Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 351
São Paulo, de 19 a 25 de novembro de 2009
R$ 2,50 www.brasildefato.com.br Fabio Braga/Folha Imagem
Apagão reflete vulnerabilidade de um modelo de privatização
A queda de vigas de viaduto do Rodoanel, no dia 13, deixou três pessoas feridas na Grande São Paulo
O apagão do dia 10 de novembro tem uma explicação: a má gestão moldada aos desejos dos agentes privados, que, para garantir altas taxas de lucro, utilizaram-se de um setor elétrico fracionado em vários negócios (geração, transmissão, comercialização, distribuição), transformando-se num sistema vulnerável a blecautes. Por isso, o problema tem a mesma origem que os R$ 7 bilhões cobrados a mais da população brasileira na tarifa de energia elétrica. Pág. 7
EUA e Otan sem rumo na guerra de George Bush Em artigo, o historiador paquistanês Tariq Ali analisa a falta de rumo do governo dos EUA e da Otan na ocupação do Afeganistão. Segundo ele, os talebãs já retomaram 80% da parte mais populosa do país. “Já ficou óbvio para todos que esta não é uma guerra ‘boa’, destinada a eliminar o comércio do ópio e a discriminação contra as mulheres”. Pág. 11
Na terra de Pelé, boleiro negro sempre discriminado
Largas avenidas para os carros, aperto nos ônibus e nos trens Na cidade de São Paulo, a superlotação, as tarifas elevadas e o trânsito fazem da vida da população que utiliza o transporte público um inferno. Para especialistas, a situação é caótica. A solução é a velha expansão do transporte público, sempre lembrada, mas raramente efetivada. A prioridade fica com os automóveis, muito em função da força de seus
fabricantes e dos interesses eleitorais dos governantes. Em São Paulo, o prefeito Gilberto Kassab e o governador José Serra injetarão R$ 4 bilhões na malha viária até 2010. Uma das principais obras é a do Rodoanel, onde a queda de vigas de um viaduto deixou três pessoas feridas, no dia 13. O TCU apurou que o material usado foi trocado por um mais barato para reduzir custos. Págs. 4 e 5 Eduardo Sales de Lima
Colômbia e Venezuela: há uma guerra no horizonte?
“O futebol, verdadeira instituição nacional, pode ser visto como um indicador privilegiado da realidade social do Brasil quando abordado de modo mais profundo e analítico”. E é através do esporte mais popular do mundo que o historiador Felipe Dias Carrilho resume a história dos negros que sofreram o racismo “à moda brasileira”. Pág. 12
O Brasil no conflito entre árabes e israelenses Entre os dias 11 e 15, o Brasil recebeu a visita do presidente de Israel, Shimon Peres. Já no dia 23, seu “arqui-inimigo” Mahmoud Ahmadinejad, mandatário do Irã, chega ao país. Nesse meio tempo, o presidente Lula ainda irá receber o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. Durante a passagem de Peres, o fato mais importante foi a aprovação, na Câmara, de um acordo comercial entre Mercosul e Israel. Em entrevista, José Reinaldo Carvalho, secretário de relações internacionais do PcdoB, discute tais acontecimentos e lamenta a visita do israelense e a aceitação do TLC: “escarnece com a luta do povo palestino”. Pág. 10
Família moradora do acampamento Helena Resende, que fica na fazenda Maria Bonita, de Daniel Dantas
Violência contra sem-terra é legitimada pelo Estado No Pará, ao passo que cinco delegados foram escalados para prender as lideranças do MST, após a sede
de uma fazenda de Daniel Dantas ter sido depredada, nos últimos três anos, 17 trabalhadores foram assas-
sinados na luta pela terra e 23 foram feridos a bala por pistoleiros e seguranças de fazendas do Estado, entre
eles os do banqueiro. Em abril deste ano, Valdecir Nunes e Domingos Alves viveram isso na pele. Pág. 6
As tensões dos últimos anos entre a Venezuela e a Colômbia aumentaram recentemente, em decorrência da assinatura do acordo para a utilização de bases militares colombianas por parte dos EUA. A divulgação de seu conteúdo mostrou que ele é mais permissivo do que se imaginava. Incidentes na fronteira cresceram, e presidente venezuelano, Hugo Chávez, chegou a pedir que sua população se preparasse para a guerra. No entanto, Alexander Mosquera, professor da Universidade de Zula, na Venezuela, avalia que, por enquanto, a tal opção é mais midiática que real, mas não descarta um conflito armado no futuro. Pág. 9
Joka Madruga
Duas décadas barrando as barragens
ISSN 1978-5134
Resistência é a palavra de ordem da população do Vale do Ribeira (SP), que enfrenta, há 20 anos, os interesses de grandes corporações, fazendo com que, até hoje, nenhuma das hidrelétricas previstas para se instalar no rio fosse erguida, evitando a destruição ambiental e a expulsão da população. Pág. 8
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editorial QUANDO ESTE jornal estiver circulando, é possível que já se tenha uma definição do caso Cesare Battisti, no Supremo Tribunal Federal (STF), ou então, ainda estejamos pendentes da lucidez do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para encerar o caso, com dignidade. Os fatos Na década de 1970 surgem, na Itália e em toda a Europa, diversos grupos de guerrilha urbana. Entendiam que a luta armada era a única forma de combater o ressurgimento do fascismo e derrotar o poder econômico e militar incrustado no Estado. Muitos jovens se engajaram nesses movimentos. Essas organizações guerrilheiras foram derrotadas política e militarmente. Muitos pagaram com a vida; muitos foram barbaramente torturados e, em geral, condenados à prisão perpétua. Outros conseguiram asilarse em países da Europa e da América Latina. Cesare Battisti era um jovem de 17 anos que atuava como militante de uma dessas organizações. Pessoalmente, jurou não ter participado de nenhum crime de morte. No entanto, um dos seus companheiros de luta, depois de preso e torturado, trocou sua pena de prisão perpétua pela denúncia que atribui a Battisti três mortes. Por isso – ainda sem qualquer prova e à revelia – a Jus-
debate
Caso Cesare Battisti: os fascistas querem vendetta tiça italiana o condenou à prisão perpétua, em consequência do que Battisti se asilou primeiramente na França e, em seguida, no Brasil. Há pouco, com o governo Berlusconi – e com controle absoluto da mídia e do Judiciário –, os fascistas voltaram ao poder na Itália. A hora da “vendetta” É nesse quadro que a vendetta (“vingança” à moda da máfia e da direita italianas, que convivem em permanente promiscuidade) entra mais uma vez na ordem do dia, aumentando a perseguição contra os presos políticos já condenados à prisão perpétua; e impondo regimes cada vez mais cruéis nas prisões – o que provocou o suicídio de 63 militantes políticos nos últimos dez anos. Como parte desse endurecimento, o governo de Roma encaminhou a vários países pedidos de extradição para a Itália de diversos exilados, entre eles Cesare Battisti. Nenhum governo aceitou extraditar os militantes italianos. Mesmo Sarkosy, depois de o Judiciário haver
concedido a extradição da militante de esquerda Marina Petrella, concedeu asilo por questões humanitárias. O Brasil A pressão sobre o governo brasileiro é parte dessa ofensiva. O primeiro passo foi conseguir a prisão de Battisti. No seguinte, foram ao STF (em cujo presidente, doutor Gilmar Mendes, os fascistas italianos têm um fiel aliado e entusiasta) para derrubar medida do ministro da Justiça, Tarso Genro, que anulava a prisão e concedia asilo político. O argumento do governo da Itália é que se tratou de “crime comum”. Mas, como bem argumentou o ministro Marco Aurélio de Mello, naquela Corte, como seria crime comum se o governo italiano está pressionando tanto e todas as sentenças de prisão perpétua de Cesare se referem a crimes políticos contra o Estado? O julgamento do pedido de Roma já se arrasta por três longas sessões, e entre os ministros do STF o placar está em 4 x 4. Se o ministro Gilmar Mendes seguisse a tradição, se absteria de votar, e daria ganho de causa
ao réu. Pois, na dúvida (surgida com o empate dos votos), ordena a lei e o costume que o réu seja beneficiado. Mas como todos conhecemos a orientação política e ideológica do presidente do STF, doutor Gilmar Mendes – alçado a esse posto para dar cobertura a todo tipo de patifaria do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao qual presta vassalagem –, é bem provável que ele se decida pelo desempate, votando pela extradição. Ainda assim, legalmente, cabe ainda à Presidência da República a decisão final – ou seja, ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Protestos e resistência Os protestos contra a extradição, no entanto, têm mobilizado todos os setores e forças de esquerda e progressistas do mundo e, em especial, do nosso país. Em boa hora, nossa querida Anita Prestes, filha de Olga Benário e Luiz Carlos Prestes, enviou mensagem ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chamando sua atenção para o fato de que ela própria nasceu num campo de concentração da Alemanha de
Carta
Carlos Alberto Lungarzo
Direitos humanos na Itália de hoje NO RELATÓRIO contra Cesare Battisti, emitido pelo relator do STF no dia 9 de setembro, o magistrado debocha da descrição que faz o Ministro da Justiça, Tarso Genro, das graves violações aos direitos humanos acontecidas entre 1969 e 1981, os chamados Anos de Chumbo. De fato, Genro, um político muito objetivo e rigoroso, se atém apenas aos fatos mais dramáticos da época, mas não faz um retrato completo da infinidade de abusos que existiram nesse período. O mais trágico foi a aplicação de torturas nas prisões, nas delegacias e até nos juizados, onde os magistrados e promotores autorizavam as brutais práticas dos torturadores e aproveitavam para tirar informações que usariam contra os presos. Mas, embora o sarcasmo contra a denúncia do Ministro da Justiça feito pelo magistrado seja totalmente absurdo, já que há mais de 3.000 documentos desclassificados que provam esses fatos, poderia existir uma consolação se essas violações aos direitos humanos fossem coisa do passado. Mas não é assim. A Itália continua sendo o país de Europa Ocidental onde se praticam maiores violações aos direitos humanos, ainda hoje. Vou mencionar apenas alguns dos fatos principais:
Xenofobia e racismo
A comunidade romani (cigana) sofreu perseguição, despejo, expulsão do país e tratos desumanos e denigrantes. O país não aprova uma legislação para proteger os asilados. Os tratos desumanos sofridos pelos imigrantes não foram investigados ou foram alvo de investigações incompletas. Os membros das comunidades imigrantes, especialmente os de etnias não brancas, foram desalojados de maneira ilegal e com brutalidade, incluindo crianças e mulheres grávidas. Os prefeitos receberam poderes absolutos para perseguir os estrangeiros, aos quais não foi permitida nenhuma proteção legal. Mesmo romanis e sintis nascidos na Itália não são reconhecidos como minoria nacional, por causa de sua diversidade racial. Grupos de fanáticos e vândalos atacaram acampamentos e favelas de imigrantes, sem que a autoridade os impeça, causando feridos e destruição de casas. Em maio de 2008, a Comissão da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial expressou sua alarma pela incitação ao ódio racial e contra os estrangeiros, contida nos discursos dos políticos dos principais partidos. Em Rimini, uma mulher grávida de seis meses foi chutada por uma gangue de vândalos ante a indiferença dos policiais que observavam. Os especialistas da ONU expressaram seu desespero pelas incitações ao ódio racial feitas desde o governo, incluindo ministros. Em Ponticelli, Nápoles, no dia 13 de maio, uma gangue de vândalos ateou um comboio onde viajavam ciganos, colocando 800 pessoas, incluindo crianças, em risco de morte. Durante todo o ano houve informes de incêndios provocados
Hitler, em 1936, e teve sua mãe assassinada nos fornos de extermínio dos nazistas porque o STF da época a expulsou ilegalmente do Brasil. Casada com Luiz Carlos Prestes, um brasileiro, e com o agravante de estar grávida, Olga Benário não poderia (legalmente) jamais ter sido entregue ao então governo de Berlim. Como hoje, naquele então a decisão final caberia ao chefe do Executivo. E o presidente Getúlio Vargas lavou as mãos. Anita pede que não se repita tamanha injustiça histórica. E juntamente com a companheira Anita, todos e cada um de nós. O caso Cesare Battisti será revelador. Manteremos a tradição histórica brasileira de dar asilo político a todos que nos procuram, de direita (lembrem-se de que aqui acolhemos ditadores argentinos, paraguaios) e de esquerda? Ou cederemos a pressões e chantagens do governo fascista, corrupto e imoral do sr. Berlusconi, que envergonha toda inteligência e pessoas de bem da Itália? A resposta a essa pergunta somente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderá dar. E esperamos que sua sabedoria e consciência solidária o ilumine, se não quiser entrar para história como Vargas, aquele que entregou Olga Benário! Já os ministros do STF, que se colocam contra os direitos humanos nesse julgamento, a história os sepultará quando completarem 70 anos.
