Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 357
São Paulo, de 31 de dezembro de 2009 a 6 de janeiro de 2010
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Má tradução prejudica imagem de Ahmadinejad
A ordem machista se inverte no campo O Flamengo elegeu uma presidenta. A cada dia surgem mais jornalistas interessadas no esporte. Cresce o número de árbitras. Não é de agora que as mulheres tentam produzir novos significados atribuídos ao próprio futebol e à sociedade machista que o cerca. Porém, por mais que a presença feminina nesse universo masculino tenha crescido bastante nos últimos dez anos, elas ainda são vistas como exceções dentro de uma sociedade capitalista, machista e patriarcal. O principal objetivo é impedir que a mulher se torne somente mais uma peça na engrenagem capitalista. Pág. 8
A jogadora Marina, do Novo Mundo, disputa lance com Marta, do Santos Reprodução
América Latina precisa de um novo ciclo de lutas sociais Em 2009, o continente assistiu ao embate de dois projetos: de um lado, governos progressistas se fortalecem – a exemplo da reeleição de Evo Morales. Do outro, o golpe de Estado em Honduras e a instalação de bases estadunidenses na Colômbia não deixam dúvida de que há ainda muito por que lutar. “O decisivo é sermos capazes de organizar, mobilizar e criar uma nova correlação de forças que saia das ruas”, afirma o jornalista Raúl Zibechi. Pág. 9
France Télécom: 34 suicídios de funcionários em dois anos
Pirataria: política ou crime? Com iniciativa em 25 países, inclusive no Brasil, o Partido Pirata quer trazer para a política o debate sobre o fim da propriedade intelectual. Em entrevista ao Brasil de Fato, Amelia Andersdotter, a mais jovem membro do Parlamento Europeu, eleita pelo Partido Pirata sueco, fala sobre os conceitos de uma sociedade sem copyright. Pág. 12
Nove governadores acusados de crimes eleitorais em 2009 Dois governadores absolvidos, três cassados e quatro com processos que continuarão correndo durante 2010. Em 2009, as sessões do Tribunal Superior Eleitoral foram agitadas. Essa possibilidade de perda do cargo, para o sociólogo Rudá Ricci, significa um avanço.“É uma mudança de comportamento em relação aos processos eleitorais considerados ‘naturais’ no nosso país”. Porém, a população ainda observa com apatia a possibilidade de seus eleitos deixarem o poder. A exceção foi a queda do governador maranhense, Jackson Lago, cujo mandato foi defendido nas ruas. Para os movimentos, o processo judicial não passava de um golpe da família Sarney para retomar o poder no Estado. Págs. 4 e 5
Reprodução
Joka Madruga
A esquerda e os dilemas do ano eleitoral
Um estudo do pesquisador francês Ivan du Roy aponta que, após a privatização da France Télécom, o ambiente de trabalho na empresa tornou-se “tenso, quase violento”, com sérios danos à saúde mental dos empregados. Essa estafa física e mental tem tido efeitos nefastos para os funcionários da ex-estatal. Em 10 anos, a empresa reduziu seu quadro de funcionários de 165 mil para 100 mil. O aspecto mais problemático é o aumento dos suicídios: em dois anos 34 trabalhadores se mataram. Para o pesquisador, o isolamento e a exploração dos funcionários na empresa é um fator que leva ao suicídio. Pág. 10
Após um ano em que conseguiu realizar duas jornadas de luta unitária contra a crise, a esquerda deverá enfrentar em 2010 um período mais difícil. Ainda dividida, precisará lidar com a desmobilização do ano eleitoral e a investida da direita para voltar ao poder. Pág. 3
As crenças e impossibilidades de humanizar o capitalismo
O centenário de ISSN 1978-5134
Ao contrário do que é amplamente difundido pela mídia ocidental, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, nunca pregou a destruição de Israel. O historiador estadunidense Juan Cole, em entrevista, desvenda a má tradução e interpretação feita pela imprensa do Ocidente e explica que, na verdade, o presidente iraniano afirma esperar que o “regime de ocupação” israelense entre em colapso, assim como ocorreu com a União Soviética. Mas, para além dos efeitos negativos de uma tradução enviesada, Cole critica severamente a gestão do atual presidente do Irã. Pág. 10
Noel,
o poeta da Vila
Págs. 6 e 7
O inglês Alex Callinicos, doutor em Filosofia pela Universidade de Oxford e membro do Socialist Workers Party britânico, analisa em entrevista os limites e desafios da democracia – tanto no capitalismo como no socialismo – e a valorização dos trabalhadores em uma sociedade que não veja a remuneração material como principal forma de reconhecimento. Pág. 11
Manifestação contra a crise em Curitiba
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de 31 de dezembro de 2009 a 6 de janeiro de 2010
editorial 2009 ACABA DE se encerrar. Foi um ano que se iniciou com os indicadores sociais sinalizando um forte impacto da crise econômica internacional. Os movimentos sociais e parte expressiva das forças populares entenderam que não se tratava apenas de uma crise do modelo neoliberal ou de uma mera crise financeira, mas de uma crise global, prolongada, com características depressivas e recessivas, cuja intensidade encerra um período histórico de ofensiva do capital ao abrir a possibilidade de um reascenso da luta de massas. Esse cenário estimulava a construção de um calendário de lutas unitárias que possibilitasse uma resposta da classe trabalhadora diante dos impactos da crise. Todavia, os indicadores sociais passaram a se alterar a partir do segundo trimestre. A economia brasileira amortecia os efeitos principais da crise. Várias circunstâncias contribuíram para essa situação: os bancos brasileiros não estavam tão dependentes do capital fictício, especulativo, como estavam os bancos dos EUA e de outros países centrais do sistema capitalista; o capital financeiro internacional aplicado na bolsa e em ações de empresas no Brasil não fugiu (como aconteceu em diversos outros países). Ao contrário, pelas dimensões do país, pela confiabilidade do mercado na política econômica do governo e pelo potencial de retorno dos investimentos, viram o Brasil como um porto
debate
Os impactos da crise não desapareceram seguro para seu capital financeiro. O governo atuou com muita agilidade com medidas econômicas, que representaram um colchão de proteção às empresas capitalistas dos setores mais dinâmicos da economia. Assim, desonerou o IPI da indústria automobilística e da linha “branca”, que representou isenção de R$ 40 bilhões. Diminuiu o percentual de depósitos compulsórios no Banco Central, que deixou no mercado R$ 80 bilhões. Transferiu R$ 100 bilhões do Tesouro Nacional para o BNDES aplicar em projetos de investimento. Manteve a política de valorização do câmbio, que interessava ao capital internacional. Além disso, a dinâmica do mercado de trabalho do Brasil ajudou a manter uma certa estabilidade. O aumento real do salário mínimo, os benefícios da Previdência, o Bolsa Família e outros mecanismos compensatórios garantiram uma demanda de bens de consumo não-duráveis no mercado interno, que impediram o aumento generalizado do desemprego na indústria. Efeitos Os impactos sociais da crise atingiram especialmente o México e a
América Central, comprovando os efeitos nefastos da adesão ao Nafta (Tratado de Livre Comércio com os EUA). Ao rejeitar a Alca e diversificar o leque de países compradores, o Brasil escapou do mesmo destino. Além disso, a manutenção e reforço da histórica função de fornecedor de commodities nos últimos anos, conjugada ao aumento das exportações para a região asiática, que apresenta as maiores taxas de crescimento durante a crise – destaque especial para a China – atuaram como processo amortecedor da crise para uma parte da burguesia, possibilitando ao Brasil escapar dos primeiros impactos mais expressivos. Esse cenário reforçou a análise de que a crise foi superada. Muitos setores populares passaram a compartilhar esse entendimento. Mas tal otimismo precipitado pode induzir a um grave erro de análise política. Na verdade, o que presenciamos é um processo de alteração no caráter da crise, que parcialmente vai mudando; deixa de apresentarse somente enquanto crise de acumulação de capital para uma crise fiscal dos estados nacionais, através do intenso conjunto de políticas de
ajuda e salvamento direcionadas às mais diversas frações da burguesia. Mas nada permite afirmar que não estamos diante de uma crise prolongada e profunda que seguirá produzindo grandes impactos nos próximos anos. É certo que o relativo sucesso das políticas econômicas desenvolvidas pela lógica capitalista, primeiro, minorou a destruição e desvalorização de capitais inerentes aos momentos de crise e, segundo, consolidou uma onda de aumento da dívida pública pelo mundo. Um problema político e econômico a ser enfrentado pela burguesia (e pago pelos trabalhadores) qualitativamente menos grave que as ameaças de falência no plano imediato, mas que acarretará gigantescos impactos a longo prazo. Intensificar lutas Porém, não podemos perder de vista que estamos diante de uma crise de superprodução. Na essência, trata-se da tendência do capitalismo de produzir um desenfreado aumento da capacidade produtiva na busca de lucro, ultrapassando seus próprios limites e engendrando contraditoriamente o declínio da
crônica
Henrique Bellinati Robert Pires
A política de segregação de Israel e seu efeito nas crianças
Mulher palestina chora demolição de casa em Jerusalém Oriental
atuam nessas demolições, normalmente não dando mais do que alguns minutos para a família deixar a casa e retirar seus pertences antes de ser forçada a assistir sua casa ser demolida e tudo aquilo que estava dentro dela ser transformado em entulho. O senhor Fakhri ainda se lembra de quando uma das professoras de Mohamed o chamou para discutir a queda das notas de seu filho: “Ela me disse que, quando olhou na mochila dele, ao invés de encontrar seus livros e sua lição de casa, encontrou um punhado de brinquedos. Quando eu voltei para casa e perguntei ao meu filho por que ele estava levando seus brinquedos para a aula, ele me respondeu que tinha medo de, quando os soldados viessem demolir a casa, não ter tempo de pegá-los, por isso preferia levá-los para a aula – assim ele perderia os livros, mas não os brinquedos”. Outra tragédia como esta é o caso de Malek Triaqe, de 7 anos, que, ao voltar da escola certo dia, encontrou sua casa no bairro de Beit Hanina demolida. Desde o incidente, seu pai, Amjad Triaqe reclama que o filho não consegue mais se concentrar nos estudos. “A demolição afetou muito meu filho”, diz Amjad. “Até hoje ele está relutante de retornar para o local onde a casa ficava. Atualmente ele e suas irmãs moram junto com o avô, mas ainda não se recuperou do choque”. Amjad e sua esposa, Asme Triaqe, têm vivido em uma tenda ao lado do local onde sua casa foi demolida, em julho. E os jovens Mohamed e Malek não são os únicos sofrendo com esse tipo
Ramez Philippe Maalouf
Israel é um Estado fascista, terrorista... Tess Scheflan/Activestills.org
FAKHRI ABUDIAB, um senhor de 56 anos, encontra-se em uma triste situação: sua casa, na vizinhança de Silwan, em Jerusalém Oriental, está sendo ameaçada de demolição pela prefeitura local. Como se isso já não fosse ruim o bastante, a ameaça de perder sua casa também está afetando seu filho Mohamed, de 7 anos, cujo desempenho na escola caiu em consequência da crise vivida por sua família. Com medo de perder a moradia, o menino Mohamed já não consegue se concentrar na escola e suas notas caíram significativamente. Silwan, que outrora fora uma pequena cidade vizinha a Jerusalém até ser anexada aos limites da cidade após a guerra de 1967, é apenas um dos vários bairros de Jerusalém Oriental vitimados com centenas de ordens de demolição, fruto de construções e expansões ilegais de casas. A razão pela qual existem tantas construções ilegais está ligada ao fato de ser quase impossível para um palestino em Jerusalém Oriental conseguir uma permissão para construir (menos de 14% das permissões concedidas anualmente são para palestinos). Essa dificuldade em conseguir permissões para construir, assim como as milhares de ordens de demolições (algumas pendentes há anos), fazem parte de uma política declarada da prefeitura de Jerusalém para “judaizar” Jerusalém Oriental, alterando sua demografia de forma a garantir uma maioria judia tanto em Jerusalém Ocidental comoem Jerusalém Oriental. Colocando mais de 95 mil casas sob ameaça de demolição e impedindo os palestinos de conseguirem permissões para construir, a prefeitura pretende criar um clima de constante estresse na mente dos jeruselamitas palestinos. A maioria das construções ilegais estão esperando há anos para serem demolidas, mas não existe um cronograma para levar a cabo as demolições, o que torna quase impossível prever quando uma casa em específico será demolida, causando um medo constante nos moradores das construções ilegais. “Você nunca sabe quando eles virão para destruir a sua casa”, diz o senhor Fakhri, que é forçado a ver esse estresse constante causando estrago em sua família. “Meu filho não consegue mais se concentrar nas aulas. Todo dia ele me pergunta quando os soldados virão para demolir a nossa casa. Ele tem medo de que, ao voltar da escola, encontre sua casa em ruínas”, diz. Um medo real, dado a maneira como a polícia e o Exército
taxa de lucro, implicando na diminuição do ritmo de acumulação, no desemprego dos trabalhadores e na própria destruição e desvalorização de capital como remédio. Compreender a natureza da crise ajuda a não gerar ilusões precipitadas com retomadas parciais e alguns indicadores positivos. De qualquer forma, não é possível afirmar que já estamos vivenciando um processo de reascenso da luta popular. É certo que, segundo estudo recente feito pelo Dieese, apenas no ano passado houve 411 greves, o maior número desde 2004. A maioria (224), no setor privado. Todavia, o quadro ainda é predominantemente adverso para as lutas populares. Ampliam-se iniciativas da classe dominante para criminalizar os movimentos sociais, como a CPMI contra a reforma agrária e os crescentes ataques promovidos pelos grandes meios de comunicação. Isso não pode nos desanimar. A crise capitalista prolongada empurrará as forças populares para as lutas de massa, deslocando seu centro de atuação das disputas sobre a natureza do governo para as reivindicações do povo. É preciso seguir investindo na construção da unidade das forças e movimentos populares, pautando sempre a necessidade de superar as reivindicações corporativas e avançar para a construção de um projeto popular. A força social do projeto popular terá que ser pacientemente construída.
de tragédia; assim como eles, milhares de crianças palestinas convivem com a possibilidade de ver suas casas demolidas. Os traumas causados por esse medo contribuem para aumentar a raiva e o ressentimento em seus pais, sem mencionar o ódio e a violência entre as próprias crianças. “O que você espera que essas crianças sejam no futuro”, questiona Fakhri. “Eles crescem vendo seus pais e mães sendo humilhados pelos soldados, com medo de perder suas casas. Isso apenas gera ódio em seus corações, eles crescem acreditando que os israelenses são todos maus e querem machucá-los”. No meio de declarações de que Israel deseja reiniciar o processo de paz, não é sem uma certa dose de ceticismo que vemos a continuação das demolições e de outras políticas segregacionistas de Israel. “O que Israel quer conseguir destruindo nossas casas?”, indaga Fakhri, enquanto lança um olhar triste e sombrio sobre as ruínas da estrutura recémdemolida de um de seus vizinhos. “Isso não ajuda a trazer paz, só ajuda a semear ódio entre nós”. Talvez seja hora de Israel repensar seus métodos, antes que termine criando uma geração inteira de palestinos criados no medo e no ódio, uma geração que pode muito bem se voltar contra Israel. Henrique Bellinati Robert Pires é o primeiro jovem brasileiro a fazer parte de uma equipe do Programa Ecumênico de Acompanhamento na Palestina e em Israel (EAPPI, sigla em Inglês), organizado pelo Conselho Mundial de Igrejas.
