que se recusou a mandar um mafioso porque disse que a prisão italiana era o caminho para a morte.
Qual é o contexto histórico do surgimento dos grupos armados de esquerda na Itália, na década de 1970?
A história começa com o fim da fascismo na Segunda Guerra Mundial. Os EUA estavam muito preocupados com o crescimento de partidos de esquerda na Europa. E eles tinham crescido mesmo. O Partido Comunista Francês era muito forte, e o da Itália era o que mais tinha filiados em toda a Europa. Então, tinha um plano que juntava a CIA, o Tratado do Atlântico Norte [Otan], setores da Igreja Católica e da máfia, a direita do
Partido Democrata Cristão e, sobretudo, setores do Exército. Formaram uma rede que atuou em toda Europa, mas na Itália foi muito forte, onde foi chamada de Operação Gladio, que passava pelo terrorismo de Estado. Eles começaram, a partir de 1969, a fazer uma série de atentados grandes, como bombas em lugares públicos. A primeira foi na praça Fontana, em Milão. Até esse momento, não havia esquerda armada na Itália, com exceção de uma divisão de autodefesa do Partido Comunista, que era formada com armas que usaram para combater na Segunda Guerra, contra os fascistas. Aí, nos anos 1970, aparecem as Brigadas Vermelhas, que aos poucos vão ficando cada vez mais violentas. E aí vão surgindo muitos grupos, dentre eles o de Battisti, o PAC. No geral, apoiavam greves, faziam propaganda e não eram muito violentos. Até que em 1978 decidiram matar um torturador da prisão de Udine. Battisti saiu do PAC logo após esse assassinato, justamente porque tinha críticas a essas ações violentas. Aí foi quando fugiu para o México.
“Só neste ano, 62 presos políticos se suicidaram nas prisões da Itália. Nos últimos nove anos, a média tem sido essa. No total, parece que nesse tempo cerca de 500 já cometeram suicídio” Battisti sempre negou os crimes atribuídos a ele?
Há 18 anos ele nega, negou sempre. Desde que trabalho com direitos humanos, nunca vi alguém negar um crime por tanto tempo.
Quem é Carlos Lungarzo , argentino radicado no Brasil, é militante de direitos humanos, membro da Anistia Internacional dos Estados Unidos e professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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Geisy, uma universitária afogada na onda machista e conservadora Rubens Cavallari/Folha Imagem
DISCRIMINAÇÃO O episódio colocou a estudante da Uniban no olho de um furacão reacionário
Cristiano Navarro da Redação GRITOS, CORRE-CORRE, policiais, bolinhas de papel e xingamentos. As imagens de centenas de estudantes cercando uma moça loira de jaleco branco se espalharam pela internet tão rápido quanto a onda criada nos corredores na Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban), em São Bernardo do Campo (SP), que perseguiu e expulsou a estudante do curso de Turismo, Geisy Villa Arruda, no dia 22 de outubro. Na ocasião, Geisy usava um vestido curto, cor de rosa e, por isso, foi hostilizada, humilhada e duas vezes expulsa por alunos, professores e a reitoria da Uniban. Apesar das cenas expostas no YouTube, parte dos meios de comunicação se somou à onda da Uniban e passou a criticar a vítima da agressão, apontando “a falta de etiqueta” da moça e seu “microvestido” como responsáveis pela selvageria. Nos dias seguintes, Geisy foi cercada por programas de rádio, tevê, revistas e jornais impressos. Viu colegas e professores a hostilizarem via imprensa e por isso passou a sentir medo de voltar a estudar. Em uma posição de dupla moral, os meios de comunicação especularam sobre sua vida. De um lado venderam o corpo de uma bonita mulher (inclusive especulando se ela sairia nua em uma revista masculina), por outro condenaram seu comportamento. Assim, num sábado, dia 7, a aluna foi expulsa pela reitoria da Uniban, que, por meio de seu corpo jurídico, justificou a punição afirmando em nota que a aluna seria excluída
Ato organizado pela UNE e grupos feministas em frente à Uniban para apoiar a estudante Geisy Arruda
“É possível ver como as mulheres são tratadas como mercadoria nas imagens de cartazes das calouradas e nos convites para as festas das universidades”, observa diretora da UNE “do quadro discente da instituição, em razão do flagrante desrespeito aos princípios éticos, à dignidade acadêmica e à moralidade”. Dois dias depois, os questionamentos do Ministério Público Federal, do Ministério da Educação e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e uma manifestação organizada pela União Nacional dos Estudantes
(UNE) e pela Marcha Mundial das Mulheres em frente à universidade surtiram efeito, e a aluna foi readmitida no curso de Turismo. Sinais de quê? O episódio da Uniban traz luzes para aspectos de comportamentos crescentes na sociedade, como o conservadorismo e a despolitização dos jovens nas universida-
