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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 355

São Paulo, de 17 a 23 de dezembro de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br

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Esquerda próxima de deixar poder no Chile O primeiro turno das eleições presidenciais chilenas, realizado no dia 13, deixou ainda mais próximo da vitória o megaempresário Sebastián Piñera. Ele obteve 44% dos votos e é o favorito contra Eduardo Frei, o candidato da Concertação, bloco de centro-esquerda no poder desde a queda de Augusto Pinochet, em 1990. Para analistas, a direita só não volta ao poder por um milagre. Pág. 11

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Transnacionais “dão a linha” na COP-15

30 dias de greve de fome contra o Marrocos

A delegação do Brasil em Copenhague não deixa dúvidas sobre o papel do país na Conferência. Entre seus membros, transnacionais do setor agropecuário, bancos, empreiteiras e indústria automobilística. Pág. 9

A militante independentista do Saara Ocidental Aminetu Haidar completou, nas Ilhas Canárias, um mês de greve de fome contra a monarquia marroquina, que a impede de voltar a seu país, ocupado desde 1975. Pág. 10

Os crimes dos que atuam contra a reforma agrária A senadora Kátia Abreu (DEM-TO) integrou um bando que tomou 105 mil hectares de 80 famílias de camponeses no município de Campos Lindos (TO). Ela e o irmão receberam 2,4 mil hectares depois de um golpe contra pequenos agricultores. A parlamentar é uma das mais estridentes líderes da bancada ruralista, a qual encabeça uma CPI contra

o MST e a reforma agrária. Financiados por grandes empresas da agricultura, esses mesmos fazendeiros que estão no Planalto carregam denúncias de roubo de terras, desvio de dinheiro público, rejeição à desapropriação de terras com trabalho escravo, devastação ambiental, utilização de recursos ilícitos para campanha eleitoral, entre outras. Págs. 4 e 5 Reprodução

Na Colômbia, povoado tem 2 mil mortos nãoidentificados

Na zona leste de SP, 5 mil famílias podem ser despejadas A implantação de um megaparque sobre as várzeas do rio Tietê, em São Paulo, pode desalojar mais de 5 mil famílias que moram na área. Até o momento, não existe um plano de reassentamento adequado da população afetada, e as políticas compensatórias já utilizadas, como os chamados “cheque-despejo” e “vale-aluguel”, são consideradas insuficientes. Pág. 8

Soldados do Exército colombiano em ação contra supostos guerrilheiros das FARC

Comunicação MST

A cidade de La Macarena, no sudoeste da Colômbia, com 3,5 mil habitantes, possui em seu cemitério um mar de cruzes brancas, cada uma com um número gravado. São supostos guerrilheiros, e os algarismos remetem ao número do seu caso na promotoria. Segundo Don Chucho, o coveiro, a quantidade de mortos nãoidentificados pode chegar a 2 mil. La Macarena está encravada em região onde o exército executa intenso combate às Farc. Pág. 12 Urbano Erbiste/Folha Imagem

Via Campesina consolida vitória contra a Syngenta No dia 5, cerca de 3,5 mil pessoas reuniram-se, em Santa Tereza do Oeste (PR), para a inauguração do Centro de Agroecologia Valmir Mota de Oliveira. Na entrada do campo, foi erguido o Monumento Keno Vive, uma homenagem ao coordenador do MST (foto) morto em 2007 durante o processo de conquista da área, a qual era utilizada pela transnacional Syngenta para a realização de estudos ilegais com transgênicos. Pág. 6

Policiais patrulham o morro da Formiga, no Rio de Janeiro, após tiroteio

Em 11 anos, PM mata 10,2 mil no Rio 2,4 pessoas foram assassinadas por dia pela polícia ISSN 1978-5134

Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 10,2 mil pessoas foram mortas pela polícia nos últimos 11 anos. Elas aparecem nas estatísticas

como auto de resistência, um instrumento jurídico criado durante a ditadura civil-militar. O número de assassinados vem crescendo a cada novo governo esta-

dual. Com Marcello Alencar (1995-1999), o índice era de uma morte por dia, com Rosinha Garotinho (20032006), 2,9, e com Sérgio Cabral, 3,3. Pág. 3


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editorial AO ABRIR A 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) no dia 14, em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou as empresas que boicotaram o evento. O boicote não foi surpresa. Ao contrário, foi declarado a partir de 13 de agosto, quando as principais empresas de comunicação do país se retiraram, supostamente por acreditarem que a Confecom caminhava no sentido de restringir a liberdade de expressão. São elas: a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert); Associação Brasileira de Internet (Abranet); Associação Brasileira de TVs por Assinatura (ABTA); Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner); Associação dos Jornais do Interior (Adjori); e Associação Nacional dos Jornais (ANJ). Como empresas, participam apenas a Band e a Rede TV!, representadas pela Associação Brasileira dos Radiodifusores (Abra) e Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil). A Confecom, anunciada pelo próprio Lula em janeiro de 2009, durante o Fórum Social Mundial de Belém, conta com a participação de 1.684 delegados de todo o país. Cerca de 20 mil pessoas participaram das discussões e atividades preparatórias nas principais cidades

debate

Confecom abre nova etapa de batalhas pela democracia no Brasil e capitais. Dos delegados, 40% representam movimentos sociais, 40% o empresariado e 20% o governo e o Congresso Nacional. O encontro, que se encerra dia 17, teve como tema geral “Comunicação: meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital”, com três eixos temáticos: Produção de conteúdo, Meios de distribuição e Cidadania: direitos e deveres. O debate final formalizará um relatório com propostas para a democratização da comunicação que será encaminhado ao Congresso Nacional. A realização da Confecom inscreve o Brasil no movimento geral integrado por governos latino-americanos em defesa da democratização dos meios de comunicação. O grande “chute inicial” foi dado pela Venezuela, após o fracassado golpe de abril de 2002, reconhecidamente orquestrado pelos empresários da comunicação da Venezuela. Como reação ao golpe, o presidente Hugo Chávez sancionou, em dezembro de

2005, a Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão, incorrendo por isso na ira dos empresários da comunicação de todo o mundo, que, tipicamente, passaram a atacá-lo como se fosse um inimigo da “liberdade de expressão”. No Equador, a nova Constituição, aprovada em setembro de 2008, reconhece que o direito à comunicação é um direito fundamental do ser humano. Abriu-se uma batalha, na Assembleia Nacional, para a regulamentação desse direito. Obviamente, os setores que representam os interesses do empresariado querem restringir ao máximo o seu alcance, especialmente naquilo que se refere às leis contra a formação de monopólios e que garantem uma distribuição democrática do direito de exploração das ondas e das verbas publicitárias do Estado. Situação semelhante ocorre na Bolívia, cuja Constituição entrou em vigor em fevereiro de 2009. A regulamentação das novas leis foi

bloqueada pela ala direita do Congresso (em termos gerais, a mesma ala que tentou o fracassado golpe de 2008). A significativa reeleição de Evo Morales, em dezembro, abre novas possibilidades. Na Argentina, o Senado aprovou, em outubro de 2009, um nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, dando fim às normas estipuladas pela ditadura militar, que beneficiavam, em particular, o monopólio exercido pelo grupo Clarín. A nova lei foi resultado de um processo de sete meses de debates, constantemente atacado e vilipendiado pelo grupo monopolista. No Uruguai, o governo remeteu ao Congresso uma lei que procura promover a produção nacional e limitar o poder das transnacionais. A Confecom brasileira faz parte, portanto, desse processo mais amplo que, por sua vez, reflete as profundas mudanças sociais, políticas e ideológicas verificadas, na última década, em todo o hemisfério oci-

crônica

Miguel Urbano Rodrigues

Obama em Oslo: o discurso da hipocrisia imperial TALVEZ NENHUM outro Prêmio Nobel da Paz tenha suscitado tão ampla e justa polêmica em nível mundial como o atribuído a Barack Obama. Admito que no futuro o discurso que ele pronunciou em Oslo, em 10 de dezembro, será recordado como o discurso da hipocrisia imperial. Nove dias antes, o cidadão-presidente Obama decidira enviar para o Afeganistão mais 30.000 soldados, elevando para 100.000 os efetivos do Exército estadunidense que invadiu aquele pais há 8 anos. Consciente de que o discurso da paz era na circunstância incompatível com o envolvimento atual dos EUA em múltiplas guerras de agressão, o novo Prêmio Nobel tentou justificá-las em nome de valores eternos da condição humana. Apresentou o apocalipse afegão como uma “guerra necessária” travada em defesa da humanidade. Falou de “promessa de tragédia”, reconhecendo, pesaroso, que, nas guerras, “uns matam, outros morrem”. Omitiu que a tragédia desencadeada no coração da Ásia não é promessa, mas monstruosa realidade. E omitiu também que é a sua gente, cumprindo ordens criminosas, que mata, e os “outros” que morrem. Não disse que no Afeganistão morreram, até o fim de novembro, somente 849 soldados americanos, os agressores, mas mais de 100.000 entre os agredidos, metade dos quais, de fome. Traçando uma fronteira entre as “guerras necessárias” e aquelas que não o são, Obama afirmou que “um movimento não-violento não teria podido deter os exércitos de Hitler”. Mas enunciou essa evidência para estabelecer um paralelo grotesco entre a Al Qaeda e o terceiro Reich nazista. Identifica na invasão do Afeganistão uma exigência da defesa do povo dos EUA porque “os líderes da Al Qaeda (organização inexpressiva num país onde o árabe é uma língua desconhecida do povo) não aceitam depor as armas”. Fica implícito que o Estado mais rico e poderoso do mundo considerou imprescindível à sua segurança que as Forças Armadas estadunidenses atravessassem um oceano e dois continentes para combater, num dos países mais atrasados e pobres do mundo, o líder de uma seita de fanáticos. Pela primeira vez na história um governo declarou guerra não a um Estado, mas a um terrorista, guindando-o à condição de interlocutor. Com a peculiaridade de que, sendo desconhecido o seu paradeiro, o alvo e a vítima dessa guerra irracional foi e continua a ser o povo entre o qual, supostamente, se ocultaria Bin Laden. No mesmo dia em que Obama recebia o Nobel da Paz na Noruega, o general Stanley McCrhystal, perante o Congresso dos EUA de gala, com o peito constelado de condecorações – as medalhas dos guerreiros agressores

são tradicionalmente atribuídas em função da quantidade de massacres que cometeram pela “salvação da pátria”– reafirmou a sua certeza na vitória de uma “guerra justa e necessária”. São complementares o seu discurso e o de Obama. A violência na história Enquanto Obama lutou pela presidência e nos primeiros meses de governo, o seu discurso, embora retórico, apresentou matizes humanistas. Mesmo entre adversários ideológicos, perdurou durante algum tempo uma dúvida: seria o jovem presidente um estadista fiel a princípios e valores éticos e que somente não iria mais longe por ser travado pela engrenagem do sistema de poder? O balanço da sua política em 11 meses não lhe favorece a imagem. Não obstante o massacre midiático promovido para erigi-lo como o “salvador” de que o capitalismo em crise estrutural necessitava, a ideia de que o presidente dos EUA não concretizou compromissos assumidos porque o grande capital e o Pentágono o impediram é negada pela realidade da vida. Por si só, a escalada no Afeganistão fez ruir o mito do eticismo do presidente. Sobra apenas a retórica. O discurso de Oslo tripudia sobre a razão e a ética. Sob o manto do “poder moral”, Obama, movendo-se num labirinto de hipocrisia e de contradições, pretende persuadir os povos de que o poder imperial dos EUA está a serviço da humanidade quando, dolorosamente, recorre à violência para defender, segundo ele, a liberdade, a democracia, a civilização. Marx captou a realidade ao afirmar que a violência tem funcionado como parteira da história. Pouco mudou em milhares anos. No nosso tempo, a humanidade nada num oceano de violência. Nos últimos 60 anos de guerras e outros flagelos, cuja responsabilidade no fundamental cabe ao imperialismo, morreram ou foram feridas 60 milhões de pessoas, quase tantas como na Segunda Guerra Mundial.

Num livro maravilhoso, Théorie de la Violence, Georges Labica – um dos grandes filósofos do século 20 e um dos raríssimos intelectuais contemporâneos que fez da cultura integrada o cimento de uma obra luminosa pela inteligência e saber – lembra-nos que o capitalismo é a pátria de um sistema que escraviza (e emancipa através da revolta) e que a globalização da violência reflete afinal o estado da sociedade modelada e oprimida pelas suas engrenagens. As guerras “necessárias” não são, porém, as que os EUA travam na Ásia contra povos misérrimos cujas riquezas saqueiam. Estas, as “justas”, são inseparáveis do direito à sobrevivência de povos agredidos por outros, as que opõem a violência libertadora à violência opressora. Já dizia Maquiavel que “os levantamentos de um povo livre são raramente perniciosos à sua libertação”. A história apresenta-nos ao longo dos séculos exemplos expressivos, por vezes comovedores, de tais guerras, autênticas epopeias nacionais. A resistência armada é então nelas o desembocar da vontade coletiva. Isso aconteceu no combate à barbárie do terceiro Reich Alemão; na luta do Vietnã contra os EUA, na saga argelina, na batalha multissecular pela independência dos povos da Ásia, da América Latina e da África contra o colonialismo e pelo direito a construírem o seu próprio futuro como sujeitos da história; acontece hoje na luta épica do povo palestino contra o sionismo neonazista, na resistência dos povos do Iraque e do Afeganistão à ocupação imperial estadunidense. O discurso farisaico de Obama em Oslo, aclamado pelos sacerdotes do sistema opressor, seus cúmplices, configurou uma ofensa à inteligência e dignidade dos povos agredidos, explorados e humilhados pelo imperialismo. Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português.

dental. Isso foi muito bem entendido pela Sociedad Interamericana de Prensa (SIP), uma espécie de “internacional da burguesia”, que fez uma campanha intensa contra a conferência no Brasil e contra todos os movimentos pela democratização da comunicação na América Latina. No Brasil, embora a mera realização da Confecom já tenha sido uma vitória dos movimentos sociais e populares, suas resoluções, por mais avançadas que sejam, terão que enfrentar o gargalo do Congresso Nacional, cujos integrantes são, em grande número, representantes diretos ou ligados aos setores monopolistas da comunicação. Aliás, os tentáculos do monopólio abarcam até mesmo o Poder Executivo: o ministro Hélio Costa foi vaiado ao discursar na abertura da Confecom, por ser visto como um porta-voz dos interesses da Rede Globo. Encerrada a conferência, certamente uma nova etapa de batalhas será aberta, dessa vez tendo como foco o Congresso Nacional, como já acontece no Equador, na Bolívia e no Uruguai, e como aconteceu na Venezuela e na Argentina. O Brasil está no rumo certo, mas as batalhas serão cada vez mais árduas.