Cesare Battisti
“Carta aberta” Gama
Ao excelentíssimo senhor Luiz Inácio Lula da Silva – Presidente da República Federativa do Brasil Supremo Magistrado da Nação Brasileira Ao povo brasileiro “Trinta anos mudam muitas coisas na vida dos homens, e às vezes fazem uma vida toda”. (O homem em revolta - Albert Camus)
em Nápoles, Novara, Pisa, Roma e Veneza. Em junho, a polícia deslocou 130 imigrantes de uma favela e os colocou em outra onde não tinham água. No dia 26 de maio, o governo declarou “estado de exceção” aplicável a minorias raciais em Lazio, Campania e Lombardia, dando poderes aos prefeitos para vigiar, controlar e reprimir essas minorias, incluindo as crianças. O racismo feito público pelos políticos e as leis que diferenciam os direitos em relação à raça têm estimulado os ataques raciais de particulares, que incendeiam e destroem as casas dos imigrantes, batem neles e produzem frequentes feridos. As pessoas que procuram refúgio ou asilo são internadas em campos e passam muito tempo sem poder comunicar-se com órgãos internacionais de proteção. Esses migrantes não têm direito a advogados nem a invocar a lei em sua defesa. No centro de detenção de Cassabile, um número não estabelecido de detentos morreu por falta de atenção médica e eventual trato desumano. Por causa da pressão de fora da Itália, foram iniciadas algumas investigações, que nunca produzem resultados. Em fevereiro de 2009, a câmara de vereadores de Milão restringiu a inscrição de filhos de imigrantes de países pobres em escolinhas. Em 21 de maio de 2008, emitiu-se um decreto, que foi transformado em lei em 24 de julho (125/08), no qual se estabeleciam aumentos de penas para todos os delitos quando eram cometidos por membros de minorias raciais.
Repressão e perseguição
A Itália foi a principal cúmplice dos Estados Unidos no sequestro de estrangeiros que os americanos consideravam inimigos e no deslocamento a outros países para que pudessem ser torturados sem as restrições europeias. Em 3 de dezembro foi suspendido um julgamento que tinha começado a contragosto do governo, em que 7 membros do serviço secreto (SISMI) sequestraram um árabe e o enviaram ao Egito para ser torturado. Em novembro, o primeir-ministro proibiu o uso de provas contra esses se-
questradores, aduzindo que isso revelaria segredos de Estado. Em 2005 se aprovou a Lei Pisanu (155), que não foi derrogada nem atenuada apesar das numerosas queixas de organizações humanitárias. Essa lei permite expulsar sumariamente do país pessoas qualificadas como terroristas por uma autoridade de nível médio, dispensando apuração judicial. A lei tampouco garante medidas cautelares contra o refoulement, o que tem produzido numerosas repatriações de alto risco, onde os devolvidos podem ser submetidos à prisão e tortura.
Tortura e tratos desumanos
Apesar das reiteradas reclamações de organizações de direitos humanos, a aplicação de tormentos em prisioneiros não foi incluída no código penal. Até hoje, Itália é um dos poucos países ocidentais que não possui mecanismos eficientes de controle da atividade policial. Os oficiais de imigração aplicam regularmente tratos desumanos e torturas de leve e mediana intensidade, geralmente contra adultos. Eventualmente, quando a Justiça decide investigar algum desses crimes, pode incriminar os torturados por lesões, caso existam evidências. Em outros casos, a falta de uma lei que puna os tormentos contribuem para a impunidade dos autores. No caso de torturas e tratos desumanos na prisão de Bolzaneto, os policiais, os carcereiros e os “médicos-tira” (dos que falava o grupo de Battisti no começo de suas ações) não puderam ser acusados formalmente de aplicação de tormentos porque essa figura não existe na Itália. A investigação de anistia não pode se concentrar nos problemas internos às prisões, mas existem relatórios de outras organizações de direitos humanos sobre as formas abusivas de reclusão. Mas este assunto exige uma outra matéria. (A íntegra deste texto encontra-se em www.brasildefato.com.br) Carlos Alberto Lungarzo é professor aposentado da Unicamp e membro da Anistia Internacional dos Estados Unidos.
SE OLHARMOS UM pouco nosso passado a partir de um ponto de vista histórico, quantos entre nós podem sinceramente dizer que nunca desejou afirmar a própria humanidade, desenvolvêla em todos os seus aspectos em uma ampla liberdade. Poucos. Pouquíssimos são os homens e mulheres de minha geração que não sonharam com um mundo diferente, mais justo. Entretanto, frequentemente, por pura curiosidade ou circunstâncias, somente alguns decidiram lançar-se na luta, sacrificando a própria vida. A minha história pessoal é notoriamente bastante conhecida para voltar de novo sobre as relações da escolha que me levou à luta armada. Apenas sei que éramos milhares, e que alguns morreram, outros estão presos, e muito exilados. Sabíamos que podia acabar assim. Quantos foram os exemplos de revolução que faliram e que a história já nos havia revelado? Ainda assim, recomeçamos, erramos e até perdemos. Não tudo! Os sonhos continuam! Muitas conquistas sociais que hoje os italianos estão usufruindo foram conquistadas graças ao sangue derramado por esses companheiros da utopia. Eu sou fruto desses anos 70, assim como muitos outros aqui no Brasil, inclusive muitos companheiros que hoje são responsáveis pelos destinos do povo brasileiro. Eu na verdade não perdi nada, porque não lutei por algo que podia levar comigo. Mas agora, detido aqui no Brasil, não posso aceitar a humilhação de ser tratado de criminoso comum. Por isso, frente à surpreendente obstinação de alguns ministros do STF que não querem ver o que era realmente a Itália dos anos 70, que me negam a intenção de meus atos; que fecharam os olhos frente à total falta de provas técnicas de minha culpabilidade referente aos quatro homicídios a mim atribuídos; não reconhecem a revelia do meu julgamento; a prescrição e quem sabem qual outro impedimento à extradição. Além de tudo, é surpreendente e absurdo que a Itália tenha me condenado por ativismo político e no Brasil alguns poucos teimam em me extraditar com base em envolvimento em crime comum. É um absurdo, principalmente por ter recebido do governo Brasileiro a condição de refugiado, decisão à qual serei eternamente grato. E, frente ao fato das enormes dificuldades de ganhar essa batalha contra o poderoso governo italiano, o qual usou de todos os argumentos, ferramentas e armas, não me resta outra alternativa a não ser desde agora entrar em “greve de fome total”, com o objetivo de que me sejam concedidos os direitos estabelecidos no estatuto do refugiado e preso político. Espero com isso impedir, num último ato de desespero, essa extradição, que para mim equivale a uma pena de morte. Sempre lutei pela vida, mas, se é para morrer, eu estou pronto, mas nunca pela mão dos meus carrascos. Aqui neste país, no Brasil, continuarei minha luta até o fim, e, embora cansado, jamais vou desistir de lutar pela verdade. A verdade que alguns insistem em não querer ver, e este é o pior dos cegos, aquele que não quer ver. Findo esta carta agradecendo aos companheiros que desde o início da minha luta jamais me abandonaram, e da mesma forma agradeço àqueles que chegaram de última hora, mas que têm a mesma importância daqueles que estão ao meu lado desde o princípio de tudo. A vocês os meus sinceros agradecimentos. E como última sugestão eu recomendo que vocês continuem lutando pelos seus ideais, pelas suas convicções. Vale a pena! Espero que o legado daqueles que tombaram no front da batalha não fique em vão. Podemos até perder uma batalha, mas tenho convicção de que a vitória nesta guerra está reservada aos que lutam pela generosa causa da justiça e da liberdade. Cesare Battisti é escritor.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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Quatro projetos de lei do pré-sal vão a plenário na Câmara Federal PETRÓLEO Debates só abordaram questões laterais, como os royalties; porém, PLs podem ser votados nos próximos dias Rodolfo Stuckert/PR
Pedro Carrano de Curitiba (PR) NOS PRÓXIMOS dias, o futuro do petróleo descoberto na camada pré-sal estará em jogo. Desde o dia 17, uma vez enviados os pareceres dos relatores, a matéria está aberta à votação no plenário da Câmara dos Deputados. Em síntese, os quatro projetos tratam do novo marco regulatório do pré-sal, apropriação e gestão do Estado, e o destino da renda petrolífera. Até o momento, porém, uma parte pequena do debate recebeu os holofotes da mídia. E o assunto não ganha, junto à sociedade, o seu peso e medida exatos. Por mais que representem até bilhões de reais, os royalties significam a fatia menor do bolo, a chamada “renda indireta”, comparada ao total da renda petrolífera. Mas foi justamente o tema que, até agora, gerou as principais articulações políticas no Planalto Central. De acordo com as emendas feitas ao PL 5.938/ 09 (ver box abaixo), os royalties agora passam a figurar como 15% da renda do pré-sal, frente aos antigos 10%. Dentro desse montante, os estados produtores (Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo) e seus lobbistas aumentaram a participação de 25% para 30%. Ao passo que os estados e municípios não-produtores não deixaram por menos e aumentaram sua cota de 7,5% para 44% dos royalties. As regras antigas continuam valendo para 29% de áreas licitadas, no mecanismo da lei 9.478/97.
Paulo Cesar Ribeiro de Lima alerta que a conquista de estados e municípios nãoprodutores se dá apenas nas áreas do pré-sal que não foram leiloadas Paulo Cesar Ribeiro de Lima, assessor do Conselho de Altos Estudos da Câmara dos Deputados, alerta que a conquista de estados e municípios não-produtores se dá apenas nas áreas do pré-sal que não foram leiloadas e cujos resultados de exploração devem aparecer daqui a dez anos, quando a lei pode ser alterada, passadas duas novas eleições presidenciais. Já Marcos Verlaine, parlamentar e político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), lembra que o projeto de lei no qual figura o tema dos impostos recebeu 364 emendas. Na sua opinião, isso se deve à agenda eleitoral. “Há um componente eleitoral no qual surgem essas demandas efetivamente de interesse dos governos, e o governo federal dá uma flexibilizada. Este não é o tema central dos projetos, mas há uma pressão, entre os estados produtores os não-produtores, querendo ampliar a participação”, avalia. De acordo com analistas do tema, o correto seria pensar a questão dos impostos de
Deputados discutem os quatro projetos de lei que tratam da exploração de petróleo e gás da camada pré-sal no plenário da Câmara
forma equalizada em todos os estados, privilegiando as desigualdades entre eles. E não o contrário. Uma das disputas – no campo do debate ideológico – se está dando em torno da manutenção do atual marco regulatório e do modelo de contrato. No que toca o projeto de lei relacionado ao modelo de partilha (PL 5.938/ 09), a oposição sinaliza obstruir a votação, em defesa da manutenção do atual modelo de contrato, datado de 1997 (lei 9.478). Mas a questão é saber em que medida a oposição compraria essa briga. O deputado José Maia Filho (DEM-PI) sinalizou: “Ideologicamente e até pelos resultados que a Petrobras tem atingido nos últimos anos, em 10 anos, praticamente dobramos a produção e o país se tornou autossuficiente em um regime de concessão, que é o regime adotado em países que têm o sistema tributário organizado, como é o nosso, e que têm democracia forte. Esse é o posicionamento do Democratas, também do PSDB”, manifestou-se. Ribeiro de Lima não vê grandes embates de campos e projetos divergentes, apenas alguns parlamentares manifestando-se individualmente. “A oposição como um todo está calada, não está falando nada, não quer falar nada, e o governo passa o trator, a oposição está com medo de perder voto se entrar na discussão do pré-sal, podem perder voto”, comenta.
Para entender Modelo de concessão: O petróleo retirado do solo pertence à empresa operadora que o explorou. O Estado é recompensado por meio apenas de royalties e tributos. Modelo de partilha: O óleo extraído é partilhado entre União e empresa operadora, no caso brasileiro, de acordo com contrato fixado em edital.
Os quatro projetos de lei Os quatro projetos de lei encaminhados ao Congresso pela comissão interministerial do governo, no dia 31 de agosto, tratam do marco regulatório e contrato de partilha (PL 5.938/09), capitalização da Petrobras (PL 5.941/09), criação da Petrosal (PL 5.939/09) e do Fundo Social (PL 5.940/09).
