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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 7 • Número 356

São Paulo, de 24 a 30 de dezembro de 2009

R$ 2,50 www.brasildefato.com.br WWF France/CC

A “Gandhi” do Saara Ocidental encerra jejum e volta para casa Após 32 dias de greve de fome, a ativista saaraui Aminetu Haidar pôde finalmente voltar para casa. Em novembro, ao retornar de uma viagem ao seu país, ocupado pelo Marrocos, foi expulsa pelas autoridades marroquinas para as Ilhas Canárias, na Espanha, que não permitiu seu retorno, provocando o início do jejum. O acordo para que Aminetu voltasse ao Saara Ocidental foi costurado entre Espanha, França e Marrocos, o principal beneficiado. Pág. 12

Com pobreza e corrupção, Arruda se mantém no DF O escândalo que chamou a atenção do país no Distrito Federal esconde, na realidade, a estrutura do Estado que elegeu o governador José Roberto Arruda (ex-DEM), substituto de Joaquim Roriz (PMDB). Com base na pobreza da população das cidades-satélite e na confusa distribuição de recursos devido à falta de autonomia da região periférica, os governantes do DF têm mantido suas popularidades por meio da prática do assistencialismo e de medidas eleitoreiras. Pág. 3

Manifestação em Copenhague, na Dinamarca, contra as decisões tomadas pelos líderes mundiais na COP-15

Países ricos provocam fracasso da conferência em Copenhague Ao invés de um consenso em torno de medidas contra o aquecimento global, a única unanimidade que parece ter saído da COP-15 é a de que a reunião foi um fracasso. Após duas semanas de discussões, cerca de 25 países – dentre eles os da União Europeia, EUA, China, Índia e Brasil – redigiram um acordo bastante rebaixado. Os países da Alternativa Bolivariana para

as Américas (Alba) rejeitaram o documento, qualificado pelo governo venezuelano como um golpe contra a ONU. No Fórum paralelo realizado por movimentos sociais de todo o mundo, cresceu a percepção de que, para não mudar o clima, é necessário mudar o sistema, e que somente mobilizações podem forçar os governos a encarar o problema com seriedade. Págs. 2 e 9 Fernão Lopes

Socialismo e capitalismo no Estado venezuelano

Pobres de SP sofrem ação criminosa dos demo-tucanos

Em entrevista, o analista e escritor venezuelano Luis Britto aponta que o principal desafio interno da Revolução Bolivariana, conduzida pelo presidente Hugo Chávez, é avançar no projeto socialista, reestruturando e expurgando a ineficiência e a lentidão do antigo Estado capitalista. Pág. 11

Uma missão de direitos humanos que percorreu diversas comunidades da cidade de São Paulo chegou à conclusão que a situação das populações locais é grave e precária. Segundo analistas, para os governos de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (DEM), estas podem existir, contanto que não prejudiquem suas intenções eleitoreiras. Um conjunto de fatos relaciona diretamente os dois políticos com o alagamento de bairros periféricos da zona leste paulistana. Págs. 4 e 5 ISSN 1978-5134

Moradora da favela do Sapo, em São Paulo, observa barraco destruído pelas chuvas Ricardo Stuckert/PR

A luta do povo Xavante para retornar à Maraiwatsede Enquanto a antiga Mata Bonita (Maraiwatsede), localizada na região de São Félix do Araguaia (MT), é devastada por grileiros, o povo Xavante trava uma batalha judicial para retornar ao território de origem, de onde foram expulsos pela Força Aérea Brasileira (FAB) em 1966. Pág. 6

Os avanços e os limites da Confecom

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editorial FOI UM VERDADEIRO fracasso a 15ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, COP -15, realizada de 7 a 18 de dezembro, em Copenhague, na Dinamarca. Por que se surpreender com o resultado se as decisões para salvar o planeta deveriam ser tomadas exatamente pelos principais causadores dos desastres ecológicos que ocorrem hoje e tendem a se agravar, com consequências irreversíveis, num curto espaço de tempo? Bem resumiu Kumi Naiodoo, diretor internacional do Greenpeace, ao dizer que a cidade de Copenhague é a cena de um crime climático, com homens e mulheres culpados, fugindo para o aeroporto com vergonha. As discussões giraram em torno das medidas necessárias para impedir que a temperatura mundial chegue aos 2 ºC – hoje ao redor de 0,7 ºC. Como medida urgente, é necessário que os governos assumam metas – e as cumpram! – de reduzir a emissão de gás carbônico em até 40% até o ano 2020. Foram incapazes de fazer esse acordo. A primeira constatação é a incapacidade e falta de credibilidade da Organização das Nações Unidas (ONU) em liderar a tomada de decisões conjuntas, superando os interesses nacionais ou particulares. A Rodada de Doha, desde 2001, negocia medidas políticas que poderiam amenizar

debate

COP-15, um verdadeiro fracasso o desequilíbrio comercial provocado pelas economias ricas sobre os países não-industrializados. Passado nove anos, nada de concreto foi aprovado. O mesmo fracasso ocorre com o processo liderado pela ONU para o desarmamento do planeta. Os maiores promotores e financiadores das guerras são exatamente os países mais industrializados, tendo à frente os EUA. A ONU se mostra incapaz de enfrentar seus interesses e pôr um basta aos genocídios que enriquecem uma minoria e sustenta um padrão de consumismo irracional nos países ricos. O Conselho de Segurança, instância máxima da ONU, composto por cinco países com poder de veto – Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido –, é outra excrescência desse sistema multilateral, resultante da Segunda Guerra Mundial. Não é mais suficiente ampliar esse conselho para 3 ou 4 países-candidatos – entre eles o Brasil – que almejam uma cadeira nesse grupo seleto, logo antidemocrático. É preciso democratizar a estrutura desse sistema, assegurando a todos os países o direito de voz e de voto.

O sistema está falido e, enquanto não mudar, continuaremos vendo encenações teatrais como essa de Copenhague, onde os líderes dos países ricos, contando com a subserviência de inúmeros outros países, se dirão preocupados com os problemas que afetam os povos e o planeta. Ao final do ato teatral, fugirão novamente, envergonhados, para os aeroportos. A segunda constatação da COP-15 é que já é insuficiente a diminuição da emissão dos gases que estão provocando o aquecimento do planeta. É preciso dar um basta à guerra que os países ricos travam contra os países pobres para apoderar-se dos recursos naturais, da biodiversidade e para impor um controle alimentar que afeta os processos de desenvolvimento dessas populações. A voracidade dos governos e das empresas transnacionais por lucros fáceis e rápidos ditam políticas de ampliação das extensas áreas de monocultivos, de desmatamentos, modelo de agricultura industrial com uso intensivo de agrotóxicos e de sementes transgênicas, a utilização de aparatos repressivos – particulares e governamentais – e uma superexploração da

crônica

Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin

Juízes elogiam e homenageiam o MST SERÁ SOMENTE de repressão judicial e de condenação indiscriminada da mídia que vive a multidão pobre de agricultores sem-terra espalhada pelo Estado e pelo país? Acampamentos de sem-terra e de sem-teto perseguidos e violentados por decisões administrativas e sentenças, por jagunços a soldo de latifundiários; é mesmo este o único tratamento que merecem? No início deste dezembro, a diretoria da Associação Juízes para a Democracia (AJD) respondeu negativamente tais questões. Entregou à direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) uma pintura que representa a luta de Dom Quixote contra os “moinhos da opressão”. A cerimônia pode ser considerada um verdadeiro desagravo àquele movimento popular. Bem avaliada a sucessão de fatos recentes, todos indicativos do poder opressivo e fortemente tendencioso da criminalização em andamento dos agricultores sem-terra – patrocinado pela presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e pela bancada ruralista no Congresso Nacional –, com fortíssimo efeito inibidor sobre as administrações públicas, o gesto da AJD autoriza ser interpretado como réplica. Em primeiro lugar, contra o abuso de autoridade e poder, toda a violência com que inquéritos policiais secretos e despachos de liminares judiciais têm sido preparados e executados contra os agricultores sem-terra, de regra violados os seus direitos de defesa; em segundo lugar, contra a nova tentativa de se reunir CPI no Congresso Nacional, por se julgar ainda insuficientes os desastrosos efeitos que a CPMI da terra, manipulada por ruralistas, obteve contra o MST e as ONGs que o apoiam; em terceiro lugar – o que merece atenção especial – a homenagem contesta todo um paradigma interpretativo da realidade pobre e miserável de brasileiros, causa do vício de outro, da Lei, que desconhece e criminaliza aquela maioria, na maior parte dos julgamentos dos juízes e tribunais do país. Os moinhos, alvo da indignação de Dom Quixote, são lembrados até hoje, com muita ironia, por muitos críticos dos defensores de direitos humanos, vários atuando agora em defesa do MST, depois de terem dado testemunho de vida, não só de palavra, do mesmo comportamento durante a ditadura. Os moinhos da opressão que motivaram a homenagem da AJD, estes não são de vento. Não matam somente pela arma de fogo dos jagunços e seguranças

mão-de-obra que em muito se assemelha aos períodos escravocratas. A continuidade desse modelo econômico significará o aumento da pobreza, da fome, da escassez de água, da perda da biodiversidade, do envenenamento dos solos, do ar, das águas e dos alimentos. É preciso combinar o desenvolvimento de práticas e modos de vida que sejam ambientalmente sustentáveis com políticas que promovam justiça social, democracia e distribuição da riqueza produzida em nosso planeta. É impensável que tais políticas sejam adotadas pelos líderes que fogem envergonhados para os aeroportos. É acertado, assim, o alerta feito pelo teólogo Leonardo Boff ao referir-se à COP-15: “enquanto mantivermos o sistema capitalista mundialmente articulado, será impossível um consenso que coloque no centro a vida, a humanidade e a Terra e a se tomar medidas para preservá-la”. Alerta reforçado pelo presidente da Bolívia: “Ou superamos o capitalismo ou ele destruirá a Mãe Terra.” A saída para os problemas, a COP-15 mais uma vez demonstrou, não será dada pelos que lucram

Luiz Ricardo Leitão

Uma década ‘espetacular’ João Zinclar

Marcha do MST em Brasília, em agosto de 2009

treinados e bem pagos, com preço pré-fixado à sua tarefa sórdida, segundo aconselhe o “valor” da vítima. Frei Henri de Roziers, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Xinguara, que o ateste, pois, se continua vivo, é por milagre. Esses moinhos matam pela fome de milhões, pela morte da terra e do meio ambiente, pela manipulação de licitações e notícias, pela corrupção de administradores públicos e pela compra de votos na elaboração das leis, pela aplicação diferenciada em favor daquelas moldadas segundo seu interesse e conveniência. Basta que se compare o seu giro moedor quando em causa o adiamento ou a anistia de suas dívidas tributárias com o que ele empenha na revisão dos índices de produtividade de suas terras. O gesto da Associação Juízes para a Democracia para com o MST, por tudo isso, demonstra que a imparcialidade e as virtudes dos juízes que a integram são muito diferentes daquelas que não enxergam as diferenças escandalosas que existem entre gente oprimida com direito à libertação e gente opressora com “direito” (?) à segurança; entre “terra de trabalho” impedida ou escravizada por “terra de exploração”.

com a irracionalidade do sistema capitalista e sua cultura consumista. Os camponeses, através da Via Campesina, exigem uma mudança radical no modelo de produção e consumo. É necessário reorientar as economias agroexportadoras, promover a reforma agrária, fortalecer a agricultura familiar e tratar o alimento como um direito dos seres humanos, e não como uma mercadoria. Já o argentino Adolfo Pérez Esquivel, Premio Nobel da Paz, juntamente com a Academia de Ciências do Ambiente de Venécia/Itália, está impulsionando uma campanha para constituir o Tribunal Penal Internacional sobre o Meio Ambiente. A proposta visa levar aos tribunais e penalizar as empresas e governos que destroem o meio ambiente e afetam prejudicialmente a vida dos povos, sinalizando que os danos ambientais são crimes de lesa-humanidade. A próxima reunião ministerial sobre o clima, organizada pela ONU, será na cidade do México, de 8 a 19 de novembro de 2010. Esperamos que, até lá, os movimentos sociais, mais fortes e organizados, se façam ouvir. Ou ao menos, não fiquem desimpedidas as vias de acesso aos aeroportos, para onde costumeiramente fogem os líderes envergonhados.

Salvo melhor juízo, o respeito dos primeiros à lei é bem mais justo do que o de outros colegas seus, porque não faz da “regra” legal a única “régua” de medida e ponderação da justiça. Respeita a lei nos limites próprios dela, ou seja, os que não infringem as leis do respeito. Estas, como é sabido, não se dobram à quantidade do dinheiro em lide, não reduzem a sociedade civil à empresa mercantil, não submetem o estado de direito à pura e simples liberdade de iniciativa econômica, nem à ideologia privatista e patrimonialista dominante, que sempre coloca os direitos civis e políticos acima dos sociais. Distante de todo o farisaísmo, a diretoria da AJD, como o MST, ainda acredita no velho conselho dado por Eduardo Couture e que, felizmente, ainda se vê estampado em muitas camisetas e pastas dos estudantes de direito: Teu dever é lutar pelo Direito, mas o dia em que encontrares em conflito o direito e a Justiça, luta pela Justiça. (Publicado originalmente no sítio IHU) Antonio Cechin é irmão marista, militante dos movimentos sociais. Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.

O ANO DE 2010 marcará o encerramento da primeira década do novo milênio, mas seu desfecho frustrante já se anuncia desde agora, com a realização da 15a Conferência sobre o Clima, na Dinamarca. A reação do Terceiro Mundo ao cinismo e intransigência das grandes potências capitalistas, responsáveis por dois séculos de exploração predatória e desmedida dos recursos naturais, é um sintoma claro da crise que se instalou na (des)ordem mundial. Há sinais inequívocos de exaustão dos paradigmas neoliberais de acumulação da tão decantada “era da globalização”. Sabemos, por certo, que ainda é cedo para impor uma alternativa contundente ao sistema regido pelas grandes corporações e monopólios, mas os absurdos subscritos pelos padrões de consumo desta nossa era dita pós-moderna já vão muito além da aguda recessão que se deflagrou com o colapso do mercado imobiliário nos EUA. Há, de fato, comportamentos surreais neste mundo de fábula e fantasia da sociedade espetacular fomentada pela indústria cultural e pelos grandes meios de comunicação de massa – e os exemplos se multiplicam no universo quase virtual das ‘celebridades’ cultuadas pela mídia. Quem por acaso imagina, por provincianismo ou desinformação, que as atitudes sociais mais bizarras ou extravagantes são mazelas típicas da periferia imperial, restritas aos nossos craques da pelota (garotos humildes e sem escolaridade que se deslumbram com a súbita fama e riqueza que seus dribles e gols proporcionam) ou aos artistas ‘globais’, deve refletir com atenção sobre o caso da menina Suri, filha dos atores Tom Cruise e Katie Holmes. Os dois, como já é ciência de muitos, formam um dos casais mais badalados de Hollywood, essa verdadeira Meca da indústria cultural ianque – e me arrisco a dizer que ele, por certo, é um dos maiores ícones das plateias globalizadas. Pois a criança, mera vítima da esquizofrenia dos pais, tem sido a protagonista de reportagens acaloradas sobre os hábitos mais do que inverossímeis ou precoces com que Tom e Katie tratam de, digamos assim, “educá-la”. A pequena Suri tem aparecido nos jornais e TV por usar sapatos de salto alto, tomar vinho tinto e – pasmem! – possuir seu próprio cartão de crédito. Assim, embora só tenha três anos de idade, já é objeto de longas e polêmicas reportagens, nas quais até mesmo renomados ortopedistas são consultados para alertar sobre os riscos que o salto alto acarreta para uma estrutura óssea que só terá amadurecido aos 12, 13 anos (além de dores e joanetes, ela poderá ter pernas curtas e dificuldade para andar quando chegar à idade adulta). Suri é apenas um índice eloquente dos desatinos a que nos conduz a sociedade de consumo hipertrofiada. Não apenas as crianças, mas também os adultos – e, sobretudo, adolescentes, expostos desde cedo à publicidade e a um ritmo de vida cada vez mais alucinado – têm adotado os piores hábitos alimentares que se possa conceber. Que o digam os nutricionistas de São Paulo, espantados com o consumo de enlatados, salgadinhos, chocolates e refrigerantes entre os jovens de 16 a 25 anos, que substituem frutas, verduras, legumes e grãos pelas maravilhas edulcoradas do fast food industrializado. Um novo paradoxo se instala: na sociedade em que “a imagem é tudo”, multiplicam-se os casos de obesidade precoce – e, com isso, incrementa-se a paranoia da “boa forma”. Um cantor famoso do rock nacional, que parece ter aprendido muito com os infortúnios da própria vida, divulgou pela internet um desabafo incisivo acerca do tema. Vale a pena ler o que teria escrito (nunca se sabe o que é real na rede virtual) Herbert Viana: “Uma coisa é saúde, outra é obsessão. O mundo pirou, enlouqueceu. Hoje, Deus é a autoimagem. Religião é dieta. Fé, só na estética.” E arremata: “Ruga é contravenção. Roubar pode; envelhecer, não. Celulite é falta de educação. Filho da puta bem-sucedido é exemplo de sucesso.” Não obstante o tom idealista do autor, seu discurso é um epitáfio perfeito para esta década que se vai. De fato, na sociedade de consumo somente a imagem – e o dinheiro – tem valor; sentimentos, cultura, sabedoria, amizade, “nada mais importa”, sentencia ele. “Não importa o outro, o coletivo. Jovens não têm mais fé, nem idealismo, nem posição política”. Eu só não diria isso, caro Herbert. Os jovens talvez não tenham voz, mas eles continuam nas ruas, desnudos ou fantasiados de panetone, denunciando crimes ambientais ou maracutaias em Brasília e Copenhague. Nem tudo está perdido; só a década, meu artista, só esta triste e moribunda década espetacular... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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Pobreza e assistencialismo sustentam Arruda e corrupção no DF POLÍTICA Direita brasiliense mantém sua base na periferia pois pobres dependem de políticas assistenciais para sobreviver Roberto Rodrigues/Agência Brasília