Leonardo Boff

Confrontos em Copenhague EM COPENHAGUE, nas discussões sobre as taxas de redução dos gases produtores de mudanças climáticas, duas visões de mundo se confrontam: a da maioria dos que estão fora da Assembleia, vinda de todas as partes do mundo; e a dos poucos que estão dentro dela, representando os 192 estados. Essas visões diferentes são prenhes de consequências, significando, no seu termo, a garantia ou a destruição de um futuro comum. Os que estão dentro, fundamentalmente, reafirmam o sistema atual de produção e de consumo mesmo sabendo que implica sacrificação da natureza e criação de desigualdades sociais. Creem que, com algumas regulações e controles, a máquina pode continuar produzindo crescimento material e ganhos como ocorria antes da crise. Mas importa denunciar que exatamente esse sistema se constitui no principal causador do aquecimento global, emitindo 40 bilhões de toneladas anuais de gases poluentes. Tanto o aquecimento global como as perturbações da natureza e a injustiça social mundial são tidos como externalidades, vale dizer, realidades não intencionadas e que por isso não entram na contabilidade geral dos estados e das empresas. Finalmente o que conta mesmo é o lucro e um PIB positivo. Ocorre que essas externalidades se tornaram tão ameaçadoras que estão desestabilizando o sistema-Terra, mostrando a falência do modelo econômico neoliberal e expondo em grave risco o futuro da espécie humana. Não passa pela cabeça dos representantes dos povos que a alternativa é a troca de modo de produção, o que implica em uma relação de sinergia com a natureza. Reduzir apenas as emissões de carbono e manter a mesma vontade de pilhagem dos recursos é como se colocássemos um pé no pescoço de alguém e lhe dissessemos: quero sua liberdade, mas à condição de continuar com o meu pé em seu pescoço. Precisamos impugnar a filosofia subjacente a essa cosmovisão que desconhece os limites da Terra, afirma que o ser humano é essencialmente egoísta e que por isso não pode ser mudado e que pode dispor da natureza como quiser, que a competição é natural e que, pela seleção natural, os fracos são engolidos pelos mais fortes e que o mercado é o regulador de toda vida econômica e social. Em contraposição, reafirmamos que o ser humano é essencialmente cooperativo porque é um ser social. Mas faz-se egoísta quando rompe com sua própria essência. Dando centralidade ao egoísmo, como o faz o sistema do capital, torna-se impossível uma sociedade de rosto humano. Um fato recente o mostra: em 50 anos, os pobres receberam de ajuda 2 trilhões de dólares, enquanto os bancos, em um ano, receberam 18 trilhões. Não é a competição que constitui a dinâmica central do universo e da vida, mas a cooperação de todos com todos. Depois que se descobriram os genes, as bactérias e os vírus como principais fatores da evolução, não se pode mais sustentar a seleção natural como se fazia antes. Esta serviu de base para o darwinismo social. O mercado entregue à sua lógica interna opõe todos contra todos e assim dilacera o tecido social. Postulamos uma sociedade com mercado, mas não de mercado. A outra visão dos representantes da sociedade civil mundial sustenta: a situação da Terra e da humanidade é tão grave que somente o princípio de cooperação e uma nova relação de sinergia e de respeito com a natureza nos poderão salvar. Sem isso vamos para o abismo que cavamos. Essa cooperação não é uma virtude qualquer. É aquela que outrora nos permitiu deixar para trás o mundo animal e inaugurar o mundo humano. Somos essencialmente seres cooperativos e solidários, sem o que nos entredevoramos. Por isso a economia deve dar lugar à ecologia. Ou fazemos essa virada ou Gaia poderá continuar sem nós. A forma mais imediata de nos salvar é voltar à ética do cuidado, buscando o trabalho sem exploração, a produção sem contaminação, a competência sem arrogância e a solidariedade a partir dos mais fracos. Este é o grande salto que se impõe neste momento. A partir dele Terra e Humanidade podem entrar num acordo que salvará a ambos Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil

Ferramenta jurídica legitima o extermínio de pobres no Rio VIOLÊNCIA Em 11 anos, autos de resistência foram usados mais de 10 mil vezes. Governo Cabral os utiliza 3,3 vezes por dia Urbano Erbiste/Folha Imagem

Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) A DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos completou 61 anos no dia 10. Mas, no Estado do Rio de Janeiro, a revelação de um dado deu sinais claros de que não há muito o que comemorar. Nos últimos 11 anos, o número de mortos em autos de resistência aumentou em 10,2 mil. As informações divulgadas representam o crescimento escancarado da atuação assassina da polícia carioca. Criado para justificar homicídios através da suposta reação do opositor, o auto de resistência é frequentemente utilizado como forma de legitimar assassinatos sumários em ações das forças de segurança pública. A maioria das vítimas é pobre e negra. Desde 1998, a polícia fluminense usou o instrumento para justificar o assassinato de 2,4 pessoas por dia. No período, a relação de mortos por ferido aumentou de 1,7 para 3,5. Na capital, a média mensal de assassinatos em ações policiais dobrou no período, de 16 a 32. A análise das informações sugere, invariavelmente, fortes indícios de que a maioria dos óbitos registrados como auto de resistência não passam de execução sumária. Os valores foram divulgados pela própria Secretaria de Segurança Pública do Estado. A média de mortos em confrontos armados, durante o governo Sérgio Cabral (PMDB), é maior do que a de todas as administrações que a precederam. Enquanto o governo Marcello Alencar (1995-1999) teve índice de uma morte por dia e o de Rosinha Garotinho (20032006), de 2,9, a gestão atual

O auto de resistência foi criado durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Começou a ser contabilizado e superexplorado durante o governo Marcello Alencar (PSDB). Na época, criou-se uma sinistra premiação que ficou conhecida como “gratificação faroeste”. Com poder de utilizar o auto de resistência – com potencial de registrar o algoz como vítima –, tornou-se fácil ser contemplado pelo prêmio. Condenação internacional

PM realiza operação no morro da Formiga, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro

Quanto

7,8 mil

acusações de crime policial geraram apenas quatro condenações no Rio desde 2003 convive com constrangedores 3,3 assassinatos diários. Apenas em 2007, auge do problema, 1.330 mortes foram registradas (3,6 por dia). A polícia chegou a utilizar o instrumento 147 vezes em abril de 2008 (4,9 por dia). “Sérgio Cabral já assumiu o governo com um discurso populista de que não iria dar trégua nem tolerar excessos. Este é, na verdade,

A interpretação dos dados tem sido unânime para os estudiosos de segurança pública. A polícia, cada vez mais, deixa de prender para matar um discurso que estimula a política de extermínio, e é reproduzido por toda a cúpula de Segurança Pública. A tendência de aumento do uso de autos de resistência é histórica, mas já ficava claro no início que haveria um salto no governo Cabral”, defende Maurício Campos, da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência.

Um estudo da ex-diretora do Instituto de Segurança Pública, a antropóloga Ana Paula Miranda, comprova por comparação que a utilização dos autos de resistência mascaram uma política de extermínio. Segundo os dados, de 2000 a 2008, a relação “presos em flagrante” versus “mortos pela polícia” caiu cinco vezes. Era de 75,4, passou a 21,8 em 2004

até chegar a 15,2 no último ano. A interpretação dos dados tem sido unânime para os estudiosos de segurança pública. A polícia, cada vez mais, deixa de prender para matar. Ana Paula foi exonerada em fevereiro de 2008 justamente após revelar informações incômodas. A Organização das Nações Unidas (ONU) orienta que esse tipo de registro de mortes seja computado nos dados de aferição de homicídios. Entretanto, o governo estadual omite os autos de resistência do cálculo. No Rio de Janeiro, o número de assassinatos causados pela polícia equivale a 12% dos homicídios dolosos.

No dia 8, denúncias da Human Rights Watch somaramse aos dados estarrecedores de aumento dos autos de resistência. Segundo a ONG, 11 mil pessoas foram assassinadas pelas polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo desde 2003 (o valor equivale a quase quatro vezes o número de mortos no ataque ao World Trade Center). Dentre elas, pelo menos 64% teriam sido sumariamente executadas. A pesquisa foi realizada por amostra de 51 casos, a partir de relatórios médicos. No Estado do Rio, 7,8 mil acusações de crime policial geraram apenas quatro condenações. Ao se analisar as informações da perícia médica, há casos claros de tiro na nuca ou pelas costas, que comprovariam o assassinato. Escrito por 20 familiares de vítimas de violência, um livro sobre o tema está sendo lançado neste mês. Auto de Resistência – Relatos de Familiares e Vítimas da Violência Armada foi organizado por Tatiana Moura, Carla Afonso e Bárbara Musumeci. Conta com depoimentos de ativistas como Márcia Jacintho, ganhadora do Prêmio Faz Diferença e da Medalha Chico Mendes, e Marilene de Souza, uma das mães de Acari.

Leandro Uchoas

Justiça Global: uma década a serviço dos direitos humanos Ao completar 10 anos, organização reúne lideranças de todo o país para discutir formas de atuação e conjuntura do Rio de Janeiro (RJ) A cada aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o discurso dos principais ativistas se repete. “Estamos ainda muito distantes do razoável cumprimento dos 30 artigos do documento”. Torna-se evidente que a organização da sociedade pelo cumprimento dos direitos é demanda das mais importantes. No Brasil, uma organização tem se destacado cada vez mais na defesa dos direitos humanos. Em novembro, a Justiça Global completou 10 anos de existência a serviço da causa. A celebração não poderia ter forma e data mais pertinentes. No dia 11, um dia depois do aniversário da Declaração, cerca de 100 lideranças do país inteiro reuniramse no bairro carioca de Santa Tereza para discutir sua atuação e o cenário futuro. Numa sala simples com carteiras es-

tudantis espalhadas em círculo, alguns dos principais ativistas do Brasil apresentaram sua visão dos inúmeros obstáculos que se impõem e expuseram sua esperança de novos tempos. “A Justiça Global é uma organização que milita em rede”, já explicava no início a diretora Sandra Carvalho, que em outubro ganhou o Prêmio Anual de Direitos Humanos da Human Rights. Antes das discussões, houve tempo para a exibição de um vídeo sobre a Palestina, com fotos de Rogério Ferrari. O debate que se seguiu foi dividido em dois momentos. No primeiro, organizou-se uma exposição das violações aos direitos econômicos, sociais e culturais no país. Para esse momento, dois convidados especiais introduziram os questionamentos: Sandra Quintela, do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), e Gilmar Mauro, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A economista do Pacs manifestou sua preocupação com a implantação de megaprojetos de infraestrutura no país. Tomando por base a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), eles estariam em andamento em quase todos os países da América do Sul, inclusive nos de governos mais à esquerda, como a Venezuela. No Brasil, seria representado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

“O objetivo principal é preparar canais para explorar nosso território. Isso é muito preocupante, porque o direito das populações tradicionais, quilombolas e ribeirinhas, está sendo violado. Em nome do progresso se faz qualquer coisa. Aqui no Brasil nós estamos vendo, do Oiapoque ao Chuí, megaprojetos de desenvolvimento, grande parte deles voltado para exportação de commodities, com isenção fiscal nos três níveis e recursos públicos do BNDES”, denunciou. Gilmar Mauro atentou para as peculiaridades de nosso tempo, num cenário de crise econômica, social e ambiental. “As nossas organizações foram construídas num momento histórico em que havia possibilidade de avanço. Vivemos agora um tempo de poucas possibilidades, e as reformas que a gente consegue têm um custo muito alto. O papel civilizatório da sociedade do capital está se esgotando, e nós estamos entrando num tempo de retrocessos”, disse. Na segunda parte das discussões, os participantes abordaram a violência institucional e a segurança pública. Dessa vez, Fernanda Vieira, da Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola, e Hamilton Borges, do Movimento Negro da Bahia, orientaram o debate. Muito aplaudida, Fernanda centrou sua intervenção na crítica ao discurso punitivo. Para ela, as organizações de direitos hu-

Cerca de 100 lideranças de todo o país estiveram no Rio discutindo a questão dos direitos humanos

Combater a suposta impunidade seria uma forma de legitimar o sistema penal, que, ao privilegiar a punição a uma classe, funcionaria como forma de controle social pela coerção manos teriam que repensar a retórica da reivindicação de punição. Combater a suposta impunidade seria uma forma de legitimar o sistema penal, que, ao privilegiar a punição a uma classe, funcionaria como forma de controle social pela coerção. “A grande referência do Estado neoliberal é o crescimento do discurso punitivo. Ele é estrutural no meio atual do sistema capitalista. E o sentimento de insegurança e medo é o território de que o capitalismo precisa para ampliar o discurso punitivo. O sistema penal é esquizofrênico. Não

existe prisão humana. Quanto maior for o sistema punitivo, maior é o poder soberano”, disse, admitindo a dificuldade de se defender a tese junto às vitimas de criminalização, já que a indignação induz ao desejo de punição. Vanguarda