No Paraná, debate sobre petróleo marca Congresso de Agroecologia Mesa reuniu militante social e petroleiro, além da advogada Clair da Flora Martins de Curitiba (PR) O debate sobre a descoberta de óleo na camada pré-sal, os impactos na vida dos brasileiros, o necessário controle do ritmo de produção (planificado pelo Estado e não nas roletas do mercado) foram alguns tópicos do debate feito durante o Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), em Curitiba, no dia 11, durante o acampamento que abrigou Via Campesina, movimento estudantil e outras organizações sociais. Convocada pelo comitê paranaense da campanha “O Petróleo tem que ser nosso”, a mesa de debates contou com a participação de Ronaldo Pagotto, militante da campanha nacional, e Anselmo Ruoso, da Federação Única dos Petroleiros (FUP), além da presença de Clair da Flora Martins, do Instituto Reage Brasil, advogada que possui ações na Justiça contra a oitava rodada de leilões dos blocos do petróleo. Em Curitiba, esse inesperado momento de um evento de agroecologia com o temário da soberania nacional sobre as reservas petrolíferas surge numa conjuntura de aumento do número de debates em escolas, universidades (públicas, privadas) e paróquias – um sintoma de que o assunto segue no debate político brasileiro, tema presente em vestibulares, nas salas de aula, nos periódicos, na mídia corporativa etc. Há um porém: apesar de alguns debates na sociedade, a campanha ainda não se massificou. Uma das tarefas, portanto, é “construir forças e popularizar a campanha, sem esperar a iniciativa de governos ou do parlamento”, afirmou Ronaldo Pagotto, que defendeu que a produção nas novas reservas (ainda não quanti-
ficadas de todo) não pode ser acelerada, desprezando questões ambientais. Ao contrário, o militante lembra que o Estado deve ser o gestor de toda a operação para, desse modo, controlar o ritmo de produção. Tal ritmo, de acordo com os projetos apresentados pelo governo federal, é definido pelo CNPE (Conselho Nacional de Política Energética), vinculado ao Ministério de Minas e Energia (MME). Analistas avaliam que o mercado ainda segue ditando a exploração de petróleo no país. O assunto ambiental está presente no programa da campanha, definido em Guararema (SP), no primeiro semestre. Ruoso, da FUP, define o petróleo e o atual modelo de produção baseado nessa fonte de energia como insustentável, porém afirma que os recursos do pré-sal são necessários para essa transição, uma vez que as formas de energia limpa alternativas ainda são muito caras – exemplifica com o caso da célula fotoelétrica, na questão da energia solar. Necessidades
Pagotto analisa que a bandeira de controle sobre recursos energéticos esteve na pauta das agendas de luta dos povos na América Latina. “São as bandeiras que têm mobilizado os povos nos últimos 20 anos, temos que partir delas para pensar no Brasil que queremos construir, de acordo com as necessidades do povo. Que se faça reforma agrária, por exemplo, não no modelo industrializante da Europa, não se trata de copiar, mas pensar o futuro da juventude, o futuro do campo... o que passa por enfrentar os problemas relativos ao controle dessas reservas naturais”, avalia. No geral, os debatedores traduziram a leitura dos
movimentos sociais presentes na campanha “O petróleo tem que ser nosso”. No plano da estratégia, a questão da luta pelo monopólio estatal sobre as reservas, com a operação de uma Petrobras 100% estatal e pública, costura a unidade entre as diferentes forças sociais. Sobre o atual momento, no entanto, existem diferentes leituras entre as organizações, como por exemplo se os quatro projetos de lei encaminhados pelo governo Lula são a continuidade ou a superação do plano de Fernando Henrique Cardoso, de 1997.
Na avaliação de Pagotto, o projeto do governo contém avanços no formato de contrato de partilha em relação ao contrato vigente desde 1997 Entre esses dois polos de análise, um risco grande de resvalar no imobilismo. Neste sentido, o debate do dia 11 enfatiza a necessidade de lutar para avançar nas medidas populares que buscam ser rebaixadas no Congresso e atacar as medidas antipopulares dos quatro projetos, ressaltando o que está no horizonte dos movimentos sociais. Na avaliação de Pagotto, o projeto do governo contém avanços no formato de contrato de partilha em relação ao contrato vigente desde 1997 – o de concessão. Por outro la-
do, a manutenção dos contratos de concessão na área de 29% do pré-sal, reservas ainda não confirmadas à época dos contratos, é um dos pontos antipopulares que devem ser combatidos. Neste sentido, Ruoso aponta o lobby que vem sendo feito pelo Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP) no Congresso, que, neste momento, centraliza o interesse das petroleiras – para rebaixar os quatro projetos de lei – , além do posicionamento “golpista” da mídia corporativa em relação ao tema. Outra questão em aberto, desta vez no que se refere à apropriação da renda petrolífera: Clair da Flora Martins, do Instituto Reage Brasil, apontou a não definição de um teto para a participação do Estado brasileiro na exploração do petróleo. Ela falou em 80% de teto mínimo para o Estado na partilha (óleo excedente da exploração, dividido entre Estado e operadora), com operação exclusiva da Petrobras e sem a formação de consórcios com outras petrolíferas. Movimentos sociais como a Via Campesina têm apontado o teto de 90% para o Estado e 10% para a Petrobras, ao passo que a unidade estratégica entre todas as forças na campanha “O Petróleo tem que ser nosso” aponta para a retomada do monopólio estatal, previsto no chamado projeto dos trabalhadores (PL 5.891-09), em disputa no Congresso e, recentemente, apoiado por parlamentares no Senado. “A unidade estratégica da campanha se dá na palavra de ordem monopólio estatal absoluto do mercado de petróleo, ou seja, acabar com os leilões, fim da gestão e participação de empresas privadas, que tem só o objetivo de maximizar o lucro e transferi-lo para suas matrizes”, declarou Pagotto. (PC)
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brasil Eduardo Sales de Lima
fatos em foco
Com Dantas, direita violenta o Pará
Hamilton Octavio de Souza
Práticas imorais – 1
Embora seja uma demanda antiga de quem defende a democratização da comunicação no Brasil, a convocação da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, marcada para dezembro, tem revelado a existência das mais sórdidas práticas políticas nas conferências municipais e estaduais: inúmeros municípios não realizaram seus encontros e, no âmbito estadual, ocorreram manipulações que tornam o processo uma grande farsa. Infelizmente!
Práticas imorais – 2
O acampamento Helenira Resende, que fica na fazenda Maria Bonita, pertencente a Daniel Dantas
CONFLITO AGRÁRIO Pedido de prisão preventiva de dirigente do MST no Pará revela: capangas de banqueiro não estão apenas em suas fazendas Eduardo Sales de Lima de Marabá e Parauapebas (PA) ABRIL DE 2009. “Meu medo é dos meus meninos morrerem de fome”, diz Domingos Alves de Souza, com um olhar preocupado. Com nove filhos, o sem-terra não tem condições físicas para trabalhar. Umas das três balas que o atingiram está alojada na cabeça. Ele estava presente na emboscada ocorrida no dia 18 de abril, quando cerca de dez capangas da fazenda Maria Bonita, pertencente à Agropecuária Santa Bárbara, de propriedade do banqueiro Daniel Dantas, feriram oito sem-terra. O fato sucedeu próximo ao acampamento Dalcídio Jurandir, no município de Xinguara (PA). Novembro de 2009. Sete meses depois de Domingos ter sido atingido por jagunços de Dantas, a imprensa veiculou imagens de casas depredadas na mesma fazenda e acusou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da autoria da ação. O movimento nega. Com prisão preventiva impetrada pela Polícia Civil do Pará pela suposta depredação, Charles Trocate, coordenador nacional do MST no Pará, acredita que isso é apenas mais uma forma de intimidar a luta travada pelos movimentos sociais no Estado “contra o latifúndio e o capital travestido de megainvestimentos”. Como lembra a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em nota publicada no dia 13 deste mês, entre o final de outubro e o início de novembro, cinco delegados foram escalados para indiciar e prender as lideranças do MST, dez mandados de prisão já foram decretados e três dirigentes foram presos. Cerca de 200 policiais da tropa de choque foram liberados para despejar mais de 2 mil famílias sem-terra. A nota ainda reforça que, nos últimos três anos, 101 trabalhadores e lideranças foram ameaçados de morte; 23 trabalhadores foram feridos a bala por pistoleiros e seguranças de fazendas; 17 trabalhadores foram assassinados na luta pela terra; e 128 foram presos pela polícia. Para a entidade, “os conflitos das últimas semanas que resultaram em depredações de patrimônio e interdição de estradas é consequência dessa violência desenfreada e impune contra os trabalhadores rurais”. Além da CPT, o próprio Partido dos Trabalhadores (PT) do Pará (da governadora Ana Júlia Carepa) pede, também em nota, “a imediata revogação de prisão das lideranças do MST” e o “fim da grilagem” no Estado. Chefe de milícia Dono do Banco Opportunity e da Agropecuária Santa Bárbara, que está no nome de Carlos Rodenburg – seu ex-cunhado e atual sócio –, Dantas está sendo indiciado pela
Polícia Federal por crimes de gestão fraudulenta, formação de quadrilha, evasão, lavagem de dinheiro e empréstimo vedado. Mas os crimes do banqueiro ultrapassam os limites do sistema financeiro. Isso porque sua empresa no ramo agropecuário possui contra si acusações tanto de utilização ilegal de terras como de grilagem e devastação ambiental no sudeste do Pará. O grupo Opportunity comprou cerca de 500 mil hectares no sul do Pará em apenas dois anos. As terras, que pertencem ao Estado, teriam sido repassadas irregularmente por membros da família Mutran, que, na época, detinham o título de aforamento (licença de ocupação) da propriedade. Existem, atualmente, duas ações judiciais impetradas pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa, vinculado ao governo estadual) que questionam a posse das fazendas Espírito Santo e Castanhal Carajás, ambas pertencentes ao grupo Santa Bárbara. Segundo a denúncia, apesar de terem autorização para produzir castanha-do-pará, as terras estavam sendo usadas para a produção de gado, o que contraria a legislação ambiental. Recentemente, o Ministério Público Federal (MPF) iniciou 21 processos judiciais contra fazendas e frigoríficos, incluindo o grupo de Daniel Dantas. “Entre as fazendas irregulares, nove pertencem à Agropecuária Santa Bárbara, dos empresários Verônica Dantas e Carlos Rodenburg”, diz o texto divulgado pelo MPF. A Santa Bárbara possui 510 mil hectares de terra, distribuídos em 28 fazendas, a maioria delas localizada no Pará. As filiais concentradas no Estado estão em dez municípios, e a empresa possui 500 mil cabeças de gado. O juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, declarou Daniel Dantas como o réu nas investigações da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, que apura desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro. E mandou bloquear as 27 fazendas da Agropecuária Santa Bárba-
ra Xinguara, alegando que os negócios com boi serviam para lavar dinheiro. Fato é que, enquanto cria gado em terras possivelmente griladas e responde por diversos crimes, Dantas pode encobrir sua verdadeira aposta no Pará e no Brasil: a mineração. De 2007 até hoje, Dantas encaminhou mais de 1.381 pedidos de autorização de pesquisa ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). É com esse ativo na manga que ele pretende atrair sócios. A empresa de mineração GME4, criada por Dantas, entrou em operação em 2007, em 13 estados do país. Já conseguiu obter mais da metade das autorizações, 80% delas em terras da União. A empresa procura ouro, diamante, minério de ferro, zinco, alumínio, manganês, cobre, fosfato, cassiterita e níquel. São 2,1 milhões de hectares em 14 estados. Rede na pressão Na Amazônia, a prática da violência contra os sem-terra vem sendo recomendada por integrantes do próprio poder público, que têm se orientado para além dos interesses do banqueiro. “A bancada ruralista e a CNA [Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil], através da senadora Kátia Abreu [DEM-TO] e de alguns outros parlamentares da bancada ruralista, têm insistentemente dito que os fazendeiros devem contratar seguranças e proteger a qualquer custo suas terras”, denuncia o advogado e membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), José Batista Afonso. O lobby da direita nacional a favor de Dantas e da elite rural vem sendo desvelado. Na sua rede de apoio, também está o nome de Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Mendes telefonou, em 4 de março (antes, portanto, da emboscada contra os sem-terra) para a governadora do Pará, Ana Júlia Carepa. Ele queria saber como o Executivo paraense conduzia as reintegrações de posse de terras no Estado, além de perguntar como andava o efetivo da Polícia Militar. A goEduardo Sales de Lima
Valdecir exibe as marcas dos tiros disparados por seguranças de Dantas
vernadora revelaria que teria sido a primeira vez que passava por uma situação constrangedora como esta. Trocate, do MST, compreende Mendes como “alguém que chama para si, através de um instrumento jurídico oficial da alta corte, a defesa intransigente do interesse da burguesia”. Após o passo de Gilmar, viria o alerta derradeiro a ser dado pela direita aos sem-terra do acampamento Dalcídio Jurandir. Numa audiência na Câmara de Deputados, em 16 de abril, o deputado Abelardo Lupion (DEM-PR), da bancada ruralista, anunciava que em breve haveria um sério conflito de terras no Pará. Emboscada Dois dias depois do discurso de Lupion, equipes de reportagem foram transportadas por uma aeronave de Daniel Dantas para a fazenda. “A imprensa filmou de frente para nós, protegida por eles”, lembra Valdecir Wilson Nunes de Castro, integrante do MST. O sem-terra conta como ocorreu a parte final da emboscada, uma situação, segundo o MST, montada pelo grupo de Dantas, e que envolve atores que vão desde deputados federais e meios de comunicação, como a TV Liberal, pertencente à Rede Globo, até capangas travestidos de seguranças. Segundo Valdecir, um rapaz chamado Djalma, membro do MST, foi sequestrado por seguranças da Fazenda Maria Bonita. Seus companheiros foram atrás de notícias. “Eles saberiam que a gente iria buscá-lo”, afirma. Ele narra que, quando o grupo de sem-terra se aproximava da subsede da fazenda, cerca de dez seguranças estavam esperando junto com dois carros atravessados na porteira. Entre eles, de acordo com o sem-terra, estava um conhecido pistoleiro da região, chamado Divo. “Quando fomos chegando, veio o primeiro grito: ‘Atira neles! É pra matar tudo!’, lembra. De acordo com o sem-terra, todos os seus companheiros estavam desarmados. Valdecir, também conhecido como Índio, foi atingido por sete tiros, a maior parte na região das costelas. Ele relata que um dos “seguranças” tomou seu corpo nos braços, quase desfalecido, e disparou um tiro nas costelas, “mas ele foi parado por um jornalista, que disse que queria me ouvir”. Valdecir conta que, quando estava sendo transportado, ferido, da caminhonete para o avião, rumo ao hospital do município de Marabá, escutou um outro diálogo: – Quem é esse cara? – É o Índio. – Mas cadê o outro? Então o cara enganou nós? Valdecir passou por duas cirurgias e, como Domingos, não pode trabalhar. Ele tem cinco filhos pequenos. De acordo com o advogado dos trabalhadores sem-terra, João Batista, da CPT, existem, no momento, dois inquéritos instaurados nas delegacias de conflito agrário em Redenção e Marabá, sem conclusão. “Fizemos denúncias à Polícia Federal. Uma de que eles usavam armas sem permissão, outra de que a empresa de segurança não tinha permissão de atuar no Estado do Pará, além do fato de haver matadores profissionais entre eles”, relata o advogado. Segundo ele, a Polícia Federal teria apreendido armas na fazenda.