Danielle Pereira de Brasília (DF) TODOS OS DIAS Ana Paula Duarte sai de casa para buscar o pão e o leite das crianças. Dona de casa, casada e mãe de dois filhos – eram três, mas o caçula morreu há um mês –, ela comemora o leite e o pão distribuídos gratuitamente pelo governo local às famílias carentes. “Significa muita coisa. Para mim é uma alegria, porque tinha dia que eu não tinha nem dinheiro para comprar o pão dos meus filhos”. Há três anos, Ana Paula mudou-se do Paranoá para Itapoã, uma das comunidades mais pobres do Distrito Federal. Ela poderia ter ganhado mais do que um simples pão neste fim de ano caso as alegações do governador do DF, José Roberto Arruda (ex-DEM, agora sem partido), fossem reais. No final de novembro, a Polícia Federal desencadeou a operação Caixa de Pandora, que desmontou um esquema de corrupção e pagamento de propina a políticos da base aliada. Algumas das ações foram filmadas. Em um dos vídeos, Arruda foi flagrado recebendo R$ 50 mil. O dinheiro, segundo ele, seria destinado à compra de panetones para populações carentes do DF. Se pudesse desejar algo para este Natal, Ana Paula escolheria “felicidade e segurança”. “De panetone eu realmente não precisaria, não. Precisaria do pão e do leite se fosse o caso de ele [Arruda] tirar. A gente precisa muito desse pão e leite. Mas, panetone, sinceramente, não precisaria, não”, diz. Para ela, o maior problema da cidade é a insegurança: “Se a gente quiser saúde ou segurança, tem que ir para o Paranoá”. Agora mesmo acabou de matar um ali. Em plena luz do dia!”, contou. Em Itapoã são realizados projetos e ações dentro do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), do Ministério da Justiça. As parcerias com sociedade civil e o governo do Distrito Federal têm o intuito de prevenir a violência e a criminalidade, especialmente entre jovens de 15 a 24 anos. Assim como Ana Paula, a comerciante Regina Arruda também acredita que o principal problema do município seja a violência. O assassinato comentado por Ana Paula ocorreu em frente ao estabelecimento de Regina. De acordo com os moradores e com a Polícia, um rapaz de 23 anos, conhecido por Pará, foi morto no local. Ele era genro e ajudante de um dos maiores traficantes de Itapoã, Edson Ferreira de Mesquita, o Peixe, que também foi baleado na ocasião. Regina conta que, quando escutou o tiroteio, fechou

as mais carentes do DF, seus moradores se mostram satisfeitos com a cidade. A dona de casa Ana Paula Duarte diz gostar muito do lugar onde vive. “Aqui é muito bom para mim, tirando a violência. Mas acho que todo lugar tem isso, né?!”, justifica. Para a comerciante Regina Arruda, a insegurança não é motivo para buscar outro local. “A gente fica com medo, mas tem que sobreviver, né?! A única coisa que eu tenho é esse lote. Não dá para mudar daqui, porque hoje em dia a violência está em todo canto”, argumenta. Ação eleitoreira

Governador Arruda entrega cartões do pão e leite a moradores do Paranoá e Itapoã, regiões administrativas do DF

“A gente precisa muito desse pão e leite. Mas, panetone, sinceramente, não precisaria, não”, diz dona de casa de Itapoã as portas do bar e correu para os fundos da casa, “porque é muito arriscado, né?! Meu único jeito é fechar”. O ataque aos traficantes ocorreu no dia em que Itapoã comemorava um ano de lançamento do projeto Território de Paz, vinculado ao Pronasci. A parceria entre governo federal e GDF previa 28 ações de prevenção à violência, como instalação de câmeras de segurança, telecentros de inclusão digital e policiamento comunitário. Segundo informações do GDF, foram investidos cerca de R$ 43 milhões. Neste fim de ano, Regina diz querer paz. Se tivesse de pedir algo às autoridades, de acordo com a comerciante, panetone não entraria na lista: “Graças a Deus eu trabalho e compro”. Mais segurança, gente! A gente não precisa de pão, não”. Relatividade e humanização

Apesar das necessidades serem parecidas, os desejos das comunidades são relativos. Esta é a opinião de Max Maciel, coordenador da Central Única das Favelas (Cufa) do DF. “Se a gente visitasse hoje uma comunidade que não tem asfalto, que sofre com a poeira e a lama, a primeira prioridade deles seria o asfalto, por mais que o

problema identificado fosse o lixo, porque a cidade é suja. Mas eles iam querer o asfalto porque a poeira atrapalha mais que o lixo. Primeiro você vai ter de dar o asfalto para depois discutir o lixo”. Ele ressalta a importância de se trabalhar a humanização desses locais. “Não adianta só colocar asfalto, luz, isso é urbanização. Mas não garante a humanização dessas pessoas. Então a gente tem pessoas da cidade de Ceilândia que não se reconhecem moradores de Ceilândia, não querem morar na Ceilândia. Você tem moradores da cidade Estrutural que colocam no seu currículo outras cidades para não dizer que moram na Estrutural, com medo do preconceito. E isso é uma violência maior”, diz. Na visão do coordenador da Cufa-DF, o ideal seria que essas cidades já surgissem como o novo bairro de classe alta de Brasília, o Noroeste: “com ciclovias, parque ecológico... por que não? Samambaia, que tem 18 anos, tem ruas sem asfalto há 18 anos. E nós temos bairros novos crescendo com toda a infraestrutura”. Em meio à polêmica de construir uma área residencial em reserva ambiental e indígena, o GDF conseguiu destravar os processos e, soAcácio Pinheiro/Agência Brasília

Rua de Itapoã, uma das comunidades mais pobres do DF

mente neste ano, a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) realizou quatro licitações de terrenos do Noroeste. Ao todo, as vendas deste ano já acumulam mais de R$ 1 bilhão. O vice-governador do DF, Paulo Octavio, também envolvido nos escândalos, é o dono da maior imobiliária da capital. Dicotomia

Cerca de 20 quilômetros separam Itapoã do Plano Piloto. Para se sair de um lado ao outro há dois caminhos, ambos passando pelas regiões nobres do DF: o Lago Norte e o Lago Sul. Há uns cinco minutos de Itapoã, o setor de Mansões do Lago Norte e o Lago Paranoá acompanham a estrada. Já para aqueles que optam pela via do Lago Sul, é obrigatória a passagem pela Ponte JK, um empreendimento milionário, herança da era Joaquim Roriz, que governou o DF por 16 anos – de 1988 a 1990, de 1991 a 1995 e de 1999 a 2006 – e marcou a região com seus loteamentos irregulares. Segundo a Secretaria de Obras do GDF, foram gastos R$ 182 milhões para construir o monumento. Itapoã é fruto de invasões. Em 2001, famílias de outros estados e da cidade vizinha Paranoá deram início à ocupação das terras pertencentes à Aeronáutica, que pretendia instalar uma antena de controle aéreo para o DF. Segundo alguns moradores, muitos viram na região a possibilidade de fugir do aluguel que não podiam pagar (e ainda veem, pois a invasão mais recente no local não tem nem um ano). Quatro anos mais tarde, a área passou a ser a Região Administrativa XXVIII – Itapoã. O Distrito Federal é dividido em regiões administrativas ligadas ao GDF. Algumas não são bem delimitadas. Para o coordenador da Cufa-DF, o fato de as cidades satélites não serem autônomas gera um problema, pois os impostos recolhidos nessas localidades não voltam necessariamente para elas. “Algumas cidades não conseguem se segurar sozinhas, porque nós não temos incentivo para as pessoas criarem uma empresa e gerarem emprego e renda em sua própria comunidade. Tudo o que é arrecadado no DF vai para o montante e não é dividido de forma igual”.

Max Maciel define como “apartação social” a situação no Distrito Federal e reclama da “dicotomia” em que vive a população: “O meu ônibus é diferente do ônibus daqui [Plano Piloto], o tratamento no meu posto de saúde é diferente do tratamento no posto de saúde daqui, a educação e as escolas públicas das nossas cidades são diferentes das escolas públicas daqui. Por quê? Porque não foi planejada no Entorno, não foi incorporada e até hoje não se sente incorporada. Nós somos iguais! É uma dicotomia”. Hoje, Itapoã tem mais de 100 mil habitantes que vivem com uma renda familiar média de R$ 403. Dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) mostram que metade da população não completou o primeiro grau, e 18,7% das crianças menores de 7 anos estão fora das escolas. O município não possui escola de nível médio. Para cursar o 2º grau, os alunos devem buscar as instituições do Paranoá e de outras regiões do DF. Em Itapoã, são duas escolas de ensino fundamental, sendo que a mais nova foi aberta há dois meses. Também só recentemente os estudantes receberam transporte escolar gratuito. A comunidade é a segunda no ranking de pior escolaridade, só perdendo para o Varjão (Região Administrativa XXIII). O município não tem delegacia, mas dois postos policiais; nem hospital, mas um posto e um centro de saúde. Apesar de ser uma das áre-

Pelos muros de Itapoã é possível encontrar mensagens de agradecimento ao governador Arruda e ao deputado distrital Leonardo Prudente, presidente da Câmara Legislativa do DF e uma das “estrelas” do chamado Mensalão do DEM. As imagens veiculadas na mídia mostraram cenas pitorescas, como aquelas em que Prudente aparece escondendo dinheiro nas meias e, em outra filmagem, orando pela propina recebida. Alguns moradores, que não quiseram se identificar, contaram que, antes do escândalo envolvendo o GDF, a figura do deputado era bastante difundida na comunidade. Segundo contam, até os carros oficiais vinham com a fotografia do presidente da Câmara Distrital estampada na lataria. De acordo com a Codeplan, 38,7% dos habitantes de Itapoã vivem com até um salário mínimo, valor 100 vezes inferior ao recebido por Arruda em apenas um dos flagrantes. “Não sei se algum dos senhores dessas comunidades conseguiria se imaginar com R$ 50 mil. Para eles seria como ganhar na loteria”, diz Max Maciel. O coordenador da CUFADF defendeu a emancipação das cidades carentes como forma de se combater a pobreza e condenou ações de “barganha”, que, segundo ele, não garantem uma melhora na vida dessas populações. O coordenador disse, ainda, que a desculpa da distribuição de panetones nessas comunidades poderia se caracterizar como uma ação eleitoreira, mas não como uma ação social eficaz: “Nenhum panetone mudaria o Natal de uma criança. O que mudaria o Natal de uma sociedade seria ela mesma poder comprar um panetone no final do mês. A elite criou as leis para se manter no poder, vai barganhar por panetone, por cesta básica. E não é isso que a gente quer. Panetone e cesta básica não é para a gente. Isso a gente quer ter o direito de comprar”. O administrador regional de Itapoã, Marco Aurélio Demes, foi procurado pela reportagem e se recusou a dar entrevista.

Itapoã em números 51,9% dos moradores possuem o primeiro grau incompleto

18,7% das crianças menores de 7 anos estão fora das escolas

44,8% da população é oriunda do Nordeste e 40,3%, do DF

41,1% das famílias vivem com até dois salários mínimos 38,7% vivem com até 1 salário mínimo 79,8% dos terrenos são próprios, mas não legalizados R$ 403 é a renda familiar média R$ 102 é a renda per capita Fonte:SEPLAN/CODEPLAN – Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios


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Em vez de despejar, afoga SÃO PAULO Para apressar a remoção de milhares de famílias da região, Estado pode ter cometido crime contra a humanidade Almeida Rocha/Folha Imagem

Eduardo Sales de Lima da Reportagem EM MENOS DE duas horas, o “barraco” de Maria Auxiliadora estava debaixo d’água. Os remédios de seu marido estragavam dentro do quarto alagado. Do lado de fora, desespero. Crianças se afogando e mães gritando por socorro. Em apenas 24 horas, no dia 8, caiu sobre São Paulo (SP) o maior volume de água registrado desde 1999, 77,4 mm (cada milímetro equivale a um litro de água por metro quadrado). “Ouvi mães gritando por socorro, aí eu caí para dentro da água. O que deu para salvar nós salvamos. Mas teve família que perdeu tudo, como mantimentos, geladeira, televisão. Isso na minha rua, que é um local mais alto. E logo imaginei que na baixada estaria pior. Chegando lá a água estava dando quase no pescoço”, relata o líder comunitário da Chácara Três Meninas, Cristovão de Oliveira, que mora há mais de 30 anos na região. Nas margens do rio Tietê, a natureza era mais feroz. Na “baixada”, como disse Cristovão, as casas não terminadas de alvenaria e os barracos de madeiras beiram o rio. É lá que vive Maria Auxiliadora. A chuva que caiu sobre a casa dela também estava presente em diversas áreas da cidade São Paulo. Mas ela é pobre, vive na Chácara Três Meninas, periferia da capital paulista, numa região de várzea do rio Tietê; uma ocupação irregular. Péssima combinação. Como a água subiu “até o pescoço” no seu barraco, Maria, seu marido, sua filha e seus seis netos foram obrigados a se alojar numa escola. Dois dias depois retornaram para casa. Das seis famílias que sobreviviam no pequeno terreno de 2 metros de largura por 8 de comprimento, cinco abandonaram o local. “Só fiquei eu, meu marido, minha filha e meus netos”, conta Maria Auxiliadora.