Hamilton reivindicou o direito dos negros de se autorepresentarem e de estabelecerem suas referências e metodologias. “Queremos falar com nossa própria voz”, afirmou. O líder do movimento LGBT Caio Varela fez um contraponto entre as duas

intervenções. Caio elogiou a atuação da ONG em sua área de militância. “A Justiça Global é uma das primeiras organizações a entender que o militante do movimento gay é também militante dos direitos humanos”, afirmou. A Justiça Global tem se destacado pela seriedade e independência na utilização dos mecanismos de defesa dos direitos humanos. É autora de diversas denúncias documentadas a organizações internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização das Nações Unidas (ONU). Seu trabalho é respeitado no mundo inteiro. Entretanto, o aniversário sequer foi mencionado pela mídia comercial. No encontro, uma frase de Deise Benedito, do Fala Preta, talvez resuma o motivo da omissão: “nós somos críticos, e a crítica não cabe em determinados espaços”. (LU)


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Um camponês contra Kátia Abreu QUESTÃO AGRÁRIA O pequeno agricultor Juarez Vieira Reis enfrenta na Justiça uma das líderes da bancada ruralista no Congresso, que tomou suas terras há sete anos

Plantação de soja no município de Campos Lindos, em Tocantins: principal exportadora de soja do Estado é uma das cidades mais pobres

Eduardo Sales de Lima da Redação O CAMPONÊS Juarez Vieira Reis foi expulso em 2003 da terra onde vivia desde o seu nascimento, em Tocantins, graças a uma intervenção judicial a pedido da senadora Kátia Abreu (DEMTO). É que ela recebeu as terras de Juarez de presente do ex-governador tocantinense Siqueira Campos. O Projeto Agrícola Campos Lindos, criado em 1999, expulsou dezenas de pequenos posseiros de suas terras para entregálas a figurões políticos e endinheirados, entre eles a presidente da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), entidade que aglutina grandes proprietários rurais (leia mais nesta página). Entre as terras “doadas” por Siqueira Campos a Kátia Abreu, estavam os 545 hectares onde Juarez vivia desde o seu nascimento – a fazenda Coqueiro. Em dezembro de 2002, a senadora entrou com uma ação de reintegração de posse da área que lhe havia sido presenteada. Ela passou por cima da ação de usucapião em andamento, que dava respaldo legal à permanência da família de Juarez no imóvel. A Justiça de Tocantins aprovou a reintegração de posse e expulsou o posseiro e seus parentes. Invasora O despejo de Juarez, sua esposa, dez filhos e 23 netos ocorreu em abril de 2003, sem nenhum aviso prévio. Ele não pôde recolher suas criações, tanto de galinhas como de porcos, nem colher os alimentos que produziam, como mandioca e arroz. Tudo teve que ser abandonado. A família rumou para uma chácara do filho de Juarez, nos limites de Campos Lindos, onde vive até hoje. O genro de Juarez, Rui Denilton de Abreu, aponta para um fato pouco divulgado na imprensa. Ele afirma que alguns dias depois de a família ter se alojado na casa, ocorreu um incêndio suspeito no local. “Isso foi intencional. Na minha consciência, eu sinto que isso foi um atentado à família dele. E o próprio boletim de ocorrência diz isso, que o fogo foi de cima para baixo e de

fora para dentro. Foi acidental?”, questiona. Passados mais de sete anos, cerca de 20 pessoas da família repartem hoje apenas dois cômodos de uma casa de sapê. E as refeições seguem irregulares. Segundo Juarez, apesar disso, o período após o despejo foi o que mais o preocupou em termos de alimentação.“Eu passava a noite inteira sem dormir, preocupado, pensando: ‘será que eu vou ser obrigado a pedir comida nas casas, eu que sempre vivi de barriga cheia? Hoje eu vou ver a minha família assim por causa de uma senadora?’”, refletia. “São sete anos nessa situação, e eu já estou com 61. Tenho medo é de morrer e deixar esse problemão para a família. Se tivesse na frente dela, eu perguntava, em primeiro lugar, se ela tem filho, se ela gostaria de ver um filho dela sofrendo igual ela está fazendo a minha família sofrer. Se ela achava bom”, desabafa. Resistência Mas, mesmo não tendo Kátia na sua frente, Juarez a enfrenta. E, diferentemente dos posseiros expulsos para as reservas do Cerrado, o agricultor decidiu lutar por seus direitos, pelo imóvel no qual sempre viveu. Ele tem em mãos documentos da propriedade, dos quais um data de 1958. O processo está em andamento pela Comarca de Goiatins. Há cinco meses, ele foi à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e conseguiu forçar o Tribunal de Justiça de Tocantins a julgar tanto a ação de usucapião de 2000 como o pedido de liminar impetrado há seis anos para garantir a volta da família. Enquanto isso, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Luiz Couto (PTPB), encaminhou um ofício ao Conselho Nacional de Justiça para denunciar a influência de Kátia Abreu na Justiça do Tocantins e apressar os processos do pequeno agricultor. Em nota, Kátia afirmou que é proprietária de terras no município de Campos Lindos, devidamente escriturada. Afirma ter “a posse mansa e pacífica da mesma desde a sua aquisição” e que Juarez Reis é “invasor contumaz de terras alheias”. Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

A reforma agrária da turma da ruralista O Projeto Agrícola Campos Lindos retirou terras de pequenos agricultores e as entregou para políticos, parentes e grandes empresários da Redação Em 1996, por um decreto do então governador de Tocantins, Siqueira Campos (PSDB), uma área de 105 mil hectares no município Campos Lindos foi classificada como de “utilidade pública” para fins de desapropriação, por suposta improdutividade. O problema é que havia produção. Cerca de 80 famílias de pequenos agricultores viviam nas terras, a maioria há mais de décadas, produzindo, sobretudo, para a subsistência. A partir de 1999, a situação piorou. Foi criado o Projeto Agrícola Campos Lindos. Com base em uma lista preparada pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins (Faet), à época presidida pela então deputada federal Kátia Abreu, 47 pessoas foram contempladas com terras ao custo de pouco menos de R$ 8 o hectare (10 mil metros quadrados). Ocorreu, desde então, uma instalação desordenada de empresas do ramo de soja na região que até hoje não possuem licenciamento ambiental. O procurador da República, Álvaro Manzano, que acompanha essa excêntrica reforma agrária desde 2003, afirma que o projeto impos-

“Cultura latifundiária” A atual presidente da Confederação Nacional de Agricultura (CNA) e senadora, Kátia Abreu (DEMTO), ficou com um lote de 1,2 mil hectares. A mesma extensão recebida por seu irmão, Luiz Alfredo Abreu. Diversos figurões ligados ao governador Siqueira Campos também foram beneficiados, entre eles Dejandir Dalpasquale, ex-ministro da Agricultura do governo Itamar Franco, e Casildo Maldaner, ex-governador de Santa Catarina. Os absurdos que envolvem tanto o Projeto Agrícola Campos Lindos como o nome da senadora Kátia Abreu não param por aí. Nas eleições para o Senado, em 2006, ela declarou com valores inferiores aos de mercado dois terrenos

O modelo miserável de desenvolvimento Entre as maiores produtoras de soja, Campos Lindos é uma das cidades mais pobres do país da Redação

A senadora Kátia Abreu: compromisso com financiadores

to por Siqueira Campos foi instrumentalizado por meio do Instituto de Terras do Tocantins (Itertins). “Houve a desapropriação de um antigo loteamento criado pelo então Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás [Idago]. Como não havia interferência de recursos da União, não houve como o MPF [Ministério Público Federal] atuar diretamente para impedir a criação do projeto”, explica.

O município de Campos Lindos, no norte do Tocantins, é o principal exportador de soja do Estado. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE), a produção do grão na cidade cresceu de 9,3 mil toneladas, em 1999, para 127,4 mil toneladas, em 2007. Um crescimento de 1.370% em apenas oito anos. O Projeto Agrícola Campos Lindos, instalado a partir de 1999, tem grande responsabilidade nisso. O mesmo IBGE, contudo, revela a face desastrosa desse modelo de desenvolvimento. Segundo o instituto, que cruzou dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003 com o Censo 2000, 84% da população da cidade vivia na pobreza, dos quais 62,4% em estado de extrema indigência, ou seja, não ingerem o mínimo de calorias diárias para sobreviver.

em Campos Lindos. Um dos lotes, com 1.268,84 hectares, foi estimado por ela em R$ 10.075,35 mil em declaração à Justiça Eleitoral. No entanto, esse terreno custaria de centenas de milhares a milhões de reais, dependendo da avaliação.

misso é com essa classe que a financia. Eles estão numa mesma sintonia. Aqui é complicado do ponto de vista institucional”, explica Silvano Resende, coordenador da Comissão Pastoral da Terrra (CPT) do setor de Araguaia-Tocantins.

“Existe uma cultura latifundiária. Do ponto de vista das classes sociais, esse grupo é muito articulado, envolvendo políticos e juízes. Prova disso é que, se ela [Kátia Abreu] é eleita, tem um grupo que a financia. Dessa forma, seu compro-

Intervenção O procurador da República Álvaro Manzano lembra que em 2003 foi procurado por um grupo de antigos proprietários das terras desapropriadas para a realização do projeto que reclamavam da atuação do Judiciário estadual. “Em função disso, representei ao procurador geral da República a intervenção federal no Judiciário tocantinense, o que não chegou a ocorrer”, relembra Manzano. Com a criação do Projeto Agrícola Campos Lindos, apenas 27 posseiros da região receberam indenização, concedida a R$ 10 por hectare. Manzano conta que os posseiros que se encontram dentro da área de reserva legal do projeto estão buscando ser assentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em outro imóvel. “Segundo informações do Itertins dadas ao MPF, todos os posseiros que se encontravam dentro do perímetro do projeto na época de sua implantação foram titulados. Hoje, encontram-se cerca de 80 posseiros nessa área, onde foi criada uma reserva legal em condomínio”, explica. (ESL, com informações de Carta Capital)

Trabalho escravo Para piorar, após uma década de um contestado processo de “titulação” pública, em que dezenas de famílias de pequenos agricultores foram desalojadas, o município ainda tem sido palco de trabalho escravo. Segundo Silvano Resende, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da região do Araguaia-Tocantins, esse caos social é culpa do grupo liderado por Kátia Abreu, Siqueira Campos e outras figuras emblemáticas que têm ideologicamente impulsionado esse modelo conservador e destruidor. “Temos uma estimativa de que exista em torno de 20 mil famílias que estão fora da terra e que têm o perfil de reforma agrária. Prova disso é que nós tivemos nos últimos anos os índices mais altos de pessoas que vivem em condições análogas a de escravos no Estado do Tocantins”, explica.

Segundo Resende, a Justiça local é um dos principais instrumentos que corroboram a miséria na região. “Desde as comarcas de Goiatins até Colinas, as decisões são aberrantes”, salienta. Ele conta que no município de Brasilândia, que pertence à comarca de Colinas, existe uma fazenda que, durante seis anos, foi reivindicada por seus posseiros. De acordo com Resende, o exsenador do Estado, Eduardo Siqueira Campos, com o apoio intimidatório de pistoleiros da região e com sua influência na Justiça local, conseguiu com que houvesse a reintegração de posse, com a expulsão de 45 famílias da área. Para ele, devido a conjuntura social e política pela qual passa o Estado do Tocantins, os movimentos sociais locais precisam urgentemente “se articular e se organizar para aproveitar esse momento”. (ESL)

Com base em uma lista preparada pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins (Faet), à época presidida pela então deputada federal Kátia Abreu, 47 pessoas foram contempladas com terras ao custo de pouco menos de R$ 8 o hectare


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brasil

Os inimigos da reforma agrária José Cruz/ABr

de São Paulo (SP) Depois de conseguirem emplacar a CPMI contra a reforma agrária, os setores mais conservadores do Congresso Nacional passaram a escalar o seu time de parlamentares. Foram convocados inimigos do povo brasileiro para atuar na CPMI e nos bastidores. Esses parlamentares têm como características o ódio aos movimentos populares e o combate à

reforma agrária e às lutas sociais no nosso país. São fazendeiros e empresários rurais que foram financiados por grandes empresas da agricultura e colocaram seus mandatos a serviço do latifúndio e do agronegócio. Nas costas, carregam denúncias de roubo de terras, desvio de dinheiro público, rejeição à desapropriação de donos de terras com trabalho escravo, utilização de recursos ilícitos para campanha eleitoral, devastação ambiental e tráfico de influência. Essa CPMI faz parte de uma ofensiva desses parlamentares, que têm mais três frentes no Congresso (veja box). Até o fechamento desta edição, os nomes dos parlamentares indicados para a CPMI contra a reforma agrária já tinham sido lidos, mas os trabalhos não tinham começado. A CPMI pode se arrastar até junho de 2010. Apresentamos, ao lado, os deputados e senadores que estão na linha de frente na defesa dos interesses da classe dominante rural.

Ofensiva do latifúndio no Congresso

Os deputados Luis Carlos Heinze, Ronaldo Caiado e Onix Lorenzoni protocolam pedido de criação da Comissão Parlamentar de Inquérito do MST Roosewelt Pinheiro/ABr

Elton Bomfim/SEFOT/Secom

KÁTIA ABREU Senadora (DEM-TO) / Suplente na CPMI

ONYX LORENZONI Deputado Federal (DEMRS) / Titular na CPMI

• Formada em Psicologia. • Presidente da Confederação

• Formado em Medicina Veterinária. É empresário. • Membro da “Bancada da

Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), eleita em 2008 para três anos de mandato. Foi presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins (1995-2005). Dona de duas fazendas improdutivas que concentram 2.500 hectares de terras. Apresentou 23 projetos no Senado e apenas três foram aprovados, mas considerados sem relevância para o país, como a garantia de visita dos avós aos netos. Torrou 60% das verbas do seu gabinete com propaganda (R$ 155.307,37). É alvo de ação civil do Ministério Público na Justiça de Tocantins por descumprir o Código Florestal, desrespeitar povos indígenas e violar a Constituição. Integrante de quadrilha que tomou 105 mil hectares de 80 famílias de camponeses no município de Campos Lindos (TO). Ela e o irmão receberam 2,4 mil hectares com o golpe contra camponeses, em que pagaram menos de R$ 8 por hectare. Documentos internos da CNA apontam que a entidade bancou ilegalmente despesas da sua campanha ao Senado. A CNA pagou R$ 650 mil à agência de publicidade da campanha de Kátia Abreu.