Para se ter ideia do nível de disputa fisiológica que tomou conta das conferências preparatórias, em alguns encontros as empresas de telecomunicações – interessadas em mudar as leis para produzir conteúdo nos meios de comunicação – conseguiram inscrever centenas de funcionários, que votaram em bloco conforme orientação de seus patrões. O valetudo tem a ver com a escolha de delegados para a Conferência Nacional. Pura distorção!
FHC mentiu
Finalmente, com 18 anos de atraso, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso admitiu reconhecer legalmente o filho que teve com a jornalista Miriam Dutra, da TV Globo. O assunto foi tratado como segredo de Estado e a imprensa empresarial manteve silêncio sobre o fato, inclusive durante o período em que FHC ocupou cargos públicos. Na época, a revista Caros Amigos fez matéria e sofreu inúmeras ameaças do tucanato.
Deixa rolar
Mesmo com o apoio da imprensa empresarial, os governos tucanos de São Paulo (Geraldo Alckmin e José Serra) não conseguiram esconder os graves acidentes ocorridos em obras públicas no Estado, como o do metrô e o do Rodoanel, geralmente por “economia” das empreiteiras e falta de fiscalização dos órgãos estaduais. Até quando esses governantes continuarão impunes pelos danos causados às pessoas e aos cofres públicos?
Direita ataca
Setores da direita paraguaia estão acirrando as críticas ao governo democrático do presidente Fernando Lugo: nos últimos dias, divulgaram manifesto assinado por um suposto Comando Anticomunista Paraguaio; na imprensa, o jornal conservador ABC, de Assunção, defendeu em editorial a volta do stronismo, a ditadura de Alfredo Stroessner, que governou o país durante 35 anos. O povo não quer volta ao passado!
Inversão policial
As investigações mais sérias sobre a atuação do grupo de Yeda Crusius na campanha eleitoral e no governo gaúcho comprovaram a existência de desvio de dinheiro público para fins eleitorais e privados. Há documentos, gravações e testemunhas sobre esses fatos. Mas a polícia do Rio Grande do Sul preferiu perseguir e indiciar integrantes da Federação Anarquista Gaúcha que protestaram contra os desmandos do governo tucano. Pode?
Mais poluição
Artigo de Sandra Quintela no boletim semanal da Fundação Lauro Campos denuncia mais uma fonte poluidora na baixada fluminense: trata-se da nova unidade da Companhia Siderúrgica do Atlântico, que iniciará suas operações em 2010, em Santa Cruz, zona oeste do Rio de Janeiro, e que despejará milhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera. A quem compete fiscalizar e proteger a população?
Direitos humanos
Com pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP, a Associação Nacional de Direitos Humanos acaba de concluir um levantamento nacional sobre as principais violações de direitos humanos no país e as principais ameaças sofridas por militantes e defensores desses direitos. De acordo com os analistas do documento, a luta contra as violações depende muito mais de vontade política das autoridades do que de recursos financeiros.
Justiça já
Continua congelado na Câmara dos Deputados o projeto de lei 01/2007, que altera a forma de cálculo das aposentadorias e acaba com o “fator previdenciário”, criado no governo FHC, mantido pelo governo Lula e que tem causado enormes prejuízos aos trabalhadores. Espera-se que as bancadas da chamada “base aliada” parem de impedir a votação do projeto – fundamental para resgatar a dignidade das aposentadorias.
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brasil Mastrangelo Reino/Folha Imagem
Luz sobre o modelo energético brasileiro
Subestação Bandeirantes da Companhia de Transmissão de Energia Elétrica, que fica na avenida Luiz Carlos Berrini, em São Paulo
ENERGIA Apagão soma-se aos inúmeros problemas do sistema pósprivatização Eduardo Sales de Lima da Redação ERAM 22h30, e a redação do Brasil de Fato, localizada na cidade de São Paulo, estava preparando a edição 350 do jornal impresso. Quase todas as páginas prontas. De surpresa, um acendeapaga que dura cinco segundos finaliza-se em escuridão, um breu que perdurou quatro horas. Ficamos na escuridão. Estávamos entre os milhões de brasileiros de 18 estados que sofreram desligamento total ou parcial da energia elétrica. Dias antes, a CPI das tarifas de energia elétrica revelava que as empresas distribuidoras de energia cobraram indevidamente, nos últimos anos, R$ 7 bilhões a mais nas contas de luz. Que ligação uma coisa tem com a outra? Por culpa de um modelo vulnerável e do des-
Quanto
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R$ bilhões foram cobrados a mais nas contas de luz, segundo CPI da Aneel mando no setor energético após sua privatização, ocorrida a partir de 1995, ficou mais fácil para especialistas como o físico Luiz Pinguelli Rosa, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Ildo Sauer, coordenador do programa de pós-graduação em energia da USP, evidenciarem que os desligamentos das linhas de transmissão que transportam a eletricidade produzida em Itaipu ao principal centro de consumo brasileiro está ligado a problemas de gestão. Uma gestão moldada ao gosto dos agentes privados, ávidos por lucro, obviamente. Segundo Sauer, em entrevista ao G1, a má gestão se reflete tanto do ponto de vista de manutenção quanto da falta de coordenação de todas as pontas do sistema. O problema de gestão, dessa vulnerabilidade que permite que existam blecautes ao mesmo tempo em que são cobrados bilhões de reais a mais na tarifa de energia elétrica junto à população brasileira, advém, segundo o integrante da coordenação
Segundo nota do MAB, o objetivo “de extrair as maiores taxas de lucro faz apressar e passar por cima de normas e procedimentos necessários para o bom funcionamento do setor” do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), Gilberto Cervinski, do complexo processo de privatização do setor no país. “Para garantir altas taxas de lucro, o setor elétrico foi fracionado em vários negócios (geração, transmissão, comercialização, distribuição)”, salienta. Segundo ele, com essa divisão, o setor ficou mais vulnerável, porém se transformou no segundo de maior lucratividade, perdendo apenas para os bancos. Como exemplo, a Companhia Energética de São Paulo (Cesp) registrou um lucro de R$ 255,1 milhões no terceiro trimestre deste ano. Segundo nota do MAB, o objetivo “de extrair as maiores taxas de lucro, com o menor tempo possível, faz apressar e passar por cima de normas e procedimentos necessários para o bom funcionamento do setor”. A redução de equipes e de quadro técnico, trabalhos terceirizados,
trabalhadores mal remunerados, precarização e intensificação do trabalho e redução de exigências ambientais estão entre algumas das várias ações práticas que se pode verificar hoje em dia no setor energético. O que perfila como um dos motivos do recente blecaute. Prática
Tecnicamente, a “proteção das linhas de transmissão dispõe de tecnologias de comando e controle que são acionados de modo seletivo, sempre que acontece um defeito, isolando o trecho em que o mesmo aparece e, consequentemente, impedindo a propagação da perturbação elétrica no sistema, evitando o desligamento de outras linhas”, explica Dorival Gonçalves Júnior, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). É por isso que, segundo ele, a probabilidade de um
acontecimento como o veiculado pela mídia, de que as três linhas de corrente elétrica alternada foram submetidas a descargas atmosféricas simultâneas, derrubando os três circuitos e posteriormente os demais, “é quase impossível”.“Se temos conhecimento, tecnologias e sistema de produção, transporte e distribuição de eletricidade capazes de evitar o apagão ocorrido, resta-nos questionar sobre a organização e/ ou gestão da indústria de eletricidade”, conclui Dorival.
A falta de comando no setor ficou tão evidente que, dias após o ocorrido, nenhuma explicação clara foi dada sobre o fato O professor da UFMT chama a atenção para o fato de que as análises da indústria de eletricidade induzem a uma interpretação do tema gestão enquanto capacidade de gerenciamento e fazem supor que os problemas estão
da Redação Os capitais disputaram avidamente o setor de distribuição em detrimento da transmissão e, principalmente, da geração entre o final dos anos de 1990 e início dos anos 2000. Isso é o que lembra o professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Dorival Gonçalves Júnior. Coincidência ou não, de junho de 2001 a fevereiro de 2002, ocorre o racionamento de energia no país, com graves prejuízos à população brasileira. Ele lembra que, em plena crise de energia, as empresas conseguiram intensificar a exploração dos trabalhadores, cobrando deles a energia elétrica não vendida durante o racionamento. Para Gilberto Cervinski, integrante do coordenação nacional dos Movimentos dos Atingidos por Barragem (MAB), o apagão na gestão do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardo-
Quanto
400
% foi o quanto aumentou a conta de luz nos últimos anos
so (PSDB) ocorreu para fortalecer a ideia de escassez de energia, o que ajudou as empresas e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a justificarem aumentos nas contas de luz (mais de 400% nos últimos anos), acelerando, também, a construção de novas barragens.
Para Roberto Malvezzi, da CPT, a “lição” assimilada com o racionamento no Brasil na época de FHC “foi bem aos moldes do sistema capitalista” O que existe de novo no atual governo, segundo Cervinski, é a retomada do planejamento pelo Estado, “po-
rém isso é insuficiente, porque a geração, a transmissão, a comercialização, a distribuição, a regulamentação, tudo está entregue nas mãos de empresas privadas”. Dorival Júnior explica que as forças capitalistas ligadas à indústria elétrica se articularam (dentro do governo Luiz Inácio Lula da Silva – PT) e passaram a exercer intensa disputa no interior do governo, de modo a garantir seus interesses. “Assim, a hegemonia dos interesses dos capitais é consagrada com a nova legislação para o setor elétrico estabelecida em março de 2004, mantendo-se os elevados níveis de lucratividade dos setores de distribuição, transmissão e comercialização e, ainda, estabelecendo regras para o setor de geração que o tornaram extremamente seguro e lucrativo”, lembra. Contudo, pondera, “as contradições não cessaram”. “Até instituições ideológicas do Estado, como o Tribunal de Contas da União (TCU), que sistematicamente se destinam ao acobertamento da exploração do trabalho, tem trazido à tona o grau de exploração contido nas bases institucionais. Etse é o caso dos elevados valores das tarifas de energia elétrica cobradas pelas distribuidoras e legitimadas pelos contratos de
Culpas
O MAB defende que a criação de mecanismos como a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), espaços controlados pelas empresas privadas, servem aos interesses destas. Sauer reforça essa concepção, afirmando que a existência de quase uma dezena de entidades públicas ligadas ao sistema energético brasileiro dilui as responsabilidades, o que é bastante conveniente para as empresas do setor. A falta de comando no setor ficou tão evidente que, dias após o ocorrido, nenhuma explicação clara foi dada sobre o fato. Segundo ele, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico não cumpriu o papel de ser o primeiro a verificar, de antemão, os problemas das redes transmissoras próximas à Itaipu.
MAB
Apagões refletem setor aparelhado Disputa por distribuição ganhou força no início dos anos 2000
vinculados à falta de competência técnica, administrativa e institucional. “Essas interpretações não veem, ou ocultam, que fatos como este do apagão têm fortes vínculos com as contradições internas presentes no modo produção vigente”, explica.
concessão concebidos e fiscalizados pela Aneel”, afirma Dorival.
Para Gilberto Cervinski, o apagão na gestão de FHC ocorreu para fortalecer a ideia de escassez de energia Lição capitalista
Para além do início do acirramento da participação das distribuidoras e seu subsequente lucro, Roberto Malvezzi, integrante da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), considerou, em recente artigo, que a “lição” assimilada com o racionamento no Brasil na época de FHC “foi bem aos moldes do sistema capitalista”, pois o país passou a diversificar sua matriz energética, “investindo pesadamente em termoelétricas, agora em energia atômica, num mixer com as hidrelétricas”, escreve. Como exemplo, ele lembra que, atualmente, existe na cidade de Petrolina (PE) uma
Gilberto Cervinski, da coordenação nacional do MAB
termoelétrica às margens do São Francisco. Funciona como reserva, caso os reservatórios novamente fiquem sem água. “Acontece que, para não correr riscos, agora acionam primeiro a termoelétrica, depois utilizam mais intensamente as águas de Sobradinho, quando as chuvas já estão para chegar e o nível de água já esteja garantido para a próxima etapa”, explica. Uma “energia suja” que o Brasil não estava acostumado a usar, segundo ele.