“Eu não estou fazendo uma relação, estou fazendo uma afirmação: tem tudo a ver”, destaca Raul Marcelo, ligando a construção do parque com a remoção de cerca de 10 mil famílias por meio da engenharia hidráulica e social Crime Tudo isso ocorreu por causa da “natureza”, mas humana e criminosa. O conjunto de informações indica um ato contra a vida. Crianças morreram, famílias foram desalojadas, doenças (sobretudo leptospirose) foram disseminadas; tudo isso aconteceu por uma opção. As seis comportas da barragem da Penha, reservatório de água próximo da região, foram completamente fechadas naquele 8 de dezembro. Somente dois dias depois, todas as comportas foram abertas. O próprio engenheiro responsável pela barragem da Penha afirmou à repórter Fabiana Uchinaka, do portal Uol Notícias, que optou-se por alagar esses bairros da zona leste ao invés da marginal. A barragem da Penha funciona sob a direção da Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae), estatal paulista. Ele disse que, se não tivesse fechado as comportas, teria alagado as marginais e toda a cidade de São Paulo.

Inundação em rua do bairro Jardim Romano, na zona leste de São Paulo

O engenheiro explicou à repórter que cada barragem em São Paulo – das quais perfilam a Móvel, a da Penha, a de Mogi das Cruzes e a de Ponte Nova – é responsável apenas por administrar o fluxo de água do local e não sabe o que acontece nos outros pontos. Ele acredita que as comportas foram abertas nas barragens de cima, em Mogi, e isso foi preponderante no alagamento da região da zona leste. A área que mais sofreu com o alagamento fica justamente entre a barragem de Mogi das Cruzes, que liberou suas águas; e da Penha, que as conteve.

Parque “Afogados” Formou-se um imenso piscinão natural. O alagamento reforçaria a ideia de que aquela população é “invasora” de área de várzea e deveria ser despejada para que não impeça a construção do Parque Linear da Várzea do rio Tietê, projeto do governador José Serra (PSDB) orçado em R$ 1,7 bilhão que deve ser inaugurado até a Copa de 2014. Segundo um técnico, ex-funcionário da Sabesp que preferiu o anonimato, nos períodos de intensas cheias, existe a condição de reverter as cheias do Pinheiros e Tietê para a represa Billings. “Existe uma caixa preta muito grande nessa história toda, essas informações não são transparentes, não dá para saber se houve uma opção de classe”, afirma. Essa região da zona leste que engloba vilas como Pantanal e Chácara Três Meninas ficou, mesmo após o fim das chuvas, debaixo d’água por doze dias. “Não tinha policiamento, bombeiros; pessoas estavam saqueando as escolas. Nenhuma bomba foi lá para drenar”, relata o deputado estadual Raul Marcelo (Psol), que visitou, no dia 17, o Jardim Pantanal, uma das localidades mais atingidas pelo alagamento. “Eu não estou fazendo uma relação, estou fazendo uma afirmação: tem tudo a ver”, destaca o parlamentar, ligando a construção do parque com a remoção de cerca de 10 mil famílias por meio da engenharia hidráulica e social. “O lugar da remoção é justamente ali, no Pantanal”, conclui. Para ele, o parque linear é importante, mas é necessário dar condições para que as famílias saiam de forma digna. “Com R$ 5 mil eles vão comprar no máximo madeiras para construir outro barraco”, ironiza Marcelo, se referindo ao valor do chequedespejo oferecido pela prefeitura paulistana.

Um pouco mais reticente, outro deputado estadual que visitou a região, Adriano Diogo (PT), observa que aquele local “era exatamente a região que eles queriam despejar”. Não dá para afirmar que tem uma intencionalidade, não tem uma prova cabal, mas é uma estranha coincidência”, afirma. “Por que que ele [Serra] não lançou um projeto de habitação primeiro? Ele quis fazer sua propaganda para ser presidente da República e acabou ferrando o povo. Ele sabia que, fechando a comporta da Penha e abrindo a comporta de Mogi das Cruzes, mudaria essa bacia”, critica o líder comunitário Cristovão de Oliveira. “Todo mundo é a favor do parque, só que tem que pensar na habitação. Isso foi um ato criminoso. O poder público, a defensoria pública e o Ministério Público deveriam responsabilizar o governo por todas as perdas de vidas que tivemos nesses locais. Houve duas mortes de crianças por afogamento no Jardim Romano [onde fica o Jardim Pantanal]”, afirma Cristovão.

Esgoto Para além das perdas materiais, Maria Auxiliadora se diz preocupada com os netos, repletos de feridas pelo corpo. “O médico falou que era da água da chuva; estão tomando antibiótico”, conta. Coisas de natureza incompetente. A estação de tratamento de esgoto de São Miguel Paulista também foi construída numa área de várzea, sem nenhum tipo de proteção. A água subiu, entrou na estação e ela deixou de funcionar. Por consequência, o esgoto foi jogado no rio e, como a barragem estava fechava, foi lançado diretamente nas comunidades da várzea. “A água que alagou o Jardim Pantanal teve duas vezes mais coliformes fecais que o próprio rio Tietê”, lembra Raul Marcelo. No dia 17, a estação foi reativada. De acordo com o ex-funcionário da Sabesp, isso também é culpa de uma estagnação na infraestrutura de saneamento.“Há um atraso estrutural no sistema de coleta e tratamento de esgoto, e as instituições técnicas da área não têm uma sistemática de controle, de regulação, para controle dos problemas, das falhas”, diz. Os deputados que visitaram as regiões alagadas da zona leste da cidade pretendem denunciar o caso, junto com o da estação de tratamento de esgoto, aos Ministérios Públicos Estadual e Federal.

Estado intimidou moradores antes do alagamento Eduardo Sales de Lima

Gestões estadual e municipal se omitem ao culpar moradores por ocupação irregular da Reportagem De acordo com o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), e o governador José Serra (PSDB), as cerca de 10 mil famílias que vivem no extremo leste da capital – em bairros como Jardim Pantanal, Vila das Flores, Jardim São Martino, Vila Aimoré, Vila Itaim Paulista e Jardim Romano – são os principais culpados pelos danos causados em suas casas no temporal do dia 8, pois ocuparam uma área irregular. Não à toa, no dia 14, Serra anunciou a antecipação dos despejos para uma área em que vivem mais de 5 mil famílias, só no Jardim Pantanal. No entanto, as ameaças e tentativas de despejo ilegais já foram tentadas no local. “Há um mês e meio o governo não vem negociar; tinha mais polícia que moradores, amedrontando as famílias, intimidando”, conta o líder comunitário Cristovão de Oliveira.

“Ele [Kassab] quer dar um ano de vale-aluguel e não tem ideia de onde vai construir as casas dessas famílias” Ele conta que, após o alagamento no Jardim Pantanal, alguns amigos seus ligaram narrando que a tropa de choque da Polícia Militar estava tirando as famílias de suas casas, mesmo alagadas, “no pau”. Cristovão diz que pressionou Kassab, no dia 17, e que

Para Maria Auxiliadora, desrespeito encontrará resistência

o prefeito mostrava frieza com a situação. “O Kassab esteve aqui, foi até minha casa e perguntei para ele, ‘o que vamos fazer?’ E ele falou: ‘agora não tem jeito não, nós vamos ter que remover as famílias’. Ele quer dar um ano de vale-aluguel e não tem ideia de onde vai construir as casas dessas famílias”, relata o líder comunitário da Chácara Três Meninas, que fica no bairro de Itaim Paulista, localidade vizinha ao Jardim Pantanal. De acordo com Cristovão, após a “desgraça”, como diz, o governo teria que convocar a comunidade, sentar numa mesa com as lideranças e discutir qual o melhor caminho a ser tomado.“Eu apresentei três terrenos para tirar essas famílias de lá e que se localizam dentro da Chácara Três Meninas. Um dos terrenos é da prefeitura. Isso para fazer com que essa comunidade também utilize o parque que vai ser construído. Mas a proposta do governo é levar as pessoas lá para Mogi, Poá, Itaquaquecetuba”, lembra Cristovão.

O desrespeito aos moradores encontrará resistência. “Eu posso morrer na enchente, mas eu não vou sair da minha casa. Todos combinaram que não vão sair. Pode ser o que for, mas é o nosso barraco”, afirma Maria Auxiliadora, se referindo à proposta da prefeitura de pagar uma bolsa aluguel durante um ano. Ou eles constroem casas melhores ou nos dão dinheiro para comprarmos casas melhores; ele é um político, ninguém pode confiar”, conclui a dona de casa. Existe um fato curioso em toda essa situação. No Jardim Pantanal existe um projeto da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Vários prédios construídos ficaram submersos. O CEU Três Pontes, construído pela gestão Kassab pouco antes das eleições para prefeito em 2008, ficou isolado. Para o deputado estadual Raul Marcelo, os governos estadual e municipal, ao jogarem a responsabilidade para as famílias, se omitem, pois eles mesmos legitimaram construções no local. (ESL)


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Crimes da especulação imobiliária Fernão Lopes

RELATÓRIO De acordo com os relatos, a situação é grave e precária: casas dentro de córregos poluídos, ameaças de despejo e reintegração de posse, violências e incerteza sobre o futuro Patrícia Benvenuti da Reportagem ABUNDÂNCIA DE recursos para grandes obras de infraestrutura, mas desrespeito com o seu cidadão. Esta foi a conclusão da Relatoria Nacional pelo Direito à Cidade da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca), que realizou uma missão em São Paulo e região metropolitana para averiguar denúncias sobre violações de direitos humanos e de direito à moradia. Entre os dias 17 e 18 de dezembro, o relator nacional da Plataforma, Orlando Junior, e o assessor da Relatoria, Cristiano Muller, visitaram comunidades na periferia e moradores em situação de rua, além de participarem de reuniões com representantes do poder público. Os resultados da missão foram apresentados em uma audiência pública na Câmara Municipal no dia 18 de dezembro, que contou com moradores, urbanistas e autoridades. De acordo com os relatos, a situação das comunidades é grave e precária: famílias próximas ou com suas casas dentro de córregos poluídos, ameaças de despejo e reintegração de posse, violências diversas e incerteza sobre o futuro.

A Relatoria constatou ainda semelhanças em relação às “alternativas” propostas pelo poder público para as famílias despejadas: cartas de crédito, a fim de que os moradores comprem outro imóvel; cheques-despejo entre R$ 1,5 mil e R$ 8 mil, cestas básicas e passagens para suas cidades de origem. Pelas ruas, a missão chegou a presenciar um caminhão da prefeitura jogando água em um grupo de moradores, enquanto policiais tentava expulsar uma família que dormia ao relento. Para o relator Orlando Junior, a missão foi exitosa na medida em que conseguiu identificar os problemas de cada comunidade e sua relação direta com a construção de megaempreendimentos, como a ampliação da marginal do Tietê, a implantação do Parque das Várzeas do Tietê (conhecido como parque linear) e a construção do Rodoanel. “Isso demonstra que estamos diante de um processo que precisa de atenção, e é preciso que todos se mobilizem para a discussão desses projetos”, afirmou. O assessor da Relatoria, Cristiano Muller, também ressaltou a gravidade da questão habitacional em São Paulo. “A gente pôde avaliar e ter uma noção in loco e presencial do que realmente está acontecendo na cidade, por força de

Criança brinca em rua da favela do Sapo

grandes projetos que impactam a vida das pessoas”, explicou. A opinião dos relatores foi corroborada por depoimentos de moradores que compareceram à audiência. Maria Gorete Barbosa, do Parque Cocaia I, na região do Grajaú, expôs um pouco do descaso vivenciado pelas famílias. Seu bairro, no extremo sul da cidade, está na mira do Programa Mananciais, que deve impactar cerca de 80 comunidades nos arredores da Represa Billings. “Eles não mostram o que tem de projeto para nossa área, mas estão tirando as famílias aos poucos para que não reivindiquem seus direitos”, afirma Maria Gorete, que teme pelo destino das famílias. “As pessoas não têm para onde ir, só têm aquele barraquinho para mo-

rar. Elas vão fazer o quê? A gente nem sabe mais a quem recorrer”, completa. Mercantilização Para a Relatoria, São Paulo é um exemplo da mercantilização das cidades, com a entrega de seus espaços à iniciativa privada e transferência da população pobre para regiões cada vez mais afastadas do centro, muitas vezes situadas em áreas de risco. “Antes de atender a interesses econômicos, a cidade precisa atender aos seus moradores”, argumentou. O professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) Nabil Bonduki atribui a intensificação das remoções às gestões de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (DEM), que favorecem as empreiteiras e o mercado imobiliário. “Em um Estado e uma cidade como São Paulo, com tantos recur-

sos, como pode haver uma situação assim?”, questiona. Já o defensor público Carlos Henrique Loureiro fez um alerta para as consequências do crescimento maciço dos despejos dessas comunidades, que resultam na piora das condições de vida nas periferias. De acordo com ele, a tendência é de um aumento inevitável das tensões entre moradores e forças do Estado. “Eu vejo a hora em que a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Poder Judiciário não possam mais mediar os conflitos porque a situação caminha a passos largos para uma convulsão social”, prevê. A Relatoria deve elaborar, até o dia 20 de janeiro, um pré-relatório com os resultados da missão, a fim de

agilizar medidas emergenciais nas comunidades mais atingidas. Posteriormente, será feito um documento completo, com conclusões finais dos trabalhos e recomendações para a prefeitura e o governo do Estado. Dentre as propostas, a principal foi a criação de um grupo, constituído pelos participantes da audiência, para acompanhar as ações de despejo. De antemão, a equipe recém-formada se comprometeu a algumas ações, como denunciar as assistentes sociais que auxiliam para o despejo das famílias e reivindicar mais atenção para o caso das crianças. Mobilização Também foi proposta a criação de uma rede com famílias atingidas de todas as comunidades, a fim de reforçar o elo entre as comunidades e a resistência das famílias. Os moradores chegaram a sugerir, para o início do próximo ano, um dia de mobilização unificada, com ações simultâneas em todas as áreas, para denunciar o impacto dos projetos nas periferias. Para a presidente da Associação de Moradores do Jardim Oratório de Mauá, Vânia Maria Buré Posterari, a mobilização é a única saída para a sobrevivência das comunidades, que não podem ser prejudicadas para fins eleitoreiros. “O movimento social tem que se reunir e parar todas essas obras. Se é para entregar isso até o dia 27 de março como parte de campanha, não vamos deixar acontecer”, garante.


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A luta dos guerreiros Xavante por Maraiwatsede Marcy Figueiredo

RETOMADA Povo avança na batalha judicial pelo direito de ocupar sua terra tradicional. Enquanto aguardam decisão final, a antiga mata bonita (Maraiwatsede) se transforma em pastagem e plantações de grãos. Marcy Picanço São Félix do Araguaia, (MT) NA AULA SOBRE a história dos Xavante da terra indígena Maraiwatsede, o desenho de um avião ocupa o quadro da escola da aldeia. Os jovens aprendem, desde cedo, o significado daquele avião para esse povo guerreiro. O desenho representa o avião da Força Aérea Brasileira que em 1966 levou mais de 200 indígenas que viviam em Maraiwatsede, na região de São Félix do Araguaia, para a terra indígena São Marcos, perto de Barra dos Garças, ambas no Mato Grosso. Naquela época, o grupo Ometto era proprietário da Fazenda Suiá-Missu, que se instalara anos antes sobre a terra dos Xavante, encurralando os indígenas num charco sem condições de sobrevivência. Os fazendeiros, após tentarem sem sucesso explorar a mão-de-obra indígena, decidiram, com apoio dos governos do período, retirar os Xavante de Maraiwtsede. Os Xavante foram recebidos pela missão Salesiana de São Marcos e desde 1966 travam uma batalha para viver dignamente na sua terra de origem. Em 2004, após muito esperar, eles retomaram uma parte do território. Atualmente, cerca de 900 indígenas habitam uma única aldeia e se deslocam por cerca de 30 mil hectares da área total de 165 mil hectares homologada em 1998 como terra indígena Maraiwatsede. O restante da terra está ocupado por fazendeiros e posseiros que se recusam a sair e questionam na Justiça a demarcação da terra (ver quadro). Grande parte dos ocupantes não-índios são pessoas que chegaram na região no início da década de 1990 para receber lotes de uma anunciada “Reforma Agrária Privada”, que, de fato, era uma invasão organizada da terra indígena. Na ocasião, a empresa italiana AGIP Petroli era a dona da fazenda Suiá-Missu e havia se comprometido a devolver a terra para os Xavante, após o reconhecimento oficial pelo Estado brasileiro de que o território era indígena. No entanto, em 1992, depois da identificação da terra pela Fundação Nacional do Índio (Funai), a AGIP, fazendeiros e políticos da região passaram a incentivar a invasão da terra indígena por posseiros. A partir dessa invasão, o desmatamento aumentou ainda mais na terra indígena.