Bala”, defendeu a manutenção da venda de armas de fogo no Brasil durante o referendo do desarmamento. Gastou 64,37% da verba do seu gabinete com propaganda (R$ 230.621) . Campanha financiada por empresas como a Gerdau, Votorantim Celulose, Aracruz Celulose, Klabin e Celulose Nipo. Teve apenas um projeto aprovado em todo o seu mandato.

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CPMI contra a reforma agrária Três parlamentares do DEM conseguiram criar uma CPMI para impedir a democratização da terra e combater os movimentos sociais do campo. Índices de produtividade A senadora Kátia Abreu apresentou projeto no Senado que muda os parâmetros e tira do governo federal o poder de fazer a atualização dos índices de produtividade.

• • Antonio Cruz/ABr

BANCADA RURALISTA Parlamentares financiados por grandes empresas da agricultura colocam seus mandatos a serviço do latifúndio e do agronegócio

Terra (2003/2005), que classificou ocupações de terra como “crime hediondo” e “ato terrorista”. Não colocou em votação pedidos de quebra de sigilos bancários e fiscais de entidades patronais que movimentaram mais de R$ 1 bilhão de recursos públicos. Não convocou fazendeiros envolvidos em ações ilegais de proibição de vistorias pelo Incra. Divulga na imprensa de forma ilegal fatos mentirosos sobre dados sigilosos das entidades de apoio às famílias de trabalhadores rurais para desmoralizar a luta pela reforma agrária. Não declarou R$ 6 milhões à Justiça Eleitoral em 2006. O montante é referente à venda de uma fazenda em 2002.

Luiz Xavier/SEFOT/Secom

RONALDO CAIADO Deputado Federal (DEM-GO)

• Formado em Medicina. • Foi fundador e presidente

nacional da União Democrática Ruralista (UDR). É latifundiário. Proprietário de mais 7.669 hectares de terras. Dono de uma fortuna avaliada em mais de R$ 3 milhões. Não teve nenhum dos seus 19 projetos aprovados no Congresso Nacional. É investigado pelo Ministério Público Eleitoral por captação e uso ilícito de recursos para fins eleitorais. Não declarou despesas na prestação de contas e fez vários saques “na boca do caixa” para o pagamento de despesas em dinheiro vivo, num total de quase R$ 332 mil (28,52% do gasto total da campanha). Foi acusado de prática de crimes de racismo, apologia ou instigação ao genocídio por classificar os nordestinos como “superpopulação dos estratos sociais inferiores” e propor um plano para o extermínio: adição à água potável de um remédio que esterilizasse as mulheres.

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• Elton Bomfim/SEFOT/Secom

Valter Campanato/ABr

ABELARDO LUPION Deputado federal (DEM-PR) Titular na CPMI

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Brizza Cavalcante/SEFOT/Secom

Os movimentos sociais do campo cobram a investigação na CPMI das entidades controladas por ruralistas em nível nacional e estadual, que recebem recursos públicos bilionários e não prestam contas. O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), ligado à CNA, e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop), receberam mais de R$ 1 bilhão do governo federal entre 2000 e 2006. Ainda não foi comprovada a aplicação do dinheiro. Os dados são do Ministério da Previdência Social, responsável na época pelo recolhimento dos impostos do setor, segundo estudo do pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Sérgio Sauer. Enquanto isso, os casos pipocam em órgãos de fiscalização. O Ministério Público do Paraná pediu justificativas ao Senar pela compra de 12 veículos sem a realização de licitação, o que gerou um gasto de aproximadamente R$ 335 mil. Um convênio do Senar é citado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), segundo o qual R$ 101 mil foram aplicados indevidamente na compra de camisetas, uniformes e canivetes, além da contratação de serviços de bufê para uma feira agropecuária. O TCU apontou que a despesa não tinha respaldo nos objetivos da entidade, que tem como finalidade a formação profissional de trabalhadores rurais. A CNA não apresentou justificativas às denúncias.

versas frações de terras, totalizando 1.162 hectares. Fundador e primeiro-vicepresidente da Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (19891990). Seus bens somam mais de R$ 1 milhão. Nenhum dos seus projetos foi aprovado durante esta legislatura. Campanha foi financiada pela fumageira Alliance One, responsável por diversos arrestos irregulares em propriedades de pequenos agricultores. Defendeu o assassinato de três fiscais do trabalho em Unaí (MG), declarando que “os caras tiveram que matar um fiscal, de tão acuado que estava esse povo...”, justificando a chacina promovida pelo agronegócio (2008). É contra a regularização de terras quilombolas (descendentes de escravos), que representaria, para ele, “mais um entulho para os produtores rurais”.

• É empresário e dono de di-

versas fazendas (três delas em São José dos Pinhais). Foi fundador e presidente da União Democrática Ruralista (UDR) do Paraná. É um dos líderes mais truculentos da bancada ruralista na Câmara dos Deputados. Faz campanha contra a emenda constitucional que propõe a expropriação de fazendas que utilizam trabalho escravo. Apresentou somente cinco projetos no exercício do mandato. Nenhum foi aprovado. Sua fortuna totaliza R$ 3.240.361,21. Fez movimentação ilícita de R$ 4 milhões na conta bancária da mãe do coordenador de campanha. É réu no inquérito nº 1872, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), por crime eleitoral. Sofre duas representações por apresentar – em troca de benefícios financeiros – uma emenda para as transnacionais Nortox e Monsanto na Câmara, liberando o herbicida glifosato. A Nortox e a Monsanto financiaram a sua campanha em 2002. A Nortox contribuiu com R$ 50 mil para o caixa de campanha; já a Monsanto vendeu ao parlamentar uma fazenda de 145 alqueires, por um terço do valor de mercado. Participou de transação econômica fraudulenta e prejudicial ao patrimônio público da União em intermediação junto à Cooperativa Agropecuária Pratudinho, situada na Bahia, para adquirir 88 máquinas pelo valor de R$ 3.146.000, das quais ficou com 24. Deu para parentes a cota da Câmara dos Deputados, paga com dinheiro público, para seis voos internacionais para Madri e Nova York.

• Formado em Engenharia Agrônoma. • É latifundiário. Dono de di-

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Ivaldo Cavalcante/SEFOT/Secom

Em Dourados (MS), cerca divide acampamento indígena de latifúndio

LUIS CARLOS HEINZE / Deputado Federal (PP-RS)

As entidades do latifúndio

• Formado em História. É proprietário rural. • Foi presidente da CPMI da

Desapropriação de terras O deputado Valdir Colatto conseguiu aprovar na Comissão de Agricultura um projeto que passa para o Congresso a definição sobre as desapropriações de terras por descumprimento da função social. Código Florestal Os ruralistas ficaram com a maioria dos cargos de comando da Comissão Especial do Código Florestal Brasileiro na Câmara e pretendem travar uma disputa para flexibilizar a legislação ambiental e legalizar o desmatamento.

ALVARO DIAS Senador (PSDB-PR) / Titular na CPMI

VALDIR COLATTO / Deputado Federal (PMDB/SC)

• Formado em Engenharia Agrônoma. Proprietário rural. • Foi superintendente nacio-

nal da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) (2000-2002). Foi superintendente estadual do Incra em Santa Catarina (1985-1986) e secretário interino da Agricultura de Santa Catarina (1987). Desapropriou área de 1.000 hectares para fins desconhecidos na mata nativa quando presidiu o Incra, causando prejuízos de R$ 200 milhões para o poder público. Apresentou projeto que tira do Poder Executivo e do Poder Judiciário e passa para o Congresso a responsabilidade pela desapropriação de terras por descumprimento da função social. É contra a demarcação das terras indígenas e quilombolas. Autor do projeto que transfere da União para estados e municípios a prerrogativa de fixar o tamanho das áreas de proteção permanente nas margens dos rios e córregos. Com isso, interesses econômicos locais terão maior margem para flexibilizar a legislação ambiental e destruir a natureza. É um dos pivôs de supostas irregularidades envolvendo o uso da verba indenizatória na Câmara dos Deputados.

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Fonte: Jornal Sem Terra, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)


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brasil

Camponeses celebram vitória contra a Syngenta no Paraná MST/PR

CONQUISTA Via Campesina inaugura centro agroecológico em área onde a transnacional fazia estudos ilegais

Corruptores

Os esquemas de corrupção descobertos nos últimos 20 anos passaram por empresas privadas de construção civil, concessionárias de transportes públicos e de coleta de lixo, indústria farmacêutica, agências de publicidade e prestadoras de serviços de informática. Todos os casos envolveram propinas para políticos e servidores públicos graduados em troca da apropriação criminosa dos recursos públicos. A impunidade continua.

Exemplo argentino

A Argentina continua colocando no banco dos réus e punindo os carrascos da ditadura militar. No dia 11, a Justiça condenou à prisão perpétua o general da reserva Luciano Menéndez, de 82 anos, e revogou seu benefício de prisão domiciliar. No mesmo julgamento, dois coronéis pegaram a mesma pena. Dezenas de militares já foram julgados. Isto sim é apostar na democracia e no futuro do país!

Pedro Carrano e Solange Engelmann de Santa Tereza do Oeste (PR) O DIA 5 DE dezembro de 2009 ficará marcado na memória dos camponeses do Brasil como uma data histórica. Na ocasião, cerca de 3,5 mil pessoas reuniram-se, em Santa Tereza do Oeste (PR), na inauguração do Centro de Ensino e Pesquisa em Agroecologia Valmir Mota de Oliveira e do Monumento Keno Vive. Eles foram construídos numa área onde a transnacional suíça Syngenta Seeds cultivava transgênicos ilegalmente e cuja utilização foi conquistada pela Via Campesina, em outubro de 2008. Um ano antes, no dia 21 de outubro de 2007, durante a terceira ocupação da área, o dirigente do MST Valmir Mota de Oliveira, o Keno, foi assassinado por pistoleiros contratados pela Syngenta. O monumento construído em sua homenagem foi erguido em frente ao centro. A obra, uma chapa de aço maciça com 10 metros de altura, foi projetada pelo artista Marcus Cartum e “emerge inclinada em balanço livre a partir do solo, como um objeto que estava tombando, mas voltou a erguerse verticalmente”, de acordo com a explicação do autor. Em meio à celebração, um dos coordenadores nacionais da Via Campesina, João Pedro Stedile, afirmou que a organização internacional dos camponeses ganha com a vitória contra a Syngenta no Paraná. “Podemos comparar essa conquista à formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984 e na mesma região, pois o local servirá como retaguarda para produ-

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Torturadores

Festa de inauguração do centro de pesquisa em Santa Tereza do Oeste, no Paraná

“O Estado tinha a obrigação de dar o nome do Keno ao centro de agroecologia devido à luta do trabalhador por uma sociedade mais justa” ção e pesquisa, na resistência dos camponeses, sendo um marco na produção de sementes agroecológicas”, comemorou. A conquista do novo centro, que será administrado pelo Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), só foi possível devido à luta das famílias camponesas, que permaneceram na área por mais de dois anos, além da postura de apoio do governo do Paraná. A solidariedade nacional e internacional foi outro elemento importante. José Maria Tardin, membro da Via Campesina, aponta que o dia do assassinato de Keno (21 de outubro) hoje simboliza uma data de luta contra as transnacionais em vários países onde os camponeses estão organizados. “Na Suíça, sede mundial da Syn-

genta, um funeral foi organizado este ano, denunciando a prática ilícita da Syngenta em estabelecimentos de pesquisa”, conta. Tardin explica que o centro deve ter um comitê gestor formado por movimentos sociais, universidades e o Iapar, e sua atribuição será a geração de conhecimento tecnológico para capacitar o agricultor na transição do uso de agrotóxicos para a produção agroecológica. “É uma ciência que nos permite, através de uma integração muito íntima do conhecimento humano com a natureza, produzir alimentos sem agredir o meio ambiente e ofertá-los para a população sem riscos para a saúde humana e sem a utilização de tecnologia de risco para a saúde, como os transgênicos”, define.

Referência Os camponeses reafirmaram o compromisso de cobrar do governo do Paraná que o centro se transforme, de fato, em um espaço de referência na irradiação de experiências agroecológicas para os pequenos agricultores brasileiros. De acordo com o governador do Paraná, Roberto Requião (PMDB), “o Estado tinha a obrigação de dar o nome do Keno ao centro de agroecologia devido à luta do trabalhador por uma sociedade mais justa”, declarou. Ele acredita que o combate contra a transgenia já é vencedor no Brasil, devido ao trabalho de conscientização dos movimentos sociais. Requião também classificou como equivocada a posição dos ruralistas da região, que tentaram fazer um protesto contra a inauguração do monumento. Além disso, ele convocou os fazendeiros a enviar seus filhos ao centro para “aprender a cultivar uma agricultura sadia e viável que salvará a tradição agrícola dos seus pais e ajudará na luta pela independência nacional”.

Se não acontecer nenhum retrocesso, o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria dos Direitos Humanos, deve anunciar no dia 21, junto com o Programa Nacional dos Direitos Humanos, a instituição da Comissão da Verdade, que a partir de abril de 2010 divulgará oficialmente as atrocidades praticadas pelos órgãos da repressão durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Espera-se a verdade sobre os torturadores.

