Ano 1 • Número 36 • São Paulo • De 6 a 12 de novembro de 2003
Circulação Nacional
R$ 2,00
João Roberto Ripper
Governo assinará novo acordo, ou seja, vão continuar as dificuldades da economia e o empobrecimento dos brasileiros
Políticas do FMI só agravam a crise do Brasil F
O jurista Hélio Bicudo, profere a sentença denunciando a omissão e o envolvimento do Estado no assassinato de sem-terra
A situação do México depois da assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) pode servir de exemplo para o Brasil, caso a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) seja aprovada: cresceu o desemprego, pioraram as condições de trabalho, a renda da população caiu e aumentou a emissão de dinheiro para os Estados Unidos. Por isso, em outubro, mais de 100 mil mexicanos saíram às ruas para se manifestarem contrários ao ingresso do país no novo tratado. Pág. 9
Em sua primeira visita ao continente africano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve assinar cerca de 40 acordos e protocolos para estimular relacionamentos comerciais. “O Brasil tem uma dívida histórica, pois esteve sempre de costas para a África”, afirmou o presidente. Em Luanda, Lula anunciou a criação de um fundo financeiro multilateral gerido pelo Mercosul e direcionado também aos países africanos como alternativa aos recursos do FMI e do Banco Mundial. Pág. 12
E mais:
Operários viram donos de fábrica na Argentina
SOBERANIA – Ação popular movida no Tribunal Regional Federal do Paraná devolveu ao Brasil o controle do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), anteriormente nas mãos da estadunidense Raytheon. Pág. 7 FÓRUM SOCIAL BRASILEIRO – Uma preparação para o Fórum Social Mundial, o encontro, que acontece de 6 a 9, em Belo Horizonte (MG), discutirá a conjuntura do país e a política internacional brasileira. Pág. 7 DEBATE – João Capiberibe, senador (PSB) e ex-governador do Amapá, e João Alfredo Melo, deputado federal (CE) e coordenador do núcleo de meio ambiente da bancada do PT, analisam as políticas ambientais. Pág. 14
Após um ano e meio de ocupação, cerca de 60 trabalhadores argentinos conseguiram obter o controle da indústria têxtil Brukman, em Buenos Aires. No dia 30 de outubro, a empresa foi expropriada com a aprovação dos deputados portenhos e as máquinas, as marcas e as patentes que a empresa explorava passaram para a cooperativa dos operários. Os trabalhadores, que já tinham sofrido vários despejos, estavam acampados em frente à fábrica. A lei concedeu aos funcionários isenção de custos para reabilitação da fábrica, que ainda poderá receber outros operários como sócios da cooperativa. A história se tornou símbolo de resistência no país. Pág. 10
plantio e a comercialização de produtos transgênicos, desagradou ruralistas e o Ministério da Agricultura, que defendem os organismos geneticamente modificados (OGMs). Para Renate Künast, ministra de Defesa do
Consumidor, Alimentos e Agricultura da Alemanha, as portas da União Européia se fecharão aos OGMs em 2004. A empresa Caramuru Alimentos, optou pela soja convencional e se deu bem. Páginas 3, 4 e 5
Nabil Aljurani/AP/AE
Escaldados pelo Lula anuncia Nafta, mexicanos que o Mercosul rejeitam Alca ajudará a África
Continua causando polêmica o projeto de lei (PL) de biossegurança, enviado ao Congresso Nacional pelo governo. A proposta, que atende às exigências do Ministério do Meio Ambiente e cria normas para regular o
Estados Unidos impedem empresas iraquianas de fazer negócios, prejudicando a economia do país: trabalhadores iraquianos protestam em rua de Basra, contra o não pagamento de seus salários. Pág. 11
Marcio Baraldi
gados. No Pará, o Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio condenou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-governador do Pará, Almir Gabriel, por omissão e abuso de poder. Pág. 6
tárias. E os credores agradecem, porque o compromisso com o Fundo garante o pagamento dos juros da dívida e sua rolagem. Quanto aos brasileiros, já sabem o que lhes reserva o futuro: a economia seguirá patinando, com desemprego e queda de renda, porque o maior gargalo ao crescimento não foi removido – a vulnerabilidade externa e, com ela, a dependência dos humores do mercado financeiro e nenhuma soberania para executar políticas de interesse nacional. Pág. 7
Lei impõe limites a transgênicos. Ruralistas e Agricultura criticam
Justiça liberta sem-terra e confirma a perseguição política de juiz Onze integrantes do MST que estavam com prisão decretada receberam, dia 3, habeas corpus do Tribunal de Justiça de São Paulo. Dos onze decretos de prisão emitidos pelo juiz de Teodoro Sampaio, Átis Araújo de Oliveira, dez já foram revo-
oi tudo um jogo de cena. Afinal, dia 4, Joaquim Levy, secretário do Tesouro Nacional, anunciou que o governo Lula fará novo acordo com o Fundo Monetário Nacional (FMI). E não informou sobre os termos do acordo e valores envolvidos. A rigor, o governo atual não mudou nada em relação ao anterior: continua seguindo o receituário neoliberal do Fundo. Pior, incorpora suas políticas de arrocho à legislação do país, como a fixação do superávit primário na Lei de Diretrizes Orçamen-
Sem-terrinha: o sonho de fazer um país melhor Pág. 13
Idec denuncia fraudes da revista Veja Pág. 5
À luz de vela, muito samba na periferia de SP Pág. 16
2
De 6 a 12 de novembro de 2003
NOSSA OPINIÃO
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes • Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 555 Carlos, João R. Ripper, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 55 Natália Forcat, Nathan, Ohi • Diretor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistentes de redação: Bruno Fiuza, Maíra Kubík Mano e 55 Tatiana Azevedo 55 Programação: André de Castro Zorzo 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 5555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 5555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 5555555555 redacao@brasildefato.com.br 5555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
O partido transgênico da burguesia
O
jornalista Luiz Weis faz o seguinte comentário, publicado pela revista eletrônica Observatório da Imprensa, em 28 de outubro: “O equilíbrio e a objetividade da matéria ‘Transgênicos - os grãos que assustam’, que ocupa doze páginas e a capa da Veja desta semana (nº 1.826, 29/10/03), estão escancarados na passagem que descreve as partes em conflito no caso. É assim: ‘De um lado, concentram-se os que tendem a aprovar os avanços científicos e os benefícios que trazem para a humanidade e para os fabricantes dos novos produtos que saem dos laboratórios. De outro, estão os que reprovam, principalmente ambientalistas e, de maneira geral, militantes de partidos de esquerda. Não importa o que digam os cientistas independentes a favor dos transgênicos, essa ala já decidiu que eles são um malefício – e acabou.” Conhecida na praça como a publicação que manda repórteres colher opiniões de gente que conta, e que sirvam apenas para endossar os pré-conceitos firmados pela revista diante de tal ou qual assunto – e acabou –, Veja gastou naquele trecho 71 palavras para dizer o que poderia ter dito em dez: ‘De um
lado, é a luz. Do outro, a treva’. Não é a primeira nem será a última vez que a Veja bate recordes de facciosismo e usa as palavras para maltratar os fatos. Mas, diante desse antológico espetáculo de desinformação, até este leitor, que sabe uma ou duas coisas sobre o assunto e que, na complicada soma algébrica dos prós e contras, acha que a engenharia genética de alimentos pode ser antes um bem do que um mal, se sentiu tentado a ligar para a entidade ‘Brasil livre de transgênicos’ e perguntar onde assina.” A crítica de Weis toca o ponto essencial: a Veja não faz jornalismo: faz panfletagem, no pior estilo maniqueísta do “bem” contra o “mal”. Atua como partido radical, daqueles que condenam os inimigos a arder na chama dos infernos. A Veja não é caso único, embora seja o mais óbvio. Nenhum veículo da “grande mídia” explicitou aquilo que realmente interessa, hoje, no caso dos transgênicos: a maneira pela qual o processo foi conduzido afronta a soberania do país. Não é possível tolerar que uma empresa transnacional, em nome de seus interesses privados, estimule a de-
sobediência civil – a plantação ilegal de transgênicos – e acabe sendo premiada por isso! Na melhor das hipóteses, a mídia apresenta o caso como uma suposta polêmica, de resto ridícula, entre os contrários e os favoráveis ao desenvolvimento de novas tecnologias. E não é só no caso dos transgênicos. A “grande mídia” lança anátemas contra as organizações populares, em particular o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); qualifica como “loucura” qualquer tentativa de resistir às imposições do Fundo Monetário Internacional (FMI) e condena como “calote” (isto é, algo moralmente indefensável) a proposta de moratória da dívida externa; defende a relação neoliberal entre capital e trabalho, e advoga a revogação das principais conquistas sociais e sindicais dos trabalhadores; finalmente, ataca a soberania nacional, ao defender – ou, no mínimo, omitir-se – a adesão do Brasil a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A “grande mídia” comporta-se, inteira, como o grande partido da burguesia. A Veja é só o seu posto mais avançado.
FALA ZÉ
OHI
QUEM SOMOS Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores.
Como participar Você pode colaborar enviando sugestões de reportagens, denúncias, textos opinativos, imagens. Também pode integrar a equipe de divulgação e venda de assinaturas. Cadastre-se pela internet: www.brasildefato.com.br.
Quanto custa O jornal Brasil de Fato custa R$ 2,00 cada exemplar avulso. A assinatura anual, que dá direito a 52 exemplares, custa R$ 100,00. Você também pode fazer uma assinatura semestral, com direito a 26 exemplares, por R$ 50,00.
Reportagens As reportagens publicadas no jornal podem ser reproduzidas em outros veículos - jornais, revistas, e páginas da internet, sem qualquer custo, desde que citada a fonte.
Acesse a nossa página na Internet www.brasildefato.com.br
Comitês de apoio
CARTAS DOS LEITORES
Os comitês de apoio constituem uma parte vital da estrutura de funcionamento do jornal. Eles são formados nos Estados e funcionam como agência de notícias e divulgadores do jornal. São fundamentais para dar visibilidade a um Brasil desconhecido. Sem eles, o jornal ficaria restrito ao chamado eixo Rio-São Paulo, reproduzindo uma nefasta tradição da “grande mídia”. Participe você também do comitê de apoio em seu Estado. Para mais informações entre em contato.
DEMOCRACIA Não é pelo fato de haver o ritual das eleições que existe democracia em um país. Democracia é um governo em que o povo tenha o controle sobre os poderes que o representam, e não o contrário. Na verdade, tal forma de governo é também ditadura, e no país em que o povo não tenha controle sobre o Estado, democracia ainda é um ideal a ser alcançado. Essa pseudo democracia não é regime de homens livres, mas regime de escravidão, pois condena a maioria da população à escravidão econômica, com suas conseqüências piores que as guerras. Um sistema de governo, ao se auto-rotular de democrático, não deve ter o direito de pôr em caos o país e arruinar o povo. Leonardo José Baudino Recife (PE)
AL BA CE DF ES GO MA MG MS MT PA PB PE PI PR RJ RN RO RS SC SE SP -
brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil brasil
-
al@brasildefato.com.br ba@brasildefato.com.br ce@brasildefato.com.br df@brasildefato.com.br es@brasildefato.com.br go@brasildefato.com.br ma@brasildefato.com.br mg@brasildefato.com.br ms@brasildefato.com.br mt@brasildefato.com.br pa@brasildefato.com.br pb@brasildefato.com.br pe@brasildefato.com.br pi@brasildefato.com.br pr@brasildefato.com.br rj@brasildefato.com.br rn@brasildefato.com.br ro@brasildefato.com.br rs@brasildefato.com.br sc@brasildefato.com.br se@brasildefato.com.br sp@brasildefato.com.br
Para assinar, ligue (11) 3038 1432 ou mande uma mensagem eletrônica para: assinaturas@teletarget.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
JUDICIÁRIO Falam em soberania ameaçada (a deles) quando estão atrelados aos interesses do poder econômico, e agem como subordinados das polícias civil e
militar, fazendo vistas grossas para os abusos de uma e de outra, inclusive ignorando a existência dos famigerados esquadrões da morte. Concordamos que não necessitam de nenhuma fiscalização externa e que só poderá mostrar o que já sabemos, ou seja, que precisa, assim como os demais poderes, ser reformado e totalmente reestruturado. É extremamente moroso e, não raras vezes, parcial em suas decisões. Atua preponderantemente dentro de um corporativismo que permite irregularidades as mais diversas: como o nepotismo; o superfaturamento em compras e obras; comércio de habeas corpus; e enormes gastos com as mais diversas mordomias a seus servidores. Possuem um orçamento onde seus gastos entram em contraste vergonhoso com a grande maioria do povo. São morosos, principalmente quando retardam ao máximo sentenças de causas ganhas (direito adquirido) quando envolvem interesses alheios aos seus. E são parciais, quando descaradamente protegem parentes,
amigos e, em especial, os poderosos, quer sejam ladrões comuns ou especiais que podem pagar e contar com todas as benesses da lei e continuar agindo livres e impunes. Em contrapatida, castigam com os rigores dessa mesma lei a grande massa dos brasileiros, pessoas desprotegidas do fator econômico, que procuram o Judiciário em busca de “justiça”. Agora, pretensiosamente, como se perfeitos fossem, falam do desrespeito do governo à sua soberania, ignorando que a soberania ameaçada é a do seu próprio país, e sobre a qual é que deveriam se manifestar publicamente. Ademais, deveriam se impor pelo saber e pela correta aplicação da justiça, e não pela arrogante pretensão de seus principais juízes. Suas sedes, luxuosos palácios, parece que são edificados mais para impor o medo do que o respeito, respeito esse que se adquire com credibilidade, coisa que a cada dia que passa lhes é mais e mais escassa. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS)
Brasil de Fato estimula o debate Brasil de Fato completa nove meses de existência. O caminho até agora percorrido foi muito longo, árduo e gratificante. Multiplicamos a criação de comitês de apoio por todo o país, estampamos em nossas páginas as notícias do Brasil e do mundo ignorados pela grande mídia, oferecemos perspectivas distintas de interpretação dos fatos políticos, culturais e econômicos, e criamos feição e estilos próprios. Não é pouco, mas ainda não é suficiente. Faz parte do nosso desafio incorporar
ao processo de produção, divulgação e distribuição do jornal um número cada vez maior de pessoas, movimentos sociais e mídias independentes. Queremos multiplicar os comitês de apoio, ampliar a rede nacional de todos os envolvidos na sustentação do jornal. Com esse objetivo, resolvemos intensificar a organização, em todo o território nacional, de debates, palestras e mesas redondas envolvendo os integrantes de nosso Comitê Editorial. Consideramos isso tão importante que
resolvemos liberar o jornalista José Arbex Jr. de suas funções como editorchefe do Brasil de Fato para dedicar a essas atividades um tempo ainda maior do que o já dispensado. Estamos certos de que a aposta na crescente interação entre o Comitê Editorial e os comitês de apoio já formados, as universidades, os sindicatos e os movimentos sociais é o caminho mais seguro para a consolidação do Brasil de Fato como um jornal independente de expressão nacional.
3
De 6 a 12 de novembro de 2003
NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR
A CTNBio perde o poder de decisão Claudia Jardim da Redação
A
pós quatro meses de impasse, no dia 29 de outubro, o governo enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei (PL) de biossegurança que definirá as regras para pesquisa de organismos geneticamente modificados. A principal mudança, que polarizou as discussões entre os ministérios da Agricultura e Meio Ambiente, foi sobre a competência da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). De acordo com o PL, a CTNBio não terá poder de decisão, como defendiam os ruralistas e o ministro Roberto Rodrigues, da Agricultura. A Comissão será responsável pela avaliação prévia dos produtos geneticamente modificados (OGMs). Se o parecer for negativo, a discussão se encerra. Porém, se a CTNBio considerar que os organismos analisados são biosseguros, caberá aos ministérios dar o parecer conclusivo. No caso de produto agrícola para consumo humano, a avaliação ficará a cargo dos ministérios da Agricultura, Meio Ambiente e Saúde.