Os Xavante também enfrentam casos de violência, como dois recentes incêndios criminosos. Num dos casos, o ônibus do transporte escolar foi queimado, mas ninguém ficou ferido Devastação “Os posseiros são peixinhos dos fazendeiros, dos prefeitos. Eu digo para eles: não escuta conversa de político. O fazendeiro vai te dar um pedaço da fazenda dele? Não vai. Quando sair a decisão de que a terra é nossa, é o fazendeiro que vai para a estrada? Não. Eu digo: você tem que sair daqui e lutar pelos seus direitos. Eu estou aqui porque é nossa terra”, argumenta o cacique Damião. Ele cos-

tuma andar pela terra dialogando com os posseiros e monitorando o avanço dos desmatamentos e do arrendamento de terras. Segundo Damião, os grandes fazendeiros da região arrendam a terra dos posseiros de Maraiwatsede para usá-la como pastagem. Ao lado da terra indígena, há um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) chamado “Bordolândia”. Diversos posseiros da região têm lotes na área, mas, segundo Damião, alguns fazendeiros impedem os posseiros de Maraiwatsede de se cadastrarem para conseguir um lote na área. “Eles acham que vão ganhar, aí não se cadastram”, informa Damião. Além dos arrendamentos, os grandes fazendeiros seguem desmatando a terra. Em 2008, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) aplicou uma multa de R$ 20 milhões ao dono da Fazenda Conquista, que desmatou 4 mil hectares da terra indígena entre 2003 e 2005. Em 2009, outra operação do Ibama aplicou novas multas e embargou 6 mil hectares de fazendas da região que estavam plantando grãos em áreas recém-desmatadas. A terra Maraiwatsede fica na área do Vale do Araguaia, onde tem havido expansão da produção da soja nos últimos anos. A construção de dois celeiros – um da Bunge e um da Cargill – próximos da terra é um indicador dessa situação. Além disso, o asfaltamento da BR-158, que corta o território Xavante, seria um impulsionador do desmatamento na região. “Não queremos o asfalto na nossa terra”, enfatiza o cacique Xavante. Segundo a superintendência regional do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) no Mato Grosso, a BR-158 será redesenhada de forma que a via não passe pela terra indígena. Pressões e avanços Apesar da confirmação do DNIT, Damião segue apreensivo, pois os posseiros afirmam que a estrada passará pela área indígena, próxima do povoado de Posto da Mata. Há um clima de tensão constante na terra, pois os políticos e fazendeiros da região tentam consolidar a presença dos posseiros na terra desenvolvendo o município Alto da Boa Vista, fundado em dezembro de 1991, quase totalmente dentro de Maraiwatsede. “Quase todos os políticos da região têm terra aqui. Tem desembargador com fazenda aqui, vizinho da fazenda do Filemom [Limoeiro, prefeito de São Félix do Araguaia]. E tem um deputado, Daltinho [deputado estadual Adalto de Freitas], que engana os pequenos para que continuem na área. Não quer perder votos aqui, então está organizando os políticos em Cuiabá contra nossa terra”, explica Damião. Os Xavante também enfrentam casos de violência, como dois recentes incêndios criminosos. Num dos casos, o ônibus do transporte escolar foi queimado, mas ninguém ficou ferido. No outro, fazendeiros da região tocaram fogo na área onde pastavam algumas cabeças de gado dos índios. A pressão constante não impede os Xavante de avançarem na reconquista de sua terra. A aldeia já conta com uma escola de ensino fundamental, onde todos os professores e a diretora são do povo. Eles reivindicam classes de ensino médio e se preparam para isso, pois os alunos mais velhos precisam estudar em escolas nas cidades vizinhas, que não oferecem ensino diferenciado e específico para os Xavante. Desnutrição A aldeia também conta com posto de saúde. Não há uma equi-

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Mentira ianque

Ao assumir a presidência dos Estados Unidos, Barack Obama prometeu desativar em um ano o campo de concentração mantido na base militar de Guantánamo. A prisão continua, e agora se fala na transferência dos prisioneiros – afegãos e árabes sequestrados em diversos países – para outro presídio em Illinois, no território estadunidense. Na verdade, esperava-se que esses presos políticos fossem libertados. A violação de direitos humanos continua.

Esquema tucano

Circula na internet informações, atribuídas às investigações da Polícia Federal sobre o caso de corrupção no governo do Distrito Federal, que relacionam personagens e empresas que operaram em Brasília com os governos de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (DEM), respectivamente no Estado e na prefeitura de São Paulo. A imprensa neoliberal tem feito de tudo para proteger o esquema tucano. Como sempre!

Esquema Opportunity

O Superior Tribunal de Justiça suspendeu o juiz Fausto De Sanctis de praticar qualquer ato no processo contra o banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity, até que o STJ julgue o pedido de suspeição do juiz apresentado pela defesa de Dantas. Assim, no mínimo o processo fica parado até fevereiro de 2010, devido ao recesso do Judiciário. Confirma-se a previsão de que nas instâncias superiores o esquema do banqueiro funciona mesmo.

Ação policial

O cacique Damião monitora o desmatamento e do arrendamento das terras

“Eu sinto falta da flor na mata. Lembro quando o vento passava perto, a gente cheirava cheiroso. Agora só tem cheiro de fumaça, gasolina” pe multidiscplinar completa para atender os indígenas, mas há uma enfermeira e uma técnica de enfermagem permanentes. Apesar disso, a saúde dos Xavante de Maraiwatsede enfrenta graves problemas. Mais de 50% das crianças até 5 anos apresentam algum problema nutricional. Nas outras terras do povo, esse índice está em torno de 18%, segundo as enfermeiras do posto da aldeia. A principal causa dessa situação é falta de água na aldeia, o que obriga os indígenas a beberem a água de um rio – poluído por agrotóxicos que escoam das plantações vizinhas. A bomba de água construída pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) não funciona adequadamente desde quando foi instalada. Segundo o cacique Damião, há recursos para a saúde do povo, mas ainda assim faltam remédios e mais profissionais de saúde. No entanto, ele aponta outro motivo para as doenças. “Quando eu era pequeno e morava aqui não era fácil de adoecer. Tinha fruta e caça. Peixe, inhame, buruti, jatobá e mel. Era forte, sadio. Sem misturar açúcar na comida. Agora não tem nada disso, por isso todo mundo fica doente”, lembra Damião. De fato, um dos impactos da devastação é a situação de insegurança alimentar da população. Aos

poucos, os Xavante estão reflorestando a área e diversificando os cultivos. As árvores frutíferas começam a brotar novamente na terra que sempre foi Maraiwatsede – mato bonito. “Eu sinto falta da flor na mata. Lembro quando o vento passava perto, a gente cheirava cheiroso. Agora só tem cheiro de fumaça, gasolina. Acabou a floresta. Antigamente mato alto, passarinho, tucura, arara, macaco... Cadê macaco?”, recorda Damião. Para fortalecer a luta, ele reúne as lembranças da terra onde viveu até o dia em que, aos 12 anos, correu para o mato com medo do avião. Soma a elas a lembrança do pai e de dois irmãos que morreram vítimas de sarampo – junto com dezenas de outros Xavante – alguns dias depois da chegada à terra São Marcos. Damião e os demais indígenas que viveram a expulsão e o retorno para Maraiwatsede passam para os mais jovens a história da terra. Dessa forma, os futuros guerreiros Xavante, que são formados desde pequenos segundo a forte tradição do povo, saberão seguir firmes na batalha pela terra onde viveram seus antepassados. A altivez única desse povo – que não curva os grandes corpos diante da prepotência – não deixa dúvida de que eles vencerão.

Primeiro voto no TRF é favorável ao povo Xavante Após voto de relator, juiz pede vista do processo, que será retomado no início de 2010 No dia 16 de novembro, os Xavante alcançaram mais uma vitória na luta pelo reconquista de Maraiwatsede. No julgamento sobre a ação que pede a retirada dos não-índios da terra, o juiz federal Pedro Francisco da Silva, relator do processo no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), indeferiu o recurso dos fazendeiros e posseiros que ocupam a área indígena e considerou válido o processo de demarcação da terra. Após o voto do relator, o desembargador João Batista Moreira pediu vista do processo e anunciou que retomará o julgamento do caso no início de 2010, quando ele apresentará seu voto. “O primeiro voto foi bom, mas a gente fica um pouco sem paciência, porque já tem muito tempo que a gente quer viver de novo na nossa terra. Os velhos queriam voltar para morrer lá, por isso voltamos. Dizem que não tinha Xavante lá. Isso é mentira. Eu nasci em Maraiwatsede e fui levado de lá com meu pai, meus irmãos...”, avaliou o cacique Damião após a sessão.

De acordo com o ministro da Justiça, Tarso Genro, em 2009 a Polícia Federal realizou 43 operações especiais de combate à corrupção, nas quais foram detidos 386 suspeitos, sendo 83 servidores públicos, além de banqueiros, empresários, lobistas e estelionatários em geral. Todos os detidos foram soltos, e os processos tramitam lentamente no Judiciário. Segundo o ministro, a corrupção será o foco principal da PF em 2010.

Irresponsabilidade

Interessado em agradar o agronegócio, latifundiários e predadores em geral, o presidente da República decidiu adiar até 2012 a aplicação das multas a quem desrespeitou o limite de corte da vegetação nativa em suas terras. Assim a União deixou de arrecadar aproximadamente R$ 10 bilhões, além de demonstrar que o discurso da preservação ambiental não vale para os ruralistas e as empresas que estão devastando o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia.

Desoneração

A União deixará de arrecadar em 2010 mais de R$ 5 bilhões devido às últimas reduções e isenções de impostos aprovadas pelo governo federal, que inclui a prorrogação da alíquota zero de PIS/Cofins para a venda de computadores, a suspensão de tributos para empresas com investimento no refino de petróleo e na indústria petroquímica e a prorrogação de IPI reduzido para as fábricas de automóveis e caminhões. Não importa a margem de lucro!

Eleição – 1

Com posição isolada dentro do PMDB, que está dividido entre as candidaturas de José Serra e Dilma Rousseff para a presidência da República, o governador do Paraná, Roberto Requião, não apenas aceita a indicação de seu nome pelo partido como também tem procurado articular uma aliança mais ampla com Ciro Gomes (PSB), Marina Silva (PV) e Heloísa Helena (Psol). Até o momento essa proposta está distante de ser concretizada.

Eleição – 2

Persiste em correntes de base do Psol a defesa de candidatura própria contra a proposta da maioria da direção nacional, de composição com a candidatura de Marina Silva, do PV. A pré-candidatura de Plinio Arruda Sampaio embala a ideia de que a construção do partido depende de proposta bem diferenciada das demais candidaturas, especialmente comprometida com o socialismo. Como aconteceu com o PT nos idos dos anos de 1980.

Avanço direitista

É perceptível o avanço da direita no Brasil (CPMI contra os sem-terra, impunidade nos crimes de corrupção, utilização das polícias militares para reprimir movimentos sociais e lideranças populares etc.), mas muita gente de esquerda evita relacionar essas ações concretas da direita com as políticas de conciliação de classes adotadas por correntes hegemônicas que tempos atrás defendiam os trabalhadores e as esquerdas. Só não vê quem não quer!


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Confecom: é dado o primeiro passo Ricardo Stuckert/PR

COMUNICAÇÃO 1ª Conferência Nacional de Comunicação termina com avaliação positiva. Mas nada garante que as propostas aprovadas serão implementadas Leandro Uchoas da Redação DESDE 2003, o governo Lula já havia realizado 48 conferências temáticas. Pelo menos 4 milhões de pessoas foram mobilizadas. Entretanto, um setor estrutural na construção de democracia efetiva no país não era contemplado. A Comunicação talvez fosse a área onde a realização do encontro era mais difícil, principalmente devido à oposição sistemática dos grandes veículos. Sabidamente dotados de relativo poder de mobilização contra um projeto, usavam-no para demonizar a possibilidade de se realizar o evento. Porém, entre os dias 14 e 17, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) finalmente ocorreu em Brasília (DF). Após um processo tortuoso e instável de construção que envolveu 30 mil pessoas, a Confecom foi avaliada positivamente tanto por movimentos sociais como pelo governo e pelos setores empresariais que dela participaram. Reivindicações históricas dos movimentos de comunicação foram aprovadas. Entretanto, é de se desconfiar que setores de interesses tão díspares tenham celebrado. Para virar lei, as propostas ainda precisam passar pelo Congresso Nacional, e quadros do governo dão sinais de que não estão totalmente dispostos a comprar a briga. “Existe um conjunto de propostas, muitas delas positivas, que passou pelos três segmentos. Isso ninguém pode ignorar. Se não forem implementadas, elas serão propostas aprovadas pela sociedade civil, governo e empresários que não foram implementadas”, diz Oona Castro, do Coletivo Intervozes. Para ela, o desafio agora é manter “a mobilização que foi criada”. A organização do movimento de comunicação é tida, por si só, como um dos principais avanços da Conferência.

“O governo vai examinar as propostas. O que ele concordar, vai fazer. O que não concordar, não vai fazer”, disse Franklin Martins Conquistas

Algumas das propostas anteriormente consideradas de difícil aprovação – por contrariar os interesses dos setores empresariais – foram avalizadas. A criação do Conselho Nacional de Comunicação é uma das bandeiras históricas aprovadas, para espanto de muitos – por simbolizar o “controle social da mídia” que os grandes veículos costumam rotular de “censura”. Marcelo Bechara, presidente da comissão organizadora, deu declaração comemorando a criação do conselho. Outras importantes resoluções foram a proibição de candidaturas políticas de donos de concessão e a descriminalização das rádios comunitárias. Também foi aprovada a necessidade de realização de au-

Michel Temer, Lula, Hélio Costa e Franklin Martins durante a abertura da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom)

diências públicas para renovação de concessões. Ao todo, 601 propostas foram aprovadas ainda nos 15 grupos de trabalho (GT), por terem obtido mais de 80% de votos dos delegados. Das 118 outras proposições que chegaram à plenária final, nem todas foram votadas. Enquanto 60% delas foram avalizadas, e 10% rejeitadas, outras 30% não foram analisadas por falta de representação – muitos delegados tiveram que se ausentar por conta do horário de suas passagens aéreas. Empresários

Antes do evento, havia muita resistência quanto ao comportamento do empresariado na Conferência. O movimento de comunicação via com pessimismo a possibilidade de avanços, já que os empresários poderiam vetar temas considerados “sensíveis” se não atingissem 60% de aprovação. O mecanismo terminou sendo utilizado com frequência menor do que o esperado. Entretanto, algumas propostas importantes terminaram barradas pelo veto, como as cotas para produção regional e os conselhos de regulamentação de conteúdo. Os setores empresariais estavam representados na Conferência por duas entidades. As radiodifusoras, pela Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra) – em essência, Bandeirantes e RedeTV!; as teles, pela Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil). A presença de ambas ajudou a legitimar os resultados dos trabalhos. Entidades como a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) e Associação Nacional de Jornais (ANJ) retiraram-se ainda durante o processo de construção do encontro, alegando “ameaça à liberdade de imprensa”.