ISRAEL É UM Estado fascista, terrorista, criminoso, racista e fora-da-lei. Há ainda alguma dúvida sobre isto? Israel, além de ocupar os territórios palestinos há 61 anos, continua violando, dia e noite, o território e os espaços aéreo e marítimo do Líbano. O objetivo de tais “incursões”, no jargão da mídia racista e ocidental, é gerar uma resposta violenta dos libaneses para dar ao Exército de Israel um pretexto para destruir o Líbano e massacrar os libaneses, assim como já fizera em 1969, 1973, 1978, 1981, 1982, 1993, 1996 e 2006. Em novembro de 2009, o Exército libanês, quase sempre ausente na defesa do Líbano, alvejou um avião militar não-tripulado (drone) israelense que atacou o Líbano. As lideranças israelenses, no entanto, já não escondem que o alvo não é mais o Hizbollah (como no passado a OLP o fora). Para o ministro da defesa, Ehud Barak, o alvo de Israel é o Líbano. Israel já provou que não tem capacidade para ocupar o Líbano, portanto, destruir um país e exterminar um povo é mais fácil que vencer uma guerrilha de resistência. Fica uma pergunta: o que o mundo diria se, por hipótese, um ministro da Síria ou de qualquer país árabe ou muçulmano dissesse na TV ou na imprensa que Israel é o alvo? Qual seria a reação do Ocidente e do mundo “livre e civilizado”? Certamente, milhares de advogados da causa sionista diriam que “Israel tem o direito de existir e de se defender”. É mais que conhecida, portanto, a indiferença do Ocidente em relação ao expansionismo nazi-sionista (seria um pleonasmo?) de Israel. O que realmente oferece total segurança aos terroristas israelenses em suas ameaças e a certeza de impunidade de seus crimes não é o Ocidente; é um mundo árabe estilhaçado, onde não faltam aliados declarados ou não, e a cumplicidade dos demais países vizinhos da região, como Irã e Turquia, que, na retórica, advogam o título de “campeões da causa palestina”, mas que sempre apostam na lógica do “quanto pior, melhor”. A indiferença continua sendo o combustível para o nazismo israelense. Os libaneses (assim como os palestinos) sabem que não podem contar com ninguém para sua defesa, exceto o auxílio da Síria à resistência árabe no sul do Líbano. Há exatos 40 anos, o Líbano é atacado por Israel. Na primeira vez, em dezembro de 1969, a aviação israelense atacou e destruiu toda aviação civil libanesa, no aeroporto internacional de Beirute. Na invasão terrorista dos israelenses de 1982, apoiada por milícias libanesas, foram mais de 25 mil árabes (palestinos, libaneses e sírios) exterminados pelas tropas de Ariel Sharon. No último ataque terrorista ao território libanês, no verão de 2006, Israel exterminou 1.200 árabes, tendo o apoio velado do Egito, Jordânia, Arábia Saudita e Marrocos. O Irã balbuciou uma resposta, mas preferiu prosseguir o massacre dos iraquianos. Ao mesmo tempo, os assassinos israelenses exterminaram mais de 800 palestinos na Faixa de Gaza. Israel ocupou o Líbano por 22 anos (1978-2000) e só se retirou após uma tenaz resistência árabe (palestina, libanesa e síria) contra os invasores, liderada pelo Hizbollah após a expulsão da OLP do Líbano, em 1983, que só foi bem-sucedida depois de liquidar um grupo terrorista libanês pró-sionista, o Exército do Sul do Líbano. Ainda assim, somente uma grande parte do sul do Líbano foi desocupada pelos assassinos israelenses, restando, sob as botas dos nazi-sionistas (é um pleonasmo?), as Fazendas de Shebaa. É inacreditável que em pleno século 21 um Estado possa ameaçar a existência de outro impunemente. Ramez Philippe Maalouf é mestrando em Geografia Humana (USP). É especialista em História das Relações Internacionais (UERJ).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil
“Eleição terá ofensiva da direita” Mariana Raphael
BALANÇO/PERSPECTIVA Para o sindicalista Milton Viário, esquerda não encontrou ponto de equilíbrio e vai às urnas dividida novamente Luís Brasilino da Redação PARA OS brasileiros, 2009 começou às sombras da crise econômica que havia acabado de provocar seus primeiros estragos no país no final do ano anterior. A economia dava sinais de que entraria em recessão, e algumas empresas foram à falência. Outras promoviam demissões em massa ou davam férias coletivas, enquanto entidades patronais cobravam do governo federal a redução de direitos trabalhistas. As organizações de esquerda, percebendo que os custos do colapso financeiro seriam transferidos para os trabalhadores, procuraram se articular em torno do lema “nós não vamos pagar pela crise”. Foram realizadas, em março e agosto, duas amplas jornadas de luta unitárias. Mas as finanças começaram a se recuperar. No segundo semestre, as principais categorias sindicais se mobilizaram em busca de reajuste, e os índices econômicos foram, um a um (Produto Interno Bruto, arrecadação, investimento, desemprego, produção), se tornando positivos. Já o presidente Luiz Inácio Lula da Silva engatou sequência impressionante de bons resultados que o levaram a ser escolhido personalidade do ano pelo diário espanhol El País e colocaram o país na capa da revista britânica The Economist (a manchete: “O Brasil decola”). Para fazer um balanço desse período do ponto de vista dos movimentos sociais e analisar as perspectivas para o ano eleitoral de 2010, confira a seguir entrevista com Milton Viário, secretário nacional da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM). Brasil de Fato – Em 2009, houve um certo crescimento das lutas sindicais, ainda que limitadas a pautas corporativas, e duas jornadas unitárias de luta contra a crise, em março e agosto. Pode-se dizer que foi um ano positivo para os movimentos sociais brasileiros? Milton Viário – Primeiro, a crise econômica retraiu um pouco o movimento sindical. No início de 2009 ele teve dificuldade de reagir àquelas demissões em massa. Digo isso porque, nos últimos anos, os sindicatos vêm conseguindo produzir, mesmo que de forma corporativa, cada vez mais lutas e conquistas econômicas. Mas a crise deu como que um susto na classe trabalhadora. Segundo ponto: conseguimos construir unidade entre as centrais sindicais e os movimentos sociais, produzindo um processo de mobilização e resistência à crise. Porém, esse processo foi bastante tímido, não conseguiu – e nossa expectativa era que conseguisse – produzir uma onda maior. Se a crise tomasse corpo, eu esperava que isso pudesse gerar uma espécie de mobilização maior da classe trabalhadora. Mas então, no final de 2009, de setembro em diante, houve uma retomada da atividade econômica. A partir daí, os setores bancário e metalúrgico, principalmente, reagiram, e as campanhas salariais de setembro e outubro foram positivas. Os metalúrgicos das montadoras conseguiram um reajuste significativo, de 3,5% a 5% de aumento real. Terminaria essa primeira avaliação dizendo que, para nós, é um pouco contraditório: a crise poderia gerar um processo de mobilização mais intenso, porém, ele não aconteceu, embora tenha havido
unidade de parte dos movimentos e das centrais sindicais que produziram uma jornada de luta. Mas não dá para dizer que ela massificou. Por outro lado, as lutas só ganharam corpo perto do final do ano, quando houve uma retomada da atividade econômica e os trabalhadores conseguiram se motivar mais, ganhar confiança e força, para imprimir as paralisações que realizaram e obter os ganhos que tiveram. Qual sua avaliação sobre o relacionamento do poder público com os movimentos sociais em 2009? A repressão e a criminalização cresceram, tendo como exemplo o assassinato de Elton Brum (pela Polícia Militar, durante despejo em São Gabriel - RS, em agosto), os ataques da Justiça à luta sindical e a criação, em dezembro, da CPI contra o MST? Estamos aqui no canto do Brasil, no Rio Grande do Sul, um dos estados com o pior processo de criminalização dos movimentos sociais. Um processo que avança para a militarização, indo além da criminalização, como foi exposto por investigação divulgada em audiência pública realizada [no dia 26 de novembro de 2009] pela Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência. A Ouvidoria Agrária Nacional também já manifestou em documentos oficiais que a polícia militar gaúcha é a única que não assinou um manual que padroniza nacionalmente procedimentos para reintegração de posse pacífica. Além disso, há um uso extensivo por parte da polícia de armas letais durante manifestações. E, por fim, esse processo culmina com o assassinato do Elton. Me parece que estamos no pior lugar. Nacionalmente, destacaria em primeiro lugar, além da CPI contra o MST, uma ação do Ministério Público do Trabalho contra as arrecadações dos sindicatos. E, em segundo lugar, o fato de que o Tribunal Superior do Trabalho vem retirando a estabilidade dos dirigentes sindicais, reduzindo as diretorias de 30 ou 40 para sete membros com estabilidade. No movimento sindical da iniciativa privada, dirigente sindical sem estabilidade é dirigente sindical demitido. Isso aponta para uma retração violenta da estrutura e das finanças dos sindicatos. E tem o papel desempenhado pela mídia corporativa. Aí não precisa nem comentar muito, é vergonhoso. As mobilizações não têm destaque, a grande mídia apenas ajuda a criminalizar os movimentos. Ela esconde a parte social, a organização e a luta dos trabalhadores atrás de uma cortina de criminalização que só mostra a pancadaria, as prisões. A pauta de reivindicações, o que os trabalhadores querem construir com suas jornadas, não tem destaque. Isso foi mostrando, em 2009, que a direita está preocupada com o reascenso da luta e com a articulação dos trabalhadores. Num período de crise estrutural do sistema – diagnóstico que é comum a setores da direita, do centro e da esquerda –, o capitalismo se torna frágil, e os trabalhadores são os que podem apresentar de forma organizada uma alternativa, que seria o projeto popular. E aí a gente entra em 2010. Na minha opinião, as eleições vão ganhar um contorno de ofensiva da direita. Será uma tentativa de fazer o país retroagir no processo democrático.
Pela primeira vez desde o fim da ditadura civil-militar, o Brasil vai escolher o próximo presidente numa eleição sem a presença do Lula. Quais as consequências disso? As eleições tendem a ser mais ou menos politizadas? Não teremos muitas novidades do ponto de vista de projeto por causa desse processo de fragmentação que houve entre os trabalhadores e também pelo governo ter priorizado suas alianças com o centro. Ao mesmo tempo, vamos estar observando o movimento que a direita e a grande mídia vão tentar fazer para retomar o Poder Executivo. É um processo pelo qual vamos ter que atravessar. Qual candidato será apoiado pela burguesia nas eleições, a Dilma Rousseff (PT) ou o candidato do PSDB, provavelmente o José Serra? Ou os dois? Por quê? Uma parte da burguesia, o setor de direita que representa as velhas oligarquias brasileiras, vai colocar suas fichas no Serra para a retomada do controle do Poder Executivo. Agora, a moderna burguesia, mais financeira e articulada internacionalmente, não ficará só com a opção do Serra não. Terá as candidaturas Dilma, Marina Silva [PV]... A burguesia não vai jogar as fichas numa candidatura só não. Ela está melhor preparada para fazer essa disputa eleitoral. Muito melhor que os trabalhadores.
Marcha realizada em agosto, na Avenida Paulista (SP), como parte da jornada unitária de luta
“[A mídia corporativa] esconde a parte social, a organização e a luta dos trabalhadores atrás de uma cortina de criminalização que só mostra a pancadaria, as prisões” E qual sua avaliação sobre o comportamento do governo Lula no atendimento a pautas dos trabalhadores e no combate à crise? Teve um fator positivo. Apesar de ter queimado grandes recursos diretamente destinados à iniciativa privada para aquecer a economia, o governo largou na frente de outros países e teve o mérito de mostrar que o Estado tem um importante papel. Isso coloca alguns elementos importantes na luta antineoliberal. Agora, com relação à classe trabalhadora, as atitudes do governo federal são tímidas, apesar, por exemplo, da promessa de atualizar os índices de produtividade no campo. Nós, trabalhadores da iniciativa privada, ainda não vimos avançar a nossa pauta. É evidente que, com relação a outros pontos, como combate à fome e o direito à educação de nível universitário, existem iniciativas positivas que demarcam com outros governos passados. O presidente Lula chega ao último ano de seu mandato acumulando: enfrentamento da crise econômica elogiado por capitalistas dos países centrais; possibilidade de se transformar numa potência energética com a descoberta do présal; intermediação de conflitos internacionais, como em Honduras e com a visita dos presidentes Shimon Peres (Israel), Mahmoud Abbas (Autoridade Nacional Palestina) e Mahmoud Ahmadinejad (Irã); e a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016. Como você enxerga este momento? É de certa maneira contraditório entre as necessidades que tem o povo brasileiro de
melhorar sua condição de vida e uma melhora da condição política do país. Nós tivemos praticamente 400 anos de trabalho escravo, 100 anos de República com três períodos de ditadura, uma democracia muito jovem e um protagonismo político da classe trabalhadora também pequeno. Esses fatores por um lado pesam negativamente, mas, por outro, fazem com que pequenas atitudes do governo Lula e, principalmente, da figura do presidente, deem ao Brasil uma posição de protagonista internacional. Tirando talvez os governos de Getúlio Vargas [19301945 e 1951-1954], o resto do período de República é uma vergonha, é de subserviência à burguesia internacional. Isso que faz com que o governo Lula, com quatro ou cinco atitudes, acabe se transformando numa referência internacional. O que repercute no povo brasileiro, que enxerga isso como uma iniciativa de fortalecimento da autoestima da população e da nação. Avaliando então o presidente Lula, eu poderia destacar o grande potencial que tem o nosso país, o nosso povo, se a gente conseguir desenvolver um projeto popular de construção desse país e desse povo. Qual balanço já se pode fazer dos efeitos do governo Lula sobre as organizações de esquerda brasileira? Elas conseguiram se recuperar das divisões que se seguiram ao rumo conciliador que o governo toma desde seu início? Ainda vivemos esse problema. De maneira geral, não está madura no meio dos movimentos sociais a necessidade da unidade, embora alguns setores venham defendendo como condição necessá-
ria para a retomada das lutas de massa. O movimento sindical, em especial, continua se fragmentando, o que tende a continuar. O movimento social não conseguiu encontrar o ponto de equilíbrio entre nem ser apoiador e nem crítico do governo, mas ter liberdade, autonomia e independência para ir construindo seu processo de mobilização e luta ao mesmo tempo em que se constrói uma melhor condição política em nosso país. Além da fragmentação, o que mais você destacaria de efeitos do governo Lula sobre os movimentos? O governo federal priorizou a sua política de alianças com o centro, mas não com a classe trabalhadora organizada. O governo está centrado fortemente na figura do presidente Lula, o qual dialoga diretamente com o povo, revelando sua sensibilidade. E, com todos os problemas, ele tem esses altos índices de aceitação. Agora, o governo não prioriza o trabalho com os movimentos sociais para, nesse sentido, ir aprofundando o processo político brasileiro de mais democracia, mais liberdade e protagonismo popular. São muito poucas iniciativas. O que houve foram as conferências, que ainda fazem parte de um processo muito consultivo. Ano eleitoral é mesmo meio morto para os movimentos? O que esperar das lutas sociais em 2010? É ruim porque é um ano no qual o calendário eleitoral, a partir de junho, será prioridade, fazendo com que as lutas tenham um calendário muito estreito. Porém, o movimento sindical está construindo uma agenda de mobilização para a pauta legislativa: as 40 horas semanais, a convenção 158 da OIT [Organização Internacional do Trabalho, que proíbe demissões imotivadas], o fim do trabalho escravo, atualização dos índices de produtividade. Vamos construir uma jornada entre março e abril para a votação desses projetos de interesse da classe trabalhadora.
