Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 7 • Número 358
São Paulo, de 7 a 13 de janeiro de 2010
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Reprodução
Ano de crise: erros e acertos de um país sem crescimento
Há 60 anos, povo chinês realizava sua revolução socialista A Revolução Chinesa é certamente um dos eventos mais importantes e definidores do século 20. Há 60 anos, o povo chinês, organizado no Exército Popular de Libertação e comandado pelo Partido Comunista, dava basta a séculos de opressão. A revolução conseguiu suprir demandas sociais históricas da população do país, como a reforma agrária, resolvendo assim o problema crônico da fome. Passadas tantas décadas – sendo que nas três últimas o país assistiu a uma série de reformas capitalistas –, a China vive hoje em contradições e sob a promessa de se tornar a maior economia do mundo. Págs. 10 e 11
Rua do centro de Xangai, maior cidade da República Popular da China
Sem acompanhar o crescimento de países igualmente emergentes, como China e Índia, a economia brasileira teve um desempenho, em 2009, considerado tímido por economistas. Nesse ano de crise mundial, o crescimento do país deve ter oscilado entre 0% e 1%. Medidas como o aumento do salário mínimo, com ganho real de 12%, e a ampliação, ainda que modesta, do Bolsa Família foram considerados eficientes no combate à recessão. Para 2010, o otimismo em torno das expectativas da retomada de investimentos coloca um panorama mais positivo para a economia, ainda que sem distribuir renda. Pág. 3
Thiago Carrapatoso
Brasil, um dos atores da nova ordem multipolar Na ocasião da ampliação do G-7 para G-20, o Brasil foi considerado um dos principais atores da constituição desse novo bloco, que vislumbra uma ordem mundial multipolarizada. Ao lado de China, Índia e Rússia, o país age como um ator importante no diálogo entre nações. Exemplo recente disso é a atuação da delegação brasileira
na COP-15, quando Lula foi convocado para mediar o diálogo entre China e EUA. Contudo, apesar dessa aparência democrática do G-20, alguns analistas apontam que os EUA podem ter permitido essa abertura aos países considerados emergentes para evitar a formação de um eventual bloco de países não-alinhados. Pág. 12 Ricardo Stuckert/PR
Milton Hatoum, a universal literatura de Manaus
Págs. 6 e 7 ABI
Presidente Lula e o primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, durante encontro em Copenhague
Os dilemas de um policial: ser trabalhador, servir o patrão
Os novos desafios da Bolívia Após a reeleição de Evo Morales na Bolívia, em dezembro, os movimentos que dão suporte à nova fase do país começam a traçar os desafios para construir um Estado plurinacional e descolonizado, baseado na coexistência entre diversos tipos de propriedade. Pág. 9
O sargento Amauri Soares, deputado estadual pelo PDT de Santa Catarina, foi eleito a partir da defesa das reivindicações da categoria dos trabalhadores da segurança pública, que em muitos pontos são iguais às de qualquer outra. Em entrevista, ele aponta as contradições de sua classe e a necessidade de os movimentos sociais se envolverem com as soluções relativas à segurança pública. Pág. 8
A carimbadora de licenças de transgênicos Dos atuais conselheiros da CTNBio, vários tiveram ou têm alguma relação com as empresas de biotecnologia
ou com entidades financiadas por transnacionais. Mesmo com pesquisadores, produtores e consumidores
se opondo ao plantio do arroz geneticamente modificado, o órgão pretende aprová-lo. Págs. 4 e 5 Rogério Tomaz Jr./ABr
ISSN 1978-5134
Audiência pública da CTNBio para liberação do uso de sementes transgênicas
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de 7 a 13 de janeiro de 2010
editorial FINAL DE ANO, início de ano novo, todo mundo faz seus balanços e desenha as perspectivas. Certamente, em cada instância dos mais diferentes movimentos sociais brasileiros, a quem nosso jornal se referencia, estarão fazendo balanços e análises das perspectivas da luta de classe no Brasil para 2010. É muito difícil fazer prognósticos certeiros. Afinal, a luta de classes é dinâmica e se altera de acordo com o comportamento da correlação de força. Portanto, o despenho detalhado é imprevisível. No entanto, a ciência política e a análise histórica nos permite traçar cenários prováveis e perspectivas.
As elites Do lado do capital, há uma crise estrutural instalada no polo central da acumulação capitalista internacional, que será prolongada e continuará trazendo consequências para as economias da periferia, como a brasileira. É provável que as empresas transnacionais e o capital financeiro continuarão apostando na economia brasileira como um território para proteger seus capitais e garantir acesso aos recursos naturais. Em 2009 assistimos a uma ofensiva do capital internacional sobre nossos recursos, como a terra, água, usinas de etanol, hidrelétricas, reservas de minérios, biodiversidade etc. Ou seja, continuará havendo um processo de desnacionalização. Os
debate
2010: um ano de muitas lutas sociais e disputas de projeto capitalistas continuam controlando o nível de emprego e de salário, subordinando-os apenas aos seus interesses. É por isso que em 2009 os operários industriais brasileiros, com carteira assinada, perderam R$ 13 bilhões na massa salarial total em relação a 2008. Os problemas estruturais provocados pelo capitalismo continuarão se aprofundando, da concentração de riqueza, da propriedade, gerando maior desigualdade social. Aumentarão também as contradições do domínio estúpido do capital sobre a natureza e os alimentos. Na sua sanha de lucro fácil, aparecem com mais veemência as contradições dos desequilíbrios do meio ambiente, das alterações climáticas e dos agrotóxicos sobre os alimentos, que atingem agora toda população, não apenas quem vive no campo.
Os trabalhadores Do lado da classe trabalhadora, vivemos ainda um período histórico dentro do ciclo do descenso do movimento de massas. As forças populares organizadas, que representam a classe trabalhadora do campo e da ci-
dade, ainda se ressentem da derrota política que representou a queda do muro de Berlin, da derrota do projeto democrático popular e da dispersão ideológica que tomou conta das organizações políticas em geral. Em cenário tão complexo, os desafios a serem enfrentados são mais difíceis, e as soluções virão apenas no longo prazo. Não são tempos de plantar alface. São tempos de plantar árvores, como dizem os movimentos camponeses. Plantar árvores significa retomar o trabalho de base, miúdo, que dará frutos a longo prazo. Significa seguir persistentemente com a formação de militantes. Seguir estimulando todo tipo de luta social. Seguir construindo nossos próprios meios de comunicação com as massas, como é o jornal Brasil de Fato, as páginas na internet e outros veículos que a classe trabalhadora está construindo a duras penas em nosso país.
Ano de eleições No meio desse cenário, teremos uma eleição presidencial. Esse pleito tende a uma polarização simples, entre o retrocesso ao neoliberalismo
crônica
Luís Carlos Lopes
A tapetada da ignorância ou os novos ovos da serpente
é possível evitar isso se desde hoje a vigilância democrática esteja atenta às manifestações ainda líquidas de um fascismo que poderá se solidificar, dependendo de quem estiver no poder central. O estímulo à leitura e ao consumo da obra de arte de qualidade – popular e erudita – são antídotos a ser considerados. A internet, por exemplo, é um meio de comunicação no qual há de tudo um pouco. Eles trafegam no lixo, mas poderiam usar o mesmo meio para acessar as conquistas da filosofia, das artes e das ciências. É tecnofobia demonizar o meio. O problema está no modo como é usado. Na verdade, eles vieram do consumo de uma televisão de baixíssima qualidade e de outras mídias também pouco edificantes. Hoje, esses jovens encontram na internet os mesmos vícios e problemas, potencializados pela interativitdade. Não é difícil que eles acreditem que o mundo é só o que eles e suas redes intersubjetivas imaginam como único e possível. Eles pouco ou nada ouvem, veem ou leem comunicando o combate aos preconceitos tradicionais da sociedade brasileira. Não sabem o que são exatamente o racismo, o sexismo, a homofobia, o idadismo e o terrível e secreto preconceito contra a inteligência. Certamente, não compreendem que a pobreza não é um destino, e sim um problema político. Há razões de sobra para desconfiarem de tudo que cheire a política e para imaginarem que qualquer um interessado nisto é um ladrão. Em suma, estão apartados de um instrumental básico para compreender o mundo em que vivem. São alienados, manipulados pelos mais fortes e manipuladores dos mais fracos que conseguem alcançar. (Carta Maior)
OS ESPECIALISTAS e futurólogos de plantão já estão a postos para as projeções e previsões acerca deste novíssimo ano que despertou. Já que me honraram com o posto de cronista sazonal deste brioso e combativo periódico, também gozo de algumas prerrogativas com o poderoso deus Cronos e, por isso, arrisco-me a meter minha colher nesta panela político-esotérica... Na seara internacional, a julgar pelas promessas (muitas) e frustrações (ainda mais numerosas) do ano que passou, 2010 será como a velha máxima de Aparício Torelly, o autoproclamado Barão de Itararé: “de onde menos se espera, daí mesmo é que nada vem...” Na conturbada questão ambiental, depois da malograda Cúpula de Copenhague, tudo seguirá em banho-maria, com as nações do Terceiro Mundo (e os países africanos, sobretudo) insistindo em cobrar a conta das grandes potências capitalistas, e a turma do G-7 protelando, como sempre, sua dívida com a humanidade. Alguns continuarão a confiar na boa-fé (?) do bom mulato Obama, mas em relação ao novo síndico do Império vale o que declarou um pastor ambientalista ianque: ninguém sabe se ele adotará alguma medida eficaz contra a emissão de poluentes e o aquecimento global, mas certamente fará o mais belo discurso sobre o tema... No reino da pelota, o horóscopo diz: sorte nas finanças e fiasco no social. 