Violência não

Vários movimentos sociais empenhados em denunciar a violência policial e o genocídio de negros – entre os quais o Uneafro, MTST, Círculo Palmarino e Consulta Popular – estão pressionando os deputados estaduais e órgãos do governo de São Paulo para a convocação de uma audiência pública nos primeiros meses de 2010. Participam também dessa articulação os deputados estaduais José Candido, Raul Marcelo e Vicente Cândido.

Privilegiados

Médico que matou três pacientes em operações de lipoaspiração foi finalmente condenado a 17 anos de prisão, mas recebeu habeas corpus para aguardar a decisão do recurso. Filhinho de papai rico que estava dirigindo embriagado e matou quatro crianças atropeladas pagou fiança e foi colocado em liberdade. Enfim, todos os dias os fatos comprovam que somente os pobres e os negros realmente cumprem penas de prisão no Brasil.

Mais destruição

Três anos e meio de luta

Transnacional e ruralistas permanecem impunes MST/PR

Até a inauguração do centro de agroecologia, trabalhadores sofreram com o terror promovido pela Syngenta

Membros da Via Campesina são acusados da morte do segurança e do próprio Keno

Tropa fascista

de Santa Tereza do Oeste (PR) de Santa Tereza do Oeste (PR) Em março de 2006, durante a realização de conferência da Nações Unidas para a biodiversidade (COP-8 e MOP-3) em Curitiba (PR), a Via Campesina iniciou uma importante luta contra a transnacional suíça Syngenta Seeds. A corporação desenvolvia pesquisas ilegais com soja e milho transgênicos dentro da zona de amortecimento do Parque Nacional do Iguaçu, o que resultou em multa de R$ 1 milhão imposta pelo Ibama. Os camponeses da Via Campesina, então, ocuparam a área da empresa e organizaram a resistência a partir do que veio a se chamar Acampamento Terra Livre. No dia 21 de outubro de 2007, quando os militantes, após serem despejados, voltaram a ocupar pela terceira vez a área, a Syngenta contratou uma milícia fortemente armada para reprimir as famílias que participavam da reocupação. Durante a ação, Valmir Mota de Oliveira, o Keno, foi executado com dois tiros à queima roupa, e outras cinco pessoas ficaram feridas a bala. Uma delas é a sem-terra Izabel Nascimento de Souza, atingida por três tiros e espancada pelos pistoleiros, tendo perdido um olho e o movimento do braço direito. Um dos seguranças foi morto durante o incidente. Bastante emocionada durante a homenagem a Keno, Izabel lembrou que ele foi assassinado por estar na linha de frente protegendo os companheiros. “A maior cicatriz que fica é do sentimento, que nunca vai se apagar. Keno foi um herói”, resume. (PC e SE)

À época da execução de Keno, sete pistoleiros da NF Segurança, empresa contratada pela Syngenta para realizar o ataque contra os trabalhadores, haviam sido presos, enquanto outros 33 não foram encontrados. Logo após o assassinato, os dois proprietários da NF Segurança, Nerci de Freitas e Maria Ivanete Campos de Freitas, foram indiciados pela Justiça. Além disso, desde o crime, existem fatos que comprovam a ligação entre a NF Segurança e a Sociedade Rural do Oeste (SRO), entidade comandada pelo ruralista Alessandro Meneghel.

“A posição do Ministério Público dá a entender de modo indireto que o crime foi a ocupação da terra” Passados mais de dois anos, a transnacional suíça e a organização ruralista permanecem impunes. Embora a NF Segurança tenha sido contratada pela Syngenta, o Ministério Público não responsabilizou a corporação suíça pelo uso de armas, de acordo com o advogado da organização Terra de Direitos, Fernando Prioste. “A vinculação existe. Mas o Ministério Público entendeu que não é suficiente para penalizar a empresa, já que o contrato não recomendava o uso de armas. No entanto, a lacuna é que não está previsto que uma milí-

Biólogo e especialista em ciências ambientais, o professor e pesquisador Rodolfo Salm, da Universidade Federal do Pará, protestou, em entrevista para o Boletim IHU On-Line, contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte: “Independente de tudo o que falamos, estão tentando empurrar essa obra maldita garganta abaixo, contrariando a promessa feita pelo presidente Lula aos movimentos sociais”. Autoritarismo?

Valmir Mota de Oliveira, o Keno

cia privada pudesse matar quem estivesse na área”, critica. A denúncia do Ministério Público dividese entre o indiciamento dos pistoleiros e donos da NF Segurança e dos próprios camponeses da Via Campesina. Alessandro Meneghel é apontado no documento devido a um despejo ilegal anterior ao caso da Syngenta. Em situação pouco comum, os membros da Via Campesina são acusados da morte do segurança e do próprio Keno, “por dolo eventual”, caracterizado por assumir o risco, como se houvesse intenção de cometer crime, explica a Terra de Direitos. A tese, na avaliação da entidade, insere-se em um processo de criminalização do movimento. “A posição do Ministério Público dá a entender de modo indireto que o crime foi a ocupação da terra”, denuncia Prioste. Caso isso ocorra, “não serão as pessoas individualmente as condenadas, e sim o MST, que vai estar lá no banco dos réus. O militante da Via Campesina, Celso Barbosa, é indicado como autor material do assassinato do segurança, pelo fato de ser uma liderança do movimento na região”, afirma. Agora, o processo está na fase de recolhimento de provas, com testemunhas importantes a serem ouvidas em relação ao envolvimento da SRO e a atuação da NF Segurança no campo de experimentos da Syngenta. (PC e SE)

No dia 10, em Campinas (SP), dezenas de entidades e movimentos sociais realizaram uma sessão da Tribuna Popular contra o programa da prefeitura municipal denominado de “tolerância zero”, segundo o qual a Polícia Militar é orientada para reprimir, com violência, todas as “pessoas suspeitas” encontradas nas ruas da cidade, em especial jovens negros, moradores de rua, prostitutas e trabalhadores noturnos. É o terrorismo do poder público!

Crime bárbaro

No dia 9, dois coordenadores da Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia, Elcio Machado e Gilson Gonçalves, foram sequestrados por pistoleiros na estrada que liga o acampamento de Rio Alto à cidade de Buritis, torturados com crueldade e, em seguida, assassinados. As 45 famílias acampadas na área protestaram contra os crimes e denunciaram os ataques de bandos armados pelos latifundiários.

Oligopólios

Além de desprezar e distorcer os objetivos da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, realizada entre os dias 14 a 17 em Brasília, a grande imprensa neoliberal-burguesa escondeu que o ministro das Comunicações, Hélio Costa, foi muito vaiado na abertura do evento. Ele defende os interesses empresariais que controlam as concessões de rádio e TV no Brasil. Sem derrubar esses oligopólios, não haverá democratização da comunicação.


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brasil Gilberto Marques

Na zona leste de SP, um megadespejo a caminho MORADIA Construção do Parque das Várzeas do Tietê pode desalojar mais de 5 mil famílias; políticas compensatórias são consideradas insuficientes Fernão Lopes de São Paulo (SP)

UMA NOVA SÉRIE de despejos se anuncia no Estado de São Paulo: está para ser implantado o Parque das Várzeas do Tietê, também conhecido como parque linear do Tietê. Previsto para ter sua primeira fase inaugurada em 2012, ele se estenderá do bairro da Penha (zona leste da cidade de São Paulo) até as nascentes do rio, no município de Salesópolis. A obra terá como consequência a desapropriação de mais de 5 mil famílias, mas, até o momento, não há um plano de reassentamento da população afetada. Sua implantação, segundo o poder público, é parte de uma política compensatória para os danos ambientais causados pelo alargamento das pistas expressas da Marginal Tietê, juntamente com um esforço de embelezamento para a Copa do Mundo de 2014. Além disso, insere-se nas ditas políticas de despoluição do rio Tietê. Ao todo, estão envolvidas no projeto 13 prefeituras, além do governo estadual. Nas fases posteriores, as obras do parque se estenderão até chegar à região das nascentes. Conforme o trecho do empreendimento, uma faixa que varia entre 50 metros e 200 metros a partir das margens do rio será desapropriada. Não há estimativa da população afetada nos outros municípios, mas certamente o número de famílias a serem desapropriadas aumentará, já que, até o município de Mogi das Cruzes, o rio Tietê corre numa região densamente ocupada. Sem compensação Apesar dos impactos, à população não foi oferecida nenhuma política compensatória considerada razoável. Até o momento, poucas pessoas foram sequer informadas sobre o projeto; talvez nem imaginam que estão correndo um sério risco de perder suas casas. As que sabem tentam espalhar a notícia, apreensivas devido ao fato de os governos municipal e estadual não terem formulado até agora nenhum plano de reassentamento que seja adequado à realidade daquela população.

Representantes de movimentos dos bairros locais denunciam que a prefeitura levou em conta o cálculo de uma casa por família, enquanto cada casa abriga, na realidade, três ou até mais famílias Representantes de movimentos dos bairros locais denunciam que a prefeitura levou em conta o cálculo de uma casa por família, enquanto cada casa abriga, na realidade, três ou até mais famílias, frequentemente em sobrados. Teria sido oferecido o reassentamento de apenas 600, e num município mais distante (Itaquaquecetuba, mais de 10 km à frente do bairro paulistano de São Miguel Paulista). Também fazem parte das “alternativas” o “cheque-despejo” – parcela única no valor de R$

5 mil – e o “Vale aluguel”, uma bolsa de R$ 300 pelo período de um ano. Nenhuma das propostas chega perto de uma solução do problema. A população pobre, que já havia sido empurrada para a várzea do rio Tietê pelas difíceis condições de vida, paga com o que é para muitos seu único bem: a casa própria. Em muitas áreas existe um constante risco de inundação. “Se pudéssemos, não moraríamos dentro do rio!”, reclama uma moradora da Vila da Paz, em protesto ocorrido no dia 2 de dezembro, em frente à subprefeitura de São Miguel Paulista. Na ocasião, reuniram-se diversos movimentos de toda a várzea, com moradoras e moradores do Jardim Romano, Vila Aimoré, Jardim Helena, Chácara Três Meninas, Pantanal, entre outras comunidades, todas exigindo a abertura de diálogo com a prefeitura e o fim das hostilidades e atos de intimidação.

A população em si não é contra o projeto. Apoia pela questão ambiental e também devido à oposição à apropriação privada sistemática, que paulatinamente eliminou as áreas de lazer público Ameaças à população As ameaças estão cada vez mais comuns. Recentemente, realizou-se no Jardim Pantanal uma ação conjunta entre Guarda Civil Metropolitana, Polícia Militar e agentes da Operação Defesa das Águas, da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente – com a ajuda de tratores. A ação só não se deu porque houve resistência da população, que se articulou e repeliu pacificamente a tentativa de despejo. Outro fato relatado pelos moradores é a proibição da comercialização de material de construção na região: vários depósitos já foram multados; há também atuação da prefeitura no horário noturno, realizando confiscos arbitrários de tijolos, areia e pedras, sem nenhuma notificação e possibilidade de recuperar o material. A população em si não é contra o projeto. Apoia pela questão ambiental e também devido à oposição à apropriação privada sistemática, que paulatinamente eliminou as áreas de lazer público. Mas percebe que novamente é ela que terá que ceder o lugar. E que não irá usufruir os benefícios gerados, pois a obra não será para ela. Não por acaso os moradores da região não foram convidados para discutir o projeto, sendo tratados somente como obstáculos a serem removidos. Os protestos vão continuar e prometem se intensificar, pois, a cada dia, mais pessoas se inteiram da situação. Vários movimentos de distintos setores e orientações políticas estão se unindo para exigir soluções duradouras, protestar contra o caráter excludente do projeto atual e impedir que aconteça uma verdadeira “catástrofe social”: despejar milhares de famílias, sem reassentá-las, para a construção de um parque para a Copa de 2014.

Gilberto Kassab e José Serra olham maquete do parque linear Várzeas do Tietê

O ciclo da especulação Caso da construção do parque linear repete exemplos antigos de apropriação das áreas marginais dos rios Pinheiros e Tietê pelo capital de São Paulo (SP) Para muitos moradores da várzea do rio Tietê que podem ser afetados pela construção do parque linear, a obra nada mais é do que uma medida de higiene social, que mais uma vez irá atingir somente a população mais vulnerável. Tal processo ocorre com frequência nas grandes cidades e é visto por movimentos em defesa da moradia e por muitos urbanistas como sistemático. A lógica, segundo eles, funciona da seguinte maneira: depois de ser expulsa para áreas remotas, a população pobre ocupa tais lugares ou compra lotes de grileiros, que especulam com a implantação de grandes redes de loteamentos em áreas de risco ou longínquas. Depois que a terra já foi “esquentada” e provida de uma rede de infraestrutura mínima, uma nova onda de especulação imobiliária atinge o local, quando capitais maiores passam a ser atraídos. Com a ajuda dos governos, este expulsam a população anterior, que se vê novamente empurrada para mais longe, repetindo-se o processo. Recentemente, a prefeitura municipal de São Paulo distribuiu cartilhas nas escolas da rede pública sobre a chamada “Operação Defesa das Águas”. No material, fotos da ocupação residencial sobre a várzea são compostas com letras

garrafais formando a palavra “Crime”. Muitas das crianças que receberam os panfletos tinham até 8 ou 10 anos de idade e viam seus pais sendo chamados de criminosos por ocuparem tal área.

