Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 352
São Paulo, de 26 de novembro a 2 de dezembro de 2009
R$ 2,50 www.brasildefato.com.br José Cruz/ABr
Um necessário debate sobre o papel do do BNDES O Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é quem concebe e financia as grandes obras que moldam o desenvolvimento do Brasil em direção a uma inserção no mercado internacional dependente da exportação de matérias-primas. Nesta edição, veja encarte sobre os impactos sociais e ambientais dos empreendimentos do órgão em mineração, celulose, energia, agropecuária e integração. Edição Especial Manifestação diante do STF, durante julgamento do processo de extradição de Cesare Battisti
EUA querem validar eleição fraudulenta As eleições presidenciais em Honduras, no dia 29 de novembro, não serão reconhecidas pela maior parte da comunidade internacional. Os EUA, porém, dão evidências de que validarão o pleito. Movimentos sociais hondurenhos já declaram boicote, enquanto candidatos da esquerda se retiram da disputa. Págs. 2 e 11
Pressionado pelo governo italiano, STF monta farsa no caso Battisti As forças políticas da Itália subestimaram as instituições brasileiras. O STF aceitou. A maior instância do Judiciário foi influenciada pelo desejo de revanche política por parte do governo italiano contra os grupos armados de esquerda dos anos de 1970. Houve uma mobilização em grande escala pela extradição do Omar Freire/Imprensa MG
ex-ativista político Cesare Battisti. Mas, ao final do processo em que o Supremo “decidiu” pela extradição do italiano, evidenciou-se uma farsa jurídica: o STF não tinha o direito de questionar o refúgio político de Battisti, visto que é do Poder Executivo a prerrogativa dessa decisão específica. Págs. 4 e 5 Acervo Koinonia Presença Ecumênica e Serviço
Em Santa Cruz, periferia ataca o racismo da elite boliviana Na primeira de duas reportagens sobre a história do Plano 3000, zona periférica de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), o correspondente Vinicius Mansur resgata a formação da área diante do racismo da região mais dinâmica do país. O Plano 3000, criado em 1983 para abrigar 3 mil vítimas de uma enchente, já possui mais de 270 mil habitantes. Pág. 10
Num paraíso, o inferno de quilombolas do Rio de Janeiro Na ilha de Marambaia (RJ), uma comunidade quilombola instalada há mais de 100 anos vem sofrendo com um cerco criado pela Marinha brasileira para controlar por absoluto o território. Pág. 3
Caos no transporte: a importância do passe livre
Pág. 6
Aécio: notícia contra não sai O arcebispo de Mariana (MG), dom Geraldo Lyrio Rocha, demitiu parte do conselho editorial do Jornal Pastoral por este publicar duras críticas ao governador Aécio Neves. Enquanto isso, servidores estaduais serão obrigados a trabalhar na recém-construída Cidade Administrativa, mudando sua rotina e sofrendo com a distância. Págs. 7 e 8 Reprodução
Douglas Mansur
PM é suspeita de “suicidar” sindicalista
O jejum da “Gandhi” do Saara Um dos nomes mais eminentes da resistência do Saara Ocidental à ocupação marroquina, Aminetu Haidar está em greve de fome e não pretende interrompê-la enquanto não puder voltar para casa. O Marrocos a expulsou para a Espanha, que a impede de sair por não possuir passaporte, retido pelas autoridades marroquinas. Pág. 9
A luta dos sem-terra pelas lentes de Douglas Mansur
Pág. 12
Apesar das provas que apontam para um bárbaro assassinato, a Polícia Militar de Roraima afirma que o professor e sindicalista Chrystian Paiva se suicidou no balneário de Caçarí, onde se divertia com sua companheira. A versão controversa, confirmada pelos jornais locais, é contestada por sua família. Pág. 8 ISSN 1978-5134
Foto da exposição “O orgulho de ser assentado: a reforma agrária em movimento”
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editorial DIANTE DA possibilidade de legitimação do golpe civil-militar, através de uma iniciativa comandada pelo governo dos EUA, com apoio dos governos da Colômbia, Peru e México, se aproxima a resolução da crise de Honduras numa perspectiva antipopular, antidemocrática e contrária aos interesses das massas populares daquele país. Mas o resultado das ilegais e ilegítimas eleições de 29 de novembro poderá alterar de maneira significativa o quadro das lutas sociais e políticas naquele país. O governo dos EUA afirma que a volta de Zelaya para Honduras, e seu “radicalismo”, geraram mais instabilidade e insegurança, levando ao fracasso as negociações. Os Estados Unidos já articulam uma cisão no interior da OEA e ONU, e Colômbia e Peru já estão dividindo a Unasul. Zelaya e a Frente Nacional de Resistência Contra o Golpe de Estado convocam os governos, os organismos internacionais e os povos do mundo a não reconhecerem e não legitimarem as eleições. Em Honduras o voto não é obrigatório, e em 2005, nas últimas eleições presidenciais, cerca de 54% dos eleitores boicotaram, por algum motivo, o processo eleitoral. Se o boicote proposto pela esquerda e pelos movimentos sociais atingir um percentual significativo,
debate
Honduras, um alerta para toda a esquerda! as condições para a continuidade da luta de massas serão mais favoráveis. Mas é preciso lembrar que essas não serão eleições democráticas. Todas as armas e meios de repressão, persuasão, divisão e cooptação estão sendo e serão utilizadas. A direita hondurenha acredita que veio para ficar, e se coloca hoje na condição de “vanguarda” do conservadorismo no continente. Além disso, dinheiro não faltará aos golpistas, bem como a corrupção, a manipulação, a multiplicação de votos e eleitores, o desaparecimento de urnas, a intimidação, a compra de votos, a exploração da condição de miséria das massas, tudo isso e muito mais serão parte desse processo. Infelizmente setores progressistas, com o argumento de que é preciso ter uma oposição organizada no parlamento para impedir os golpistas de terem o poder absoluto, insistem em não seguir nem as orientações da Frente de Resistência nem as orientações de Zelaya. É a esquerda que a direita gosta,
e que já está ajudando a causar cisões no interior do movimento de massas. Sacrificam a estratégia e a possibilidade de desencadear grandes transformações sociais por um punhado de votos e de alguns privilégios no interior do Estado burguês. Fragilidades e ilusões Se queremos fazer uma reflexão na perspectiva da classe trabalhadora, não podemos alimentar ilusões quanto às fragilidades presentes da figura de Zelaya e de parte dos setores que o apoiam nessa luta legítima pela volta à condição de presidente de Honduras. Como já disseram, no passado, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Rui Mauro Marini, em países periféricos da América Latina, a única possibilidade de uma plena e efetiva independência nacional é através de um processo de transição que promova significativas transformações econômicas, políticas e sociais com um caráter democrático, popular e anti-impe-
crônica
Frei Betto
Ética e política A “ÉTICA” NEOLIBERAL se reduz às virtudes privadas dos indivíduos. Ignora a visão de institucionalidade ética. Assim, reforça a atitude paralisante do moralismo, que reduz a ética a uma ilusória perfeição individual. Ora, se a sociedade é estruturada, a ética é imprescindível para configurarmos o mundo histórico. Portanto, a ética exige uma teoria política normativa das instituições que regem a sociedade. Como acentua Marilena Chauí, não basta falar em ética na política. A crítica às instituições geradoras de injustiças e negadoras de direitos exige uma ética da política. Formar espaços de criação de novos direitos. As instituições devem garantir a toda a sociedade a justiça distributiva – a partilha dos bens a que todos têm direito –, e a justiça participativa, a presença de todos – democracia – no poder que decide os rumos da sociedade. O grande desafio ético hoje é como criar instituições capazes de assegurar direitos universais. Isso supõe uma ruptura com a atual visão pós-moderna, neoliberal, de fragmentação do mundo e exacerbação egolátrica, individualista. Ainda que o ser humano tenha defeito de fabricação, o que o Gênesis chama de “pecado original”, há que se criar uma institucionalidade político-social capaz de assegurar direitos e impedir ameaças à liberdade e à natureza. Isso implica suscitar uma nova cultura inibidora dessas ameaças, assim como ocorre em relação ao incesto, outrora praticado no Egito, sem faltarem os exemplos bíblicos.
antipopulares do modelo neoliberal. Combinar as contradições de práticas cotidianas (empobrecimento progressivo da classe média, desemprego, disseminação das drogas, degradação do meio ambiente, preconceitos e discriminações) com grandes estratégias políticas. É concessão à lógica burguesa admitir que o Estado seja o único
lugar onde reside o poder. Este se alarga pela sociedade civil, os movimentos populares, as ONGs, a esfera da arte e da cultura, que incutem novos modos de pensar, de sentir e de agir, e modificam valores e representações ideológicas, inclusive religiosas. “Não queremos conquistar o mundo, mas torná-lo novo”, proclamam os zapatistas. Hoje, a luta não é de uma classe contra a outra, mas de toda a sociedade contra um modelo perverso que faz da acumulação da riqueza a única razão de viver. A luta é da humanização contra a desumanização, da solidariedade contra a alienação, da vida contra a morte.
Luiz Ricardo Leitão
Os descaminhos da bola Gama
O grande desafio ético hoje é como criar instituições capazes de assegurar direitos universais. Isso supõe uma ruptura com a atual visão pós-moderna, neoliberal, de fragmentação do mundo e exacerbação egolátrica, individualista De onde tirar os valores éticos universalmente aceitos? Como levar as pessoas a se perguntarem por critérios e valores? Hans Küng sugere que uma base ética mínima deve ser buscada nas grandes tradições religiosas. Seria o modo de passarmos das éticas regionais a uma ética planetária. Mas como aplicá-la ao terreno político? Mudar primeiro a sociedade ou as pessoas? O ovo ou a galinha. Inútil dar um passo atrás e fixar-se na utopia do controle do Estado como precondição para transformar a sociedade. É preciso, antes, transformar a sociedade através de conquistas dos movimentos sociais e de gestos e símbolos que acentuem as raízes
rialista, criando assim as condições necessárias para que a nação seja colocada no rumo da construção de novas relações de produção, ou seja, na construção de uma sociedade socialista. Capitalismo dependente e subordinado ou socialismo? Eis a questão. A possibilidade de um capitalismo autônomo nunca fez parte da realidade contemporânea centroamericana, sendo que, para Honduras e toda a América Latina, só restam dois caminhos: a existência na condição de submissão/ subordinação aos interesses do grande capital, principalmente estadunidense, ou a construção de um processo de ruptura para assegurar a verdadeira soberania e autodeterminação, o que irá implicar, necessariamente, numa guinada à esquerda de todo e qualquer governo que tenha isso como um dos objetivos centrais de sua estratégia. Zelaya faz parte de um setor da classe dominante hondurenha que hoje se encontra numa situação de minoria, que não é a
força hegemônica no interior da sua classe, situação que o empurra para uma posição política que não é a mais comum entre os indivíduos proprietários dos meios de produção. Parece que Zelaya não demonstra verdadeira disposição de enfrentar até as últimas consequências os principais inimigos do povo de Honduras e da ALBA-TCP. Suas atitudes indicam mais uma tentativa de buscar um acordo que possibilite a participação dele e de alguns aliados no processo eleitoral, visando acumular força para uma disputa presidencial futura, do que alguém que estará junto com o povo na luta contra o golpe mesmo que isso signifique enfrentar condições bastante desfavoráveis para defender determinados princípios e levar adiante profundas transformações no país. Que o proletariado e as massas populares de Honduras se preparem, pois o destino de todas as conquistas sociais trazidas pela ALBA-TCP passa, necessariamente, pela forma como será resolvido este conflito. Se no passado os salvadorenhos, nicaraguenses e guatemaltecos nos ensinaram como enfrentar ditadores e golpistas, talvez estejamos entrando num período onde essa tarefa será de responsabilidade dos hondurenhos.
A crise da esquerda não resulta apenas da queda do Muro de Berlim. É também teórica e prática. Teórica, de quem enfrenta o desafio de um socialismo sem stalinismo, dogmatismo, sacralização de líderes e de estruturas políticas. E prática, de quem sabe que não há saída sem retomar o trabalho de base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, incluir em sua pauta as questões indígenas, étnicas, sexuais, feministas e ecológicas. Neste mundo desesperançado, apenas a imaginação e a criatividade da esquerda são capazes de livrar a juventude da inércia, a classe média do desalento, os excluídos do sofrido conformismo. Isso requer uma ideologia que resgate a ética humanista do socialismo e abandone toda interpretação escolástica da realidade. Sobretudo toda atitude que, em nome do combate à burguesia, faz a esquerda agir mimeticamente como burguesia, ao incensar vaidades, apegar-se a funções de poder, sonegar informações sobre recursos financeiros, reforçar a antropofagia de grupos e tendências que se satisfazem em morder uns aos outros. O polo de referência das esquerdas, em torno do qual precisam se unir, é somente um: os direitos dos pobres. Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L.F. Veríssimo e outros, de O desafio ético (Garamond), entre outros livros.