des. Sônia Coelho, militante da Marcha Mundial das Mulheres, conta que, durante o protesto em frente à universidade, “muitas eram as reações de repúdio contra quem estava protestando”. “O que mais impressiona nesse caso é o conjunto dos absurdos, a reação coletiva. Quem viu no YouTube, viu que realmente foi assustador”, afirma Sônia, completando: “A atitude da Uniban demonstra como a sociedade justifica sua violência contra as mulheres. E quando uma violência como esta é justificada na sociedade, isso estimula e banaliza a agressão. Essa violência não é contra a Geisy. Porque esta é a violência que deixa a mulher insegura, se perguntando se será agredida quando sair à noite na rua, já que um homem po-
de agredi-la e isso ser justificado na sociedade pelo comportamento da mulher”. Na opinião de Fabiola Paulino, diretora de mulheres da UNE, as agressões de gênero fazem parte do cotidiano das estudantes do ensino superior de todas as universidades. “A gente sabe que essa é uma opressão cotidiana. Durante os trotes, os estudantes carregam nas ‘brincadeiras’ machistas. A trajetória acadêmica é de humilhação para as mulheres. É possível ver como as mulheres são tratadas como mercadoria nas imagens de cartazes das calouradas e nos convites para as festas das universidades”. A diretora da UNE afirma que a questão de gênero, dos negros e dos movimentos sociais deveria estar presente nas universidades. “Ao con-
trário, o que temos é uma educação cada vez mais mercadológica, contrária a uma educação de princípios e valores emancipatórios”, declara Fabiola. Para a militante da Marcha Mundial das Mulheres, não só as universidades, mas a educação escolar, desde os primeiros anos, é um dos mais fortes agentes de reprodução da desigualdade e do machismo. Para combater essa violência, o artigo terceiro da Lei Maria da Penha prevê formação escolar que combata a opressão de gênero nas escolas constando “nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher”.
comportou segundo as normas da empresa lucrativa que ela realmente é: procurou satisfazer o grande número dos clientes-pagantes em detrimento de uma cliente-problema. O freguês, para o comerciante, tem sempre razão. Só que a universidade, ao se comportar como um comércio, se desmoraliza como instituição de ensino e educação. Daí que nada garante que tais incidentes não se repitam, tanto por parte de alguma outra aluna, que acha que pode se vestir como quiser, como do lado dos alunos e alunas que acham que, ao se sentirem provocados, podem se comportar como um bando de foras-da-lei. Outro problema a ser abordado é o do excesso de erotização do corpo jovem (sejam homens ou mulheres), uma característica da sociedade atual em que as pessoas circulam como mercadorias exibidas na vitrine. Quando Geisy se defende dizendo “eu me visto como quero e como me sinto bem”, ela nem se dá conta de que está tentando corresponder ao padrão de hipersensualidade que vê na publicidade, nas novelas, nos filmes comerciais etc. Mas, até aí, se ela gosta, tudo bem. No entanto, o fato de ela ter sido a vítima no episódio bárbaro da Uniban não nos poupa de também criticar a falta de noção da moça. Existem convenções de comportamento, aparência etc. que não são
exatamente morais, mas ajudam a clarear o que se espera das pessoas em determinados ambientes. Ninguém vai a uma recepção de gala usando bermuda e camiseta a não ser que queira escandalizar, certo? Ninguém vai à faculdade de biquíni porque chamaria tanta atenção que dificultaria o andamento das aulas. Será que os rapazes ficam sem camiseta na classe nos dias de calor, por exemplo? Se a Geisy tinha uma festa mais tarde, poderia ter levado o vestido na bolsa e trocado depois das aulas, mas, pelo depoimento dela, me parece que a moça não tem a menor noção da diferença entre, por exemplo, a faculdade e a balada. Não sei se ela utilizaria o argumento “faço o que quero/uso o que gosto”, se em seu emprego o patrão exigisse um uniforme. Ou ainda, se a exigência de adequação correspondesse a uma distinção de classe. Aposto que Geisy não iria a um casamento chic com uma roupa inadequada: ficaria superpreocupada em saber o que se “deve” vestir na ocasião. Só que a universidade – a escola, em geral – é uma instituição muito desmoralizada atualmente, e ela se achou no direito de quebrar a convenção de um certo decoro no ambiente de estudo. É grave? Não. Merecia o que aconteceu? Absolutamente. Só quero dizer que ela me pareceu, em sua posição iso-
lada, tão tonta e tão alienada quanto a turba que não soube dar uma expressão civilizada ao seu descontentamento. Isto, do ponto de vista da alienação. Do ponto de vista da gravidade do comportamento, nem se compara: a turba foi fascista e teria cometido um crime talvez bárbaro se os tais seguranças não tivessem finalmente decidido agir. A Geisy não fez nada disso, foi só meio sem noção. De uma forma ou de outra, é sempre do velho superego que se trata. A moral tradicional explodiu na Uniban com a fúria do retorno do recalcado, aliada a quê? Ao velho comando a favor do gozo, do qual os jovens hoje vivem perigosamente perto demais. A condenação de “puta, vagabunda” alia-se ao desejo de “lincha, estupra”. São duas faces da mesma moeda, “goza/não goza”, Kant e Sade de mãos dadas, tornados ambos mais cruéis na proporção direta do desprestígio do pensamento na sociedade atual. A conclusão ficaria por conta de Hannah Arendt: quando o pensamento torna-se supérfluo, abre-se o caminho para a banalidade do mal.