Para a população afetada, o que revela o caráter ilusório do “programa ambiental” que estaria por trás do projeto do parque linear é que nenhuma dessas grandes fábricas, vizinhas às casas, será removida ou afetada pelo projeto Interesses poderosos Poderia-se pensar, como afirma o tal panfleto, que são as pessoas que ocupam a várzea. Mas, observando a história da cidade de São Paulo, notamos que a ocupação dessas áreas se deu principalmente motivada pelos interesses do capi-

tal. Grandes obras de engenharia realizaram aterros imensos por toda Grande São Paulo e retificaram os cursos dos rios Tietê e Pinheiros – ou seja, deixaram-nos mais retos –, além de inúmeros outros rios e córregos terem sido canalizados – muitas vezes sob o discurso da diminuição das enchentes. Tais obras foram sempre acompanhadas por grande especulação imobiliária. Um episódio marcante é o da retificação do rio Pinheiros. A Light, companhia que operava os bondes elétricos, recebeu a incumbência de realizá-la a fim de regularizar o fluxo do rio, o que beneficiaria a hidrelétrica de Santana do Parnaíba. Como recompensa, receberia o direito de posse de toda área da várzea, considerada pelo nível da maior cheia observada. Toda a zona sujeita a inundações seria desapropriada e passada à empresa. Para aumentar seus lucros o máximo possível, durante o período de chuvas de 1929, a Light não hesitou em abrir as comportas das represas do rio, das quais era também operadora. A inundação provocada foi imensa e totalmente incompatível com o regime de chuvas observado para aquele ano. Essa história é contada com detalhes pela geógrafa Odette Seabra em sua tese de doutorado Os meandros dos rios nos meandros do poder. Divulgação

Ilustração do projeto: medida de higiene social

Interferência nos rios As pistas expressas das marginais do Pinheiros e do Tietê são os exemplos mais conhecidos de interferência direta nesses rios. Além deles, no entanto, existem muitas outras, como a implantação da antiga rodovia dos Trabalhadores (hoje, rodovia Ayrton Senna) no meio do recém-criado Parque Ecológico do Tietê, dos anos 1970. “O mau exemplo veio do governo, que nem bem fez o parque e já passou uma estrada em cima dele”, reclama um morador do bairro paulistano Itaim Paulista. Além disso, a estrada praticamente ladeia o rio tietê e, em vários trechos, está a menos de 50 metros de seu curso. Para enumerar obras recentes, vale destacar os casos da USP Leste (campus da universidade na zona leste de São Paulo) e do CEU (Centro Educacional Unificado) Três Pontes, ambas realizadas há menos de dez anos e que, por sua natureza e porte, praticamente avalizam qualquer tipo de ocupação na várzea. Entre os “usurpadores” da várzea estão também grandes clubes de futebol, como Palmeiras, Portuguesa e Corinthians. Anteriormente, tais campos eram públicos e utilizados pela população, mas o que era lazer de muita gente virou campo de treinamento privado. Mas, talvez, os maiores poluidores da ocupação das várzeas sejam as fábricas e as companhias de mineração, que acompanham o rio praticamente desde Salesópolis. Grandes indústrias, como Suzano-Report, Nitroquímica e Bauducco, têm suas fábricas instaladas a poucos metros do rio. A última, em Osasco, foi construída há poucos anos e está assoreando o rio de forma sistemática. Para a população afetada, o que revela o caráter ilusório do “programa ambiental” que estaria por trás do projeto do parque linear é que nenhuma dessas grandes fábricas, vizinhas às casas, será removida ou afetada pelo projeto. O mais provável é que acabem beneficiadas com a valorização da terra na região. (FL)


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Brasil defende interesses de transnacionais em Copenhague AQUECIMENTO GLOBAL Delegação brasileira na Conferência sobre o clima é, essencialmente, formada por corporações e suas entidades representativas Dafne Melo da Redação ASSOCIAÇÃO Brasileira de Celulose e Papel, Camargo Corrêa, Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Petrobras, Vale do Rio Doce e União da Indústria de Canade-açúcar (Unica). Não, esta não é a lista de alguns dos maiores agressores do meio ambiente no Brasil, mas algumas das empresas e organizações que estão presentes na conferência sobre o clima em Copenhague, na Dinamarca, integrando a delegação montada pelo governo brasileiro para decidir como o país irá contribuir para diminuir o aquecimento global. A lista ainda inclui Coca-Cola, Natura, Bradesco, Santander, Fiat e Votorantim. Para Maria Luísa Mendonça, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a formação da delegação brasileira, chefiada pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, não deixa dúvidas de que o Brasil foi à 15ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas, (COP-15) para negociar mais questões comerciais do que climáticas. “O governo quer aproveitar essa oportunidade para vender etanol e barragens. Não me espanta que tenha levado empresas e organizações interessadas em expandir os monocultivos”, pontua. Temístocles Neto, coordenador da Comissão Nacional de Meio Ambiente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) que participou das últimas sete conferências, afirma que é uma tradição dos governos brasileiros levar em sua delegação diversas empresas privadas e pouquíssimos representantes da sociedade civil, gerando um “desequilíbrio”.

“O governo quer aproveitar essa oportunidade para vender etanol e barragens. Não me espanta que tenha levado empresas e organizações interessadas em expandir os monocultivos” Metas e modelos Carlos Tautz, jornalista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), afirma que, de fato, não é novidade a delegação brasileira, em conferências desse tipo, ser formada por empresários e entidades a eles ligadas. “O protagonismo é dos empresários e eles dão a linha”, afirma. Outro fator que mostra que o meio ambiente não foi exatamente a maior preocupação do governo federal foi colocar Dilma Roussef para chefiar a delegação. “Ela não entende e não gosta do tema”, afirma

Tautz. Sobre a meta fixada pelo Brasil – reduzir entre 36,1% a 38,9% de suas emissões de gases do efeito estufa até 2020, com base nos dados de 1990, Tautz acredita que ela não é factível. “O governo brasileiro é estimulador e sócio do desmatamento, na medida em que financia, por vezes via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), as empresas agrícolas que usam os recursos naturais de forma predatória e que desmatam florestas”, alerta o pesquisador do Ibase. Maria Luísa reitera essa posição. “O monocultivo praticado por essas transnacionais é incompatível com um modelo de sustentabilidade”. Esta deve ser, portanto, a grande contradição enfrentada pelo governo federal no futuro próximo, seja quem for o ocupante da cadeira presidencial nos próximos anos: conciliar a meta de diminuição de emissão de gases com o atual modelo de desenvolvimento brasileiro.

Outro interesse do agronegócio em Copenhague é garantir mercado para o etanol brasileiro Projetos Prova de que conciliar esses interesses será difícil foi a posição dos ruralistas diante do anúncio da meta proposta pelo Brasil. A presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Kátia Abreu, chamou-a de “populismo infantil”. Dias depois, o governo cedeu e prometeu anistiar os fazendeiros que desmataram florestas, mas que, até 2012, passem a cumprir a lei. De acordo com a atual legislação brasileira, de 20 a 80% da mata nativa deve ser mantida. O valor total das multas perdoadas deve chegar a R$ 10 bilhões. Para efeitos comparativos, o governo concedeu, no Plano Safra 2008/ 2009, 13 bilhões à agricultura familiar, responsável por cerca de 70% dos alimentos produzidos no país. Outro interesse do agronegócio em Copenhague é garantir mercado para o etanol brasileiro. Dilma Roussef se reuniu com a delegação chefiada por ela, imprensa e convidados e falou sobre os projetos de desenvolvimento sustentável do Brasil, apresentando os agrocombustíveis como alternativa de energia limpa. “Monocultivo e destruição de floresta não pode ser visto como energia limpa”, rebate Maria Luísa. “Infelizmente, nos últimos anos, o principal papel do Itamaraty tem sido vender etanol”, lamenta. Outro ponto de pauta nas reuniões foi a construção de hidrelétricas, também consideradas pela presidenciável como uma matriz energética sustentável e ecologicamente limpa, ao contrário do que dizem especialistas e movimentos sociais.

Plenária da COP 15: Brasil busca negociar questões comerciais, e não climáticas

ONU se esforça para conseguir acordo Divisões entre ricos e pobres marcam os debates em Copenhague, tornando difíceis as negociações da Redação Até o fechamento desta edição (dia 15), o esboço da declaração final de Copenhague não tinha, ainda, metas definidas. “Vimos progressos significativos nos últimos dias, mas não são suficientes. Fica ainda um enorme terreno a cobrir se quisermos alcançar um acordo ambicioso”, afirmou Yvo de Boer, secretárioexecutivo da COP-15. A presidente da Cúpula, Connie Hedegaard, reiterou: “ainda há muitos obstáculos”. A verdade, entretanto, é que a dificuldade em se chegar a um acordo já era esperada por muitos, o que, mesmo antes de seu início, já deu à conferência certo clima de fracasso e de faz-deconta. “É muito provável que essa conferência fique

bem aquém do que poderia ser”, analisa Carlos Tautz, jornalista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Para Maria Luísa Mendonça, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, não se viu na COP-15 nenhuma proposta séria. “No geral, Europa e EUA querem manter seus estilos de vida. Ninguém fala em diminuir demanda de produção de energia, mas em como suprir o mesmo nível de demanda de outras formas. O problema é que nenhuma fonte alternativa terá condições de suprir a atual demanda”, aponta. De acordo com Temístocles Neto, coordenador da Comissão Nacional de Meio Ambiente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), dificilmente sairá o acordo “ambicioso e justo” esperado pela própria organizadora do evento, a Organização das Nações Unidas (ONU). “Isso era esperado, basta ver o grau de cumprimento do Protocolo de Kyoto, que já era bastante tímido. Ele se encerra em 2012 e a maioria dos países não vai alcançar a meta”. Ricos e pobres O fosso existente entre as economias centrais e países

“No geral, Europa e EUA querem manter seus estilos de vida. Ninguém fala em diminuir demanda de produção de energia, mas em como suprir o mesmo nível de demanda de outras formas” pobres deu o tom das discussões na conferência. Estes últimos acusam Estados Unidos e Europa de não assumirem a responsabilidade histórica que possuem quando o assunto é aquecimento global. Os EUA, ao longo da história, acumula 328 milhões de toneladas de gás carbônico jogados na atmosfera. A Europa, 301 milhões. A China acumula 92 milhões, a Índia chega a 26 milhões e o Brasil, a 9 milhões. No dia 14, o G-77, formado por países pobres, se retirou das reuniões de negociação acusando os as potências de quererem abandonar o Protocolo de Kyoto e empurrar a responsabilidade às nações pobres. Também criticaram a forma como são encaminhadas as propostas nas reuniões.

Os chamados países em desenvolvimento – como Brasil, Índia, China e África do Sul – também têm sido alvo de críticas, sobretudo a China, a maior emissora de gases de efeito estufa no mundo. “Essa responsabilidade dos países ricos não é nada nova, já foi acordada na Eco-92, que aconteceu no Rio de Janeiro. Algumas nações pobres, como as africanas, precisam de saneamento básico, transporte, energia, o que envolve obras que emitem gases, por exemplo. Essas regiões não podem deixar de se desenvolver”, argumenta Temístocles. “O que resolveria o problema é se as elites – tanto da Europa e EUA como de países como o Brasil – alterassem seu padrão de consumo, que é insustentável”, completa. (DM)

Milhares protestam em Copenhague Reprodução

Movimentos realizam ato unificado massivo; polícia dinamarquesa reprime com prisões da Redação Do lado de fora do Bella Center, onde acontece a COP-15, a palavra de ordem é: “quem pode conter o aquecimento global é o povo, não os políticos”. Manifestações ocorrem diariamente nas ruas da cidade, realizadas por diferentes organizações. No dia 12, uma manifestação unitária reuniu 100 mil pessoas nas ruas, de acordo com os organizadores – a polícia fala em 30 mil. Estiveram presentes 538 organizações de 68 países. A marcha saiu do Parlamento dinamarquês e foi para o centro de Copenhague. A imprensa corporativa de todo mundo, como é esperado, não deu muito destaque ao protesto, limitando-se a comentar as prisões feitas pela polícia, que fez cerca de 1.300 detenções. De acordo com o Centro de Mídia Independente, os policiais prenderam os manifestantes com algemas e os deixaram sentados no chão

Policiais agridem manifestantes: ação de “caráter preventivo”

por horas – o clima na capital dinamarquesa tem ficado próximo a 0ºC. Segundo os manifestantes, todas as prisões foram feitas sem motivo, aleatoriamente, o que, na linguagem da polícia, foi qualificado como de “caráter preventivo”. Quase todos – com exceção de 20 militantes – foram soltos sem acusações, mas boa parte foi deportada aos seus países de origem. De acordo com os organizadores, um dos pontos positivos da marcha e das articulações que estão ocorrendo no evento paralelo – o Klimaforum – é conseguir vincular as pautas ambientais com as sociais, unindo organizações que atuam

nessas duas frentes na luta por um outro mundo. Agricultura Um exemplo é a questão do uso da terra. Além do direito a esse recurso natural ser uma demanda social de milhões de sem-terra e povos originários de todo o mundo, o setor agropecuário sob o atual modelo agrícola mundial é um dos que mais emitem gases do efeito estufa no mundo. Dia 15, diversos movimentos foram às ruas protestar contra tal modelo e sugerir outra forma de se relacionar com a terra e produzir alimentos. “Mudança do modelo de produção de alimentos, não mudança climática” foi o lema do ato.