CRÍTICAS
Maurício Lima/AFP
Se aprovada, a proposta do governo federal vai impor limites à disseminação de organismos geneticamente modificados
Trabalhadores rurais arrancam soja transgênica de campos da Monsanto em Não-Me-Toque (RS)
A proposta do PL atende às exigências do Ministério do Meio Ambiente e desagrada a bancada ruralista, que já anunciou que vai brigar para que o texto seja modificado no Congresso. O deputado federal Darcísio Perondi (PMDBRS) ficou insatisfeito com o PL que, a seu ver, diminui a força dos cientistas por não dar poder de decisão à CTNBio, e dificulta o processo de avaliação, ao ampliar o número de membros da comissão (de 18 para 26), que terá maior participação da sociedade. “Aumentar o número de integrantes prioriza a burocracia”, critica. Apesar de os ruralistas contarem com 180 representantes no Congresso, o deputado não acredita que consigam grandes mudanças. “Nunca vi o governo mandar projeto para o Congresso sem pilotar, mas vamos tentar mudar”, avisa. O deputado estadual Frei Sérgio Gorgën (PT-RS) rebate as críticas do colega, argumentando que o aumento da participação social é fundamental para democratizar o debate. “Agora não prevalecerá a ditadura dos cientistas. Eles terão de dialogar com a sociedade”, avalia. Para Gorgën, o PL simplifica a liberação de pesquisas, e tende a considerar também a biossegurança, não só a biotecnologia. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é mais cauteloso. Apesar de achar positiva a decisão do governo, considera que a batalha está só no começo.
“A precaução e a participação popular foram incluídos na proposta, o que nos tranqüiliza. No entanto, sabemos que a bancada ruralista e parte do governo estão dispostos a inverter isso no Congresso”, avalia João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST. Ele alerta que o governo terá dificuldades em manter o atual projeto e afirma que a participação da sociedade é fundamental para que não prevaleçam os interesses do grupo pró-transgê-
nico. “Se assim for, a população é quem sofrerá a derrota”, afirma.
PRECAUÇÃO Apesar de o governo ter ignorado a legislação ao liberar o plantio da soja transgênica, o PL determina que o princípio de precaução seja respeitado, quando analisados os organismos transgênicos. “Isso é fundamental e não poderia ser revogado, mas ainda assim precisa ser aperfeiçoado”, pondera o deputado
federal Edson Duarte (PV-BA). O PL atribui ao Ministério do Meio Ambiente, e não mais à CTNBio, a responsabilidade de determinar se é necessária a realização de Estudos de Impacto Ambiental (EIA). É bom lembrar que, sob atribuição da CTNBio, foi dado parecer favorável ao plantio da soja Roundup Ready da Monsanto, sem que fossem realizados estudos preventivos. A decisão foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal em
AS PROPOSTAS DO PROJETO DE LEI CTNBio – A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança terá 26 membros: oito representantes de ministérios, oito da sociedade civil e dez especialistas de instituições de pesquisa. Parecer consultivo – A CTNBio fará a avaliação prévia dos organismos transgênicos. Se ela determinar que o produto não é biosseguro, o processo se encerra. Se a análise for positiva, os ministérios do Meio Ambiente, Agricultura e Saúde serão responsáveis pela avaliação do produto e determinarão se são seguros ou não. Conselho Ministerial – Propõe a criação do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), composto por 12 ministros e presidido pelo ministro chefe da Casa Civil. Se os produtos em análise forem considerados seguros pelos ministérios responsáveis pela saúde e meio ambiente, o conselho avaliará se é conveniente tal liberação, avaliando questões econômicas e sociais. Precaução – Prevê o cumprimento da Constituição e do Protocolo de Cartagena (em votação na Câmara), que exige o princípio de precaução em relação aos organismos geneticamente modificados. Rotulagem – Exige a rotulagem e a rastreabilidade dos alimentos produzidos com conteúdo transgênico que apresentarem percentual acima de 1%. Crime – Fica mantida a proibição do cultivo, transporte e comercialização de organismos geneticamente modificados sem autorização federal. Quem descumprir a lei pode sofrer pena de um a três anos de detenção.
1998, após ação civil pública do Instituto de Defesa do Consumidor e do Greenpeace.
CONSELHO A terceira etapa de avaliação dos transgênicos sugerida no PL será efetivada com a criação do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), composto por 12 ministros, aos quais caberá dar o parecer político sobre a adoção dos transgênicos. Criado o CNBS, será presidido pelo ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu. O Conselho decidirá, mesmo que aprovado científicamente pelos ministérios responsáveis, se a liberação de OGMs atenderá aos interesses econômicos e sociais do país. O contrário, no entanto, não poderá acontecer. Se o parecer científico atestar que o produto não é biosseguro, o CNBS não terá poderes para autorizar o avanço desse tipo de transgênico. Agora, o PL deve ser votado em 45 dias na Câmara, e segue para o Senado, onde deve ser votado só no ano que vem, devido ao período de recesso dos parlamentares. A polêmica da vez é o nome do possível relator do projeto. O principal nome que circula nos bastidores é o do deputado Josias Gomes (PTBA), que já demonstrou ser favorável à liberação dos transgênicos, o que, para alguns parlamentares, pode significar parcialidade na elaboração do texto final.
Em Goiás, a fiscalização é redobrada Lauro Jardim de São Paulo (SP) Ainda que houvesse disposição para isso, Goiás não poderá mais requerer ao Ministério de Agricultura o status de área livre de transgênicos. A Delegacia Federal da Agricultura do Estado (DFAGO) registra a adesão, até agora, de dois produtores ao Termo de Compromisso, Responsabilidade e Ajustamento de Conduta (TAC), criado pelo governo federal, via medida provisória, para regular o contrabando e o plantio ilegal de soja transgênica. O registro, de qualquer forma, não impede que regiões do Estado ainda possam obter, isoladamente, o registro de área sem transgênicos. A expectativa da DFA-GO é de que outros agricultores possam
declarar formalmente sua adesão ao TAC até 9 de dezembro, novo prazo fixado pelo governo. A despeito de suspeitas de cultivo de soja alterada geneticamente em laboratório nas regiões de Cristalina, no entorno do Distrito Federal, e no Sudoeste goiano, onde está concentrada a maior produção de grãos no Estado, e da inexistência de dados oficiais, estima-se que a produção de soja transgênica seja irrelevante em Goiás.
PRODUTIVIDADE Na safra 2002/03, recém-colhida, a produção da oleaginosa atingiu 6,320 milhões de toneladas, 11% a mais do que na safra passada, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Estado é o quarto maior
produtor nacional de soja, atrás de Mato Grosso (12,7 milhões de toneladas), Paraná (quase 11 milhões de toneladas) e Rio Grande do Sul (com 9,6 milhões de toneladas). Entre esses produtores do grão, no entanto, os gaúchos registram a produtividade mais baixa, colhendo, neste ano, apenas 2.667 quilos por hectare, em média. Não por coincidência, também é o Estado onde o contrabando e o plantio de sementes transgênicas de soja mais prosperou, estimando-se que até 80% da área tenham sido cultivadas com variedades desenvolvidas em laboratório para resistir ao agrotóxico RoundUp Ready, da Monsanto. Os produtores goianos conseguiram colher 2.903 quilos em cada hectare cultivado, um resultado quase 9% melhor do que o do Rio
Grande do Sul. O Paraná, com rendimento mais elevado, colheu 3.019 quilos por hectare, 13% a mais do que os gaúchos. Juntos, Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul e Goiás respondem por cerca de 77% de toda a safra brasileira do grão.
BARREIRAS Dois deles – Mato Grosso e Paraná – fecharam as fronteiras contra a soja transgênica. Goiás também acionou a fiscalização para barrar a entrada de variedades geneticamente modificadas e apenas o Rio Grande do Sul explora o grão abertamente. O diretor de Defesa Agropecuária da Agência Rural do Estado de Goiás, Hygino Felipe de Carvalho, colocou em campo suas equipes de fiscalização desde o último dia
30 e pretende evitar a entrada de grãos geneticamente modificados no Estado. “Faremos uma fiscalização rigorosa e estaremos atentos a todas as regiões de fronteira, com especial atenção para as áreas próximas à divisa com a Bahia, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul”, afirma Carvalho. Foram montadas 18 barreiras fixas nas áreas de fronteiras e outros cinco postos volantes, com grupos de três fiscais em cada um, que se revezam em turnos de 10 dias. A fiscalização móvel vai percorrer as principais regiões produtoras do Estado para fiscalizar o trânsito de cargas e impedir a desova de grãos transgênicos em território goiano. “As equipes estão aparelhadas com kits que permitem o teste quase instantâneo da soja”, acrescenta Carvalho.
4
De 6 a 12 de novembro de 2003
NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR
Transgênicos não acabam com a fome Lauro Jardim de São Paulo (SP)
Divulgação
Normas serão rígidas na UE, avisa Renate Künast, ministra de Defesa do Consumidor, Alimentos e Agricultura da Alemanha
C
omo um tufão, ela sacudiu a rotina da 21ª edição do Encontro Brasil-Alemanha, realizado há uma semana, em Goiânia (GO). Ao mesmo tempo elegante e dura, afável e intransigente, a alemã Renate Künast reúne em seu ministério três áreas que andam às turras no Brasil – a defesa dos direitos do consumidor, segurança alimentar e agricultura. Um conflito alimentado por diferentes visões sobre como autorizar, regular e fiscalizar produtos modificados geneticamente em laboratório. A advogada Renate Künast foi ativista do movimento anti-nuclear no final dos anos 70, participou do comitê de reunificação da Alemanha, depois da queda do muro de Berlim, e militou no Partido Verde antes de se tornar ministra de Defesa do Consumidor, Alimentos e Agricultura. Nos discursos e entrevistas concedidos durante o encontro – que pela primeira vez em sua história aconteceu fora do eixo Sul-Sudeste –, ela coloca o dedo direto na ferida, atingindo um dos argumentos mais freqüentemente utilizados pela agricultura empresarial em defesa dos organismos geneticamente alterados, com destaque para a soja transgênica. “Não acredito que os transgênicos sejam a solução mais indicada para combater a fome mundial”, disparou a queima roupa. Numa introdução à crítica que viria a seguir, Künast lembrou que o assunto vem sendo discutido intensamente no Brasil e no resto do mundo e que esta é, de fato, uma “questão
“Transgênicos não são a solução para combater a fome”, diz Renate Künast
essencial, não apenas para os produtores, mas, principalmente, para os consumidores”, que têm direito à informação e, mais do que isto, a uma alimentação saudável.
REJEIÇÃO Sem se referir em momento algum à polêmica que queima nas
mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e opõe os ministros da Agricultura, Roberto Rodrigues, e do Meio Ambiente, Marina Silva, Künast voltou à carga na apresentação que fez antes de responder à imprensa: “Fiz questão de mencionar (no discurso de abertura do encontro) que a maioria dos
consumidores europeus tem uma posição bastante crítica em relação aos organismos geneticamente modificados. Reiteradas pesquisas têm indicado que 70% dos consumidores na União Européia rejeitam os transgênicos”. A ministra foi suficientemente clara ao afirmar que todos os que pretendem continuar vendendo seus produtos aos países europeus serão obrigados a se adequar às regras que entram em vigor a partir de 2004. São normas rigorosas, que vão impor punições também vigorosas a quem descumpri-las. “Quem cultiva transgênicos, terá de saber como poderá satisfazer as regras rígidas para entrar no mercado europeu”, declarou. A rotulagem dos produtos com conteúdo transgênico será obrigatória. Adicionalmente, para obter o certificado de produto livre de organismos geneticamente modificados, os exportadores terão de comprovar um teor de 0,9% de “impureza acidental” nos alimentos oferecidos ao consumidor europeu. Será preciso, prosseguiu Künast, uma autorização específica para cada tipo de produto, num processo que levará em conta “questões de saúde pública, segurança alimentar e proteção ao meio ambiente”.
PODER DO CONSUMIDOR No caso do Brasil, disse, numa primeira e única referência, ainda que indireta, à recente autorização concedida pelo governo para o plantio de soja transgênica, exportadores até poderão conseguir autorização para embarcar produtos transgênicos para a zona do euro.
“Mas não há garantias de aceitação pelo mercado”, acrescentou Künast, especialmente diante das pesquisas que demonstram a ampla rejeição daqueles produtos pelos consumidores. A ministra lembrou que o Brasil é dono de praticamente 70% da biodiversidade mundial, classificando este como um “tesouro que o país deve preservar” para que possa retirar, dali, resultados, até mesmo financeiros, no futuro, seja via exploração de plantas medicinais, seja pela exploração de novos produtos e materiais. Künast mira, agora, diretamente nas gigantes transnacionais que dominam os mercados mundiais de sementes e agrotóxicos. A seu ver, os benefícios do livre acesso aos mercados, tema recorrente em todas as reuniões do encontro Brasil-Alemanha, “não devem ser limitados às grandes empresas multinacionais” e, necessariamente, deverão favorecer especialmente os pequenos produtores. “Os sem-terra devem ter o direito de acesso à terra, à água e a sementes que possam reproduzir livremente, da forma tradicional”, numa alusão às tentativas da transnacional Monsanto de monopolizar o mercado mundial de sementes de soja, impondo à agricultura a variedade alterada geneticamente para resistir ao RoundUp Ready, agrotóxico produzido, não por coincidência, pela mesma Monsanto. “Trata-se de um paradoxo macabro que os pequenos produtores sejam exatamente os mais afetados pela fome, por falta de acesso aos mercados”, arrematou a ministra.
Fotos: Divulgação
Caramuru investe na soja convencional Enquanto a bancada ruralista e os ambientalistas se preparam para um novo enfrentamento, no Congresso, em torno do projeto de lei de biossegurança, que cria normas para regular o plantio e comercialização de produtos transgênicos no país, a Caramuru Alimentos – maior esmagadora de grãos de capital genuinamente nacional – sai na frente e aproveita uma oportunidade de mercado para lançar o óleo de soja livre de Caramuru Alimentos lança óleo “limpo” com certificado internacional transgênicos. Dona da margênica, fechando o dos entrevistados não consumiriam segurança alimentar do grupo. A ca Sinhá, a Caracircuito. soja transgênica”, afirma Souza. Caramuru consegue rastrear toda muru coloca nas Às vésperas de Com a informação nas mãos, a soja que processa, desde a faprateleiras dos suseu 40º aniversário, a empresa desenhou a estratégia zenda até o porto, num processo permercados do conta o vice-pre- que permitiu o lançamento do óleo desenvolvido, originalmente, com país o primeiro sidente do grupo, livre de transgênico, que desem- foco nas exportações de farelo óleo de soja comCésar Borges de barca no varejo em embalagens de soja. “Mas agora descobrimos provadamente Souza, a Caramuru de 900 mililitros. Além do con- novas oportunidades no mercado “limpo” (ou seja, vislumbrou uma sumidor final, duas outras linhas interno”, adianta Souza. sem a presença oportunidade de foram criadas para atender grande grãos genetiexplorar segmentos des consumidores, como redes de PRODUTIVIDADE camente altera- Souza: mercado inexplorado O empresário prefere não entrar de mercado que não restaurantes, cozinhas industriais dos em laboratório). Para atender às exigências dos interessam às grandes transnacio- e hospitais, com apresentações de diretamente na polêmica criada em torno das recentes decisões do importadores, a Caramuru já utiliza nais do setor, e que elas tampouco nove e 18 litros. O lançamento, na verdade, é governo ao liberar o plantio de sistemas de monitoramento e certifi- teriam agilidade suficiente para discação de toda a soja recepcionada por putar. “Tivemos acesso a uma pes- um prolongamento da estratégia sementes de soja modificadas gesua rede de armazéns, instalada em quisa do Ibope indicando que 71% de longo prazo da política de neticamente. Mas coloca um dedo Goiás (sede da empresa), Mato Grosso, Paraná, Pernambuco e Ceará.
OPORTUNIDADES A oleaginosa é acompanhada por equipes próprias de agrônomos desde o plantio até a recepção nas unidades de captação de soja do grupo. As fábricas de Itumbiara e São Simão, em Goiás, e de Apucarana, no Paraná, são certificadas como unidades livres de transgênicos, por organismos reconhecidos internacionalmente. Os produtos seguem para o porto de Santos, via hidrovia e ferrovia, onde são estocados em armazéns também certificados para manipular e despachar rumo ao mercado externo a soja não trans-
na controvérsia. “A soja produzida no Brasil registra a maior produtividade do mundo e os preços de mercado estão bons, neste momento. O produtor pode aguardar um pouco mais antes de fazer a opção pelo plantio da soja geneticamente modificada”, defende Borges. Segundo ele, ainda há um excesso de “ruídos”, nesta área, o que recomenda cautela aos produtores. “Acredito que o produtor terá de esperar a poeira baixar, já que não é recomendável que utilize uma semente não adaptada à região e produzida em condições não adequadas”, acrescenta. (LJ)
“Monsanto manipula pesquisas” O pesquisador estadunidense Jeffrey M. Smith garantiu, em debate promovido pela Frente Parlamentar Mista de Biossegurança, que os alimentos geneticamente modificados não são seguros. “Eles podem levar a dezenas de efeitos colaterais imprevisíveis. Muitas das premissas usadas pelas empresas de biotecnologia como base para suas alegações de segurança têm se provado incorretas, ou ainda não foram testadas”, afirmou. Smith alerta sobre a manipulação
e a precariedade dos testes sobre transgênicos. “A situação típica é que a indústria adultere seus testes de segurança para evitar que se encontrem problemas”, acusou. Segundo ele, os estudos independentes que foram mais a fundo mostram sérios danos a animais de laboratório.