Já a esquerda vai novamente dividida para as eleições. Uns devem apoiar Dilma ou Marina, outros lançarão candidatura própria, e um terceiro grupo vai continuar priorizando as lutas sociais. Em 2010, as eleições não vão representar um grande palco para os trabalhadores, falando do ponto de vista de disputa de projeto. Não acho que os trabalhadores não participarão. Eles votarão, é uma tradição que 80% dos eleitores votem, e acho que alguns setores vão participar em uma ou outra candidatura. Mas, do ponto de vista programático da classe trabalhadora, é só mais uma eleição. Na luta de classes, a direita fica muito melhor posicionada nas eleições do que os trabalhadores. Isso reflete essa conjuntura de desvantagem para os trabalhadores que nós vivemos. O que precisa acontecer para a esquerda voltar a disputar as eleições de forma unitária? Temos que continuar construindo o projeto popular para o Brasil, do ponto de vista programático, que tem muita unidade entre toda a esquerda. Já o segundo desafio é construir esse projeto junto às lutas, vincular o projeto às necessidades sociais, para que ele seja uma força política viva. Então, precisaremos de muita paciência e persistência, porque a curva da história ainda não é favorável para nós. Mas temos que continuar trabalhando, porque, com a crise estrutural do capitalismo, a curva da história pode se apresentar melhor logo em seguida.
Quem é Milton Viário é metalúrgico de São Leopoldo (RS), presidente da Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul, eleito para a direção executiva no mandato 2004-2007 e para a Secretaria Nacional, no período entre 2007 e 2010, da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM), entidade ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT).
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cultura Fotos: Reprodução
Nem
coroa, nem espinho
MÚSICA Tema do desfile da escola de samba Unidos de Vila Isabel no carnaval carioca de 2010, Noel Rosa chega ao centenário de seu nascimento com o reconhecimento do público, que independe do aval acadêmico ou da crítica. E choro, só de flauta Aldo Gama da Redação NOEL DE MEDEIROS Rosa veio ao mundo no dia 11 de dezembro de 1910, no Rio de Janeiro, mais precisamente no bairro de Vila Isabel. Filho de Manuel Garcia de Medeiros Rosa e Martha de Medeiros Rosa, casal da classe média carioca, teve um parto difícil, onde o uso do fórceps pelos médicos provocoulhe um afundamento da mandíbula e uma pequena paralisia na face, características físicas que o assombrariam vida afora. Cursou o ensino médio no tradicional Colégio São Bento – onde os colegas, maldosamente, o chamavam de Queixinho – e entrou para a Faculdade de Medicina da UFRJ, em 1931, embora não tenha concluído o curso. Casou-se em 1934 com Lindaura, com quem teve um filho que viveu poucos meses. Nos anos seguintes, travou uma batalha constante contra a tuberculose, que, por fim, o venceu em 1937, quando tinha apenas 26 anos. Entre uma coisa e outra, e deixando o “de Medeiros” de lado, Noel Rosa também foi um dos maiores e mais importantes compositores da música popular brasileira, sendo autor de clássicos como “Com que roupa?”, “Fita amarela”, “Palpite infeliz”, “Três apitos” etc. E, no ano do centenário de seu nascimento, o escritor Luiz Ricardo Leitão, professor adjunto da UERJ e doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, lança Noel Rosa - Poeta da Vila, cronista do Brasil, estudo sobre o poeta-cronista que busca inseri-lo “na expressiva galeria dos poetas e prosadores que, por meio de sua obra, têm contribuído de forma decisiva para desvelar o singular processo de formação socioespacial do Brasil”, como avisa o texto de apresentação da obra. A seguir, uma entrevista por correio eletrônico com o professor Luiz Ricardo, que, além de reafirmar a qualidade artística do trabalho de Noel, também contextualiza histórica e sociologicamente a obra do poeta de Vila Isabel, que, em 2010, será tema do desfile da escola de samba do bairro carioca. Brasil de Fato – Como surgiu a ideia de escrever sobre Noel Rosa? Luiz Ricardo Leitão – Dois motivos centrais me inspiraram. Em primeiro lugar, eu já escrevera sobre um grande romancista-cronista de nossas letras: Lima Barreto, o rebelde imprescindível [lançado em 2006 pela editora Expressão Popular]. Lima foi o genial criador de Os Bruzundangas, um inventário irretocável das mazelas que afligem esta nossa pátria-mãe, eternamente distraída e “subtraída em tenebrosas transações”. A atualidade do cronista Noel é absolutamente contundente: ele cantou a crise de 1929 e as revoluções de araque dos anos 1930, desvelando-nos o “Brasil de Tanga” – e “sem capote” – em que a honestidade escasseava, ao passo que as maracutaias abundavam... Será que alguma coisa mudou neste século 21? O segundo fator é o meu coração azul e branco. Eu sou cria da Vila Isabel, colaborador direto da nossa escola de samba, e me seria impossível permanecer indiferente ao cen-
tenário do “Poeta da Vila”, tema, aliás, do belíssimo enredo do carnaval 2010. Quem assistir ao desfile, em fevereiro, saberá melhor do que estou dizendo. Por isso, não havia como fugir ao fascínio desse bamba. Que fontes foram consultadas e quais as dificuldades encontradas durante a pesquisa? Na parte biográfica, vali-me das grandes referências do gênero. De todas as obras consultadas, três são dignas de nota: No tempo de Noel Rosa, de Almirante; Noel Rosa e sua época, de Jacy Pacheco; e Noel Rosa: uma biografia, de Carlos Didier e João Máximo. Estes últimos, sem dúvida, são os mais exaustivos e criteriosos de todos os seus biógrafos, ao passo que os dois primeiros, contemporâneos do artista (Jacy era seu primo e Almirante, o parceiro e companheiro do Bando de Tangarás), pecam, sem dúvida, pela parcialidade ou idealização de alguns aspectos relativos à vida e à obra de Noel. Este, aliás, foi o maior problema enfrentado: gostaria de dispor de uma impressão serena e fidedigna dos contemporâneos sobre as inclinações ideológicas do compositor, que, para Jacy, teria nítido pendor socialista (hipótese que o conservador Almirante rechaçou com veemência), mas não logrei tê-la, infelizmente. Na parte ensaística, mantive a linha de pesquisa que explorei no meu doutorado em Cuba, investigando as experiências periféricas (ou seja, latino-americanas) de modernidade, sempre preocupado com o jogo dos elementos urbanos e agrários no imaginário coletivo nacional. De certa forma, o livro é um exercício prático de minha tese, algo que eu já realizara em O campo e a cidade na literatura brasileira, título que elaborei para os centros de formação dos movimentos sociais brasileiros.
“E, aliás, foi o maior problema enfrentado: gostaria de dispor de uma impressão serena e fidedigna dos contemporâneos sobre as inclinações ideológicas do compositor” Quanto tempo tomou a coleta de informações e a redação? A pesquisa específica sobre Noel demandou quase um ano. Já sua inserção na linhagem dos grandes cronistas de Bruzundanga, que se inicia no Barroco com Gregório de Matos (o “Boca do Inferno”) e se estende com nomes como Machado de Assis e Lima Barreto, foi quase imediata, pois fora esse meu objeto de estudo no doutorado. A escrita, por sua vez, irrompeu praticamente “de um só jato”, como se fora um dever que todo vila-isabelense deveria cumprir em honra ao seu patrono. Algum aspecto da vida ou do trabalho de Noel foi privilegiado?
O livro privilegia, sem dúvida, o poeta-cronista Noel, ou seja, preocupa-se fundamentalmente em associar a criação de Noel a uma vasta linhagem de poetas e prosadores que se ocuparam, com sua arte, de desvendar as máscaras sociais e espaciais que travestem a história do nosso país. Não se trata meramente de “analisar” suas letras sob o ponto de vista literário stricto sensu, mas sim de apreender a forma como o compositor logrou traduzir esse propósito em sua obra musical. O que distingue esse trabalho de outros livros sobre o compositor? Noel serviu de inspiração a inúmeros pesquisadores da MPB. Além dos biógrafos já citados, há críticos empenhados em revisar sua contribuição para a história do cancioneiro popular nacional, realçando o papel pioneiro e revolucionário do compositor nos rumos da nossa canção (cito, por exemplo, o estudo de Tinhorão em que Noel é comparado à bossa nova). Suspeito, porém, que ninguém se preocupara em vê-lo como uma expressão da mudança espacial de Bruzundanga, enfatizando a surda luta entre os elementos urbanos e agrários em nosso imaginário no decurso dos anos 1930, quando a burguesia paulista é derrotada em seus planos hegemônicos pela aliança oligárquica que Getúlio articula. Eu já estudara esse mote nas letras, focalizando o ciclo regionalista como uma face complementar das vanguardas paulistanas no sinuoso percurso do Modernismo de Bruzundanga. Agora, lanço alguns grãos de inquietude sobre esse processo na seara musical. De um modo geral, os artistas brasileiros recebem um tratamento relevante por parte do mercado editorial? Creio que o gênero tem se difundido bastante nas duas últimas décadas. Ele possui apelo sobre o público, sobretudo com a inequívoca expansão da sociedade espetacular midiática, mas também sinaliza uma saudável preocupação em repensar a nossa cultura e a nossa história. Noel foi tema do documentário Noel por Noel (1981), de Rogério Sganzerla, e da cinebiografia romantizada Noel, Poeta da Vila (2006), de Ricardo Van Steen. Outras obras merecem citação? Qual sua avaliação sobre esses trabalhos? Conviria citar, ainda, Cordiais Saudações, um curta-metragem (11 minutos) de 1968, em preto e branco, com produção, roteiro e direção de Gilberto Santeiro. É claro que na rede virtual há muitos vídeos com acesso disponível ao internauta, cujas referências eu forneço em apêndice do livro. Sobre os dois títulos citados, eu gosto do trabalho de Sganzerla, mas não me entusiasmei muito com o tratamento dado por Van Steen à sua narrativa. A compreensão e tratamento da obra de Noel, por parte de crítica e público, mudou desde seu aparecimento, o sucesso e os anos que seguiram sua morte? Há uma curiosa analogia entre Noel Rosa e Lima Barreto, que eu menciono no livro. O escritor carioca atravessou incógnito os piores anos
da era Vargas e veio a renascer (redescoberto pela crítica literária Lúcia Miguel-Pereira) em um tempo de esperança, quando a sociedade brasileira sonhou construir um novo projeto de país. Noel morreu seis meses antes de Getúlio decretar, a 10 de novembro de 1937, o fatídico Estado Novo e, a exemplo do prosador, também pagou sua cota de esquecimento à pátria-mãe, que jamais soube lidar com aqueles que desvelaram as máscaras sociais sob as quais as elites de Bruzundanga promoveram a eficiente fórmula da modernização sem ruptura – graças à qual, a cada novo ciclo histórico, se muda aparentemente tudo para não se mudar nada. Por isso, para melhor responder a questão, é oportuno citar o que José Ramos Tinhorão anotou a seu respeito: “O melhor que se pode dizer de Noel Rosa é lembrar que, enquanto para a maioria dos artistas populares a fama acaba um dia após a morte, a dele só começou dez anos depois”. Hoje, o interesse pelas composições de Noel é acadêmico ou popular? A impressão que tenho é a de que, apesar das incursões da academia e da crítica sobre a MPB, quem melhor preserva a memória de Noel ainda é o público amante do samba, como prova a nossa querida escola Unidos de Vila Isabel, que, certamente, prestará ao “Poeta da Vila” a mais contundente homenagem de todas que este receberá em 2010. Qual era o panorama musical brasileiro da época de Noel? A música popular, como de praxe, era motivo de forte preconceito. O fenômeno era mais do que previsível em uma sociedade recém-saída do regime escravista mais longo das Américas, em que a cultura afroamericana continuava a ser perseguida e estigmatizada. Não era de se estranhar que um político pedante e reacionário como Ruy Barbosa, célebre por defender os interesses da elite agromercantil vinculada ao capital estrangeiro, viesse a atacar com virulência os ritmos envolventes que se cultivam nos bairros mais pobres, nos morros e subúrbios em que vive a população negra e mestiça da cidade (sobretudo no próprio Centro, onde se refugia boa parte
das vítimas do “Bota-abaixo”, desde a Cidade Nova até os Morros da Gamboa e da Providência, berços das primeiras favelas). Aí se canta e se toca o samba, organizam-se rodas de batucada e mesclam-se novos gêneros, em que tanto prevalecem os instrumentos de percussão, como, no caso dos grupos de choro, desponta a base de violões, flauta e cavaquinho. Isso sem falar no “obsceno” maxixe e nos tambores com que se entoavam os pontos de macumba, severamente reprimidos pela polícia do Distrito Federal. É claro que havia matizes singulares em cada área. Na praça Onze de Sinhô e Tia Ciata, os batuques do samba acusavam a influência do maxixe. No Estácio de Ismael Silva, de quem Noel iria aproximar-se, ouvia-se outro tipo de samba, que era tocado nos blocos, como o “Deixa Falar”, com uma batida semelhante à das marchas, acompanhada por instrumentos de percussão. Esse ritmo, que tanto agradava ao Poeta, foi assimilado por vários morros cariocas, desde a Favela e a Saúde, no Centro, até o Salgueiro (na Tijuca), a Mangueira e o Morro dos Macacos (em Vila Isabel). O bairro de Noel, diga-se de passagem, é um caso à parte nesta sociocartografia musical. A Vila reunia, ao longo do Boulevard 28 de Setembro e em suas principais transversais, uma súmula do que era aquela ampla região da zona norte no ocaso da Belle Époque. A Tijuca, por exemplo, já era terra de “ricos e remediados”, cujo único sonho era subir ainda mais na escala social; o Andaraí possuía um perfil mais proletário, com várias fábricas e vilas operárias; o Engenho Novo exibia ares provincianos, com cadeiras pelas calçadas e olhos curiosos a espiar a passagem dos trens; e o Grajaú era quase deserto, com terrenos loteados que só depois abrigariam suas casas de classe média. Além desse entorno, havia ainda os morros da Mangueira e dos Macacos, de barracos bem toscos e de gente ainda mais humilde, mas cujo batuque era um autêntico privilégio, pois, como reza a canção, “sambar é chorar de alegria e sorrir de nostalgia dentro da melodia”.