2010 promete muitos lucros para a FIFA, a CBF, as corporações de produtos futebolísticos – Nike, Adidas & Cia. – e as grandes redes de TV, graças à realização da Copa do Mundo na África do Sul. Em compensação, há dúvidas atrozes se o evento será capaz de melhorar as precárias condições de vida do povo sul-africano. Inspirado pelo inesquecível samba da União da Ilha, consultei bola de cristal, jogo de búzios, cartomante e indaguei quem será o campeão, mas os orixás da Mãe África recusaram-se a dar-me qualquer resposta conclusiva. Não foi pirraça das entidades: em verdade, estão todas em greve por tempo indeterminado, revoltadas com o descaso e a discriminação que o continente continua a receber do arrogante mundo civilizado cristão ocidental. Já em plagas latino-americanas, a efervescência segue sem limites. Analistas dos mais variados rincões continuarão a anunciar suas profecias sobre Cuba, quase todas açodadas ou equivocadas, mas a ilha celebrará o 51º aniversário de sua Revolução e da resistência ímpar de seu povo como sempre tem feito ao longo dessas duas décadas de Período Especial: devagar e sempre... É claro que as sequelas dos furacões de 2009 e a própria crise global a atingiram severamente; os herdeiros de Martí, contudo, além de altivos e soberanos, são muito tinhosos e sabem conduzir sua nau com a perícia dos velhos marinheiros quando o nevoeiro se abate sobre os mares caribenhos. Mais ao sul do Rio Bravo, a reeleição de Evo Morales na Bolívia servirá de notável advertência para a política mais do que ambígua do bom mulato Obama na região. Será preciso dobrar os salários dos (pseudo)jornalistas que a CIA mantém na Veja e em outros órgãos para que a demonização de Chávez, Evo, Correa & Cia. seja capaz de confundir a difusa ‘opinião pública’ de Bruzundanga e seus vizinhos. Por falar em estigmatização, prosseguirá sem tréguas a campanha de criminalização do MST na República de Bruzundanga, mas os bravos sem-terra, escaldados pela laranjada da Cutrale, saberão dar o troco à da bancada ruralista no Congresso. Como sentencia um sábio provérbio espanhol: “a mentira pode correr um ano, que a verdade a alcança em um só dia...” É o MST que desmata a Amazônia e aquece o planeta? Minha bola de cristal prevê que a tchurma do agronegócio vai cortar um dobrado em 2010, sem conseguir explicar por que não se dispõe a rever os índices de produtividade do latifúndio tupiniquim. É claro que as Kátias, Caiados e os novos coronéis de Bruzundanga investirão tudo nas eleições de outubro; no entanto, em meio a tantos panetones e cuecas milionárias, ninguém sabe como o povo reagirá aos prestidigitadores de urnas... Por fim, a propósito da tal “festa da democracia”, não há muito a prever, e sim a reiterar. Em vez de especular sobre Dilmas, Marinas e Heloísas, valho-me da velha e sábia lição de um certo Vladimir Ilitch Ulianov: as eleições burguesas são sempre um espaço de organização e reafirmação das forças populares na sociedade. Sem desprezar o resultado do pleito (uma variável importante para o movimento social no país), o mais oportuno será sem dúvida a difusão das causas que, hoje mais do que nunca, estão na ordem do dia, desde a secular luta pela reforma agrária até a defesa radical dos direitos cidadãos (educação, saúde, moradia...) ou a democratização plena dos meios de comunicação no país.
Luís Carlos Lopes é professor e autor do livro TV, poder e substância: a espiral da intriga, dentre outros.
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).
Gama
As mídias vêm divulgando uma nova moda, que contaria com muitos adeptos. Ela consiste em enrolar tapetes dos automóveis, transformando-os em cassetetes improvisados. Estes são manejados por jovens que se divertem com os efeitos dos golpes desferidos no corpo de desavisados, pedestres ou ciclistas. Esses jovens são os novos ovos da serpente frequentam cursos que lhes darão diplomas impossíveis de serem acessados pela maioria dos estudantes brasileiros. Moram, comem e bebem sem nenhum problema. Eles têm tempo livre à vontade para vadiar por aí, buscando encontrar um sentido, mesmo que negativo, para suas vidas. Vão da ação violenta à sua divulgação na internet em minutos. Eles não conhecem o real significado da expressão direitos humanos e têm raiva de quem lembra da mesma. Acham que são mais brasileiros do que os que agridem, não demonstrando qualquer culpa ou remorso. Mesmo assim, como são, em sua maioria, brancos e socialmente bem situados, conseguem ter um tratamento diferencial quando são pegos. Não há registro de que suas famílias deixem de apoiá-los ou exerçam qualquer tipo de controle sobre seus comportamentos violentos. Flutuam na atmosfera de uma sociedade baseada na diferença extrema, na baixa cultura e na falta de inteligência e de compaixão. Esses jovens são os novos ovos da serpente. Representam o que há de pior na sociedade brasileira. Aqueles que, dependendo da evolução da história do país, estarão prontos para tentar impedir qualquer mudança e para garantir seus privilégios de classe. Estão sendo chocados e se preparando para um possível embate no futuro. O que fazem hoje talvez seja uma pequena amostra do que poderão fazer em outro contexto. Só
Luiz Ricardo Leitão
O que será o amanhã?
AS MÍDIAS VÊM divulgando a nova moda, que contaria com muitos adeptos e admiradores. Ela consiste em enrolar os tapetes dos automóveis, transformando-os em cassetetes improvisados. Estes são manejados por jovens que se divertem com os efeitos dos golpes desferidos no corpo de desavisados, pedestres ou ciclistas que circulam no espaço público. A ‘brincadeira’, fortemente ofensiva, consiste em fazer o outro sentir uma dor intensa. Pelo menos em um caso, a tapetada foi acompanhada de outras agressões racistas feitas a um homem negro.
Os alvos são os passantes, aqueles que ousam dividir o espaço das cidades com os demais membros da população. Os eventos são filmados e depois divulgados na Internet, com muito orgulho e sensação do dever cumprido. Os tapeteiros têm muitos fãs, como se pode ver nas redes de relacionamento. Ao que parece, eles se acham o máximo e desconhecem qualquer regra de convivência e respeito social. Existem os que fazem, os que ajudam e os que aprovam tal barbaridade. Eles batem em moças – será que existe algum teor sexual no comportamento deles? –, rapazes e em qualquer outro alvo que lhes pareça ‘merecedor’ de uma tapetada. Esses novos agressores criptofascistas nada têm a ver com a sapatada iraquiana em Bush e com o doido que agrediu o Berlusconi. Não são atos cometidos por pessoas insatisfeitas com a ordem. Ao contrário, os tapeteiros têm mais a ver com os que agridem verbalmente ou fisicamente mulheres, negros, índios, mendigos e homossexuais. São filhos de um certo humor televisivo baseado no preconceito e no sofrimento do outro. Acreditam que estão acima de todos e podem fazer o que bem entendem. Divertem-se com a dor alheia, tal como todos os que conseguem achar graça das diferenças, das tragédias e das misérias humanas. Certamente, eles têm automóveis e alguns recursos. Há provas que vários são estudantes de nível superior de escolas privadas. Alguns
puro, do governo FHC, agora representado pela chapa de José Serra, e a melhora e continuidade do governo Lula, representado pelas três outras candidaturas até agora postas. O desafio das forças populares da classe trabalhadora não é apenas fazer uma opção eleitoral, que é até a mais simples. Ninguém quer a volta do neoliberalismo puro. Mas o desafio político é as forças populares conseguirem aproveitar esse momento de disputa eleitoral para também fazerem um debate sobre a necessidade de um projeto para o Brasil. Um projeto que seja anti-imperialista e antineoliberal. Um projeto que recupere a soberania popular sobre nossos recursos naturais e sobre nossa economia; que proponha reorganizar a economia do país, para resolver em primeiro lugar os problemas fundamentais do povo, tais como: emprego, distribuição de renda, escola, moradia, terra, comida e cultura para todos. Um programa dessa natureza evidentemente que não é socialista. Mas é urgente e necessário para podermos acumular forças para as mudanças socialistas que sonhamos.
Nossos desafios Nos próximos meses, se intensificarão as articulações entre as organizações da Coordenação de Movimentos Sociais (CMS), das centrais sindicais, da Assembleia Popular, da Via Campesina para debater esses desafios. Certamente, dessas articulações resultarão a necessidade de ações de massas, pedagógicas e conjuntas. Assim como as lutas sociais conjuntas. Há diversas iniciativas sendo debatidas. Algumas relacionadas com lutas e calendários comuns, como a luta pela jornada de 40 horas, pela adoção crescente do fator Previdenciário aos aposentados, pela redução dos juros e do superavit primário, pela ampliação das políticas públicas em favor dos trabalhadores, pela reforma agrária, e contra a criminalização dos movimentos sociais. As igrejas cristãs iniciarão o ano nos dando um bom exemplo, ao desenvolver os 40 dias da Campanha da Fraternidade, entre o Carnaval e a Páscoa, em torno do lema: “Não é possível servir a dois senhores, a Deus e ao capital”. 2010 será sem dúvida um ano de muito debate, de muitas mobilizações, e quem sabe possamos sonhar com o reascenso do movimento de massas, única forma de alterar a correlação de forças na sociedade a favor da classe trabalhadora para controlar a sanha do capital.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil
Timidez monetária impediu que o crescimento fosse maior em 2009 ECONOMIA Para economistas, governo agiu certo na isenção fiscal e oferta de crédito, mas não ousou como China e Índia Antônio Cruz/ABr
Renato Godoy de Toledo da Redação NA PRIMEIRA metade de 2009, o Brasil voltou a viver tecnicamente uma recessão, após a confirmação de dois trimestres consecutivos de queda no produto interno bruto (PIB). Foi o primeiro quadro negativo desde 2003. Os efeitos da crise financeira internacional foram sentidos no país com a demissão em grandes empresas e o cancelamento de investimentos. No segundo semestre, as ações de isenção fiscal e incentivo ao consumo elaboradas pelo governo começaram a surtir efeito, trazendo de volta um viés de alta à economia brasileira. No entanto, a retomada não coincidiu com as análises otimistas da equipe econômica nem com a de setores mais pessimistas, que apostavam na continuidade da recessão. Ainda que positivo, o crescimento do país em 2009 deve ter oscilado entre 0% e 1%. Comparada às economias centrais, de onde a crise emanou, o resultado foi razoável. Mas, em relação a países como Índia e China, a performance brasileira ganha contornos pífios. As duas economias asiáticas devem apresentar evolução próxima a 8%. Para especialistas consultados pela reportagem, o governo brasileiro tomou medidas acertadas ao reduzir o IPI de automóveis e da linha branca de eletrodomésticos. Outros pontos positivos foram o reajuste do salário mínimo 12% acima da inflação e do benefício do programa Bolsa Família. Tais medidas anticíclicas de estímulo ao mercado interno não foram vistas, entretanto, no âmbito monetário. Mesmo com alguns cortes, o Comitê de Política Mo-
O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles: manutenção na política econômica ortodoxa impediu que crescimento fosse maior
“O governo adotou boas medidas, como o [aumento do] salário mínimo e o Bolsa Família. A grande eficácia em travar a queda foi por aí” netária (Copom) do Banco Central manteve a taxa básica de juros em um patamar de 8,75%. O índice é o mais baixo desde o início da série histórica, mas é o segundo maior do mundo. Todavia, economistas apontam que as ações de bancos
Ação do governo
públicos, como Banco do Brasil, BNDES e Caixa Econômica, foram importantes para ampliar a oferta de crédito e amortizar os impactos da ortodoxia do Copom e do recolhimento de empréstimos por parte das instituições privadas.