Por conta do recente blecaute, a história pode se repetir. “Nossa avaliação é que vai ocorrer uma aceleração na construção de grandes projetos de geração através de hidrelétricas, que nada têm a ver com os interesses do povo brasileiro, como é o caso das hidrelétricas no Madeira e de Belo Monte, mas que têm a ver com a retomada das taxas de lucro aos grandes grupos econômicos mundiais”, afirma Gilberto Cervinski, do MAB. (ESL)
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brasil Felipe Canova
Um vale de resistência ENERGIA Movimento no Vale do Ribeira, em São Paulo, comemora 20 anos de luta contra a barragem de Antônio Ermírio de Moraes Sílvia Alvarez de Eldorado (SP) EM 1969, O LÍDER guerrilheiro Carlos Lamarca, membro da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), escolheu a região do Vale do Ribeira, fronteira entre Paraná e São Paulo, para instalar um centro de treinamento de guerrilha rural. No ano seguinte, em entrevista a um jornal europeu, Lamarca comentou que o trabalhador rural da região foi receptivo e capaz de entender a comunicação dos guerrilheiros. No entanto, os militares não aceitaram essa receptividade: “A repressão começou a entender que ganhávamos o apoio da população. Prendeu e assassinou um jovem casal de camponeses. Evacuou a população da região. Bombardeou a área. Complementou o terrorismo com rajadas de metralhadora a esmo, para dentro do mato, e voos rasantes sobre as choupanas ainda habitadas”, relatou Lamarca. Vinte anos depois, quando o Brasil já havia reconquistado o direito às eleições diretas e acabara de promulgar uma nova Constituição, o povo quilombola, ribeirinho, caiçara e guarani do Vale do Ribeira era novamente ameaçado. Dessa vez, não mais por um exército de uma ditadura, mas sim por uma empresa. Em 1989, a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), do grupo Votorantim, apresentou os primeiros estudos de viabilidade da Hidrelétrica de Tijuco Alto, a ser construída no rio Ribeira de Iguape. Essa seria a porta de entrada para outras três barragens no mesmo rio: Batatal, Funil e Itaoca.
Outros 20 anos se passaram e nenhuma das hidrelétricas previstas para o Rio Ribeira de Iguape foi erguida. Mais uma vez, o povo do Vale do Ribeira mostra que conhece o sentido da palavra resistência. E é em 2009 que o MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens no Vale do Ribeira) comemora duas décadas de luta contra os projetos de barragens e contra todo tipo de destruição da região. Um vale de riquezas “Quando eu cheguei aqui, em 1986, encontrei várias comunidades rurais, muita mata, muita floresta – isso me impressionou muito –, e uma população esquecida pelo poder público, mas muito rica na sua cultura e na relação com a terra”, lembra a irmã pastorinha Sueli Berlanga, uma das fundadoras do MOAB. Parte de toda essa riqueza relatada pela irmã não existe mais. A região do Vale do Ribeira alterna grandes extensões de plantação de pinus e eucalipto com grandes extensões de desmatamento. Ainda assim, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), a zona abriga 21% da Mata Atlântica ainda restante no Brasil, além de áreas remanescentes de restingas e manguezais. Também fazem parte da diversidade cultural e ecológica do Vale do Ribeira as 273 cavernas naturais cadastradas pela Sociedade Brasileira de Esteologia, que atraem turistas para os municípios de Iporanga e Apiaí, aumentando o crescimento econômico da região. No entanto, o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) do proje-
Município de Iporanga, no Vale do Ribeira: movimentos lutam há 20 anos contra a destruição da região
Vinte anos depois, quando o Brasil já havia reconquistado o direito às eleições diretas e acabara de promulgar uma nova Constituição, o povo quilombola, ribeirinho, caiçara e guarani do Vale do Ribeira era novamente ameaçado to de Tijuco Alto aponta que cerca de 51 quilômetros quadrados de toda essa riqueza e diversidade serão inundados, o equivalente a 11 mil campos de futebol, sendo que 46% são terras aptas para a agricultura e 35%, para pastagem. O estudo afirma ainda que 689 famílias terão suas vidas afetadas pela construção da barragem. “O Vale é a bola da vez. Sempre foi o vale do esquecimento, o vale da miséria, mas agora as empresas se voltaram pra cá porque descobriram que nós temos uma riqueza muito grande e eles querem explorá-la em benefício do lucro de poucos”, afirma José
Galindo, professor de História e militante do MOAB “Na verdade, tudo faz parte de um plano que envolve a construção das barragens, a plantação de pinus, a instalação de uma empresa de celulose que processaria essa madeira e a construção de um porto em Cananeia para exportar esses produtos. Parecem coisas isoladas, mas fazem parte de um grande quebra-cabeça que será montado depois”, conclui. Paralelamente à luta contra as barragens, o MOAB também lutou durante todos esses anos para que as terras de quilombos da região fossem reconhecidas e tituladas, como ga-
rante a Constituição de 1988. O Vale do Ribeira possui 51 comunidades quilombolas, oriundas de escravos que trabalhavam na mineração ao longo do século 18. “Nós entendemos que lutar pelo direito à terra dos quilombos é lutar contra as barragens. Se a barragem for construída, nós vamos perder a terra que lutamos tanto para conquistar e que nossos antepassados escravos ocuparam. As duas lutas estão ligadas”, diz Benedito Alves, do Quilombo de Ivaporunduva, considerada a comunidade mais antiga de remanescentes de quilombos da região. Um vale de miséria Entre 1989 e 1997, a CBA realizou um processo de cooptação e despejo dos trabalhadores rurais que moravam nos municípios de Ribeira (SP) e Cerro Azul (PR), onde se localizaria o canteiro de obras da barragem. Ela adquiriu 379 imóveis rurais pagando muito pouco ou nada por eles. No caso da família de dona Joceli Andrade, nada foi pa-
go. Certo dia, chegou a ordem de despejo junto com um caminhão de mudança, sem que a família tivesse ouvido falar da barragem. “Queriam levar a gente pro pátio da prefeitura, mas nós pedimos pra nos deixarem aqui na casa do meu pai”, conta Joceli, que agora mora na periferia de Cerro Azul com o marido e cinco filhos. E como fazem para se alimentar? “Quando meu marido não pode trabalhar com os braços, eu peço ajuda”, diz. Ou seja, antes mesmo de ser construída, a barragem já gerou desemprego e miséria. As irmãs pastorinhas Angela Biagioni e Sueli Berlanga lembram ainda que Antônio Ermírio de Moraes (dono da Votorantim) já tem uma dívida enorme com o povo do Vale. “Se a gente for contabilizar toda a energia, o tempo e o dinheiro gasto nesses 20 anos de luta; as horas em manifestações, debaixo do sol, sem comer nem beber; o tempo que os agricultores perderam ao invés de estarem produzindo em suas terras, a dívida do Antônio Ermírio é enorme”.
Marcela Mattos
Um vale de luta
O custo do “progresso”
Inúmeras manifestações e ações conseguiram barrar, até o momento, a construção da Hidrelétrica de Tijuco Alto
de Eldorado (SP)
Manifestação na ponte entre Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR)
de Eldorado (SP) “A forma boa e saudável de vida das comunidades é um contraponto ao modelo de desenvolvimento que a Votorantim quer nos impor”, afirma Paulo Sílvio, do quilombo de Ivaporunduva, localizado no Vale do Ribeira. Para preservar esse modo de vida, o meio ambiente e o rio Ribeira de Iguape – único rio de médio porte do Estado de São Paulo que ainda não foi barrado por hidrelétricas – foi e é necessário, segundo os militantes do Movimento dos Ameaçados por Barragens no Vale do Ribeira (MOAB), muita luta e organização. E é perto da praça onde aconteceu o confronto entre o exército e o grupo do guerrilheiro Carlos Lamarca, no município de Eldorado (SP), que fica agora a sede do movimento. Entre as várias manifestações ocorridas nesses 20 anos, os ameaçados destacam algumas, a começar pelo protes-
to, em 1994, em frente ao local de uma reunião do Consema (Conselho do Meio Ambiente de São Paulo), onde estava sendo estudada a viabilidade do estudo de impacto ambiental de Tijuco Alto. Quando Antônio Ermírio saiu da reunião, foi abordado por uma jovem estudante da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que o questionou a respeito da obra. Contam que, irritado, o empresário torceu o braço da moça. “Nessa hora, a Rede Globo e a Bandeirantes viraram a câmera para não filmar a cena”, detalha Benedito Alves, também do Quilombo de Ivaporunduva. Em seguida, a quilombola Araci Pedroso segurou o braço de Antônio Ermírio dizendo que ele não podia agredir a jovem estudante. Ele não teve dúvida e logo perguntou irritado: “quanto você quer pela sua terra?”, achando que seria fácil corrompê-la.
“Não sou só eu que moro lá não. Você teria que comprar a terra de todos e eu duvido que consiga. Nós não queremos a barragem e não vamos nos vender”, foi a resposta de Araci. Ocupação A ocupação do prédio do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), em 2008, também foi marcante por ter tido uma repercussão nacional e a participação dos movimentos sociais urbanos. A ocupação da Votorantim, no mesmo ano, também chamou atenção pela forte repressão policial sofrida pelos manisfestantes. Já as audiências públicas foram essenciais para a não-viabilidade do projeto da barragem. Elas foram realizadas em cinco dias consecutivos, em municípios distantes uns dos outros, para dificultar a participação dos militan-
tes do MOAB. “Mas nós também montamos a nossa estratégia e participamos de todas as audiências públicas e, em todas, conseguimos convencer a população local de que o projeto não traria benefícios pro povo”, lembra José Galindo, professor de História e militante do MOAB. O último ato da organização, que teve a participação dos movimentos sociais da Via Campesina, foi a ocupação do pedágio da multinacional OHL, na Rodovia Régis Bittencourt, na jornada de lutas de agosto. Os ameaçados pelas barragens garantem que vão se passar mais 20 anos sem que estas sejam construídas. “Na hora que precisar, vai todo mundo se juntar e não vai deixar esse projeto sair”, diz um. “Enquanto eu for vivo, estou nessa luta”, diz outro. “Terra sim! Barragem não!”, dizem todos. (SA)
Todo o sofrimento e destruição vividos pelas famílias da região do Vale do Ribeira é o custo do progresso, dizem as empresas. Mas, progresso para quem? A energia gerada pela hidrelétrica de Tijuco Alto será destinada exclusivamente à produção de alumínio da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), que se localiza a 200 km da usina, no município de Alumínio. O professor Célio Bermann, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), lembra que a produção de alumínio nos países ditos desenvolvidos foi extremamente reduzida em função do alto consumo de energia elétrica e dos problemas ambientais decorrentes dessa produção. Já o Brasil, além de abrigar companhias estrangeiras de alumínio em seu território, exporta o produto através de empresas brasileiras, caso da CBA, que vende 70% de sua produção para o exterior. Alumínio x famílias Segundo Bermann, a energia consumida por uma tonelada de alumínio equivale à consumida por 200 famílias. Ou seja, a energia que deveria estar disponível à população brasileira servirá somente para uma empresa
que fabrica um produto que não fica no Brasil. “A pergunta é: vale a pena mantermos esse tipo de produção? O alumínio gera poucos empregos. Onde ele é produzido, a expectativa de aumento do número de empregos e de renda não se verifica, se compararmos com outros setores da indústria”. Um exemplo: de acordo com dados do ISA, enquanto a indústria de alimentos e bebidas gera 56,2 empregos por Gwh (gigawatt/ hora) de energia utilizada, a do alumínio primário gera apenas 0,8 empregos com a mesma quantidade de eletricidade. Não é a primeira vez que a CBA e a Votorantim Energia se preocupam em gerar eletricidade para a produção de alumínio. O projeto de Tijuco Alto deve se somar às 18 barragens já construídas pela empresa. Duas delas encontram-se no rio Juquiá, também na região do Vale do Ribeira. “Quando a CBA chegou aqui, em 1968, ela fez essa mesma promessa: disse que ia trazer desenvolvimento, gerar empregos, que ia mudar tudo. Se compararmos Juquiá naquele tempo com agora, vamos ver que ela não mudou praticamente nada. Juquiá continua do mesmo jeito e com um dos índices de desenvolvimento humano mais baixos da região”, conta seu Modesto, morador de Juquiá. (SA)
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Colômbia e Venezuela: guerra à vista? GEOPOLÍTICA Conflito entre os dois países evidencia a existência de diferentes projetos para a América Latina Dafne Melo da Redação O CONFLITO latente nos últimos anos, com altos e baixos, entre Colômbia e Venezuela ganhou ares mais sérios e belicistas recentemente. A tensão na fronteira aumentou, com diversos relatos de prisões e assassinatos dos dois lados. O pano de fundo foi a oficialização do acordo militar entre Colômbia e Estados Unidos, no dia 30 de outubro, segundo o qual o primeiro autoriza o segundo a utilizar bases militares em seu território. Para Alexander Mosquera, professor da Universidade de Zula, em Maracaibo, Venezuela, o novo fato “fez tocar o alarme não somente na Venezuela, mas em toda América Latina, tendo em vista o perigo que historicamente significou esse intervencionismo estadunidense em nossas nações”. O venezuelano aponta ainda que a aliança Colômbia-EUA não é exatamente uma novidade, já que se iniciou com o Plano Colômbia. Entretanto, com o novo acordo, as tensões e intenções se tornam mais claras. “Acredito que, nos últimos anos, a tensão aumentou sobretudo desde que a Colômbia embarcou nessa ‘aventura’ com os Estados Unidos, que chamou de Plano Colômbia, através do qual se fez a mais evidente entrega da soberania neogranadina aos norte-americanos, com a desculpa de combater a guerrilha, o terrorismo e o narcotráfico. Essa cessão dos direitos do povo colombiano é mais palpável hoje em dia”, analisa.