UM CRONISTA que se preza cultiva o saudável hábito de ler as crônicas alheias, sobretudo quando elas são escritas pelos mestres do gênero. Esta nossa Bruzundanga, aliás, é uma terra pródiga em cronistas dos mais variados tipos e calibres. Há autores clássicos, especialistas na matéria, como Rubem Braga e Paulo Mendes Campos. Há poetas notáveis que enveredaram em grande estilo por essa seara, caso de Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes. Em país de grande tradição oral e musical, despontam também os maravilhosos poetas-cronistas da MPB, cujo decano, decerto, é o genial Noel Rosa (a quem eu chamo de Poeta da Vila e Cronista do Brasil), para muitos o verdadeiro padrinho desse outro gênio batizado Chico Buarque, ambos catedráticos na arte de desvelar, com suas canções, os absurdos e contradições da pátria-mãe sempre “tão distraída” e “subtraída em tenebrosas transações”. Esta sociedade quase surreal e profundamente desigual em que vivemos ensejou também um naipe invejável de cronistas-humoristas, como o saudoso Aparício Torelly, o autoproclamado “Barão de Itararé”, que provocou muitas dores de cabeça à censura do Estado Novo, ou então, mais recentemente, o inesquecível Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, autor do célebre Febeapá (Festival de Besteiras que assola o país)... Essa veia do humor, aliás, mantém-se ainda bem viva nas espirituosas e sarcásticas crônicas de Luis Fernando Veríssimo e, em menor medida, nos textos escritos por Carlos Heitor Cony, dois dos maiores herdeiros deste legado de nossas letras. Há, contudo, um filão do gênero que nem sempre recebe a mesma atenção da crítica, mas por vezes nos propicia obras lapidares e marcantes, como aquelas criadas por Mário Filho ou pelo saudoso João Saldanha: trata-se da crônica esportiva, decerto uma das mais lidas pelos leitores da grande imprensa. Ainda há muita gente boa nesse ramo, mas o cronista que mais admiro é um ex-craque da pelota, um cidadão tímido e discreto que brilhou intensamente no Cruzeiro e na Seleção tricampeã de 1970: o sr. Eduardo Gonçalves de Andrade, mais conhecido como Tostão, que, além de pontificar sobre os mistérios do futebol, é um humanista de primeira linha, sempre pronto a denunciar o implacável processo de mercantilização da prática esportiva no mundo contemporâneo. Pois mestre Tostão escreveu há poucos dias uma crônica que este humilde escriba subscreveria sem pestanejar: “O Mundo Ideal e o Real”. Sua máxima é contundente: “Sempre falam que no esporte se aprendem valores éticos. Isso não é verdade no esporte de competição e de alto nível”. O texto, não é difícil perceber, foi motivado por recentes episódios de violência e deslealdade em eventos de enorme projeção midiática, como as eliminatórias da Copa do Mundo ou o Brasileirão de 2009, desde a acintosa jogada do francês Thierry Henry, que controlou a bola com a mão no lance que carimbou o passaporte de sua seleção para a África do Sul, até a troca de sopapos entre os palmeirenses Obina e Maurício em pleno gramado do Olímpico, na derrota do time paulista para o Grêmio há pouco mais de uma semana. O diagnóstico do Doutor Eduardo (Tostão, a exemplo de Sócrates, é um dos raros futebolistas que, ao encerrar a carreira, concluiu uma faculdade de Medicina e exerceu a nobre arte de Esculápio) é preciso: “na emoção de uma partida, os atletas, na busca por glória e dinheiro, pressionados para vencer, demonstram, em gestos automáticos, como o de Henry, ou conscientes, toda a desmedida ambição e toda a esperteza humana.” De fato, neste planeta neoliberalmente globalizado, não há espaço para os “perdedores”, esses seres que a terrível cultura predadora do Império ianque estigmatizou com o termo inglês “looser” – e cujo antônimo é o onipotente “winner”, ou seja, o “vencedor”, paradigma único de uma sociedade que somente patrocina o consumo e o individualismo. Como equacionar o impasse entre o mundo real – “violento, injusto e preconceituoso” – e aquele outro ideal, que sonhamos viver? Tostão é cristalino: não basta ser bonzinho no Natal nem “praticar atos generosos para reparar a culpa real e/ou imaginária”. É preciso exercer, diariamente, a cidadania – em suma, combater o bom combate, apesar das inúmeras tentações que lhe são contrárias. E confessa: Eu tento unir os dois mundos. Nem sempre consigo. Os dois se estranham. Ao refletir sobre os descaminhos da bola, o craque, afinal, escreveu uma parábola sobre o nosso tempo – e sobre esta pátria desvalida, em que os camponeses sem-terra seguem açoitados como criminosos, enquanto as Kátias e Caiados do latifúndio continuam a grilar o Congresso nacional com a erva daninha do agronegócio... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil
Marambaia, o inferno de um paraíso NEGROS Perseguido pela Marinha, quilombo organiza festa de protesto e aciona Comissão Interamericana de Direitos Humanos Fotos: Acervo Koinonia Presença Ecumênica e Serviço
Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) A ILHA DE Marambaia está localizada no litoral de Mangaratiba (RJ). Os moradores descendem de ex-escravos e vivem no quilombo há mais de um século. Paradisíaco, o local tem potencial turístico e valor econômico incalculáveis. Se pudessem explorar essa potência das terras herdadas de seus antepassados, os habitantes da região teriam muito o que comemorar. Entretanto, sua história é um pouco mais trágica. A Marinha brasileira considera a região área de segurança nacional e luta desde 1971 pelo controle absoluto do território. Usa-a para treinamento de fuzileiros navais. Na década de 1990, a perseguição aos quilombolas se tornou ainda mais efetiva. Por fim, desde agosto deste ano, uma série de decisões jurídicas de reintegração de posse surpreendeu os que acompanham o caso. A Marinha foi às casas dos moradores, com fuzileiros armados, para tomar as propriedades. Surpresos, os quilombolas procuraram ajuda. No entanto, pouco avanço conseguiram. A comunidade parece não encontrar apoio de nenhum órgão governamental ao qual recorre. Aparentemente, a pressão política exercida pelas Forças Armadas inibe outros setores da máquina republicana. “Trata-se de uma grande denúncia contra o Estado brasileiro, sobre a forma como todos os órgãos lavam as mãos”, afirma Aline Caldeira, do Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola. “Hoje, é uma questão de honra para a Marinha tirar a gente de lá. A pessoa não tem direito a nada. Quando vai morar em outro lugar, não quer mais voltar”, protesta Bertolino de Lima. “Lino”, como é chamado, é o primeiro conselheiro da Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj) e originário da Marambaia. Como a maioria das comunidades quilombolas, os moradores decidiram celebrar, em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra. Organizaram uma festa gratuita para milhares de convidados, incluindo integrantes de movimentos sociais, jornalistas e parlamentares. Porém, alguns dias antes, souberam por um enviado da Marinha da proibição da festa. Por anunciarem, no texto de convocatória, que fariam um “tour cultural”, foram acusados de explorar o quilombo comercialmente – terras em litígio não podem ter uso comercial. “A pressão que os militares fazem é enorme”, afirma Luciana Garcia, da Justiça Global. Após mobilização de entidades parceiras, a festa foi liberada em cima da hora. As apresentações de jongo e capoeira, somadas ao teatro de protesto, tiveram pouca audiência, devido ao baixo tempo de divulgação. “Sobrou feijoada e cerveja, mas a festa foi muito bonita. Foi uma vitória tê-la realizado”, ressalta Lino. Cerco à população São inúmeros os problemas da repressão. Só se chega à ilha em barcos da Marinha, com autorização oficial da instituição – concedida com dificuldade. Os quilombolas são vítimas de constante pressão psicológica, de forma a tornar a permanência na região um estorvo. As crianças têm dificuldade de estudar, porque não há escola suficiente e é difícil sair da ilha. Programas sociais do governo, como o “Luz para Todos”, não são permitidos na região. E existe a proibição de construir e reformar casas. A comunidade chegou a ser autorizada a construir casas quando saiu vitoriosa de uma ação civil pública na Justiça. Na época, Lázaro Bruno construiu uma para a família em 15 dias. Pouco tempo depois, uma liminar suspendeu
Comunidade quilombola da ilha de Marambaia, no Rio de Janeiro, é perseguida pela Marinha
Programas sociais do governo, como o “Luz para Todos”, não são permitidos na região. E existe a proibição de construir e reformar casas a ação. O direito de Lázaro sobre a casa passou a ser contestado. Dona Porfiria também sofreu com o desmando. Construiu um quartinho para o filho e em seguida a Marinha entrou com processo de reintegração de posse. Pedem para derrubar toda a casa. “Não poder construir é o maior problema. É o que impede a reprodução como grupo da comunidade”, analisa Aline. O Poder Público alega que a ilha da Marambaia é rica em biodiversidade e que tem um patrimônio histórico preservado graças à presença da Marinha. Na verdade, as Forças Armadas fazem testes de explosivos na ilha paradisíaca. Queimadas e derrubadas de árvores tornam-se constantes. Uma capela do século 19 e a residência do Comendador Breves, por exemplo, foram gravemente afetadas pelas explosões. As antigas senzalas tendem a ter destino semelhante. Protesto internacional Dois episódios exemplificam bem o nível de pressão política exercido pela Marinha. O Quilombo da Marambaia sequer está no planejamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) do Rio de Janeiro para ser titulado. Anualmente, o órgão apresenta uma tabela com as prioridades das titulações no Estado. A ilha não consta na listagem. Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou a titulação de uma série de comunidades quilombolas pelo Brasil. A lista dos beneficiados também exclui a Marambaia.
A ouvidoria agrária, que estava intervindo no conflito, terminou declarando que o problema não é mais de sua alçada, mas do Ministério da Defesa. Esgotadas as tentativas nas possíveis instâncias de defesa dos quilombolas, uma série de entidades entrou recentemente com uma representação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Da Koinonia à Clínica dos Direitos Humanos da Universidade do Texas, várias organizações assinam o documento. O Estado brasileiro será chamado a explicar a omissão dos órgãos, fartamente documentada. “A petição demonstra que o Brasil violou o direito à moradia adequada, o direito ao trabalho, o direito à liberdade de associação e o direito de ir e vir”, afirma Andressa Caldas, da Justiça Global. A União tem dois meses para apresentar seus argumentos junto à CIDH contra a petição. A acusação compromete a imagem do país junto a instâncias internacionais. O Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989, que trata do direito de povos indígenas e tribais. A Marinha alega que a área está perto da usina nuclear Angra II e que seria de segurança nacional. Porém, é latente o potencial turístico do local. Há na região um hotel de trânsito onde, segundo os moradores, familiares da Marinha se hospedam por preços módicos. Atualmente, as esperanças locais residem na decisão da CIDH. É a última chance de se levar justiça a esse lugar privilegiado pela natureza e maltratado pela história.
História de perseguição Com mais de 100 anos, Quilombo da Marambaia tornou-se emblemático de um Estado moldado para manter privilégios do Rio de Janeiro No século 19, o senhor do café e do tráfico de escravos no Rio de Janeiro, Comendador Breves, antes de vender seus escravos, mantinha-os na ilha da Marambaia para que engordassem. Antes de morrer, Breves destinou as terras a eles. Entretanto, como ocorre frequentemente com comunidades quilombolas, a cessão não foi registrada em papel e a família do Comendador terminou vendendo as terras à União. Os quilombolas permaneceram nas terras. Em 1939, a Escola de Pesca Darcy Vargas ali se instalou. No período, a ilha foi largamente explorada para enriquecimento de alguns
poucos. Em 1971, passou ao controle da Marinha. É então que a vida dos negros se transforma, diariamente, em pesadelo. Os habitantes perderam o direito de cultivar suas pequenas plantações. Também foram impedidos de construir e reformar casas. E não tiveram acesso a uma série de serviços públicos. A partir de 1998, as pressões aumentam. Ações de reintegração de posse movidas pela Marinha passam a se tornar constantes. A coerção torna-se cotidiana. Em 2002, o Ministério Público Federal (MPF) move uma ação civil pública contra a Marinha e a Fundação Cultural Palmares (FCP). Exige da Marinha a suspensão da repressão e dos processos e da FCP requere a realização de estudos de ve-
Nesse período – início do governo Lula –, resgates de direitos de comunidades quilombolas entram em curso no país. Entretanto, o caso da Marambaia permanece esquecido
rificação do cumprimento do artigo 68 da Constituição Federal – que se refere a comunidades quilombolas. Processos individuais
A FCP prepara um relatório com laudo antropológico, que fica pronto em dezembro de 2003. Nele constam evidências de que os moradores descendem dos quilombolas ali instalados no século 19. Nesse período – início do governo Lula –, resgates de direitos de comunidades quilombolas entram em curso no país. Entretanto, o caso da Marambaia permaneceu esquecido. Dispersas em processos individuais, as ações de reintegração de posse continuam em julgamento. Um relatório técnico de identificação e delimitação (RTID) chegou a ser publicado em 2006. Um dia depois, foi “despublicado” por determinação direta da Casa Civil. “Houve ingerência evidente da Marinha e das Forças Armadas”, afirma Andressa Caldas, da Justiça Global. Em 2009, para surpresa inclusive dos advogados dos quilombolas, surgem ações de despejo. “As pessoas começaram a ser expulsas da pior forma. A Marinha chegava com fuzileiros armados para retirálas”, conta Aline. Como os processos são diferentes, cada caso de despejo teve seguimento distinto. (LU)
O que é um quilombo O termo “quilombo” ganhou uma leitura mais ampla com a Constituição de 1988. Especialmente a partir de 1992, parlamentares, acadêmicos a ativistas sociais buscaram consensos sobre o termo. A palavra deixa de se referir apenas a agrupamentos de escravos fugidos. A ideia mítica de que a cultura quilombola é totalmente africana também passa a ser questionada. A expressão “remanescentes de quilombo” passa a designar toda comunidade com descendentes de escravos que se manteve, de alguma forma, distinta dos outros setores da sociedade, através da manutenção de memória e área em comum. Na interpretação, admitida legalmente, não há necessidade de a região ser o destino de escravos em fuga. O Quilombo da Marambaia se encaixa nesse tipo de definição. Trata-se de uma comunidade que permaneceu no local após a morte do senhor de escravos. (LU)
Roda de capoeira realizada no Dia da Consciência Negra
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de 26 de novembro a 2 de dezembro de 2009
brasil José Cruz/ABr
Battisti cessa greve confiando em Lula
Manifestação diante do STF durante julgamento do processo de extradição de Cesare Battisti
POLÍTICA PT e Psol acreditam em “boas consequências” para a imagem do Brasil se italiano não for extraditado
A “vendetta” apertou a venda José Cruz/ABr
Eduardo Sales de Lima da Redação O SUPREMO Tribunal Federal (STF) decidiu, no dia 18 de novembro, que caberá ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidir se o ex-ativista político italiano, Cesare Battisti, condenado pela Justiça de seu país à prisão perpétua por suposta participação em quatro assassinatos, permanecerá no Brasil ou será extraditado. O mandatário aguarda, porém, a publicação de um acórdão do STF ratificando a decisão. Lula já tomou a decisão. E, se ele aguarda o acórdão do STF, Battisti espera pela sua decisão. Por confiar em sua permanência no Brasil, o ex-ativista encerrou no dia 23 greve de fome iniciada no dia 13, como protesto contra sua eventual extradição para a Itália. Ele está na Penitenciária da Papuda, no Distrito Federal, onde aguarda a resposta do presidente, que dará a palavra final sobre o pedido de extradição feito pela Justiça e o governo italianos. O mandatário desaconselhou o italiano a continuar com o protesto. Se fosse para pressionar o STF, a greve não fazia mais sentido. “Nesse momento, o mais adequado é ele ter confiança no Brasil. Vale a pena aguardar o acórdão. Vale a pena aguardar”, afirma o senador José Nery (Psol-PA), que acompanhou pessoalmente o cotidiano do italiano na Papuda. Segundo o parlamentar, o acórdão leva de dois a três meses para ser publicado. Político Battisti quer ser imediatamente colocado no posto de preso político, não comum.“É surpreendente e absurdo que a Itália tenha me condenado por ativismo político e no Brasil alguns poucos teimem em me extraditar com base em envolvimento em crime comum”, destacou o próprio Battisti, em carta pública direcionada ao presidente Lula, marcando o início da greve de fome. O jurista Dalmo Dallari chamou a atenção, em um artigo no Jornal do Brasil do dia 20 de novembro, que existe um ponto fundamental relacionado aos supostos crimes de Battisti. Ele afirma que a legislação italiana prevê pensionamento somente para vítimas de crime político, e são excluídas as vítimas de crime comum. E o governo italiano vem pagando pensão ao jovem que se feriu gravemente e teve seu pai, Pierlugio Torregianni, morto em atentado atribuído ao grupo que Battisti integrava. Isso deve justamente ao fato de
Fabio Pozzebom/ABr
reconhecer que ele foi vítima de crime político. Sem crise No mesmo artigo, Dallari defende que a decisão do presidente da República pela permanência do escritor italiano “terá perfeito embasamento constitucional” e “negar a extradição não terá qualquer consequência jurídica negativa para o Brasil, que, pura e simplesmente, terá tomado uma decisão soberana, no quadro normal das nações civilizadas, regidas pelo direito”.