ANÁLISE
Fascismo banal Maria Rita Kehl “A MASSA NÃO É confiável”, escreveu Freud em Psicologia de massas e análise do eu (1920). Os indivíduos que participam de uma formação coletiva sob o comando do representante de algum ideal comum são capazes de atos que, se estivessem sozinhos, não se atreveriam a cometer. O superego individual tira uma folga em favor do superego coletivo. Em nome dele, o sujeito dissolvido na massa se precipita em atos extremos que jamais – ou sempre? – sonhara praticar. Por que os meninos e meninas escandalizados – ou excitados – com o mini rosa shocking da colega a chamaram de “puta”? Usar a palavra puta como insulto revela o ressentimento do homem diante do desejo sexual da mulher, quando esse desejo não é voltado para ele. Uma prostituta não é simplesmente uma mulher que transa com muitos homens, nem uma mulher exageradamente sensual. É uma mulher que faz disso seu ganhapão. A mulher que faz sexo porque gosta, sem cobrar, não é prostituta. A prostituta é profissional – gostan-
Se essas manifestações de massa enlouquecidas não são barradas e punidas, as pessoas entendem que estão autorizadas, e a barbárie tende a se repetir do ou não do que faz, algumas por necessidade, outras por amor à arte, mas sempre profissionalmente. Mas a profissão da prostituta sempre foi desqualificada nas sociedades em que o tabu da virgindade vigorava para as mulheres de “boas famílias”. Assim, a palavra “puta” é usada até hoje para desqualificar uma mulher sexualmente livre – coisa que não sei se a Geisy é ou não, nem vem ao caso. Ela pode ser só uma moça que se acha gostosa e gosta de se exibir. Já a Uniban, esta errou do começo ao fim. Primeiro: se a roupa da moça era inadequada, por que ela não foi barrada na porta? Segundo, parece que o próprio esquema de segurança da Universidade demorou a ser acionado quando a confusão começou. Terceiro – não me lembro de haver menção à presença de al-
guém da diretoria a fim de se responsabilizar pela ação dos próprios seguranças, quando o tumulto engrossou. Quarto: houve alguma orientação da direção, depois do incidente, para se discutir o assunto em classe com os alunos? Ou, antes disso: houve alguma medida punitiva, alguma suspensão de aulas ou rebaixamento de nota para os que pretendiam linchar e estuprar a moça? Alguma sindicância para detectar os líderes fascistas da massa? Se essas manifestações de massa enlouquecidas não são barradas e punidas, as pessoas entendem que estão autorizadas, e a barbárie tende a se repetir. A expulsão de Geisy, por outro lado, me parece pura covardia da direção da Uniban: vamos nos livrar de um problema com o qual não sabemos lidar. Me parece que a universidade nesse caso se
Maria Rita Kehl, psicanalista e ensaísta, é autora, entre outros, de O tempo e o cão (Boitempo, 2009) e Deslocamentos do feminino (Imago, 2007).