Para André Martin, professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), não há dúvidas de que a intenção dos EUA é aumentar o controle na região e desestabilizar o governo Hugo Chávez, visto como líder de um projeto progressista para a América Latina, materializado na Aliança Bolivariana para as Américas (Alba). “A presença militar de uma potência estrangeira num país da América do Sul provoca necessariamente um desequilíbrio na região”, pontua. Acordo Dias depois, conforme prometido, o governo de Álvaro Uribe publicou o acordo na íntegra. Como alguns já esperavam, o texto deixa questões em aberto e é mais permissivo do que se pensava. Um exemplo é que o número de 800 militares e 400 civis estadunidenses é apenas uma referência. Fica estabelecida a
Presença militar estadunidense na Colômbia é ameaça à soberania dos países da América Latina
possibilidade de o número ser maior. “As partes operativas estabelecerão um mecanismo de coordenação para autorizar o número e categoria das pessoas (...) e o tipo e a quantidade de equipes que não excederá a capacidade das instalações e localidades convenientes”, diz o documento. Além disso, é dada imunidade aos cidadãos estadunidenses que atuem nessas bases, ou seja, estarão acima das leis colombianas. Na prática, podem cometer crimes sem perigo de punição, como observou o presidente venezuelano Hugo Chávez. Outro ponto polêmico é que os EUA não poderão ser expulsos de instalações construídas na Colômbia com fi-
nanciamento estadunidense até a data em que o acordo expira: 2019. Na prática, isso impossibilita que os próximos governos os expulse, criando enclaves estadunidenses no continente. Apesar disso, o governo de Álvaro Uribe mantém um discurso “pacifista”, afirmando que a Colômbia não fará nenhuma movimentação para causar uma guerra com nenhum país, muito menos com os “países irmãos”. Do outro lado, Hugo Chávez mantém o discurso inflamado, afirmando que a atitude da Colômbia já é uma declaração de guerra. Em seu programa “Alô, Presidente”, de 8 de novembro, afirmou que o exército do povo deve estar preparado pa-
ra um possível ataque dos EUA partindo da Colômbia. Guerra? Alexander Mosquera avalia que, por enquanto, a guerra é mais midiática que real, mas não descarta, no futuro, um conflito armado entre as duas nações latino-americanas. “Sempre existe o temor de que o conflito se produza, pois a história tem uma infinidade de exemplos em que a irracionalidade imperante de alguns governantes arrastou povos inteiros para a guerra”. Porém, o venezuelano acredita que, diante de um acirramento da tensão, a tendência seria uma saída diplomática negociada, uma vez que as populações dos dois países
Estado é responsável por mais de 90% das torturas na Colômbia Relatório aponta que número de casos caiu, mas, entre 2003 e 2009, participação do Estado aumentou da Redação
Uribe pode. Chávez não Colombiano conta com apoio dos EUA, empresários e imprensa corporativa na tentativa de candidatar-se a um terceiro mandato em 2010 da Redação Um possível terceiro mandato de Hugo Chávez causou a condenação dos Estados Unidos e uma avalanche de críticas da mídia corporativa. Em Honduras, a possibilidade de Manuel Zelaya abrir uma Assembleia Constituinte que poderia vir a aprovar a reeleição no país (e não aprovar sua reeleição especificamente) foi motivo para golpe de Estado. Mas, quando o assunto é a tentativa de mudar as leis colombianas para permitir o terceiro mandato de Álvaro Uribe, parece não existir nenhum problema. “Manter Uribe no poder nos próximos anos se insere no mesmo projeto das bases militares, pois assegura que o comando do país esteja na mão de um aliado dos Estados Unidos”, opina André Martin, geógrafo da Universidade de São Paulo (USP). Para Alexander Mosquera, da Universidade de Zula, na Ve-
não veem com bons olhos um conflito com o país vizinho. “Uma coisa são governos e outra são os povos. Creio que os venezuelanos e colombianos não veem uma opção [na guerra]”. André Martin acredita que um conflito armado teria efeitos extremamente nocivos para o continente. “Se sai uma guerra, temos que nos perguntar: qual o objetivo estratégico?”, questiona, lembrando que, ainda que a Colômbia tenha forças militares preparadas para combater a guerrilha interna, é diferente de uma guerra contra outro país. “Mas, certamente, os Estados Unidos sairiam em defesa de seu aliado”, afirma.
nezuela, a questão é simples: a aspiração de Uribe é considerada legítima porque “é o líder que a Colômbia quer”, enquanto Chávez é uma ameaça à América Latina. Para que Álvaro Uribe possa candidatar-se de novo, será necessário mudar a Constituição do país. Este ano, a proposta de referendo popular foi mandada, com 5 milhões de assinaturas, para a Câmara de Deputados e Senado colombianos. Com ampla base de apoio nas duas casas, o projeto foi aprovado. Entretanto, em meados de novembro, o governo Uribe sofreu um revés não esperado. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) considerou inválido o processo de coleta de assinaturas para o referendo. Os três juízes que avaliaram o processo declararam que a coleta não tem “validade nenhuma”. Irregularidades Germán Vargas Lleras, presidente do Partido Cambio Radical, de oposição, apoiou a
decisão. “Há quem pense que se pode violar leis e normas sem que isso tenha importância alguma”, disse. A decisão do CNE pode ser ignorada pela Corte Constitucional, que dará a palavra final. A decisão do CNE, entretanto, dificulta as aspirações uribistas porque prolonga o processo legal para que o referendo ocorra. As eleições, entretanto, ocorrem em maio. Os partidos têm até 12 de março para inscrever seus candidatos, ou seja, a consulta popular teria de ser feita com máxima rapidez para que pudesse valer já para o próximo pleito. O CNE apontou como problema central o fato de que o financiamento da campanha para coleta de assinaturas excedeu o limite permitido, o que a oposição vem denunciando desde o ano passado. O cálculo é que foram gastos pelo menos 1 milhão de dólares, enquanto que a lei permite apenas 150 mil. Além disso, a restrição às doações individuais – que não podem superar os 2 mil dólares por pessoa – também foi desrespeitada várias vezes. O CNE aponta também que o projeto não passou pelo órgão nacional responsável por analisar os financiamentos, antes mesmo de ir ao Congresso
– motivo pelo qual a maioria dos partidos da oposição boicotou a votação.
“Manter Uribe no poder nos próximos anos se insere no mesmo projeto das bases militares, pois assegura que o comando do país esteja na mão de um aliado dos EUA”, opina André Martin, geógrafo da USP O presidente colombiano está há sete anos no poder. Ele foi eleito em 2003 para um mandato de quatro anos. Uribe reformou a Constituição para permitir que ele mesmo concorresse à reeleição e iniciou seu segundo mandato em 2007. (DM, com informações do Página 12 – www.pagina12.com.ar)
No dia 11, foi lançado o Relatório alternativo sobre tortura, tratos cruéis, desumanos ou degradantes - Colômbia 20032009, elaborado pela Coalizão Colombiana Contra a Tortura (CCCT). De acordo com o relatório, a Colômbia ainda apresenta registros de torturas em quase todo o território nacional. Além disso, a impunidade e a falta de garantia das vítimas aos direitos à verdade, à justiça, à reparação e à não-repetição do crime também são realidades presentes no país. Por conta disso, o documento apresenta ainda a importância de o Estado colombiano ratificar o Protocolo Facultativo da Convenção Contra a Tortura, para prevenir e sancionar o crime de tortura no país. O relatório destaca que, apesar de alta, se comparada com os dados anteriores – referentes ao período de julho de 1998 a junho de 2003 –, a cifra diminuiu. “Essa diminuição é marcada pela descida do número de pessoas que foram assassinadas depois de serem torturadas. Enquanto entre julho de 1998 e junho de 2003 foram registradas 1.327 pessoas dentro dessa categoria, entre julho de 2003 e junho de 2008, foram 502 pessoas, o que corresponde a uma dimi-
nuição de 62,17%”, destaca o relatório. Participação do Estado Segundo a análise, o Estado é o responsável pela maioria dos casos. Das 666 ocorrências que se conhece genericamente o suposto autor, em 92,6% culpa-se o Estado. Perpetração direta dos agentes estatais (50,6%) e omissão, tolerância, aquiescência ou apoio às violações realizadas por paramilitares (42%) foram as principais ações denunciadas contra o Estado. O informe revela ainda que os casos envolvendo grupos paramilitares já diminuíram. No período anterior, de acordo com a pesquisa, foram 754 vítimas das ações dos grupos, enquanto que, agora, a cifra caiu para 280 pessoas torturadas. Entretanto, ainda não há o que comemorar. “Essa diminuição relativa dos casos de tortura atribuídos aos grupos paramilitares coincide com o aumento de registros de casos atribuídos diretamente à força pública”, diz o documento. Entre julho de 1998 e junho de 2003, registraramse pelo menos 187 casos de torturas atribuídos à força pública. No período posterior, entretanto, – entre julho de 2003 e junho de 2008 –, tal cifra subiu para 337, ou seja, um aumento de 80,2%. “A responsabilidade pelos casos de tortura atribuíveis à força pública se moldura na implementação da política de ‘segurança democrática’, que tem levado ao aumento das violações aos direitos humanos sob a desculpa da luta contra o terrorismo”, conclui o relatório. (DM, com informações da Adital – www.adital.com.br)
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Boicote ou participação? GOLPE EM HONDURAS Líderes da resistência ao golpe de Estado se dividem entre os que defendem manter as candidaturas de esquerda nas eleições presidenciais e os que convocam a população ao total desconhecimento do pleito María Laura Carpineta de Buenos Aires (Argentina) A ALGUNS dias das eleições hondurenhas, a ditadura não apenas conseguiu dividir a comunidade internacional, como também dividiu os apoiadores do presidente Manuel Zelaya e seus aliados. Perdido o apoio do governo de Barack Obama, as forças democráticas do pequeno país centroamericano têm que decidir entre boicotar as eleições de 29 de novembro e fazer uma declaração política ao mundo – que, em sua maioria, os segue apoiando – ou participar do pleito e tentar manter que seja alguns espaços de poder nos próximos quatro anos. A Frente de Resistência Popular e o presidente derrocado, Manuel Zelaya, chamaram
a retirar as candidaturas e a não votar, mas nem todos estão seguros disso. “A luta não termina em 29 de novembro. Se lhes entregamos os cargos, vai ser muito mais difícil recuperar nossa democracia”, justificou-se o candidato do principal partido progressista, César Ham. Nas últimas horas não se fala mais, nas ruas hondurenhas, em negociações, prazos ou acordos; toda essa adrenalina ficou para trás. A ditadura parece aferrada ao poder, e as eleições são um fato. “O presidente Zelaya não aceitará ser restituído se for para legitimar uma fraude eleitoral”, garantiu Rasel Tomé, um dos assessores de confiança do presidente legítimo. Em diálogo telefônico com Página/ 12, advertiu que já é muito tarde para esperar uma vo-
tação do Congresso, que segundo o acordo assinado por zelayistas e golpistas há duas semanas, é o encarregado de aprovar a restituição do presidente derrocado em 28 de junho. “As eleições não serão uma saída para a crise, vão é aprofundá-la”, prognosticou. Campanha eleitoral
Até agora, a campanha estava sepultada pela crise política, pelas manifestações diárias, pela repressão descarnada dos golpistas e pelas constantes visitas de missões de negociadores e diplomatas estrangeiros. Mas, graças ao apoio da Casa Branca, os candidatos pró-golpe se lançaram, sem medo, a aproveitar as últimas duas semanas de campanha. Tegucigalpa, a capital, está empapelada com propaganda dos principais partidos, o Liberal de Micheletti e o Nacional do favorito para ficar com a presidência, Porfirio Lobo. Segundo as pesquisas, nada pode evitar que o poder seja repartido. Lobo será o próximo presidente e os homens de Micheletti aspiram arrebatar a maioria no Congresso e garantir um bom número de prefeitos. A única carta que resta para Zelaya jogar é
o boicote. “Sessenta por cento dos hondurenhos estão contra o golpe e não querem legitimar uma fraude eleitoral”, sentenciou, convencido, Tomé. Mas, para um país com um nível histórico de abstencionismo de cerca de 50%, a ideia de um boicote massivo não é sinônimo de triunfo assegurado. Desde que o acordo foi rompido, há cerca de dez dias, dois reconhecidos líderes se retiraram da contenda eleitoral. Primeiro, o candidato presidencial independente Carlos Reyes; depois, o atual prefeito da segunda cidade mais importante do país, San Pedro Sula, o liberal pró-Zelaya Rodolfo Padilla. “O pessoal do presidente Zelaya está chamando seus aliados a se retirarem”, confiou a este diário uma fonte zelayista. “Mas há muito que não estamos de acordo. O que vamos conseguir? Impressionar os EUA? Não, simplesmente presenteá-los com o pouco poder que nos resta”, agregou. Espaços de poder
O candidato presidencial César Ham, da União Democrática, a principal força política progressista de Honduras, pensa igual. “Honestamente, não temos capacidade para boicotar as eleições. Se não participarmos, há o temor de que os que legiti-
mam o golpe assumam todos os espaços de poder. E, então, o que faremos nos próximos quatro anos?”, queixa-se o líder que manteve uma férrea aliança com Zelaya desde o golpe. Seu partido ainda não decidiu o que fará. Na semana anterior às eleições, se reunirão para discutir o assunto.