De acordo com Paulo Passarinho, presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, a timidez da ação do BC pode ser observada na comparação com outros países. “Em parte a saída da crise foi oriunda da ação governamental. Mas tanto a China como a Índia são países que superaram a crise pelo comando que seus respectivos estados têm sobre o sistema financeiro. Antes da crise, o BC elevou a Selic a 13,75% e a manteve por alguns meses. Por isso a Ín-
dia cresce em torno de 6% e nós, 0,5%. Se não houve recessão, não quer dizer que não sofremos com a crise. Isso tudo por conta da opção de política econômica”, contesta o economista. A Índia, exemplo usado por ele, chegou a praticar uma taxa de juros negativa em 2009, para enfrentar a crise. José Carlos de Assis, presidente do Instituto Desemprego Zero, aponta que a “retomada” do ciclo de crescimento no Brasil não pode ser vista com entusiasmo. “O país evitou o aprofundamen-
Taxa de investimento deve crescer com pré-sal e Olimpíadas Rio 2016
Recursos externos devem entrar no país; especialista aponta perigo de dependência externa
to de uma queda no final do ano passado. Não se deve ter nada espetacular [em termos de resultados]; o que se tem é o fato de ter escapado da crise. Vínhamos num crescimento de 6 e 7%; agora, perto de zero. É um desastre grande, em relação a Índia e China”, aponta. Assis acredita que as medidas do governo foram acertadas, mas salienta que o estímulo à indústria automobilística pode ter impactos negativos de médio a longo prazo. “O governo adotou boas medidas, como o salário mínimo, que teve aumento real de 12%, e o crescimento, ainda que modesto, do Bolsa Família. A grande eficácia em travar a queda foi por aí. No caso da redução do IPI dos bens duráveis, há um fortalecimento de um setor [o automobilístico] que do ponto de vista ambiental é complicado: favorecem-se as vendas de automóvel em detrimento da circulação nas grandes metrópoles. Mas para o curto prazo foi a saída”, avalia. Já para o pesquisador aposentado do Ipea Guilherme Delgado, um importante indicador, mais palpável à maioria da população do que o PIB, é a geração de emprego, que mostrou-se reduzida, mas ainda em bom número em 2009. “Aqui o efeito da crise externa foi pequeno, praticamente restringiuse ao último trimestre de 2008, com uma paralisação maior do investimento privado e das exportações. Foram fatores que desencadearam uma onda inicialmente recessiva. Posteriormente, a crise externa foi trabalhada, e os indicadores mais visíveis, como a geração de emprego, apresentaram um desempenho razoável: com a criação de 1,5 milhão, em 2009, enquanto em 2008 foi de 2 milhões”, compara.
Um terço dos empregos duram menos de 6 meses Para pesquisador, quadro é fruto da precarização e da rotatividade
da Redação
da Redação
A taxa de investimento na economia brasileira serve para medir o quão sustentável deve ser o crescimento do país nos próximos anos. Isso porque a evolução da economia não pode ser avaliada apenas por seus resultados pontuais, mas pela capacidade de manter seu desempenho a longo prazo. Com baixos recursos em infraestrutura, a produção não tem como manter um ritmo acelerado de crescimento. Para uma indústria que planeja aumentar a produção e a lucratividade, por exemplo, é essencial desenvolver tecnologia e infraestrutura, com a criação de novas plantas. Esse montante de investimento, em 2010, deve atingir a marca de 18%, segundo a previsão de especialistas, o que representaria um avanço em relação a 2009 (16,9% de previsão). A taxa em si, porém, não revela todas as complexidades de uma economia. Segundo o economista Guilherme Delgado, a taxa deve ultrapassar 25% do PIB em cerca de quatro anos. Mas isso não significa que o desenvolvimento brasileiro esteja assegurado. “O petróleo e a energia vão gerar mais investimentos. Deve entrar mais capital externo para esse incremento nos programas de infraestrutura. Isso não vai ter proble-
De acordo com dados do INSS, dos 54 milhões de empregados formais contabilizados no Brasil em 2008, um terço deles não conseguiu contribuir com mais do que seis parcelas para o instituto. Isto é, saíram do posto de trabalho, por motivos diversos, em menos de seis meses. De acordo com o economista e expesquisador do Ipea Guilherme Delgado, esse cenário revela o tipo de emprego que tem sido criado no Brasil desde 2001, quando se deu o início de um ciclo de geração de empregos. “O crescimento do emprego formal se dá, sobretudo, na faixa dos dois salários mínimos. É uma inclusão grande; todo ano cerca de 2 milhões de novos empregos. Mas boa parte desses empregos é muito precária. E a previdência mostra isso. Ela mostra a rotatividade e a precariedade desse mercado. A principal causa disso é essa exportação de agroprocessados que cria empregos precários”, comenta Delgado. Outro fator para a rotatividade é o crescimento do setor de serviços na participação do emprego formal no país. “O setor de serviços é muito sazonal. No turismo, por exemplo, que acarreta na criação de muitos empregos, quando acaba a alta temporada as pessoas são demitidas. A economia do trabalho está muito mal-estruturada. Esses assuntos não entram no debate público porque atingem pessoas com pouca vocalização”, conclui. (RGT)
Olimpíadas geram empregos que não se mantêm a longo prazo
ma do ponto de vista imediato. Mas, aumentando a dependência externa, ficamos vulneráveis a eventuais recrudescimentos da crise, que causam fuga de capital. Vejo um gargalo maior no aumento da dependência externa do que no volume do investimento”, explica. O economista vê como um indicador do crescimento a geração de empregos, que, segundo ele, não tem uma sustentabilidade garantida, mesmo com os megaeventos que ocorrerão no país. “A sustentação do mercado de trabalho a longo prazo é incerta. Em 2010 e 2011, ele estará alavancado pela atuação do setor público, pelos programas de energia do PAC, pelas Olimpíadas de 2016 e a Copa do Mundo de 2014. Esses são fatores circunstanciais e não se sustentam por si só.
Tem que se criar um ciclo de crescimento com distribuição, ao contrário do clássico no Brasil: crescimento com desigualdade”, defende. Ainda baixo José Carlos de Assis, do Instituto Desemprego Zero, afirma que o crescimento da taxa de investimento é importante para o país, mas ainda está em um nível baixo. “Com o crescimento do investimento, aumenta-se a capacidade de produtividade. Temos que olhar se esse crescimento é sustentável. O mundo está estagnado, exceto China e Índia. Então, pelo lado externo, não é sustentável. Mas pelo lado interno, sim. Pois estão construindo medidas adicionais de estímulo para construir mão-de-obra agregada. Tem que ter sustento de deman-
da, se não o investimento cai. Estamos num nível de demanda razoável, por conta do emprego. Mas esse nível garantiu um crescimento próximo de 0%”, analisa. O estímulo à formação de uma mão-de-obra para a produção de bens de valor agregado é uma forma de inserir o Brasil de outra forma na economia mundial. A preferência por um modelo exportador de matéria-prima sem valor agregado gera emprego de baixa remuneração e qualidade. O investimento em ciência e tecnologia seria a alternativa para criar melhores empregos, dizem especialistas. “O Brasil voltou a ser um país montador e exportador de produto mineral e agrícola. É uma situação de regressão econômica”, diz o economista Paulo Passarinho. (RGT)
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de 7 a 13 de janeiro de 2010
cultura Marcel Gautherot
Quando o mito vira
história, ea
história
vira literatura Em entrevista ao Brasil de Fato, Milton Hatoum, um dos escritores contemporâneos mais reconhecidos pela crítica literária, expõe as bases de sua obra e sua visão sobre um país de “narrativa política esquizofrênica” Livia Almendary de São Paulo (SP) O ESCRITOR Milton Hatoum se considera um “paulistano de Manaus”. Estranha forma de localizar uma origem, não fosse o fato de revelar logo de cara a ideia de um país marcado por realidades socioculturais e econômicas muito distintas, porém simultâneas no tempo e no espaço, separadas sobretudo pela nossa “narrativa política esquizofrênica”. Não dá mais para pensar numa Amazônia desvinculada das questões urbanas de forma geral, ou pensar o Norte como um Oriente longínquo, uma massa verde povoada de apenas índios, esse nome genérico que designa “muitas vontades”. Também nos lembra que, na época da ditadura militar, o movimento estudantil em Manaus, Belém e outras cidades amazônicas era muito ativo, e que ali foi um ponto de encontro privilegiado de culturas de muitos lugares do mundo. Nos mostra uma Manaus que passou dos milhares de habitantes para a casa dos milhões e que enfrenta problemas socioeconômicos que não são exclu-
sividade dessa região, mas que precisam ser pensados em suas especificidades. Em suma, Hatoum nos convoca – por suas palavras nessa entrevista, mas principalmente por meio de sua literatura – a prestar mais atenção na Amazônia, ainda desconhecida não porque a floresta é profunda, mas porque o olhar viciado construiu discursos e mitos que contribuem para a ignorância que ainda impera sobre a região. Paulistano de Manaus Geralmente me apresento como um brasileiro de Manaus. Minha relação com a cidade onde nasci é muito forte e talvez seja, das muitas cidades em que vivi, a que mais me sensibiliza. Porém, sou um brasileiro de Manaus que já tem uma parte considerável de sua vida em São Paulo. Na verdade, sou paulistano de Manaus. Morei toda a década de 1970 aqui, depois morei em outras cidades, na Europa, voltei para Manaus, morei nos Estados Unidos. As duas cidades brasileiras com as quais tenho uma relação mais íntima, onde estão meus amigos, são Manaus e São Paulo. Thiago Carrapatoso
O escritor Milton Hatoum
São Paulo tem muitas atividades literárias, é onde as coisas acontecem, é aqui que estão meus leitores, ou a maioria deles. Por outro lado, tornouse uma cidade muito cara, caríssima. É uma cidade cujo urbanismo é burro, não foi planejada – apesar de que poucas cidades brasileiras o foram –, a questão do transporte urbano é muito mal pensada. Tem 12 milhões de habitantes, é enorme, e tem pouquíssimas estações de metrô, por exemplo. É uma aberração.