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américa latina
“EUA, cúmplice dos golpistas” Reprodução
GOLPE EM HONDURAS Resistência hondurenha critica o governo estadunidense, enquanto candidato independente renuncia à disputa das eleições presidenciais do dia 29 Arturo Cano de Tegucigalpa (Honduras) CARLOS HUMBERTO Reyes é um homem grande, calvo e de óculos que ainda traz um braço enfaixado, recordação do policial que, em uma das marchas da resistência, lhe deu de presente três fraturas. Também foi, até o dia 9, candidado independente à presidência de Honduras. “Para nós, participar nas eleições significa nos somarmos à estratégia dos golpistas”, diz, ao sair da entrega de sua renúncia aos magistrados do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE). Da embaixada do Brasil, o presidente Manuel Zelaya aplaude a decisão – que a Frente de Resistência contra o Golpe de Estado acompanha – de “desconhecimento ativo” do pleito de 29 de novembro, seja o mandatário deposto restituído ou não. Aproveitando o momento, a resistência acusa o governo dos EUA de ser “cúmplice” do governo de fato, uma vez que “manobrou para dilatar a crise e agora mostra sua verdadeira intenção de validar o regime golpista”. A resistência se reuniu diante do Congresso após uma declaração do embaixador estadunidense Hugo Llorens como prova da “cumplicidade” do poderoso do norte. Aproveitando o impasse do fim-de-semana, depois que o presidente golpista, Roberto Micheletti, disse que dava mais tempo a Zelaya para este apresentar sua lista de integrantes do governo de “unidade nacional”, Llorens afirmou: “As eleições vão acontecer, isso está claro, o povo hondurenho tem direito de eleger seu presidente, um novo Congresso e prefeitos, e seria um erro histórico e de grandes proporções negar esse direito”. Recado Desse modo, o Departamento de Estado dos EUA respondeu às críticas – um edito-
rial do New York Times, por exemplo – de que, ao sugerir o reconhecimento do pleito, os EUA tiraram todo o corte da única arma que a Organização de Estados Americanos (OEA) tinha para que os golpistas cumprissem o acordo de Tegucigalpa-San José. “O desconhecimento da farsa eleitoral se manterá firme ainda que (...) o presidente Manuel Zelaya seja restituído em seu cargo, em virtude de que 20 dias ou menos é um prazo muito curto para se desmontar a fraude eleitoral que se construiu para assegurar que um dos representantes da oligarquia golpista seja imposto”, replica a resistência. Os líderes da Frente convocam todos os candidatos que não queiram ser chamados de “golpistas” a se retirarem do processo. O recado é para César Ham, candidato do partido Unificación Democrática (UD) e partidário de Zelaya. “Estamos em consultas, embora haja um forte setor que quer participar, porque não fazê-lo é decretar a morte do partido”, diz o deputado udeísta Marvin Ponce. E isto é literal, porque, ao não apresentar candidatos, automaticamente a UD perderia seu registro. Desde 29 de outubro, as Forças Armadas passaram às ordens do TSE. Embora atualmente os soldados somente custodiem o material eleitoral, anunciou-se com rufar de tambores que, para cuidar das eleições, haverá 20 mil militares e 14 mil policiais. Como se tal exército não fosse suficiente, um anúncio que se repete a todo momento na televisão oficial assegura que cada funcionário e observador eleitoral terá juntinho de si seu “anjo da guarda”, para que tudo saia bem. Congresso A “oração”, que é acompanhada por imagens de outros processos, é “pelas Forças Armadas, pela polícia nacional” e pela equipe do TSE e obser-
Cartaz da Resistência hondurenha na cidade de San Pedro Sula
Como se tal exército não fosse suficiente, um anúncio que se repete a todo momento na televisão oficial assegura que cada funcionário e observador eleitoral terá juntinho de si seu “anjo da guarda”, para que tudo saia bem vadores (embora nenhum país nem organismo internacional ainda tenha anunciado enviados). Primeiramente, teria que se confirmar a presença de observadores da OEA, o que fez com que o governo de fato pedisse ao organismo, “respeitosamente”, o envio de uma missão. A OEA trataria o tema no dia 10, em uma sessão extraordinária de seu conselho permanente, em Washington. “Seria insólito que um organismo que vela pelo respeito aos princípios da democracia desconheça um processo eleitoral organizado, dirigido e supervisionado por um tribunal autônomo e independente”, diz uma carta enviada ao secretário-geral da OEA, José
Miguel Insulza, com a assinatura da advogada Vilma Morales, representante de Roberto Micheletti no diálogo. O boicote anunciado pela resistência não será um problema, segundo a mensagem da TV oficial: “Pai Celestial, te pedimos para que todo plano perverso, através dos membros ativistas, que se manifeste em greves, violência, espírito de rebeldia, de boicote, de insurreição, em nome de Jesus, fique cancelado”. Que garantias adicionais a comunidade internacional quer? Comedido, Micheletti também aperta os seus: “Com todo o respeito, mas com energia, exigimos do Congresso a tomada de decisão” sobre a restituição, ou não, do presidente Zelaya, diz Vilma Mora-