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cultura Quais elementos de seu trabalho o tornaram popular? Além de promover uma síntese maravilhosa de diversas vertentes da nossa canção popular, logrando, inclusive, conjugar a produção dos jovens músicos de classe média – em especial, o próprio “Bando de Tangarás”, em que pontificavam Braguinha e Almirante – com os sambistas que viviam nos morros (cujo maior expoente talvez tenha sido o amigo Cartola, da Mangueira), Noel conseguiu uma proeza ainda mais relevante. Ele mostrou-nos com engenho e arte a nudez de Bruzundanga, indagando-nos sob um sorriso amargo “com que roupa” iríamos ao baile do novo regime, enquanto o povo seguia na pindaíba, a comer pirão de areia. Com o mesmo espelho de Macunaíma, ele nos refletiu a “criança perdulária que anda sem vintém” mas tem mãe milionária e jura que vai à Europa num aterro de café. E fez de “Seu Jacinto” uma versão melodiosa do “herói sem nenhum caráter”, que dormia de cartola e fraque e sonhava morrer atropelado por um Cadilac, mandando-o apertar o cinto (como apregoava Getúlio e, décadas mais tarde, o rotundo Delfim) para colaborar com o regime. Noel recriou, com o condão do samba, o mesmo Brasil e a mesma Bahia de Gregório de Matos, que um dia fora rico e abundante, mas agora se via pobre e empenhado nas mãos dos mascates de além-mar: sem vintém, mas sempre pronto a pedir emprestado. Não se esqueceu de registrar, porém, a desfaçatez e a corrupção dos grandes leiloeiros do país, cujo dinheiro “nasce de repente”, rendendo-lhes palacetes reluzentes, joias e criados à vontade. Ele talvez não soubesse, mas, ao cantar esse Brasil de tanga – e com capote de algodão –, terminou por aquecer eternamente o coração de todos que sonham em despertar do seu sono esplêndido a nossa pátria-mãe sempre tão distraída e subtraída em sinistras transações. Creio que por todos esses motivos sua música tenha se tornado tão popular.
“Suspeito, porém, que ninguém se preocupara em vê-lo como uma expressão da mudança espacial de Bruzundanga, enfatizando a surda luta entre os elementos urbanos e agrários em nosso imaginário no decurso dos anos 1930” No Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, João Máximo (autor de Noel Rosa: Uma Biografia, em parceira com Carlos Didier) afirma que Noel, se não foi o melhor, foi o mais importante compositor da chamada Época de Ouro da música popular brasileira, que vai de 1930 a 1945. Como argumento, cita “suas letras inspiradas no linguajar do povo” e a integração da classe média com o morro, uma vez que Noel se tornou amigo e parceiro de sambistas como Cartola. A análise é correta? São argumentos válidos, sem sombra de dúvida, mas torno a destacar o que disse anteriormente: o maior mérito de Noel foi saber captar, como poucos, a essência desse camaleão chamado Brasil. Sua obra é uma metáfora contundente da sociedade brasileira, que o compositor, atento à sua época e realidade, explora de forma bastante explícita em canções de inegável humor ou sarcasmo. Sem bravatas e sem alarde, ele semeava entre nós, com grãos de prosaica poesia, a cristalina convicção de que, por trás das estrepitosas “revoluções” da década, se impunha a sábia máxima do italiano Tomasi di Lampedusa, autor de O Leopardo, segundo o qual “é preciso mudar para não mudar”. Aracy de Almeida e Marília Batista costumam ser citadas como grandes intérpretes de Noel. O senhor concorda? Que outros cantores ou obras merecem ser citadas? Sem dúvida, entre os intérpretes contemporâneos do artista, Aracy e Marília foram fundamentais, sobretudo pela amizade desinteressada que devotaram a Noel. Francisco Alves, por exemplo, também gravou muitas canções do Poeta, mas o
caráter mercantil das relações que ele estabelecia com os artistas populares é uma nódoa indelével em sua biografia. Aracy, aliás, foi quem mais se empenhou em difundir o trabalho do amigo após sua morte, quando este ficou relegado a um triste período de ostracismo. Contudo, há muitos outros intérpretes que souberam cantar com graça e maestria as criações de Noel, especialmente nas últimas décadas do século 20. É o caso do sambista João Nogueira, que possui uma gravação genial de “Não tem tradução”, ou da grande cantora Maria Bethânia, cujo registro de “Três Apitos” é comovente. A própria mangueirense Beth Carvalho gravou uma ótima versão de “Onde está a honestidade”, que me soa bastante bemhumorada com sua voz. Muitos apontam Chico Buarque como o principal herdeiro de Noel Rosa. Ele, no entanto, se diz mais influenciado por Ismael Silva (também parceiro de Noel). Qual o principal legado de Noel para a música brasileira? Chico Buarque bebeu em variadas fontes. Se ele faz questão de mencionar Ismael, tem seus motivos para isso. Contudo, mesmo que Chico desconverse, a aproximação com Noel é irrefutável. Um exemplo emblemático disso é a própria simetria que se estabelece entre “Cordiais Saudações”, de Noel, e “Meu Caro Amigo”, de Chico, em que os dois poetas-cronistas endereçam curiosas “canções-postais” para interlocutores amigos, registrando adversidades em distintos planos de suas vidas. Acerca da importância de Noel Rosa, eu o considero um nome extraordinário na história da canção popular, cuja bem-sucedida trajetória se revela, em larga medida, uma resposta virtuosa à mazela da parca cultura letrada e contribuinte decisiva para a formação de nossa sociedade. Essa história, segundo nos conta o crítico literário Luís Augusto Fischer, remonta talvez ao século 18, com Domingos Caldas Barbosa; durante o século seguinte, consuma-se o encontro de dois gêneros nativos, a modinha e o lundu, com a habanera e a polca; e no limiar do século 20, a forma ganha novas cores com Sinhô e seu “samba maxixado”. Ao longo dos novecentos, distende-se então o “arco canônico” da canção brasileira, que José Miguel Wisnik situa entre Ernesto Nazareth, em uma ponta, e Chico e Caetano, em outra. Na era do rádio, desdobra-se em samba, samba-canção, marchinha; por meio da bossa nova, dialoga com o mercado internacional nos anos 1950, até assumir outras formas a partir dos anos 1960, acossada por novos parâmetros técnicos, culturais e ideológicos que prenunciam o seu fim (qualquer semelhança com o “fim da história” de Francis Fukuyama não é mera
coincidência). Na primeira metade do século 20, esse percurso inclui o primeiro samba gravado em vinil (“Pelo Telefone”, de Donga, em 1917). Ele inclui marcos como o encontro de Pixinguinha e Donga em 1919, com a criação dos Oito Batutas (primeiro grupo de samba a viajar ao exterior, estreando em Paris, em 1922), e os primeiros sucessos de Carmem Miranda (“Taí”, em 1930) e Noel Rosa (“Com Que Roupa?”, em 1931). Em meu livro, trato de evidenciar como o trabalho de Noel, por sua amplitude e originalidade, pode ser considerado um momento-chave da história do nosso cancioneiro. Numa imaginária “parada de sucessos”, quais seriam as principais canções de Noel, e por qual motivo? Mais do que uma pergunta, esse item é uma saudável provocação. Afinal de contas, das quase 300 canções conhecidas do artista (aliás, um número extraordinário para quem morreu com apenas 27 anos incompletos), há dezenas de criações absolutamente geniais. Destacá-las, obviamente, depende da perspectiva de quem escolhe. Os meios de comunicação, em geral, preferem destacar as obras de tom mais emotivo (“Feitio de Oração”, “Três Apitos”, “Último Desejo”) ou de acentuada “cor local” (“Conversa de Botequim”, “Feitiço da Vila”, “Palpite Infeliz”). Contudo, não há como esquecer o sutil e mordaz poeta-cronista de Bruzundanga, aquele que desnudou o rei tropical com sambas de grande apelo popular, como a imortal “Com que Roupa?” e a mais do que atual “Onde está a honestidade”, isso sem falar em “Filosofia”, em que o desencanto pessoal e o ceticismo social se fundem em rara expressão de lirismo. A morte prematura moldou a imagem de artista boêmio e romântico ou sua vida pessoal não se misturou a seu trabalho? É impossível dissociar a vida e a obra de Noel, embora, por variados
“Não era de se estranhar que um político pedante e reacionário como Ruy Barbosa viesse a atacar com virulência os ritmos envolventes que se cultivam nos bairros mais pobres, nos morros e subúrbios em que vive a população negra e mestiça da cidade” motivos, muitos insistam em destacar apenas o “boêmio” e o “romântico”, esquecendo deliberadamente a veia crítica implacável do compositor. Assim como ocorre na apreciação de um texto literário, as interpretações de um signo dependem não só do significante, mas, sobretudo, de quem dele se apropria, tanto quanto da época e do contexto em que isso ocorre. É por isso que me preocupei em consignar como subtítulo de “Poeta da Vila, Cronista do Brasil”, pois Noel não cantou apenas as dores de amor e a boemia, mas também soube retratar como poucos as contradições de nossa desvalida pátria-mãe. Vale a pena ilustrar o comentário com uma observação que faço na abertura do livro. No largo do Maracanã, próximo à UERJ, divisa do bairro de Noel (uma área na qual, por influência direta da Universidade, os bares – e não as livrarias – encontram seu porto seguro e prosperam à mancheia), há uma simpática estátua do artista, em que este aparece sentado junto a uma mesa de bar, servido por um elegante garçom, numa ilustração do clássico “Conversa de Botequim”. Uma obra bem despojada, como tem sido praxe nas homenagens a artistas como Drummond, Dorival Caymmi, Cartola e outros mais. O curioso nesse caso é que, conforme me observou um confrade vila-isabelense, em vez da “boa média”, do “pão bem quente com manteiga à beça” e do “copo d’água”, aparecem sobre a mesa, além de isqueiro e cigarros, um copo e uma garrafa de cerveja, que, não por acaso, anunciam nossa entrada no festivo bairro da zona norte do Rio. Como se vê, o escultor, valendose da suposta “liberdade” de que goza, não hesitou em alterar a cena
Noel e a Época de Ouro da Redação
A carreira de Noel Rosa se desenvolveu nos anos de 1930, considerada a Época de Ouro da música brasileira, período em que, segundo o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, “o rádio se estabeleceu definitivamente como o grande veículo de massa para a música popular”. Entre os artistas contemporâneos de Noel, parceiros ou não, estavam nomes que estabeleceram padrões, criaram uma nova estética ou simplesmente escreveram canções que se transformaram em símbolo de identidade nacional. Além de Carmem Miranda – talvez a figura mais popular, Cartola –, Lamartine Babo, Ismael Silva, Wilson Batista e Pixinguinha, só para citar alguns, ajudaram a conferir uma aura mítica ao período. (AG)
a fim de realçar, sem demérito dos demais dotes do artista, essa faceta deveras “etílica” do personagem mais ilustre da Vila (e que os donos dos inúmeros bares locais, por razões afetivas e/ou comerciais, tratam de cultivar com razoável zelo). É correta a afirmação de que Noel foi o primeiro “pop star” brasileiro? Eu não subscreveria tal conceito. A expressão “pop star” ganha maior relevância somente na “sociedade espetacular” da segunda metade do século 20, não sendo, a meu ver, adequada para aqueles artistas que protagonizaram os anos dourados da “era do rádio”, em que a indústria cultural ainda aperfeiçoava os mecanismos com os quais iria tornar-se uma das maiores corporações da era pósmoderna do capital. Além do mais, apesar do reconhecimento em vida, Noel logo cairia em relativo ostracismo após sua morte, sepultado no jazigo de esquecimento do Estado Novo. Houve, por sinal, outros nomes que gozaram de mais prestígio nessa época, entre eles Francisco Alves, Orlando Silva e as famosas “rainhas do rádio” – Marlene e Emilinha – , que arrastavam multidões aos estúdios da Rádio Nacional. De minha parte, prefiro dizer que Noel, assim como Ismael, Pixinguinha e outros mais, foi, essencialmente, “um bamba na periferia da modernidade”.