Aliança

Uma aliança heterogênea surpreendeu os ativistas logo no início do evento. As entidades ligadas ao Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), à Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) e à Central Única dos Trabalhadores (CUT) aliaram-se às organizações de representação do empresariado. A inesperada aliança facilitou o diálogo durante as negociações, mas foi interpretada como traição por parte das entidades que representavam a sociedade civil. “Os acordos foram muito difíceis, mas a gente se abriu para o diálogo. O resul-

tado foi a aprovação de quase 700 propostas por consenso. E agora a pressão sobre o Legislativo aumenta. Quando o capital pressiona junto, a força é muito maior. Nós entramos no século 21 na Comunicação”, interpreta Roseli Goffman, do Conselho Nacional de Psicologia, ligado ao FNDC. “Saímos da atopia para a utopia. Agora temos uma pauta de reivindicações”, complementa. O governo

A Conferência começou com uma vaia estridente ao ministro Hélio Costa (PMDB) e um discurso ácido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em seu pronunciamento, Lula deu um recado aos empresários que abandonaram o espaço. “Não será enfiando a cabeça na areia, como avestruz, que enfrentaremos o problema. Não será tampouco fechando os olhos para o futuro ou pretendendo congelar o passado que lidaremos corretamente com a nova situação”, disse. Apenas pela mobilização que causou, e por colocar pela primeira vez a comunicação como eixo central de políticas públicas, a 1ª Confecom já poderia ser avaliada como positiva. A aprovação de reivindicações históricas animou ainda mais os ativistas da comunicação. Entretanto, mal se comemorava os supostos avanços, o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, já dava sinais preocupantes de que tudo pode ter sido jogo de cena. “O governo vai examinar as propostas. O que ele concordar, vai fazer. O que não concordar, não vai fazer”, disse, sem explicar para que serviria então a Conferência senão para orientar as demandas dos três segmentos representados. O tema da Confecom foi “Comunicação: Meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital”. Reuniu 1.684 delegados do setor empresarial (40%), sociedade civil (40%) e poder público (20%). Três eixos orientaram as discussões, em 15 GTs: “cidadania: direitos e deveres”, “produção de conteúdo” e “meios de distribuição”. Uma série de problemas de organização ocorreu, como o enorme atraso na fila de cadastro e a compra de passagens aéreas para os delegados no dia da plenária final, que resultaram em inevitáveis consequências políticas – mais de 30 propostas não foram votadas. A próxima Conferência ficou marcada para 2012.

Cobertura da mídia alinha-se a interesses díspares Globo e Record pouco falaram, com repulsa. Band e RedeTV! deram grande destaque, com controle. Jornalões atacaram Elza Fiúza/ABr

da Redação A cobertura que a mídia comercial faz de eventos que ameaçam seus privilégios sempre foi vista com especial interesse. É o momento em que possíveis manipulações ou omissões se tornam mais visíveis. Durante a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), a cobertura que os grandes veículos fizeram das discussões foi, portanto, variada. Enquanto emissoras como Globo e Record deslegitimavam a Conferência, tentando rotulá-la de autoritária, Bandeirantes e RedeTV! cobriam diariamente – com fontes, quase sempre, do FNDC ou da Fenaj. Assim como as emissoras que se retiraram da organização, os jornalões quase não falaram sobre o evento. O Estado de S. Paulo, que deu um pouco mais de espaço à Confecom, seguiu a orientação de deslegitimar – lembrando a re-

Público acompanha o segundo dia da conferência

tirada da maioria das entidades patronais – e condenar todas as propostas como autoritárias. O Globo publicou editorial em que afirma: “a Confecom, como previsto, aprovou propostas que vão contra a liberdade de imprensa e expressão, procuram intervir nas redações e criar obstáculos à ação da iniciativa privada nos meios de comunicação. Todos projetos de vezo inconstitucional”. O jornal aproveitou para criticar a democratização do setor em países

como Argentina, Venezuela e Equador. No Jornal Nacional, Willian Bonner afirmou: “a representatividade da conferência ficou comprometida sem a participação dos principais veículos de comunicação do Brasil”. Enquanto a Globo falava pouco e mal do evento, Bandeirantes e RedeTV! exibiam vastos minutos de seus telejornais com reportagens. A mídia alternativa cobriu exaustivamente toda a programação, nos mais variados suportes midiáticos. (LU)

Algumas propostas aprovadas na 1ª Confecom ✓ Criação do Conselho Nacional de Comunicação, para deliberação e monitoramento de polí-

ticas de Comunicação ✓ Proibição de candidaturas de pessoas concessionárias de veículos ou que tenham parentes concessionários ✓ Descriminalização das rádios comunitárias sem outorga e anistia de radialistas condenados ✓ Necessidade de realização de audiências públicas para renovação de concessões ✓ Reconhecimento do direito humano à comunicação ✓ Divisão do espectro radioelétrico – 40% para o sistema público, 40% para o sistema privado e 20% para o sistema estatal ✓ Criação de fundo público para financiamento da produção independente, educacional e cultural ✓ Criação de observatórios de mídia dentro das universidades públicas ✓ Proibição da publicidade dirigida a menores de 12 anos ✓ Criação de um centro de pesquisa multidisciplinar sobre as questões da infância na mídia ✓ Criação de um marco civil da internet ✓ Retorno da exigência do diploma para exercício do jornalismo ✓ Concepção de um fundo de apoio às rádios comunitárias e isenção de direitos autorais a elas ✓ Criação de um operador de rede digital para as emissoras públicas gerido pela EBC ✓ Manutenção de cota de telas para filmes nacionais ✓ Tarifas diferenciadas oferecidas pelos Correios para pequenas empresas de comunicação ✓ Garantia de emissoras públicas da TV por assinatura em canais da TV aberta ✓ Inclusão digital como política pública de Estado, que garanta acesso universal


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cultura

Uma escola sem

distinção de classe

RESENHA Lançamento de documento histórico e inédito sobre a construção da Escola Única, no período mais fértil da revolução soviética, faz avançar o debate sobre a educação no Brasil Cecília Luedemann A PUBLICAÇÃO de A EscolaComuna, coletânea de textos escrita por educadores que participaram da construção da Escola Única e organizada por Moisey M. Pistrak, é tão importante quanto a publicação de Poema Pedagógico, de Anton S. Makarenko, nos anos de 1980, no Brasil. No entanto, esse relato literário sobre a educação de uma nova geração de revolucionários na “Colônia Gorki” já era conhecido, pelas traduções em espanhol, nos anos de 1950, diferente de A Escola-Comuna, publicado em 1924 em Moscou e nunca traduzido. No prefácio dessa edição em russo, N. K. Krupskaya, do Comissariado Nacional da Educação da União Soviética, explica essa primeira da série de publicações da Seção Científico-Pedagógica, biblioteca da revista Caminhos para a nova escola: “A coletânea publicada, que descreve a vida da primeira Escola-Comuna experimental do Comissariado Nacional da Educação, reflete o enorme trabalho realizado. Ela narra como a escola cresceu internamente e desenvolveu-se – percorre todo o caminho do seu desenvolvimento, momentos críticos, crises de crescimento, dificuldades que teve que superar”.

A leitura de A Escola-Comuna nos mostra a construção de uma nova escola – totalmente oposta à que conhecemos hoje no capitalismo Essa magnífica contribuição sobre as primeiras experiências de construção da Escola Única no primeiro período da revolução socialista só pôde chegar em nossas mãos com a pesquisa de Luiz Carlos de Freitas (Unicamp) sobre fontes bibliográficas, entre elas a obra de Pistrak, durante seis meses na Rússia, em 1996. O seu retorno com esse livro inédito custou-lhe dez anos de dedicação para traduzi-lo para a língua portuguesa do Brasil, com a colaboração de Alexandra Marenich. Além do precioso documento, a edição traz a pesquisa realizada por Freitas sobre a Pedagogia do Meio: “Não devemos perder de vista neste processo que uma pedagogia do meio é, antes de mais nada, uma pedagogia crítica de seu meio e que, portanto, forma sujeitos históricos (auto-organizados)”. Embora A Escola-Comuna tenha demorado para chegar ao conhecimento do público brasileiro, a obra retoma o debate sobre a Escola Única justamente em um dos momen-

tos mais críticos da educação brasileira. A crise educacional aparece na mídia corporativa como um “mal”, mas nunca como as mazelas da escola capitalista ou como dívidas do Estado. De acordo com censo do Ministério da Educação sobre a educação básica, neste ano, quatro em dez alunos não estão matriculados no ensino fundamental de nove anos. Além do acesso não estar garantido a todos, questiona-se a qualidade do ensino público. O dedo acusador dos governantes aponta os culpados: os professores, pelo mau preparo, e os alunos, pelo vandalismo. Na academia, o modelo neoliberal implantado nas universidades destina verbas para pesquisas fragmentadas e imediatistas das teorias pós-modernas: analisam formação docente, estudam currículo, questionam a avaliação, e vai por aí afora. O Estado capitalista não pode resolver os impasses colocados pela crise educacional. Somente um Estado sob comando dos trabalhadores pode construir uma escola única, que rompa o dualismo: a educação para os filhos da elite, para comandar, e a educação para os filhos da massa trabalhadora, para serem comandados, ou, ainda, entre a cidade e o campo. A escola socialista é garantida pelo Estado para todos e está articulada com o meio, sob o princípio educativo do trabalho, com um conteúdo geral único e a participação diferenciada e cultural tanto da cidade como do campo. A leitura de A Escola-Comuna nos mostra a construção de uma nova escola – totalmente oposta à que conhecemos hoje no capitalismo – no período da guerra civil, de 1918 a 1923, depois da tomada do poder pelos trabalhadores. O livro está organizado em duas partes: a escola do trabalho do período de transição, escrito por Pistrak; e os relatos dos educadores sobre o trabalho com as disciplinas Matemática, Ciências Naturais, História, Ciências Sociais, Ciências Econômicas, Literatura e Artes Plásticas. Aqui encontramos restabelecido o princípio da totalidade contra o da fragmentação. A escola é um todo, indivisível, dirigido sob o princípio do trabalho – não separa a formação intelectual da criação manual, sob a direção coletiva de educadores e educandos, nem a participação dos estudantes nas lutas gerais da classe trabalhadora. Por isso a dedicatória dos autores aos alunos da escola experimental de Moscou: “Participantes invisíveis, indiretos, mas longe de serem os últimos na criação desta coletânea, devem-se considerar, com pleno direito, nossos camaradas mais novos – nossos mopshks – os estudantes da comuna escolar”. E como seria a vida nessa escola? É a vida propriamente dita, com desafios enfrentados pelo coletivo de educado-

res e educandos. É uma vida cheia de dificuldades econômicas e políticas do período da guerra civil, mas extremamente ativa e criativa. Inicialmente, as crianças temiam estudar na Escola-Comuna porque esta era alvo dos contrarrevolucionários, mas depois passaram a defendê-la com armas contra as tentativas de invasões e com a educação das famílias contra as mentiras dos oportunistas. O dia escolar é pleno de aprendizagens diversificadas e participação da vida coletiva, desde as 8 horas, quando acordam já com um plano na cabeça a ser compartilhado com os grupos de trabalho da autodireção da Escola-Comuna. As crianças se trocam, arrumam os dormitórios, alimentam-se e dirigem-se para os gabinetes de estudo com os professores: “Ele examina cadernos e anotações, envolve o estudante em conversas, recebe dele trabalhos, mapas, descrição de experiências, preparações, conversa com ele no tempo livre – seus conhecimentos, habilidade de trabalhar e interesse, então, são sempre visíveis”. Depois de uma hora e meia de aula, as crianças se organizam em grupos para o auxílio na preparação, distribuição e limpeza da cozinha.

Depois almoçam com a liberdade de repetir a refeição. O intervalo do almoço vai até às 15 horas. Mas o dia escolar não terminou. De manhã, o trabalho intelectual, à tarde o trabalho manual. Das 15 às 19 horas, as crianças aprendem nas oficinas de encadernação e marcenaria. O grupo mais velho dirige-se à fábrica. E, em rodízio de folgas, outros grupos vão para casa, estudar em grupos, brincar ou passear. O que fazem à noite? Círculos culturais e científicos tomam conta do período noturno. Um por semana: seja de literatura, de artes, de ciências naturais etc. Depois do jantar, às 21 horas, a escola transforma-se em uma “pequena família”, com a leitura em voz alta de um bom livro. Mas nem todos querem ouvir, alguns estão preocupados com seus estudos ou querem conversar com amigos. As crianças estão livres para o descanso. Um sinal toca às 22h30 para o fim do dia escolar. As luzes se apagam. Hora de dormir, para os educandos. Mas o dia ainda não terminou para os pedagogos: no silêncio do fim da noite, eles avaliam o dia que passou na Escola-Comuna e planejam os dias que virão.

Pela defesa desses princípios revolucionários, os pedagogos Pistrak e Pinkevich foram fuzilados em 1937 pelo Estado estalinista Um livro raro, único, que não busca receitas, nem modelos. Ao contrário, revela a construção da nova escola socialista sob os dilemas históricos e lutas de posições políticas diante dos objetivos da educação. Uma experiência educacional dirigida por Pistrak dentre as 100 escolas experimentais que vivenciaram a construção de uma nova pedagogia para a escola única, sob a direção de Lunatcharsky e Krupskaia, pela formação científica, cultural e política ampla e pela criação da autodireção. Pela defesa desses princípios revolucionários, os pedagogos Pistrak e Pinkevich foram fuzilados em 1937 pelo Estado estalinista, quando a reforma educacional retomou definitivamente a aula como centro da escola, e a

formação técnica como objetivo da industrialização soviética na tese do socialismo num só país. Uma teoria presente nas experiências de formação pedagógica e política do Instituto Educacional Josué de Castro e pelas escolas itinerantes do MST. Um livro de referência para todos: educadores, educandos e trabalhadores comprometidos com a luta socialista. Cecília Luedemann, jornalista, educadora e colaboradora da Editora Expressão Popular e do setor de educação do MST, é autora de Anton Makarenko – A pedagogia na revolução (Coleção Vida e Obra – Editora Expressão Popular) e de Carrapicho (Coleção Terra de Livros Infanto-Juvenil – Editora Expressão Popular).

CRÔNICA

Um homem de bem Luís Alberto S. Ferreira JOÃO É UM homem de bem. Trabalha em uma grande empresa. Tem muitos amigos por lá. Não para nas reuniões na porta da fábrica. Não quer sofrer desconto de alguns minutos ou horas em seu pagamento. Tampouco participa de atrasos, paralisações ou greves. Sabe que vai receber tudo o que os outros lutaram para conquistar. João é um trabalhador dedicado. Executa suas tarefas com afinco na esperança de ter seu trabalho reconhecido, receber aumento e promoção. Tem pouco tempo para se dedicar à família, pois precisa fazer horas-extras para pagar o carro novo que comprou. Assume alguns riscos durante a jornada de trabalho. Não observa os procedimentos de segurança a fim de realizar as tarefas com maior rapidez. Não se preocupa com os riscos à sua saúde. Acredita que agindo assim vai engordar sua participação nos lucros da empresa. João é um homem de família. Beija a esposa sempre que sai para trabalhar. Seus filhos sempre estudaram em boas escolas. Não sabe como não conseguem seu primeiro emprego. Não

entende como podem passar seus dias na internet ou em jogos de computador e nunca ouviram falar em Habermas, Marx ou Rousseau. João é um homem bem informado. Adora assistir televisão e acredita em tudo o que vê na tela de plasma. Prefere programas mundocão. Não sabe como traficantes tão pobres possuem armamentos tão sofisticados. Lê jornais diariamente e tem por verdades tudo o que está escrito naquelas páginas impressas. Não é de questionar nada. Sua

opinião reproduz o que lê, vê e ouve diariamente nos meios de comunicação. João é um homem pacato. Não quer saber de política. Não entende de economia. Acredita que há igualdade entre os homens, mas pensa que alguns são mais iguais que outros. Acha que tudo o que conseguiu na vida foi fruto do seu próprio esforço e que cada um tem o que merece. Pensa que a luta de classes e a disputa entre capital e trabalho chegou ao fim com a queda de um muro. Não acredita no poder das flores.