Nas últimas horas não se fala mais, nas ruas hondurenhas, em negociações, prazos ou acordos; toda essa adrenalina ficou para trás. A ditadura parece aferrada ao poder, e as eleições são um fato Atualmente, contam com seis deputados. Não é muito, reconhece, mas, somados aos 20 deputados liberais que apoiam Zelaya, poderiam armar uma bancada antigolpista no próximo
Congresso Nacional. O argumento do respeitado dirigente não convence seus companheiros da direção da resistência. “Em primeiro lugar, que cota de poder teremos, dez ou 20 deputados dos 128? Se realmente fosse uma cota de poder, já teríamos revertido o golpe no Congresso”, questionou o líder sindical e referente da resistência, Juan Barahona. “Em segundo lugar, as condições que existem para se ganhar tais cotas de poder são adversas. O Tribunal Supremo Eleitoral joga para os golpistas, os meios jogam para os golpistas e os militares que resguardam as urnas jogam para os golpistas”, agregou. Ham aceita todos os questionamentos, mas não vê outra saída, pelo menos não a duas semanas das eleições. “Não conseguimos aproveitar a oportunidade histórica que tivemos. Construir a partir da resistência uma candidatura única de centro-esquerda que nos permitisse derrotar os golpistas e avançar rumo a um verdadeiro projeto progressista. Era o melhor caminho para reverter o golpe desde dentro. Propusemos essa ideia a Zelaya, mas ele sempre quis esperar. Agora, já é muito tarde”, lamentou o dirigente. (Página/12 www.pagina12.com.ar) Tradução: Igor Ojeda
internacional
Shimon Peres, uma visita “lamentável” Elza Fiúza/ABr
Secretário de relações internacionais do PCdoB critica passagem do presidente israelense no Brasil e comenta as chegadas dos mandatários do Irã e da Autoridade Palestina
de uma nação soberana, hoje confrontada com terríveis ameaças provenientes do imperialismo estadunidense e de Israel. É nessa medida que o Irã merece a solidariedade dos povos e de outras nações soberanas. Isto não significa identidade política e ideológica com o regime iraniano, autodefinido como República Islâmica. E a visita de Mahmoud Abbas, no dia 20, o que pode representar?
Espero que durante a visita do presidente Mahmoud Abbas, o Brasil possa recuperar a confiança das forças progressistas palestinas e a imagem de um país que exerce uma política externa soberana e solidária com os povos agredidos pelo imperialismo e por regimes reacionários como o de Israel.
Luís Brasilino da Redação NUM INTERVALO de menos de duas semanas, o Brasil recebe a visita de três líderes do Oriente Médio com posições e atitudes completamente diferentes e conflituosas. O presidente de Israel, Shimon Peres – que comandou, entre dezembro de 2008 e janeiro deste ano, um duro ataque à Faixa de Gaza, configurado em 16 de outubro pelas Nações Unidas como crime de guerra – passou pelo país entre os dias 11 e 15. No dia 20, chega o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, liderança do massacrado povo palestino, mas que tem sofrido críticas pelas concessões que faz a israelenses e estadunidenses. Por fim, no dia 23, será a vez do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Por seu discurso e conduta de confronto ao imperialismo, o iraniano possivelmente é, ao lado do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a figura mais detestada da imprensa corporativa mundial. O fato mais importante da visita de Peres foi a aprovação, no dia 12, pela Câmara dos Deputados, de tratado de livre comércio (TLC) entre o Mercosul e Israel. O acordo ainda depende de aprovação no Senado e da sanção presidencial. Na viagem, o presidente israelense também não deixou de criticar Ahmadinejad, ainda que, educadamente, não tenha censurado a passagem do iraniano pelo Brasil. Na entrevista a seguir, José Reinaldo Carvalho, secretário de relações internacionais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), debate as visitas e expõe o desejo de que a pas-
O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e o presidente de Israel, Shimon Peres
“As autoridades israelenses não trabalham pela paz, mas pela guerra, e, por isso, devem ser rechaçadas pela comunidade internacional”
tanyahu, não trabalham pela paz, mas pela guerra, e, por isso, devem ser rechaçadas pela comunidade internacional, submetidas à condenação e ao isolamento. Não merecem ser legitimadas por governos democráticos.
sagem de Abbas recupere o prestígio perdido pelo Brasil junto às forças progressistas após a acolhida dada a Peres.
O Brasil tem capacidade de influenciar Israel em direção à paz com os palestinos? Qual papel o país pode cumprir?
Brasil de Fato – Qual sua opinião sobre o fato de o governo brasileiro ter recebido Shimon Peres? Está correto, mesmo com todos os episódios que construíram sua trajetória belicista?
José Reinaldo Carvalho – Shimon Peres não é merecedor do título que ostenta, de ganhador do Prêmio Nobel da Paz [em 1994], nem da hospitalidade de um país democrático como o Brasil. Na medida em que compartilha a ideologia sionista, que não passa de um tipo de nacionalismo fundamentalista, exacerbado e reacionário, e ajuda a executar a política genocida do Estado israelense contra o povo palestino, Shimon Peres é persona non grata no Brasil. Sua visita contrasta com a posição de solidariedade dos movimentos sociais brasileiros à causa palestina.
Você acredita que Peres trabalhe pela paz com a Palestina? Qual é o seu projeto para os territórios ocupados?
Não nos iludamos com retórica vazia. Peres está totalmente identificado com as políticas do Estado sionista e é um dos seus executores. Essa política, hoje, consiste em negar a existência do povo palestino, em rechaçar a justa e legítima reivindicação de criar o Estado palestino livre e independente, em intensificar os assentamentos nos territórios palestinos – o que significa expansionismo e colonialismo –, em prosseguir a construção do muro segregacionista, em violar os direitos humanos dos palestinos, em impor obstáculos intransponíveis para a solução do problema dos refugiados, em superlotar os cárceres com presos políticos palestinos, em fomentar políticas de guerra e em consumar o genocídio. As autoridades israelenses, seja Shimon Peres, seja [o primeiro-ministro] Benjamin Ne-
Ninguém está em condições de influenciar Israel numa direção contrária à que atua desde que o Estado sionista, usurpador, expansionista e agressivo foi criado, há mais de seis décadas.
No dia 12, a Câmara dos Deputados aprovou um acordo bilateral entre o Mercosul e Israel. O que as partes têm a ganhar com o livre comércio? E qual mensagem, não só o acordo, mas também a visita de Shimon Peres, transmite para os brasileiros e o mundo?
A aprovação de tal acordo é lamentável. Escarnece com a luta do povo palestino. É uma nódoa para o Mercosul e para as instituições do Estado brasileiro.
Durante a visita, Peres criticou diversas vezes
o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad. Disse que ele adotaria políticas “irresponsáveis e fanáticas” e atacou o programa nuclear do Irã. Além disso, afirmou que Ahmadinejad nega o Holocausto. Você concorda?
Ressalvados os exageros de retórica e as deturpações da mídia a serviço do imperialismo e do sionismo, tudo o que o presidente iraniano disse sobre as políticas do Estado de Israel é a mais pura verdade. Quanto ao programa nuclear iraniano, as políticas do imperialismo estadunidense e de seu aliado no Oriente Médio, Israel, são hipócritas. Toda nação tem direito a desenvolver seu programa nuclear com fins pacíficos. Estados Unidos e Israel são detentores de armas nucleares, com as quais chantageiam e ameaçam os povos e as nações soberanas.
Em linhas gerais, qual a sua opinião sobre Ahmadinejad e sua visita ao Brasil no dia 23? Apesar dos frequentes enfrentamentos com o imperialismo, ele não pode ser considerado um presidente de esquerda.
O presidente iraniano Mahmud Ahmadinejad é o líder
Como você avalia a cobertura que a mídia corporativa fez da visita de Shimon Peres? O mesmo tratamento será dispensado a Abbas e Ahmadinejad?
A cobertura da mídia corporativa, que no fundo é manipulada pelo imperialismo e pelo sionismo, é asquerosa. A visita de Shimon Peres é para essa mídia o “bem” e a de Ahmadinejad, o “mal”.
Por fim, qual sua opinião sobre a posição do Itamaraty com relação às três visitas, ao conflito Israel-Palestina e à situação no Irã? É ambígua e contraditória ou a abertura do diálogo pode contribuir para a construção da paz no Oriente Médio?
Em geral, a política externa brasileira sobre a questão do Oriente Médio é positiva e tem um sinal progressista em relação à causa árabe e palestina. O Brasil faz bem em receber o presidente iraniano, apesar das pressões de Israel e dos Estados Unidos. Com relação à visita do presidente Mahmoud Abbas, não creio que existam questionamentos nem pressões. Quanto à visita de Shimon Peres, como brasileiro e militante solidário com a causa palestina, lamento profundamente que este corresponsável pelo genocídio aos palestinos tenha estado em nosso país com tanta pompa e circunstância.
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EUA e Otan sem rumo no Afeganistão ANÁLISE Já ficou óbvio para todos que esta não é uma guerra “boa”, destinada a eliminar o comércio do ópio, a discriminação contra as mulheres e tudo o mais que for ruim – à exceção da pobreza, é claro Tariq Ali FOI UM TERCEIRO trimestre ruim para a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no Afeganistão, com desastres simultâneos nas frentes política e militar. Primeiro, o chefe da ONU em Cabul, Kai Eide (um norueguês bem-intencionado, mas não muito brilhante), rompeu com seu vice, Peter Galbraith – que, como representante de fato do Departamento de Estado dos EUA, havia anunciado em público que a eleição do presidente Hamid Karzai tinha sido fraudada. Eide continuou a defender a legitimidade de Karzai. Surpreendentemente, a ONU demitiu Galbraith. Isso deixou a secretária de Estado Hillary Clinton exasperada, e, então, o órgão de fiscalização eleitoral apoiado pela ONU determinou que as eleições realmente haviam sido fraudulentas e ordenou um segundo turno. Karzai recusouse a substituir os funcionários eleitorais que haviam sido tão úteis na primeira vez e seu adversário se retirou. Karzai ficou com o cargo. A legitimidade de Karzai nunca dependeu de eleições (que, de qualquer modo, sempre foram uma farsa), e sim da força expedicionária EUA/ Otan. Assim, em primeiro lugar, perguntamos: para que
serviu essa luta no vácuo? Ela parece ter sido planejada para encobrir a escalada militar tramada pelo general Stanley McChrystal, a nova grande esperança de uma Casa Branca encurralada.
A legitimidade de Karzai nunca dependeu de eleições (que, de qualquer modo, sempre foram uma farsa), e sim da força expedicionária EUA/Otan McChrystal parece ter invertido a velha máxima clausewitziana: ele acredita sinceramente que a política é uma continuação da guerra por outros meios. Acreditava-se que, se Karzai fosse removido de maneira indolor e substituído pelo ex-colega Abdullah Abdullah, um tadjique do norte, poderia ser criada a impressão de que um regime intoleravelmente corrupto fora removido pacificamente, o que ajudaria a enfraquecida guerra de pro-
paganda em casa e o relançamento da guerra de verdade no Afeganistão. Resistência Por seu lado, Abdullah queria uma fatia do espólio que vem com o poder e que até agora foi monopolizado pelos irmãos Karzai e seu séquito, ajudando-os a criar uma minúscula base de apoio nativa para a família. Será que a revelação de que Ahmed Wali Karzai (o irmão do presidente) não era apenas o homem mais rico do país graças à corrupção em grande escala e ao tráfico de drogas e armas, mas também um agente da CIA, foi uma grande surpresa para alguém? Dizem-me que, no desespero, comissários da Otan chegaram a considerar a nomeação de um alto representante, seguindo o modelo balcânico, para governar o país, tornando a presidência um cargo ainda mais simbólico do que é hoje. Se isso ocorresse, Galbraith e Tony Blair (ex-primeiro-ministro britânico) seriam os favoritos mais óbvios. Os cidadãos do mundo transatlântico estão cada vez mais apreensivos diante da falta de horizonte. No Afeganistão, as fileiras da resistência se expandem. A guerra terrestre não leva a lugar nenhum: comboios de equipamentos e combustível da Otan são atacados repetidamente por insurgentes. O controle neotalibã de 80% da parte mais populosa do país é reconhecido por todos. Recentemente, o mulá Omar criticou com dureza o braço paquistanês do Talibã: para o líder, eles deveriam estar combatendo a Otan, e não o exército do Paquistão. Enquanto isso, o comandante militar britânico, general David Richards, ecoando McChrystal, fala em treinar as for-
No Afeganistão, as fileiras da resistência se expandem. A guerra terrestre não leva a lugar nenhum: comboios de equipamentos e combustível da Otan são atacados repetidamente por insurgentes ças de segurança afegãs “muito mais agressivamente”, para que a Otan possa assumir um papel de apoio. Nenhuma novidade. A Eupol (missão policial da União Europeia no Afeganistão) declarou há vários anos que seu objetivo era “contribuir para o estabelecimento, sob domínio afegão, de sistemas sustentáveis e efetivos de policiamento civil, que garantam a interação adequada com o sistema judicial criminal como um todo”. Isso sempre soou como uma ilusão – confirmada no início deste mês pela morte de cinco soldados britânicos alvejados por um policial afegão que eles treinavam. As teorias de que sempre haverá um descontente solitário no grupo, que tanto embriagam os britânicos, deveriam ser ignoradas. O fato é que os insurgentes decidiram há alguns anos inscrever-se no treinamento policial e militar, e sua infiltração – uma tática usada por guerrilheiros na América do Sul, no Sudeste Asiático e no Magreb durante o último século – tem sido bemsucedida. Guerra boa? Já ficou óbvio para todos que esta não é uma guerra “boa”, destinada a eliminar o comércio do ópio, a discriminação contra as mulheres e tudo o mais que for ruim – à ex-
ceção da pobreza, é claro. Então, o que a Otan está fazendo no Afeganistão? Isso virou uma guerra para salvar a Otan enquanto instituição? Ou seria mais estratégico, como foi sugerido na edição da primavera [outono no hemisfério sul] de 2005 da Nato Review [publicação da Otan]: “O centro de gravidade do poder neste planeta caminha inexoravelmente para o leste. (...) A região Ásia-Pacífico traz muitos elementos dinâmicos e positivos a este mundo, mas a rápida mudança que ocorre lá não é estável, nem subordinada a instituições estáveis. Até que isso seja alcançado, é responsabilidade estratégica dos europeus e norte-americanos, e das instituições que eles construíram, mostrar o caminho. (...) A segurança efetiva em tal mundo é impossível sem legitimidade e capacidade”. Qualquer que seja a razão, o fato é que a operação fracassou. A maioria dos amigos de Obama na mídia dos EUA reconhece isso e defende uma retirada planejada, temendo, ao mesmo tempo, que a saída das tropas do Iraque e do Afeganistão possa levar o presidente à derrota na próxima eleição, especialmente se McChrystal ou o general David Petraeus (o suposto herói da ofensiva no Iraque) ficarem do lado dos republicanos.