Serviço Título: Noel Rosa - Poeta da Vila, cronista do Brasil Autor: Luiz Ricardo Leitão Editora: Expressão Popular Número de páginas: 200 Preço: R$ 15,00
Feitio de oração (Noel Rosa e Vadico)
Quem acha vive se perdendo Por isso agora eu vou me defendendo Da dor tão cruel desta saudade Que, por infelicidade, Meu pobre peito invade Batuque é um privilégio Ninguém aprende samba no colégio Sambar é chorar de alegria É sorrir de nostalgia Dentro da melodia Por isso agora lá na Penha Vou mandar minha morena Pra cantar com satisfação E com harmonia Esta triste melodia Que é meu samba em feitio de oração O samba na realidade não vem do morro Nem lá da cidade E quem suportar uma paixão Sentirá que o samba então Nasce do coração
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esporte Foto Marta: Mister Shadow/Folhapress
Futebol sem distinção de sexo, só de classe GÊNERO Chutar a canela da mulher, visando a bola, e a consciência de classe podem quebrar a ordem sociossexual estabelecida no futebol brasileiro
Foto Ronaldo: Rubens Cavallari/Folha Imagem
Eduardo Sales de Lima da Redação FAZ PARTE do jogo. Um chute na canela é natural. Mas, atualmente, poderia uma mulher receber um “golpe” desse vindo de um homem? A resposta pode estar nos campos de várzea ou nas ruas e quadras pelo Brasil afora. O fato é que, em um meio historicamente masculinizado, as mulheres há tempos tentam produzir novos significados atribuídos ao próprio futebol e à sociedade que o cerca. Não à toa, no ano de 1964, o CND (Conselho Nacional de Desportos) chegou a proibir a prática do futebol feminino no Brasil. Somente em 1981 essa decisão foi revogada. Ainda hoje, por mais que a presença das mulheres nesse universo masculino tenha crescido bastante, elas ainda são vistas como exceções, sobretudo pela mídia comercial. “Não se faz uma análise da sociedade capitalista, machista e patriarcal para falar do futebol feminino hoje. As análises são sempre mais rasas. Elas são vistas como heroínas. Pegam a Marta e a transformam num caso de exceção porque ela conseguiu vencer. E aí fazem matéria com ela no 8 de março [Dia Internacional das Mulheres]”, diz Michelle Prazeres, jornalista e ex-boleira das categorias de base do Botafogo (RJ). “Pegam” também a ex-bandeirinha Ana Paula de Oliveira e transformam em outro caso de exceção. Só que, nesse caso, culminou em sua “expulsão” dos gramados. “O que acabou com a carreira da Ana Paula não foi só o fato de ela ter posado nua para a revista; foi o fato de ela ser bonita. A partir do momento em que passou a ser valorizado nela não o seu trabalho, mas seus atributos físicos, acabou sua carreira”, lembra Marília Ruiz, jornalista esportiva de Lance!. Portanto, tal construção de novos significados dentro do futebol e da sociedade é um processo lento. A associação da mulher ao espaço privado da casa é algo que pegou até mesmo a recém-eleita presidenta do Flamengo. Em seus comícios, Patrícia Amorim fez inúmeras analogias em relação à facilidade de a mulher administrar bem o lar e, por conseguinte, um clube de futebol. “Por mais que, com isso, ela dialogue com a sociedade, podia justamente ter contribuído nesse momento para desnaturalizar esse tipo de ideia. Não só naturalizou como reproduziu o discurso machista em voga”, avalia Michelle Prazeres. Sobre a presença de Patrícia Amorim no comando do Flamengo, Baby Siqueira Abrão, primeira locutora de futebol do rádio brasileiro, acredita que “seria uma coisa legal se ela não tivesse sido apoiada pelo Ricardo Teixeira, da CBF”. Baby iniciou sua carreia de locutora em 1971, aos 18 anos, na Rádio Mulher, logo após a seleção brasileira ter sido tricampeã mundial de futebol. Mistura O antropólogo José Paulo Florenzano, autor de A Democracia Corintiana: práticas de liberdade no futebol brasileiro, não se anima tanto com a presença da mulher na classe dirigente, no trio de arbitragem ou na equipe esportiva. Apesar de, segundo ele, tal presença ser necessária, “não se revela suficiente para abalar a ordem sociossexual estabelecida no futebol”. O que pode significar radicalismo para muitos, Florenzano
acredita que somente a mescla entre jogadores e jogadoras poderá causar um impacto mais efetivo dentro da sociedade. “A mudança, aqui, passa pela composição dos times, isto é, pela mescla de homens e mulheres, e não pelo desenvolvimento paralelo de duas modalidades, destinado à manutenção das fronteiras impostas pelo futebol força, que privilegia a dimensão físico-econômica em detrimento da dimensão política do jogo”, defende. Segundo o antropólogo, a conjunção da bola e da mulher em uma modalidade separada não ameaça, mas reforça “o enlace da bola e do homem tecido com base na norma do jogador-macho”. Para ele, portanto, somente a superação das fronteiras pode levar à reordenação simbólica do universo machista do futebol. “E essa superação, por sua vez, vem ocorrendo de forma cotidiana, coletiva, anônima, nos jogos de rua da periferia, nos campos de várzea do subúrbio, ou, ainda, nos campos de terra onde meninos e meninas atuam conjuntamente, interagindo no quadro da emancipação do preconceito e da discriminação”, conclui.
“Não se faz uma análise da sociedade capitalista, machista e patriarcal para falar do futebol feminino hoje. As análises são sempre mais rasas. Elas [jogadoras] são vistas como heroínas” Classe no futebol Mas, pelo menos no que se relaciona à ocupação de espaços, a primeira narradora de futebol do Brasil, que também é filósofa, entende que a entrada das mulheres no mundo masculino é uma conquista. Diferentemente da abordagem de Florenzano, Baby tece uma advertência à sociedade, sobretudo às mulheres, é claro. O problema da participação feminina no universo do futebol profissional, engolido pelo sistema capitalista, ocorre, segundo ela, quando a mulher se torna mais uma parte da “engrenagem”. Para ilustrar seu pensamento, Baby cita o sociólogo e ensaísta alemão Robert Kurz. Segundo ela, Kurz elucida que todos os espaços de trabalho abertos, desde a Revolução Industrial, na verdade, são espaços de exploração de mão-de-obra, e que a mulher não se dava conta de que, em vez de trazer o jeito feminino e tentar fazer alguma mudança, ela se tornava mais uma peça na engrenagem capitalista. “E se tornou parte de uma engrenagem com todos os méritos. Até doenças que ela não tinha agora tem. Ela tem estresse, fuma bastante, cheira cocaína”, salienta Baby. A primeira narradora de futebol no Brasil defende que esses ganhos femininos, como o crescimento da participação no universo do futebol, “precisam depurar o capitalismo, e não se tornar sua engrenagem”.
Na fotomontagem, Marta dribla Ronaldo: o futebol como instrumento de transformação
“As mulheres não são socializadas no futebol desde crianças” Para antropóloga, amadurecimento do futebol feminino pode refletir na sociedade os novos rumos das relações de gênero da Redação O Flamengo tem uma presidenta. Eveliny Almeida foi a primeira mulher a comandar um trio de arbitragem no campeonato cearense da primeira divisão. Apresentadoras de mesas-redondas, como Renata Fan, da TV Bandeirantes, se consolidam no meio. Enquanto isso, medalha de prata em Atenas (2004) e Pequim (2008) e vice-campeã mundial na Copa do Mundo da China, em 2007, o futebol feminino brasileiro ainda carece de público e investimento. Em plena tarde de domingo, 12 de dezembro, havia pouco mais de 5 mil pessoas no estádio do Pacaembu para assistir ao jogo en-
“No Brasil, o futebol foi durante muito tempo considerado um esporte masculinizante e pouco adequado às mulheres, seja pela exigência física, pela maneira como conforma os corpos ou mesmo pela suposta violência manifesta no jogo”
tre as seleções do Brasil e do México. As justificativas para esse fenômeno são diversas. Tem gente que diz que a categoria não possui a estrutura empresarial do futebol masculino. Outros põem em xeque a beleza e a dinâmica do jogo. Mas pouco, ou quase nada, é dito sobre o fato de que a evolução do futebol feminino pode funcionar como mais um “tijolo na construção de um novo conjunto de valores que prova que não existem argumentos que justifiquem a não-participação da mulher nesta ou naquela atividade”, como afirma Lara Stahlberg, antropóloga, em entrevista ao Brasil ao Fato. Brasil de Fato – Não é contraditório o fato de o universo do futebol masculino ter cada vez mais essa participação feminina (bandeirinhas, torcedoras, apresentadoras) e, ao mesmo tempo, o futebol feminino ser tão pouco valorizado no país? Por que isso ocorre? Lara Stahlberg – A questão da valorização do futebol feminino é histórica e cultural. Em vários países, como nos Estados Unidos, o futebol se constituiu como um esporte predominantemente feminino, praticado em escolas, universidades etc., quase que exclusivamente por mulheres, sendo um esporte profissional que vem crescendo na modalidade masculina de uns anos pra cá. No Brasil, o que aconteceu foi exatamente o inverso. Foi durante muito tempo considerado um esporte masculinizante e pouco adequado às mulheres, seja pela exigência física, pela maneira como conforma os corpos ou mesmo pela suposta violência manifesta no jogo. O incentivo ao futebol feminino no Brasil condiciona seu sucesso à sensualidade da jogadora para atrair o público masculino? Não creio. O argumento mais utilizado pelos homens para não acompanhar o futebol feminino é que ele é “chato” ou “sem graça” em
comparação ao masculino. Acho que demonstrar habilidade técnica, beleza e força no futebol feminino é muito mais eficiente do que atrair pela beleza física das jogadoras, mesmo porque apelar para a sensualidade seria reafirmar um preconceito em relação às jogadoras (“não jogam como os homens”, “não é um esporte para mulher”), do qual as mulheres em geral (torcedoras, jogadoras, profissionais) tentam se afastar.
“É por isso que o crescimento do futebol feminino precisa de uma alteração de valores, assim como a mudança de alguns valores pode ser ‘ajudada’ pelo crescimento do futebol feminino” Dado que esse espaço não é apenas esportivo, mas também sociocultural, quais são os valores nele embutidos e dele derivados que ainda estabelecem limites à visibilidade da mulher como jogadora de futebol, sujeito do jogo? O maior empecilho a uma plena participação das mulheres no futebol – nas arquibancadas ou em campo, profissional ou amador – é o fato de que elas não são socializadas no futebol desde crianças, como ocorre com os homens. A consequência disso é que o número de mulheres que praticam o esporte é comparativamente muito menor, e o argumento dos homens é que por isso elas não são capazes de compreendê-lo, por não terem um olhar, digamos, “de dentro”. Além disso, como já foi dito antes, existe toda uma ques-
tão física que julga uma não adequação do corpo da mulher para a prática do futebol. De um lado, o corpo frágil da mulher não suportaria um forte contato e os choques intrínsecos ao futebol; de outro, uma suposta “masculinização” indesejada do corpo é uma consequência que também é usada como argumento para justificar por que uma mulher não pode, ou pelo menos não deveria, jogar futebol. O amadurecimento do futebol feminino no Brasil só ocorrerá, de fato, com a subversão do atual conjunto de valores intrínsecos ao esporte e à sociedade? São processos que devem acontecer concomitantemente. O futebol feminino amadurecerá com incentivo – financeiro, inclusive –, com a desmistificação de alguns preconceitos e reforçando a ideia de que não precisa ser uma arena exclusivamente masculina. Isso só pode ocorrer com alterações em valores que vão muito além do futebol. São questões que passam pelo lugar que se acredita que a mulher pode ou deve ocupar na própria sociedade. Por outro lado, a consolidação desse amadurecimento pode ser mais um tijolo na construção de um novo conjunto de valores que prova não existirem argumentos que justifiquem a não participação da mulher nesta ou naquela atividade por este ou aquele motivo. É por isso que o crescimento do futebol feminino precisa de uma alteração de valores, assim como a mudança de alguns valores pode ser “ajudada” pelo crescimento do futebol feminino. (ESL)
Quem é Lara Stahlberg , mestranda em Antropologia na Universidade Federal de São Carlos, é uma das autoras do livro Visão de Jogo: antropologia das práticas esportivas (São Paulo, editora Terceiro Nome, 2009), organizado por Luiz Henrique de Toledo e Carlos Eduardo Costa.
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américa latina Ricardo Stuckert/PR
“Continente precisa de novo ciclo de lutas” CONJUNTURA Para o jornalista e escritor uruguaio Raúl Zibechi, a América Latina deve se preparar para conter as investidas do Império para desestabilizar experiências à esquerda Dafne Melo da Redação EM 2009, O continente latino-americano viu um golpe de Estado em Honduras e assistiu um de seus países, a Colômbia, entregar sete bases militares aos Estados Unidos. Mas também viu uma vitória eleitoral acachapante de Evo Morales na Bolívia e um certo fortalecimento da articulação de espaços continentais de integração, como a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) e a União das Nações Sul-americanas (Unasul). Para o ano que vem, um dos temas mais sensíveis da conjuntura latino-americana será certamente as relações entre Colômbia e Venezuela, que, não por acaso, estão sob o comando dos presidentes mais radicalizados: Hugo Chávez, idealizador do projeto da Alba, de um lado; e Álvaro Uribe, maior aliado do Imperialismo estadunidense na região, do outro.
“Na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, ninguém espera mudanças de fundo pela via eleitoral neste momento” Para o jornalista e escritor uruguaio Raúl Zibechi, editor do jornal Brecha, dificilmente se verá uma guerra no sentido clássico – exército contra exército –, mas sim uma tentativa, por parte dos Estados Unidos, de desestabilizar aos poucos o governo Chávez, e, de quebra, o projeto bolivariano. “Ou seja, uma guerra de baixa intensidade para sangrar a Venezuela aos poucos e ameaçar sua estabilidade política e econômica para criar as bases de uma fratura social ainda maior”, analisa Zibechi. Segundo ele, toda essa estratégia conta com a cumplicidade colombiana, que tenta amenizar a presença estadunidense usando como justificativa as “tradicionais” desculpas: combate ao narcotráfico e à guerrilha.
A julgar pelo papel dos Estados Unidos em Honduras, o projeto bolivariano parece ser mesmo o alvo. Ainda que tenha feito todo um jogo de cena, não resta dúvidas de que o golpe de 28 de junho contou com apoio do Departamento de Estado. “Os Estados Unidos não podem se suicidar. Sua hegemonia mundial e regional está em declive, há uma evidente deterioração dessa hegemonia. Para evitar isso, para tornar lenta a inevitável queda, acredito que eles têm que ganhar força no seu quintal, impedir que existam países que possam vir a escapar de seu controle”, avalia. Leia, a seguir, a entrevista com o militante uruguaio. Brasil de Fato – Nos últimos meses, houve um golpe de Estado em Honduras, relatos de tentativas de golpes na Nicarágua, Guatemala e Paraguai, além da oficialização do acordo militar entre Colômbia e Estados Unidos. Há uma contraofensiva da direita na América Latina? Raúl Zibechi – Há um claro avanço da direita em toda a região. A direita se sente animada ao ver que Barack Obama não mudou o fundamental na atitude dos EUA em relação à América Latina. Por outro lado, há um esgotamento dos governos progressistas na região. Na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, ninguém espera mudanças de fundo pela via eleitoral neste momento. Minha impressão é que nesses países a direita avança, porque tem crescido no aspecto econômico e social: avanço do agronegócio, nos meios de comunicação monopolistas, no modelo extrativista. Ou seja, a direita avança onde os governos têm dado facilidades às transnacionais e às classes dominantes. Nem todos os problemas vêm do imperialismo, mas também da vontade dos ditos governos progressistas de desmobilizar as sociedades. Você acredita que há diferenças entre as políticas para a América Latina entre os governos Obama e Bush? Poucas. Há um discurso mais aberto, há um maior joReprodução
Hondurenha em ato de boicote às eleições no país
Lugo, Evo, Lula, Correa e Chávez reunidos no Fórum Social Mundial de 2009
“Acredito que os Estados Unidos apostam na polarização [entre Venezuela e Colômbia], no desgaste duro de Hugo Chávez. A via da tensão é a melhor para seus interesses” go com as palavras, como fez Obama em Oslo ao receber o Nobel da Paz, onde falou de sua simpatia pelos oprimidos. Mas, na realidade, seu governo apoiou os golpistas em Honduras e a instalação das sete bases na Colômbia. Isso marca uma direção de maior presença militar, de resolver pela via autoritária os conflitos sociais e políticos. Como explicar o papel dos EUA em Honduras? O reconhecimento das eleições por parte deles é a consolidação do golpe? Os Estados Unidos não podem se suicidar. Sua hegemonia mundial e regional está em declive, há uma evidente deterioração dessa hegemonia. Para evitar isso, para tornar lenta a inevitável queda, acredito que eles têm que ganhar força no seu quintal, impedir que existam países que possam vir a escapar de seu controle. A América Latina é chave nesse sentido, já que fornece de 25 a 30% do petróleo que os EUA importam. Existem matérias-primas fundamentais: ouro, prata, lítio... mas, para além disso, há uma rica biodiversidade para construir novas mercadorias na área de biotecnologia e nanotecnologia. Isso impõe controle, domínio territorial direto. Vamos a um período muito duro, de confrontação militar e de ameaças contra as quais somente a Venezuela está se preparando e, em alguma medida, o Brasil.