MORTES O pesquisador disse que aproximadamente 100 pessoas morreram e 5 mil a 10 mil ficaram seriamente doentes depois de consumir um su-
plemento alimentar que continha o aminoácido essencial L-triptófano modificado geneticamente. Ele acrescentou que a marca tinha contaminantes minúsculos, mas mortais, que seriam, no entanto, facilmente aprovados, com base na legislação atual. “Se a doença criada por esse aminoácido não tivesse características como surgimento rápido, crise aguda e efeitos raros, o suplemento talvez nunca tivesse sido detectado como a causa”, afirma. Ele disse, ainda,
que a indústria e o governo dos Estados Unidos encobriram os fatos e desviaram a culpa. Segundo o pesquisador estadunidense, as informações sobre os alimentos geneticamente modificados são insuficientes. “A maioria da população não está consciente do que consome. Existe uma pressão na mídia e na política dos governos”, diz. Smith afirma que a Monsanto é conhecida nos Estados Unidos por manipular dados de pesquisas. (Agência Câmara)
5
De 6 a 12 de novembro de 2003
NACIONAL MÍDIA
Idec denuncia: a revista Veja mente O texto “Equívocos e omissões de Veja sobre os transgênicos” derruba falsos argumentos da revista da Editora Abril da Redação
DEZ INVERDADES DESMASCARADAS
O
IRONIAS A matéria ridiculariza os chamados “opositores ideológicos” dos transgênicos. De outro lado, prova como o negócio é lucrativo. Os argumentos são contestados pelo Idec, que considera perigosa a definição da rentabilidade como parâmetro de validação da tecnologia, “pois poderá estimular cultivos como o da maconha, atividade também ilegal, mas inegavelmente rentável para todos os elos da cadeia produtiva”. A reportagem é marcada por “esquecimentos”. Não informa que, segundo dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), houve aumento de quase três vezes no uso de glifosato no Estado do Rio Grande do Sul. Também não esclareceu que, com a soja transgênica, haverá aumento de resíduos de glifosato nos alimentos e nas águas de abastecimento, devido ao maior uso dessa substância na agricultura. “Não temos dúvidas de que a empresa Monsanto irá pressionar para que sejam elevados os limites do herbicida na nossa comida”, diz o Idec.
ALERGIA
Embora insuficientes, os testes de alergenicidade têm sido feitos, mas isso não evita que possam ocorrer acidentes. Um exemplo é o ocorrido com o milho Starlink, no qual o grão transgênico, a ser utilizado somente para alimentação animal, acabou indo para consumo humano.
FRACASSO
As experiências com genes são feitas sob rigorosa fiscalização, e apenas as espécies seguras deixam o laboratório.
Há vários casos de fracassos da engenharia genética, como o caso do salmão transgênico proibido por colocar em risco a espécie natural, o dos porcos transgênicos abatidos para consumo e o do suplemento alimentar triptofano, entre outros.
CÂNCER
Veja utiliza a relação de causa e efeito entre cigarro e doença para defender a inexistência de risco da doença relacionado aos transgênicos.
A comparação com o cigarro é absolutamente incompreensível. Ainda não foram feitos os estudos de avaliação do impacto ambiental e de riscos à saúde. Vários cientistas apontam para o risco do uso do vírus do mosaico da couve-flor, usado em muitos alimentos transgênicos, causar câncer.
DNA
Segundo Veja, as chances de os alimentos modificados feitos com pedaços de DNA que não pertencem à semente original, fazer mal ao ser humano é a mesma de uma pessoa “ser atingida por um raio ao atravessar um campo de futebol numa tarde de chuva”.
As conclusões e a comparação com o raio são simplistas. Usandose o mesmo raciocínio da revista, comer transgênico tem o mesmo risco de ser atingido por um raio. Alguém se arrisca a fazer isso três ou mais vezes por dia?
Em sete anos de consumo em larga escala de alimentos transgênicos, nunca foi registrado um só caso de resistência a antibióticos relacionada ao produto geneticamente modificado.
Mais uma vez a revista usa um fundamento não científico. Deixa de informar que o Codex Alimentarius, órgão da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) e Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2003 desaconselhou o uso de genes marcadores de resistência a antibióticos.
Nega que a ingestão de alimentos geneticamente modificados não pode alterar a cadeia de DNA do ser humano e faz ironia com o mal da vaca louca, que levou à morte 200 mil animais somente na Inglaterra.
O caso da vaca louca é tratado como uma questão alheia aos transgênicos. Do ponto da saúde pública, esse caso evidencia uma lição a ser aprendida: nunca realizar análise superficial de riscos à saúde antes de adotar novas técnicas.
EBOLA
Minimiza a 0,1% o risco de uma semente transgênica em fase de teste ser roubada do laboratório e contaminar a natureza.
A fiscalização dos experimentos é falha. Isto já foi reconhecido no Brasil, pelas autoridades do Ministério da Agricultura, e em outros países.
Relativiza a possibilidade de o vento espalhar sementes transgênicas, gerando espécies resistentes a herbicidas.
O risco da contaminação transgênica, levando à resistência a herbicidas por plantas, é absolutamente minimizado na matéria, pois já existem trabalhos científicos sobre o tema.
Afirma que os estudos realizados em lavouras sugerem que o efeito do acúmulo de DNA modificado no solo tende a ser insignificante para o microorganismo.
É o único item da reportagem que reconhece a necessidade de mais pesquisas, mas deixa de abordar o impacto negativo do uso de agrotóxicos em maior quantidade nas culturas transgênicas resistentes a eles. O glifosato é um exemplo e deveria ser citado.
Nega indícios de transformações na fauna em função dos transgênicos.
Veja não cita importante pesquisa demonstrando que duas das três plantações experimentais, autorizadas pelo governo da Grã-Bretanha, de organismos geneticamente modificados, semente de uva para óleo e beterraba para fabricação de açúcar, são mais danosas ao meio ambiente, inclusive para os insetos, do que as culturas tradicionais.
MUTAÇÃO ANTIBIÓTICO
Os fabricantes testam exaustivamente as sementes e destróem as espécies que causam alergia após a aplicação de testes.
VENTO
O QUE DIZ O IDEC
SOLO
O QUE DISSE A VEJA
FAUNA
Faltam informações, sobram interesses Uma das doze páginas da matéria “Os grãos que assustam” é reservada a uma foto da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. A legenda critica sua assessora, Marijane Lisboa, que ocupa a Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos. A matéria, porém, nada fala da inacreditável trajetória do americano Michael Taylor, descrita no livro Seeds of Deception, publicado em 2003 pelo jornalista Jeffrey M.Smith. Taylor, advogado que atuou no escritório King and Spaulding, ajudou a transnacional Monsanto a preparar projetos utilizados pelo lobby da biotecnologia para direcionar a regulamentação da política dos transgênicos. Após esse trabalho, passou a ocupar um cargo na Food and Drug Administration (FDA). O cargo foi criado especialmente para ele, transformando-o no funcionário mais influente no processo de regulamentação dos transgênicos dentro da agência.
SUPERFICIALIDADE Nos Estados Unidos, os alimentos transgênicos são desregulamentados, tratados como se fossem alimentos convencionais. Por isso, não são feitas análises de risco similares às de medicamentos, aditivos ou agrotóxicos. A FDA foi processada pela superficialidade com que tratava os alimentos transgênicos, a ponto de terem sido reveladas 44 mil cópias de
Roberto Barroso/ABr
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) não tem dúvidas: a revista Veja mentiu descaradamente na matéria sobre organismos geneticamente modificados (OMG), publicada na edição de 29 de outubro. A reportagem especial “Transgênicos, os grãos que assustam”, que ocupa a capa e doze páginas internas da revista, induz o leitor a concluir que a transgenia só oferece benefícios. De acordo com o Idec, além de apresentar uma “série de incorreções e omissões”, Veja leva o leitor a acreditar que todos os grupos contrários à liberação dos transgênicos são irracionais, passionais e inimigos do progresso. De forma didática, desmonta a farsa montada pela publicação da Editora Abril e derruba argumentos falaciosos e inconsistentes. Segundo o Idec, ao contrário do que relata a revista, a comunidade científica está extremamente dividida em relação aos riscos e benefícios dos transgênicos. O jornal britânico The Guardian publicou recentemente os resultados de um dos maiores estudos de campo já realizados sobre os efeitos de organismos transgênicos ao meio ambiente. O estudo, feito com três produtos, é taxativo: nos casos da canola e da beterraba, os transgênicos se mostraram prejudiciais ao meio ambiente. No caso do milho, há discussões sobre os resultados obtidos. Como forma de apresentar os transgênicos como única alternativa para combater a fome no mundo, Veja comparou a transgenia à “revolução verde”, que na década de 60 teria evitado que dezenas de milhões de indianos, paquistaneses e chineses Idec – o Instituto morressem de Brasileiro de Defesa desnutrição. do Consumidor é uma organização Atualmente, se não governamental produz comida fundada em 1987, suficiente para que participou da elaboração do Cóalimentar os digo de Defesa do pouco mais Consumidor. de 6 bilhões de habitantes no mundo. O problema está no sistema econômico, no qual consumidores não têm acesso aos alimentos básicos. “Veja deveria mencionar que as empresas de biotecnologia já dispõem do terminator, ferramenta genética patenteada que, aplicada às sementes, fará com que as plantas produzam grãos estéreis, obrigando os agricultores – e nações – a comprar sementes em todas as safras”.
Integrantes do greenpeace inspecionam produtos expostos em supermercado, durante ação contra os transgênicos
documentos que comprometeram a credibilidade da agência. Veja fundamenta suas informações em “pesquisas publicadas e revisadas”, cujas fontes não são reveladas. Segundos os pesquisadores espanhóis José L. Domingo Roig e Mercedes Gómez Arnáiz,“não foram realizados estudos experimentais suficientes sobre os potenciais efeitos adversos dos alimentos transgênicos para justificar sua segurança”. Os cientistas produziram o estudo “Riscos sobre a saúde dos alimentos modificados geneticamen-
te”, publicado na Revista Española de Salud Pública. Eles encontraram apenas seis estudos experimentais originais publicados, sem referências a estudos ou avaliações nutricionais, toxicológicas e imunológicas relacionadas aos transgênicos. Nenhuma pesquisa pertence a companhias do setor biotecnológico ou foi desenvolvida em agências ou organismos reguladores. Em seu livro, Smith indica a publicação de apenas dez estudos sobre o uso de alimentos transgênicos em animais, sendo que apenas dois são independentes. Um
encontrou danos no sistema imunológico, em órgãos vitais e uma ocorrência potencialmente pré-cancerígena. Quando procurou alertar o público sobre isso, Smith perdeu seu emprego e foi silenciado com ameaças de processos judiciais. Outros dois estudos mostraram evidência de uma condição potencialmente pré-cancerígena. O autor menciona ainda estudos não publicados que revelam: cobaias alimentadas com transgênicos desenvolveram lesões estomacais. De um total de quarenta, sete morreram no prazo de duas semanas.
6
De 6 a 12 de novembro de 2003
NACIONAL REFORMA AGRÁRIA
Tribunal Internacional condena Estado Maria Luisa Mendonça de Belém (PA)
O
Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio condenou o Estado — particularmente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o governador do Pará Almir Gabriel — por violar os direitos de trabalhadores rurais e de comunidades indígenas. O julgamento incluiu casos de assassinatos, prisões arbitrárias, violações dos direitos ao trabalho e à liberdade, além de crimes ambientais. O tribunal popular foi organizado por entidades de direitos humanos e movimentos sociais, dias 29 e 30 de outubro, e contou com a participação de juristas e convidados internacionais. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ocorreram 726 assassinatos de trabalhadores rurais no Pará entre 1971 e 2002, sendo que em somente sete desses crimes houve condenação. As testemunhas relataram um padrão cruel de assassinatos de camponeses e lideranças sindicais. Um dos casos analisados foi o da morte do sindicalista Bartolomeu de Morais, conhecido como “Brasília”. O júri assistiu a uma entrevista para a televisão local, onde ele denunciava as ameaças de morte, três meses antes de ser assassinado.
O MASSACRE DE ELDORADO O massacre de Eldorado dos Carajás, onde morreram 19 camponeses, também foi debatido pelos jurados. “O vídeo do massacre deixa claro que a polícia iniciou a violência contra os trabalhadores. O fato de muitos camponeses terem morrido com tiros na cabeça contradiz a tese de autodefesa da polícia”, explica a advogada Jennifer Harbury. O padre Matias Martinho Lenz, secretário executivo do Mutirão para a Superação da Miséria e da Fome, da CNBB, também descarta esse argumento: “A tese de legítima defesa é insustentável. A polícia atirou para matar em um protesto popular, sem falar na suspeita de premeditação do crime”. O Pará é o Estado com maior
João Roberto Ripper
O ex-presidente Fernando Henrique e o governador do Pará, Almir Gabriel, foram culpados por omissão e abuso de poder
Sombra de Manifestantes Sem Terra durante o Tribunal dos Crimes do Latifúndio em Belém do Pará
número de prisões arbitrárias. Foram detidos 219 trabalhadores rurais nos últimos três anos, mais de um terço do total nacional. A situação carcerária também fere a legislação, com presídios superlotados, celas sem ventilação e alimentação insuficiente. As prisões, realizadas pela Polícia Militar com o apoio de jagunços e pistoleiros, normalmente ocorrem durante operações de despejo. Entre 1995 e 2002, o governador Almir Gabriel intensificou a repressão. Cerca de 3.980 famílias foram desalojadas e tiveram seus pertences, plantações e casas destruídos. A violência física é comum nos despejos e pode chegar ao extremo, como no caso dos assassinatos de Fusquinha e Doutor, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mortos em 1998, durante a desocupação da fazenda Goiás II, em Paraupebas.
O voto da juíza Salete Maccalóz deixa clara a responsabilidade dos governos federal e estadual: “Os réus Fernando Henrique Cardoso e Almir Gabriel são culpados não somente por omissão imprópria, por não defender a integridade física dos trabalhadores, mas também por abuso de poder ao ordenar a repressão da polícia”.
dos crimes ambientais. O tribunal analisou ainda casos de trabalho escravo. Segundo a CPT, em 2002 foram libertados 4.333 trabalhadores em 117 fazendas, no Pará. Essas áreas coincidem com regiões onde existe grilagem de terra e onde ocorre maior grau de desmatamento, pois grande parte dessa mão-de-obra é utilizada na extração de madeira.
CRIMES AMBIENTAIS ESCRAVIDÃO
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciou o aumento de invasões de terras indígenas por madeireiras e mineradoras a partir de 1995, quando Fernando Henrique Cardoso assinou o Decreto 1775. Essa lei permite que empresas privadas contestem processos de demarcação de territórios indígenas. O resultado foi o aumento dos conflitos e dos assassinatos de lideranças indígenas, a redução de áreas de preservação e a escalada
Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de 1995 a 2002 a área desmatada no Pará aumentou de 169 mil quilômetros quadrados para mais de 200 mil quilômetros quadrados – o que representa um aumento de 18,4% em cinco anos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que existam cerca de 40 mil pessoas em condição de escravidão no Brasil. Somente 10% desses trabalhadores
são alfabetizados e a maioria não tem certidão de nascimento. A defensora dos trabalhadores, Rosa Maria Cardoso da Cunha, destacou a importância do tribunal e seu impacto na sociedade: “Esses crimes permanecerão em nossa memória coletiva e em nossa história, e serão sempre lembrados para que nossa dor não seja em vão”. A juíza Salete Maccalóz condenou o Estado por não realizar a reforma agrária, priorizar interesses privados e estimular a grilagem de terra, o desmatamento, o trabalho escravo e a evasão de riquezas. Ela destacou a importância do tribunal para que “as gerações futuras conheçam a história e seus verdadeiros heróis”. A sentença foi proferida pelo presidente do tribunal, jurista Hélio Bicudo: “Esse tribunal denuncia a omissão e o envolvimento do Estado em violações de direitos
Maria Luisa Mendonça da Redação Dia 3 de novembro, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu habeas corpus a 11 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que estavam com prisão decretada no Pontal do Paranapanema. A decisão resultou na liberdade de Diolinda Alves e Felinto Procópio dos Santos (Mineirinho). Outros integrantes do movimento, como Roberto Rainha e Marcio Barreto, também foram beneficiados com a decisão. José Rainha Jr. permanece preso porque aguarda julgamento em processo por porte ilegal de arma. Seu pedido de habeas corpus, que seria encaminhado à Justiça dia 4, foi adiado pois o desembargador responsável pediu diligências no processo, alegando desconhecer o histórico de Rainha no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A tese defendida por unanimidade pelos desembargadores Pires Neto, Egydio de Carvalho e Silva Pinto contradiz as sentenças do juiz de Teodoro Sampaio, Átis Araújo de Oliveira, que considera o MST uma organização criminosa. Somente este ano, Oliveira já emitiu onze decretos de prisão preventiva contra 43 integrantes do MST no Pontal. Dez desses decretos foram
revogados por tribunais superiores e apenas um ainda será julgado – dados que comprovam a parcialidade do juiz em relação ao MST. “Está claro que as decisões desse juiz têm conteúdo político. A Constituição e o Código Penal estabelecem que os acusados devem ter o direito de recorrer desses processos em liberdade”, explica o advogado do MST, Aton Fon Filho.