Não possui ideologia. Não fomenta sonhos ou utopia. Não percebe que a terra e os recursos naturais, que são explorados em benefício de poucos homens, na verdade pertencem, em partes iguais, a toda a humanidade. João é um alienado. Pobre João! Luís Alberto S. Ferreira, jornalista e advogado, é técnico de operação pleno da Petrobras e diretor do Sindicato dos Petroleiros de Duque de Caxias (Sindipetro Caxias).


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internacional

EUA e Europa são responsáveis por fracasso de Copenhague AQUECIMENTO GLOBAL Países ricos se esquivam de responsabilidade histórica, e conferência termina sem acordo Ricardo Stuckert/PR

Dafne Melo da Redação “O RESULTADO da conferência foi reflexo daquilo que os países ricos estavam dispostos a oferecer, ou seja, pouca coisa”. A opinião é de Iara Pietricovsky, membro do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e participante da 15ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas (COP15). O sentimento de frustração e fracasso parece ter sido o único consenso do evento, segundo os participantes ouvidos pelo Brasil de Fato. “Foi decepcionante, perdeuse uma grande oportunidade”, avalia João Felício, secretário de Relações Internacionais da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Após duas semanas de debates, entre os dias 7 e 19, não houve consenso entre os países participantes sobre planos e metas, uma das condições exigidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) para se construir um documento final. O máximo conquistado foi uma declaração por parte de alguns países – que tem sua legitimidade questionada por países como Venezuela, Cuba e Bolívia (ver matéria abaixo). Além de fraca, ela não é vinculante, ou seja, os países signatários não têm nenhuma obrigação legal em relação ao seu conteúdo. “Além de todos os problemas internos, o documento não tem validade nenhuma”, explica Luiz Zarref, engenheiro agrônomo e integrante da Via Campesina. O documento – que a própria ONU reconheceu não passar de uma carta de intenções – foi costurado basica-

Encontro multilateral entre China, Índia, EUA, Brasil e África do Sul ocorrido durante a COP-15, na Dinamarca

“Fizeram esse jogo de empurra-empurra. Ficou muito claro que esses países – incluindo Japão, Canadá e Austrália – não estão preocupados” mente pelos Estados Unidos, Brasil, China e Índia. A União Europeia se declarou “decepcionada” com o documento, mas o acatou. Venezuela, Cuba, Bolívia, Nicarágua, Costa Rica, Sudão e Tuvalu – país insular ameaçado de sumir do mapa com o aquecimento global – foram alguns dos que rejeitaram o acordo.

Sem metas O texto não fixa metas de redução da emissão de gases do efeito estufa, um dos principais objetivos da COP-15. Fala apenas em adotar medidas para que o aumento da temperatura do globo não exceda 2 ºC e cria um fundo que destinaria 100 bilhões de dólares por ano, antes de 2020,

para enfrentar as necessidades dos países em desenvolvimento. “Os fundos virão de uma ampla variedade de fontes, públicas e privadas, bilaterais e multilaterais”, define o acordo. Entre 2010 e 2012, deverão ser doados 10,6 bilhões de dólares pela União Europeia; 11 bilhões pelo Japão; e 3,6 bilhões pelos EUA. “Entre o que se tinha com o Protocolo de Kyoto e agora, saímos do ruim para o péssimo”, avalia Zarref. Para Iara Pietricovsky, a falta de consenso e as propostas rebaixadas evidenciam que há uma minoria de nações realmente preocupada em enfren-

Movimentos apostam na próxima COP Reprodução

Continente latinoamericano irá sediar a próxima conferência sobre clima; movimentos sociais querem construir grande mobilização da Redação Em dezembro de 2010 será a vez da Cidade do México receber chefes de Estado de todo o mundo a fim de elaborar soluções para as mudanças climáticas. Com o fracasso de Copenhague, as esperanças já começam a se voltar para a COP-16. A Organização das Nações Unidas (ONU) aposta na obtenção do difícil consenso para o ano que vem. O secretário-geral, Ban Ki-moon, afirmou que trabalhará para fazer com que o acordo fechado entre parte dos países participantes seja consensualizado e vinculativo (ou seja, com força de lei nos países signatários) em 2010. Para os movimentos sociais, a próxima COP também é motivo de esperança. “Queremos aproveitar que estaremos na América Latina, onde há movimentos sociais de massa, para pressionar os governos”, conta Luiz Zarref, da Via Campesina. A exemplo do que ocorreu em Copenhague, a perspectiva também é realizar um fórum paralelo, que este ano foi o Kli-

Chávez em Copenhague; COP-16 será no México

mafórum. “Daqui até o México há apenas um ano, mas um longo caminho para construir mobilizações, o que inclui sensibilizar a sociedade para o tema”, afirma Iara Pietricovsky, do Inesc. Propostas Participaram do evento paralelo movimentos sociais de todo o mundo. “Houve um consenso importante de que temos que mudar o sistema para conseguir combater o aquecimento global”, diz Zarref. Outro ponto de convergência foi o rechaço a alternativas de mercado – como o comércio de créditos de carbono – e ao atual modelo da agroindústria, responsável, direta e indiretamente, pela maior parte das emissões de gases do efeito estufa. O integrante da Via Campesina opina que a esquerda também terá a tarefa de aprofundar as propostas concretas para apresentá-las à so-

ciedade. Para Iara, hoje há dinheiro, conhecimento e tecnologia para começar a impulsionar essas mudanças. “O que não temos é vontade política”. Uma das propostas definidas na declaração final do Klimafórum é a mudança no modelo agrícola. “Nossa proposta, como movimento camponês, é que podemos produzir alimentos de maneira sustentável, diferente do modelo que temos hoje, baseado no uso de agrotóxicos, monocultivo e devastação, fatores que contribuem para emissão de gases do efeito estufa”. Outras propostas do Klimafórum foram o investimento em transporte público, de modo a reduzir drasticamente o uso do carro individual; redução do consumo energético, sobretudo nos países ricos; investimentos em fontes limpas de energia (solar, eólica e geotérmica); investimento público em pesquisas e edu-

cação acerca do tema, dentre outros. Repressão Para Iara, que também participou do fórum alternativo, um dos pontos positivos foi criar a unidade entre movimentos sociais e ambientalistas em torno de pautas comuns. “As catástrofes que já estamos vendo – e que devem aumentar – não são somente ambientais, mas sociais, na medida em que passam a matar pessoas, a destruir seus meios de subsistência, por isso esses dois elementos não podem ser dissociados. Para Zarref, entretanto, ainda é necessário criar unidade em torno de qual é o sistema alternativo que as organizações têm a propor. “Os países europeus, talvez pela experiência do socialismo real no leste, têm muita resistência em falar em socialismo como alternativa ao que temos hoje”. Para Zarref, um dos pontos altos foi a mobilização unitária de 12 de dezembro, que juntou 100 mil pessoas nas ruas de Copenhague. Entretanto, o militante da Via Campesina chama a atenção para a forte repressão que se viu na capital dinamarquesa. “O que vimos lá não foi a repressão violenta, mas de caráter preventivo. Nas duas semanas, calcula-se que 4 mil pessoas foram presas. Foi uma ação de inteligência e infiltração”, afirma. Para Zarref, a mudança é preocupante, pois mostra uma institucionalização do Estado policial. “No último dia fui falar em um debate com outros quatro dirigentes, mas quando cheguei tive que falar sozinho, pois o resto estava preso”, relata. (DM)

tar o problema do aquecimento global. “Os que possuem poder e privilégios não querem ceder; querem manter um padrão de vida e consumo que não é sustentável”. Há certo consenso, desde a realização da Eco-92, de que os países ricos têm uma responsabilidade histórica em relação ao aquecimento global, pois foram os primeiros a se industrializar e hoje ainda são os que mais emitem gases do efeito estufa. EUA, ao longo da história, acumula 328 milhões de toneladas de gás carbônico jogadas na atmosfera. A Europa, 301 milhões. A China acumula 92 milhões,

a Índia chega a 26 milhões e o Brasil, a 9 milhões. Ricos e irresponsáveis Outro consenso é que Estados Unidos e União Europeia se omitiram diante de duas responsabilidades. A UE chegou a falar em metas de redução de 20% em relação a 1990, e alguns líderes adotaram um discurso forte no início, mas recuaram após os EUA não cederem e manterem a metade de 17% em relação a 2005, o que, em relação a 1990, fica nos 3%. “Fizeram esse jogo de empurra-empurra. Ficou muito claro que esses países – incluindo Japão, Canadá e Austrália – não estão preocupados”, conta Iara. Para João Felício, não foi demonstrada nenhuma disposição por parte dos líderes em rever o atual modelo de produção, onde estaria a raiz do problema do aquecimento global. “Os países desenvolvidos não conseguem entender que esse tipo de modelo econômico pode levar a catástrofes incontroláveis. Não aceitam discutir qual tipo de desenvolvimento realmente interessa à humanidade”. Iara destaca que a conferência foi marcada muito mais pelas disputas econômicas e comerciais do que por um debate socioambiental. Luiz Zarref conta que as atividades propostas pela delegação brasileira eram basicamente do setor empresarial e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Conforme reportagem publicada na edição 355 (de 17 a 23 de dezembro), a delegação brasileira tinha representantes de empresas do agronegócio, entidades representativas desse setor, empreiteiras, bancos e transnacionais como a Coca-Cola.

As vozes dissonantes Países da Alba afirmam que resultado de Copenhague é uma ameaça para a humanidade; venezuelana diz que documento foi “golpe” na ONU da Redação “Até há muito pouco, discutia-se sobre o tipo de sociedade em que viveríamos. Hoje discute-se se a sociedade humana sobreviverá”. Assim Fidel Castro começa seu artigo de avaliação da COP15, a qual qualificou de antidemocrática. No texto, o cubano ainda manifestou seu apoio à atitude dos presidentes da Bolívia e Venezuela – Evo Morales e Hugo Chávez –, que durante a cerimônia final pediram a palavra. Estava previsto apenas a fala de Barack Obama e de outros 15 chefes de Estado escolhidos pela organização do evento – dentre eles, Luiz Inácio Lula da Silva. Chávez criticou Obama, que já havia saído da conferência “à francesa” quando o venezuelano fez seu discurso. “E assim vai sair o império ianque deste mundo: pela porta detrás, vai sair de maneira indigna”. O líder criticou o fato de que o que a ONU está chamando de “acordo de Copenhague” foi um texto concebido apenas por uma parte dos países presentes. “Não nos convidaram para partici-

par [da reunião] para nada, nem uma consulta para ouvir nossa opinião, e queremos afirmar firmemente que todos os países são iguais”, declarou Chávez. A representante da Venezuela na COP15, Claudia Salermo, afirmou à imprensa venezuelana que o documento é um “golpe” à ONU. “Como é possível que 25 países decidam por todos? Isso é uma farsa”.

“Não nos convidaram para participar [da reunião] para nada, e queremos afirmar firmemente que todos os países são iguais” Os países da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) divulgaram uma declaração após o fim da Conferência. Nela, criticam a atitude dos países ricos, acusam a ONU de ser conivente com os acordos construídos arbitrariamente, a portas fechadas, e ressaltam a necessidade de se pensar outra forma de desenvolvimento. “Claro que não podemos considerar as mudanças climáticas sem falar em mudança de sistema. O modelo de produção e consumo capitalista está levando a um ponto sem retorno a vida no planeta; é um momento crucial da história humana, e o debate não pode ficar reduzido aos interesses econômicos de um pequeno grupo”. (DM)


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américa latina ABI

O fim de todos os empates ANÁLISE Nacionalismo é o elemento unificador dos grupos responsáveis por avançar o processo de mudanças na Bolívia Pablo Stefanoni A ESMAGADORA reeleição, no dia 6, de Evo Morales – com mais de 63% dos votos – reconfigura por completo o campo político boliviano. Pela primeira vez desde os tempos da Revolução Nacional de 1952, um partido consegue uma hegemonia tão ampla, controla ambas as Câmaras Legislativas e, com isso, tem a possibilidade de incidir na conformação do Poder Judiciário. A chamada meia-lua se desarticulou como opção de resistência regionalizada ao projeto nacional encarnado por Evo; a oposição políticoparlamentar constitui um espaço fragmentado e sem lideranças coesas, incapaz de ler a realidade nacional; e a influência política do Movimento ao Socialismo (MAS) se estende até as regiões orientais autonomistas. A combinação entre o evismo (como horizonte identitário) e os pactos corporativos/ territoriais que – como disse Evo – permitiram que nenhum setor ficasse sem candidatura (pelo MAS) conforma uma força política invencível, pelo menos enquanto subsistam essas duas dimensões mencionadas. Frente a isso, os analistas opositores lançam mão das velhas teorias antipopulistas, que explicam o sucedido por um mistura de demagogia caudilhista, manipulação de massas e uso arbitrário do Estado na campanha eleitoral, colocando em dúvida, inclusive, a legitimidade do triunfo com esse inocultável caráter de preconceito de classe, que aos “antipopulistas” custa tanto ocultar.

A campanha eleitoral do MAS – e talvez aí seu êxito – ressaltou sem dissimular a faceta “nacionalista revolucionária” da proposta de governo Revolução antielitista

“Partido hegemônico, oposição fraca e confusa, sem lugar para o centro.” A ex-parlamentar Érika Brockmann sintetizou em essas poucas palavras um processo mais amplo: a revolução antielitista

(e a troca de elites) que se encontra por trás da avassaladora vitória do presidente Evo no dia 6, processo forjado pelo ciclo de rebeliões sociais operadas entre 2000 e 2005. Está aqui, mais do que nas políticas aplicadas, a diferença entre a “revolução democrática e cultural” e experiências como o governo de Lula no Brasil. Na Bolívia, como em poucos lugares, se articulou o ascenso da mobilização social com a capacidade do movimento popular em construir uma alternativa política e acumular poder pelas vias institucionais e extra-institucionais. Mas as coisas mudam, sim, se o que se analisa são as políticas concretas de governo. É sintomático que artigos recentes, como o de Atílio Borón (“Por que ganhou Evo?”, publicado no site Rebelión) por exemplo – quando lista medidas tomadas desde 2006 para mostrar a radicalidade do governo (em relação aos moderados, como o uruguaio) –, se centram nas bolsas sociais, sustentadas com a renegociação dos contratos petroleiros e na alfabetização com o programa cubano “Yo si puedo”. Mas uma caminhada pelos bairros populares de Montevidéu mostra que as políticas sociais são também a base de apoio da Frente Ampla, enquanto que a massiva adesão a Lula no Brasil – especialmente no Nordeste – se explica pelo afeto pessoal a um líder surgido de baixo e por programas sociais como o Bolsa Família. Ou seja, há uma confluência nas fontes de legitimidade política e social nos governos pós-neoliberais latinoamericanos: os de sensibilidade mais social-democrata/ institucionalista e os mais nacionais-populares. Mas, quando as referências são buscadas na “referência outra” (nas palavras de Walter Mignolo) que teria a experiência boliviana, a bússola de análise pode perder-se por completo. Como quando se idealiza a nova criatividade popular “ecocomunitária” e se passa por cima da ideologia unificadora do atual processo de mudanças – que é o nacionalismo popular (com a ambivalência que a identidade indígena reveste o mundo popular) –, mas recupera quase por completo os imaginários modernizadores, industrializantes e desenvolvimentistas, resumidos na proposta de “Estado produtivo social e protetor” do vice-presidente Álvaro Garcia Linera, matizados com expressões “pachamami-

Em La Paz, bolivianos comemoram a reeleição do presidente Evo Morales

Além das biografias, sensibilidades político-ideológicas e apostas pessoais, é o nacionalismo popular ou o pós-neoliberalismo a ideologia que unifica a todos cas”, periféricas e bastante retóricas de alguns setores governamentais sobre o “viver bem”, sem corpo nas políticas oficiais. A campanha eleitoral do MAS – e talvez aí seu êxito – ressaltou sem dissimular a faceta “nacionalista revolucionária” da proposta de governo, como se pôde ver no discurso de fechamento de campanha em El Alto, no qual o eixo do discurso de Evo foi a integração física do país e a inclusão social, além do grande salto industrial, ou seja, os eixos do nacionalismo boliviano em suas variações militares ou populares. É esse discurso nacional-popular que permite unir classes sociais, estratos étnicos culturais e regiões do país em um horizonte comum. Socialismo?