“O decisivo é sermos capazes de organizar, mobilizar e criar uma nova correlação de forças que saia das ruas, o que só acontece hoje na Bolívia” Com o reconhecimento das eleições hondurenhas pelos EUA, que saídas ficam para o povo hondurenho? Que consequências traz para o continente a consolidação de um golpe de direita? Só um levantamento popular, como um grande Cara-
cazo [levante popular na capital venezuelana em 1989, contra medidas neoliberais do governo de Carlos Andrés Perez] ou como em El Alto, na Bolívia [cidade que fez levantes contra a privatização do gás e da água em 2003 e 2005, respectivamente], pode alterar o cenário. Mas, a curto prazo, não vejo força social em Honduras, país que vem de um longo processo de militarização. O conflito entre Colômbia e Venezuela é o lado mais sensível da conjuntura hoje? Acredita que há riscos de um conflito aberto entre essas nações? Acredito que sim, mas não uma guerra entre dois exércitos, mas algo pior: uma situação de desgaste como a que sofreu a Nicarágua depois da Revolução Sandinista. Ou seja, uma guerra de baixa intensidade para sangrar a Venezuela aos poucos e ameaçar sua estabilidade política e econômica para criar as bases de uma fratura social ainda maior. Isso levaria, segundo creem os estrategistas do Pentágono, à derrota de Hugo Chávez ou a um regime mais autoritário que estaria muito isolado em um contexto internacional cada vez mais à direita. É do interesse dos Estados Unidos aumentar as tensões entre os dois países? Sem dúvida. Acredito que os Estados Unidos apostam na polarização, no desgaste duro de Hugo Chávez. A via da tensão é a melhor para seus interesses.
Entre os fins de 2009 e 2010, diversos países – Chile, Uruguai, Bolívia, Brasil, Colômbia – escolheram ou escolherão seus presidentes. Como o campo institucional pode alterar a conjuntura? Acredito que o ponto crítico é o Brasil. Como disse o sociólogo Chico de Oliveira, não há nada em jogo nessas eleições porque as diferenças entre PT e PSDB são cada vez menores. Mas acredito que, se o PT perder, será um sinal de direitização de toda a região, um claro sinal do avanço da direita. Acredito que é um cenário similar ao do Chile: é difícil de engolir alguém como Eduardo Frei Ruiz-Tagle [da Concertação, aliança entre o Partido Socialista e o Partido Democrata-Cristão] só porque o candidato da direita é pior. Quando governou o país [entre 1994 e 2000], Frei privatizou, houve corrupção, reprimiu os mapuche. O que pode ser pior que isso? Mas os “progressistas” no poder sempre usam esse argumento: de que, pior que eles, é a direita. Acredito que é necessário começar a dizer que “o mal menor” não é bom argumento. Diante das dificuldades, como fortalecer os caminhos alternativos para o continente? Quais seriam esses caminhos? Acho que estamos diante de uma encruzilhada histórica da qual só poderemos sair com um novo ciclo de lutas. É mais ou menos a posição do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): não é bom brigar para saber se vamos votar em Lula ou José Mujica [eleito recentemente presidente do Uruguai] ou se não votamos neles. Isso é secundário. O decisivo é sermos capazes de organizar, mobilizar e criar uma nova correlação de for-
ças que saia das ruas, o que só acontece hoje na Bolívia. A principal dificuldade para isso é a falta de clareza política e ideológica, a confusão que tem introduzido o Bolsa Família e todos esses programas que alguns consideram como conquistas, mas que na realidade são formas de controlar os pobres, enquanto se militarizam as favelas e se continua a beneficiar o agronegócio.
“Há um claro avanço da direita em toda a região. A direita se sente animada ao ver que Barack Obama não mudou o fundamental na atitude dos EUA em relação à América Latina” Nesse sentido, qual sua avaliação sobre algumas iniciativas de integração, como Alba, Unasul, Conselho de Defesa da América do Sul etc.? Simpatizo mais com a Alba do que com a Unasul. Acredito que a integração tem que ser feita rompendo-se com o livre mercado. E acredito que a América do Sul deve se defender do Império. Como se vê, há uma contradição: os governos progressistas mostram essa faceta mais na política internacional do que internamente, mas isso também é importante, porque a conjuntura internacional condiciona muitas outras coisas. The White House
Álvaro Uribe e Barack Obama em encontro na Casa Branca
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internacional Marcello Casal Jr/AB
“Ahmadinejad não ameaça atacar Israel” OCIDENTE X IRÃ Segundo o historiador Juan Cole, que fala persa, idioma da maioria dos iranianos, as declarações do presidente do país asiático são frequentemente manipuladas pela mídia ocidental Igor Ojeda da Redação O PRESIDENTE do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, não prega e nunca pregou a destruição de Israel, ao contrário do que é amplamente difundido pela mídia ocidental. Quem “desmascara” tal versão há anos é o historiador estadunidense Juan Cole, professor da Universidade de Michigan e especialista no mundo islâmico. Além de árabe e urdu (língua falada oficialmente no Paquistão, Afeganistão e Índia), ele fala persa, o principal idioma do Irã. E, traduzindo o persa dos discursos e declarações de Ahmadinejad, Cole percebeu a má tradução e interpretação feita pela imprensa do Ocidente. Em entrevista por correio eletrônico ao Brasil de Fato, o historiador explica que, na verdade, o presidente iraniano afirma esperar que o “regime de ocupação” israelense entre em colapso, assim como ocorreu com a União Soviética. “Ele não ameaça atacar Israel, e diz que seria errado matar civis judeus”. Segundo Cole, mais do que má traduções de suas declarações, o que a mídia ocidental frequentemente faz é manipular o significado de tais afirmações. Como exemplo, ele cita a questão das armas nucleares. Apesar de Ahmadinejad dizer que um arsenal desse tipo é “anti-islâmico”, por matar civis inocentes, “a mídia ocidental o
pinta como um ativo buscador de armas nucleares e como um instigador de guerras”. Para o historiador, acima de qualquer suspeita por criticar duramente a gestão de Ahmadinejad na presidência do Irã e suas declarações sobre o Holocausto, “a má tradução [de suas afirmações] é usada como propaganda pelos apoiadores da direita israelense, e eles são influentes o suficiente para manter isso em circulação na mídia”. A mídia ocidental insiste em noticiar que o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, defende a destruição de Israel. No entanto, o senhor diz que, na verdade, suas declarações sobre o assunto são mal traduzidas. O que ele realmente diz em relação a esse tema? Juan Cole – Na realidade, Ahmadinejad diz esperar que o que ele chama de “regime de ocupação” israelense colapse do mesmo modo que aconteceu com a União Soviética. Ele não ameaça atacar Israel, e diz que seria errado matar civis judeus. Outro ponto polêmico é em relação a sua negação do Holocausto. Ele realmente o nega? O que ele diz sobre isso? Ahmadinejad é um tipo de negador do Holocausto na medida em que ele subestima o número de judeus assassinados e diz que o assunto preci-
sa de mais “estudos”. Essa posição é execrável. (Ele também declara, ridiculamente, que acadêmicos são proibidos de conduzir tais estudos). Mas ele continua e diz que, mesmo que o Holocausto de fato tenha acontecido, certamente ele foi obra do governo alemão, e que, por isso, deveria ter sido concedida aos judeus a Bavaria ou alguma outra parte do território alemão, e não a terra natal dos palestinos. O senhor já percebeu más traduções de outros discursos de Ahmadinejad? Não acho que o Ahmadinejad seja sistematicamente mal traduzido, mas, frequentemente, o significado de suas declarações não é bem transmitido pela imprensa ocidental. Por exemplo, ele tem repetidamente negado que o Irã possui um programa de armas nucleares e nega que o Irã quer um dispositivo nuclear. Ele diz que tais armas matariam um alto número de civis inocentes e que, portanto, [essas armas] são anti-islâmicas. Mas a mídia ocidental o pinta como um ativo buscador de armas nucleares e como um instigador de guerras. Na realidade, ele não comanda as Forças Armadas iranianas e não poderia começar uma guerra se quisesse, e nem existe qualquer evidência de que queira. Essas más traduções são erros ou intencionais? Não acho que a má tradução de sua declaração, de que
O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, em visita ao Brasil
ele esperava que o “regime” israelense colapsasse, foi intencional, mas eu acho, sim, que a maneira com a qual os jornalistas se aferram a isso mesmo depois que eu e outros especialistas revelamos a verdade é um sinal de uma maléfica ideologia presente na indústria de notícias e entre políticos. Como se explica o fato de que esse tipo de má tradução, que pode exercer uma grande influência na geopolítica mundial, é reproduzido por quase toda a mídia ocidental? Eu acho que a má tradução é usada como propaganda pelos apoiadores da direita israelense, e eles são influentes o suficiente para manter isso em circulação na mídia. Apesar da retórica polêmica de Ahmadinejad, o senhor acredita que ele e seu programa nuclear realmente representam uma ameaça para Israel? O Irã não tem um programa de armas nucleares e, por isso, não pode ser uma ameaça para Israel. Para construir uma bomba, o Irã teria que expulsar os inspetores da ONU e aprender como enriquecer urânio a 95% (agora, o país só pode atingir cerca de 4%) sob as condições de um boicote internacional que se seguiria [à expulsão dos inspetores]. A CIA acha que, uma vez co-
meçado o programa, ele levaria dez anos para conseguir a bomba. Mas o serviço de inteligência avalia que o Irã, agora, não tem um programa de armas nucleares. Qual sua opinião sobre Ahmadinejad e sua gestão como presidente do Irã? Ahmadinejad é a face pública dos linhas-duras da política iraniana, que quer constranger liberdades pessoais. Nesse verão [inverno no hemisfério Sul], eles atiraram em manifestantes desarmados e, agora, estão executando jovens dissidentes por crimes de pensamento. Como presidente, ele não é muito poderoso no interior do sistema iraniano, mas dá cobertura para a Guarda Revolucionária do Irã, que está se tornando uma ainda mais brutal ditadura militar. Alguns especialistas acreditam que, nos últimos anos, a importância geopolítica do Irã no Oriente Médio e na Ásia Central vem aumentando, e que ela é garantida pelo apoio da China e da Rússia. O senhor concorda com isso? Esta seria uma das razões para o fato de os EUA não quererem sair do Afeganistão e tentarem aumentar sua influência também sobre o Paquistão? O Irã emergiu como uma força geopolítica no Oriente
Médio porque a gestão Bush removeu os baathistas [integrantes do Partido Baath, ao qual pertencia Saddam Hussein] no Iraque e o Taleban no Afeganistão, que continham o Irã revolucionário. Não acredito que o apoio da Rússia ao Irã seja muito confiável; o chinês, talvez mais. Não acredito que as movimentações dos EUA no Iraque e no Afeganistão tenham muita conexão com a disputa de Washington com o Irã, embora seja um fator secundário. Ironicamente, na realidade, o Irã e os EUA têm uma aliança tácita contra os extremistas muçulmanos sunitas nos dois países. Como o senhor analisa a política da gestão Obama para a região? Obama mudou o tom das relações estadunidenses com o mundo muçulmano, então, isso é mais positivo. Ele iniciou conversações diretas com o Irã, o que é melhor do que simplesmente ignorar Teerã, exceto quando é para praguejar contra. Ele está buscando uma solução de dois Estados para Israel e a Palestina. Ele está dedicado a realizar uma retirada do Iraque quando for a hora. E começará a tirar as tropas do Afeganistão no verão [inverno] de 2011. No geral, é um admirável conjunto de políticas e pode ser muito bem-sucedido para resolver crises e melhorar a reputação dos EUA na região.