les, porta-voz da comissão negociadora de Micheletti. Nas filas do presidente golpista, não há dúvida de qual será a decisão do Congresso: o presidente Zelaya não será restituído. “Jamais, claro. Isso seria um caos para Honduras. Não podemos ter como presidente uma pessoa que cometeu 18 delitos”, diz à reportagem Armida de López Contreras, esposa do chanceler do governo de fato e dirigente da Unión Cívica Democrática (UCD), organizadora das marchas “de branco” em favor do golpe de Estado. Reconhecimento López Contreras está segura de que a comunidade internacional, mais cedo ou mais tarde, reconhecerá o governo surgido das eleições. Isso lhe é confirmado por “sinais”, como as declarações de funcionários estadunidenses e o anúncio da Colômbia de que sua embaixadora em Honduras regressará. Para a ex “designada presidencial” – uma espécie de vice-presidente – a chave para os golpistas terem resistido durante mais de quatro meses à pressão internacional é que “temos uma grande força. Não
vamos desistir para satisfazer o interesse de outros, porque não vão ser eles que resolverão o problema que depois se dê em Honduras. Agora, se outro país quer o senhor Zelaya como presidente, bem-vindo”. Há pouco tempo, a organização que López Contreras encabeça declarou José Miguel Insulza como persona non grata. Agora, volta-se também contra o enviado da OEA, José Octavio Bordón, e contra o ex-presidente chileno, Ricardo Lagos, membro da Comissão de Verificação do Acordo: “que se abstenham de emitir opiniões pessoais e preconceitos contra Honduras”, demanda. A UCD também exigiu que a votação do Congresso seja aberta, para que, desse modo, os legisladores que votarem por reinstalar Zelaya no poder possam ser castigados nas urnas. Alguns deputados influentes declararam seu apoio a esse método. Em todo caso, caso Armida de López Contreras seja ouvida, a restituição já não vale nada: “A partir de 29 de novembro, há um novo presidente, e ele é o que manda”. (La Jornada – www.jornada.unam.mx)
URUGUAI
ANÁLISE
Direita tenta manipular eleitores com arsenal de armas
Tragédia colombiana Frei Betto
O conservadorismo uruguaio tenta desesperadamente reverter uma situação considerada irreversível pelos analistas Mário Augusto Jakobskind Ao mesmo tempo em que as primeiras pesquisas indicam o favoritismo do candidato da Frente Ampla, José Mujica, entre sete e oito pontos percentuais de diferença sobre o direitista Luis Alberto Lacalle, o conservadorismo uruguaio tenta desesperadamente reverter uma situação considerada irreversível pelos analistas. Há ainda 8% de indecisos. Na mais recente investida, o ex-presidente Jorge Batlle, do Partido Colorado, tenta vincular José Pepe Mujica e outros ex-guerrilheiros tupamaros a um arsenal de armamentos encontrados pela polícia em Montevidéu. Segundo as investigações, o caso está vinculado ao crime organizado, inclusive a traficantes de armas que agem no Brasil, mas a direita uruguaia, utilizando-se de espaços midiáticos, procura envenenar a opinião púbica tendo em vista a eleição presidencial do último domingo de novembro (29), quando pou-
co mais de 2,5 milhões de eleitores decidirão entre dois projetos: o da direita, encabeçado por Luis Alberto Lacalle, do Partido Nacional, um ex-presidente que no governo contemplou o capital financeiro com injeções de verbas de milhões de dólares; e o da esquerda, encabeçado por José Pepe Mujica. Lacalle tem como vice Jorge Larrañaga, e Danilo Astori é o vice de Mujica. As últimas pesquisas divulgadas pela imprensa indicam que Mujica tem 50% ou 49% das intenções de voto, enquanto Lacalle aparece com 42% em todas as duas consultas. Para a maioria dos analistas políticos e especialistas em pesquisas, dificilmente o resultado se modificará, mesmo a direita utilizando expedientes como o do episódio do arsenal de armas encontrado pela polícia. Na capital uruguaia, Pepe Mujica tem a preferência de 56% dos eleitores, enquanto Lacalle ficou na faixa dos 35%. Já no interior, a direita tem 47%, enquanto a Frente Ampla aparece com 46%, o
que caracteriza um empate técnico. Por ter acusado, sem provas, o ex-guerrilheiro Julio Marenales e insinuado ligações de Mujica com o arsenal encontrado, o ex-presidente Batlle terá de responder na Justiça se confirma o que disse. No primeiro turno, realizado no último dia 25 de outubro, a Frente Ampla obteve a maioria absoluta na eleição para o Parlamento, que escolheu 99 deputados e 30 senadores, mas o candidato Pepe Mujica ficou com pouco mais de 48,14% dos votos e Lacalle, pouco mais de 29%. A aliança Frente Ampla, que hoje reúne 40 agrupamentos políticos das mais variadas tendências de esquerda, foi fundada em março de 1971, tendo ficado na clandestinidade durante os anos de ditadura (1973-1984), tornando-se, desde 2004, a força política de maior peso eleitoral no Uruguai. Mário Augusto Jakobskind é jornalista, correspondente no Brasil do semanário uruguaio Brecha.