A literatura não dá respostas, ela expõe questões, problematiza, faz perguntas a partir de conflitos, de situações que envolvem tragédias e dramas humanos, mas o faz de maneira oblíqua, mediada Manaus de 68 Estudei no Colégio Amazonense Dom Pedro II, uma escola estadual do Amazonas em edifício neoclássico, enorme. É um colégio muito combativo. Durante o Regime Militar, criamos um jornalzinho chamado O Elemento 106. Na natureza, são 105 elementos químicos, nós criamos o elemento 106. Participava desse jornal com uns amigos, dois deles saíram de Manaus em 68. Esse jornal já expressava a participação de um movimento estudantil naquela região, depois em Manaus houve uma série de protestos e resistência. As pessoas pensam que só houve manifestações e resistência nas grandes cidades. Não, lá também teve, em Belém, na Amazônia toda. Experiência e cidade A diferença é fundamental para quem escreve romance. Hoje, a vida de uma criança em São Paulo pode ser muito limitada a uma balada, um bairro, um shopping, e eu não vivi isso. Minha infância foi em Manaus, mas não na beira do rio, como um ribeirinho de família cabocla. Foi uma infância mais urbana. Depois me mudei para Brasília muito jovem. Então, vivi em Manaus, que é uma cidade portuária, numa época em que ainda era razoavelmente pequena, tinha uns 300 mil
habitantes. De todos os modos, sempre foi uma cidade muito misturada, cheia de aventureiros, viajantes, imigrantes de vários lugares. Convivi um pouco com imigrantes do Líbano, da Síria, judeus marroquinos; foi uma experiência muito rica nesse sentido, fundamental para quem escreve. Meu avô me levava para a cidade flutuante, que era um bairro proletário, com uma vida muito intensa; me levava às vezes para o interior. Ele era um contador de histórias, não havia televisão, então a relação com a cidade, com as pessoas, era muito mediada por narradores. As pessoas contavam histórias. Mito, história, literatura A literatura é mito porque ela surgiu da narrativa, e qualquer narrativa pode se transformar num mito. Há mitos positivos e mitos negativos. Hoje, o Brasil é um mito positivo no exterior, mas isso oscila muito, pode ser visto também como um mito negativo ou clichê, ou como um conjunto de clichês. E há sempre um momento em que um mito deixa de ser uma crença e se transforma em história. Como o mito da Cidade Encantada, de Órfãos do Eldorado. O narrador lembra das histórias que ele ouvia de uma índia quando era criança na beira do rio, e depois essas histórias rebateram na vida dele. A literatura pode ser explorada em quatro ou cinco grandes mitos, mas a questão é como narrar. Vida moderna Acho que a literatura se revela na forma, na linguagem. Na narrativa, a principal questão é encontrar a voz do narrador, pois é a partir dela que vai se configurando a história, as relações estabelecidas entre o narrador e os outros personagens. A escolha do narrador tem implicações até ideológicas. Se você construir um narrador cínico, completamente cínico, certamente está aí algum traço que você quis dar ao narrador que pode ter uma conotação ideológica. É como o discurso jurídico, uma arte, sem dúvida – mais ou menos explícita, mais ou menos oculta. É assim também no discurso político. O tom da voz narrativa pode deixar entrever posições ideológicas. O gênero romance, de maneira geral, é escorado na trajetória de vida de um indivíduo, em torno do qual transitam outras personagens; podem ser parentes, desconhecidos, relacionados por encontros e desencontros. Nesse sentido, com exceção de Relato de um certo Oriente – que foi pensado como um coral de vozes, como uma história construída por diversos narradores e múltiplos pontos de vista –, meus livros se aproximam desse grande gênero da vida moderna. O grande tema da vida moderna é a solidão, que por sua vez faz parte da própria história da narrativa, se pensarmos que ela passou das vozes coletivas para a história
do indivíduo, e do espaço coletivo para o espaço sobretudo da família burguesa. Em Dois irmãos e Cinzas do Norte, os que sobrevivem para contar a história são esses narradores solitários, ambíguos porque contam a história da qual eles mesmos fazem parte. Contudo, muitas vezes, a partir dessas relações entre as personagens, é possível construir um mundo maior que elas. Essas personagens estão num espaço que é político, cultural, geográfico, e que extrapola suas vidas. Então, o romance abarca desde a visão mais microscópica de um indivíduo, ou um par de indivíduos, até um movimento que sai da luneta e vai para uma tela, um afresco, um movimento social mais significativo. É o caso do romance histórico do século 19, por exemplo, em que figuram escritores como Balzac, Sthendal. Agora, isso é muito diferente do blog, que fala do indivíduo o tempo todo, e um indivíduo que passa o dia em frente ao computador. “Eu faço isso, eu faço aquilo”. Não tem conflito, não tem personagem, nada intriga. Parece uma história qualquer que poderia ter acontecido com qualquer um, e nesse sentido reduz muito a ideia de experiência. E dela depende muito o romance, a literatura de forma geral.
A literatura é mito porque a literatura surgiu da narrativa, e qualquer narrativa pode se transformar num mito. Há mitos positivos e mitos negativos. Hoje, o Brasil é um mito positivo no exterior, mas isso oscila muito Literatura e política A literatura não dá respostas, ela expõe questões, problematiza, faz perguntas a partir de conflitos, de situações que envolvem tragédias e dramas humanos, mas o faz de maneira oblíqua, mediada. Em Órfãos do Eldorado, esses “órfãos” podem ser pensados como aqueles que muitas vezes são iludidos com uma ideia de país da abundância, uma promessa de desenvolvimento. Uma das cenas importantes desse livro é o desembarque dos seringueiros que saíram dos seringais e foram morar num bairro chamado Paraíso, quase cegos pela fumaça produzida pelo processamento do látex. São personagens, mas é possível pensar que, como eles, milhões de brasileiros também “perdem a visão”, ou são iludidos, na busca por uma promessa de vida melhor.
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cultura No romance Cinzas do Norte, a personagem do tio Ran debocha do sobrinho que quer estudar Direito. E olha que a época do romance é 1970, 80. Estruturalmente, o país não mudou: na altura dos três poderes, da pequena cidade com vereadores medíocres e corruptos ao supremo tribunal e ao congresso, as relações políticas são um acordo de cavalheiros para que as coisas não mudem. Temos mais de 5 mil municípios, e quanta indolência, negligência, irresponsabilidade e ignorância existe por aí. Quer dizer, chega uma caixa de livros do MEC no município “x” e não são distribuídos para as crianças. O cara responsável por isso não é patriota, não tem o mínimo senso de patriotismo, mas está lá, como prefeito, vereador. Há aos montes. Vai lidar com essa gente... Nossa herança colonial deixou muita violência, nos deixou em estado de guerra. O Brasil vive uma guerra. No começo do ano foram assassinados 10 mil jovens no Brasil. Veja Manaus... estive lá no ano passado e em um mês houve 21 assassinatos. Que é isso? Agora, o país avança assim mesmo, porque é enorme, tem muita gente trabalhando por ele, tem órgãos públicos horríveis, mas tem alguns também maravilhosos; tem a sociedade organizada, ou uma parte dela. Tem algumas políticas públicas que estão dando certo: políticas de inserção social, políticas educacionais. Há várias pessoas que pensam no Brasil de uma outra forma, participam. Por isso digo que isso aqui é um grande manicômio, uma loucura, um país esquizofrênico: há um país que quer avançar, e outro Brasil que é retrógrado, arcaico. É um avião trabalhando com uma turbina reversa, para trás, e a outra que vai para frente. O voo sai torto, meio adoidado. É muito esquisito. Veja a Luiza Erundina, condenada a pagar mais de R$ 350 mil [Quando prefeita de São Paulo, Erundina manifestou apoio à greve geral de 1989 por meio de jornais. Por entender que o fato não atendia ao interesse público, foi pessoalmente condenada]; foi processada, quase perdeu o apartamento, o carro, enquanto há um Sarney na presidência do Senado. Falo isso porque acho a Luiza Erundina uma pessoa de enorme dignidade. Há mil casos de injustiças e isso está também no Cinzas do Norte, na figura dos prisioneiros que esperam por um julgamento. O desafio do romancista é falar dessas loucuras sem tomar partido, sem ser um romance ideológico no sentido dogmático.