Não que os EUA pareçam dispostos a se retirar do Iraque. A única saída cogitada é das principais cidades, restringindo a presença norte-americana às enormes bases militares com ar-condicionado já construídas no interior do país, numa imitação das fortalezas do Império Britânico das primeiras décadas do século passado – fora o arcondicionado. Fronteira Enquanto Washington decide o que fazer, a fronteira Afeganistão-Paquistão pega fogo. O cumprimento do decreto imperial submeteu o exército paquistanês a uma pressão enorme. A recente e bem divulgada ofensiva no Waziristão do Sul rendeu poucos frutos. O alvo desapareceu para lutar em outro dia. A fim de demonstrar boa vontade, os militares invadiram o campo de refugiados de Shamshatoo, em Peshawar. Em 4 de novembro, recebi um e-mail de Peshawar: “Achei bom contar a você que acabo de receber uma ligação de um ex-detento de Gitmo (Guantánamo) que agora vive no campo de Shamshatoo, e ele me disse que nesta manhã, por volta das 10 horas, alguns policiais e militares chegaram, invadiram várias casas e lojas e prenderam muitas pessoas. Eles também mataram três jovens estudantes inocentes. O jinaza (funeral) deles é hoje à noite. Várias pessoas registraram cenas da incursão com celulares, que posso tentar obter. O enterro das três crianças está acontecendo enquanto escrevo”. Como isso poderia acabar bem? (Opera Mundi – www.operamundi.com.br) Tariq Ali é historiador e escritor paquistanês.
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de 19 a 25 de novembro de 2009
esportes Reprodução
Ataques e contra-ataques do racismo na terra de Pelé ANÁLISE No início da trajetória do futebol em nossas terras, o negro tornou-se um elemento central para o debate a respeito dos rumos da nação Felipe Dias Carrilho O FUTEBOL, verdadeira instituição nacional, pode ser visto como um indicador privilegiado da realidade social do Brasil quando abordado de modo mais profundo e analítico. Na semana da Consciência Negra, é oportuno tratar das contribuições do negro para a construção de nosso país a partir de uma lente de observação futebolística. No momento em que – numa reação editorial e midiática às políticas de afirmação implantadas e bem-sucedidas – ganha força o argumento segundo o qual a inconsistência do conceito de raça, do ponto de vista biológico, inviabiliza a constatação do racismo na prática social brasileira, é necessário tratar do negro, indissociável da história de nosso país e de sua principal prática esportiva. No início da trajetória do futebol em nossas terras, o negro tornou-se um elemento central para o debate a respeito dos rumos da nação. No final do século 19, com a abolição do regime escravista, optou-se por uma política de branqueamento de nosso povo, em que o incentivo à imigração europeia para abastecer as lavouras de café e a produção industrial representou o seu carro-chefe. Por meio
da aposta em certo modelo de miscigenação, tal ideologia procurava diluir o elemento negro, sufocando a diversidade racial ao forjar uma sociedade pretensamente branca e homogênea. Negritude disfarçada
O futebol, índice preciso do estado geral do país, explicitou as consequências da disseminação desse pensamento ao seu modo. Artur Friedenreich, por exemplo, filho de um comerciante alemão e de uma lavadeira negra, considerado o primeiro craque de nosso futebol, precisava disfarçar a sua negritude, esticando os cabelos e empapando-os com brilhantina para sentir-se socialmente incluído, à semelhança do que ocorreu no célebre caso do jogador do Fluminense, Carlos Alberto, que branqueou a sua pele com póde-arroz para fugir do preconceito, em jogo realizado, ironicamente, no dia 13 de maio (data que marca o fim da escravidão) de 1914. No clássico livro O negro no futebol brasileiro, de 1947, Mário Filho narra a trajetória dos descendentes de escravos em sua luta por inclusão no futebol, pautado pelos valores elitistas do regime amador de seus primórdios. Segundo o autor, na década de 1920, por meio de clubes de formação popular, como o Bangu, o Vasco da Gama e o São Cristóvão, os negros pressionaram os dirigentes pela adoção do regime profissional, garantindo espaço de destaque na Copa do Mundo de 1938. A década de 1930, além de marcar a adoção do regime profissional no esporte, foi palco de importantes elaborações teóricas a respeito da identidade do país. Casa grande e senzala (1933) e Sobrados e mucambos (1936), de Gilberto Freyre, são obras referenciais no que diz respeito ao elogio da mestiçagem
enquanto trunfo da cultura nacional. E Freyre, em sua veia interpretativa, arriscase também no terreno do futebol. Para o consagrado antropólogo, a conversão do “jogo britanicamente apolíneo” em “dança dionisíaca”, por influência dos movimentos corporais do samba e da capoeira, seria resultado do processo de mestiçagem verificado no Brasil. “Bodes expiatórios”
O samba e a capoeira, manifestações de matriz claramente africana, com raízes profundas nas religiões tradicionais dos negros, aparecem, então, “sublimados” na interpretação de Freyre, traduzidos como produto do que se chamaria de democracia racial, assim como ocorre, por extensão, com o modo característico de jogar futebol do brasileiro. A contribuição do negro é “promovida”, assim, à categoria de “progresso da mestiçagem”. Em última análise, é possível dizer, com algum exagero provocativo, que temos, desse modo, a realização do ideal de branqueamento e de homogeneização de nossa sociedade no mundo das especulações interpretativas sobre o Brasil. Edições posteriores do livro de Mário Filho acompanham também a saga do negro no futebol até a realização da Copa de 1958, a primeira vencida pelo Brasil. Como não poderia deixar de ser, um dos momentos mais marcantes da narrativa de Filho refere-se à “tragédia”, à derrota da seleção brasileira para o Uruguai na final da Copa de 1950, no Maracanã. Diz o autor sobre a responsabilização ocorrida após o fracasso: “Assim, três pretos foram escolhidos como bodes expiatórios: Barbosa, Juvenal e Bigode. Os outros mulatos e pretos ficaram de fora: Zizinho, Bauer e Jair da Rosa Pin-
Barbosa, goleiro do time brasileiro derrotado no Maracanã em 1950
Para Gilberto Freyre, a conversão do “jogo britanicamente apolíneo” em “dança dionisíaca”, por influência dos movimentos corporais do samba e da capoeira, seria resultado do processo de mestiçagem verificado no Brasil to. Era o que dava, segundo os racistas que apareciam aos montes, botar mais mulatos e pretos do que brancos no escrete brasileiro”. Percebe-se, por tal passagem, a persistência do preconceito racial no país após o advento das ideias do “futebol mestiço” e da “civilização mestiça”. Na ocasião em que a nacionalidade brasileira sofria um duro golpe dentro das quatro linhas, e assim como costuma ocorrer cotidianamente nos momentos de acirramento social, como na busca por colocação no mercado de trabalho, por exemplo, fo-
mos divididos em dois grupos: os brancos e os não-brancos, os culpados, os negros. Racismo escamoteado
Nem o coroamento da geração de Pelé e Garrincha, com o bicampeonato mundial, nem o ápice da demonstração do futebol-arte, transmitido ao vivo pela televisão, durante a Copa de 1970, foram capazes de extinguir o racismo à moda brasileira, aquele que está sempre escamoteado, com vergonha de si mesmo, mas que não se abstém de atuar. Depois de Barbosa, o primeiro goleiro negro a defender a
seleção brasileira como titular em Copas do Mundo foi Dida, em 2006, após 56 anos de um sombrio intervalo. Nenhuma outra posição, do lateral ao ponta-esquerda, ficou tanto tempo sem ser ocupada por um negro no time nacional. E, hoje, as ocorrências de racismo no futebol continuam a ser registradas dentro e fora do país. Na data em que se celebra a Consciência Negra no Brasil, é preciso retomar tal contribuição futebolística, dando ao negro o que é do negro. A ancestral concepção festiva da vida permitiu aos descendentes de escravos introduzirem um modo peculiar de tratar a bola e de ser brasileiro, um jeito de jogar e de viver voltado ao prazer e à beleza, que está na base do que se pode chamar de identidade nacional brasileira. Felipe Dias Carrilho é historiador.
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cultura
Miséria material dos de baixo, miséria espiritual dos de cima Silvia Beatriz Adoue
RESENHA Os textos de Maria Orlanda Pinassi se inserem na tradição de Georg Lukács, que vê na “subordinação estrutural do trabalho ao capital” as causas permanentes do conflito pronto a eclodir nas mais variadas maneiras
DESDE A SEGUNDA metade do século 19, uma crescente inimizade afasta a razão e o pensamento burguês. Esse tema é o fio que alinhava a coletânea de ensaios Da miséria ideológica à crise do capital - Uma reconciliação histórica, de Maria Orlanda Pinassi. Trata-se daquilo que István Mészáros chama de “esgotamento da capacidade civilizatória do capital”, caldo de cultura para o irracionalismo travestido em diferentes roupagens. As formas cada vez mais perversas de exploração do trabalho são a base material das ideologias que, por sua vez, se afirmam como sustento espiritual dessa exploração. Os textos de Maria Orlanda Pinassi se inserem na tradição de Georg Lukács, que vê na “subordinação estrutural do trabalho ao capital” as causas permanentes do conflito pronto a eclodir nas mais variadas maneiras. Mas a autora não se contenta com essa constatação. Ela segura
firme nas pontas visíveis dos confrontos atuais sem qualquer temor de mergulhar na história para, nela, reconhecer não apenas as mudanças nas relações entre capital e o trabalho, mas as potencialidades revolucionárias presentes nesses conflitos. Lança-se nesse mergulho com a convicção da necessidade de desvelar as possibilidades que as lutas apresentam. Um ensaio sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e outro sobre o protagonismo das mulheres nos movimentos de massa assim o atestam. Mas é no foco sobre a grande massa de desempregados, que já não pode ser considerada marginal, que a teoria marxista é posta à prova. Para a autora, “o fato [do desemprego massivo] também desvenda o caráter limitante e defensivo dos mecanismos tradicionais de luta do proletariado – os sindicatos e partidos operários vanguardistas”; e desmitifica “a associação politicista que se fez entre a consciência de classe e um desenvolvimento pleno do ca-
pitalismo com suas instituições democrático-participativas”. Mesmo porque essa configuração social é a face avançada da exploração do trabalho, e não uma forma inicial, suscetível de aperfeiçoamento e humanização. De outra maneira: só podemos esperar isso ou coisa pior do capitalismo avançado. Uma reflexão sobre literatura policial é ocasião para pensar as relações estreitas entre crime e acumulação capitalista. Se o romance é o gênero burguês por excelência, o romance policial revela a natureza oculta da acumulação. O crime, digo eu, é duplo, porque é a apropriação indevida e o seu ocultamento. Não apenas crime como “pecado original” depois legalizado pelo direito burguês. A acumulação capitalista, em todas as suas fases, não reconhece os limites da própria lei burguesa. Maria Orlanda Pinassi, leitora assídua de novelas policiais, não deixa de reconhecer nelas o caráter classista e trágico da “hierarquia do crime”, tanto daquele que é pu-
nível como daquele que não é. É com essa atitude teórica que utiliza as armas da crítica para refletir sobre o PCC. Da miséria ideológica à crise do capital não é apenas um trabalho que lida com categorias teóricas. É um esforço por desenvolver a crítica marxista na análise da ação histórica, na ação humana, tal como ela se dá, para a superação do capital. Silvia Beatriz Adoue, argentina radicada no Brasil, é mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo, doutora em Literatura latinoamericana pela FFLCH-USP e professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).
Serviço Livro: Da miséria ideológica à crise do capital – Uma reconciliação histórica Autora: Maria Orlanda Pinassi Editora: Boitempo Preço: R$ 38,00 Páginas: 144