“Para Berlusconi, Battisti não vale uma ruptura com o Brasil. O que é deplorável é a atitude da direita brasileira e de um pedaço da centro-esquerda italiana, que sugerem que haverá uma crise diplomática” “Caso Lula vote pela permanência, o Brasil ficará estabelecido dentro de um patamar de respeito em relação aos órgãos internacionais de direitos humanos e em relação à maioria dos países”, analisa Nery. Para Valter Pomar, secretário de relações internacionais do PT, a decisão de Lula pela permanência de Battisti no Brasil não causará nenhuma consequência negativa sobre as relações internacionais do país. “Nesse caso, ficaria demonstrado que o Brasil tem uma tradição de conceder refúgio e manteve essa tradição”, completa. Sobre a relação Brasil-Itália, Pomar vai na mesma direção, não enxergando futuras celeumas entre os dois países, e duvida que o governo italiano arrisque sua diplomacia com o Brasil por causa de Battisti. “Para [o primeiro-ministro Silvio] Berlusconi, Battisti não vale uma ruptura com o Brasil. O que é deplorável é a atitude da direita brasileira e de um pedaço da centro-esquerda italiana, que sugerem que haverá uma crise diplomática”, critica.
Cesare Battisti e Gilmar Mendes: violação de dispositivo legal
Caso Battisti demonstrou como o STF, pressionado por ímpeto revanchista do governo italiano,“judicializou a política” da Redação A mulher vendada que equilibra o peso é o símbolo da Justiça. No caso Battisti, a venda pode ser representada pela ação política do conjunto de forças conservadoras brasileiras, de direita, personificada, principalmente, na figura do presidente do STF, Gilmar Mendes. Mas essa força política se uniu a outra, a “vendetta”, que significa vingança em italiano. O desejo de “vendetta” da direita italiana apertou a venda direitista na Justiça nacional. Formou-se a estrutura do que o secretário de relações internacionais do PT, Valter Pomar, denomina de “judicialização da política”. “O que ficou demonstrado, não na votação em si, mas no conjunto da obra, é o conluio entre uma parte da mídia e uma parte da cúpula do judiciário, no sentido de ‘judicializar a política’ e no sentido de tentar sequestrar atribuições exclusivas do Poder Executivo”, analisa. Para os defensores de Battisti, o excesso de energia política da direita italiana concentrada em prol da extradição revela uma sede de vingança em relação ao que ocorreu nos anos de chumbo naquele país, sobretudo nos anos 1970. O próprio advogado do ex-ativista político italiano, Luis Roberto Barroso, afirmou à Agência Carta Maior que a extradição de Battisti funcionaria, para o governo de Silvio Berlusconi, como um troféu político, visto também o grande desgaste interno do governo. “Houve uma pressão indevida. A Itália utilizou todos os mecanismos para extraditá-lo. Tratou o Brasil como um país de quinta categoria”, lembra o senador José Nery (Psol-PA).
Nesse sentido, o STF aceitou a subestimação do governo italiano e iniciou o processo de politização judicial. Para Pomar, as pressões vindas do Judiciário, especialmente de Gilmar Mendes, apenas revelam que ele faz política partidária. “O que seria legítimo, não fora ele juiz da mais alta corte do país”, completa.
“O ministro Carlos Ayres Britto devolveu ao presidente o que lhe foi dado pela Constituição e pela maioria do povo nas eleições de 2006” Segundo ele, no entanto, o desfecho da votação surpreendeu os que conspiravam no sentido de capturar as atribuições do Poder Executivo, “pois o ministro Carlos Ayres Britto devolveu ao presidente o que lhe foi dado pela Constituição e pela maioria do povo nas eleições de 2006”. No entanto, para ele, “o resultado apertado é um copo meio cheio ou meio vazio, a definir nos próximos embates”. O ministro da Justiça, Tarso Genro, reforçou a crítica em relação a essa captura de atribuições em recente entrevista à Agência Carta Maior. Para ele, produzindo um juízo político com um resultado de 5 a 4 pela extradição, o STF gerou
uma violação clara e frontal de um dispositivo legal. E o mais grave é que, segundo ele, dentro da mesma linha de argumentação de Valter Pomar, para dar continuidade e lógica a essa primeira decisão, seria preciso decidir que o presidente da República perderia os poderes contidos na Constituição de representar e decidir os destinos do país no que se refere à política externa, capturando assim, definitivamente, aquilo que é um juízo político do Executivo. Ele afirmou que, com a decisão do Supremo, ocorreu uma triangulação desnecessária. Isso porque ele deu o despacho concedendo o refúgio e o STF disse que esse despacho era ilegal. “Mas, ao mesmo tempo, disse, corretamente, que o juízo final a respeito do assunto é do presidente da República”, afirmou na entrevista. Farsa Por isso tudo é que, sob certo ângulo, a votação no STF foi uma farsa. Nery cita o artigo 33 da Lei de Refúgio, que diz que “o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio”. Por isso que “concedido o asilo político, o STF não tinha o direito de questioná-lo, o poder executivo é detentor dessa decisão específica”, pondera Nery.
O jurista Celso Antônio Bandeira de Melo lembra que, pelo regimento interno do STF, em caso de empate em uma questão que envolve privação de liberdade, o presidente não se declara. Há um princípio em favor da liberdade que considera que houve uma tal divisão de votos que o presidente não deve votar, algo semelhante à atribuição do habeas corpus. Estas são apenas algumas das razões pela qual “se o STF tivesse decidido, de fato, pela extradição de Battisti, ficaríamos muito mal perante a comunidade internacional e os organismos de direitos humanos”, afirma Nery. Entre os parlamentares do Congresso Nacional existe um grupo que pressiona diretamente Lula a decidir pela manutenção do refúgio do italiano. Estão entre eles os senadores Eduardo Suplicy (PT-SP), Cristovam Buarque (PDT-DF), Paulo Paim (PT-RS) e Inácio Arruda (PCdoB-CE) e os deputados Ivan Valente (Psol-SP), Chico Alencar (Psol-RJ) e Geraldinho (Psol-RS). Além disso, a Comissão Nacional de Justiça e Paz da CNBB, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro, Wadih Nemer Damous Filho, e o presidente nacional da CUT, Arthur Henrique da Silva, também se somam aos parlamentares para pressionar o presidente. (ESL)
Refugiados de direita Sem divulgação por parte da imprensa corporativa brasileira, o governo brasileiro concedeu, por meio do Conselho Nacional para os Refugiados (Conare), asilo político a 118 bolivianos ligados à oposição de direita na região de Pando e de Santa Cruz. De acordo com o ministro da Justiça, Tarso Genro, eles realizaram ações armadas contra o governo de Evo Morales. Após essas ações, eles ingressaram no território brasileiro. A maioria está abrigada em Brasileia e Epitaciolândia, no Acre. (ESL)
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Caso Battisti: manipulações e factoides na nova história política CONTEXTO Entre 1972 e 1989, Itália viveu um conflito que muitos analistas definem como “guerra civil de baixa intensidade” Reprodução
Achille Lollo NO DIA 12 DE dezembro, será o 40º aniversário dos trágicos massacres de Praça Fontana, em Milão (17 mortos e 88 feridos); e no Banco Nacional do Trabalho e Praça Veneza, em Roma (17 feridos), que foram planejados, em fevereiro de 1969, pelos homens do serviço secreto italiano (SID) e realizados pelos neofascistas ligados à Célula Veneta de Freda e Ventura, em coligação com os grupos neofascistas de Ordine Nuovo e de Avanguardia Nazionale, liderados por Pino Rauti e Stefano delle Chiaie. Esses atentados a bomba – que foram monitorados por David Carret da Base de Operações da CIA na Itália e apoiados pela Célula massônica P2 de Licio Gelli – marcaram o início da “Estratégia da Tensão”, na Itália, que os centros de inteligência dos então governos democrata-cristãos (Giulio Andreotti, Taviani, Rumor e Fanfani) introduziram no contexto político do país com o objetivo de utilizar a direita neofascista para romper a inesperada evolução das lutas do movimento sindical e popular, após a criadora efervescência política, em 1968, do movimento estudantil. Por sua parte, a CIA acreditava que a existência de diferentes projetos eversivos (o Plano Solo do general do SID, Vito Miceli; o Plano Gládio de Edgardo Sonho; a intentona golpista de Valério Borghese; e o bombismo de Ordine Nuovo e Avanguardia Nazionale) podia acelerar o processo de desestabilização política do governo de centro-esquerda e determinar a mesma situação de crise política que, na Grécia, no dia 21 de abril de 1967, abriu as portas ao golpe de Estado sob a liderança do coronel Georgios Papadopoulos. De fato, após os atentados de Milão e Roma, a polícia, a Justiça e a mídia afirmavam que a matriz política dos atentados era esquerdista, e que seus autores materiais eram militantes anarquistas, abrindo assim a “caça ao vermelho”. Intentonas golpistas Foi nesse clima de atentados e agressões aos militantes do movimento estudantil e sindical por parte dos grupos neofascistas que, na noite do dia 7 de dezembro de 1970, Junio Valério Borghese, líder da organização neofascista Fronte Nazionale, com o apoio do Ministério do Interior, de vários setores das Forças Armadas, da Polícia Florestal, do SID e, evidentemente, da CIA, iniciava um golpe de Estado em Roma e Milão que duraria somente oito horas, porque os golpistas não aceitavam entregar o poder ao ministro democrata-cristão Giulio Andreotti. De fato, no momento de legitimar a intentona com a adesão das unidades de elite da Otan, a CIA exigia que o poder fosse entregue a Andreotti para que ele pudesse jogar o papel de pacificador nacional. A derrota política da intentona golpista virou uma piada judiciária, e por isso os grupos da esquerda extraparlamentar (Potere Operaio e Lotta Continua) lançaram, junto ao movimento popular, palavras de ordem revolucionárias em favor de uma ruptura insurrecional, tendo em conta a paralisia dos partidos da esquerda reformista, o PCI (comunista), o PSI (socialista) e o PSDI (social-democrata). A “Estratégia da Tensão” foi abrilhantada com cinco tentativas de golpe de Estado pa-
Protesto de estudantes italianos em Roma (1968)
Cesare Battisti viveu aquele contexto histórico e, em vez de se fechar “no pessoal das drogas e das diversões tecnológicas”, escolheu “a opção das lutas políticas”
política que, 20 anos após o fim da luta armada, ainda utiliza a lógica e os fundamentos da “Emergência Antiterrorista” para desviar a atenção do povo dos problemas reais da sociedade italiana e propor julgamentos e vinganças virtuais contra o último dos 140 “Judas Taddeo” da luta armada, ainda vivos no exílio.
ra acelerar a militarização da parte oculta do estado de direito e para “educar” os grupos dirigentes do PCI, do PSI e das confederações sindicais (CGIL/CISL e UIL). No momento, a “autonomia operária” havia tomado conta das fábricas do norte e das universidades das grandes cidades, tornando-as autênticos vulcões prontos a explodir em todo o território nacional. Assim, quando, em 1972, a reestruturação capitalista – com o silencioso monitoramento dos dirigentes e sindicalistas do PCI – começou a entrar nas fábricas italianas, a resposta dos operários foi excepcional e, por isso, uma parte da esquerda revolucionária começou a acreditar na possibilidade da “ruptura revolucionária”, aceitando um combate armado que, inicialmente, foi fácil e brando, para depois endurecer e ocupar 17 longos anos da história italiana em um conflito que muitos analistas definem como “uma guerra civil de baixa intensidade”. É nesse clima que, em 1972, começaram as primeiras operações de guerrilha urbana das Brigadas Vermelhas.
O novo Coliseu Foi nesse contexto que, no dia 26 fevereiro de 2008, os deputados Giuliano Cazzola (PdL) e Giovanni Bachelet (PD), representando o governo e a oposição, elaboravam um documento sobre o caso judiciário de Battisti para que, em nome do Parlamento italiano, não fosse reconhecida a autoria política dos crimes pelos quais foi condenado e, assim, evitar que nos fóruns internacionais fosse sublevada a tese do crime político pelo qual quatro tribunais italianos o condenaram. Por isso, a Embaixada italiana em Brasília “ofereceu” ao relator Cezar Peluso e ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, o documento do Parlamento. Por “mera casualidade”, esses juízes do STF formularam suas teses acusatórias da mesma forma e com a mesma conceituação jurídica elaborada pelos deputados italianos Cazzola e Bachelet. Alguém escreveu na revista Carta Capital que o estado de direito italiano não vai permitir vinganças e persecuções contra os antigos “terroristas”. Porém esse alguém não tem a coragem de revelar que todo o Parlamento italiano, ao conhecer o voto de Gilmar Mendes, se levantou de pé para bater palmas e gritar frases de vingança e desejo de morte para Battisti nas prisões italianas. Tanto é que o próprio deputado Bachelet, diante dessa escandalosa manifestação de vingança política, logo declarava textualmente “Peço desculpa a Cesare Battisti pelos tons que foram utilizados na aula do Parlamento”.