A UNIÃO DAS Nações SulAmericanas (Unasul) enfrenta um impasse diante da teimosia do presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, de ampliar a instalação de bases usamericanas no território de seu país. Os demais presidentes estão contra. Preferem preservar a soberania e a independência da América do Sul. Na reunião de Bariloche, em agosto, o presidente Lula bem argumentou: se desde 1952 as tropas estadunidenses não conseguiram erradicar o narcotráfico na Colômbia, por que agora estariam aptas a fazê-lo? Funcionam na Colômbia três estados paralelos: a guerrilha das Farc; o narcotráfico; e os grupos paramilitares, criados supostamente para combater os dois primeiros. Desde 1991, cerca de 2.500 sindicalistas foram assassinados naquele país, 500 sob o governo de Uribe. Os paramilitares puxam o gatilho, mas quem os financia são empresas nacionais e transnacionais. A Coca-Cola sofre processo judicial por ter apelado aos paramilitares para reprimir atividades sindicais, entre 1992 e 2001, que re-
sultaram na morte de sete sindicalistas. A Chiquita Brands, exportadora de banana, admitiu ter financiado o grupo terrorista Autodefesa da Colômbia. A Dyncorp foi acusada de contaminar com substâncias tóxicas lavouras de pequenos agricultores na fronteira entre Colômbia e Equador, visando à erradicação do plantio de coca. Tais fatos têm impedido que o governo dos EUA, empenhado na investigação dessas empresas, realize o grande sonho de Uribe: assinar o tratado de livre comércio entre os dois países. A empresa Drummond, com sede no Alabama, explora minas de carvão e é acusada de ordenar o assassinato, por mãos de paramilitares, de três dirigentes sindicais. Ela extrai da Colômbia mais de 16 milhões de toneladas de carvão/ano. Seu faturamente anual está calculado em 500 milhões de dólares, graças ao trabalho de 3.000 mineiros remunerados a 2,5 dólares/hora. A Justiça de Atlanta acusou a empresa de acobertar os assassinos dos sindicalistas colombianos e condenou a empresa, baseando-se numa lei de 1789, promulgada para punir ações de pirataria e crimes cometidos
Tradução: Igor Ojeda
fora do território dos EUA. O processo correu sob segredo de Justiça, mas a mídia de Alabama pressinou e, agora, sabe-se que Rafael García – ex-chefe do departamento de informática do DAS (Departamento Administrativo de Segurança), órgão máximo da segurança do Estado colombiano –, preso por haver destruído informações sobre os narcotraficantes de seu país, revelou as conexões entre parlamentares e funcionários comprometidos com os paramilitares. García confessou que pouco antes do assassinato dos sindicalistas presenciou uma reunião entre o presidente da filial colombiana da Drummond e o chefe paramilitar que controlava a região. Viu quando o empresário entregou ao paramilitar 200 mil dólares para assassinar os sindicalistas. Contou ainda que os paramilitares usavam barcos da Drummond para transportar cocaína à Europa e Israel. Favorecer na Colômbia um terceiro mandato de Uribe é sacramentar a corrupção e a impunidade. Frei Betto é escritor, autor de Cartas da Prisão (Agir), entre outros livros.