APOIO DE ARTISTAS O julgamento contou com a presença do presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Luiz Marinho, de representantes de organizações de direitos humanos, parlamentares e artistas. “Estou muito feliz em trazer essa boa notícia do Tribunal. Vocês fazem parte do processo de democratização no nosso país e representam o nosso futuro”, disse o ator Leonardo Vieira, em visita ao III Encontro Estadual dos Sem-Terrinha, logo após o julgamento (veja reportagem na página 13). As atrizes Beth Mendes – integrante do Movimento Humanos Direitos – e Letícia Sabatella também comemoraram a libertação dos sem-terra. “Hoje o Tribunal de Justiça legitimou o MST como um movimento cidadão, que se organiza para garantir o direito à dignidade e à igualdade”, disse Letícia.
Claudia Jardim da Redação Depois de quatro meses de resistência e de reconstrução de barracos e lavouras destruídos no último despejo em Engenho Prado (PE), os trabalhadores rurais sem-terra ligados à Central Pastoral da Terra (CPT) sofreram novamente a truculência de um grupo de 500 homens do Batalhão de Choque da Polícia Militar. Na madrugada do dia 31, os policiais formaram uma barreira na estrada para impedir a entrada da imprensa e dos advogados nas áreas onde há sete anos estão acampadas 300 famílias. Os tratores da usina destruíram os barracos e os 300 hectares de lavouras cultivadas, estimada em R$ 300 mil. “Eu nunca tinha presenciado tanta tristeza”, lamenta Marluce Melo da coordenação da CPT. Ela critica a atitude do Estado por não ter comunicado a reintegração de posse, que resultou na prisão de seis agricultores. Durante as negociações entre o governo e os sem-terra, ficou acordado que os agricultores seriam avisados com cinco dias de antecedência, caso houvesse ordem de despejo. Os trabalhadores souberam do despejo na noite que antecedeu a operação e foram orientados a acampar na beira da estrada, conforme o acordo feito com o
Jaqueline Maia/Diário de Pernambuco/Folha Imagem
Justiça concece liberdade Sem-terra despejados aguardam a lideranças do MST acampados na estrada
Desocupação de 180 famílias de Tracunhaém, em Pernambuco
Ministério Público do Estado. Porém, mais uma vez, os agricultores foram surpreendidos pela madrugada. “Os policiais invadiram o acampamento agredindo os trabalhadores e atirando com balas de borracha. Só depois um dos comandantes leu o mandado de despejo”, afirma Plácido Júnior, da coordenação da CPT, que presenciou a violência. De acordo com Marluce, tanto o presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Holf Hackbart, quanto o ouvidor agrário Gercino Silva, garantiram que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinará um decreto de desapropriação das terras de 2,6 hectares nos próximos dias.
Dia 3, os empregados da usina tentaram impedir que os agricultores, acampados na beira da estrada, recuperassem o pouco que restou das plantações. “Onde existir lavoura, os tratores vão passar por cima. Estamos arando a terra para plantar cana”, disse o gerente-geral da usina Santa Tereza, José Mário Santos. De acordo com Plácido Júnior, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Incra e o Ministério da Casa Civil estão elaborando o decreto de desapropriação para ser assinado pelo presidente Lula quando retornar da viagem à Africa. Até lá, os sem-terra devem permanecer na beira da estrada, em frente ao Engenho Independência.
7
De 6 a 12 de novembro de 2003
NACIONAL
Brasil assina novo acordo com FMI
Rafael Neddermeyer/AE
DÍVIDA EXTERNA
O governo não dá detalhes sobre os novos compromissos com o Fundo, mas, novamente, garante os pagamentos aos credores
O
secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, confirmou, oficialmente, no dia 4, que o Brasil vai assinar um novo acordo com o Fundo Monetário Internaciol (FMI). O anúncio ratifica a orientação econômica assumida pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva no início de seu mandato que, como seu antecessor Fernando Henrique Cardoso, prioriza o pagamento da dívida externa em detrimento das dívidas sociais. Para Reinaldo Gonçalves, economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a medida é coerente com a linha política Superávit primário – adotada pelo Define o tamanho do governo. “O corte dos gastos públicos que o anúncio não governo tem de fazer surpreende e para arcar com está dentro da compromissos da dívida. estratégia de Lula de seguir a linha de menor resistência”, avalia Gonçalves. Segundo o economista, o governo está evitando combater os problemas sociais do Brasil. “Lula está empurrando com a barriga. Em áreas fundamentais, como saúde e educação, nada de substantivo está sendo feito”, opina.
CLÁUSULAS PENDENTES A vice-diretora do FMI, Anne Krueger, está chegando ao Brasil para acertar os últimos detalhes da assinatura do acordo. Está pendente, de acordo com Joaquim Levy, a definição das cláusulas que excluem do superávit primário os gas-
tos de estatais, como a Eletrobras. O novo acordo deve envolver 15 bilhões de dólares. Segundo Cesar Benjamim, estudioso dos problemas econômicos e sociais brasileiros e coordenador do movimento Consulta Popular, esses detalhes não trarão novidades, pois, independentemente do acordo, o Brasil já incorporou as políticas defendidas pelo Fundo. “Na hora de negociar, o FMI não tem o que exigir, tudo está sendo cumprido. A meta do superávit primário é um dos exemplos: faz parte da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2004. O governo Lula introjetou as pressões, de dentro para fora”, avalia Benjamim. Em 2003, o FMI pediu um superávit primário de 3,75% do Produto Interno Bruto. Mais realista que o rei, o governo estipulou uma meta de 4,25%, economizando às custas de cortes de recursos nas áreas sociais, como educação, saúde, habitação.
ESTRATÉGIA Para Benjamim, o Brasil estaria aceitando uma estratégia do FMI que procura não se apresentar como o responsável pelo fracasso das políticas neoliberais. “O FMI não quer mais figurar como algoz no cenário internacional. A lógica do governo é: se vamos ter todos os ônus por que não teremos os bônus (recursos) ?”, argumenta. Benjamim considera que a assinatura do novo acordo definirá a política econômica dos próximos anos. “Não haverá mudanças e, no início de 2004, teremos mais um milhão de desempregados. Para cumprir sua promessa de campanha, Lula teria de gerar, agora, 11 milhões
FÓRUM SOCIAL BRASILEIRO
Outro país é necessário da Redação Vinte mil pessoas são esperadas em Belo Horizonte (MG) no 1º Fórum Social Brasileiro (FSB), de 6 a 9 de novembro. Comparado às três edições do Fórum Social Mundial, realizadas em Porto Alegre (RS), o evento terá público modesto, mas pode repercutir no cenário político nacional. Uma pergunta fica em aberto: chegou o momento da avaliação crítica dos rumos do governo Lula? O FSB deve reunir representantes de movimentos sociais, populares e sindicais para tratar dos projetos de transformação do país e suas relações políticas com o mundo. De novo, a pergunta que permeou o 3º Fórum Social Mundial, em janeiro: no esforço “paz e amor” de driblar as pressões das elites nacionais e globais, até onde irão as forças do novo governo para promover as mudanças previstas no programa governamental? Salete Valesan Camba, do Instituto Paulo Freire e uma das organizadoras do encontro de Belo Horizonte, acredita que será feita uma avaliação do governo. Mas ressalta: atribuir ao Fórum apenas essa intenção “é reduzir drasticamente a proposta do evento e as perspectivas dos movimentos sociais brasileiros”. Para Salete, os movimentos sociais estão preocupados com
transformações profundas, que extrapolam o desempenho do governo para enfrentar inimigos como o neoliberalismo, as transnacionais e os defensores da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). As grandes conferências prometem debater questões latentes da conjuntura internacional e a relação dos movimentos sociais com o Estado. O programa inclui conferências sobre comércio internacional e dependência interna, globalização armada e militarização na América, justiça social, combate aos preconceitos e às desigualdades de gênero e ação global dos movimentos. Além das grandes conferências para mais de duas mil pessoas, o FSB é constituído de dezenas de atividades autogestionadas, para platéias menores. Os eventos acontecem no eixo que vai do campus da Universidade Federal da Minas Gerais até o ginásio Mineirinho, na região da Pampulha. Entre os destaques do Fórum, está o estadunidense Norman Soloman, jornalista crítico da mídia corporativa e especialista em temas de guerra que participa da Jornada pela Democratização da Mídia. Mark Ritchie, coordenador do Institute for Agriculture Trade Police (IATP), é o convidado especial de um seminário promovido conjuntamente pelo Ibase e Fundação Rosa Luxemburgo. (Ciranda Brasil)
Chefe da missão do FMI, José Augusto Ruarte (à esq.),em reunião com o ministro do Planejamento, Guido Mantega (à dir.)
de empregos”, diz ele. O professor Reinaldo Gonçalves concorda com a avaliação. “A política do governo está gerando, por mês, 100 mil desempregados”, contabiliza. No mesmo dia em que Levy
anunciou que o Brasil iria assinar o acordo com o fundo, o presidente Lula estava em viagem à África. Em discurso, Lula defendeu a criação de um banco sul-americano para ajudar os países pobres. Para Benjamim, tra-
ta-se de uma estratégia para não assumir o ônus por medidas impopulares. “ Foi assim com os transgênicos. Lula não quer ter sua imagem vinculada com essas decisões. É uma orientação do Duda Mendoça”, avalia.
AMAZÔNIA
Justiça anula contrato do Sivam Maíra Kubík Mano da Redação O Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), projeto para monitoramento da região amazônica, não está mais sob responsabilidade da estadunidense Raytheon Company. No mês passado, baseado em uma ação popular movida no Paraná, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região anulou o contrato, firmado em 1995 entre o governo brasileiro e a empresa. A ação foi assinada por 42 pessoas. Alega que o governo atribuiu à Raytheon tarefas que deveriam ser prestadas exclusivamente por empresas brasileiras, numa tentativa de preservar dados de segurança estratégicos para a soberania nacional. O processo tem como réus a União, a Raytheon Company e o ex-ministro da Aeronáutica Mauro José Gandra. Para o coronel Paulo Esteves, da Comissão para Coordenação do Projeto Sivam, o processo não tem fundamento porque “não existe possibilidade de haver qualquer tipo de acesso da Raytheon e dos Estados Unidos ao banco de dados do projeto”. Segundo ele, o Brasil mantém relações com os EUA apenas para combater o narcotráfico na região, e a desconfiança geral em torno da segurança do Sivam “é parte da cultura de colonizado dos brasileiros”.
PROCESSO OBSCURO A garantia de sigilo por parte da empresa estadunidense foi o argumento que permitiu ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso dispensar a licitação e escolher a Raytheon entre as demais companhias estrangeiras. Na época, o governo da França questionou a transparência do processo.
Victor Soares
Jorge Pereira Filho e Claudia Jardim da Redação
Militares sobrevoam fronteira da selva amazônica, monitorada pelo Projeto Sivam
O general Jorge Armando Felix, ministro de Segurança Institucional, diz que o Sivam possui diversos problemas e está vulnerável. Em junho, ele expôs o projeto à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara e pediu uma revisão de seu orçamento. Segundo a deputada federal Maria José Maninha (PT-DF), membro da comissão parlamentar, “a realidade está muito aquém” do objetivo do Sivam. Maninha acredita que a explicação de Felix demonstrou a necessidade de o Sivam ser no-
vamente discutido pelo governo e pela Câmara, principalmente em relação ao seu financiamento. O governo brasileiro já pagou cerca de 85% dos custos do projeto, restando uma dívida de R$ 223 milhões. Em operação há cinco anos, o Sivam ainda não está em pleno funcionamento porque a Raytheon não entregou os equipamentos de rádio VHF, necessários para a comunicação entre os aviões que monitoram a região. Caso a decisão do TRF seja mantida, o ressarcimento do valor gasto dependerá de outras ações judiciais.
GREVES
Sindicatos endurecem luta salarial Luís Brasilino da Redação A exemplo dos bancários e petroleiros, os metalúrgicos do ABC, na Grande São Paulo (SP), tiveram suas reivindicações atendidas após alguns dias de greve. Com exceção da Volkswagen, que não apresentou proposta, as demais montadoras – Ford, Scania, Mercedes e Toyota – aceitaram oferecer um aumento real de salários na ordem de 2%.
Os funcionários da Volks continuam em greve e, provavelmente, resolverão o assunto na Justiça do Trabalho. As três categorias saíram fortalecidas das negociações, ampliadas em outubro. Depois das greves, em períodos diferentes, conquistaram a maior parte de suas reivindicações. Os bancários do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal obtiveram um bônus de R$1.500 mais Participação nos Lucros e Resultados (PLR) e
os petroleiros, reajuste salarial. Atualmente, a luta começa para os químicos. Organizados em torno da Confederação Nacional do Ramo Químico, no dia 4 eles rejeitaram a oferta de 16% de reajuste salarial e fazem greves temporárias a partir dessa data. Os trabalhadores alegam que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a inflação do ano é de 16,5% e pedem aumento real nos salários. A próxima assembléia será dia 14.
8
De 6 a 12 de novembro de 2003
NACIONAL SEM-TETO
Bruno Fiuza e Tatiana Merlino da Redação
N
o momento em que você estiver lendo esta reportagem, talvez os entrevistados já estejam vivendo na rua ou em abrigos precários, despejados do Edifício Almeida. Localizado na esquina da Rua Ana Cintra com a Avenida São João, no centro de São Paulo (SP), esse prédio é um entre os 14 atualmente ocupados por movimentos de luta por moradia, na cidade. Desde o dia 31 de outubro, as 97 famílias que moram nos 33 apartamentos do Almeida vivem sob o risco da desocupação – o que para muitas delas significa voltar para o lugar de onde vieram: a rua. Essa é a face concreta do déficit habitacional que atinge as cidades brasileiras, problema historicamente registrado em planilhas dos institutos de pesquisa. A Fundação João Pinheiro, por exemplo, fez um estudo com base nos dados do Censo Demográfico 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou que faltam 5,4 milhões de moradias no meio urbano. Se somado também o déficit no meio rural, esse número sobe para 6,6 milhões. Como a média brasileira é de quatro pessoas por família, contabilizam-se, no país, mais de 25 milhões de pessoas que não têm onde morar. Embora as cidades das regiões Norte e Nordeste apresentem, proporcionalmente, maior carência habitacional, a cidade de São Paulo, com seus 10 milhões de habitantes, é a região metropolitana onde se verifica o maior déficit habitacional em números absolutos. Faltam, na cidade, 565 mil moradias – enquanto, ironicamente, existem 420 mil domicílios vazios e ociosos, segundo dados do IBGE. Um desses prédios ociosos é justamente o Edifício Almeida, mais conhecido como o prédio da Ana Cintra, ocupado por 84 famílias ligadas ao Fórum dos Cortiços em 1999, depois de ficar 17 anos desabitado. Após a ocupação, o prédio foi comprado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), que em 2002 cadastrou as famílias, ofereceu ajuda de custo e carta de crédito para quem entrasse em programas habitacionais da companhia. Porém, 17 famílias não aceitaram a proposta
Fotos: Anderson Barbosa
A dura batalha pelo direito à moradia
Os problemas de moradia urbana, no Brasil, não se restringem à falta de teto. Cerca de 10,2 milhões de domicílios carecem de pelo menos um dos principais itens de infraestrutura (água, esgoto, lixo e eletricidade). Além disso, em cerca 2 milhões de moradias, mais de três pessoas ocupam o mesmo dormitório, situação caracterizada como “adensamento excessivo”. Somando-se o problema da falta de moradia com o das moradias inadequadas, o déficit total é de 18 milhões de domicílios, o que resulta em aproximadamente 74 milhões de brasileiros sem moradia digna, considerando-se a média de quatro pessoas por família. Diante dessa situação, as favelas aumentam, nas principais capitais brasileiras: ocupam 20% da cidade de São Paulo, 22% de Porto Alegre, 25% de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro, 33% de Salvador e 40% de Recife. A situação é mais grave em Belém do Pará e Maceió, onde metade da população urbana vive em barracos.