NEOLIBERALISMO
France Télécom: delírio financeiro e funcionários suicidas www.travail-solidarite.gouv.fr
Ambiente de trabalho cruel, desrespeito profissional e metas irreais são algumas das causas de 34 suicídios em dois anos Erika Campelo de Paris (França) No dia 14, na França, foi apresentado um estudo sobre as condições de trabalho na companhia telefônica France Télécom, na qual, em dois anos, 34 funcionários se suicidaram. A pesquisa, da qual participaram 80 mil empregados, aponta que há um mal-estar generalizado na empresa. A descrição é dura: “Ambiente de trabalho tenso, quase violento; condições de trabalho difíceis; fragilização da saúde psicológica e mental de alguns empregados e um grande sentimento de insatisfação”. O fenômeno, que o país não conhecia, foi analisado por Ivan du Roy no livro Orange Stressé (Laranja Estressada, em tradução livre, referência à operadora de celular da empresa, a Orange), lançado em setembro. A publicação, com mais de 15 mil exemplares vendidos, analisa o processo de privatização da empresa e a lógica comercial estafante que se dissemina cada vez mais na França. A seguir, confira entrevista na qual du Roy fala do suicídio dos funcionários e de por que o trabalho é tão importante na vida dos franceses. Como você explica a onda de suicídio dos
funcionários da France Télécom? Ivan du Roy – A França, como outros países europeus, sempre teve um modelo econômico e social equilibrado entre a economia de mercado (setor privado) e o grande setor público, considerado de interesse geral: os transportes, a energia, a telefonia, a saúde e a educação. Há uma década, o país começou um processo de privatização do setor público. Hoje se concretiza todo o processo de regulamentação contra as telecomunicações. Essa privatização é ilustrada pela invasão de lógicas financeiras em toda a economia. São essas lógicas do lucro e da rentabilidade econômica que pesam no trabalho de cada funcionário, tanto do setor público como do privado. Os suicídios dos últimos meses mostram como o delírio financeiro exerce uma pressão sobre os trabalhadores e transforma as condições de trabalho. Como os empregados da France Télécom viveram essa privatização? Você acredita que ela influenciou os suicídios? No caso da France Télécom, a privatização foi traduzida pelos empregados como uma reestruturação. Só para se ter uma ideia, em 1996 a estatal tinha 165 mil funcionários; ho-
Reunião entre representantes do Ministério do Trabalho francês e da France Télécom
je, tem 100 mil. Em dez anos, 70 mil pessoas foram forçadas a partir. A maioria dos empregados eram técnicos. Hoje todos os cargos são voltados para o setor comercial e de vendas. Milhares de empregados foram obrigados a mudar de profissão. A empresa tinha funcionários em todo o país. Várias agências fecharam, e eles foram obrigados a mudar de cidade. Durante anos tiveram que se adaptar a essa restruturação. Isto criou um sentimento de insegurança, de estresse. Eu encontrei pessoas que em dois anos mudaram cinco vezes de lugar de trabalho; quer dizer, de escritório, de colega, de chefe. Pior ainda, a média de idade é de 48 anos. A grande maioria dos empregados entrou na empresa quando ainda era estatal. Esses funcionários têm mais de 15 anos de serviço, uma forte ligação afetiva e um longo engajamento na empresa. Eles consideram que a profissão exercida tem um sentido
social. Passando de uma cultura de serviço público para uma cultura comercial, todo esse sentido que eles davam ao trabalho se perdeu. E esta é uma das principais causas de sofrimento, de depressão que, em casos extremos, leva ao suicídio. Um professor francês se afasta por doença uma média de 11 dias por ano. A média nacional é de 9 dias, e a de um empregado da France Télécom é de 20 dias por ano. No seu livro, você fala de gestão pelo estresse. Quais foram os métodos adotados pela direção da France Télécom? Imagine um técnico de 50 anos de idade transferido para trabalhar em um call center para vender assinaturas de celular. Ele sente que sua carreira regrediu. É humilhante. Nesses centros, cada vez que você vai ao banheiro, tem que apertar um botão para prevenir o gerente. E só tem direito a passar 10 minutos por dia no
banheiro. Os funcionários são vigiados e controlados todo o tempo. Esses mesmos funcionários se encontram em contradição entre fazer um bom trabalho e terem alto índice de produtividade. Uma espécie de sofrimento ético se instala. Por que algumas pessoas chegaram ao extremo de cometer suicídio? Porque as instituições representativas dos empregados (comitê de empresa, sindicatos) não são mais capazes de atender à demanda. O diálogo social não existe mais. Os sindicatos estão cheios de problemas de estresse. A gestão da empresa que individualiza e isola o empregado resulta em que, quando um funcionário não consegue mais atender aos objetivos de rendimento, ele se encontra sozinho, isolado. Os suicídios são a consequência desse isolamento, e é a única maneira que alguns empregados encontraram para manifestar seu sofrimento
– às vezes, em nome dos outros. Um funcionário que se suicidou no dia 1° de agosto deixou uma carta, dizendo: “Espero que meu gesto sirva para alguma coisa”. Como a direção da empresa reagiu? Os diretores da empresa durante muito tempo negaram o fato. A cada novo suicídio, eles diziam que era um drama pessoal. Assim, eles não se responsabilizavam. O problema da organização do trabalho e do sofrimento que ele pode exercer não era questionado. A reação da diretoria foi totalmente individual, como colocar à disposição dos funcionários um psicólogo. Nenhuma política de prevenção foi feita. Didier Lombard, presidente da empresa, falou que havia uma “moda do suicídio”. Essa reação mostra como a direção está desconectada da realidade que seus funcionários vivem. E o que o governo francês está fazendo? O Estado ainda é acionário da empresa, com mais ou menos 25% das ações. Tem representantes no conselho de administração. A pergunta é: o Estado é um acionário como outro qualquer, que deve arrecadar os lucros no final do ano e pronto? Em outubro, o governo forçou a diretoria da empresa a aceitar negociar com os sindicatos. Vamos ver como essas negociações terminarão. As negociações são lentas, teremos respostas em janeiro. De qualquer maneira, o governo demorou muito a reagir. (Publicado originalmente no Opera Mundi)
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“Os esforços para humanizar o capitalismo estão fadados ao fracasso” ENTREVISTA Para Alex Callinicos, a lógica básica do capitalismo faz com que toda tentativa de humanizá-lo tenda a ser suprimida Raquel Torres do Rio de Janeiro (RJ) A LÓGICA BÁSICA do capitalismo, impulsionado pela competição e pela acumulação competitiva, faz com que toda tentativa de humanizálo tenda a ser suprimida no longo prazo. Por outro lado, a ideia de socialismo de mercado também é inerentemente falha. A análise é do inglês Alex Callinicos, doutor em filosofia pela Universidade de Oxford e professor do Programa de Estudos Europeus da King’s College London. Autor de livros como A vingança da história, Making History e Contra a terceira via, Callinicos faz parte do comitê central do Socialist Workers Party britânico, um dos maiores partidos de esquerda da GrãBretanha. Em 2009, ele esteve no Brasil para participar de dois eventos: a Conferência Anual da Associação Internacional para o Realismo Crítico, sediada na Universidade Federal Fluminense (UFF), e a mesa redonda Trabalho, Crise e Conhecimento, na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Nesta entrevista concedida à revista Poli, aproveitando sua passagem pelo país, Callinicos trata dos limites e desafios da democracia – tanto no capitalismo como no socialismo, analisa o papel da ciência e da tecnologia nos dias de hoje e discute a valorização dos trabalhadores, refletindo sobre a construção de uma sociedade que não veja a remuneração material como principal forma de reconhecimento.
O que é socialismo de mercado, como surgiu e como o senhor analisa esse tipo de sistema? Alex Callinicos – O socialismo de mercado parte da ideia de que é possível atingir as metas sociais do socialismo – em particular, a igualdade e um alto nível de bem-estar social – dentro da estrutura da economia de mercado. Existem diferentes versões do conceito de socialismo de mercado, mas a ideia essencial contempla a permanência do mercado como a forma de coordenação econômica entre as unidades de produção que, no entanto, seriam organizadas como cooperativas de produtores. Fala-se também na possibilidade do envolvimento dos consumidores na administração de tais unidades. De qualquer forma, a base do socialismo de mercado gira em torno de unidades de produção administradas cooperativamente que estão ligadas através do mercado. Trata-se de um conceito que se popularizou entre os intelectuais de esquerda nos últimos 20 anos, por causa do fim da União Soviética e devido à noção de que não existe uma alternativa atual para o mercado. Eu acredito que a ideia do socialismo de mercado é inerentemente falha. Quem possui uma compreensão adequada da economia de mercado sabe que se trata de uma economia competitiva. E, para seu funcionamento apropriado, unidades econômicas mal-sucedidas, com eficiência abaixo da média, precisam ser drasticamente reestruturadas ou colapsadas – o que, ao longo de qualquer espaço de tempo, é incompatível com a organização cooperativa de produção. Deve-se pensar o que isso significa em termos humanos, para os trabalhadores que constituem as cooperativas de produtores. Digamos que metade da força de trabalho deva ser demitida. Quem tomará essa decisão? Sobre que base ela será feita? É muito difícil uma forma de organização democrática nesse tipo de situa-
ção. Numa economia de mercado, faz mais sentido possuir uma organização não-democrática de trabalho. Em outras palavras: gerentes e administradores que supervisionam a produção e são remunerados por suas responsabilidades extras. Esta não é uma questão nova – foi levantada por Marx na metade do século 19. Cooperativas de produtores são muito difíceis de ser mantidas no contexto da economia de mercado.
E quanto a um capitalismo reformado ou humanizado? Creio que esses termos são contraditórios. O capitalismo pode ser reformado em diversas maneiras. Se olharmos para a Europa Ocidental nos primeiros três quartos do século 20, veremos vários exemplos de reformas no capitalismo, humanizado durante o desenvolvimento do estado de bem-estar social. Mas, na última geração, vimos muitas dessas reformas serem revertidas, e ainda existem fortes pressões para a dissipação das restantes. Não é algo acidental, mas, sim, uma questão que reflete a lógica do capitalismo. Tratase de um sistema impulsionado pela competição e, em particular, pela acumulação competitiva: firmas reinvestindo e se expandindo para manter sua vantagem competitiva sobre suas rivais. Tudo ocorre em razão da lógica básica do sistema. Vivemos um prolongado período de crise desde o fim da década de 1960 – o que não quer dizer que não tenha havido períodos de expansão, mas que o caráter dominante foi o de uma crise de longo prazo, de uma superacumulação de lucros. Isso gera poderosas pressões sistêmicas para a desumanização do capitalismo, para a tomada do que foi previamente concedido e para a introdução de um regime trabalhista mais severo. Então, acho que os esforços para humanizar o capitalismo são compreensíveis e, de muitas formas, louváveis, mas estão fadados ao fracasso.
“O principal limite para a democracia dentro do capitalismo é que não se pode democratizar a economia” Qual a diferença entre a democracia no capitalismo e no socialismo, e quais são seus possíveis limites em ambos os sistemas? O principal limite para a democracia dentro do capitalismo é que não se pode democratizar a economia. Ela precisa ser controlada, de uma forma essencialmente autoritária, por um pequeno grupo que controla a empresa e compete entre si para maximizar os lucros. A democracia política é possível: liberdade para a eleição dos governantes de maneira livre e competitiva. Mas mesmo isso já representa quase uma limitação na democracia, pois muitas das questões fundamentais que afetam as vidas das pessoas são excluídas do domínio da democracia, se ela está restrita ao âmbito político. Eu diria também que existe uma espécie de pressão que tem sido recorrente na era do neoliberalismo: a restrição do domínio das tomadas das próprias decisões políticas. Um exemplo muito importante disso, relativo à atual crise econômica, foi o ato de
Reprodução
tornar os bancos centrais independentes para que pudessem estabelecer taxas de interesse sem serem politicamente responsáveis. É uma decisão importante, que afeta a vida das pessoas e pode arruinar a economia. Então, a democracia capitalista é limitada de forma inerente e possui uma tendência para se limitar ainda mais. Já o socialismo é uma forma mais democrática de organização social, precisamente porque o que se destaca nele é a democratização da economia. A principal questão aqui é: o que isso significa? Eu acho que o modelo-base é realizado por diversos modelos de planejamento popular, que envolvem formas descentralizadas de tomadas de decisões, com conselhos de trabalhadores e consumidores como os responsáveis pelas principais decisões de alocação de recursos. Mas onde está a ameaça para a democracia socialista? Existem certas decisões que precisam ser tomadas, em um nível nacional ou internacional, relativas à alocação de recursos. Em outras palavras, há um elemento descentralizado até mesmo nas mais democráticas formas de planejamento. Eu creio que existe um risco de essas formas deixarem de ser sujeitas ao controle e à responsabilidade democrática. Um dos principais desafios de se construir um sistema de planejamento democrático seria garantir que as decisões referentes ao estabelecimento dos parâmetros para a tomada de decisões mais descentralizadas fossem feitas de forma democrática e responsável.
Como o senhor analisa os novos governos de esquerda na América Latina? Essa é uma questão enorme e perigosa. Existem diferenças importantes e é difícil generalizar. Por um lado, em particular na Venezuela e na Bolívia, existem governos que foram significativamente além das fronteiras do neoliberalismo. A primeira coisa que Evo Morales fez quando se tornou presidente da Bolívia foi restabelecer o controle do Estado sobre as reservas de hidrocarbonetos. Isso foi uma quebra fundamental em como o neoliberalismo deve supostamente funcionar. E, de diversas maneiras, Chávez fez o mesmo na Venezuela.
Parece-me que existe um claro contraste entre essas experiências e a do governo Lula, aqui no Brasil, que tem respeitado as normas do neoliberalismo e foi capaz de se beneficiar de uma conjuntura comparativamente favorável, em particular por conta da demanda crescente das exportações brasileiras. Há problemas nessas experiências. A aposta que Lula fez no neoliberalismo, por exemplo, é algo que irá refletir nele e no povo brasileiro. No caso específico de Chávez, eu creio que a principal questão é a democracia socialista. Pode-se perceber nos últimos anos uma tendência para oferecer alternativas ao neoliberalismo que envolvem a centralização do poder do Estado. Isso não é bom, no longo prazo, para uma democracia socialista, e pode também limitar o apoio popular, que tem sido essencial para Chávez. Eu acredito que ele possa estar se retraindo defensivamente numa concepção estadista desacreditada de socialismo como resposta ao neoliberalismo e a seus problemas.
A sociedade precisa de trabalhadores que desempenhem funções de diferentes níveis de complexidade. No socialismo, essa divisão de trabalho não deveria implicar divisão de conhecimento nem diferenças de valorização profissional. Mas existe a crítica de que isso leva a uma falta de incentivo para o trabalho. Como o senhor avalia essa questão? Eu concordo com o seu ponto de vista geral. Qualquer sociedade requer uma divisão de trabalho. Especializações e diferentes tipos de talentos econômicos são necessários. Mas eu também concordo que tal divisão não precisa dos sistemas de hierarquia, prestígio e recompensa que existem nas sociedades contemporâneas. É comum uma hierarquia não estar relacionada com a habilidade ou valor de trabalho. Por exemplo, no Reino Unido, os indivíduos mais bem remunerados são os banqueiros de investimento. Enfermeiras e outros agentes de saúde, apesar de estarem num patamar sentimental alto, são tratados de forma precária em termos materiais. Numa sociedade ra-
cional, não se teria esse tipo de diferença material. Agentes de higiene e limpeza são outros exemplos de indivíduos que deveriam ser mais valorizados e mais bem remunerados. A questão do incentivo se refere ao raciocínio de que existem pessoas altamente especializadas que apenas conduzirão seu trabalho se muito bem remuneradas, mas, caso não o sejam, emigrarão ou não trabalharão de forma eficiente. Acho que este é um problema simples de se lidar, a longo prazo. Se construirmos uma sociedade baseada em valores diferentes dos que prevalecem hoje em dia, que não tenha a recompensa material como a principal forma de valoração e, ao mesmo tempo, garanta que todos possuam um padrão decente de existência, com o tempo seremos capazes de qualificar indivíduos habilidosos de diferentes tipos. O ‘incentivo’ é um conceito bastante antissocial, abrange pessoas que pensam que podem tornar a sociedade refém de suas habilidades. Podemos ver isso claramente na atualidade, com a crise econômica. Alguns dos banqueiros de investimento que ajudaram a criá-la, por conta de seus conhecimentos específicos sobre a confusão financeira, estão cobrando bônus substanciais para limpar a própria sujeira. Isso é chantagem, é roubo. Com o tempo, seria possível construir uma sociedade que não dependeria de tais indivíduos.