Aos anos de chumbo Todos os governos italianos e sua classe política negaram as responsabilidades políticas do Estado na implementação da “Estratégia da Tensão”, que, de 1968 até 1972, organizou e fomentou a violência dos grupos paramilitares neofascistas. Igualmente negam que, de 1973 até 1989, ficou
legitimado o “Direito do estado de direito” em abusar no uso de seus ditos “corpos separados” (serviços secretos, unidades antiterrorismo, tribunais especiais, leis especiais antiterrorismo). Também negam que esse aparelho repressivo ainda continue em atividade. A mídia corporativa se especializou em manipular e reduzir esses 17 anos de história e violência política em poucos factoides que os juízes do antiterrorismo elegeram como “casos especiais”. Por outro lado, todos os procedimentos judiciários nos quais estava demonstrada a mão oculta do Estado desapareceram. Por exemplo, o Tribunal Supremo italiano (Cassazione) e a Corte de Apelação anularam cinco dos sete julgamentos do massacre de Piazza Fontana, que condenavam agentes secretos e neofascistas, para declarar que “não havia culpados para aquele massacre” e obrigar os familiares das vítimas a pagar as despesas judiciárias. Cesare Battisti viveu aquele contexto histórico e, em vez de se fechar “no pessoal das drogas e das diversões tecnológicas”, escolheu “a opção das lutas políticas”, aderindo ao PAC, um pequeno grupo clandestino do qual ele – diferentemente do que juízes e delatores dizem – nunca foi dirigente ou ideólogo. No dia 23 de novembro, esse militante dos anos de 1970 encerrou uma greve de fome de protesto contra uma classe Reprodução
Na verdade, o deputado Bachelet manifestou sua desculpa apenas para esconder o real sentimento de vingança e de perseguição que uma classe política inteira (incluindo os ditos progressistas do PD) evidenciou, ainda, contra quem não aceitou o papel do arrependido, além de criticar o autoritarismo do Estado neoliberal italiano. É bom lembrar que, em 1999, a proposta de lei de anistia foi deliberadamente afastada em função da renúncia do então PDS (exPCI), o qual decidiu não se posicionar para não quebrar o flerte eleitoreiro com os setores moderados da sociedade italiana. Por isso, Olga D’Antona, outra deputada do “progressista” PD, empolgada com o voto de Gilmar Mendes, logo propôs ao Parlamento: “vamos recomeçar a ofensiva contra a França para obter a extradição da ex-brigadista Marina Petrella” (que foi negada pelo presidente Nicolas Sarkozy por motivos humanitários). Quer dizer, depois de Battisti, também a morta-viva Marina Petrella deverá ser sacrificada nas prisões italianas! Diante desse quadro, é evidente que Battisti não vai ficar “vivo” por mais de seis meses nas prisões italianas, apesar do artigo 27 da Constituição dizer que “as condenações visam à reeducação do condenado”. Isto porque Battisti vai sofrer com o sentimento de vingança de um Estado (e de seus corpos separados) que nos últimos dez anos perdeu todos os processos de extradição na Nicarágua, no Brasil, na Argentina e na Espanha. Morte Branca Um sentimento de vingança e de perseguição que Reprodução
Os deputados Giuliano Cazzola (PdL) e Giovanni Bachelet (PD) que elaboraram documento sobre Battisti
passa pelo encarceramento nas prisões especiais com a aplicação do artigo do Código de Procedimento Penal 41Bis, com base no qual o preso sofre com as normas do isolamento especial – que prevê rígidas restrições, tais como visita mensal só com parentes diretos e em locais separados por vidros; veto de usar computador, rádio, televisão; de receber livros, jornais, revistas e alimentos e de preparar sua comida; de ter um “banho de sol” de uma hora por dia em locais com apenas dois presos; de não ter direito à assistência médica externa; de ter a correspondência previamente lida por agentes do antiterrorismo; e de ter as conversas com os advogados gravadas. Alguns comentaristas brasileiros – ao assumirem as “pautas editoriais do governo italiano” – argumentaram que as prisões italianas são “um hotel” e que Battisti, em poucos anos, vai ganhar a liberdade. Na realidade, a situação dos presos nas penitenciárias italianas é, de fato, dramática e se torna pública somente quando os familiares denunciam o “assassinato” ou o “suicídio” de seus presos. Casos como estes ocorreram no dia 16 de outubro, quando Stefano Cucchi, dependente químico de 25 anos, foi torturado até a morte pelos agentes penitenciários na prisão de Roma; no dia 2 de novembro, quando Diana Blefari Melazzi, ex-militante das Brigadas Vermelhas, de 38 anos, não suportando mais o isolamento do 41Bis, se suicida na prisão romana de Rebibbia; no dia 19 de novembro, quando Giovanni Lorusso, de 41 anos, após protestar porque os agentes penitenciários “seguravam” sua ordem de soltura do tribunal, foi encontrado enforcado na prisão de Palmi; e no dia 20 de novembro, quando o menor marroquino M. A. foi encontrado enforcado na ducha do instituto penitenciário de Florença. No sistema penitenciário italiano, nos últimos 11 meses, houve 62 suicídios de presos comuns e um de preso político, além de outras 243 mortes por “fatores naturais”, muitas delas por falta de assistência médico-hospitalar. Além disso, o atual governo modificou a metodologia da redução de pena (Lei Gozzini), que já não é um benefício automático, e que agora depende do parecer dos juízes do tribunal. No caso dos presos políticos que não colaboraram com a polícia ou que continuam enquadrados no 41Bis, são suspensas as normas da Lei Gozzini, bem como todas as formas de recuperação mencionadas pelo artigo 27 da Constituição. Para os condenados ao ergastolo (prisão perpétua), a referida Lei Gozzini de redução de pena é aplicada somente após 25 anos de prisão. Finalmente, os juízes italianos, por mera implacabilidade judiciária, não unificaram as quatro condenações de Battisti, de forma que, se ele conseguir continuar “vivo” no período de 25 anos do primeiro ergastolo, continuaria preso para cumprir o segundo e depois o terceiro e o quarto. Isto é, seria solto após 100 anos de prisão! Achille Lollo, jornalista italiano, é autor do documentário Palestina, Nossa Terra, Nossa Luta.
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Cobrança de tarifa impede mobilidade urbana no país Andrei Bonamin/CC
CAOS Aumento no preço do coletivo contribui para a acentuação da exclusão social no país Michelle Amaral da Reportagem A TARIFA DOS ônibus municipais está prevista para subir em pelo menos cinco capitais em 2010. Em 2009, das 27 capitais, somente seis não reajustaram as passagens – entre elas, São Paulo e Rio de Janeiro. O prefeito paulistano Gilberto Kassab (DEM), no entanto, já anunciou que o preço dos ônibus municipais aumentará. E, segundo ele, a elevação prevista para 2010 será uma “recuperação” da tarifa dos últimos três anos. O último reajuste na cidade de São Paulo foi de 15%, no final de 2006. A tarifa não foi reajustada na capital paulista em 2009 por conta de uma promessa da campanha eleitoral de 2008. Hoje, o valor da tarifa dos ônibus municipais é de R$ 2,30 e especula-se que o novo valor possa chegar a até R$ 2,80. Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Transportes informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não se pronunciará a respeito do aumento.
Empecilho Nas capitais, o valor médio das tarifas dos ônibus municipais varia entre R$ 1,60, em São Luís (MA), e R$ 2,80, em Florianópolis (SC). Daniel Guimarães Tertschitsch, militante do Movimento Passe Livre (MPL) e editor do site TarifaZero.org, afirma que “a tarifa faz com que o serviço de transporte coletivo não seja, na prática, capaz de garantir o direito de ir e vir de todas as pessoas”. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelaram que, em 2006, cerca de 37 milhões de brasileiros não podiam pagar pelas tarifas do transporte público e, por isso, se locomoviam a pé. Para o militante do MPL, “esses dados tendem a se agravar rapidamente, com o constante crescimento da população urbana e a insistência nesse modelo de concessão privada financiada pela tarifa”. Os contratos com as empresas que prestam serviço na área do transporte público são firmados pelos governos municipais e estaduais sob o regime de concessão ou permissão e podem durar de 20 a 30 anos.
Em todo o mundo, somente cerca de 20 cidades mantêm a tarifa zero em seus transportes coletivos Fator de exclusão Em São Paulo, além da elevação prevista nos ônibus municipais, no início deste ano já houve um aumento de 7% a 9% das tarifas dos ônibus intermunicipais, na região metropolitana, e do preço do bilhete unitário da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) e da Companhia Paulista de Trens Me-
tropolitanos (CPTM), que sofreu reajuste de 6,3%, indo de R$ 2,40 para R$ 2,55. Tertschitsch pondera que o transporte coletivo deveria ser tratado como outros serviços básicos, como saúde e educação, sendo provido pelo Estado. “A distinção entre o que é público e privado reside no fato de que público é aquilo que não tem restrições ao uso. No caso, o transporte coletivo passa a ser privado no momento em que seu uso é mediado pela tarifa”, define. O militante do MPL afirma que a cobrança de tarifa no transporte coletivo acaba excluindo a população mais carente dos outros serviços básicos, pelo fato de que o transporte é um direito que dá acesso a outros direitos. “Se o sujeito tem de pagar para ir à escola, a escola é gratuita? Se tem de pagar para chegar até o hospital, a saúde é gratuita?”, questiona. Para Paulo Cesar Marques da Silva, professor na área de transportes do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), “na situação em que nos encontramos hoje, o transporte público deixou de ser, na prática, um serviço público e passou a ser tratado como uma atividade econômica qualquer, regida unicamente pelas leis do mercado”. Dessa forma, o professor analisa que, focado acima de tudo no resultado econômico, o transporte coletivo deixou de ser “um fator de inclusão e tornou-se um fator de acentuação da exclusão social”.
Modo de gestão Marques da Silva afirma que, em meados dos anos de 1970, soluções para o transporte por ônibus chegaram a levar o Brasil à condição de referência internacional. No entanto, em anos mais recentes, a onda neoliberal trouxe efeitos devastadores para o setor. “A desregulamentação de inspiração thatcherista, que varreu a América Latina e desmantelou outras referências, manifestou-se no Brasil pela via da privatização de boa parte do que havia restado de sistemas sobre trilhos e pela saída de cena do Estado como gestor dos sistemas por ônibus”, explica o professor. O engenheiro Lúcio Gregori, que foi secretário de transportes entre 1990 e 1992, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina (então no PT), explica que “não há política nacional, estadual ou municipal que, de fato, priorize o transporte coletivo de qualidade e de caráter público, isto é, acessível para a maioria”. Tertschitsch critica o modo de gestão dos transportes justamente pelo fato de a prestação de serviço ficar a cargo da iniciativa privada. “Empresa privada existe para dar lucro, não para oferecer um serviço de qualidade para a população”. O militante afirma que uma das bandeiras do MPL é a retomada do controle do setor de transportes pelos governos. Gregori completa explicando que no Brasil o transporte coletivo é tratado como negócio, e não como ser-
Copenhague
As informações disponíveis sobre as posições das lideranças políticas da Conferência de Copenhague, de 7 a 18 de dezembro, na Dinamarca, indicam que dificilmente serão conseguidos avanços significativos para a preservação ambiental do planeta. A não ser que os movimentos sociais e os povos consigam realizar pressões no sentido de conscientizar os governos sobre a urgência de acordo para a redução da poluição mundial. Ainda dá tempo?
Apelo histórico
Anita Leocádia Prestes, filha de Luiz Carlos Prestes e de Olga Benário Prestes, enviou carta ao presidente Lula para pedir que não entregue o militante político Cesare Battisti ao governo fascista da Itália. Ela lembra que sua mãe, presa no Brasil nos anos 1940, foi extraditada pelo governo Vargas para a Alemanha nazista, onde foi morta numa câmara de gás. Está na consciência de Lula decidir o destino de Battisti.
Genocídio tucano
Manifestação em frente à Secretaria Municipal de Transportes de São paulo
balho e os estudantes para os locais de formação), por que é que são os usuários que pagam o sistema? O modelo hoje está estabelecido no conceito de ‘paga quem usa’, quando o correto seria o ‘paga quem se beneficia’”, defende.
viço público. Ele lembra que o transporte não é algo que tenha como finalidade se ganhar dinheiro, “mas um meio de fazer a sociedade andar, literalmente”.
Financiamento Assim, o transporte público, como serviço público e instrumento da universalização do direito de ir e vir, não pode onerar unicamente o seu usuário no momento que este usar o serviço. “É preciso pensar o transporte como pensamos a saúde e a educação públicas, por exemplo”, defende Marques da Silva, que acrescenta que esses serviços são mantidos por toda a sociedade, na forma de impostos e contribuições sociais, e disponíveis indistintamente para todas as pessoas, independente da capacidade de pagamento. Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), mostraram que o transporte ocupa o terceiro lugar na relação de gastos das famílias brasileiras. Tertschitsch explica que “quem banca, quase que integralmente, o sistema é o usuário” e, como as pessoas mais pobres não podem sustentar esse custo, acabam deixando de usar ônibus. Marques da Silva atribui esse problema à lógica mercadológica das cidades e de seus sistemas de transportes. “Essa conjunção histórica resulta num quadro em que cabe à população mais carente o financiamento de um sistema caro e do qual ela só depende porque as elites construíram as cidades segregandoa social e espacialmente”. Outro ponto levantado pelo militante do MPL é o fato de que muitas empresas, por causa do alto preço das tarifas de transporte público, têm se recusado a arcar com o vale-transporte de trabalhadores que moram longe de seus locais de trabalho. “Se o transporte é essencial para a reprodução do capitalismo (levar os trabalhadores para o tra-
Edital de Convocação Assembleia Geral Ordinária e Extraordinária Convocamos, nos termos do Estatuto em vigor, os sócios da COOPERATIVA DE TRABALHO EM ASSESSORIA A EMPRESAS SOCIAIS DE ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA – COOPERAR, sociedade cooperativa de natureza civil, inscrita no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda sob o n.º 07.899.001/0001-00, com endereço na Alameda Eduardo Prado, 676, Campos Elíseos, São Paulo (SP), Estado de São Paulo, para participarem da ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA e EXTRAORDINÁRIA que se realizará em sua sede, no dia 11 de dezembro de 2009, às 9:00 (nove horas), para tratar dos seguintes pontos de pauta: ORDEM DO DIA: 1) Admissão, demissão e exclusão de cooperados; 2) Renúncia e eleição de novo presidente; 3) Avaliação do exercício social de 2008; 4) Análise do balanço anual de 2008; 5) Parecer do conselho fiscal do exercício de 2008; 6) Destinação das sobras ou rateio das perdas do exercício de 2008; 7) Análise do plano de metas para o novo período; 8) Análise do orçamento para o novo período; 9) Outros assuntos de interesse dos cooperados; 10) Fixação de honorários; 11) Alterações estatutárias, transferência do registro no cartório de Registro Civil, para a Junta Comercial de São Paulo; 12) Aprovação de registro de afiliação da Cooperar em Entidade de Representação Nacional do Cooperativismo. Número de associados aptos a votar: 28 São Paulo, 23 de novembro de 2009. Rogério Antonio Mauro Coordenador-geral Moacyr Urbano Villela Coordenador de Finanças Edivar Turossi Coordenador Secretário
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Tarifa zero No conceito da gratuidade, ou tarifa zero, defendido pelo MPL, o sistema de transporte coletivo passaria a ser financiado não mais através da cobrança de tarifas, mas de outras formas, como por subsídios dos governos ou cobrança através de taxas, como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). Na contramão desse conceito, Gilberto Kassab, além do aumento nas tarifas dos ônibus em 2010, anunciou também, no dia 16 de novembro, o reajuste do IPTU em pelo menos 40% para imóveis residenciais e 60% para os comerciais. Kassab sugeriu aumento de até 300%, em projeto enviado à Câmara Municipal, sob justificativa de ter efetuado melhorias na cidade, como a construção de estações de metrô. Em todo mundo, somente cerca de 20 cidades mantêm a tarifa zero em seus transportes coletivos. Entre elas, Hasselt, na Bélgica, que utiliza o sistema desde 1997. O engenheiro Lúcio Gregori utiliza a cidade belga como exemplo para explicar como a gratuidade dos transportes coletivos contribui para o aumento da mobilidade urbana. “O número de passageiros transportados em 1996 era de cerca de 360.000 passageiros/ano. Em 1997, logo após a gratuidade, passou a cerca de 1.400.000 e em 2008 estava em mais de 4.100.000. Aumento de cerca de 1.315%”, detalha. Na cidade belga, segundo Gregori, a gratuidade é bancada por fundos com recursos federais, estaduais e municipais. “Política pública de transportes coletivos é isso”, conclui.