Famílias vivem de despejo em despejo, enquanto as políticas públicas não dão conta de abrigar os 25 milhões de brasileiros sem-teto
Depois de 17 anos desabitado, o Edifício Almeida, na Rua Ana Cintra, foi ocupado por 84 famílias em 1999. Agora, diante da possibilidade de despejo, seus moradores protestam
e permaneceram no edifício, promovendo uma segunda ocupação, em julho do ano passado, quando 80 novas famílias, ligadas ao Movimento dos Sem Teto do Centro, entraram no prédio.
AJUDA PARA VIVER Dona Benedita Reis é uma das pessoas que chegou ao prédio da Ana Cintra em julho de 2002. Nascida em um sítio no sul da Bahia, veio para São Paulo na década de 50, aos 19 anos, de “pau-de-arara”. Trabalhou como babá, cozinheira e empregada doméstica da alta sociedade paulistana, como a família Diniz, proprietária da rede de supermercados Pão de Açúcar. Viajou como babá para países como Suíça, Estados Unidos e Itália. Hoje, aos 68 anos, por ter trabalhado muito tempo sem carteira assinada, dona
O pequeno Roger, nascido na ocupação, corre o risco de perder sua casa
Benedita não recebe qualquer tipo de aposentadoria. Há oito anos, por conta da idade avançada, não consegue mais trabalhar em casas de família. Desde então, passou a trabalhar como camelô, até que sua barraca foi interditada pela prefeitura. Há quatro meses sem ganhar dinheiro algum, dona Benedita vive da ajuda de antigos colegas camelôs. O dinheiro muitas vezes não é suficiente para a comida e para os quinze comprimidos que precisa tomar diariamente por conta da doença de Chagas e de problemas no coração e nos rins. Diante da possibilidade do despejo, ela se desespera: “Vou para debaixo da ponte”. Com lágrimas nos olhos, revela seu maior temor, a possibilidade de ficar sem acesso a água encanada: “Tomo banho pelo menos duas vezes por dia”. A história de Dona Benedita é um retrato dramático da exclusão social no Brasil. A moradora do Edifício Almeida passou da condição de sem-terra a sem-teto. As terras do sítio onde morava na Bahia, das quais possui a escritura, foram roubadas por um grande fazendeiro local nos anos 70. Desculpando-se pela pobreza do quarto onde vive, ela confessou que seu sonho é es-
74 milhões sem moradia digna
crever um livro de memórias. Trabalhadora rural desde os seis anos, se emociona ao lembrar da infância: “Lá no interior da Bahia eu tinha a mão cheia de calos mas pelo menos eu tinha o que comer”.
MODELO QUE EXCLUI Dona Benedita faz parte da faixa de população que vive com menos de três salários mínimos por mês, pessoas para as quais não existem políticas habitacionais. Segundo levantamento do Ministério das Cidades, 84% da população carente de moradia concentram-se nessa faixa de rendimentos. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante a Conferência das Cidades, no final de outubro, criticou o modelo de política habitacional que exclui quem ganha menos de R$ 720 mensais.
AÇÃO POLICIAL João Albuquerque, o Jota, integrante da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), condena especialmente a política habitacional do governo do Estado de São Paulo. Segundo ele, não existem iniciativas que incluam os trabalhadores de baixa renda: “Os conjuntos habitacionais são feitos para a classe média baixa. O
governo tenta solucionar o problema da moradia fazendo os despejos”. Jota afirma que, diante das reivindicações por moradia, o Estado responde com ações policiais, em “uma política de coerção”. Como exemplos, ele cita a desocupação do terreno da Volkswagen em São Bernardo do Campo, em agosto, e a ação de despejo contra as famílias do edifício na Ana Cintra. Segundo Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, coordenador da Central de Movimentos Populares (CMP) e ligado ao Movimento por Moradia no Centro (MMC), a compra e a reforma do Edifício Almeida farão o valor das unidades ficar muito alto. “Esse vai ser um prédio com apartamentos para classe média”, analisa Gegê. O despejo das famílias do prédio da Ana Cintra, de acordo com a assessoria de imprensa da CDHU, poderia acontecer a qualquer momento, a partir do final do prazo combinado entre a companhia e a coordenação do MSTC para desocupação do prédio, dia 31 de outubro. Segundo a assessoria da CDHU, é preciso iniciar as reformas de infra-estrutura para colocar o prédio à disposição do Programa de Atuação em Cortiços. A coordenação do MSTC reivindica um lugar para alojar as famílias despejadas, mas a CDHU diz que não é possível atender às 80 famílias que reocuparam o edifício em 2002. A situação permanecia indefinida até o dia 31, quando o movimento realizou um ato público de protesto fechando as duas pistas da Avenida São João, região central de São Paulo.
Mesmo com a escritura de suas terras na Bahia, dona Benedita Reis não tem onde morar
9 Ano 1 • número 36 • De 6 a 12 de novembro de 2003
SEGUNDO CADERNO ALCA
Livre comércio aumenta desemprego Trabalhadores do México vivem pior depois do acordo comercial com os Estados Unidos Jorge Pereira Filho da Redação
E
nquanto a grande imprensa alardeia equivocadamente que os empresários não estão sendo ouvidos nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a maioria dos brasileiros preocupada com a questão do desemprego segue órfã de informação. Afinal, um acordo de livre comércio poderá gerar mais postos de trabalho? Se tomarmos como exemplo o que aconteceu no México, depois de 1994, com a assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), a resposta será negativa. Para os Estados Unidos, a Alca seria uma espécie de Nafta plus, uma vez que iria incorporar mais países às condições previstas naquele tratado, aprofundando algumas propostas. “Esses acordos são uma espécie de supraconstituição, pois amarram as mãos dos futuros governos democráticos”, avalia sociólogo mexicano Alberto Arroyo, um dos autores do livro Lições do Nafta: o Alto Custo do Livre Comércio, escrito também por estadunidenses e canadenses. No México, do ponto de vista dos trabalhadores, as perdas não foram poucas. Um exemplo é a redução dos postos do trabalho mesmo nas grandes empresas exportadoras, um dos setores beneficiados pelos acordos de livre comércio. Depois do Nafta, essas companhias fecharam 9,4% dos seus empregos e passaram a usar menos produtos nativos. Antes, 91% das vendas ao exterior tinham mão-de-obra e insumos mexicanos. Esse percentual caiu para 30%, em 2001, segundo dados do governo. “É verdade que o desemprego e a precarização já existiam antes do Nafta. Mas, embora se diga que as exportações gerem trabalho, a participação dos produtos mexicanos nessas exportadoras está caindo”, explica Arroyo.
FANTASMA MAIOR
Os efeitos do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta)
CANADÁ • Queda na renda média da população de 2%, em relação a 1990; • Aumento na desigualdade social: 10% mais ricos abocanham 55,7% da renda nacional, os 40% mais pobres detêm 1,1%. • 18% dos agricultores perderam suas terras; • 2.400 empregos fechados na agroindústria; • Corte nas políticas sociais. Apenas 39% dos desempregados têm benefícios sociais. Em 1989, eram 87%.
ESTADOS UNIDOS • Corte de 1,5 milhão de empregos na indústria;
MÉXICO • Maior taxa de desemprego dos últimos seis anos. Cerca de 40% da população economicamente ativa não têm atividade econômica; • Aumento da imigração legal de 40%, entre 1998 e 2001, somando 205 mil pessoas; • Redução de 9,4% nos empregos do setor manufatureiro; • Criação de empregos em um ritmo 46,6% menor do que o necessário para atender à população economicamente ativa; • 55% dos empregos gerados em oito anos não respondem à legislação trabalhista; • Aumento do déficit em conta corrente do país. Entre 1998 e 2000, saíram do México 48 bilhões de dólares, entraram 36 bilhões de dólares;
• Redução de salário em 13% para ex-operários recolocados;
• Cesta básica ficou 560% mais cara, salários cresceram 13%; • 58% da população (51 milhões) são pobres;
• Aumento na desigualdade social: os 5% da elite ficaram 3% mais ricos; 20% mais pobres perderam 4% da renda;
Fontes: Instituto Nacional de Estatística, Geografía e Informática (Inegi), Lecciones del TLCAN: El Alto Costo del “Livre” Comercio, México e Canadá, a trágica experiência do Nafta
salário dos cidadãos com emprego subiram 13%. Não é à toa que a taxa de imigração explodiu durante o período do Nafta. O acordo de livre comércio permite a livre circulação de mercadorias e investimentos, mas coibe severamente o trânsito da mão-deobra. Apenas de 1998 a 2001, o fluxo legal de mexicanos para os Estados Unidos subiu 40%, atingindo o número de 205 mil pessoas que deixaram seu país em busca de condições dignas de vida. “Outro dado revelador é que cresceu também o volume das remessas que os imigrantes enviam a suas famílias. Antes do Nafta, era da ordem de 3 milhões de dólares e, em 2003, espera-se 14,5 milhões de dólares”, conta Arroyo.
GANHADORES Essas informações são oficiais e estão disponíveis a toda a imprensa brasileira. Porém, quando tratam da Alca, e dos acordos de livre comécio em geral, os jornais da grande imprensa preferem mostrar uma outra realidade. A realidade de quem pode ganhar com esses tratados. De fato, os maiores beneficiados com os tratados de livre comércio são os grandes exportadores. Os oito anos do Nafta são mais que um
Os camponeses avaliaram que as políticas do Nafta privilegiam os grandes produtores. O receio de que essa situação se aprofunde ainda mais está levando os mexicanos a se mobilizar contra a Alca. Em outubro, os habitantes do Estado de Chiapas participaram de uma consulta popular sobre o acordo de livre comérco. Mais de 100 mil pessoas rechaçaram a participação do México na Alca e
alerta. No México, as exportações do setor manufatureiro cresceram 38%. Cerca de 300 empresas controlam essas vendas; dessas, 72 são estrangeiras. Além disso, as quatro grandes automotivas, as transnacionais General Motor, Daimler-Chrysler, Volkswagen e Ford exportam mais do que o dobro do que a Pemex, que explora petróleo e gás natural. Os donos de maquiladoras também se beneficiaram com o Nafta e, hoje, respondem por 45% das exportações do país, comprando apenas 3% dos produtos no México e empregando trabalhadores a condições precárias. O impacto dessa política no campo é o favorecimento das grandes propriedades e da mecanização do trabalho. No Canadá, 18% dos agricultores perderam suas terras nos últimos oito anos e 2,4 mil empregos foram fechados na agroindústria. Nesse país, a desigualdade social também cresceu nos últimos anos. Os 10% mais ricos já respondem por 55,7% da renda nacional, enquanto os 40% mais pobres detêm 1,1%. O Fórum Camponês México-Estados Unidos, recentemente, juntou pequenos agricultoes dos dois países em uma campanha chamada “O campo não agüenta mais”.
Jovem limpa o pára-brisas de um automóvel na Cidade do México, alternativa de trabalho diante do desemprego crescente
também no Plano Puebla-Panamá (PPP), projeto de construção de auto-estradas, rodovias e ferrovias na América Central, financiado pelo Banco Mundial, que prevê desalojar as populações indígenas. “Nosso objetivo foi mostrar a população contra os dois projetos neoliberais que só trazem pobreza e miséria”, afirma Teresa Zepeda, da Aliança Cívica, organização que participou da consulta.
PERU
Encontro une forças contra o imperialismo Luís Brasilino da Redação
Omar Torres
Os números oficiais da Taxa de Desemprego Aberto (TDA), divulgada pelo governo mexicano, comprovam a curva negativa de geração de empregos no país. A TDA de agosto de 2003 bateu recorde dos últimos seis anos, ficando em 3,96%. A taxa mede o percentual de cidadãos em idade de trabalho que, procurando emprego, não conseguiram trabalhar nem por uma hora durante a semana. Mas, segundo o governo mexicano, cerca de 40% da população economicamente ativa não tinham emprego durante o mês. Alia-se a esse cenário o empobrecimento dos cidadãos empregados. Enquanto os produtos da cesta básica ficaram 560% mais caros, o
OITO ANOS DE NAFTA
Com a participação de centenas de camponeses, indígenas, pequenos produtores e afrodescendentes dos países andinos (Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e Peru), realizou-se em Lima, a capital peruana, o II Fórum Andino. O encontro, de 21 a 23 de outubro, marcou mais uma etapa da luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Com o objetivo de discutir e propor alternativas ao modelo neoliberal praticado por governantes de seus países e por organismos internacionais, entre eles a Organização Mundial Consenso de do Comércio Washington – es(OMC) e o tabelece diretrizes liberais de política Fundo Moneeconômica, como tário Internaabertura comercial cional (FMI), e financeira, flexibilização da legislação os participantrabalhista, privatizates definiram a ção etc. Alca como um CAN e Mercosul – instrumento de Tratados que objetivam aproximar seus expansão, não integrantes do ponto só econômica, de vista comercial, como militar, social, econômico, cultural etc. dos Estados Unidos. A carta final resultante do evento constata o esgotamento das proposições do Consenso de Washington e dos oito anos de vigência
das políticas da OMC. “Já houve tempo suficiente para concluir que essas medidas só trouxeram instabilidade e crise institucional, aprofundamento da exclusão e da marginalização, além de restrição de direitos políticos, econômicos, sociais e culturais”, afirma o documento. A partir dessa proposição, os integrantes do II Fórum Andino sugerem a criação de um mercado integrado, justo e solidário entre as nações da região e prioridade à soberania alimentar de seus povos. Para tanto, seria essencial aproximar mais os países do Pacto Andino (CAN) e os do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) e criar alternativas como a Aliança Latino-Americana Bolivariana da América (Alba) – proposta de Hugo Chavez, presidente da Venezuela, para um tratado entre as Américas do Sul e Central. No Fórum foram comemorados o fracasso das últimas negociações da OMC (em Cancún, México, em setembro) e o sucesso na Bolívia da mobilização popular que tirou do poder, dia 17, o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. Além disso, celebrou-se a luta do povo venezuelano contra as tentativas estadunidenses de controlar o petróleo de seu país; e dos movimentos campesino, indígena, urbano e afrodescendente de oposição ao Plano Colômbia.
10
De 6 a 12 de novembro de 2003
AMÉRICA LATINA
Trabalhadores conquistam controle de fábrica
Juan Vargas/STF
ARGENTINA
Depois de ocupar a tecelagem que iria ser fechada, há um ano e meio, os operários conseguem obter o controle da fábrica
C
erca de 60 trabalhadores argentinos – a maioria mulheres – conseguiram obter o controle da fábrica têxtil Brukman, em Buenos Aires. Dia 30 de outubro, os deputados portenhos aprovaram a expropriação da indústria e o seu repasse à cooperativa dos operários, depois de um ano e meio de luta, desde que a fábrica foi ocupada pelos operários. Agora, só falta o presidente Nestor Kirchner promulgar a lei, o que ocorrerá nos próximos dias, segundo os jornais locais. A medida é o mais recente capítulo de uma história de resistência que se tornou símbolo entre os trabalhadores argentinos. Em 18 de dezembro de 2001, os operários ocuparam a fábrica sob ameaça de perder seus empregos. O então controlador de Brukman, Jaime Muszkat, havia anunciado que iria fechar a indústria. Os trabalhadores não aceitaram a decisão do patrão, tomaram o controle da fábrica e decidiram colocar as máquinas para funcionar. Na época, o povo saiu às ruas para fazer panelaços em protestos ao confisco e à política neoliberal do governo argentino. Outras fábricas também foram ocupadas pelos trabalhadores, como a de Zanon, na Província de Neuquen. Muszkat tentou reaver o controle da empresa na Justiça. Com a solidariedade de outros trabalhadores argentinos, os operários de Brukman resistiram, mesmo depois de sofrer seguidos despejos. No último deles, montaram um acampamento
de resistência em frente à fábrica, com centenas de pessoas, enquanto a fábrica desativada era protegida por um efetivo de 400 policiais. Mulheres protestam às vésperas da expropriação da Brukman
VITÓRIA “Nossa luta não foi em vão”, disse Celia Martinez, uma das trabalhadoras de Brukman, nos festejos da decisão que transferiu para a Cooperativa 18 de Dezembro o controle, os bens móveis e os imóveis da fábrica. A organização tem cerca
de 60 trabalhadores, mas poderá receber outros operários como sócios. A lei concedeu aos trabalhadores isenção de custos para reabilitação da fábrica e o direito de usar as máquinas, como as marcas e patentes que a empresa explorava.