O isolamento foi o maior problema das experiências de socialismo real? Hoje, como elas poderiam ser expandidas? Pode-se entender isolamento de maneiras diferentes. Simbolicamente, os países da União Soviética, por exemplo, não estavam isolados. Eles ocupavam um lugar poderoso na imaginação dos esquerdistas por todo o mundo. Podemos ver uma espécie de sobrevivência disso no que Cuba representa hoje em dia. Seu isolamento geopolítico e econômico foi o grande problema, assim como as pressões para que o país se adaptasse e se conformasse com as estruturas de poder que prevaleciam no ocidente. A questão é: se operamos num ambiente hostil e competitivo e pode-
mos mudá-lo, então é provável que nos adaptemos. O que isso significa na atualidade é uma questão de grande discussão. Eu acredito que uma das características que se destaca na era da neoglobalização é a maior capacidade que os movimentos possuem para coordenar lutas em diferentes países. Isso é uma mudança importante. O dia do protesto global contra a invasão do Iraque, em fevereiro de 2003, foi simplesmente sem precedentes. O protesto falhou, mas mostrou a capacidade ampliada de lutas organizadas, que é importante para que a condição socialista se espalhe pelo mundo.
Numa sociedade sem classes, que outros tipos de conflitos sociais podem surgir? Eu não acho que uma sociedade socialista seria um paraíso. É impossível escapar de algumas características fundamentais da existência humana. Em termos de conflito de larga escala, existe uma variedade de diferentes possibilidades. Trotsky escreveu que nas sociedades socialistas desenvolvidas haveria conflitos relativos à arquitetura e a outras questões similares, o que possui um tom quase pós-moderno. Mas eu acho que há inúmeras possibilidades para conflitos reais, como, por exemplo, conflitos regionais. Estes ocorreriam basicamente porque qualquer mundo socialista herdaria uma desigualdade imensa de benefícios geográficos para a distribuição de recursos. Mudanças climáticas ilustram isso perfeitamente. Também aconteceriam conflitos de valores, como diferentes entendimentos de quão industrializada a existência de um povo deveria ser. Isso poderia gerar conflitos significativos, mas, por não serem baseados em desigualdade crônica, eles seriam mais fáceis de resolver.
“A aposta que Lula fez no neoliberalismo, por exemplo, é algo que irá refletir nele e no povo brasileiro” Qual o papel da ciência e da tecnologia no capitalismo atual? Marx disse que, sob o capitalismo, a ciência se torna uma força de produção. Em outras palavras, o entendimento teórico da natureza, característico das sociedades modernas, anda em sintonia com as vantagens dos capitalistas, competindo entre si para reduzir os seus custos de produção. De várias maneiras, isso constitui um conflito: basta olhar para os problemas ecológicos. Existe uma discordância crescente entre o impulso para subordinar a pesquisa aos objetivos imediatos ditados pelos negócios e as pesquisas conscientes com a natureza. Isso é muito claro no Reino Unido, onde, cada vez mais, o Estado está tentando insistir que a pesquisa científica tem um benefício imediato para os negócios, o que reflete uma falha fundamental de entender que a pesquisa possui mais chance de sucesso se for autônoma em relação a essas demandas. Se formos gananciosos nos resultados de curto prazo, terminamos por destruir os maiores benefícios que viriam com o tempo. (Revista Poli – saúde, educação e trabalho, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Fiocruz www.epsjv.fiocruz.br).
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Pirataria não é crime, é política, defende novo partido Lou Gold
Partido Pirata, iniciado na Suécia, já provoca iniciativas semelhantes em 25 países, inclusive no Brasil Andre Deak de SãoPaulo (SP) NOS ANOS de 1980, quando alguém copiava uma fita de música ou gravava a novela das oito no vídeocassete para ver mais tarde, ninguém chamava isso de crime; hoje, ao emprestar um tocador de MP3 de um amigo e copiar suas músicas ou baixar da internet algum filme, você pode ser processado por algumas das maiores empresas do mundo. As leis são as mesmas, mas agora o cenário mudou: gravadoras e distribuidoras estão em crise. E um dos culpados pela crise, segundo eles, pode ser facilmente identificado: é você. Nos últimos anos, processar usuários de internet e fechar sites de compartilhamento de arquivos tem sido a estratégia das maiores empresas do mundo da música. Paradoxalmente, a criminalização da troca de arquivos online deu início a um movimento contrário: a luta pela alteração do atual sistema de propriedade intelectual e direito de cópia – o chamado copyright. Assim surge, na Suécia, em 2006, o Partido Pirata. De
Amelia Andersdotter, membro do parlamento europeu eleita pelo Partido Pirata
lá para cá, a ideia se espalhou pelo mundo, e partidos piratas começaram a se organizar em pelo menos 25 países. Entre eles, o Brasil. “Eles criaram um fórum internacional, abriram tópicos, por país, de gente interessada. No segundo semestre de 2006, um grupo começou a organizar o partido no Brasil. Eu participei desde o começo”, explica Jorge, membro do grupo de trabalho de
Comunicação do Partido Pirata do Brasil, porta-voz de São Paulo, que prefere não usar o sobrenome. “No caso do Brasil, em 2007 e 2008 houve uma expansão, mas não foi tão grande. Em 2009, sim. Os partidos piratas crescem no mundo conforme cresce a repressão”, diz. A repressão a que Jorge se refere foi o projeto de lei que ficou conhecido como Lei Azeredo, e foi chamado até mes-
mo de AI-5 digital, em referência à lei que instaurou a ditadura no Brasil. Proposto pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que alegou ser um projeto contra crimes cibernéticos, o texto foi atacado em diversas frentes e terminou praticamente enterrado quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse, em fevereiro, que vetaria a lei se fosse aprovada no Congresso, por considerá-la censura.
“O AI-5 digital ajudou o Partido Pirata a crescer. Em janeiro fizemos o primeiro encontro presencial, no Campus Party, uma desconferência com umas 35 pessoas. Hoje temos cerca de 1.500 pessoas cadastradas e coletivos em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife. Estamos próximos da legalização. Mas concluímos que, mais importante que legalizar, é ter um estatuto colabo-
Pirata sueca defende fim do copyright de SãoPaulo (SP) Amelia Andersdotter é a mais jovem membro do Parlamento Europeu. Com 22 anos, eleita pelo Partido Pirata sueco, e empossada agora em dezembro, ela esteve no Brasil em novembro para o Seminário Internacional de Cultura Digital Brasileira, realizado em São Paulo. Em paralelo à programação oficial, rodas de conversas entre os participantes foram organizadas e gravadas para discutir os assuntos abordados no Seminário. O Brasil de Fato participou da conversa entre a parlamentar pirata sueca, o gerente de Cultura Digital do Ministério da Cultura, José Murilo Jr., e o diretor de políticas públicas do Google, Ivo Corrêa. Abaixo, os principais trechos: Brasil de Fato – Por que ser contra o copyright? Amelia Andersdotter – É um modelo antigo, e estou confiante de que existam novos modelos. O Creative Commons (CC), por exemplo, está ficando mais forte. [O CC é um contrato que permite uma flexibilidade na utilização de obras protegidas por direitos autorais, sem infringir as leis de proteção à propriedade intelectual]. Os cinemas também estão indo muito bem, ficando mais fortes. Nós estamos rodeados de informação todos os dias. Uma cópia é só um produto, ninguém quer pagar por isso, mas o cinema é uma experiência que as pessoas estão dispostas a pagar. É um serviço. Vemos isso ocorrer com a música ao vivo, uma experiência única que as pessoas querem pagar, colocar tempo e esforço nisso. Acho que é por aí que os criadores culturais terão que ir, terão que ser mais criativos, encontrar novos modelos. E não é papel de um legis-
lador exigir que as pessoas fiquem agarradas a um modelo que está vencido há pelo menos dez anos. Ivo Corrêa – E é importante acrescentar algo. É um pequeno grupo de artistas que, hoje, pode viver vendendo cópias de livros ou CDs. A maioria dos artistas não vive de vender CDs. Deveríamos gastar energia e dinheiro em novos modelos. A Apple faz muito dinheiro vendendo música online de maneira criativa. Melhor tentar descobrir o novo do que tentar lutar para manter o antigo. Andersdotter – Muitas das políticas feitas hoje são feitas para manter o velho mercado. E as políticas públicas deveriam ser focadas em permitir a participação e a colaboração das pessoas. Pensando bem, talvez, numa economia digital, sem copyright, nós não tenhamos mais um Paul McCartney dirigindo uma BMW. Talvez esse tipo de artista não possa existir mais. Eu ouço esse argumento sempre: onde estarão os Hitchcocks numa economia digital? Como eles irão surgir? Bom, nós não temos mais um Hitchcock desde os anos de 1960. Talvez não tenhamos que ter outro. Talvez o ambiente digital seja completamente diferente, e deva ser mesmo. E a política tem que pensar mais na política colaborativa em vez de defender os velhos mercados. O Partido Pirata propõe mudanças substanciais nas leis de direito autoral. Mudanças no mercado de telecomunicações. Mais privacidade. Menos vigilância, nenhuma censura. Mais compartilhamento de informações, mesmo as controversas, e transparência. Estes são problemas que vemos na Europa nos últimos anos: governos querendo vigiar cidadãos.
Quem são seus eleitores? A maioria homens e jovens. Existem pessoas tanto de esquerda como de direita. Por que mais homens que mulheres? Bem, acho que esse debate é bastante dominado pelos homens, você não vê tantas mulheres discutindo copyright. E acho que o efeito multiplicador ocorre dentro dessas estruturas masculinas. Como o partido lida com as diferenças entre esquerda e direita? Temos bastante acordo sobre quais mudanças precisam ser feitas para uma sociedade da informação mais justa. Então há acordo sobre onde queremos chegar. Algumas vezes temos alguma discordância sobre como vamos traçar esse caminho. Em geral a maioria das pessoas [do partido] é liberal. Então você tem a esquerda liberal junto com a direita liberal. A grande diferença, e o grande problema atual, é construir o mapa dessa estrada para o objetivo final. Você vê a mesma coisa ocorrer com anarquistas, com socialistas, até mesmo com sindicalistas. Você olha a sociedade ideal deles e a visão é bastante similar. Mas eles têm soluções completamente distintas para chegar lá.
E isso ocorre em todos os assuntos? Meio ambiente, trabalho... Não, não. Nós não discutimos esses assuntos. Estamos totalmente voltados para inovações nas políticas culturais criativas, em geral. Mas eu poderia perguntar a mesma coisa sobre o Brasil. Me disseram que vocês têm um governo que incentiva a participação social, mas o Senado, parece, não coopera muito a respeito disso... Como vocês lidam com isso? José Murilo Jr. – Me parece um problema de gerações. Aqui no Brasil os jovens não acreditam mais no governo. Eles preferem movimentos sociais em vez de criar um novo tipo de partido político. As pessoas me parecem mais felizes em fazer isso do que entrar nos velhos esquemas partidários. Por que vocês optaram por esse caminho? Andersdotter – Apesar de todas as redes sociais que existem na sociedade civil, quase toda regulamentação é feita nos parlamentos. Ali é o campo de batalha, ainda. E tudo o que sai do Parlamento Europeu tem impacto no mundo todo. É uma batalha importante também, mu-
dar as coisas de dentro. Movimentos sociais são ótimos. O parlamento é mais lento. Mas, provavelmente, também é bom, em algum nível. O modelo do Creative Commons é uma solução? Andersdotter – Laurence Lessig [criador do CC] é um advogado. O que eu sempre observo em advogados é que eles não são contrários aos direitos de propriedade. É conveniente transformar o conhecimento em propriedade, porque facilita a criação de contratos mais amarrados, facilita a solução de conflitos. Se você quer ser radical sobre copyright, então você precisa defender o copyleft, não o CC [o copyleft é a oposição ao copyright. No copyleft, tudo é permitido]. Porque ele é um modelo mais comunitário (dos “commons”). O sistema CC é mais uma maneira de flexibilizar o sistema atual de copyright. Corrêa – O Creative Commons tem um mérito: informar os autores que eles podem decidir como sua obra será usada. O autor fica sabendo que tem uma escolha. O principal mérito, acho, é informar as pessoas que a lei
rativo. A ideia não é ser uma filial do partido sueco, mas um partido com cara brasileira”, diz Jorge. As diferenças entre o Brasil e a Suécia não são poucas. O Partido Pirata sueco nasce com apenas três pontos em sua plataforma política: alterar a lei do copyright para que todo o conhecimento e produção cultural possam ser copiados, se não forem usados para fins comerciais; abolir o sistema de patentes; e respeitar o direito à privacidade. No Brasil, além dessas bandeiras, existem várias outras. “Aqui, batemos muito na transparência”, diz o porta-voz do Partido Pirata do Brasil. “Lá, até o conteúdo dos emails dos parlamentares são públicos. Aqui, lutar pela transparência na política ainda é importante. A questão da inclusão digital, banda larga, também é muito importante. Banda larga não é um problema por lá. E o uso do software livre e formatos abertos na administração pública. Quebrar os monopólios. Esta é a diferença principal. O resto não é muito significativo.” Segundo Jorge, o momento do partido agora é de estruturação da rede brasileira, organizando os coletivos locais em encontros presenciais, não apenas no mundo online. A legalização do partido será consequência. Jorge não acha, também, que as alianças no Brasil seguirão as tendências suecas. “Lá são aliados do PV, aqui é difícil que isso aconteça. A gente bate forte na transparência, e os partidos tradicionais não defendem isso. Não queremos repetir as mesmas práticas dos partidos tradicionais.”
não precisa determinar tudo. No Brasil, a maioria acha que não tem opção. Que é tudo copyright. Andersdotter – Existe uma falha nessa argumentação, que é a seguinte: consideremos que o Creative Commons mostra às pessoas que elas podem fazer uma escolha. Mas elas não deveriam ter essa escolha. Quando alguém decide criar informação, ou cultura, toda a produção deveria, automaticamente, ser livre. E, talvez, apenas em poucos casos, a escolha pudesse ser ao contrário: escolher proibir o acesso. Mas tudo, em geral, por definição, seria livre. Mas o sistema de Creative Commons garante, ao menos, que o autor seja reconhecido pela obra. Pode tudo, desde que citada a fonte. No copyleft não existe essa garantia. Na comunidade artística, me parece que existe uma integridade mínima de não se apropriar do trabalho do outro. Se você faz um filme, não acho que ninguém pegaria seu filme e colocaria o nome dele em cima. Em primeiro lugar, seria vergonhoso. Segundo, você faria inimigos. Acho que isso seria autorregulado pela comunidade. Assim, me parece que o copyleft, basicamente, resolve tudo. (AD)
Lou Gold
Por que ser pirata?
Amélia Andersdotter, José Murilo Jr. e Ivo Corrêa
A parlamentar europeia do Partido Pirata sueco, Amelia Andersdotter, explica: “Pirata não é uma palavra inventada por nós, mas sim pelas gravadoras e indústria cinematográfica, que querem estigmatizar o ato de piratear filmes ou música como algo mal. O que nós temos feito é dar um sentido positivo e de rebeldia. Ser pirata não é algo que tenhamos que nos envergonhar. Ao contrário, é muito nobre. Se você é pirata, está compartilhando a cultura e a informação”. (AD)