De acordo com Flip Vonk, ativista da Ação por Justiça Climática (CJA, sigla em inglês), também agricultor em uma fazenda de alimentos orgânicos, a agricultura sustentável é a melhor maneira de se combater, ao mesmo tempo, o aquecimento global, a fome e a má-nutrição. “Produzir alimentos localmente e de forma sustentável demanda menos energia, nos livra da importação de alimentos e ainda melhora a biodiversidade”, resume. (DM, com informações da Via Campesina – www.viacampesina.org – e Centro de Mídia Independente Dinamarca – http://indymedia.dk)


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áfrica

Um mês em greve de fome Reprodução

RESISTÊNCIA Proibida de voltar a seu país, a ativista do Saara Ocidental Aminetu Haidar segue em jejum contra os governos de Marrocos e Espanha da Redação NO DIA 15, a ativista do Saara Ocidental Aminetu Haidar completou 30 dias de greve de fome no aeroporto de Lanzarote, nas Ilhas Canárias, na

Espanha. Como o Brasil de Fato relatou em sua edição 352, ela protesta pelo direito de voltar para casa. Em meados de novembro, Aminetu, de 42 anos, foi impedida de retornar a El Aaiún, a capital de seu país, pelo governo de Marrocos, que ocupa o Saara Ocidental há 34 anos. Mandada para Lanzarote sem passaporte e contra sua vontade, a ativista foi proibida pela Espanha de tentar voltar, justamente por estar sem o documento. Sem uma solução à vista, Aminetu iniciou o jejum. Desde então, a militante independentista saarauí (do Saara Ocidental) e seus apoiadores em todo o mundo acusam a monarquia marroquina de não querer resolver o impasse e o governo espanhol de não

pressionar a nação do norte africano para tal. Os dois países mantêm fortes vínculos econômicos, e usufruem, inclusive, as riquezas saarauís – principalmente fosfato e pesca. Aminetu, conhecida como a “Mahatma Gandhi” do Saara Ocidental, tem dois filhos (de 13 e 15 anos) que a esperam em El Aaiún. Ela já realizou uma greve de fome antes, que durou 45 dias. Foi em 2005, em uma das duas vezes em que esteve detida nas prisões marroquinas. Esse jejum a deixou com sérias sequelas físicas, o que torna ainda mais perigosa a atual greve de fome. Confira, abaixo, um testemunho sobre a rotina de Aminetu Haidar no aeroporto de Lanzarote.

A ativista Aminetu Haidar, conhecida como a “Mahatma Gandhi” do Saara Ocidental

Dez dias no aeroporto com Aminetu Haidar Qual será o motivo para que ninguém faça nada, já que é algo tão simples, para que uma mulher volte para sua casa e seus filhos? Oscar Galvan Felez/CC

Carmen Giner Briz Domingo, 29 de novembro, dia número 14 da greve de fome. Aminetu desmaia na reunião com Agustín Santos, chefe de gabinete do chanceler espanhol, Miguel Ángel Moratinos. Levam-na ao cômodo onde normalmente descansa. Não consegue sair do quarto de novo. O lugar onde Aminetu se instala durante os dias no aeroporto fica no segundo andar, no setor de desembarque do terminal 1, ao lado de uns bancos, da mesa para recolher as assinaturas em seu apoio e de um colchonete onde ela se senta para falar ou se deita quando não consegue mais. Além disso, seus amigos põem alguns carrinhos para protegêla dos turistas que vêm ofuscados pela luz exterior e que, cegados, podem vir a pisá-la, e de todas as pessoas que tentam se aproximar por distintas razões. Esses carrinhos também servem para pendurar faixas explicativas de sua situação. Aminetu está dormindo em um pequeno cômodo pertencente à garagem dos ônibus do aeroporto, junto a uma pessoa que a acompanha todas as noites. É um quartinho sem luz, sem ventilação, sem janelas.

Todos os dias, após acordar, ela precisa percorrer um corredor, entre os ônibus, na rua, sob intempéries, para posteriormente entrar no aeroporto pelas garagens de saída, pegar o elevador e chegar ao lugar mencionado em uma cadeira de rodas No cômodo ao lado, junto às máquinas de café, sanduíches e sucos, dormem entre 15 e 20 pessoas, amigos e colaboradores de Aminetu. Os que não cabem dormem na rua. As condições e esse amontoamento são parecidos aos da Cadeia Negra de El Aaiún. Todos os dias, após acordar, ela precisa percorrer um corredor, entre os ônibus, na rua, à intempéries, para posteriormente entrar no aeroporto pelas garagens de saída, pegar o elevador e chegar ao lugar mencionado em uma cadeira de rodas.

Na Espanha, manifestantes apoiam Aminetu e pedem a independência do Saara Ocidental

Sofrimento Segunda, dia 30, pela manhã: levanta-se o acampamento, todo mundo recolhe mantas, colchonetes, malas e demais utensílios. Muitos sobem com seus computadores e outros ficam dando orientações. Aminetu se levanta e sobe com sua cadeira de rodas. Atrás, vai outro carrinho com seu colchonete e suas mantas. No elevador, me vê, e sua cara se ilumina, como sempre acontece quando sorri. Tenta se inclinar para beijar-me, mas a dor nos ossos que sente na altura da nuca a impede. Faz um gesto de dor, que tenta dissimular com um sorriso. Mesmo assim, me dou conta de seu sofrimento e esforço. Pergunto como está, pondo-me de cócoras a seu lado, e ela, como sempre, diz: “bem”. Senta em seu lugar e as pessoas vão chegando para vê-la. Gente importante, parlamentares, senadores, políticos, pessoas da cultura, da arte, delegações de distintas comunidades pertencentes a distintas associações de amigos do povo saarauí... também turistas curiosos que ouviram falar da história nos meios de comunicação e tentam se enfiar entre a multidão e a imprensa. Ela recebe todos, e para todos tem palavras de carinho, compreensão. Os escuta até o esgotamento. Quando os visitantes vão embora, tenta descansar entre o bulício das pessoas, os carrinhos barulhentos, os motores dos aviões e os flashes das máquinas fotográficas que machucam sua vista. Às vezes penso: por que ninguém lhe diz que deixe a greve de fome, que tanto sofrimento lhe está causando? Outras vezes, penso: qual será o motivo

O governo espanhol pressiona Aminetu. Não entendem por que ela não aceita a nacionalidade espanhola. Parece que lhes custa entender que ela se sente orgulhosa de ser saarauí, que quer ter o passaporte que lhe permita voltar para sua casa, para sua terra, com os seus para que ninguém faça nada, já que é algo tão simples, para que uma mulher volte para sua casa e seus filhos? Têm que existir muita corrupção e suborno para que deixem morrer essa mulher. Pouco a pouco, percebo sua forte convicção e a dor que lhe produz o fato de sua decisão não ser respeitada. Acho que todos nos encontramos entre a cruz e a espada. Por um lado, o carinho que temos por ela, e o fato de querermos que esteja bem e que não lhe aconteça nada; por outro, nossa obrigação em respeitá-la. Solidariedade Não temos televisão, e poucos computadores têm internet. Não sabemos muito bem o que está saindo do lado de fora, mas acho que ninguém se dá conta de que ela só consegue estar um par de horas atendendo as pessoas, que o resto é para que descanse e se recomponha. Um dos dias em que vi Aminetu mais animada é quando veio o escritor português José Saramago, e também os dias em que lhe acompanhou Marselha, da Fundação Robert F. Kennedy. A cada dia tem menos forças para estar no andar de cima, e vai reduzindo suas horas por lá. A cada dia tem

mais problemas para conseguir dormir. Estamos divididos: uns embaixo com ela, outros em cima, com os computadores. Na sexta-feira, 4 de dezembro, quando se cumprem 19 dias de greve de fome, por volta das 6 da tarde, alguém me diz que Aminetu provavelmente vai embora a seu país em vinte minutos. As caras de todos se iluminam e todo mundo começa a se mover de maneira nervosa. Uma rádio me entrevista pelo telefone. É quase impossível para mim manter a conversa. Pouco a pouco a notícia vai se estendendo e cada vez há mais pessoas e meios de comunicação. Em seguida, chega uma ambulância e, pouco depois, sob uma forte aclamação, aparece Aminetu, que vai ao banheiro e depois é introduzida na ambulância. Com as mãos, nos lança beijos e nos diz adeus. Assim que a ambulância parte, estoura um grande júbilo. Os saarauís pulam, gritam, enquanto os espanhóis choram. Depois, todos subimos ao aeroporto para esperar mais notícias. Em seguida, começam rumores de que o avião não vai decolar, de que tudo é uma fraude, um teatro orquestrado pela Espanha para que a opinião pública acre-

dite que eles fazem o que está a seu alcance. A única coisa que o governo é capaz de fazer é rir de uma mulher doente que leva 20 dias em greve de fome, a qual estão dispostos a deixar morrer. O Marrocos confirma: não chegaram a nenhum acordo, não houve reuniões. Espoliação Nesse dia, Aminetu não volta mais a subir para o aeroporto. Passa uma noite ruim. O médico, pela manhã, me diz a palavra técnica que não sou capaz de recordar, mas se trata de uma taquicardia, produzida pelo grande esforço de entrar na ambulância, subir e descer andando no avião, e a tensão emocional. Ela chegou a ligar para seus filhos e dizer-lhes que estava voltando. E outro dos muitos desatinos de nosso governo: ela tem um salvo-conduto para sair, mas, ao entrar depois dessa viagem frustrada, a guarda civil impediu, no começo, sua entrada, por voltar indocumentada. Passa todo o dia em um quartinho que lhe indicaram. O governo espanhol pressiona Aminetu. Não entendem por que ela não aceita a nacionalidade espanhola. Parece que lhes custa entender que ela se sente orgulhosa de ser saarauí, que quer ter o passaporte que lhe permita voltar para sua casa, para sua terra, com os seus. Eu me pergunto por que não dão a todos os membros de nosso governo um passaporte somaliano, depois de metêlos em um avião à força, para ver se assim começam a entender. Mas eles entendem perfeitamente. O que acontece é que há muitos milhões em jogo. Recordemos que somente dos

fosfatos, o Marrocos expolia o povo saarauí em 1,5 bilhão de euros a cada ano. Em toda a Espanha, na minha cidade Madrid, cada dia há uma manifestação. A população se mobilizou. Nos meios de comunicação, é a notícia mais importante. Os jornais ocupam até suas cinco primeiras páginas falando de Aminetu, mas, para nosso governo, não é suficiente, o povo espanhol não lhe importa. Pressões É o dia 21 de greve de fome, já anoitecido, e estamos várias pessoas perto da porta de seu cômodo quando chega um grupo de sete ou oito pessoas em grande velocidade. Ao ver que vêm direto ao quarto de Aminetu, me aproximo para perguntar o que querem, e dizer a eles que não podem entrar. Mas não consigo terminar a frase. Sem parar, me dizem que é o juiz e que vai entrar. Tento chamar o Edi, a pessoa que está dentro com Aminetu, mas não dá tempo. Eles entram e expulsam Edi do quarto, fazendo com que a pobre Aminetu fique sozinha com esses oito indivíduos, que entram e fecham a porta. Ao saírem os indivíduos, Aminetu declara que a trataram pior que no Marrocos, que a acossaram psicologicamente. O câmera da plataforma se põe a gravar e o juiz e os policiais querem tirar dele a câmera e a fita. Edi chama todos os meios de comunicação para que estes gravem a cena. A tensão é máxima, o juiz vai embora, mas continua no aeroporto reunido com o médico de Aminetu. Os meios continuam na expectativa, e vemos quando, nas dependências do aeroporto contíguas à garagem em que estamos, chegam os furgões da polícia nacional e da guarda civil. Chegam em torno de 20 ou 30 furgões. O médico volta por volta das 2 da manhã e, posteriormente, a polícia se vai. Ao amanhecer, Aminetu declara que desde esse momento prescinde de seu médico pessoal, já que o juiz o obrigou a dar seu histórico médico. Ela quer liberar seu médico da pressão a que se vê submetido, assim como preservar sua intimidade. O final desta história inconclusa também depende de nós, da capacidade que tenhamos de quebrar nossa rotina, nossa forma de viver, para lutar pela dela, para que se faça justiça. Todos, desde onde possamos e como possamos, temos que lutar para que esse possível final se converta em um princípio. Carmen Giner Briz é ativista do Western Sahara Resource Watch (WSRW, Observatório dos Recursos do Saara Ocidental) da Espanha Tradução: Igor Ojeda


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Esquerda encurralada no Chile ELEIÇÕES Direita é favorita a assumir presidência da República, enquanto centro-esquerda faz apelo por voto útil Achille Lollo de Santiago (Chile) MENOS DE 30% dos eleitores chilenos votaram, no dia 13, em Eduardo Frei, da Concertación, para a presidência do país. O resultado final só sairá após disputa com o candidato da direita Sebastián Piñera (44% dos votos), num segundo turno a ser realizado no dia 17 de janeiro de 2010, mas o reduzido apoio recebido pelo bloco partidário de centro-esquerda liderado pela atual presidente Michelle Bachelet foi o elemento que faltava para confirmar o desgaste político e emocional da Concertación. Já o desinteresse e a apatia dos jovens pela política atingiu, sobretudo, Marco Enriquez-Ominami (terceiro colocado com 20% dos votos), o candidato independente que havia abandonado o Partido Socialista (PS) para ser a alternativa juvenil. A única nota positiva para a esquerda foi a vitória da frente “Juntos Podemos Mais”. Os 6% de preferência obtidos permitem a seus candidatos legislativos bem votados aceder ao Parlamento. Assim, após 36 anos, os comunistas Guillerme Teller, Lautaro Carmona e Hugo Gutiérrez quebraram o isolamento e a exclusão da legislação eleitoral do ditador Augusto Pinochet (19731990) para voltarem a se sentar no Parlamento. A conquista dos comunistas vai ajudar o democrata cristão Eduardo Frei, que não tem outra alternativa senão

implorar aos eleitores comunistas e aos que votaram em Enriquez-Ominami a se juntarem no “voto útil contra a volta da direita”. Para desmontar essa campanha, os editorialistas da TV Chilevision (de propriedade do candidato Sebastian Piñera) e do diário El Mercúrio começaram a dividir o eleitorado moderado da Democracia Cristã ao dramatizarem a volta dos comunistas ao Parlamento ao lado dos socialistas. De fato, o antigo estereótipo anticomunista começou a ser veiculado com um certo sucesso na mídia chilena desde o momento em que a tendência do PS, Socialistas Allendistas, e a Izquerda Cristiana se juntaram aos comunistas para sustentar um bloco eleitoral com a Concertación em 60 prefeituras. Consequentemente, em todas essas prefeituras o bloco esquerda/ centro-esquerda ganhou com 44,41%, derrotando a Coalición por el Cambio, de Piñera, que já cantava vitória após ter alcançado 43,42%. Esse resultado vai permitir ao bloco partidário da presidente Bachelet manter a maioria mais um no Parlamento (61 deputados) e no Senado (20 senadores). Enriquez-Ominami Max Marambio, diretor da campanha eleitoral de Enriquez-Ominami, tinha por objetivo criar um candidato midiático para todos os gostos. Assim, misturou casamento gay com privatizações, apelos ecológicos com elementos da economia neoliberal. Elaborou uma campanha que fa-

Reprodução

Chilenos votam em Maipú, uma das 32 comunas que compõem a cidade de Santiago do Chile

Somente uma milagrosa reviravolta da Concertación ou um grave escândalo podem tirar de Piñera a vitória no segundo turno zia questão de negar as ideologias da esquerda, enquanto manifestava uma crítica “light” à sociedade de mercado. O resultado foi bom para Enriquez-Ominami, cuja candidatura recebeu 20% do eleitorado, mas foi desastroso para os 79 candidatos a deputado e senador do novo bloco partidário Nova Maioria para o Chile, que nas principais 60 prefeituras do país não obteve mais que 4,55%.