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de 12 a 18 de novembro de 2009
cultura
Resistência ao
imperialismo cultural Comunica Press
DIVERSIDADE Em Salvador, coalizões de defesa de tradições culturais periféricas reivindicam tratamento diferenciado para produtos culturais em tratados de comércio Leandro Uchoas de Salvador (BA) HÁ DUAS DÉCADAS, quando um certo muro alemão caiu, muito se falava sobre um mundo de liberdade e uma sociedade mais justa. Mas bastava ler a ficha de antecedentes do lado vencedor para saber que o futuro não seria tão belo. Hoje, com a ampliação da injustiça social, vê-se que milhares de outros muros foram, aos poucos, erguidos. Existem os visíveis, como em Israel, no México e no Rio de Janeiro, e os invisíveis, como as barreiras à luta social e ao desenvolvimento das consciências. Essa barreira, resultado da devastação neoliberal que passou por cima de tudo, levou todos os povos a mimetizar o american way of life. Sedutor, o modo de vida estadunidense e sua cultura estão hoje parcialmente impregnados até mesmo em povos milenares, como o chinês e o indiano. Mas não sem resistência. Liderada por iniciativas francesas e canadenses, uma série de coalizões pela Diversidade Cultural foi surgindo em países do mundo inteiro. A ideia era promover a preservação local contra a estratégia dos Estados Unidos de disseminar seus produtos culturais por todo o planeta. Alijados de apoio dos setores político, econômico e midiático, ativistas culturais uniram-se nas coalizões para discutir como enfrentar a ameaça. A preservação de linguagens, danças, vestimentas, práticas religiosas e tradições estava em cheque. A Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural nasce em 2005, em Florianópolis. Hoje estimulada por setores do governo federal, a Coalizão quer ir além da proteção. Pretende elaborar novos formatos de fazer artístico, estimulada pelo avanço tecnológico e pelas novas mídias (ver entrevista ao lado).
Considerada uma das cidades de maior diversidade cultural do mundo, Salvador é a terra dos dois últimos ministros da Cultura No início deste mês, realizou-se em Salvador o 1º Encontro Internacional de Diversidade Cultural, com representantes de, pelo menos, 45 países. A proposta era discutir as novas estratégias do movimento, sob uma conjuntura internacional incerta. Também se pretendia elaborar um plano de ação para o 2º Encontro das Coalizões do Mercosul, no segundo semestre de 2010, e principalmente para a Reunião do Comitê Intergovernamental da Unesco. Com participação de diversos países, a unidade nos discursos e avaliações ficou restrita aos seminários. Cordiais, as intervenções apresentavam um cenário semelhante na maioria das localidades.
Na plenária final, fechada à imprensa, surgiu o inesperado. Os países centrais, que monopolizavam a mesa, tentaram dominar as decisões e inviabilizar a participação dos países periféricos. Houve protesto de algumas coalizões. O documento final não havia sido divulgado até o fechamento desta edição. Tratamento diferenciado
Uma das principais reivindicações, porém, certamente será a de se estabelecer tratamento diferenciado aos produtos culturais nas negociações de tratados comerciais. É comum a certos países centrais impor, em transações mercantis, a ausência de barreiras a seus produtos ou a inexistência de planos de fomento à produção nacional. Reivindica-se, por exemplo, que não se discuta mais cultura na Organização Mundial do Comércio (OMC). “É vital para a formação de direitos culturais permanentes e para a promoção da pluralidade de valores”, defendeu a representante canadense Véronique Guèvremont. Representante da Venezuela, Rafael Fariñas afirmou que bastava ao movimento o simples cumprimento das reivindicações do documento da Convenção da Unesco. A Convenção ocorreu em 2006 e estabelece um novo paradigma no mercado de cultura. Na ocasião, as coalizões se reuniram e aprovaram um rico documento. Aprovado no Parlamento, tem no Brasil força de lei. Em 2001, a Unesco já havia adotado a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural. “Temos que pensar a diversidade cultural como assunto de direitos humanos, através da questão do acesso”, resume o equatoriano Pablo Mogrovejo. O Brasil é considerado um dos países cuja atuação foi mais importante na aprovação da Convenção da Unesco. Teve votação quase unânime para representante da América do Sul e do Caribe, no Comitê Intergovernamental da Convenção da Unesco. O Ministério da Cultura (MinC) criou, ainda na gestão de Gilberto Gil, a Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural (SID). “Nós focamos em segmentos que nunca haviam sido atendidos por políticas públicas: as culturas tradicionais, indígenas, ciganas, LGBT etc.”, lembra o dono da pasta, Américo Corduba. Através de Alfredo Manevy, o MinC apresentou as dez principais realizações das gestões de Gil e Juca Ferreira, atual ministro. Entre elas, a criação de uma infraestrutura cultural na sociedade brasileira – que estaria em desenvolvimento –, um projeto amplo de legislação cultural entregue para votação no Congresso Nacional e a estratégia de reformatação do financiamento público à cultura, ainda restrito a poucos. Ecoando outras intervenções, Manevy e Cordoba ressaltaram a necessidade de se resignificar, sem criminalizar, as novas práticas de democratização de cultura, como a pirataria e a permuta de arquivos pela internet.