COOPERATIVA CENTRAL DE CRÉDITO RURAL DOS PEQUENOS AGRICULTORES E DA REFORMA AGRÁRIA – CREHNOR CENTRAL CNPJ: 05.879.577/0001-39
NIRE: 43400088547 DE 28/08/2003
EDITAL DE CONVOCAÇÃO ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA O coordenador-geral da Cooperativa Central de Crédito Rural dos Pequenos Agricultores e da Reforma Agrária – CREHNOR CENTRAL, inscrita no CNPJ sob o nº 05.879.577/ 0001-39, estabelecida à Av. Duque de Caxias, 1.597 – sala 101, município de Sarandi, Estado do Rio Grande do Sul, no uso de suas atribuições que lhe confere o Estatuto Social, CONVOCA todos(as) os(as) associados(as), que nesta data somam 6 (seis) em condições de votar, para reunirem-se em ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA a ser realizada no dia 7 de dezembro de 2009, nas dependências da sede da cooperativa em endereço supra citado, às 8:00 (oito horas), em primeira convocação, com a presença mínima de 2/3 (dois terços) dos associados em condição de votar; às 9:00 (nove horas), em segunda convocação, com a presença de metade mais um dos associados em condição de votar; e às 10:00 (dez horas), em terceira e última convocação, com a presença de qualquer número de associadas em condição de votar, para deliberar sobre os seguintes assuntos: 1) Alteração do Artigo 1º e 3º do Estatuto Social; 2) Instituir a Centralização dos Recursos Financeiros no Estatuto Social através do Capítulo VII – DO REGIME FINANCEIRO, renumerando os capítulos e artigos subsequentes; 3) Consolidação do Estatuto Social; 4) Assuntos Gerais de interesse da sociedade. Sarandi (RS), 23 de novembro de 2009. Valdemar Alves de Oliveira Coordenador-geral
Em pronunciamento na Câmara dos Deputados, o deputado federal Ivan Valente pediu o desarquivamento dos crimes de maio de 2006, no Estado de São Paulo, quando policiais militares e grupos de extermínio assassinaram mais de 500 pessoas – a maioria jovens, negros e sem antecedentes criminais. O governo tucano de São Paulo jogou esses crimes para baixo do tapete, e os demais poderes continuam calados.
Internacional
Durante o Encontro Mundial de Partidos e Movimentos de Esquerda, realizado em Caracas, na Venezuela, com a participação de representantes de 26 países de vários continentes, o presidente Hugo Chávez propôs a convocação da Quinta Internacional – um congresso mundial para unir, integrar e articular a luta de todas as forças de esquerdas contra o imperialismo e o capitalismo, em defesa do socialismo. Avante!
Nunca mais
O Fórum Permanente de Ex-presos e Perseguidos Políticos de São Paulo deixa clara sua posição sobre os torturadores da ditadura de 1964-1985: “Nós defendemos uma Comissão de Verdade e Justiça que, a exemplo de outros países e atendendo a históricas reivindicações de quem se opôs e combateu a ditadura, tenha poderes para apurar os crimes da ditadura militar e apontar as responsabilidades dos que cometeram atos criminosos”.
Ato médico
Profissionais de várias áreas da saúde prometem realizar nos próximos dias grandes manifestações em diversas capitais para protestar contra o projeto de lei do chamado “Ato Médico”, que estabelece uma série de privilégios para os médicos dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o Conselho Federal de Psicologia, o projeto de lei “engessa o trabalho multiprofissional e interdisciplinar na saúde”. Fora!
Desemprego
O governo paulista acaba de lançar mais uma trambicagem tucana: o Termômetro do Emprego, por meio do qual o desempregado fornece seus dados pela internet e fica sabendo – por cálculos médios – quais as chances de conseguir uma vaga no mercado de trabalho. Joga para o trabalhador toda a responsabilidade de arrumar emprego. Não explica que as políticas privatistas e neoliberais provocaram desemprego estrutural altíssimo. Pura sacanagem!
Partidarismo
A má vontade da imprensa corporativa brasileira em relação à visita do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, ao Brasil, só se compara ao tratamento dado aos presidentes latino-americanos considerados “desafetos” da mídia neoliberal-burguesa. Alguns comentaristas econômicos do rádio e da TV chegaram ao cúmulo de afirmar que o Irã não tem a menor importância econômica e geopolítica. É o fim da picada!
Direitos humanos
A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos lançará no dia 9 de dezembro, às 18 horas, no Sesc Avenida Paulista, em São Paulo (SP), a edição comemorativa do Relatório dos Direitos Humanos no Brasil, com exposição de fotos, apresentação de grupos musicais e a presença de vários convidados ilustres, entre os quais dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra. O relatório dá um panorama atual dos direitos humanos no país.
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Em Minas, nova sede do governo reflete descaso com os servidores MODELO TUCANO Com a transferência para a chamada Cidade Administrativa, distância para o trabalho irá dobrar Mariana Starling de Belo Horizonte (MG) À PRIMEIRA VISTA, a nova sede do Governo do Estado de Minas Gerais, a Cidade Administrativa, encanta pela suntuosidade e leveza dos traços do célebre arquiteto Oscar Niemeyer. Mas, em uma segunda análise, seu processo de construção é apenas mais um exemplo da postura desrespeitosa do governador mineiro, Aécio Neves (PSDB), com o funcionalismo estadual. Previstos para inauguração em 2010, os cinco prédios que compõem a obra abrigarão, aproximadamente, 16 mil servidores. Mas, há um ano, empregados de diversos órgãos vêm denunciando a ausência de informações quanto a aspectos práticos que incidirão sobre a rotina individual de cada um com a transferência para o novo local de trabalho. A Cidade Administrativa está sendo edificada no bairro Serra Verde, no vetor Norte da capital Belo Horizonte. O complexo arquitetônico reunirá, em um único espaço, secretarias e órgãos da administração direta e indireta do Estado. Com investimento no patamar dos R$ 1,2 bilhão, a construção do novo centro traz consigo a promessa de melhores condições de trabalho. Porém, o que não tem sido levado em conta pelo governador, segundo aqueles que irão usufruir destas supostas benesses, são as forçadas alterações no estilo de vida de cada um e, principalmente, nos ganhos mensais.
“Não podemos é permitir que uma decisão ditatorial do governo mineiro, que por si só já demonstra desrespeito pelos servidores, incida em perda de qualidade de vida para essas pessoas”, ressalta Padre João As denúncias iniciaram quando um grupo de servidores estaduais procurou o líder do bloco de oposição ao governo estadual na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais (ALMG) – composto por PT, PMDB e PC do B –, deputado Padre João (PT). O parlamentar, por sua vez, ciente dos acontecimentos, optou por requerer uma audiência pública para tratar dos impactos que, sobremaneira, são decorrentes da longa distância entre o bairro Serra Verde, onde sediará a Cidade Administrativa, e a região central de Belo Horizonte. Um trajeto casa-trabalho, que antes poderia ser realizado, em média, em 20 ou 30 minutos, no horário de pico terá um tempo médio de uma hora para ser cumprido. As críticas dos servidores se voltam, principalmente, para a postura do governo. As reclamações são relativas à forma unilateral com que as decisões foram tomadas, sem discussões prévias. De acordo com a representante dos servidores do Departamento de Estradas de Rodagem (DER-MG), Márcia Chagas, inúmeras reivindicações apresentadas no mês de agosto permanecem sem resposta. A alimentação é uma dessas queixas. Dois restaurantes estão previstos para serem construídos na Cidade Administrativa. Porém, segundo o
Mariana Starling
diretor da Coordenação Intersindical dos Servidores do Estado, Renato Barros, o preço que será cobrado é muito alto em relação àqueles disponíveis aos servidores municipais, por exemplo. “Na Cidade, será R$ 15 o quilo no pese-e-leve e R$ 18 no à la carte. Na Câmara Municipal, pode-se almoçar por R$ 1 ou R$ 1,50 nos bandejões da Prefeitura”, afirma. O valor do auxíliorefeição pago pelo Estado (R$ 54 ao mês) é insuficiente para o custeio da alimentação no novo local de trabalho em todos os dias úteis. O representante dos servidores lembra ainda que, para aqueles que desejarem ir de carro à Cidade Administrativa, será cobrada uma taxa mensal de R$ 100 de estacionamento. E que não há, até o momento, a previsão da existência de creches para crianças de até sete anos, obrigação do Estado. Transferência Ainda é uma incógnita para a maioria dos funcionários estaduais quando e como eles vão ser transferidos para o novo local de trabalho. À exceção dos gabinetes da Governadoria, Secretaria de Governo (Segov) e Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag), que irão para a Cidade Administrativa já em dezembro, a mudança dos demais órgãos e entidades ainda não foi definida. A ausência de um cronograma assusta os servidores. Haja vista as manobras que os primeiros a serem transferidos são obrigados a realizar para adequação à nova vida. Após a audiência pública requerida pelo deputado Padre João, realizada no início de novembro, o governo estadual propôs, por meio de uma emenda a um projeto de lei, a redução da jornada de trabalho em até 25% para adaptação dos servidores. Porém, a diminuição será válida apenas durante o ano de 2010, quando os servidores serão direcionados escalonadamente entre janeiro e outubro para os novos prédios da administração. “Mas, e nos anos seguintes? O que faremos?”, questiona uma servidora da Seplag que não quis se identificar. Ela conta que foram necessárias muitas mudanças na rotina de toda a sua família. “Até então, saía do serviço e buscava meu filho na escola. Agora não vai dar mais tempo. Antes, não gastava nem meia hora para chegar lá. Agora, precisaria de mais de 40 minutos. Tive que contratar uma van para pegá-lo e uma babá para ficar com ele até eu chegar em casa. Mas, e esse custo, quem vai pagar?”, lamenta. Essas perdas nos vencimentos, tendo em vista que não está previsto aumento salarial, são a maior preocupação do bloco de oposição. Para tentar compensar o desfalque, o grupo colocou como condicionante para votação do projeto de lei que trata do orçamento do Estado para o ano que vem a garantia de reajustes para o funcionalismo. “Não podemos é permitir que uma decisão ditatorial do governo mineiro, que por si só já demonstra desrespeito pelos servidores, incida em perda de qualidade de vida para essas pessoas”, ressalta Padre João.
Audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais sobre a Cidade Administrativa
Obrigados a sair de casa As consequências da construção da nova sede do governo serão danosas não só para os servidores estaduais. Uma natural valorização dos imóveis na região preocupa os moradores dos municípios vizinhos à Cidade Administrativa. Essas cidades possuem baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH-M) em relação à renda (medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD). Ou seja, a maioria da população muito possivelmente não terá condições de arcar com os novos preços dos aluguéis e se verá obrigada a migrar para outras regiões. Suspeitas na licitação A compra dos móveis da Cidade Administrativa também é alvo de suspeitas por parte do bloco de oposição a Aécio Neves na ALMG. Há denúncias de que o governo paga R$ 7,9 milhões a mais do que poderia gastar se adquirisse mesas e cadeiras pelos menores preços apresentados na licitação. As dúvidas pairam sobre o modelo de concorrência adotado. Embora legal, ele dá margem para que nem todos os objetos sejam comprados pelo menor preço. Em função das suspeitas, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público, do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MP), está analisando as licitações realizadas para a contratação de serviços para a Cidade Administrativa. Apoio da minoria As causas dos servidores públicos têm sido uma das bandeiras dos partidos que fazem oposição ao governo de Aécio Neves. “Apesar de Minas Gerais viver, atualmente, algo similar ao que o intelectual italiano Giorgio Agamben chama de ‘Estado de Exceção’ — no qual as instituições que observam e fiscalizam os governos são cerceadas ao máximo, estabelecendo uma situação de ‘anormalidade jurídica’ — tentamos a todo custo cumprir nosso papel de fiscalizadores. O que não dá para admitirmos é que os serviços públicos continuem sendo precarizados, como prega a política neoliberalista”, afirma Padre João.