Mas também o discurso anticapitalista ou socialista de Evo pode dar lugar a confuJosé Lirauze/ABI

Reunião de Evo com os novos senadores e deputados do MAS

sões: as próprias bases do MAS são pequenos produtores, rurais e urbanos, em busca da ascensão social negada e, como em outros momentos históricos, habilitada por movimentos nacionais-populares. “[Com esses resultados] Nosso horizonte de grande salto industrial, de Estado social e protetor e de desdobramentos da descolonização e da autonomia será mais rápido, mais contundente e mais decidido”, explicou o vice-presidente Linera em diálogo com o Le Monde Diplomatique - Bolívia, deixando claros os alcances e limites de uma possível “radicalização” pós-eleitoral. Definiu o programa em termos pós-neoliberais: “Em uma sociedade na qual o empresariado é muito fraco, alguém tem que assumir a construção da modernidade, da integração e do bem-estar. Os neoliberais creram que o faria o investimento estrangeiro. Hoje temos um Estado produtivo em petróleo, finanças, energia, mineração, agroindústria, que regula e equilibra. Na Bolívia houve uma revolução mais barulhenta no político, mas mais rápida, mais contundente e menos barulhenta no econômico”. Não obstante, uma parte da esquerda se apega a algumas frases do presidente sobre o socialismo (como fazia a esquerda peronista quando Perón falava de socialismo nacional) no lugar de tentar uma análise séria dos sujeitos e forças sociais em luta, ignorando que, por debaixo, o debate do socialismo é inexistente, que o MAS é tanto uma força de mobilização popular como uma “agência de empregos” e que, por cima, não há nenhuma política pública nessa direção, a menos que chamemos de socialismo medidas indubitavelmente progressis-

tas, frente ao desmonte do Estado nos anos de 1990, mas que não passam de ser timidamente keynesianas/socialdemocratas. A própria esquerda boliviana se submeteu voluntariamente ao “nacionalismo étnico” como tábua de salvação diante da derrota dos anos de 1980 (crise mineira, derrubada do socialismo real, hegemonia neoliberal) ou sobreviveu como partidos-testemunha, com discursos tanto mais panfletários quanto menos incidência têm no debate público. Em todo caso, como aponta Emir Sader, a profundidade dos programas pós-neoliberais dos governos progressistas – e a qualidade de seus resultados – habilitarão ou não na prática as condições para pensar em uma perspectiva pós-capitalista, que sem dúvida está longe de ser a “próxima estação”.

O socialismo parece ficar hoje grande demais frente ao deficit ideológico e estratégico das esquerdas latinoamericanas Desafios

Avançar na desmercantilização e na qualidade da saúde e educação, reduzir os níveis de pobreza (inclusive extrema) que interpelam o atual processo de mudanças e pôr em pé um Estado que funcione são objetivos bem precisos contra o que conspira a sobreatuação ideológica e um maximalismo que frequentemente ficam nos discursos. Nesse marco, a intenção de separar o “evismo” socialista do “alvarismo” capitalista andino – que emerge em algumas análises – não dá nenhuma pista analítica séria; se não, ao contrário, impede uma compreensão do conjunto das atuais tendências do processo de mudanças: mas, além das biografias, sensibilidades políti-

co-ideológicas e apostas pessoais – insistimos –, é o nacionalismo popular ou o pós-neoliberalismo a ideologia que unifica a todos, falem eles de socialismo, de capitalismo andino ou de comunitarismo urbano. Como aponta Fernando Molina, é o nacionalismo a única ideologia que pode ordenar o caos de mentalidades e interesses que tem a sociedade boliviana. E, mais do que isso, o nacionalismo popular remete a um horizonte mais certeiro – e por isso mesmo mais apoiado pela população – que as estéreis propostas de socialismo atual: ascensão social popular, maior peso produtivo e distributivo do Estado etc. Como se organiza hoje uma agricultura socialista? Que tipo de sistema político se assumiria? Com que modelo de empresas estatais e projeto industrial seria compatível? Como se gestionaria os recursos naturais renováveis e não-renováveis? Como se evitariam os problemas da economia de comando que acabou com a produção, com os incentivos e com o sistema mesmo? O socialismo parece ficar hoje grande demais frente ao deficit ideológico e estratégico das esquerdas latino-americanas. Incluindo as que estão no governo. E avançar com os pés na terra, sem abandonar os sonhos, talvez seja uma boa receita para não retroceder, o que é perfeitamente possível. A redução da pobreza, a saúde gratuita para todos, uma educação de qualidade no campo e na cidade e um modelo de desenvolvimento adequado às condições bolivianas são desafios precisos que jogarão o êxito ou o fracasso do processo de mudanças: hoje mais de 30% dos bolivianos seguem vivendo na extrema pobreza. Nem as políticas sociais nem o “derrame” do crescimento foram suficientes para eliminá-la. E sair do neoliberalismo está mais longe do que às vezes pensamos. Nos estados, mas também nas mentes das pessoas. Pablo Stefanoni é diretor do Le Monde Diplomatique, edição boliviana.


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américa latina

Bolivarianos precisam derrotar o capitalismo que persiste na Venezuela ENTREVISTA Para o analista e escritor venezuelano Luis Britto, desafio interno é avançar em um projeto essencialmente socialista Bernardo Londoy/CC

Manuela Sisa de Caracas (Venezuela) DISTANTE DOS anos de polarização e de propostas e projetos sociais impactantes, 2009 na Venezuela tende a não deixar saudades. A crise financeira internacional, que durante o primeiro semestre levou o Executivo a uma aplicação conservadora do orçamento, foi uma trava inicial, não a única, à promessa do presidente venezuelano, Hugo Chávez, de “retificar, reimpulsionar e revisar” seu projeto de governo. Para o analista e escritor venezuelano Luis Britto, 2009 foi um ano “estático”. A ineficiência da gestão pública e a corrupção são as principais críticas ouvidas entre a base de apoio chavista e inclusive entre alguns altos funcionários. Cenário no qual a direita pretende se projetar para buscar sua reestruturação como força política nas eleições legislativas de 2010, pleito em que a oposição promete apostar todas, e suas melhores, fichas para tentar evitar que a base governista mantenha a atual maioria parlamentar. Para Britto, entre outros aspectos, um dos desafios do governo a partir de agora será redefinir a estratégia para a consolidação de um modelo econômico socialista. Para o analista venezuelano, que qualifica o modelo venezuelano como misto, a crise estrutural do país passa pela indefinição do projeto. “É como ter dentro do galinheiro galinhas e raposas. Ao final, só haverá raposas e acabarão comendo o granjeiro”. Brasil de Fato – No início deste ano, o presidente Hugo Chávez prometeu “retificar, revisar e reimpulsionar” o projeto bolivariano, a chamada política dos três “erres”. Isso ocorreu em 2009? Luis Britto – Nesse sentido, 2009 foi um ano estático, em relação ao reimpulso de reformas e no comportamento da administração pública. Se viu muita ineficácia, lentidão, persistem velhos costumes das administrações anteriores. Isso não é raro, porque grande parte dos funcionários deste governo é opositora. É um dos grandes paradoxos deste governo. A crise financeira internacional afetou o desempenho do governo? É assombroso os moderados efeitos que a crise provocou na Venezuela. O anúncio da crise foi catastrófico nas economias desenvolvidas. Aqui, foram adotadas medidas prudentes antes dela, diversificou-se a cesta de divisas para não depender exclusivamente do dólar. Parte das reservas foram trocadas por euros, ienes e outras moedas com maior estabilidade, então, a queda do dólar não afetou diretamente a economia venezuelana. Outro elemento foi o cálculo conservador do valor do barril de petróleo no cálculo orçamentário [60 dólares], nesse sentido não houve sobrevalorização dos ingressos do país. [Até a metade do ano, a média do preço de venda do barril flutuou entre 65 e 70 dólares]. Mas houve queda do produto interno bruto (PIB), a economia entrou em recessão no terceiro trimestre... Sim, mas esse impacto demorou quase um ano. As grandes economias entraram em recessão há um ano. Nosso sistema econômico ainda é misto: capitalista com alguns aspectos socialistas. Estando dentro do sistema capitalista mundial, claro que somos afetados.

Ineficiência da gestão pública e corrupção estão entre as principais críticas ao governo de Chávez

Em quais áreas o governo poderia ter apresentado maiores avanços? Uma das áreas que se poderia ter avançado, um fator crítico da economia venezuelana, é a dependência alimentar. A Venezuela importa mais de 70% dos alimentos que consome, e isso é uma situação muito delicada. O governo deveria ter dado um maior enfoque na produção de alimentos. No entanto, em consequência desse regime misto que ainda convive aqui, há uma importante presença de latifúndios ociosos. É necessária a realização de uma profunda reforma agrária, com o objetivo de integrar esses latifúndios à produção agrícola e pecuária. Foram realizadas medidas parciais de entrega de terras, mas nossa dependência alimentar ainda é muito grande e delicada estrategicamente.

“A Venezuela importa mais de 70% dos alimentos que consome, e isso é uma situação muito delicada” Por que o governo não realiza essa reforma agrária? O governo pouco a pouco vem aplicando medidas socialistas, mas, comprometido com essa ideia de modelo misto, capitalista-socialista, que respeita a propriedade privada, tem tomado algumas medidas de apropriação social da terra em casos em que era óbvio o abuso do latifúndio, só que não em todos os casos. Em outro caso, tem ampliado a participação da empresa privada, que aqui, diferente do Brasil, não tem características empreendedoras. A empresa privada venezuelana é caracterizada por uma relativa escassa produtividade. Preferem buscar subsídios do Estado, em matéria de proteção, ou realizar especulações monetárias e mobiliárias. Entre outras coisas, os empresários privados se dedicam ao negócio da importação. É uma burguesia fundamentalmente importadora, gera pouco emprego e mobiliza de maneira limitadas as forças produtivas do país. Esse cenário mostra uma economia bastante vulnerável, e é de estranhar que o impacto da crise não tenha sido maior. Chávez já leva mais de dez anos no poder. Na sua opinião, quais são os principais problemas que até agora o governo

se mostrou incapaz de resolver? A Venezuela se arrastou durante o século 20, e agora no século 21 enfrenta a dificuldade de industrializar-se. O país ainda não pode instalar um sistema industrial produtor de bens de consumo para a grande maioria da população, bens fundamentais como, por exemplo, máquinas agrícolas. Por outro lado, temos uma economia agrária baseada em latifúndios, que em sua maioria não têm bases legais e não produzem alimentos. Esse fator, aliado à não-industrialização, produz um efeito de grande debilidade na economia. Outro elemento é que, diante da falta de atividade agrícola, se incrementa o êxodo do campo à cidade, processo que continua ocorrendo até hoje. As missões (programas) sociais, base de sustentação do governo entre as classes populares, vêm sendo cada vez mais criticadas. O que aconteceu com esses programas nas áreas de saúde e educação? As missões representam o elemento que levou a um aumento extraordinário nas condições de vida da população. O analfabetismo foi erradicado, a matrícula em educação superior duplicou, o acesso a consultas médicas estendeu-se a toda população com o programa Bairro Adentro, o programa Mercal leva alimento subsidiado a grande parte da população. Agora, o que acontece com as missões? Elas foram uma espécie de grande esforço improvisado para substituir a estrutura de um Estado ineficiente. O Ministério de Educação, com um enorme aparelho de funcionários, não havia sido capaz de erradicar o analfabetismo. Foi necessário então criar essa estrutura improvisada, com uma tarefa específica e com a participação de um voluntariado nacional. Seria necessário fazer uma profunda reestruturação e reforma legal do Estado, com remoção de empregados públicos que não cumprem com suas funções. Ao invés de fazer isso, que seguramente desataria fortes críticas da oposição, se criou essa espécie de força de choque para atender a problemas pontuais. Mas as missões já dão sinais de esgotamento... Se descuidou da institucionalização das missões, que poderiam estar inseridas em um processo mais amplo de reforma radical do Estado. Na Venezuela, temos dois Estados: um formal, que dificilmente funciona; e o informal, com as

missões, que teve resultados espetaculares, mas que, devido à falta de institucionalização, começa a falhar. Para solucionar essa dicotomia, deveria ser criado um só Estado, eficiente, que cumprisse suas tarefas e com projetos de longo alcance. Críticas voltadas à corrupção do Estado, à ineficiência da gestão pública e à violência têm sido cada vez mais frequentes. Como corrigir esses problemas? Em relação à violência, em todo o mundo há críticas. Na Venezuela, o que ocorre é que pouco a pouco tem havido a penetração de paramilitares colombianos que têm cruzado para o lado venezuelano sem que exista maiores controles por parte do Estado. Esses paramilitares se estabelecem em alguns setores populares e muitas vezes substituem o papel da delinquência local. A diferença é que têm armas militares e financiamento do narcotráfico, e seus locais de lavagem de dinheiro, como cassinos e bingos. Esse é um fator extremamente grave que incide no incremento da insegurança. Surgiram tipos de violência que antes não existiam, como o sequestro ou o sicariato (mercenários). Problemas sindicais passaram a ser resolvidos dessa maneira. Mais de 200 dirigentes camponeses foram assassinados em óbvias condições de objetivo político. A isso se soma o assassinato de pelo menos dois dirigentes sindicais em conflito laboral com empresas colombianas. Essa insegurança é atribuída imediatamente ao governo bolivariano. No entanto, Zulia, governado durante muito tempo pela oposição, é um dos estados com maior índice de violência em todo o país. Ainda assim, o Estado não deve se responsabilizar pelo combate à violência como um todo? A Venezuela é um país, como muitos outros, no qual grande parte da população está na informalidade. Muitas pessoas se transferem de um lado a outro, informalidade e delinquência. Mas não podemos minimizar os efeitos dessa invasão silenciosa dos paramilitares. O Estado deveria ter sido muito mais eficaz em derrotar essa infiltração e suas implicações na lavagem de dinheiro. Isso é um problema de segurança e defesa que o governo tem que enfrentar. Como combater a corrupção e ineficiência na gestão pública? É preciso realizar uma reforma radical do Estado, pro-

pagar uma cultura ética e aplicar corretivos, com controles fiscais efetivos. O Estado tem imensos investimentos em empresas públicas, mistas e, quanto maior o grau de autonomia, menor o controle. As missões não têm nenhum tipo de controle institucionalizado. Isso deve ser corrigido. Outro problema é que se gasta dinheiro sem que haja o cumprimento das metas do orçamento. As metas previstas deveriam ser obrigatórias. Se o ilícito cometido fosse combatido imediatamente, a corrupção cairia. O senhor considera que a corrupção é um dos principais problemas do governo? Não. O principal problema do governo é a agressão dos Estados Unidos e em grande parte da oposição, que se dedica a sabotar muitas das suas iniciativas. Temos um Poder Judiciário absolutamente opositor. Por que são tão escassos os processos por atos de corrupção? Ou a corrupção não é tão importante como acusa a oposição ou a própria oposição está envolvida na corrupção, a partir dos poderes que ainda conserva dentro do Estado e que, a ela, não convém denunciar. Acabamos de ver o escândalo de uma fraude bancária, na qual estava envolvido Arné Chacon, irmão do então ministro de Ciência e Tecnologia, Jessé Chacon, um dos homens de confiança do presidente. Indica que pessoas próximas do governo também estão envolvidas em casos de corrupção... Mas essa pessoa já está presa. Foi descoberta a irregularidade e ele já está preso. Como justificar o surgimento da chamada boliburguesia (nova elite social vinculada ao chavismo)? A boliburguesia é a mesma burguesia. A burguesia e o empresariado não têm ideologia, além do dinheiro. Quando é oportuno, colocam uma camiseta vermelha. Esta é a lógica desse governo misto. Enquanto houver capitalismo, assim será. Em um jogo de xadrez, se um respeita as regras e o outro não, obviamente ganhará aquele que não respeitar as regras. Isso se essa conduta não o tirar do jogo. Quais são os desafios que o governo Chávez terá de enfrentar no próximo ano? O primeiro desafio é que a Venezuela tem a primeira