Os índios e as índias eram levados para Manaus pelos colégios de freiras ou orfanatos e depois iam trabalhar nas casas da classe média. Inclusive, ainda é assim Índios no plural
Meu primeiro contato com a questão indígena foi através do conhecimento dessas pessoas deslocadas do interior da Amazônia para Manaus. Os índios e as índias eram levados para Manaus pelos colégios de freiras ou orfanatos e depois iam trabalhar nas casas da classe média. Inclusive, ainda é assim. Muitas delas saíam do al-
to rio Negro para morar no Rio de Janeiro, muitas vezes nem sequer eram assalariadas. A Domingas, de Dois Irmãos, é uma personagem que deve muito à Felicité, uma personagem do Flaubert. Em Manaus, havia muitas Felicités. Apesar de se ler uma história um século depois da do Flaubert, e de ser uma geografia e uma cultura totalmente diferente, as relações sociais e as relações de trabalho são muito semelhantes. A Felicité é uma pobre mulher que durante meio século trabalha para uma burguesa, a madame Aubin. É esta a história das empregadas domésticas de Manaus, que eram em sua maioria de origem indígena; algumas nem falavam, ou mal falavam o português. Então meu conhecimento sobre os índios aparece pela primeira vez por essa via, por esse contato urbano. Hoje a situação é muito mais complexa, porque a Zona Franca, a indústria, atraiu muita gente de fora, muita gente do Pará, do interior do Amazonas, mas também do Nordeste, sobretudo os pobres do Maranhão. É um centro industrial no coração da Amazônia, o maior polo de produção de eletroeletrônicos da América do Sul, então imagina que essas pessoas vão para Manaus em busca de um Eldorado e moram em ocupações, barracos, sofrem problema, preconceitos fortíssimos, como o caso dos paraenses. Há muitas comunidades de índios isoladas na periferia de Manaus, não se sabe ao certo quantas são. Alguns dizem que há 8, 10 mil índios em Manaus. Alguns vivem em comunidades fechadas e em bairros “indígenas”, outros são misturados com a população pobre; e a maioria – quase todos párias – faz bicos, ou é ajudada pela Funai, formando uma espécie de proletariado urbano. Não houve nenhum esforço – ou melhor, houve – de integrá-los socialmente, mas aí também seria um esforço envolvendo a sociedade. E seria preciso falar em índios no plural, porque tem gente que não quer ficar no alto Rio Negro, não quer ficar no interior do Amazonas, mas há outros que sim. Há os povos que vivem bem no rio Negro, no Solimões, mas também há essa vontade de ir para cidade grande, vontade de muitas coisas, muitas ilusões. Amazônia por partes
A Amazônia representa quase 50% do território nacional, é dona de uma riqueza cultural e econômica incalculável. E não há um projeto para ela. Nossa contribuição a ela, hoje, é a grande burrice de transformar a floresta em pasto. Há muita empolgação com a redução do desmatamento, mas o desmatamento tem que ser zero, tem que parar de desmatar. Agora, a Amazônia é muito complexa; ela não é essa floresta homogênea que faz parte do imaginário sobre uma região que continua desconhecida. Ela tem regiões densas, tem savanas, o alto Rio Negro é uma paisagem, outra totalmente diferente é o alto Solimões. Então, a Amazônia deve ser pensada por partes. Nesse sentido, o Jorge Viana, que já foi duas vezes governador do Acre, pensava a região de maneira brilhante, com um projeto para cada microrregião, cada uma delas com uma determinada vocação. Por outro lado, para se fazer um projeto para a Amazônia, de ocupação e exploraçãoeconômica, é preciso envolver as pessoas, a população, os cientistas que moram aí, que estudam o meio onde vivem. Há o Inpa [Instituto Nacional de
Exposição fotográfica Marcel Gautherot – Norte Sob curadoria de Miltom Hatoum e Samuel Titan Jr., a exposição reúne 70 imagens capitadas pelo fotógrafo entre os anos de 1940 e 1970. Com o olhar voltado para a Amazônia, pescadores, boiadeiros e ribeirinhos são retratados em meio a uma região norte pouco conhecida. Instituto Moreira Salles Rua Piauí, 844, 1º andar - Higienópolis, São Paulo Terça a sexta, das 13h às 19h; Sábado e domingo, das 13h às 18h. Até 21 de março de 2010 – Entrada franca
Marcel Gautherot
A Amazônia representa quase 50% do território nacional, é dona de uma riqueza cultural e econômica incalculável. E não há um projeto para ela. Nossa contribuição a ela, hoje, é a grande burrice de transformar a floresta em pasto Pesquisas da Amazônia], o Museu Emílio Goeldi, no Pará, a Embrapa, as universidades federais e estaduais, quer dizer, é preciso envolver essas pessoas, e o próprio ribeirinho. Às vezes também é preciso desmatar, mas em que escala você vai desmatar? Que tipo de desmatamento e para quê? Não pode ser assim, sair queimando tudo para plantar soja e fazer pasto. Isso é loucura. Ao mesmo tempo é tão complexo – por isso falei de manicômio – que tem até gente do Partido Verde da Marina Silva que é aliada a Blairo Maggi, eleito o motosserra de ouro por organizações socioambientais. E não podemos esquecer também que o drama da Amazônia é urbano. Quase 80% da população da Amazônia mora em cidades. As pessoas pensam que vão encontrar uma tribo, uma oca indígena em Manaus, chegam lá e encontram uma cidade extremamente diversa, plural, onde não importa a origem, se você é caboclo, índio, filho de libanês, filho de judeu, de marroquino, de espanhol, italiano.
E também tem todos os problemas urbanos de outras cidades do Brasil. O lixo em Manaus – assim como em São Paulo e outros centros urbanos onde esse problema se tornou gravíssimo – é uma coisa de louco. Na saída de uma enchente, há poucos meses, a cidade foi inundada por garrafas plásticas. E a questão da habitação, mesma coisa. Acho, por exemplo, que na Amazônia as cidades, nas capitais e no interior, deveriam ter projetos de arquitetura específicos e adequados para escolas, para moradia popular, para tudo. Hoje, as habitações populares e escolas da região são vergonhosas, nada a ver com o ambiente. Uma arquitetura burra, que fecha tudo e põe ar-condicionado. A região está em plena linha do Equador e não tem sombra, isso para mim significa burrice, é descaso total. Manaus é uma cidade de quase 2 milhões de habitantes onde, ao meio-dia, quem estiver na rua fica com a cabeça torrada. Há um arquiteto carioca, Severiano Porto, que se estabele-
ceu em Manaus na década de 1960 e aí fez projetos maravilhosos. Fez o projeto do Inpa, que virou uma espécie de oásis na cidade, com alamedas arborizadas, alpendrados, sombra. Esse tipo de atuação parece estar esquecida. Nesse sentido, há uma exposição aqui em São Paulo [ver abaixo], de um fotógrafo francês chamado Marcel Gautherot, que mostra fotos da Amazônia nas décadas de 1940 e 1950. É incrível ver nessas imagens a beleza da arquitetura popular, as palafitas, uma sabedoria local para evitar que a casa sofra em tempos de enchente, ventilação cruzada, essas coisas. Então, pensar na Amazônia hoje é também pensar em questões urbanas. O problema ambiental brasileiro passa – e talvez sobretudo – pela questão das cidades.
Quem é Milton Hatoum é de família de origem libanesa e nasceu no dia 19 de agosto de 1952 em Manaus, Amazonas. Considerado um dos principais escritores brasileiros vivos, Hatoum escreveu quatro romances: Relato de um certo Oriente, de 1990; Dois Irmãos, de 2000; Cinzas do Norte, de 2005 (todos os três primeiros ganhadores do Prêmio Jabuti de melhor romance); e Órfãos do Eldorado, de 2008. Em 2009 lançou o seu primeiro livro de contos, Cidade Ilhada. Marcel Gautherot
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brasil
Policiais confundem “preservar a ordem” com defesa da opressão ENTREVISTA Para o sargento Amauri Soares, a missão dos agentes de segurança pública de manter a ordem foi uma forma sutil que os constituintes encontraram para legalizar a “defesa da ordem”, sem especificar “que ordem é esta” Pedro Carrano de Curitiba (PR) O SARGENTO Amauri Soares é um dos principais representantes da Associação dos Praças do Estado de Santa Catarina (Aprasc). Desde o final de 2008, a entidade vem encabeçando uma importante luta por democracia dentro das instituições de segurança pública, a partir da reivindicação por direitos e melhores salários para bombeiros e policiais militares. De um lado, sofreram forte repressão por parte do governador catarinense, Luiz Henrique Silveira (PMDB). De outro, o movimento cresceu, incorporou esposas e companheiras dos soldados, criando vigílias politizadas, com a participação de outras organizações sociais. Deputado estadual (PDT) eleito a partir de reivindicação da categoria, Soares traz a contribuição ao debate da segurança pública do ponto de vista do trabalhador do setor. Um profissional que vive a condição contraditória: filho do povo submetido à ideologia dominante. Inserido no braço armado do Estado, precisa defender a “ordem pública” e a propriedade privada dos meios de produção. Brasil de Fato – Quais são as características do trabalhador da segurança pública, que é um filho do povo, mas trabalha a serviço do Estado? Que conflitos isso gera para ele? Amauri Soares – A missão constitucional das polícias militares e das demais instituições de segurança é a “Preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, conforme definido pelo artigo 144 da Constituição de 1988. Por incolumidade das pessoas, facilmente podemos entender o direito que cada um tem quanto à sua preservação física e moral. Quando o assunto é patrimônio, começamos a ter dificuldade com a generalização feita pela Constituição. Afinal, devemos entender patrimônio como o abrigo pessoal e familiar das pessoas, entendido como lar, os bens materiais necessários à vida, ou devemos entender todo e qualquer patrimônio, inclusive os meios de produção? A generalização feita pela Constituição não é isenta de intenção, e podemos dizer que tem mesmo o objetivo bem específico de misturar essas duas questões. Na cabeça dos policiais e da maioria da população, propriedade é sempre um direito “sagrado”, independente de ser um par de tênis ou um latifúndio, de ser um aparelho de televisão ou um banco. Assim, quando defendem um fazendeiro ou um banco, os policiais acreditam que estão agindo com o mesmo objetivo que teriam se estivessem defendendo os moradores de um lar violado. Então, é raro os policiais perceberem alguma contradição, seja no combate à criminalidade comum, seja no combate aos movimentos sociais que contestam a propriedade privada dos meios de produção. Da mesma forma, se todas as pessoas têm direito de “ir e vir”, a maioria dos policiais não entende que possa ser legítimo o fechamento de uma avenida, de uma rodovia, pois isso afetaria o direito dos outros. Prevalece a ideologia e não se enxerga o caráter de classe da questão. Dentro da frase do artigo 144 da Constituição, temos uma expressão mais carre-
Carlos Kilian/Alesc
gada de sentido ideológico, a “preservação da ordem pública”. O que vem a ser “ordem pública”? Os policiais, no geral, entendem como ordem pública justamente a tranquilidade cotidiana das pessoas em sociedade. Fechar uma rua é afetar a ordem pública na cabeça da maioria, e é isso também que é difundido pelos meios de comunicação, que é ensinado nos cursos, nas escolas, na igreja. Esta foi uma forma sutil e eficiente dos constituintes legalizarem a “defesa da ordem”, sem explicar que ordem é esta, ou mesmo o que deve ser entendido por ordem. Parece evidente que a maioria dos policiais não tem nada contra, em princípio, o direito de organização dos diferentes setores da sociedade, assim como não tem nada contra, em princípio, a realização de manifestações públicas, greves etc. Porém, a partir do momento em que surge algum acontecimento específico, do tipo fechar uma rua, aí começa a aparecer a visão de que a “ordem pública” foi quebrada, de que o direito elementar de “ir e vir” está prejudicado. Aí os policiais se colocam, eles próprios, em contraposição a esse evento. Considerando que todos eles agem sob escala e sob “ordens superiores”, o confronto se torna quase inevitável, porque a pressão da sociedade oficial (Estado, imprensa, opinião pública), somada à obrigatoriedade de estar ali na condição de policial, acaba empurrando para uma saída pela força. Evidente que a maioria dos policiais não gostaria de estar ali. No entanto, estando ali, e recebendo ordens, ou mesmo sem recebê-las, acaba tomando a posição que lhe ensinaram a tomar: garantir a “ordem pública”!