Os legisladores estabeleceram, no entanto, como condição que os trabalhadores em atividade na fábrica antes do fechamento (eram cerca de cem) sejam reincorporados. Segundo Miguel Angel Rodas, integrante da cooperativa, há dis-
posição em aceitar os ex-trabalhadores. Para o operário, é possível que a fábrica seja colocada em funcionamento antes do final do ano, mas é preciso verificar as condições das máquinas, que estão paradas há um ano.
CUBA
ONU exige fim do bloqueio a Cuba da Redação Em uma votação histórica, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou resolução que condena e exige o fim do bloqueio econômico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos a Cuba. A votação foi incontestável: 179 países se posicionaram a favor da resolução e apenas 3 se opuseram, Estados Unidos, Israel e Ilhas Marshalls. Duas nações, ainda, se abstiveram. A resolução recorda as declarações formuladas pelos chefes de Estado ou de governo durante as Cúpulas Iberoamericanas, quando enfatizaram a necessidade de eliminar a aplicação unilateral de medidas econômicas e comerciais que afetem o desenvolvimento do livre comércio internacional.
Niurka Barroso/AFP
da Redação
Sacos de arroz produzidos nos EUA, na XXI Feira Internacional em Havana
O texto aprovado expressa, também, preocupação diante do fato de que continuam em vigor regulamentações como a lei estadunidense Helms-Burton, de 12 de março de 1996, cujos efeitos extra-
territoriais afetam a soberania de outros Estados e lesam os interesses legítimos de entidades ou pessoas sob sua jurisdição e a liberdade de comércio e de navegação. Com esses argumentos, a ONU
reformou seu pedido para que as medidas em vigor sejam suspensas, aconselhando ainda os Estados a abandonarem ações deste tipo. Países como os EUA serão instados a “no prazo mais breve possível, e de acordo com seu ordenamento, suspendê-las ou deixá-las sem efeito”. Do mesmo modo, se pede ao secretário-geral da ONU que, em consulta com os órgãos pertinentes, prepare um informe sobre o cumprimento da resolução, para apresentá-lo à Assembléia Geral. A aprovação da resolução foi a décima terceira ocasião em que a ONU condenou o bloqueio econômico a Cuba. A primeira votação de uma resolução similar foi feita em 1992, quando foram registrados apenas 59 votos a favor e 71 contra. Nunca havia sido verificado 179 aprovações. (Prensa Latina)
COLÔMBIA
Reflexões sobre as duas derrotas de Uribe Miguel Urbano Rodrigues de Havana (Cuba) O que ocorreu na Colômbia, dias 25 e 26 de outubro, parece arrancado de uma novela de Gabriel Garcia Marquez. As derrotas infligidas ao presidente Álvaro Uribe, pelo tamanho e significado, produziram no país o efeito de um terremoto. Primeiro o povo recusou-lhe os poderes que pedia e a possibilidade de reformas constitucionais que, através de um referendo de recorte fascista, pretendia impor. No dia seguinte, Uribe perdeu as eleições locais. Em Bogotá, Medellin, Cali, e Barranquilla, os eleitores votaram maciçamente em candidatos da oposição. Durante meses, Uribe cantou as vitórias por ele imaginadas. O seu superministro Fernando Londoño (Interior e Justiça) afirmava que mais de 14 milhões de colombianos responderiam SIM às perguntas do plebiscito. O governo exerceu uma formidável pressão sobre o eleitorado, gastando milhões no financiamento da campanha. A televisão, a rádio, a imprensa apresentaram o SIM como uma exigência patriótica. A
contribuição das transnacionais foi também ostensiva. O presidente, imitando o estilo bushiano, exibiu-se, entre artistas, em shows de baixo nível, incluindo o programa Grande Hermano (Big Brother). O exército e a polícia intimidaram as populações nas semanas que precederam o referendo.
COMO UM VICE-REI O embaixador dos Estados Unidos, desrespeitando o estatuto diplomático, comportou-se como um vice-rei. Interveio na campanha, criticou a abstenção e pediu o SIM para as perguntas que suscitavam mais polêmica, incluindo as relativas a exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Departamento de Estado. Grupos de paramilitares ameaçaram os camponeses. Mas a engrenagem não funcionou. A oposição destruiu o sonho de Uribe. Conclamou o povo a ficar em casa. E a esmagadora maioria dos eleitores atendeu a esse apelo: absteve-se . Horas depois de iniciada a contagem, o governo apercebeu-se de que iria sofrer uma enorme derrota. Uribe entrou em pânico. Em circunstâncias ainda mal conhecidas, a contagem dos votos
foi suspensa e, ao ser reiniciada, a percentagem dos SIM aumentou estranhamente. Mecanismos fraudulentos haviam sido acionados. A manobra, entretanto, chegou tarde. Faltavam apenas as urnas de regiões remotas, representando pouco mais de 2% dos votos emitidos quando a apuração foi novamente interrompida e o seu recomeço adiado para data e hora a serem anunciadas. Quando o Conselho Eleitoral divulgou os números até então conhecidos, ficou transparente que nenhuma das 15 perguntas atingira o mínimo de 6.267.000 votos imprescindível à sua aprovação. É improvável que os resultados oficiais da recontagem sejam tornados públicos antes do dia 10, mas, na hipótese mais favorável para Uribe, apenas duas ou três perguntas poderão ser aprovadas. A que obteve mais votos, a primeira, era particularmente ambígua. O objetivo seria dinamizar a luta contra a corrupção. Entretanto, o texto estabelece que os funcionários corruptos afastados por roubalheiras ou dívidas poderão ser readmitidos desde que regularizem a sua situação... As propostas relativas à re-
dução do número de deputados e senadores, ao congelamento de salários dos trabalhadores e a cortes de despesas públicas, sobretudo em áreas sociais, obtiveram votação muito baixa. O governo reuniu-se de emergência para refletir sobre a derrota de um projeto que durante meses apresentara como pilar da sua estratégia. Eram duas as opções: desconhecer o resultado através de uma fraude gigantesca na recontagem, ou conformar-se com a rejeição do referendo. Foi essa, finalmente, a decisão tomada. Uribe temia a reação do povo, se o desafiasse.
A SEGUNDA DERROTA No domingo, ainda acusando a desorientação resultante da recusa das suas propostas de reformas, Uribe sofreu uma nova derrota de grandes proporções. Nas eleições locais para governadores, alcaides e vereadores, os seus candidatos, nas principais cidades do país, foram amplamente batidos. O desastre maior ocorreu na capital, onde Luís Garzón, um destacado sindicalista, ex- presidente da Central de Trabalhadores, foi eleito prefeito. Mas o governo perdeu também em Medellin, Cali e Barranquilla, três
cidades com mais de um milhão de habitantes e noutros grandes centros urbanos. Para espanto do poder, a afluência às urnas foi a maior dos últimos anos. A acumulação de derrotas forçou a extrema-direita a mudar de linguagem. O discurso triunfalista foi substituído por outro, adaptado às circunstâncias. Sem surpresa, o senado pronunciou-se, quase imediatamente, por confortável maioria, contra a emenda à Constituição, preparada para permitir a reeleição de Uribe. Foi mais um sonho que se desfez. O primeiro dos ministros a apresentar o seu pedido de demissão foi Londoño, mas todos os membros do governo, depois, colocaram os cargos à disposição do presidente. Era impossível ocultar o sismo político que atingira não apenas Uribe, mas a oligarquia colombiana e, indiretamente, Washington, sustentáculo de uma política apresentada por Bush como modelo a ser imitado. Miguel Urbano é jornalista e escritor português. Morou no Brasil durante o período da ditadura militar, atuou politicamente na Europa e atualmente vive em Havana, Cuba
11
De 6 a 12 de novembro de 2003
INTERNACIONAL IRAQUE
Empresas dos EUA praticam crimes Depois do fim oficial da guerra, empresas iraquianas sofrem com a estagnação da economia e o desemprego Da Redação
Eman falou a representantes da sociedade civil européia, na 5ª Assembléia dos Povos das Nações Unidas, em Perúgia, Itália. Ela citou um exemplo do favorecimento dos EUA: uma companhia iraquiana cobraria 300 mil dólares para construir uma ponte, mas o contrato é feito com empresas estadunidenses por 50 milhões de dólares. O Centro de Observação do Emprego funciona no Iraque sob o
C
O preço da soberba
estão fichados como seguidores de Sadam Hussein. O professor da Escola de Direito de Bagdá, Abdalaslam Daood Soidan, disse que outro problema são os mais de 70 mil sem-teto, cujas famílias não podem pagar aluguel. “Devemos ser indenizados. O Iraque suportou sanções internacionais nos últimos 10 anos e não pode pagar suas dívidas. O povo iraquiano deveria ser indenizado, ao invés
de ter de pagar pelas políticas de Sadam Hussein. Nós é que perdemos casas e empregos”, disse. Segundo Soidan, a ocupação paga 2.500 dólares a cada família que sofre uma morte acidental em mãos de forças estadunidenses. Contudo, há um fundo de 10 milhões de dólares para as famílias de estadunidenses mortos por fogo amigo. Ele pergunta: “Por acaso uma vida estadunidense vale mais do que uma vida iraquiana?” (IPS).
Marwan Naamani/AFP
ompanhias estadunidenses cometem “crimes econômicos” no Iraque, ao impedir empresas locais de aproveitarem oportunidades de negócios. A advertência é da co-diretora do Centro de Observação do Emprego, Eman Ahmed Khamas. A população local sofre graves problemas econômicos além da falta de moradia e emprego.
patrocínio da Coalizão Unidos pela Paz e Justiça, integrada por mais de 600 organizações e instituições internacionais contra a guerra. Eman acrescentou que, em conseqüência do fechamento de instituições educativas e sociais no Iraque, muitos advogados e educadores, além de outros profissionais, estão desempregados. Entre eles estão mais de 2 mil professores universitários, tratados como delinqüentes, pois
Peyman Pejman de Bagdá A decisão dos Estados Unidos, de assumir o controle absoluto da segurança no Iraque, está sob fogo cerrado. A pressão aumentou depois dos ataques que, em um final de semana, deixaram 18 estadunidenses mortos, 15 deles depois da derrubada de um helicóptero por um míssil terra-ar. Pelo menos 135 estadunidenses morreram nas mãos da resistência iraquiana desde que o presidente George W. Bush encerrou os combates, em 1º de maio. Segundo dados de Washington, 114 soldados morreram durante as operações militares que terminaram com a tomada de Bagdá. Para muitos iraquianos que conhecem a realidade local, são claras as razões pelas quais a situação no Iraque saiu do controle das forças de coalizão. “O maior erro foi dissolver o exército e as forças de segurança”, opinou o general Mohammed Abdulá Shahwani, que abandonou o Iraque em 1990 e se juntou às forças de Washington para derrubar Sadam Hussein. “Tínhamos uma boa rede de inteligência. Nossos homens conheciam todos os criminosos, mas os mandaram para casa”, disse.
Centenas de famílias que perderam suas casas depois da guerra se unem contra o inverno, temerosas de uma nova expulsão de seus abrigos
cisão teve graves conseqüências econômicas, aparentemente não previstas pelos Estados Unidos. Mas o desgaste político foi maior. O antigo exército iraquiano tinha cerca de 400 mil membros. Além deles, havia a Guarda Republicana de Sadam Hussein, com 50 mil homens, mesmo número atuando em outros órgãos de segurança. Levando em conta que cada família iraquiana tem em média seis membros, a ordem do Pentágono gerou insatisfação em três milhões de iraquianos, que representam mais de 12% da população de 24 milhões de pessoas. “O Iraque se transformou em um campo de batalha entre terroristas internacionais e as forças
REPÚDIO Fontes iraquianas e estadunidenses lembram que a ordem de dissolver o antigo exército e outros serviços de segurança partiu diretamente do Pentágono, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos. A de-
dos Estados Unidos”, afirmou Hani Idriss, vice-presidente do Acordo Nacional Iraquiano, coalizão de sete grupos nacionais que se opunham ao regime de Sadam Hussein.
SEM CONTROLE Diante da ausência de um eficaz aparato de segurança, as forças estadunidenses decidiram assumir o controle absoluto da situação e excluir toda participação iraquiana. Os sinais dessas intenções foram percebidos já nos primeiros dias da guerra, lançada em 20 de março. “Durante a operação de ‘libertação’ do Iraque, quando o exército avançava em direção a Bagdá, já era claro que tudo seria manejado pelos militares estadunidenses.
Cerca de 100 mil pessoas protestaram contra as reformas sociais e econômicas propostas pelo chanceler Gerhard Schroeder, no dia 1º, em Berlim. As mudanças vão prejudicar, principalmente, idosos, desempregados e doentes, informaram os líderes da mobilização. O número de manifestantes surpreendeu. As entidades organizadoras esperavam aproximadamente 20 mil pessoas, mas com o início dos protestos o número de participantes foi aumentando aos poucos, conforme relatou a polícia local. Os protestos foram coordenadores pelo ex-comunista Partido do Socialismo Democrático, a organização civil Attac e sindicatos dos setores de serviços, metal, construção, educação e ciências. Entre as reformas propostas pelo governo socialdemocrata e por seus aliados do Partido Verde estão aumentos nos preços dos serviços de saúde para os trabalhadores e punições a trabalhadores desempregados que recusem a ofertas de trabalho. Além disso, Schroeder já anunciou: os pensionistas deverão “aper-
Robert Michael/AFP
Trabalhadores exigem garantias
Pobreza: novo inimigo Uma em cada cinco famílias vive abaixo da linha da pobreza. No total, são 1 milhão e 230 mil pessoas pobres, das quais 618 mil menores, em uma população de 6,5 milhões de habitantes. Essa é a nova realidade de Israel, revelada pelo Instituto Nacional de Previdência em seu informe anual. O relatório, referente a 2002, revela que a população pobre aumentou em 43 mil pessoas (26 mil crianças) desde 2001. Um documento do Banco de Israel indica que, entre 1988 e 2001, a quantidade de famílias pobres triplicou. Segundo indicadores nacionais, uma família de quatro pessoas é pobre quando tem renda inferior a mil dólares mensais, depois de descontados impostos e incluídos os pagamentos de seguro social recebidos.
Cem mil protestaram contra os cortes na área social promovidos por Schroeder
GUERRA CIVIL tar o cinto”, para o governo poder combater o déficit das contas públicas, que em 2004 alcançará 10 milhões de euros, de acordo com números oficiais. O governo defende cortes no sistema de saúde, nos benefícios concedidos a desempregados e nas pensões. As medidas, segundo Schroeder, são necessárias para tirar a economia alemã – a maior da Europa – do estancamento.
As faixas conduzidas pelos cerca de 100 mil manifestantes pediam mudanças na política econômica e social e chamavam o chanceler de “ladrão de aposentadorias”. A poderosa Confederação Alemã de Sindicatos não esteve na jornada, pois seu presidente, Michel Sommer, decidiu que a central não participaria de protestos contra Schroeder. (La Jornada)
como milícias, que usariam suas armas e causariam uma guerra civil”. Por outro lado, a Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos tentou recrutar seus próprios informantes e “pessoal da área de inteligência”, em especial chefes tribais do sul do país, mas não obteve êxito, afirmou Qanbar. “Esses esforços sempre fracassam porque os estadunidenses não conhecem o Iraque, não compreendem a complexidade de nossa sociedade”. (IPS)
ISRAEL
Peter Hirschberg de Jerusalém
ALEMANHA
da Redação
E esse foi o erro”, disse Intifadh Qanbar, porta-voz do Congresso Nacional Iraquiano, grupo que se opunha ao regime de Sadam Hussein a partir do exílio. Vários partidos políticos ofereceram ajuda às forças de coalizão para estabelecer um sistema de segurança, inclusive para recrutar informantes, disse Idriss. “Eles insistem em ter o pleno controle das decisões. Não permitem qualquer intervenção das forças políticas na área de segurança. Pensam nelas
De acordo com o local que se estabeleça a linha de pobreza, o cenário pode mudar. Na Cisjordânia e em Gaza, 60% da população palestina são pobres, ou seja, recebem 60 dólares, ou menos, por mês, segundo dados divulgados pelo Banco Mundial. Em Portugal, país de maior pobreza relativa da União Européia, 21% da população sobrevivem com renda média anual
de 3.559 dólares, segundo estudo da Comissão Européia. Israel vê despencar níveis de vida considerados relativamente altos. Sem contar com os benefícios sociais, a quantidade de famílias pobres no mínimo duplicaria, advertiu o diretor do Instituto de Previdência Social, Yohanan Stessman. “Sem assistência, a sociedade israelense estaria destroçada e teríamos atingido o ponto de guerra civil”, advertiu.