potência imperialista mundial cercando o país com um cinturão de pelo menos nove bases militares, sete na Colômbia e duas em Curaçao e Aruba. Este é um desafio inquietante. Temos a Colômbia com um Exército que chega a 500 mil efetivos; para um país com cerca de 47 milhões de habitantes, é de uma proporção de soldados exorbitante, superior à quantidade de efetivos que possui o Brasil. O primeiro grande desafio é continuar existindo diante de uma ameaça bélica desse tamanho, tendo em conta que as duas principais guerras hoje existentes se dão pelo apoderamento dos hidrocarbonetos. E o desafio interno? É a definição ideológica. É muito difícil que exista um processo misto, capitalista e socialista, porque em algum momento as tendências de um ou outro acabam preponderando no processo. O grande desafio é avançar em um projeto essencialmente socialista. Se temos um modelo destinado à solidariedade, mas uma parte da população está dedicada exclusivamente a lucros pessoais, é como ter, dentro do galinheiro, galinhas e raposas. Ao final, só haverá raposas, e acabarão comendo o granjeiro. Ou se deixa que o Estado continue como era, antes do início do governo bolivariano, e assim continuará ocorrendo todo tipo de ineficiência; ou se faz uma tentativa de reestruturação com as missões, para ter um Estado eficaz. Deveria haver um enorme esforço na vigilância do processo. Os militantes do Partido Socialistas Unidos da Venezuela (PSUV) deveriam ser exemplos de militância, honra. O mal exemplo desacredita. O governo tem visto com certa preocupação as eleições legislativas de 2010. A bancada governista pode deixar de ser maioria? Um Poder Legislativo opositor pode paralisar legislativamente o Poder Executivo. No caso de perder a maioria, a situação do governo seria bastante difícil. Mas o cenário não está claro. [Se comparado com] as eleições anteriores, o governo tem conquistados 60% dos votos válidos, e a oposição, 40%. Isso tem favorecido ao governo, com exceção do referendo da reforma constitucional de 2007. Sob essa lógica, é provável que o governo ganhe a maioria. Uma das dificuldades da oposição continua sendo a incapacidade de unificar-se. Isso lesiona muito as candidaturas opositoras. Na hipótese de que a oposição conquiste maioria parlamentar, podese prever cenários de ingovernabilidade para Chávez? O presidente passaria a governar por decreto? A probabilidade é remota. Durante mais de meio século aqui se legislou por decreto. Isso é uma tradição que se estendeu aos governos social-democrata, social-cristão e agora ao bolivariano. Inclusive, neste momento em que o processo tem maioria absoluta, o presidente emitiu decretos. Não seria nada estranho que isso ocorresse. Mas o problema não está na elaboração de leis, e sim nas suas aplicações. Não se aplica a lei.

Quem é Luis Britto, 69 anos, é analista político, historiador, escritor e dramaturgo venezuelano, autor de mais de 60 livros.


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áfrica

O regresso da “Gandhi” do Saara Reprodução

RESISTÊNCIA A saaraui Aminetu Haidar interrompe greve de fome após obter permissão do Marrocos para voltar para casa Igor Ojeda da Redação FORAM 32 dias sem ingerir alimentos. Quase um mês com o corpo débil, sentindo náuseas, perdendo constantemente a consciência. Mas, no final, a ativista pela independência do Saara Ocidental, Aminetu Haidar, alcançou seu objetivo. Na primeira hora do dia 18 (ainda dia 17 no Brasil), o avião que a levava pousou no aeroporto de El Aaiún, capital do seu país, ocupado desde 1975 pelo vizinho Marrocos. Ela, enfim, voltava para casa e seus filhos. Aminetu havia entrado em greve de fome em 16 de novembro, em Laanzarote, nas Ilhas Canárias, Espanha (leia sobre o assunto nas edições 352 e 355 do Brasil de Fato). Pois foi para esse local que o governo marroquino a enviou, sem passaporte, após ter impedido sua entrada em El Aaiún. Na ocasião, ao preencher o formulário da imigração, a ativista escreveu “Saara Ocidental” no espaço reservado ao “País de residência”, o que teria motivado sua expulsão. O governo da Espanha, por sua vez, permitiu seu ingresso, mas proibiu seu retorno justamente por não portar passaporte. Durante 32 dias, entre longas negociações entre Marrocos e comunidade internacional – acusada por muitos de cúmplice e omissa –, o impasse permaneceu, enquanto Aminetu se debilitava a olhos vistos. Somente um acordo negociado entre o país africano, a Espanha e a França permitiu uma solução: a militante poderia voltar por “razões humanitárias” (leia texto nesta página).

“Este é um triunfo para todas as pessoas livres do mundo. É uma vitória da justiça e dos direitos humanos […] O povo saaraui está consciente de que o dia da liberdade está muito próximo”, disse Aminetu “Triunfo” “Este é um triunfo para todas as pessoas livres do mundo. É uma vitória da justiça e dos direitos humanos […] O povo saaraui está consciente de que o dia da liberdade está muito próximo”, disse Aminetu, em entrevista coletiva em sua casa. “Agora, tenho que recuperar minha saúde. Levarei pelo menos dois meses. Mas, depois, penso continuar lutando”, completou a ativista, conhecida como a “Gandhi” do Saara Ocidental por sua militância pacífica pela independência do seu país. Para Bahia Mahmud Awah, escritor, poeta e investigador saaraui, o retorno de Aminetu à sua casa é a confirmação da identidade nacional saaraui diante da tentativa do Marrocos de impor que o Saara Ocidental é marroquino. Ela regressou como saaraui sem as condições que o rei exigia: aceitar a nacionalidade marroquina e pedir perdão. Já na opinião de Emiliano Gómez López, presidente da Associação Uruguaia de Amizade com a República Árabe Saaraui Democrática (RASD), o fim do jejum da ativista significa uma vitória da causa independentista saaraui e uma derrota moral e política para a monarquia marroquina. “Uma mulher sozinha, uma simples

militante pelos direitos humanos, foi capaz de entortar o braço ferrenho do rei Mohamed VI e obrigá-lo a suspender a ordem de expulsão ditada contra ela”. “Derrota” marroquina Segundo ele, depois de um mês de uma campanha “nacionalista” contra Aminetu impulsionada pela monarquia, aliados políticos e a imprensa local, o governo marroquino foi obrigado a “inventar” o pretexto humanitário para “justificar o regresso de Aminetu e disfarçar a tremenda derrota causada pela firmeza da mulher saaraui”. A “vitória” de Aminetu, entretanto, transcendeu a conquista pessoal, de acordo com o espanhol Santiago Jiménez Gómez, responsável do Gabinete de Estudos e Comunicação Permanente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (CEAS). Segundo ele, nos últimos anos, a população saaraui vinha perdendo a confiança na legitimidade “de um direito internacional invocado tantas vezes quanto menosprezado”, devido à falta de solução para um território já reconhecido pela ONU como passível de descolonização. Tal realidade, segundo Santiago, estava fazendo amadurecer na cabeça dos militantes a convicção da necessidade de um novo conflito armado como única saída, como ocorreu entre 1975 e 1991. “O que o gesto de Aminetu Haidar fez mudar? Agora, os e as saarauis se sentem menos ignorados ou silenciados pela história e orgulhosos por fazer parte de uma sociedade que cria consciências tão decididas, tão generosas e tão convencidas de seu esforço e

de seu sacrifício como Aminetu, que, além disso, não deixou em nenhum momento de se sentir mulher e mãe. Um espelho no qual todos e todas se viram refletidos e cuja imagem lhes proporcionou novas forças e uma renovada capacidade de luta pelo que consideram justo”, analisa. Visibilidade No entanto, mesmo que os 32 dias de greve de fome da independentista do Saara Ocidental não tivessem gerado os efeitos mencionados, só a grande visibilidade internacional que a causa saaraui ganhou com tal ato já seria suficiente para se fazer um balanço altamente positivo do ocorrido. “O mundo inteiro está ao par do que acontece diariamente aqui. Agora, a causa saaraui está sendo discutida em alto nível”, declarou Aminetu à imprensa. Segundo Bahia Awah, a greve de fome da militante “reativou o processo [da luta saaraui], rompendo o bloqueio informativo que tem rodeado o conflito do Saara Ocidental”. Na avaliação de Santiago, esse ganho de visibilidade poderia trazer uma maior vontade dos governos e da ONU para solucionar a questão, “algo tão aparentemente simples como uma comunidade pendente de descolonização assumindo sua responsabilidade acerca de seu destino e de seus assuntos”. De acordo com Bahia, no entanto, a transformação dessa maior visibilidade do conflito em resultados concretos dependerá dos militantes saarauis que, segundo ele, poderiam seguir a mesma linha de ação e mobilização do movimento midiático solidário que esteve ativo durante o jejum de Aminetu.

A ativista Aminetu Haidar deixa o hospital rumo ao aeroporto, onde embarcou para El Aaiún

A prisão Nos bastidores, uma vitória do Marrocos domiciliar Em troca da permissão para o retorno de governos espanhol e francês emitiram de Aminetu Aminetu, comunicados reconhecendo a legislação da Redação A independentista saaraui Aminetu Haidar voltou para casa no dia 18. Mas, desde então, as forças de segurança marroquinas vêm impondo um cerco fechado à sua residência. “A polícia só deixa entrar meus familiares”, afirmou a ativista ao jornal espanhol El País. Segundo ela, seus companheiros na defesa dos direitos humanos no Saara Ocidental são alguns dentre os muitos impedidos de visitála. “Peço ao governo [do Marrocos] que me leve para a cadeia e ponto, e que termine com essa estratégia estúpida”, completou. Na manhã do dia 19, até seu médico pessoal, Domingo de Guzmán, foi barrado, sendo liberado somente após a intervenção da própria Aminetu. Repressão

Já no momento de seu retorno, as forças policiais mostraram como seriam os dias que se seguiriam. Segundo a imprensa internacional presente em El Aaiún, capital do Saara Ocidental, dezenas de agentes rodeavam o aeroporto, enquanto outras dezenas patrulhavam pela cidade e cortavam o acesso às ruas adjacentes da casa da ativista. Ao mesmo tempo, dezenas de cidadãos saarauis, jovens em sua maioria, esperavam a chegada da militante, gritando palavras de ordem contra Marrocos e a favor da independência. Durante várias horas, ocorreram enfrentamentos. Até o fechamento desta edição (dia 22), Aminetu continuava sem comer, já que 32 dias de greve de fome exigem que ela ingira alimentos de forma gradual. Segundo afirmou seu médico ao El País, a ativista continua sofrendo com a perda de peso, hipotensão, enjoo e vômitos. “O processo a partir de agora será delicado. Começaremos pela reidratação oral para seguir com a realimentação”, disse. (IO)

marroquina sobre o território do Saara Ocidental da Redação “O governo da França mente, engana e manipula, o da Espanha faz o mesmo, e a própria ONU confunde mais do que esclarece. E o que dizer das mentiras e manhas das autoridades de Marrocos?”, dispara o espanhol Santiago Jiménez Gómez, responsável do Gabinete de Estudos e Comunicação Permanente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (CEAS). Desde 1975, quando o Saara Ocidental foi ocupado pelo Marrocos após as tropas da Espanha deixarem o território, os ativistas saarauis e seus apoiadores vêm denunciando a omissão e cumplicidade da comunidade internacional diante das violações praticadas pela monarquia marroquina. Dentre eles, destaque (negativo) para Espanha e, principalmente, França. “O Estado francês é o mais firme e poderoso aliado do reino de Marrocos. É quem garante o apoio político, diplomático, financeiro e militar para essa monarquia corrupta, totalitária e com ambições expansionistas sobre os países vizinhos”, indigna-se Emiliano Gómez López, presidente da Associação Uruguaia de Amizade com a República Árabe Saaraui Democrática (RASD), o Estado saaraui não reconhecido pelo Marrocos. Assim, apesar das gestões espanholas e francesas para que as autoridades marroquinas permitissem a volta da ativista Aminetu Haidar a El Aaiún, capital do Saara Ocidental, esses estados não deixaram de favorecer o país do rei Mohamed VI. Apoio político “O rei concordou com o regresso de Aminetu por ‘razões humanitárias’, mas, na realidade, aceitou porque esses governos [Espanha e França] se comprometeram a dar um maior apoio político à sua tese da ‘autono-

mia sob a soberania marroquina’ para o Saara Ocidental”, denuncia Emiliano, referindo-se à proposta do Marrocos de conceder ao país ocupado uma “ampla autonomia”, mas não a independência. “Quer dizer, o resultado final dessa chantagem marroquina foi o fortalecimento da política de ocupação do Saara Ocidental”, conclui.

Apesar das gestões espanholas e francesas para que as autoridades marroquinas permitissem a volta da ativista Aminetu Haidar a El Aaiún, capital do Saara Ocidental, esses estados não deixaram de favorecer o país do rei Mohamed VI Tal apoio político por parte de Espanha e França se expressou claramente nos comunicados que ambos governos emitiram no mesmo dia em que Aminetu Haidar pôde voltar a seu país, o que deixou evidente quais foram as moedas de troca utilizadas nas negociações para o fim do impasse. O texto francês afirmava que o presidente Nicolas Sarkozy “acolhia a proposta do reino de Marrocos de uma ampla autonomia no marco de uma solução política sob os auspícios da ONU. À espera dessa solução, aplicase a legislação marroquina [sobre o território saaraui]. Já o comunicado espanhol insta o governo de Mohamed VI a permitir o

regresso de Aminetu, afirmado que tal gesto “poria uma vez mais de manifesto seu compromisso com a democracia e a consolidação do estado de direito”. E conclui: “enquanto se resolve a contenda, a Espanha constata que a lei marroquina se aplica no território do Saara Ocidental”. Em seguida, o Ministério de Assuntos Exteriores do Marrocos também emitiu seu comunicado, através do qual comemorava as posições de Espanha e França e criticava a atuação de Aminetu, que não guardaria relação com a promoção dos direitos humanos. Interesses econômicos Segundo o jornal espanhol El Mundo, o acordo entre marroquinos, espanhóis e franceses começou a ser gestado no dia 13. O objetivo seria encontrar uma solução para que Aminetu pudesse voltar sem ser obrigada a pedir perdão ao rei Mohamed VI – que este exigia e ela rejeitava – e de maneira que o Marrocos não ficasse humilhado diante da opinião pública. No dia 19, o embaixador marroquino na Espanha, Omar Azziman, manifestou sua plena satisfação com o desfecho do impasse. “Fica claro que o Saara Ocidental está sob o império do direito marroquino”, disse à imprensa. Já a Frente Polisario, instância que reúne política e militarmente as forças independentistas saarauis, divulgou um comunicado acusando o país governado pelo primeiro-ministro José Luis Zapatero de ter utilizado “como moeda de troca a outorga de validez às leis marroquinas em um território sobre o qual a ONU não reconhece ao Marrocos nenhuma soberania”. A conivência com o governo de Marrocos evidenciada por Espanha e França, em particular, e pela União Europeia (UE), de maneira geral, é explicada em grande parte por fortes interesses econômicos. Exemplo disso são as negociações entre UE e o país africano para a assinatura de um tratado de livre comércio, que tem grande chance de se concretizar no primeiro semestre de 2010, quando a presidência rotativa da instância europeia será ocupada justamente pela Espanha. (IO)


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