“Evidente que a maioria dos policiais não gostaria de estar ali [reprimindo manifestações]. No entanto, estando ali [...], acaba tomando a posição que lhe ensinaram a tomar: garantir a ‘ordem pública’” Isso tudo mesmo ele tendo uma configuração vinda das massas trabalhadoras? Isso traz contradições, até mesmo porque todos os policiais de linha de frente vivem em condições materiais pouco favoráveis. São pobres também e conhecem, na sua rua e até mesmo na sua família, as pessoas que protestam contra os governos e contra as formas de usurpação vinda das classes dominantes. Mas essa contradição é insuficiente para levá-lo a renegar seu papel. Para esses trabalhadores, a precarização do trabalho é uma situação constante? Quase sempre são precárias as condições de trabalho dos policiais e dos bombeiros. Evidente que, para quem está do outro lado da barricada, o policial está sempre
cipação e com o controle da sociedade, em cada comunidade, em cada bairro, em cada cidade. Existe um movimento nesse sentido, inclusive dentro das polícias. No entanto, esse movimento é, na maioria das vezes, desprezado internamente. A própria sociedade acaba se afastando dos “conselhos de segurança”, uma vez que não percebem o apoio institucional e dos governos, e também porque percebem que muitas autoridades usam as comunidades como massa de manobra para justificar suas políticas, quando não as usam como “cabos eleitorais” de determinados secretários de segurança.
Os movimentos populares precisam discutir segurança pública, clarear os conceitos
O deputado estadual Amauri Soares, representante da Aprasc
mais bem preparado materialmente, e isso se deve ao fato de o Estado ter o “monopólio exclusivo da violência”. Mas a vantagem material do policial é contra os movimentos populares e os pobres em geral. No dia-a-dia, do combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado, o policial quase sempre está em desvantagem, pois anda em dupla ou sozinho, não dispõe de arma de grosso calibre, é pego de surpresa, já que ele está identificado, enquanto seu opositor não se apresenta antes de disparar. Mas a precariedade das condições de trabalho do policial está mais relacionada com os direitos elementares de cada trabalhador. A todos os militares brasileiros, incluindo os policiais e os bombeiros, é proibida a filiação partidária, a sindicalização e a greve, e isso também consta da Constituição de 1988. Abaixo da Constituição, outras leis e regulamentos impedem qualquer forma de manifestação dos policiais e dos bombeiros militares. Todos estão submetidos ao Código Penal Militar, além do próprio Código Penal vigente para todos os brasileiros e naturalizados. Cada polícia militar estadual, assim como cada Corpo de Bombeiros, tem um regulamento disciplinar, em que qualquer manifestação de descontentamento é transgressão, e é muito comum que seja também crime. A reação de governos parece sempre refratária à simples negociação com essas categorias. Por que isto acontece? O nível de coerção dos códigos e regulamentos militares pode ser melhor entendi-
do com a seguinte demonstração: a manifestação de militar em relação a seus superiores hierárquicos ou em relação a qualquer autoridade civil (governador, secretário, prefeito, deputado, juiz) só é permitida se a manifestação for elogiosa. E mais; se antes da manifestação elogiosa o militar estiver autorizado a fazê-la por parte do superior competente para tal. E isso está escrito em nossos regulamentos. Quando policiais e bombeiros militares se organizam e realizam atividades reivindicatórias, estão afrontando, antes mesmo da manifestação, vários preceitos militares.
“A organização classista dos policiais e dos bombeiros militares é uma temeridade. Não tem como fazer isso sem muitas punições” Criticar um governador é crime grave. Logo, podemos concluir que a organização classista dos policiais e dos bombeiros militares é uma temeridade. Não tem como fazer isso sem muitas punições. É preciso um caminhão de paciência, é preciso trabalho velado, sigilo, antes de começar qualquer movimentação reivindicatória. Os governadores sabem disso e usam tais instrumentos, além do poder de intimidação dos comandantes ge-
rais (que são cargos de livre nomeação dos governadores), para manter o silêncio na caserna. Neste momento, em todo o Brasil, temos centenas de praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes) sendo penalizados rigorosamente por terem se manifestado. Podemos citar Santa Catarina, Bahia, Roraima, Tocantins, Distrito Federal, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Alagoas, mas é possível dizer que isso ocorre em todos os estados. Onde alguém se levanta, de forma individual ou coletiva, a repressão é imediata. Temos dezenas de excluídos nos estados citados, policiais e bombeiros presos com muita frequência. Na Câmara Federal, tramita o projeto de lei 3.777/2008, de origem do Senado, que visa anistiar esses trabalhadores. Apesar de muitos deputados e senadores manifestarem seu apoio ao projeto, sua tramitação é sofrível, especialmente porque os coronéis fazem pressão no sentido de que não prospere. Como os movimentos sindical e popular têm se colocado sobre a questão da violência? De que maneira poderiam converter esse tema em bandeira de mobilização e debate? A melhor forma de combater a violência do Estado (feita quase sempre pela polícia) é discutir a mudança de conceito das instituições de segurança. É preciso instituir uma política de segurança pública na qual as instituições tenham controle externo, e condição para isso é a possibilidade de democracia interna nessas instituições. Segurança pública com a parti-
Como vê o saldo das Conferências Nacionais de Segurança? Recentemente, tivemos a 1a Conferência Nacional de Segurança Pública [realizada entre os dias 27 e 30 de agosto de 2009]. A esquerda organizada não participou disso, à exceção dos grupos de direitos humanos. Ali se definiu algumas políticas importantes, que, lamentavelmente, ficarão no papel, pois as mudanças mais importantes não serão colocadas em prática, por corporativismo das cúpulas, por serem dispendiosas ou mesmo porque as instituições não estão preparadas para isso, e nem querem se preparar. Sabemos dos limites das conferências organizadas pelo poder instituído, mas é o espaço de que dispomos! É preciso que os movimentos populares discutam essa questão em conjunto com as entidades comunitárias, em conjunto com os trabalhadores que exercem suas atividades nas comunidades pobres, como professores, enfermeiros, médicos. Além disso, é importante buscar discutir com os próprios policiais, mesmo que inicialmente haja resistência. A resistência significa o confronto de conceitos, o que proporcionará a reflexão de todos. Os movimentos populares precisam discutir segurança pública, clarear os conceitos, inclusive os constitucionais. É preciso mudar quase tudo nas instituições de segurança para que possamos avançar no caminho da humanização das relações. É preciso instituir também uma diferença muito clara entre segurança pública e defesa da ordem. Os governos, as autoridades dos demais poderes, os comandantes em geral, a grande imprensa, os monopólios empresariais, o latifúndio se beneficiam dessa confusão. Queremos definir esses conceitos e proibir as instituições que devem fazer segurança pública de agirem em defesa da ordem. Mas sabemos que não é um caminho fácil e nem de curta duração. É uma longa marcha, que só chegará ao objetivo quando muitas outras estruturas forem alteradas em nossa sociedade. Assim como mudar as universidades, mudar as instituições de segurança depende de transformações sociais profundas.