Representantes de 45 países participaram do encontro em Salvador (BA)
Cariri, apresentou um projeto de criação de uma universidade de saberes populares. Gerida pelos alunos, teria entre os cursos a capoeira, o maracatu e a tecelagem, por exemplo. “Também se promoveria a mistura entre as possibilidades estéticas”, defendeu. Com a iniciativa, assumida pelos integrantes da Coalizão Brasilei-
ra, pretende-se proteger tradições antigas, ameaçadas pela universalização da cultura hegemônica. O cearense Rosemberg também é diretor de cinema e sua obra ficou conhecida por tratar de questões universais através de personagens e linguagens regionais. Iniciado no Dia Nacional da Cultura, o evento não
tações artísticas do Estado, mas também subculturas periféricas do interior. Segundo Córduba, o desafio maior não é levar programas de proteção à diversidade aos governos estaduais, mas sim aos municipais. A gestão cultural seria deficitária e preconceituosa, submetida a um processo de subordinação cultural às metrópoles.
“Temos que ser os motores de criação de um novo formato de cultura” Em entrevista, presidente da Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural defende descentralização da produção de Salvador (BA) Presidente da Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural, Geraldo Moraes defende a necessidade de se atuar não somente na proteção contra o monopólio cultural, mas também na proposição de novos modelos. Em entrevista, contextualiza a discussão da diversidade cultural nas conjunturas brasileira e internacional e ressalta os acertos e erros das políticas governamentais. Brasil de Fato – O senhor caracteriza a Coalizão como um movimento de resistência?
Geraldo Moraes – Sem dúvida alguma. Mas hoje nós estamos rediscutindo a
natureza das coalizões. Elas começam a se ampliar e ganhar outro sentido. Continuaremos sendo um movimento de resistência à cultura monopolista. Mas estamos num momento em que as coalizões, e a sociedade civil, têm que ser também os motores da criação de um novo formato de cultura. O senhor acha que existe nos governos, em todas as esferas, vontade política de promover a criação de um outro modelo?
Existem dois aspectos. Um deles é a criação de alternativas. Neste, eu acho que as políticas do governo federal, e de vários estados, são muito importantes. A política do Ministério da Cultura, de descentralização dos recursos e dos ediMinC
tais, de criação de pontos de cultura, de estímulo ao cineclubismo e aos festivais, é de se destacar. Tem sido um estímulo muito grande de promoção da diversidade cultural. Vários estados estão fazendo o mesmo. O problema – e isso atinge o governo brasileiro e todos os outros – é a falta de força e de vontade política para enfrentar o monopólio. O caso típico foi a tentativa de criação da Ancinav [Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual]. Iríamos regulamentar toda a área de comunicações e de audiovisual. A pressão que veio das emissoras, e das majors norte-americanas, e do próprio governo norte-americano, foi insuportável.
Quando defendemos a Ancinav, saíamos do gabinete de um parlamentar e já chegava o lobista de uma emissora ou de majors E de setores do próprio governo.
E de setores do próprio governo que têm suas ligações com o monopólio, que é de suas contradições internas.
Universidade
Durante o seminário, o presidente do Congresso Brasileiro de Cinema, Rosemberg
ocorreu em Salvador por acaso. Considerada uma das cidades de maior diversidade cultural do mundo, Salvador é a terra dos dois últimos ministros da Cultura. O secretário de Cultura do Estado, Márcio Meireles, apresentou no seminário um amplo mapeamento cultural da Bahia. Nele foram esquadrinhadas não só as grandes manifes-
Geraldo Moraes, presidente da CBDC
Como se dá essa pressão das majors internacionais dentro da institucionalidade nacional?
De todas as maneiras. Veja esse encontro. Nós temos aqui pessoas de quase 50 países e uma série de pessoas de projeção. Você não vê nenhuma emissora de televisão. Por outro lado, existem pressões de governo a governo. “Eu importo seu suco de laranja, e você não cria barreiras aos produtos”. O que representa o cinema e a música no PIB desses países? Nada. Então, a tendência é liberar. Existe também a pressão diplomática, e de vários outros tipos. Como eles pressionam os parlamentares?
As majors têm um batalhão de lobistas e de pessoas públicas que estão lá [no Parlamento]. Quando defendemos a Ancinav, saíamos do gabinete de um parlamentar e já chegava o lobista de uma emissora ou de majors. A política externa brasileira privilegiou o contato com países africanos, latinoamericanos, o que em outras gestões não era comum. Isso, de alguma forma, estimula a promoção da diversidade cultural?
Eu acho que o Ministério das Relações Exteriores teve, para a aprovação da Convenção da Unesco, uma importância tão grande quanto a do Ministério da Cultura. O ministro Celso Amorim foi presidente da Embrafilme. É ligado a cinema desde cedo. Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-executivo, foi vice. E é evidente que qualquer aproximação com novos países tem seus reflexos culturais. O diálogo sul-sul é muito mais importante. (LU)