DENÚNCIA
Trabalhadores em situações degradantes Funcionários que construíam gasoduto em Ouro Branco passaram quase quatro meses sem água, energia e telefone de Belo Horizonte (MG) “OS RELATOS são de que os trabalhadores estavam vivendo em condições subhumanas”, informa a deputada estadual pelo PT de Minas Gerais Cecília
Mariana Starling
Protesto de trabalhadores da DM Construtora em frente ao MPT
Além dos servidores e da população das cidades vizinhas, os operários que trabalham na construção da Cidade Administrativa também têm do que reclamar. Os trabalhadores dos consórcios de empreiteiras realizaram, no dia 20, uma manifestação na rodovia MG-10, em frente ao canteiro de obras. O objetivo foi chamar a atenção para a má qualidade da comida servida, que, segundo eles, fez com que muitos passassem mal no dia anterior. (MS)
dições degradantes, sem água, energia elétrica e telefone por quase todo o período. Aos comerciantes e fornecedores de Ouro Branco foi infligido um calote de quase R$ 1,5 milhão. O problema só não foi maior devido ao auxílio do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias da Construção Pesada de Minas Gerais (Sindicop), que custeou por alguns meses a estadia e alimentação de muitos deles. “Nossas famílias estão passando fome, sendo despejadas. A situação de todos é igual. A Gasmig contratou essa empresa e nos deixa, agora, nesse sofrimento”, desabafou, no auge do problema, o trabalhador José Ibernon de Oliveira. A situação de descaso com os construtores do gasoduto só foi remediada por intermédio de Ferramenta e do também deputado estadual, Padre João. Juntos, eles acionaram o Ministério Público do Trabalho (MPT) e, após negociações, a Gasmig se viu obrigada a pagar os salários e verbas trabalhistas em atraso. Para as dívidas no comércio ainda não há uma solução. Segundo o procurador do MPT, Antônio Carlos Oliveira Pereira, “tudo poderia ter sido diferente se a Gasmig tivesse mostrado interesse em resolver os problemas desde o início”. (MS)
AGENTES PENITENCIÁRIOS
Infração a direitos constitucionais de Belo Horizonte (MG)
Operários passam mal
Ferramenta. A parlamentar refere-se à situação dos quase 300 trabalhadores da DM Construtora e Serviços Ltda., em Ouro Branco (MG). O contrato da empresa com a Companhia de Gás do Estado de Minas Gerais (Gasmig) para construção do gasoduto que passa pelo município foi rescindido pela estatal por inadequações nos serviços prestados. E quem sofreu as maiores consequências foram os funcionários da DM, que ficaram quase quatro meses sem receber salários. Os trabalhadores e suas famílias — vindos de diversos estados brasileiros — viveram em con-
Aos agentes penitenciários mineiros, o direito constitucional de greve não está garantido. Por paralisarem as atividades em dois dias, a Secretaria de Defesa Social de Minas Gerais (Seds) demitiu a todos, em punição coletiva. Para a assessoria jurídica do bloco de oposição na ALMG, a posição do governo estadual fere também as
legislações estaduais, que dispõem sobre contratações temporárias e sobre o Estatuto dos funcionários civis. “Os servidores não poderiam ter sido suspensos sem que, antes, outras penalidades, como a advertência, tivessem sido aplicadas e os fatos estivessem realmente apurados”, esclarece o advogado Carlos Eduardo Araújo Morato. Apenas por intervenção dos parlamentares oposicio-
nistas — que desejavam a reintegração imediata dos agentes —, a Seds se comprometeu a retirar a greve do patamar de “faltas graves” na análise individual das defesas. Com isso, os efetivos não poderão ser demitidos por terem realizado a paralisação. E os contratados que não tiverem cometido falta grave (como depredação de patrimônio, por exemplo) retornarão ao trabalho. (MS)
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Arcebispo de Mariana (MG) demite e manda recolher jornal da diocese IGREJA Decisão é motivada por conteúdo que faz duras críticas a prefeitos da região e ao governador Aécio Neves Danilo Augusto de São Paulo (SP) DOM GERALDO Lyrio Rocha, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e arcebispo de Mariana (MG), demitiu parte do conselho editorial do Jornal Pastoral e mandou recolher os exemplares da edição do mês de setembro, proibindo assim sua circulação. O periódico, com tiragem de aproximadamente 2 mil exemplares, é de responsabilidade da diocese de Mariana e tem circulação garantida em aproximadamente 70 municípios da região. Segundo religiosos envolvidos no caso, entrevistados pelo Brasil de Fato e que não se identificaram temendo perseguições, o que levou dom Geraldo a adotar tal medida foi o conteúdo do editorial da edição de setembro. Intitulado “Do toma lá dá cá ao projeto popular”, o texto faz duras críticas a prefeitos da região e ao governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB). De acordo com um dos religiosos, o texto estava totalmente pautado no pensamento da Igreja. “O editorial condiz com o que pensa a Igreja voltada para o compromisso social. Por isso, avaliamos que esta é uma posição pessoal do bispo”, completa. Questionamento Em trechos, o editorial questiona as despesas da prefeitura de Piranga (MG), que gastou aproximadamente R$ 375 mil nas obras de uma praça. O valor gasto pela administração do prefeito Eduardo Sérgio Guimarães (PSDB) estaria em média R$ 225 mil acima do valor de mercado, como informou um laudo téc-
nico do engenheiro Carlos Alberto Gomes Beato. Saindo do âmbito regional, o editorial desenvolve críticas à administração do governo mineiro, apontando que “levantamento publicado no jornal Estado de Minas do dia 30/08/2009 mostra que em 81 dos 85 municípios com menor índice de desenvolvimento [renda, emprego, saúde e educação] a pobreza caminha de mãos dadas com a corrupção”. Em outro momento, o nome do governador mineiro é citado: “O governo Aécio, sob a diligência da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico, canalizou recursos da ordem de R$ 15 bilhões, em grande parte recursos públicos, para quatro empresas [Vallourec, Sumitomo, CSN e Gerdau] ampliarem ou consolidarem seus próprios negócios na região do Alto Paraopeba. O dinheiro é suficiente para a construção de 700 mil casas populares ao preço de R$ 20 mil cada, quase quatro vezes mais do que os R$ 4 bilhões reservados pelo governo federal para programas de moradia em todo o Brasil. Se esse recurso fosse distribuído para as três cidades onde as empresas ‘sortudas’ estão instaladas – Congonhas, Ouro Branco e Jeceaba –, que somam 70 mil habitantes, tocariam perto de R$ 219 mil para cada pessoa ou quase R$ 1 milhão por família. Os nomes envolvidos no editorial também seriam motivos para a tal atitude de dom Geraldo. “O texto cita nomes de políticos e esses políticos citados poderiam cobrar da igreja, por meio do bispo, uma satisfação sobre o editorial. Isto foi uma motivação política, e não religiosa. O bispo quer manter ao
Omar Freire/Imprensa MG
Aécio Neves condecora o arcebispo de Mariana, Dom Geraldo Lyrio Rocha
seu lado o poder, ele não quer perder isso”, explica um dos nossos entrevistados. Resgate O editorial também faz um histórico dos financiamentos do governo de Minas em empresas privadas desde o ano de 2003. “As ricas áreas desapropriadas e entregues de mão beijada às minerados e siderúrgicas em Jeceaba e Congonhas chegam a 4 mil hectares. E, de 2003 a 2008, foram canalizados R$ 199 bilhões para as empresas em todo o Estado de Minas Gerais, em negociatas de compadrio e cumplicidade tipo ‘unha e carne’”, finaliza. “Não concordo...” Em resposta, no mês de outubro, dom Geraldo afirma em editorial do Jornal Pastoral: “não concordo, não aceito e não aprovo o editorial do Jor-
nal Pastoral do mês de setembro. A Arquidiocese de Mariana não se responsabiliza pelas afirmações e acusações aí expressas. Seja esta a última vez que o Jornal Pastoral incorre em erro tão grave. A fé cristã implica em compromisso social, e a Igreja Católica nunca renunciará à sua missão de ser advogada dos pobres e injustiçados”. Esse trecho, segundo religiosos ouvidos pelo Brasil de Fato, evidencia a postura de uma parte dos líderes católicos. “Ele tem uma visão de Igreja. E nessa visão ele tem preocupação de manter o nome da Igreja. E, qualquer coisa que venha colocar em questionamento a posição da instituição, ele teme e foge do conflito. Pois grande parte da Igreja ainda tem medo do conflito e tem medo de se colocar contra a posição do poder político. E na hora desse
conflito, eles se colocam do lado de quem detém o poder”, observa. Contrário Os religiosos acrescentam que essa posição e essa atitude de dom Geraldo não causaram estranhamento. “Acreditamos que essa posição do bispo não é a mais importante de toda a situação. Ele tem posição contrária diante da Romaria dos Trabalhadores, posição contrária em relação à denúncia contra corrupção, posição de afastamento de padres que se envolvem com pautas de movimentos sociais e populares. Então, há uma série de coisas que vão definindo o rumo da diocese e a linha de trabalho dele”, lamenta. Segundo eles, esse posicionamento é contraditório com o atual momento vivido pela Igreja Católica, que apoia o projeto Ficha Limpa e que
tem como tema da Campanha da Fraternidade de 2010 “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro”. “Essa posição é contraditória, pois bate de frente com o momento vivido pela Igreja, que é o posicionamento contra a corrupção política. O editorial condena pessoas politicamente corruptas. A posição do bispo em relação a isso é uma contradição e acaba ficando contra a coleta de assinaturas para o projeto de Ficha Limpa. Ele ficou preocupado com a sua imagem diante do Senado Federal, na pessoa representada por José Sarney, diante do Estado e dos políticos citados pelo texto”. Fé em movimento No Brasil, mesmo estando em queda, os católicos ainda são maioria. De acordo com última pesquisa realizada em 2007 e divulgada pelo Datafolha, aproximadamente 64% dos brasileiros se dizem católicos. O número é 11% menor que uma pesquisa realizada pelo mesmo instituto em 1994. Soma-se a isso o crescimento dos evangélicos pentecostais e não pentecostais, que somam mais de 22%. Esses dados preocupam os religiosos, tendo em vista que muitas vezes o caminho da Igreja é traçado por pessoas como dom Geraldo. “Esse posicionamento dificulta muito a caminhada da Igreja. Por outro lado, eu acredito que a força da Igreja está se manifestando nos movimentos populares. Uma atitude como esta não demora muito tempo a ruir”, completa. O Brasil de Fato entrou várias vezes em contato com o arcebispo dom Geraldo Lyrio Rocha, mas ele não atendeu e nem retornou as ligações.
VIOLÊNCIA
Família de sindicalista denuncia assassinato em Roraima Parentes contestam tese de suicídio e apontam polícia como suspeita de assassinato de professor Chrystian Paiva Victor Martins e José Luiz Ribeiro de Santos (SP) UMA HISTÓRIA no mínimo estranha: na manhã do dia 18 de outubro, banhistas do balneário Caçarí, na cidade de Boa Vista, Roraima, teriam denunciado a presença de um homem armado no local. Dois policiais (identificados como subtenente Machado e policial Flecha) foram verificar o caso. Sem motivo aparente, Chrystian Paiva, sindicalista e professor de História da rede estadual de ensino, teria pego uma arma e dado dois tiros (que falharam) em direção aos policiais, depois mais dois disparos falhos em sua própria cabeça e, finalmente, o tiro que tirou sua vida. Contrariando provas, assim foi a versão da Polícia Militar e da imprensa local de Roraima para a morte de um combativo professor. Sequência dos fatos No dia anterior (17, sábado), Chrystian saiu com sua companheira, Adriana Gomes (também professora), e Marcella Santos (uma antiga amiga da Baixada Santista que foi visitá-lo). Foram ao balneário Caçarí, perto de Boa Vista, onde ficaram conversando até o amanhecer. Na hora de ir embora, perceberam que haviam perdido a chave do carro. “Procuramos a chave por um bom tempo e não achamos. Tentamos então arrom-
bar o vidro do carro e a polícia foi chamada”, disse Marcella. Chrystian explicou a situação e o policial viu a arma na mochila. Adriana, que já foi agente carcerária, apresentou a documentação necessária e a polícia foi embora sem ajudar com o carro. “O Estado [de Roraima] é isolado e o poder está nas mãos dos latifundiários. As relações são coronelistas e esses coronéis fazem suas próprias leis, eles são a lei; então usávamos a arma como precaução e autodefesa”, explicou Adriana. Chrystian fez amizade com dois rapazes que estavam no local e pediu ajuda a eles para descer o vidro do carro. “Por volta das 10 horas da manhã estávamos todos, exceto o Chrys, que continuou perto do carro, tomando banho no rio. Deixei a Adriana embaixo duma árvore próxima ao local onde estava o Chrys e voltei para o rio. Ouvi um disparo pouco tempo depois. Continuei no mesmo lugar por medo de ser atingida por um novo disparo e esperava que o Chrys ou a Adriana viessem a meu encontro para me dizer o que estava acontecendo, mas não veio ninguém”, relatou Marcella. O Serviço de Atendimento Médico de Urgência foi chamado, mas Chrystian já estava morto. “Entramos em estado de choque”, diz Adriana, que denuncia: “fomos maltratadas [moralmente] pela polícia, ela [Marcella] mais do que eu, pois chegou antes de mim e ficou detida”.
Arquivo pessoal
O professor e sindicalista Chrystian Paiva se prepara para mobilização
Chrystian deixou 2 filhos, Lennon e Gaia. Seu corpo saiu de Roraima no dia 20 de outubro e foi velado em São Paulo junto a sua família. Controvérsias Familiares e conhecidos não acreditam na hipótese de suicídio: “Não dá para acreditar na versão da polícia e da imprensa. Tenho plena convicção de que eles próprios [policiais] atiraram nele”, desabafou Adriana. Chrystian não estava depressivo, estava com amigos e com banhistas que o ajudavam com o carro: “Aparentemente, o homem se divertia ao lado de outras cinco pessoas, três delas, mulheres. Após o tiro, tudo mudou”, disse uma testemunha (que não quis se identificar) ao Jornal Boa Vista.
Chystian era destro e, segundo Adriana, a bala que perfurou sua cabeça entrou do lado esquerdo. As balas estavam soltas na mochila, o que contradiz a versão dos policiais. “Dois tiros e um terceiro na cabeça?! Qualquer policial já teria dado um tiro de longe para se defender”, questiona o pai de Chrystian, Wanderley Pedro Paiva. “Você não vai receber dois tiros de alguém e ficar quieto! E eles ainda dizem que não tiveram tempo de fazer nada para impedir o que aconteceu”, completa Sônia Regina da Silva Paiva, mãe de Chrystian. O surgimento do machucado na mão esquerda e hematomas e arranhões no rosto ainda não foram explicados: “Tudo leva crer que [Chrystian] não teve como se defender e, se tivesse como se de-
fender com uma arma de fogo, não atiraria na própria cabeça”, diz Adriana. “Nem depois da morte brutal, com marcas de violência, teve seu direito preservado. Foi retirado do local sem a devida perícia e condenado pela sua morte, ‘suicida’”, denuncia seu pai. Por sua militância aguerrida como sindicalista, Chrystian Paiva sofria ameaças constantes, relatam os amigos e familiares. No dia 15 de fevereiro deste ano, ele mesmo deixou registrado no blog do Movimento de Organização dos Trabalhadores em Educação “Tenho sofrido perseguição, desconto de salário indevido, humilhações, enfim, tudo aquilo que sofre um professor nesse Estado “. A amiga, Marcella, diz que “ele chegou a comentar que em Roraima havia muito coronelismo, que as coisas eram diferentes de São Paulo e que ele estava incomodando muita gente com a greve dos professores. Outros amigos dele também disseram que ele tinha comentado sobre essas ameaças”. Quem foi Chrystian Chrystian foi um dos principais mobilizadores da greve de 2008, que paralisou cerca de 8 mil professores da rede pública estadual de Roraima. Percorreu as escolas isoladas do Estado que ainda não haviam aderido ao movimento, conseguindo adesão quase que total da categoria. Os professores cruzaram os braços devido às péssimas condi-
ções de trabalho e a precarização da carreira docente. Com apenas dois anos em Roraima, Chrystian foi um dos criadores do Movimento de Organização dos Trabalhadores em Educação (MOTE), que atuava dentro do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Roraima (SINTERR). Chrystian veio da Baixada Santista, litoral de São Paulo, onde militou em grupos como: Coletivo Alternativa Verde, Liga da Educação e Resistência e Rede Libertária BS. Ainda em São Paulo, trabalhou como professor na Febem, atual Fundação Casa. Inquérito A Polícia Civil teve que abrir inquérito para apurar os fatos. A investigação é sigilosa, familiares e amigos até hoje não podem ter acesso aos laudos técnicos. Segundo o perito Antônio Barbosa de Melo, ainda falta realizar o laudo residuográfico da mão de Chrystian para verificar se foi realmente ele quem efetuou o tiro. Esse exame diagnostica resíduos metálicos que ficam presentes em quem efetuou disparo de arma de fogo e só será feito em Brasília, no Instituto Nacional de Criminalística. Familiares e amigos aguardam o fim da investigação para entrar com processo no Ministério Público. Por enquanto, fazem pressão para ter acesso aos laudos, incluir o testemunho de Marcella no inquérito e para que se façam todos os exames necessários .