Para a derrota da candidatura a presidente do “Compañero Marquito” foi determinante a ausência dos sufrágios dos jovens de baixa renda (mais de 1 milhão) que não se inscreveram nas 367 circunscrições eleitorais. Segundo analistas, a derrota do bloco Nova Maioria para o Chile indica que o eleitorado de Enriquez-Ominami é demasiado heterogêneo, a ponto de receber o voto da juven-

tude endinheirada de direita, insatisfeita com o moralismo pinochetista, mas que nunca votará no segundo turno por um candidato como Eduardo Frei, apoiado pelos comunistas. De fato, todos os analistas são unânimes em afirmar que pelo menos 30% dos votos do “Compañero Marquito” devem emigrar para Piñera, uma vez que o próprio Enriquez-Ominami “liberou” seu eleitorado a votar em quem bem entenda, uma dádiva para o candidato da direita. Direita ou Concertación? Ainda é cedo para dizer que a direita vai voltar a ocupar o palácio de La Moneda. No momento, o potencial eleitoral do blo-

co de Piñera não passa dos 44%. Por isso, é de fundamental importância a transferência para a Concertación dos votos dos eleitores conservadores da Democracia Cristã; bem como dos indecisos e moderados que votaram para Enriquez-Ominami. Por sua parte, vários ministros da presidente Bachelet deverão integrar a campanha eleitoral de Eduardo Frei para segurar a fuga dos sufrágios democrata-cristãos (assustados com o sucesso dos comunistas) e, ao mesmo tempo, fazer uma campanha de esquerda para chamar 70% dos eleitores do “Compañero Marquito” para o “voto útil contra a volta da direta ao La Moneda”. Uma tarefa difícil, senão impossível, visto que, apesar dos 80% de popularidade da presidente Bachelet, o governo da Concertación sofreu muitas críticas em função do “crescimento negativo” neste ano eleitoral. Uma realidade que é diariamente explorada pela TV Chilevision e demais jornais para impor o populismo de Piñera, que, por exemplo, caracterizou sua campanha eleitoral com a promessa de criar 1 milhão de novos postos de trabalho. E foi assim que o bloco de direita ganhou o apoio de muitos trabalhadores que, antigamente, votavam para os socialistas. É evidente que o monopólio midiático exercido por TV Chilevision e os jornais El Mercúrio e La Nacion tornam as coisas muito mais fáceis para Piñera. Em função disso tudo, para analistas, somente uma milagrosa reviravolta da Concertación ou um grave escândalo podem tirar de Piñera a vitória no segundo turno.


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américa latina

Onde os mortos não têm nome Reprodução

COLÔMBIA É preciso esperar dias por um barco, pegar uma estrada abandonada ou voar em aviões sucateados para chegar a La Macarena, onde o Exército colombiano enterra segredos e, talvez, crimes de guerra Simone Bruno de La Macarena (Colômbia) FAZIAM TRÊS ANOS que Diana não visitava o filho. A viagem de seu povoado até a cidade de La Macarena, na Colômbia, é longa e cara. “É preciso pegar um barco que só atravessa o rio uma vez por semana e juntar dinheiro durante vários dias para poder pagar.” Os camponeses viajam apenas no fim de semana, para vender produtos agrícolas no mercado, visitar a igreja, realizar tarefas burocráticas e comprar insumos ou ferramentas. La Macarena fica na região do Meta, nas planícies do sudoeste colombiano, e foi o coração da “zona de distensão”, uma área de 42 mil quilômetros quadrados (pouco mais que o tamanho da Suíça) que o governo de Andrés Pastrana (1998-2002) desmilitarizou e concedeu à guerrilha das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) no final de 1998 para promover um processo de paz que durou até 2002. A paz nunca chegou. Em vez dela, vieram o Exército, a “segurança democrática”, o presidente Álvaro Uribe e o dinheiro do Plano Colômbia – ou seja, veio a guerra. La Macarena se tornou cenário de alguns dos combates mais intensos e coração da Fudra (força de ação rápida) do Exército colombiano. A única maneira de chegar a La Macarena partindo da capital mais próxima, Villavicencio, é em aviões de carga. São velhos DC-3 que, depois de terem revolucionado a aviação civil nos anos 1930 e participado da Segunda Guerra Mundial, foram aposentados ou são usados para o transporte de bens e passageiros que se acomodam nos espaços vazios. Existe também uma estrada abandonada que liga os dois municípios, mas o caminho, além de longo, é perigoso. É fácil encontrar grupos armados que ainda controlam boa parte das zonas rurais do Meta. Assim que o avião aterrissa, Bogotá e as grandes cidades modernas, centros de negócios e turismo, tornam-se uma lembrança remota. Ali, a terra fértil parece pintada de vermelho, e um grande cartaz mostra o rosto de um militar com pintura de guerra, tendo atrás alguns colegas com armas grandes e uma frase: “Somos gente normal que faz um trabalho excepcional”. O clima é pesado. Não apenas o sol é intenso, como também se respira o ar dos vilarejos colombianos que viveram e viram a guerra com os próprios olhos. O coveiro de olhos azuis

O único asfalto da cidade cobre uma parte da pista de pouso. O restante é o vermelho da terra indicando as ruas, que são poucas. O cenário lembra as cidadezinhas dos filmes de velho oeste, com uma rua principal e o casario que se dissipa duas ou três

quadras adentro. A base da Fudra domina a paisagem na colina, abrigando 20 mil militares, cinco brigadas móveis e vários helicópteros de guerra Black Hawk e MI-17. Os habitantes da comunidade são apenas 3.500, seis vezes menos que os militares. Jesús Hernández, conhecido como Don Chucho, tem as mãos parecidas com as de Diana, com terra sob as unhas. Mas ele não é um camponês: é o coveiro de La Macarena. Diana se lembra de Chucho, embora o tenha visto apenas uma vez, há três anos, quando ele enterrou seu filho. Mas não é fácil esquecê-lo, talvez por causa dos olhos azuis e pequenos, ou pelo aparente desinteresse com que fala de seu trabalho, ou ainda porque, enquanto fala das centenas de corpos dos quais fez autópsia, deixa imaginar as dimensões do cemitério dos chamados NN (não-identificados) de La Macarena.

“Em 2002, quando o Exército voltou, me pediram para cavar algumas fossas. Desde então, nunca mais parei” Lei do silêncio

Só uma cerca de arame separa o cemitério da base. A parte mais próxima dos militares é diferente: não há estruturas de pedra como no resto do cemitério, nem flores ou fotos dos falecidos. De longe, parece um mar de cruzes brancas, cada uma com um número gravado. “Acho que são uns 700 guerrilheiros que enterrei aqui”, conta Chucho, apontando para as cruzes brancas. “Em 2002, quando o Exército voltou, me pediram para cavar algumas fossas. Desde então, nunca mais parei”. Na cidade, é muito difícil encontrar alguém disposto a falar do cemitério ou de quem está enterrado. “Pode estar cheio de ‘falsos positivos’”, conta um morador que não quer ser identificado, referindo-se aos civis assassinados e apresentados como guerrilheiros mortos em combate. “Os militares trazem os corpos de noite de todos os municípios das redondezas e dizem que enterram guerrilheiros, mas ninguém sabe quem são e ninguém os reivindica”. Tantos NN – que, segundo Chucho, podem ser quase 2 mil – chamaram a atenção da unidade de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral da Nação, que investiga os casos dos “falsos positivos”, mas ainda não pôde organizar uma comissão para visitar o cemitério. Segundo um funcionário do governo local, La Macarena é provavelmente a cidade que abriga o maior número de NN enterrados em toda a Colômbia. (publicado originalmente no Opera Mundi) Reprodução

Operação militar em La Macarena

Exército colombiano em ação: a “segurança democrática” de Uribe

Como transformar um inocente em estatística de guerra Reprodução

Desde 2002, 2 mil civis teriam sido vestidos com trajes camuflados e apresentados como guerrilheiros mortos em combate de La Macarena (Colômbia) O escândalo dos “falsos positivos” – como são chamados os civis assassinados por militares e contabilizados como guerrilheiros mortos em combate – é o maior da história do Exército colombiano. Desde 2002, foram 2 mil casos. Corpos de civis vestidos com trajes camuflados são apresentados como inimigos mortos em combate, para que os militares obtenham uma série de benefícios e recompensas do Estado. “Cada corpo tem seus trajes de guerrilha e as armas”, conta Chucho, o coveiro do cemitério de La Macarena. “Faço a autópsia e enterro cada um com suas coisas. Se eles têm um codinome, escrevo na cruz. Se não, deixo só o número do protocolo do caso da promotoria.” Quando se pergunta sobre os “falsos positivos”, Chucho nega e fica na defensiva. “Para mim, são apenas NN (nãoidentificados). Em tantos anos, aprendi a reconhecer os guerrilheiros. Eles têm o cheiro da selva, a cor da selva. Aqui, o que o Exército me traz são guerrilheiros mortos em combate”. Mas Diana não concorda. “Meu filho José Antonio está enterrado aqui”, garante, depositando uma flor sobre uma cruz que diz: “Registro 31, 21 de março de 2006”. “Ele estava com 24 anos quando o Exército o matou. Era um camponês, não entendia nada de armas, nunca as usou, nunca se meteu com a guerrilha, era um rapaz trabalhador. Quando ele foi ‘desaparecido’, houve um desembarque de militares no povoado do alto Cachicamo, onde moro. Ele estava com meu vizinho, que se escondeu em

Soldados em La Macarena: civis apresentados com trajes camuflados

“Fomos até a promotoria, onde me mostraram as fotos dos últimos guerrilheiros enterrados como NN, e então eu vi e o reconheci” casa. Quando os soldados foram embora, dois dias depois, o vizinho foi procurar José Antonio, mas não o encontrou. A casa estava toda revirada, começaram a procurá-lo por toda parte. Perto de um posto militar, encontraram algumas coisas de meu filho meio queimadas. Foi aí que decidiram me avisar. Fomos até a promotoria, onde me mostraram as fotos dos últimos guerrilheiros enterrados como NN, e então eu vi e o reconheci. Puseram nele um fuzil, roupa militar e cartuchos. Deram um tiro atrás da cabeça e outro no tornozelo, que estourou seus ossos. É o pior, o pior que pode acontecer com uma mãe”. “Guerra limpa”

Tanto movimento da reportagem do Opera Mundi no cemitério deve ter chamado a atenção dos militares da Fudra (força de ação rápida do Exército colombiano), pois um major ligou para o celular de Chucho e, pouco depois, um coronel acompanhado por outros militares apareceu e nos convidou para um encontro do general com os

moradores, para decidir sobre a construção de uma estrada pavimentada. “Desde quando cheguei”, comenta o general Pérez, “não escutei queixas sobre o tema dos ‘falsos positivos’. Este não é nosso cemitério, apenas estamos perto. Quando ocorrem baixas, os corpos são recolhidos pelo CTI [Corpo de Investigação Técnica] da promotoria e eles mesmos levam para o cemitério. Nessa área, felizmente, a guerra é muito limpa, força contra força. Há mortos, mas só em combates regulares. Combatemos diariamente contra o bloco oriental das Farc e nossa missão é eliminá-lo”. Pérez foi diplomata em Roma até poucos meses atrás, quando foi convocado para comandar a Fudra. Ele representa a linha do diálogo do Exército colombiano, a dos comandantes atentos ao tema dos direitos humanos, que entenderam, por exemplo, que agora o país está sujeito à intervenção do Tribunal Penal Internacional e que o promotor Luis Moreno Ocampo estuda bem de perto a questão dos “falsos positivos”.

Confiança perdida

La Macarena é a parte do país onde se experimenta o que o governo chama de “consolidação integral”. Assim que são recuperadas as zonas das mãos dos grupos armados, busca-se consolidar a presença do Estado colombiano e de todas as suas instituições. As plantações de coca são erradicadas, a economia legal é fomentada e o Exército começa a cumprir funções cívicas, tentando conquistar a confiança da população, perdida nos anos de combate. Antes de voltar para sua cidade, Diana se encontra com Héctor Torres, um defensor dos direitos humanos que tem percorrido todo o Meta a fim de acompanhar as vítimas e convencê-las a denunciar os crimes. “O medo ainda é grande”, conta ele. “Há dezenas de pessoas desaparecidas nos 153 vilarejos deste município, ou centenas, se incluirmos os outros municípios. Muitos sabem que seus parentes estão enterrados aqui, mas não falam por medo. É verdade que os combates são intensos nessa zona, mas tampouco podemos nos esquecer de todos esses desaparecidos. Enquanto não ganharmos a batalha contra o medo e a promotoria não começar a escavar este cemitério, os segredos continuarão enterrados com os NN”. (SB)


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