CORTE DE BENEFÍCIOS Políticos de oposição atacam o governo direitista de Ariel Sharon, dizendo que a pobreza e a desigualdade são os perigos mais sérios do país. “As políticas governamentais afetam a coesão social”, disparou o líder Eli Yisahi, do ultra-ortodoxo partido Shas. “Os dados deste relatório são impressionantes. No último ano, o governo de Sharon empurrou mais crianças para a pobreza”, disse o líder trabalhista Yitzhak Herzog. As perspectivas para o ano de 2004 são negativas, em parte devido à decisão governamental de reduzir os benefícios sociais, com um corte de 30% na renda suplementar e outro de 20% a 25% em subsídios para a infância. Outras medidas incluem privatização de empresas estatais, redução de impostos, corte no setor público e no poder dos sindicatos. (IPS)
12
De 6 a 12 de novembro de 2003
INTERNACIONAL ÁFRICA
Lula promete pagar dívida histórica Paulo Pereira Lima enviado especial a São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique
S
audado em grande estilo como “o grande velho” – forma comum de os africanos expressarem respeito e admiração –, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciou sua primeira visita oficial à África pelo arquipélago de São Tomé e Príncipe, na costa oeste do continente, dia 2 de novembro. A visita de uma semana, que inclui outros quatro países (Angola, Moçambique, Namíbia e África do Sul), vem sendo considerada histórica, pelo tamanho da comitiva brasileira – formada por dez ministros, dois secretários, parlamentares, empresários – e pelo volume de acordos e protocolos a serem assinados. Serão cerca de 40 em diversas áreas, como educação, formação técnica, saúde, agricultura e exploração de petróleo. Nos diversos discursos que fez em São Tomé, Luanda e Maputo, o presidente fez questão de ressaltar que sua visita vai além do aspecto diplomático. “É o começo do pagamento de uma dívida histórica do Brasil com a África e que nós vamos pagar”, disse. Para ele, o Brasil “esteve de costas” para o continente africano durante muitos anos. “Chegou a hora de recuperar o tempo perdido e vamos fazer mais do que foi feito em 20 anos. Trata-se de uma obrigação ética, política e moral”, afirmou durante a inauguração do prédio da embaixada brasileira, a primeira missão diplomática criada em seu governo.
NOVAS EMBAIXADAS São Tomé e Príncipe era o único membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que não tinha embaixada brasileira. Para 2004, o presidente prometeu abrir novas embaixadas no continente africano. O presidente angolano, José Eduardo dos Santos, que está atuando nas negociações de paz na vizinha República Democrática do Congo, sugeriu ao presidente brasileiro que abrisse sua próxima embaixada nesse país. Para o ministro da Cultura, Gilberto Gil, que já visitou diversos países do continente, essa viagem
Fotos: Ana Magalhães Menendes
Em sua primeira viagem ao continente, presidente diz que reaproximar brasileiros de africanos é obrigação moral
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva passa em revista tropas do Exército angolano em Luanda, capital de Angola, em 3 de novembro
criada no âmbito da União Africana, envolvendo 53 países africanos. “Não queremos investir de forma paternalista, mas nos adequando aos países africanos e explorando novas formas que permitam comprar desses países produtos com tarifas baixas, como a Europa fez com seus países”, disse o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Segundo ele, na reunião da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento do Comércio (Unctad), a ser realizada no Brasil em julho de 2004, será possível trabalhar o assunto com maior profundidade. “Até gostaríamos que os países industrializados nos tratassem da mesma forma.”
vai servir não apenas para superar o passado de culpas e reparações. “É um momento novo, rumo a um futuro promissor. Temos que deixar para trás essa dívida para com a África, mas também para com nosso próprio povo afro-brasileiro e os povos indígenas de nosso país.” No século 16, São Tomé e Luanda eram pontos estratégicos na rota dos escravos que foram levados para o Brasil e outros países latino-americanos. Quanto à política internacional, o presidente Lula destacou, em encontros com chefes de Estado e empresários brasileiros e africanos, a necessidade de estreitar as relações comerciais entre o Mercosul e a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (Nepad), iniciativa
COMBATE À POBREZA
Banco sul-americano para nações pobres No dia em que o secretário do Tesouro Joaquim Levy anunciou um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu uma no cravo e outra na ferradura. Em Luanda, antes de partir para a terceira etapa de sua viagem, lançou a idéia de criar uma instituição financeira multilateral para o Mercosul, direcionada também aos países africanos, e defendeu de forma mais incisiva a colaboração econômica entre os dois continentes. O banco sul-americano seria alternativa a outras instituições internacionais, como o Banco Mundial e o próprio FMI. “Volto a repetir o que disse na Assembléia das Nações Unidas: o nome da paz que todo o mundo deseja chama-se justiça social. Não podemos ficar dependendo apenas do Banco Mundial, que é importante. Precisamos criar coisas novas”, disse o presidente. A idéia é juntar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Corporação Andina de Fomento (CAF) e outros da região. Lula disse estar convencido de que, em breve, haverá mais recursos para financiar a infra-estrutura dos países em desenvolvimento. “Temos interesse em fazer com que o Mercosul possa manter relações com todos os organismos de comércio e de desenvolvimento existentes”. O leque de alianças também
Estudantes recepcionam Lula em sua chegada a São Tomé, capital da ilha de São Tomé e Príncipe, costa oeste da África
pode se estender ao mundo árabe: “Em dezembro vamos visitar os países árabes para estreitar também as relações com o Brasil e o Mercosul, e vamos continuar fazendo isso com todos os países do mundo.”
ACORDO EM ANGOLA A Infraero Aeroportos Brasileiros firmou, dia 4, acordo de cooperação técnica com a Enana (empresa pública que administra os aeroportos de Angola). Assinado
pelo presidente da Infraero, Carlos Wilson Campos, e pelo diretor geral da Enana, Jorge dos Santos, o documento estabelece, em sua primeira etapa, que a empresa brasileira dará consultoria e formação profissional para os técnicos da empresa africana. Serão realizados estudos para modernizar os aeroportos angolanos, além de implementar o modelo operacional brasileiro. Conforme os resultados da primeira etapa, a Infraero e a Enana
definirão novos compromissos. Para Campos, o acordo representa um primeiro passo na meta de internacionalizar a empresa: “Administramos os maiores aeroportos da América do Sul. Nossa tecnologia é reconhecida no exterior. Agora é o momento de transferirmos este know how, principalmente para os países que guardam relações culturais, políticas e econômicas com o Brasil. Angola é apenas o começo”. (PPL)
Hoje, segundo o presidente Lula, o desafio de promover a inclusão e a igualdade social aproxima os países. Em São Tomé, cerca de 54% da população vivem na pobreza; em Angola, 60%; em Moçambique, 70%. Estes últimos países viveram décadas de guerra civil, que provocou a morte de milhões de pessoas e deixou um exército de viúvas e mutilados. É nesse sentido que o presidente defende a necessidade de estender a todos, brasileiros e africanos, os benefícios da cidadania plena, garantindo o exercício de todos aos direitos humanos, não apenas os políticos, sociais e econômicos. “Temos muito a aprender com a troca de experiências. Podemos desenvolver soluções inovadoras para problemas comuns”, afirmou Lula. “O combate à fome e à pobreza é uma tarefa inadiável. É necessário uma nova aliança mundial contra a exclusão social. Para isso, precisamos fortalecer nossas capacidades de articulação nos organismos internacionais.” Lula defende que o Brasil é uma grande potência econômica, “mas grande parte da elite sempre olhou para a Europa ou os Estados Unidos, colocando a América Latina e a África em segundo plano. Temos que ter um gesto de grandeza e de solidariedade ajudando os países mais pobres”.
13
De 6 a 12 de novembro de 2003
NACIONAL MOVIMENTOS SOCIAIS
Crianças brincam de transformar o país Áurea Lopes da Redação
Douglas Mansur
Filhos de sem-terra e de sem-teto se reuniram para refletir, em meio a muita diversão, sobre as sementes transgênicas
C
rianças que sonham: “Quando crescer, quero ser bailarina ou cantora”, avisa Katiane, de 8 anos. Crianças que conhecem bem o mundo real: “Quero ser engenheira agrônoma para ajudar meus pais”, planeja Tatiana, de 12 anos. O III Encontro Estadual dos Sem-Terrinha e dos Sem-Tetinho de São Paulo reuniu, de 3 a 5 de novembro, centenas de crianças para as quais o futuro é tão incerto quanto o presente. Por isso, elas fizeram desenhos coloridos, cantaram e dançaram por um Brasil onde haja mais justiça social. Filhos de famílias rurais acampadas ou de moradores de ocupações urbanas, muitos desses meninos e meninas estiveram “a vida inteira” em busca de um lugar onde crescer. Terceira geração de populações assentadas, Ana Gabriela, de 10 anos, tem pais e avós integrantes do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Já morou em três acampamentos e agora está no Assentamento 17 de abril, na cidade de Restinga. Depois de tantas “mudanças”, Ana comemora: “Não temos mais que sair de casa”.
SEM DESTINO
ainda não sabem de seu destino. Despejados do acampamento da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, hoje dois irmãos estão no acampamento Santo Dias, e um mora com uma tia. “Esse negócio de sair do acampamento não é bom porque você perde as coisas. A gente perdeu um saco cheio de roupas!”, protesta Andrea. Mas Davi é quem mostra o maior prejuízo: “Eu ia no prezinho quando estava em São Bernardo. Agora não tenho mais escola”.
Estudo é prioridade no Acampamento Jair Ribeiro, em Presidente Epitácio. Durante a semana, as crianças vão à escola na cidade; aos sábados e domingos, acontece o Projeto Criança Educando Criança, em que as crianças mais velhas ensinam as menores. “A gente tem aulas de reforço de todas as matérias”, explica o “aluno” Cristian, de 10 anos, estudante da terceira série. “E logo mais vão ter também aulas de música e dança”, completa
o “professor” André, de 12 anos, estudante da quinta série. Além das disciplinas do currículo escolar, o projeto inclui noções de questões sociais, como a reforma agrária e programa Fome Zero. O tema “Sementes: Patrimônio da Humanidade. Sem-terrinha: sementes de um Brasil soberano” foi desenvolvido no encontro de São Paulo e também nos encontros de outros Estados, como Pernambuco e Rio Grande do Sul. Por meio de
brincadeiras e atividades culturais, os sem-terrinha de todo o país refletiram, este ano, sobre os efeitos dos organismos geneticamente modificados (OGMs) no corpo humano e na terra. Representando a colheita de trigo na apresentação teatral ence-nada durante o encontro de São Paulo, Diane, de 12 anos, não sabe a definição científica de OGM. Mas captou a essência do problema: “Transgênica é a semente de laboratório, que faz mal para a vida da gente”.
Douglas Mansur Douglas Mansur
Os dois amigos Danilo e Tiago também gostam de suas casas – até porque não têm muitas referências para comparar: passaram os treze anos de suas vidas no Assentamento Bela Vista, “onde é muito legal porque todo mundo tem lote”. Nem todos os participantes do Encontro, porém, têm uma história com final feliz. Os irmãos Davi, de 6 anos, Gabriel, de 7, e Andrea, de 12,
Gabriel, Andrea e Davi: depois do despejo de São Bernardo, não têm mais escola
Ney Vital
Diane (à direita): transgênica é a semente de laboratório que faz mal
Passeata animada no encontro dos sem-terrinha em Recife (PE)
Leonardo Melgarejo
André e Cristian: professor e aluno no projeto Criança Educando Criança
Jogos e teatro no encontro das crianças em Porto Alegre (RS)
14
De 6 a 12 de novembro de 2003
DEBATE POLÍTICA AMBIENTAL
Por um Brasil sustentável É preciso, ainda, pensar em um país multivocacionado, que plante soja sem, entretanto, destruir o cerrado e a floresta para resolver a pressão por terra e a produção de saldos comerciais. Um país que se orgulhe de seu programa espacial, mas que não ignore, como hoje, as 300 famílias que foram, na prática, expul-
sas de suas terras em Alcântara, sem nenhuma salvaguarda social. Um país que acorde para a realidade desumana da concentração da terra e do desemprego em massa e reconheça o MST como o mais importante movimento social da nossa história contemporânea. Não podemos pactuar com o modelo de um Brasil “primeira classe” excluindo a maioria de nossa gente, configurando um “aparthaid social” exemplar dos novos tempos globalizados. Enfim, não basta construir uma política ambiental restrita. Nosso desafio é caminhar no rumo de uma política nacional soberana de desenvolvimento sustentável em superação ao quadro atual de um País neocolonizado por uma dívida pública que vem significando nosso suicídio como nação. Enfim, nossa geração vive o desafio de pensar, mais uma vez, a mudança social. Esse é o sentido amplo que proponho seja dado à política ambiental. João Alberto Capiberibe (PSB) é senador e ex-governador do Amapá
er
V
transgênica da Monsanto. A “solução” pragmática afrontou o Judiciário e ignorou sérias razões de mercado a favor da soja convencional. São incógnitas da mesma equação. Um modelo de desenvolvimento sustentável para o Brasil precisa considerar micropolíticas locais e ampliar, por exemplo, as experiências de economia solidária. Ao mesmo tempo, é fundamental uma macrovisão continental. Cito como exemplo a cooperação democrática com nossos vizinhos, do Mercosul ao Arco Norte e a integração sócio-econômica de mais de 20 milhões de amazônidas em projetos de cidadania e exploração sustentável da floresta.