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áfrica
O martírio da “Gandhi” do Saara RESISTÊNCIA Aminetu Haidar, ativista do Saara Ocidental, faz greve de fome na Espanha para poder voltar a seu país Valentos/CC
Igor Ojeda da Redação AMINETU HAIDAR tem 42 anos, mas aparenta se aproximar dos 50. Não é para menos. Já foi muito torturada. Permaneceu quatro anos detida em uma prisão secreta, sem contato com o mundo exterior. E já fez uma greve de fome de 45 dias, que deixou sequelas irreparáveis em seu organismo, como problemas na coluna e uma úlcera hemorrágica. Por tudo isso, seu novo jejum, iniciado em 16 de novembro, pode lhe trazer consequências ainda mais graves. E ela está disposta, se necessário, a levá-lo até o fim. A única coisa que exige é voltar para casa. Aminetu é saarauí. Ou seja, nasceu no Saara Ocidental, país do noroeste da África colonizado pela Espanha e que, desde 1975, é ocupado a ferro e fogo pela monarquia de Marrocos, para quem ela é, talvez, a maior pedra no sapato. Pois Aminetu luta há décadas pela independência e soberania de sua nação. Por optar pela via pacífica, é considerada por muitos como a “Mahatma Gandhi saarauí”. Assim, algumas das principais armas são palestras e conferências no exterior, onde denuncia a opressão que sofre a população do Saara Ocidental. Na última de suas viagens, Aminetu foi a Nova York, no fim de outubro, para receber um prêmio por seu ativismo. Na volta, fez escala em Las Palmas e Madri, onde trata a úlcera regularmente. Ao regressar a El Aaiún, capital de seu país, decidiu agir como ela e outros independentistas sempre agem. No formulário de entrada, no espaço “País de residência”, escreveu “Saara Ocidental”, em vez de “Marrocos”. Já os funcionários da imigração não agiram como o usual. Em vez de riscarem o nome da nação ocupada e escreverem “Marrocos” por cima, resolveram detê-la. Depois de 24 horas presa, Aminetu foi mandada de avião, sem passaporte, para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, na Espanha.
O título de “Mahatma Gandhi saarauí” encontra respaldo em sua história de militância pacífica pela soberania do Saara Ocidental
Greve de fome Ao chegar lá, a primeira coisa que fez foi tentar pegar um voo de volta, mas a polícia local não permitiu. Sua entrada no país ibérico fora autorizada mesmo sem passaporte, pois Aminetu portava um cartão de residência, concedido em 2006 para que ela pudesse ser tratada em Madri das doenças das quais sofre. No entanto, sem passaporte, não pôde sair. Aminetu, que se diz “sequestrada” pela Espanha, deu um prazo para que sua situação fosse resolvida. Sem ser atendida, iniciou o jejum, no próprio aeroporto. “Ela decidiu pela greve de fome porque não havia nenhuma solução até o momento para que voltasse ao Saara Ocidental. É uma medida de protesto”, explica, por meio de contato telefônico, o ator espanhol Guillermo Toledo, porta-voz da plataforma de artistas “Todos com o Saara Ocidental”, que atendeu a chamada destinada a Aminetu. “Ela não está falando, está muito debilitada, quase não se escuta sua voz”, justifica ele, que está 24 horas por dia ao lado da ativista, como forma de solidariedade. Segundo Guillermo, as sequelas da primeira greve de fome de Aminetu tornam “duplamente brutal” a atual. “Seu estado físico é muito precário”, conta. A agência de notícias oficial do Marrocos informou que a detenção e posterior expulsão da militante saarauí por parte das autoridades do país se deram devido ao “rechaço em cumprir com as formalidades administrativas”, que consistiam em preencher a ficha de ingresso adequadamente. Diante da repercussão internacional da medida extrema
História de luta O título de “Mahatma Gandhi saarauí” encontra respaldo em sua história de militância pacífica pela soberania do Saara Ocidental. “É difícil resumir em poucas palavras a vida tão intensa e ativa dessa lutadora pelos direitos de seu povo que se foi convertendo, com o decorrer dos anos, em um símbolo da luta pela identidade e pelo reconhecimento político dos saarauís”, diz, por correio eletrônico, Santiago Jiménez Gómez, responsável pelo Gabinete de Estudos e Comunicação Permanente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (CEAS). Em 1987, aos 20 anos, após participar de uma manifestação em favor do respeito aos direitos humanos e à autodeterminação do povo saarauí, Aminetu, juntamente com outras 700 pessoas, foi presa pela polícia marroquina. Sem julgamento e sem direito a advogados, permaneceu encarcerada por quatro anos em centros secretos de detenção, onde sofreu inúmeras torturas e humilhações. Foi dada como morta por seus conhecidos. “Me amarravam a uma mesa e colocavam, na minha boca, olhos e nariz, um pano impregnado de um líquido que cheirava à cândida. Também me davam chutes, me flagelavam com um cabo elétrico e, além disso, fui agredida por cachorros”, relatou ao jornal espanhol El País. Durante vários meses, teve que ficar sentada em um banco de um corredor, com os olhos vendados para, depois, finalmente, ser jogada em uma minúscula cela, que compartilhou com outras saarauís.
Manifestação em Lanzarote, na Espanha, pede a liberação de Aminetu Haidar e a independência do Saara
tomada por ela em Lanzarote, Marrocos e Espanha propuseram, cada um, sua própria solução para o caso. “O Ministério de Relações Exteriores [espanhol] propõe que ela receba o estatuto de refugiada, o que ela rechaça, pois isso a tornaria apátrida. Ou seja, ela nunca poderia voltar a seu país. O Marrocos propõe que ela tire outro passaporte. O que ela igualmente rechaça por já ter esse documento. A única solução que ela aceita é que a devolvam ao Saara Ocidental”, sentencia Guillermo.
Após ser solta, Aminetu se converteu em “porta-voz contra as injustiças que se cometem contra seu povo, tanto dentro do Saara Ocidental como em contato com numerosas organizações internacionais”, lembra Santiago. Em 2005, já com dois filhos (hoje, com 15 e 13 anos), foi presa novamente por participar de outra manifestação, ficando sete meses na chamada Cadeia Negra, de El Aaiún. Foi quando realizou sua primeira greve de fome, de 45 dias, por sua libertação e por melhores condições carcerárias. Ao sair, ganhou ainda mais projeção, interna e externamente.
Solidariedade e omissão É por isso, por sua história, diz o ator Guillermo Toledo, que Aminetu Haidar foi expulsa do Saara Ocidental pelo governo marroquino e “sequestrada” pela Espanha. “A temem por sua forma de luta pacífica. Pelo massivo apoio que tem. Se ela fosse terrorista, jogasse bomba, perderia esse apoio”. De acordo com ele, a solidariedade que a militante vem recebendo nos últimos dias é igualmente massiva. “Está vindo de todas as partes do mundo”. Nomes como os dos escritores José Saramago e Eduardo Galeano e do ator Javier Bardem já lhe enviaram mensagens de apoio. “O único que não está solidário com sua causa – do contrário, vem atuando com profunda insensibilidade – é o governo espanhol. Atua desse jeito por causa das suas relações econômicas com o Marrocos. Para não pôr em risco essas relações com o regime marroquino, que é um regime que persegue, reprime, tortura, assassina. É uma atitude que causa surpresa, porque a Espanha costuma levantar a bandeira dos direitos humanos”, indigna-se Guillermo, para quem a Espanha comete um delito internacional ao impedir que Aminetu volte a seu país. “A atitude do governo é desprezível. Nenhum membro dele, seja de baixo ou alto escalão, se dignou a telefonar para saber de seu estado de saúde”, protesta. O fato é que, a cada dia sem solução, mais débil fica Aminetu, fazendo com que a possibilidade de um final trágico para essa história não seja descartada. Mas, caso isso ocorra, Santiago Jiménez avisa: “Se essa atitude a levar ao martírio, sua vontade de luta, sua memória e seu sentido de sacrifício habitariam o coração de cada homem e mulher, novos e novas Aminetu. Não contribuiria para apaziguar o conflito e duvido muito que as autoridades saarauís seriam capazes de acalmar o desespero e a raiva coletiva”.
A nova estratégia do rei Expulsão de ativista pelo Marrocos vincula-se a uma “escalada” repressiva contra a luta da população saarauí por sua independência da Redação Militantes pela independência do Saara Ocidental veem a ação do governo marroquino contra a ativista Aminetu Haidar como parte de uma “escalada” na repressão que vem ocorrendo nos últimos meses. Em 8 de outubro, por exemplo, sete membros de organizações de direitos humanos e da sociedade civil do Saara Ocidental foram presos quando regressavam ao seu país após uma visita aos acampamentos de refugiados saarauís de Tinduf, na Argélia, dirigidos pela Frente Polisario, articulação política e militar de independentistas do país do oeste africano. Ahmed Alnasiri , Brahim Dahane, Yahdih Ettarouzi, Saleh Labihi, Dakja Lashgar, Rachid Sghir e Ali Salem Tamek estão sendo acusados pela Justiça do Marrocos – subordinada ao rei, Mohamed VI –, entre outras coisas, de “colaboração com o inimigo” e ataques à “integridade territorial” marroquina. Devem ser julgados em breve por um tribunal militar, que pode, inclusive, condená-los à morte. Para Santiago Jiménez Gómez, responsável do Gabinete de Estudos e Comunicação Permanente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (CEAS), tais argumentações não se sustentam, pois “é difícil acusar de traidores a quem não se consideram marroquinos”. Além disso, segundo ele, a própria ONU reconhece o Saara Ocidental como território “pendente de descolonização e submetido a Marrocos em virtude de conquista militar”. Nova estratégia Mas, na verdade, para a monarquia marroquina, pouco importa a solidez jurídica de suas acusações contra os sete militantes detidos. Segundo Santiago, tanto
a prisão destes quanto a ação contra Aminetu Haidar são consequência de uma mudança na estratégia do país de Mohamed VI em relação ao Saara Ocidental. Ainda de acordo com Santiago, o início de novas conversações e a nomeação de um novo enviado especial da ONU parecia indicar um período de distensão, esperança interrompida pelas ações de Marrocos. “Estou particularmente convencido, e tomara que me equivoque, que toda essa tensão crescente não é senão parte de uma estratégia com a qual o Marrocos tenta romper o ritmo da negociação, justificando, assim, que não há condições adequadas para continuá-la. Condições que o Estado marroquino contribuiu muito para criar”.
O rei marroquino pronunciou um discurso convocando a Justiça e as forças de segurança a atuarem com mais firmeza contra “os adversários da integridade territorial do Marrocos” A tal mudança de estratégia foi confirmada no dia 6 de novembro, quando, em ocasião do 34º aniversário da “Marcha Verde”, manobra militar que permitiu a ocupação do Saara Ocidental, o rei marroquino pronunciou um discurso convocando a Justiça e as forças de segurança a atuarem com mais firmeza contra “os adversários da integridade territorial do Marrocos” e desbaratar “os complôs urdidos contra a ‘marroquinidade’ do nosso Saara”. Isto, na opinião de Santiago, indica “uma mudança brusca e calculada de atitude que busca eliminar a liderança da resistência da população saarauí – com o encarceramento de boa parte de seus mais destacados dirigentes e a expulsão de uma personagem do valor simbólico de Aminetu Haidar – e amedrontar a população do Saara Ocidental ocupado”. (IO)
Espanha: apoio e omissão da Redação “Vi muitas coisas ao longo da minha vida, mas nunca imaginei que o grau de cumplicidade do Estado espanhol com Marrocos chegaria tão longe”, disse à imprensa a ativista saarauí Aminetu Haidar, que iniciou greve de fome em 16 de novembro depois de ser impedida pela Espanha de retornar a seu país. A colaboração do país ibérico com a monarquia marroquina, na verdade, vem sendo denunciada desde 1975, quando, por meio de um acordo secreto, o primeiro deixou o território saarauí livre para a entrada das tropas militares do segundo. Desde então, não importa a tendência do governo de turno, a Espanha segue com sua política de “olhos fechados” às violações dos direitos humanos da população do Saara Ocidental por parte do Marrocos. “Alinhamento” “[A Espanha executa] uma política cheia de declarações ambíguas e de fatos bem expressivos que evidenciam sua falta de neutralidade e seu alinhamento, às vezes quase submisso, às posições marroquinas”, protesta Santiago Jiménez Gómez, responsável pelo Gabinete de Estudos e Comunicação Permanente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (CEAS). Entre as “evidências” listadas por ele estão a venda de armas a Marrocos, a prática da pesca em águas territoriais saarauís, negociada diretamente com a monarquia árabe, e as “gestões” por parte de personalidades políticas do governo para que o Saara Ocidental não seja reconhecido por alguns países da América espanhola. Segundo Santiago, as motivações espanholas para manter tal apoio são muitas. Entre elas destacam-se os interesses econômicos de investidores do país no Marrocos e o de “pessoas que condicionam sua capacidade de decisão sobre interesses coletivos à obtenção de benefícios individuais generosamente presenteados pela monarquia marroquina”. “Tudo vale em um cambalacho em que a justiça, a legalidade, a equidade e a defesa do mais fraco não são cotizados a preço de mercado”, conclui. (IO)
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Plano 3000: a resistência popular no seio da oligarquia boliviana BOLÍVIA Em duas reportagens, o Brasil de Fato trará a história da zona periférica de Santa Cruz que se opôs à elite quando ela desferia seus mais duros golpes contra o processo de mudanças. Nesta primeira matéria, veja a formação do Plano 3000 Vinicius Mansur
Vinicius Mansur de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia) ERA SEXTA-FEIRA 13. De novembro. Um fim de tarde quente, típico de Santa Cruz de la Sierra, a maior cidade boliviana. Em um micro-ônibus, a reportagem do Brasil de Fato acompanhava cerca de 20 jovens pertencentes à Juventude Igualitária Andréz Ibañez, que regressavam de um curso de formação política. Seguíamos para o Plano 3000, zona periférica de Santa Cruz, local de origem da organização juvenil. Faltando pouco mais de três semanas para as eleições gerais na Bolívia, marcadas para 6 de dezembro, um dos jovens, em clima de campanha, empunhava para fora do micro-ônibus uma bandeira do MASIPSP (Movimento ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos Povos), partido do presidente Evo Morales. Distraído, o jovem é surpreendido por um puxão em sua bandeira e por um grito que vem do lado de fora: “Colla de mierda!”. O adolescente, branco, que tentou sem sucesso roubar a bandeira ainda arremessou uma lata de cerveja em nossa direção, antes que seu micro-ônibus virasse à esquerda e saísse de nossa rota. De acordo com os moradores do Plano 3000, a agressão racista não foi um azar de sexta-feira 13. Diariamente, os habitantes de Santa Cruz com traços indígenas, especialmente mulheres que trajam uma saia longa pregueada, chamada de pollera, carregando uma criança nas costas através de seu aguayo – as cholas –, ou aqueles que demonstram seu apoio ao presidente, sofrem com agressões que, em geral, se iniciam com a expressão raivosa da palavra “colla”. O termo deriva de Qollasuyu, uma das quatro regiões do então Império Inca, que se estendia pelo atual sul do Peru, passando pela região andina boliviana e chegando até o sul do Chile. Em Santa Cruz, o termo “colla” surgiu para classificar os migrantes que desciam dos Andes em busca de emprego, criando uma demarcação entre os “verdadeiros crucenhos” e os “intrusos”. Porém, com a intensificação da presença indígena no cenário político boliviano, o discurso racista foi amplificado, ganhando novos contornos. A força ideológica desse discurso, segundo Daniela Montesinos Llanos, de 18 anos e vice-presidente da Juventude Igualitária, está muito bem representada em uma pixação existente no centro de Santa Cruz que diz: “Morram todos os collas, menos minha mãe”. “Até uma companheira nossa, que é branca de olhos claros, é chamada de colla quando estamos panfletando. É insultada, inclusive, por pessoas de origem indígena”, exemplifica. Formação do Plano 3000
Encarar o racismo é tarefa diária no Plano 3000, já que a zona foi formada na década de 1980 por migrantes de todas as partes do país. Porém, os primeiros habitantes do local são mesmo de origem crucenha. Em 1983, após transbordar o rio Piraí, que margeia a cidade, milhares de famílias perderam tudo. Ana Maria Llanos, de 46 anos e mãe de Daniela, estava entre os desalojados.