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américa latina
A formação política dentro de um processo de transformação nacional PERSPECTIVAS Após reeleição de Evo, Bolívia enfrenta os desafios de formar a população para dar sequência ao processo de mudanças ABI
Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) A LARGA legitimidade dada pelos bolivianos ao governo do MAS-IPSP nas eleições presidenciais do dia 6 de dezembro de 2009 foi a confirmação formal da hegemonia do movimento liderado por Evo Morales no país, selando o fim da dura polarização imposta pela direita nos últimos quatro anos. A partir deste ano, entra em questão a capacidade desse processo político consolidar o seu projeto de país. Diante de tamanha tarefa, que trabalho de formação política está sendo feito? A lista de desafios para os que postulam a descolonização do Estado, uma revolução democrática e cultural e que tem como obrigação implementar uma nova Constituição – que passa a definir o Estado como plurinacional e prevê a coexistência das economias estatal, privada e comunitária –, não é pequena. Uma mostra da dimensão pode ser ilustrada pelas indagações feitas pelo diretor-geral de gestão pública do Ministério de Economia e Finanças e integrante do grupo de intelectuais Comuna, Raul Prada: “Herdamos da colônia o Estado, que se modernizou, mas segue sendo o grande colonizador. Porém, o que nos diz a Constituição é fundar uma segunda República. Como vamos assumir a transição para que ela seja transformadora, e não restauradora? O que estamos entendendo por nações? Como vamos sair do multiculturalismo liberal? Temos previsto um modelo social comunitário, mas como fazê-lo dentro do contexto da economia mundial capitalista e com um programa de governo que é desenvolvimentista, uma restauração nostálgica dos projetos dos anos de 1950 de industrialização?” Para Prada, o desafio histórico para o atual processo boliviano está em combinar a mudança de elite política com a mudança de modelo de Estado, capaz ainda de fugir do pragmatismo político que, ao longo da história, já sequestrou governos revolucionários de esquerda, diminuindo seus alcances transformadores. Nesse sentido, o intelectual classifica como preocupante o atual quadro, que combina “excessiva centrali-
Partidários de Evo Morales comemoram sua reeleição na praça Murillo, em La Paz
dade dada ao Poder Executivo” e uma falta de “análise da experiência, de compreensão teórica do processo para conduzi-lo e direcioná-lo”. Heterogeneidade O analista político Hugo Moldiz considera que no gabinete de Morales está concentrada parte “do que de melhor existe nesse país”, porém atribui a falta de clareza política sinalizada por Prada à heterogeneidade dessa composição. “Aí estão desde democratas radicais até dirigentes com influência marxista, passando por uma gama de concepções indianistas, que talvez possamos classificar em duas: uma identificada com a cosmovisão andina-amazônica e outra mais comunitarista. Os elementos que marcam o encontro de todos são o anti-imperialismo e o nacionalismo popular-indígena. Mas existem graus de anti-imperialismo. Desde aqueles que creem que lutar contra o imperialismo é lutar contra o capitalismo até aqueles que desejam só maior autonomia frente à ingerência dos EUA.” Segundo Moldiz, uma das facetas positivas do cenário aberto pelas eleições de 6 de dezembro está justamente na possibilidade dessas contradições se abrirem para além das
Puente também responsabiliza dirigentes do partido que, ao serem eleitos, “já não sentem a necessidade de se formar” e que se aproximam da escola “só para fazer discursos de inauguração” esferas de governo, desmembrando um rico debate no interior dos movimentos sociais e da sociedade em seu conjunto sobre o horizonte desse processo. “Porém, só com formação política resolveremos isso, o que não foi uma preocupação central até agora”, pondera. A formação política A debilidade na formação é assumida por Rafael Puente, responsável há três anos pela escola de formação política do partido MAS-IPSP. De acordo com ele, na base de sustentação desse processo – marcado pela alta capacidade de mobilização popular –, “há suficiente decisão política, há sentimento, há instinto político, tudo que se necessita para saber o que não se quer. Mas não há consciência política que permita saber e desenhar o que, sim, se quer, ou seja, para traçar uma estratégia de poder”.
Para Puente, esse deficit na formação política é o reflexo cultural deixado pelo histórico Estado patrimonial boliviano, no qual prevalecia a visão de que “entrar no aparato estatal não é para mudá-lo, mas para cobrar a sua parte da herança”. Porém, o masista também responsabiliza dirigentes do partido que, ao serem eleitos, “já não sentem a necessidade de se formar” e que se aproximam da escola “só para fazer discursos de inauguração”. Na opinião de Moldiz, as dificuldades de institucionalização da formação no MAS são resultado, em boa medida, do fato de o partido ter origem na “forma movimento”, na qual a preparação política tem menos tradição se comparada à “forma partido”. Segundo Puente, há um sentimento crescente de que a formação deve ser uma prioridade, mas não há uma política clara para ela, tampou-
co um orçamento específico. A escola do MAS é itinerante e não possui estrutura física própria. Ela tem uma lista de 90 professores, todos voluntários, dos quais cerca de 30 já foram aproveitados. Em dois anos e meio, foram realizados nove cursos que duravam dois dias inteiros, com turmas de aproximadamente 35 jovens cada. Todos os cursos foram realizados nas áreas urbanas de La Paz, Santa Cruz, Cochabamba, Sucre e Tarija. “Eles estudam temas relativos à realidade nacional, à economia, à história do país, à nova Constituição, ao sistema de partidos, de acordo com um desenho curricular não muito sistemático”, explica Puente. Neste mês, as turmas entram em sua segunda etapa. Qual educação? A formação de líderes – “uma invenção gringa que nos fez muito dano” – e de gestores públicos não deve ser o foco de uma política de formação, segundo o diretor da escola do MAS. O perfil do militante que deve ser formado. Segundo Puente, são “pessoas críticas, solidárias e conhecedoras de sua realidade, e daí sairão os líderes que as bases considerem como tal”. Moldiz e Prada são mais rigorosos e cobram uma escola
na qual se saiba “onde começa e onde termina a formação de verdadeiros quadros”, ao estilo “bolchevique”. “Há que se resgatar as mais fortes experiências da velha esquerda, não todo seu currículo, mas no sentido de ter formação de militância com condições de estudo sistemático”, explica Prada. Moldiz dá outro exemplo nessa direção: “Se há companheiros que são identificados como potenciais quadros na administração pública, que, mais que burocratas, são percebidos como quadros políticos, talvez a decisão responsável com o futuro é dar licença a esses quadros por alguns meses, um ano, para focarem em cursos de formação política intensiva e depois retornem”. Além de quadros altamente preparados, o analista político aponta que deve haver um segundo braço da política de formação, com iniciativas de massa, oficinas, seminários, por exemplo, para uma maior democratização das diversas vertentes existentes na base de sustentação do governo: marxismo e suas correntes, o indianismo comunitário, o andino etc. Nova intelectualidade Diante da hegemonia eleitoral conquistada, Moldiz ressalta que um novo sistema hegemônico de fato só será alcançado com mudanças profundas na educação formal, não-formal e em novos aparatos ideológicos. “Assim reescreveremos nossa história, mas para isso necessitamos de uma nova intelectualidade. O plano acadêmico e intelectual, tem que passar da atitude romântica a uma atitude muito mais ativa. Escrever sobre o processo, mas desde suas luzes e de suas sombras, ou seja, pensamento crítico. Já temos uma intelectualidade emergente, indígena, camponesa, popular e também dos setores médios, mas são pouco visibilizados. Mesmo os meios estatais seguem entrevistando os de sempre”, critica. Prada assinala que a criação de vanguardas intelectuais, emergentes das propostas dos movimentos sociais e vinculadas a eles, deve estar na dimensão histórica do processo boliviano porque é preciso preencher o vazio deixado pelas vanguardas de esquerda que entraram em crise com a queda do Muro de Berlim.
Governo capacita servidores públicos para o Estado Plurinacional Escola de Gestão Pública do governo Evo oferece, dentre outros, cursos de línguas dos povos originários de La Paz (Bolívia) Para poder preparar a burocracia estatal para o novo modelo de Estado desenhado pela nova Constituição boliviana, o presidente Evo Morales criou, por decreto, em agosto de 2009, a Escola de Gestão Pública Plurinacional (EGPP), remodelando o que era o anterior Serviço Nacional de Administração de Pessoal (SNAP). De acordo com o diretor-geral da EGPP, Ivan Iporre, “todo o material educativo pertencia a um modelo de Estado neoliberal, impossível de ser trabalhado” diante das exigências da Constituição que fa-
lava em descolonização, interculturalidade e Estado plurinacional. “Desenvolvemos então programas de pesquisa com movimentos sociais para iniciar uma conceituação, e o que fizemos primeiro foi organizar um diplomado sobre o que é a gestão pública no mundo originário andino, quéchua e guarani. E isso nos permitiu gerar um material importante de capacitação. Você pode encontrar nas universidades cursos como ‘gestão pública intercultural’, mas eles falam como franceses; canadenses solucionaram seus problemas. Podem nos servir de referências teóricas, mas não têm nem proximidade ao que é a nossa realidade, na qual a interculturalidade não é fazer com que o poderoso reconheça o fraco, mas como uma nação de excluídos, um grupo de nações, toma o poder e dirige um processo de transformação”, explicou Iporre. Segundo o diretor, mais do que trazer conceitos prontos, o que a escola faz é construir espaços acadêmicos novos,
ABI
Evo fala em reunião para implementação da nova Constituição do país
ocupados fundamentalmente por intelectuais indígenas, ao invés de tentar conquistar espaços acadêmicos clássicos. Existem parcerias com 12 universidades bolivianas, públicas e privadas, que estão encarregadas de pensar e ofere-
cer cursos, mas todas devem ter a flexibilidade como prérequisito. “Vivemos um momento de alta incerteza e esses momentos têm um potencial de criatividade impressionante. Aproveitamos isso para pen-
sar diferente, rapidamente sistematizar nossas dúvidas e hipóteses e metê-las no âmbito acadêmico. Por isso, pedimos flexibilidade às universidades, que nos permitam tirar novos elementos, novas teorias.”