As precárias condições do mercado da Rotonda, no coração do Plano 3000
Após uma semana alojada na universidade Gabriel René Moreno, 3 mil famílias foram deslocadas pelo governo para a parte sudeste de Santa Cruz. “Daí o nome Plano 3000. Isso aqui era mata fechada, com cobras, macacos e até esqueletos humanos. Ficamos em barracas e não havia nada, pegávamos carona em caminhões pra chegar aqui. Nem água tinha, foi um verdadeiro genocídio humano. Chegamos a enterrar oito crianças por dia, que não suportavam as condições”, relata. Segundo Ana Maria, o governo agiu com total insensibilidade com quem tinha perdido tudo. Deu 90 dias para as famílias pagarem pelos lotes e até hoje não concedeu a eles os títulos de propriedade. Algumas famílias foram beneficiadas com o levantamento de quartos, mas “sem teto, sem porta, sem janela, sem nada, e doações internacionais para construção sumiram”, recorda. A consolidação de Santa Cruz como principal polo de desenvolvimento da economia capitalista na Bolívia, numa combinação de crescimento da agropecuária, da indústria e da exploração de petróleo e gás natural, fez da cidade um dos principais destinos migratórios do país, passando de 40 mil habitantes, em 1952, para mais de 1,5 milhão em 2008, segundo dados do Instituo Nacional de Estatísticas (INE). Dentro desse contexto, é o recém-criado Plano 3000 que abrigará a maior parte desses migrantes. Em 1985, o ex-presidente Víctor Paz Estenssoro implementa 0 decreto 21.060, que abre a economia boliviana ao mercado e marca o início do neoliberalismo no país. Como resultado, a Comibol, empresa mineradora estatal, demite mais de 20 mil trabalhadores mineiros – classe que dirigiu as principais lutas políticas bolivianas em meados do século 20 – e origina a primeira grande leva de migrantes ao Plano 3000. Outra parte deles se dirigiu a El Alto, cidade ao lado de La Paz, e para
o Chapare, no departamento de Cochabamba, local de alta produção de coca, de onde saiu Evo Morales. Coincidência ou não, Plano 3000, El Alto e Chapare protagonizarão, nos anos seguintes, importantes lutas, sem as quais não se explica o processo político atual.
Plano 3000, El Alto e Chapare protagonizarão, nos anos seguintes, importantes lutas, sem as quais não se explica o processo político atual Hoje, no Plano
Outros milhares de migrantes chegaram ao Plano 3000 que, segundo levantamento feito por Ana Maria em 2006, durante a articulação da Junta de Vizinhos, já possui 107 bairros e mais de 270 mil habitantes, uma das razões que motiva os moradores a reivindicar uma prefeitura própria. A zona continua abrigando a população humilde com todos os típicos problemas de uma periferia urbana, mas desenvolveu um gigantesco comércio informal aos arredores da “Rotonda”, fazendo da rotatória o coração do Plano 3000. Em meio a um esgoto que ainda corre a céu aberto, o comércio com mais de 3 mil barracas, vendendo todo tipo de comida, roupa, utensílios domésticos e bugigangas de segunda a segunda, até às 22 horas, é a principal fonte de renda da população local. Às lutas pelo pão de cada dia e pelos direitos básicos – como luz, água, transporte, educação e titulação das propriedades, todas ainda muito mal atendidas –, o
Plano 3000 incorporou a luta política nacional ao combater o separatismo impulsionado pela elite de sua cidade. Em 2003, quando o país já acumulava uma série de sublevações populares desde 2000, a instabilidade política se agrava com o aumento do preço dos combustíveis promovido pelo então presidente Carlos Mesa. A atitude, que geraria fortes protestos em todo o país, sobretudo com bloqueios e massacre em El Alto, é capitalizada pela elite de Santa Cruz para fortalecer suas intenções separatistas. É nessa época que o Comitê Cívico local inicia a convocação de uma série de “cabildos”, que consistiam em trazer a população para assembleias gigantescas, mas nada democráticas, com intuito de legitimar o processo de autonomia para Santa Cruz. “Fomos ao primeiro cabildo, mas percebemos a manipulação. Sempre que havia protestos do Comitê, o diretor da minha escola suspendia as aulas e nos obrigava a ir. Como tarefa, tínhamos que reunir os cartazes e panfletos e apresentar no dia seguinte”, recorda Daniela. Em 2004 e 2005, jovens do Plano 3000 se aproximaram do MAS, organizando a resistência. Com a chegada de Morales ao poder em 2006, o Comitê Cívico intensificou as convocatórias às paralisações, mas Daniela lembra que “o Plano não parava, fazíamos com que tudo funcionasse normalmente e defendíamos os comerciantes quando a direita vinha obrigá-los a fechar”. Nas eleições presidenciais de 2005, no referendo revogatório e no referendo constitucional de 2008 e nas últimas eleições para conselheiro departamental, a votação foi vencida pelo MAS na circunscrição 55, que corresponde ao Plano 3000. Porém, as lutas mais duras aconteceram em maio e setembro de 2008, à ocasião do referendo sobre o estatuto autonômico e da tentativa de golpe de Estado cívicoprefeitural, respectivamente. História que será contada na próxima edição.
O separatismo que alimenta o racismo Intelectual que dá nome a universidade crucenha sustenta que população da região é a “a única de pura raça espanhola” de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia) De acordo com o autor do livro Os barões do Oriente, Wilfredo Plata, para fundar o discurso separatista a elite crucenha recorre ao mito racial. Afirmam ser diferentes do resto da sociedade boliviana, leiase “colla”, porque foram fundados pela expedição espanhola de Ñuflo Chavez, em 1561. “Eles alegavam que não faziam parte do Virreinato do Peru [parte da colônia espanhola da qual fazia parte a região andina bolviana] e nem da Audiência de Charcas [que fundou a Bolívia independente]. Assim, diziam que Santa Cruz nunca fez parte da Bolívia, mas do Paraguai”, afirma. Um emblema do racismo nutrido em Santa Cruz está no escritor Gabriel René Moreno e na universidade pública de Santa Cruz, que, de 1911 até hoje, leva o seu nome. Moreno, em seu livro Nicomédes Antelos, afirma que “a única população boliviana que não fala e nunca falou outro idioma que não o casteliano foi também a única de pura raça espanhola. Aqui está o artigo inviolável da doutrina popular crucenha: seus inimigos de alma são collas (do Altiperu), cambas (guaranis das terras baixas) e portugueses (brasileiros das fronteiras e mestiços)”. De acordo com Plata, o problema central foi o isolamento geográfico e político ao qual Santa Cruz foi submetida. Do século 16 até princípios do século 20, o poder na Bolívia estava concetrado na região andina, em função da mineração da prata e do estanho. Santa Cruz passa a ganhar peso somente no início do século 20, com a exploração da borracha. Revoltas separatistas aconteceram
em Santa Cruz em 1876, em 1891 e em 1924. Com a descoberta do petróleo em suas terras, a bandeira da elite crucenha durante boa parte do século 20 passa a ser a reivindicação desse recurso natural, mas, em 1957, o governo nacional considera o movimento “francamente subversivo” e intervém na região, em episódio conhecido como o Massacre de Terebinto. Segundo o historiador Hernan Prudem, é nessa mesma década que intelectuais como Hernando Sanabria tentam reelaborar a identidade crucenha, recorrendo aos tempos do Império Inca para dizer que os indígenas das terras baixas foram resistentes e, graças a eles, os Incas não dominaram o oriente boliviano. Para Sanabria, a palavra camba, “ainda que se aplique ao indígena das terras planas ou, para os guaranis do Paraguai, signifique o indivíduo negro”, tem seu uso regional para nomear todos os indivíduos do oriente do país. De acordo com Plata, a ideia era “desindianizar” o termo camba – antes utilizado de forma pejorativa para se referir aos índios peões de fazenda – e torná-lo mais aceitável para a elite crucenha, diante dos insucessos daqueles que sustentavam a pureza hispânica do “sangue crucenho”. Em 1998, Narciso Binayan Carmona, em artigo publicado no La Nación de Buenos Aires, afirma: “Se os índios tomam o poder, nos separamos, e que os brancos do Altiplano venham conosco. Ou nos separamos independentes ou nos unimos à Argentina e ao Paraguai”. Em 2001, com a ascenção indígena do altiplano já em curso, é fundado em Santa Cruz o movimento Nação Camba. A novidade é que hoje em dia os patrões querem se chamar cambas. (VM)
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américa latina
Eleições para americano ver Reprodução
HONDURAS Movimentos sociais rechaçam eleições; Estados Unidos deverão reconhecer os resultados do pleito Dafne Melo da Redação JOGO DE CENA. Assim define o economista Theotônio dos Santos as eleições presidenciais em Honduras que serão realizadas no dia 29 de novembro. Passados cinco meses do golpe que tirou Manuel Zelaya da presidência e afundou o país centro-americano numa crise, tudo indica que o clima de instabilidade deverá continuar. “Será certamente um governo instável. O movimento popular se organizou muito nesse processo e certamente esse novo presidente irá enfrentar muita dificuldade e manifestações permanentes”, avalia Santos, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Os movimentos sociais de esquerda, aglutinados na Frente Nacional de Resistência Contra o Golpe de Estado, reforçam o boicote às eleições. Aderiram também à campanha uma série de candidatos da esquerda. De acordo com comunicado da Frente, até o dia 20 de novembro, cerca de 20 renúncias a candidaturas foram registradas pelo Supremo Tribunal Eleitoral do país. Além disso, a avaliação da Frente é de que a abstenção seja bastante alta, devido à forma conturbada e antidemocrática em que se deu o
Micheletti abre os braços: processo eleitoral espúrio para legitimar o golpe
O ditador Roberto Micheletti afirmou que não reconhecerá a decisão do Congresso e que permanecerá no poder até 27 de janeiro, quando o novo presidente assume processo. No país, o voto não é obrigatório. Nas últimas eleições, a abstenção foi de 45%, e para o dia 29 acredita-se que pelo menos 60% da população não irá votar. Quanto à comunidade internacional, tudo indica que a maioria dos países europeus e latino-americanos irá desconhecer o resultado das eleições. Esquerda Enquanto parte da esquerda propõe o boicote às elei-
ções, alguns setores resolveram concorrer. Cesar Ham, do partido Unificação Democrática (UD), aceitou concorrer à presidência com os outros quatro candidatos da direita: Elvin Santos (Partido Liberal) e Porfírio Lobo (Partido Nacional) – considerado o favorito – e Felicito Ávila (Democracia Cristã) e Bernard Martínez (Partido Inovação e Unidade Social Democrata). Cerca de 75% dos integrantes da UD, após deba-
tes internos, decidiram participar do processo por entenderem que é preciso dar alternativas ao povo hondurenho. Nectali Rodezno, da Frente de Advogados Contra o Golpe, apoia a decisão. “Eu acredito que os golpistas estão felizes de ver que deixamos o caminho livre para que consolidem seu poder”. Já a Frente Nacional acredita que participar das eleições significa, automaticamente, legitimá-las. Sendo um processo fraudulento, seria um erro participar. “Essas eleições não são aceitáveis, pois serão feitas sob um regime autoritário, bastante violento e repressivo”, aponta Theotônio dos Santos. Ainda na embaixada brasileira de Honduras – sob ameaças de ser preso caso saia –, Manuel Zelaya redigiu uma carta aberta em que
apoia o boicote às eleições. “Essas eleições terão que ser anuladas e reprogramadas para quando se respeitar a vontade soberana. Legitimar os golpes de Estado por meio de processos eleitorais espúrios divide e não contribui para a unidade das nações da América”, escreveu. Reconhecimento No dia 23, em reunião da OEA, ficaram claras as posições de cada um dos países. Brasil, Argentina, Equador, Bolívia, Nicarágua e Venezuela já confirmaram que não reconhecerão as eleições, uma vez que Zelaya não foi restituído antes do dia 29. Chile, Uruguai e Paraguai também não devem reconhecê-las. O Congresso Nacional hondurenho já declarou que deverá julgar a volta de Manuel
Zelaya apenas no dia 2 de dezembro. Theotônio dos Santos acredita que, caso os parlamentares decidam por sua volta, o mandatário deverá recusar. “Se ele aceitar voltar, mesmo que agora ou após as eleições, só iria legitimar esse processo”, defende o economista. Ainda assim, o ditador Roberto Micheletti afirmou que não reconhecerá a decisão do Congresso e que permanecerá no poder até 27 de janeiro, quando o novo presidente assume. Já os EUA afirmam que não veem irregularidades no processo e que aceitarão o resultado. “Essas eleições não foram inventadas pelo regime de fato em busca de uma estratégia de saída ou para encobrir um golpe de Estado. Pelo contrário, são eleições que respeitam o mandato constitucional de renovação do Congresso e da presidência e permitem ao povo hondurenho exercer sua vontade soberana”, disse Arturo Valenzuela, representante dos EUA na reunião. Junto com eles, fecham Panamá, Canadá, Colômbia e Peru. A posição desses dois últimos países, embora previsível, irritou a diplomacia brasileira. No dia 5 de novembro, em reunião do Grupo do Rio, ambos haviam se comprometido a não reconhecer o pleito se Zelaya não voltasse antes. Nas eleições do dia 29, além do presidente, serão eleitos deputados federais, prefeitos e parlamentares centro-americanos. Theotônio dos Santos reforça que, mesmo com apoio estadunidense, o novo governo terá dificuldades de se legitimar internamente e também diante da comunidade internacional. A União Europeia, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) não mandarão observadores, o que também enfraquece o resultado das eleições.
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cultura
O orgulho de ser
assentado FOTOGRAFIA Douglas Mansur expõe o resultado de anos de acompanhamento da luta dos sem-terra em São Paulo Aldo Gama da Redação “Desde o começo, sempre procurei contar a história do movimento por meio das famílias”, conta o fotógrafo Douglas Mansur, que há 26 anos acompanha a luta dos trabalhadores rurais sem-terra pela reforma agrária. E esse olhar pode ser comprovado na mostra “O orgulho de ser as-
sentado: a reforma agrária em movimento”, que está rodando o Estado de São Paulo. Além das imagens das muitas marchas que acompanhou por todos esses anos, Douglas avalia que sua principal contribuição é mostrar o resultado do trabalho dos assentados. “Manifestações costumam criar imagens fortes, mas as conquistas desses trabalhadores também devem ser mostradas. Existe
toda uma produção, inclusive de conhecimento, que merece ser registrada”, pondera. “E é muito bom ver as crianças, que estiveram nos acampamentos no começo dos anos 1990, retornarem para os assentamentos como veterinários, agrônomos...”, completa. Depois de passar por Andradina, Presidente Prudente e capital, a mostra segue para Ribeirão Preto no mês de dezembro.