Em 2006, quando a escola ainda funcionava pela sigla de SNAP, foram capacitados cerca de 2,5 mil funcionários. No primeiro ano de EGPP, este número subiu para 13,2 mil, segundo Iporre. São mestrados, cursos de especialização e seminários que, quando cobrados, devem custar metade do que o mercado cobra hoje. A EGPP também oferece cursos dos idiomas originários, pois, de acordo com a nova Constituição, todo servidor público deve falar, além do espanhol, uma língua de um povo originário, segundo o território onde trabalha. “Já temos cursos de aymara e quéchua, ano que vem começam os de guarani e outras línguas. Isso é a descolonização através da aprendizagem da língua. Ao aprender o aymara, garantimos que se aprenda a ler, escrever, mas também compreender o que é a cultura. Os professores vêm dos Cepos (Centros Educativos dos Povos Originários), ou seja, ligados diretamente à cultura dos povos”, concluiu. (VM)
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de 7 a 13 de janeiro de 2010
internacional
Brasil: dentro da nova ordem mundial GEOPOLÍTICA Consolidação do G-20 dá ao país e aliados, como China, Rússia e Índia, maior poder decisório nos temas mundiais London Summit/CC
Renato Godoy de Toledo da Redação O ANO DE 2009 foi marcado por uma alteração na participação dos países na ordem geopolítica – ao menos formalmente. O G-7, entidade representativa das sete maiores economias do mundo, incorporou mais 13 países considerados emergentes, como Brasil, Rússia, Índia e China (conhecidos pelo acrônimo Bric), além de outras nações, como México, África do Sul e Tailândia. A notícia foi vista como uma forma de os países capitalistas mais desenvolvidos convidarem os menores a traçar estratégias contra a crise financeira internacional. Por outro lado, uma análise mais crítica aponta o movimento como uma forma de os EUA trazerem para sua órbita nações que pudessem agir de forma não-alinhada, notadamente Rússia e China. Na prática, os países que agora participam do grupo têm o direito de negociar, teoricamente, no mesmo nível com as potências do antigo G-7. Também podem, após as reuniões, emitir declarações e construir diretrizes para as questões internacionais. Para o governo brasileiro, a consolidação do G-20 foi comemorada como mais uma conquista de 2009, ao lado da confirmação das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro e do reconhecimento como potência regional mediadora de conflitos – evidenciada na postura do país no caso de Honduras.
“Alguns acham que isso foi uma confirmação da globalização, mas acho o contrário. É uma ‘desglobalização’. Interpreto que isso é o reconhecimento de que a hegemonia financeira americana não dá mais conta do mundo” “Desglobalização”
De acordo com André Martin, geógrafo da Universidade de São Paulo (USP), a promoção dos países ditos emergentes a um dos principais conselhos de nações dá o tom de como o mundo deve se reorganizar no próximo período. “Alguns acham que isso foi uma confirmação da globalização, mas acho o contrário. É uma ‘desglobalização’. Interpreto que isso é o reconhecimento de que a hegemonia financeira americana não dá mais conta do mundo. O próprio êxito da globalização neoliberal forçou um novo ordenamento jurídico que pudesse abarcar os processos que a desencadeou. Estão sendo convocadas outras nações para ajudar a resolver os problemas do centro do capitalismo mundial. Antes era o contrário. Na minha opinião, isso é uma ruptura”, afirma. Na visão de Valter Pomar, secretário de Relações Internacionais do PT, há um processo de criação de uma multipolaridade, mas o cenário é mais complexo do que aparenta. “A ampliação em direção ao G-20 mostra que está em curso um declínio do poder relativo dos Estados Unidos e de seus aliados. Mas,
Representantes dos países membros do G-20 durante o encontro realizado em Londres
por outro lado, do ponto de vista dos Estados Unidos, a constituição do G-20 é uma tentativa de absorver e controlar polos alternativos de poder. Ou seja, é uma tentativa de manter uma multipolaridade sob controle”, avalia Pomar. Martin também crê ser possível essa movimentação estadunidense para não perder de vista seus interesses. “Na visão dos EUA, é claro que é melhor lidar com estados organizados do que com atores fora do controle. Eles pensam assim. É preferível lidar com a China a lidar com o Irã, pois consideram os chineses mais racionais, com uma visão de grande potência que não vai querer ‘chutar o balde’. Já o Irã, para eles, parece ser incontrolável”, exemplifica. Brics
O bloco composto por Brasil, Rússia, Índia e China, denominado Bric, tem sido
“Do ponto de vista dos Estados Unidos, a constituição do G-20 é uma tentativa de absorver e controlar polos alternativos de poder“ apontado como protagonista dessa ampliação das esferas decisórias multilaterais. Porém, o grupo ainda carece de solidez e sua continuidade permanece uma incógnita. Na visão do geógrafo André Martin, a composição entre essas nações ainda não mostrou o seu porquê. “O problema é que essa unidade está mal explicada. Se ela for baseada só na expectativa de crescimento, então esses países se sobressaem, a Rússia um pouco menos. Mas se esquecem que a Rússia é o mais industrializado, o que possui mais tecnologia, mais minerais e mais Forças Armadas. A distribuição correta de for-
ças seria: os EUA acima de todos, mas obrigado a se equilibrar militarmente com os russos, que seriam a segunda força; a China um pouco abaixo, ambígua comercialmente em relação aos EUA e aliada militarmente à Rússia”, explica Martin, referindo-se ao Pacto de Xangai, que prevê parceria militar entre Moscou e Pequim. Subimperialismo?
Valter Pomar afirma que o fato de participar do G-20, por si só, não é sinônimo de poder para o Brasil. “Participar do G-20 não é o melhor indicador de poder na nova ordem. Não participar indica
Ricardo Stuckert/PR
País asiático é o mais semelhante ao Brasil em termos bélicos e econômicos
Postura do Brasil em relação a Honduras foi fundamental para oposição aos EUA da Redação
da Redação O primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, e Lula
rivais, e sempre vão buscar autonomia bélica. A China hoje já tem um poderio bélico capaz de dissuadir Rússia e Índia, estando esta num patamar bélico abaixo dos dois. Esses países têm visões estratégicas muito diferentes”, afirma o geógrafo. No entanto, a presença militar dos EUA na região, com tropas no Afeganistão e ameaças ao Irã, pode unir os interesses dos Brics contra um inimigo em comum, segundo Martin. “Se os EUA insistem em ficar ali na fronteira entre eles, obrigam os Brics a torna-
terna desses países tem um componente estruturalmente ambíguo: por um lado, expressa os interesses dos setores capitalistas; por outro, expressa os interesses democrático-populares”, coloca Pomar. Assim, no caso específico do Brasil, a vertente chamada subimperialista e os interesses populares nas relações internacionais convivem de forma conflituosa, segundo o dirigente petista. “Na política externa do Brasil, cuja economia corresponde a metade da economia sul-americana, há sim convivência e disputa entre interesses capitalistas (que alguém já denominou de ‘subimperialistas’) e interesses democrático-populares. Mas, no caso da América Latina, não há linha tênue [entre as duas vertentes]: nas questões fundamentais, a política externa do Brasil esteve do lado certo”, garante.
Bloco anti-EUA na AL é novidade do ano
Geógrafo aposta em aliança Brasil-Índia
O bloco ao qual o Brasil pertence, o Bric, ainda não tem uma organicidade e coesão interna. Há uma série de conflitos de interesses entre seus integrantes que impede uma unidade maior entre eles. É o que pensa o geógrafo da USP André Martin. Os três grandes do oriente – Rússia, China e Índia – teriam diferenças estratégicas e potencial bélico desiguais entre si, o que impede uma coesão. Já o Brasil, único ocidental do grupo, não é uma potência bélica – ainda que tratativas com a França visem a mudar esse quadro. “Pelo aspecto militar, Rússia, China e Índia são
que se trata de um país com pouco poder, mas participar não garante protagonismo algum. O Canadá, por exemplo, não é protagonista, é coadjuvante. O Brasil, a China e a Rússia participam do G20 porque têm poder; e não é que eles têm poder porque participam do G-20”, analisa Pomar. Na visão do dirigente petista, o fato de o Brasil despontar como potência regional pode gerar uma ambiguidade nas relações internacionais, por vezes até impondo interesses nacionais para além de sua fronteira. “Mesmo os países socialistas, nos seus melhores momentos, tinham uma política externa ambígua: por um lado, projetavam interesses nacionais, por outro, os interesses anticapitalistas. Se era assim com os países socialistas, imagine com os países que são governados por forças de esquerda e progressistas. A política ex-
rem-se uma aliança militarestratégica”, prevê. “Caminho das Índias”
Para Martin, para se impor nessa nova ordem geopolítica, o Brasil deve evitar a aliança “natural” com os EUA e buscar um caminho mais ousado: a Índia. A aliança teria importância por fatores geográficos – “um gigante no Atlântico Sul e outro no Índico” – e políticos. Aliandose à Índia, o Brasil estaria coligado a uma potência de mesmo patamar bélico, podendo agir de forma igual. (RGT)
A atitude do governo brasileiro diante do golpe de Estado em Honduras foi um importante obstáculo para a hegemonia dos EUA nas Américas, apontam alguns analistas. A condenação ao golpe, o asilo ao presidente Manuel Zelaya em sua embaixada no país centro-americano e o não-reconhecimento das eleições realizadas sob as armas opuseram as diplomacias brasileira e estadunidense. Esta última, embora tenha condenado o golpe publicamente, não titubeou ao reconhecer as eleições hondurenhas, mesmo com repletas evidências de fraude. De acordo com o geógrafo André Martin, até o episódio em Honduras o Brasil cumpria um papel de mediador de conflitos na região que até agradava os EUA, já que a principal ameaça seria o bloco composto por Venezuela, Bolívia e Equador.
No entanto, o desfecho do caso de Honduras deve ter surpreendido a Casa Branca: hoje, há um cenário em que os países anti-EUA são hegemônicos na América. As principais exceções são México, Colômbia e Peru. “O grupo anti-EUA é bem maior agora. É a grande novidade do ano. Para completar, o ano se encerrou com a aceitação da Venezuela no Mercosul, o que fortalece mais o bloco. Consolida uma aliança que constitui uma barreira contra a Alca [Área de Livre Comércio das Américas], o Plano Colômbia e o projeto dos EUA, que não fazem sucesso por aqui. Por outro lado, fortalece-se a Alba [Alternativa Bolivariana para as Américas] e a Unasul [União das Nações Sul-americanas], que começam a substituir essas ideias. Se o Brasil não esmorecer nessa posição, os EUA podem ficar numa situação delicada”, comenta Martin. (RGT)