pp
ivemos uma conjuntura de transição. O Brasil neoliberal, derrotado nas urnas, só pode transitar para um Brasil sustentável se a sociedade civil organizada avançar na agenda ambiental. É fundamental entender que a vitória eleitoral de outubro de 2002 abriu um novo espaço político que precisa ser construído. Vejamos o caso da Amazônia. Em meados do primeiro semestre, o presidente Lula anunciou no Acre, com a presença da maioria dos governadores nortistas, o PAS – Programa Amazônia Sustentável. É, sem dúvida, uma boa notícia, embora ainda não tenha empolgado nem o governo e nem a sociedade civil. Também resta inconclusa a tarefa de erguer sob novos paradigmas as agências de desenvolvimento regional, contra o modelo concentrador de renda e baseado em megaprojetos que prevaleceu até agora, ignorando totalmente as populações locais. No caso da questão amazônica, não podemos continuar a tratá-la sem considerar a questão do desenvolvimento nacional como um todo. A maior parte da madeira extraída é consumida por nós mesmos, na região SudesteSul, por exemplo. A verdade é que somos um país autofágico. Estamos destruindo rapidamente nossa biodiversidade em benefício de um modelo de desenvolvimento convencional – consumista e excludente. Somos uma potência ambiental. No entanto, não estamos investindo na pesquisa e na criação de cadeias produtivas que valorizem nossa biodiversi-
dade. Ao contrário, exportamos nossa natureza. Nossa integração ao mercado global persiste, em grande parte, no padrão colonial, vendendo insumos primários às economias altamente industrializadas. Precisamos refletir e agir sobre o País como um todo e não segmentar a realidade como se o Brasil fosse uma incógnita, cuja resposta emergiria da mera soma dos projetos (sem recursos) do PPA. Os neoliberais, muitos deles agora na condição de cristãosnovos recém chegados ao poder, insistem na visão gerencial da questão brasileira: listar problemas e achar soluções pontuais, sem horizonte e nenhum critério de justiça social. Um péssimo exemplo dessa atitude política foi a pressão que resultou na edição da Medida Provisória 131 a favor da soja
Ki
João Capiberibe
Uma luta pelo ecossocialismo João Alfredo Telles Melo este ano, pela primeira vez no Brasil, se realizará uma conferência nacional – precedida de conferências regionais e estaduais preparatórias – para debater os grandes temas ligados ao meio ambiente e ao desenvolvimento em nosso país. A Conferência Nacional do Meio Ambiente – com o tema “Vamos cuidar do Brasil” – pretende, via participação popular, debater a “sustentabilidade ambiental à luz do aperfeiçoamento e consolidação do Sistema Nacional do Meio Ambiente”, sob a coordenação da ministra Marina Silva. Os acontecimentos das últimas semanas, em que se evidenciou uma tensão envolvendo a política ambiental no governo Lula, devem merecer de todos nós uma corajosa e vigorosa reflexão, onde a edição da Medida Provisória 131 e a conseqüente desfiliação do companheiro Fernando Gabeira são apenas os últimos e mais visíveis indicadores dessa crise. Se, por um lado, é verdade que Gabeira não se inscreve entre os militantes históricos de nosso partido (fundador que foi do Partido Verde), a sua presença no PT – pela referência construída no debate e na militância ambientalista – simbolizava a adesão de nosso partido e, em conseqüência, do nosso governo, às propostas sócio-ecológicas gestadas no seio das lutas sociais. Sua saída, portanto, tomou grandes proporções. Isto porque a insatisfação de Gabeira veio a traduzir o desconforto, hoje cada vez mais crescente, do movimento ambientalista, de parlamentares e até de setores do próprio gover-
N
r
pe
Kip
no, com os impasses na política ambiental. A liberação da importação de pneus usados, a não votação do projeto de lei de proteção à Mata Atlântica e a permissão do plantio de transgênicos por medida provisória significaram não só derrotas do movimento ambientalista, mas também retrocessos institucionais e uma tentativa de enfraquecimento do Ministério do Meio Ambiente. Aliás, há um consenso na sociedade de que temos um bom programa de meio ambiente, uma excelente ministra (e equipe), mas a questão ambiental não foi encarada, ainda, como uma matriz fundamental nas políticas públicas de nosso governo (às vezes, é até encarada, por alguns, como um obstáculo às políticas de crescimento econômico). A propósito, a transversalidade – ou seja, a adoção da visão sócio-ecológica do desenvolvimento sustentável por todos os setores do governo – foi um dos desafios a que se propôs Marina
Silva, em seu discurso de posse. No entanto, as derrotas acima relacionadas denotam que essa visão ainda não foi incorporada pelo conjunto do nosso governo. Aqui é que se encontra o xis da questão: há uma disputa de projetos, de idéias, de visões, de classes, no governo Lula. O ministro Roberto Rodrigues, que forçou a barra, desde o início do
governo Lula, pela liberação dos transgênicos, é o mesmo que combate publicamente o MST e que critica a linha de independência do Itamaraty nas negociações sobre a Alca. É por isso que, com acerto, os movimentos sociais (Via Campesina à frente) e parlamentares têm se manifestado não só contra as ações do referido ministro, mas também pela sua exoneração. Portanto, é nesse quadro de disputa que se realizará, no final de novembro, a 1ª Conferência Nacional do Meio Ambiente. O que queremos é fortalecer a visão e as ações do nosso ministério, que tem avançado em parcerias com outros órgãos do governo em aspectos importantes: como o combate à desertificação, a dis-
cussão e execução de uma política de desenvolvimento sustentável para a Amazônia, a implantação da Agenda 21 nos municípios brasileiros e a edição de uma lei de biossegurança que leve em conta o Princípio de Precaução, a Convenção da Biodiversidade e o Protocolo de Cartagena. Aliás, foi esse ministério que garantiu a criação, no Estado do Ceará, da primeira reserva extrativista de pescadores, em Batoque, no município de Aquiraz. Queremos fortalecer, principalmente, a participação popular que se dará não só no momento da(s) conferência(s), mas principalmente na formulação, execução e acompanhamento da política ambiental. Além disso, há outros grandes desafios a serem tratados na Conferência: a proliferação desenfreada e predatória da carcinicultura (criação de camarões em cativeiro) em praticamente toda a região Nordeste, o turismo desordenado que ameaça as dunas e falésias de nosso litoral e a interface de políticas sociais com o meio ambiente em setores importantes da nossa luta, como a reforma agrária. É nos movimentos sociais – atores fundamentais no processo da Conferência – que temos que depositar as esperanças de mudança em nosso País, na perspectiva da construção de uma sociedade politicamente democrática, ecologicamente sustentável, humanamente diversa e socialmente igualitária. Um Brasil ecossocialista. João Alfredo Telles Melo é deputado federal (PT/CE), coordenador do núcleo de meio ambiente da bancada do PT
15
De 6 a 12 de novembro de 2003
AGENDA CEARÁ SEMINÁRIO – A POLÍTICA DE LIMPEZA URBANA DE FORTALEZA E REGIÃO METROPOLITANA, NA PERSPECTIVA DA GESTÃO DEMOCRÁTICA Dia 7, das 8h às 18h Pela manhã haverá uma mesa-redonda sobre “A gestão do lixo nas cidades brasileiras”, com o presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (ABES), Francisco Humberto Carvalho Júnior. À tarde acontecerá um painel de experiências, com a participação da Cáritas Arquidiocesana, do Emaús, e das comissões de meio ambiente da Assembléia Legislativa e da Ordem dos Advogados do Brasil. Os objetivos do seminário são: discutir a política de limpeza urbana de Fortaleza e seus impactos na região metropolitana; os desafios atuais e as alternativas encontradas pelas cidades brasileiras; refletir sobre o papel da gestão democrática frente à questão da limpeza urbana. O evento é uma realização conjunta do Instituto da Cidade, Cáritas Arquidiocesana, Federação de Bairros e Favelas de Fortaleza, Cearah Periferia, Nuhab, Centro Socorro Abreu, ABES e Cefet-CE. Local: Santos Dumont, 2989, Fortaleza Mais informações: (85)224-5250, institutocidade@fortalnet.com.br 1º CONGRESSO ESTADUAL DA JUVENTUDE CONTEMPORÂNEA De 7 a 9 O tema do congresso é “Ousar é descobrir caminhos”, e o objetivo, fortalecer a atuação das organizações juvenis no Estado. Haverá oficinas, mostra de experiências dos participantes, apresentações culturais, painéis sobre cidadania,
humanidade e ética, e um talk show sobre democracia . Participará Reginaldo Lopes, presidente da Comissão Especial de Políticas de Juventude da Câmara Federal. O congresso é uma realização do Instituto da Juventude Contemporânea (IJC), em parceria com o Unicef e apoio da Prefeitura de Quixadá, Benfam, Ensine, Seduc e Sejub. Local: Pascual Crispino, 297, Centro, Quixadá Mais informações: (85) 247-7089, ijc@ijc.org.br II FÓRUM POPULAR DAS COMUNIDADES DO OTÁVIO BONFIM Dia 9, das 8h30 às 13h O tema do fórum é “Avançar com os pés no chão”. Durante o evento, serão abordadas as temáticas: economia solidária e reciclagem de lixo. Haverá ainda um aprofundamento de questões como qualidade de vida, emprego e renda. Será montada uma exposição de matérias jornalísticas sobre enfretamentos e denúncias realizadas a partir da organização popular. O evento é uma promoção do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Raízes e Asas, com o apoio de pastorais sociais e de movimentos populares. Local: Praça Farias Brito, s/n, Otávio Bonfim. Mais informações: (85) 243-6280
DISTRITO FEDERAL I CONFERÊNCIA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE De 28 a 30 Realizada pelo Ministério do Meio Ambiente, a conferência tem como tema “Vamos cuidar do Brasil - Conferência Nacional InfantoJuvenil pelo Meio Ambiente”. Os objetivos são mobilizar, educar e ampliar a participação popular na formulação de propostas para um
agenda@brasildefato.com.br
SEMINÁRIO UNIVERSIDADE: REFORMA OU REVOLUÇÃO? Dia 15, das 9h às 17h O lema do seminário é “Livre acesso do povo à universidade, abaixo o vestibular!”, e terá como debatedores José Lucas (UPE), Ariovaldo Umbelino (USP), Guilhermo Denaro (Coordenação de Movimentos Sociais), Aton Fon Filho (Renap), Ivan Valente (deputado federal). Local: Sintaema, Av. Tirandentes, 1343, São Paulo Mais informações: (11) 3105-2516
Brasil sustentável, fortalecendo o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), que deve se consolidar como um instrumento para a construção da sustentabilidade ambiental. Participarão representantes dos governos federal, estaduais e municipais, dos poderes legislativo e judiciário, de empresas, universidades, comunidades tradicionais, organizações não-governamentais, entre outros setores da sociedade. Local: SAS, quadra 5, BI: H, sala 804, Brasília Mais informações: (61) 325-6800, www.mma.gov.br
ESPÍRITO SANTO FESTIVAL ESTUDANTIL DE TALENTOS Dia 8 Espetáculos de música, desenho, pintura, artesanato, poesia, dança, congo, capoeira, pirofagia e saltos de parapente do alto do Mochuara. Para participar do evento, as bandas estudantis criaram composições com temas ligados à ética. Além das apresentações dos alunos, o público também poderá desfrutar de shows com as bandas
D6 e Forró Raiz. O evento, realizado pelo Colégio Castro Alves, visa valorizar os alunos de escolas públicas e privadas do Estado que desenvolvam algum tipo de manifestação cultural, além de integrar os alunos do ensino fundamental e do ensino médio. Local: Sítio do Colégio Castro Alves, Cariacica Mais informações: (27) 8801-2421
RIO GRANDE DO NORTE EXPLORAÇÃO SEXUAL De 19 a 21 I Congresso Nacional em busca de novos olhares sobre a exploração sexual comercial contra crianças e adolescentes no Brasil irá reunir especialistas, técnicos, educadores e cientistas. O congresso pretende estimular novas pesquisas sobre o assunto e contribuir para a qualificação do debate público. Local: Hotel Praia Mar, R. Francisco Gurgel, 33, Natal Mais informações: www.ideiaseventos.com.br
RIO GRANDE DO SUL DEBATE: REFORMA DA
PREVIDÊNCIA Dia 7, 19h Promovido pelo Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no RS (Sintrajufe), o debate será com o senador Paulo Paim (PT/RS) Local: R. Celeste Gobbato, 229, Porto Alegre Mais informações: comunicacao@sintrajufe.org.br DEBATE: ECONOMIA SOCIAL - SOLIDÁRIA Dia 7, 19h Tarso Genro, ministro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, será um dos debatedores, juntamente com o coordenador de Relações Internacionais da Prefeitura de Barcelona (Espanha), Gabriel Abascal; a integrante da Cooperativa Univens, Nelsa Néspolo; o diretor da União e Solidariedade das Cooperativas de São Paulo (Unisol). A atividade será mediada pelo coordenador do Centro de Educação Popular, Mauri Cruz e pelo integrante da Agência de Desenvolvimento da CUT, Lauri Weber. Local: Avenida Mauá, 1013, 10º andar, Centro, Porto Alegre Mais informações: (51) 3364-1298, 3364-5200, cooperativaunivens@ig.com.br
SÃO PAULO NOITES CULTURAIS: O BRASIL CAIPIRA Dia 8, às 19h Durante a atividade haverá uma apresentação da Orquestra Filarmônica de Viola da cidade de Campinas e um bate-papo sobre cultura caipira. Organização: curso Realidade Brasileira e Jornal Brasil de Fato. Local: Universidade de São Paulo, R. Luciano Gualberto, Travessa J, nº 374, São Paulo Mais informações: realidadebrasileira@terra.com.br
16
CULTURA
De 6 a 12 de novembro de 2003
SAMBA
Fotos: Renato Stockler
Na palma da mão, a resistência do povo Na periferia sul de São Paulo, artistas anônimos e amigos famosos se juntam. Sob a luz da vela, cantam a transformação social em ritmo de samba Claudia Jardim da Redação
SAMBA E SOPA
À
luz da vela, a cultura popular brasileira ressurge onde muitos olhos preferem não ver. A periferia de Santo Amaro, bairro da zona sul de São Paulo (SP), é o palco do resgaste da música há muito esquecida e esmagada pela indústria cultural. Mas os músicos do Samba de Vela estão lá, certos de que o samba, além de diversão, acima de tudo é instrumento de formação política e transformação social. A vela que dá nome ao samba serve de relógio. Quando a chama apaga, a música deve parar. Na Casa de Cultura de Santo Amaro, a comunidade é ao mesmo tempo artista e jurada, pois decide o que deve ou não ser tocado. Diferente de qualquer “moderna” roda de samba, a atenção, o respeito e a ansiedade em descobrir o novo roubam a cena. No momento em que o compositor apresenta a letra, o silêncio é total. O sambista integra-se à roda e conta a história da música. Depois de cantado, o samba finalmente ganha o ritmo dos instrumentos. Cresce, embalado pelas batidas da palma da mão e pelo coro dos artistas que emergem ali. Fotos de Cartola, dona Ivone Lara, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha e outros bambas da velha guarda enfeitam as paredes da Casa de Cultura. Os mestres do samba são fontes de inspiração para esses brasileiros, moradores do “lado de cá da ponte”, como costumam dizer. Os sambas novos são cantados durante dois meses e depois de selecionados, vão para o livro, para serem tocados regularmente por mais dois meses.
RESISTÊNCIA “Samba não tem de ter fórmula, depende do compositor. O que o Samba da Vela faz é valorizar a qualidade”, avalia Victor Pessoa. No entanto, ele ressalta que o compromisso político é fundamental. “A denúncia está nas letras. Se o sambista fala do barraco, ele já está protestando. As grandes composições sempre foram engajadas politicamente”. O posicionamento político exige esforço. Para chegar a Santo Amaro, Victor, acompanhado dos irmãos Everson e Yvison, sai de outra periferia – o bairro de São Mateus, na zona leste da capital Paulista. Eles percorrem cerca de 40 quilômetros e atravessan uma das pontes que corta o Rio Tietê para se juntarem à Magnu Sousá e Maurílio Oliveira. Juntos, formam o Quinteto em Preto e Branco. No Samba da Vela, música é sinônimo de resistência. Nas letras, nas discussões que acontecem entre uma música e outra ou nas poesias, quase 100 pessoas pensam nos rumos da sociedade. “A história do povo é feita assim. Zumbi, Che Guevara, Canudos são exemplos de que é preciso mudar, e o Samba da Vela é um aparelho cultural de resistência”, afirma o poeta Sérgio Vaz. Para Magnu Sousá, apesar da manipulação das mídias, que não revelam as raízes e a diversidade musical do país, o samba é essencial para a conscientização do povo: “É o veículo ideológico de manifestação popular. Cada país tem sua verdade musical, e a do Brasil é o samba genuíno”. Sousá completa: o resgate da cultura popular acontecerá no momento em que as
que faz um controle de qualidade. “Samba bom tem de trazer alguma mensagem. A letra não pode ser em vão”, diz Lopes. Ele lembra que muitos músicos não tinham espaço para apresentar seus trabalhos. Com ironia e consciência, declara: “Agora podemos mostrar que a periferia tem seu valor. Não adianta ter rostinho bonito na TV e não ter essência. Gente burra é mais fácil de enrolar. Por isso temos de fazer diferente”.
A vela é o “relógio” do encontro músical: quando a chama apaga, o samba termina
pessoas despertarem e descobrirem sua história.
POESIA POLÍTICA Em Santo Amaro, de repente o samba é interrompido e os poetas do povo começam a se levantar e recitar seus poemas. Os mais jovens usam a acidez e a agilidade típica do hip-hop, até recentemente o mais usado meio de protestos. Outros músicos, não menos críticos, colocam em verso a realidade da periferia, do cotidiano, dos sonhos. Luiz Sérgio Oliveira fazia algumas poesias, que guardava na gaveta e na memória. Certo dia, tomou coragem e recitou um de seus poemas. Agora ele é o Serginho Poeta, um dos destaques do reduto de samba. “É fundamental envolver a comunidade. Aqui conseguimos criar um espaço de reflexão e vemos a juventude ser influenciada por esses meninos, como o Quinteto, que mostram ser possível fazer diferente”, comenta.
Uma média de 100 pessoas se reúnem as segunda-feiras no Samba da Vela
A roda tem dado frutos. William Lopes, de 20 anos, passou a freqüentar o samba, aprendeu a tocar percussão e está sempre com os
“veteranos”. A nova concepção de música e de sua importância se reflete no entusiasmo dos jovens. E também na visão crítica,
Entre uma canção e um pouco de discussão, Everson começa a contar a história do novo samba, que fez com o irmão Victor. Nada de desilusões amorosas ou amenidades. A letra fala de reforma agrária, sobre o acordo da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e sobre os transgênicos. Depois de explicar a importância da reforma agrária e tentar desmistificar “verdades” contadas pela imprensa burguesa, a realidade brasileira recebe musicalidade. Em pouco tempo todos já marcavam na palma da mão o novo samba. Enfim, a vela apaga. “Quando a vela acaba, o povo chora”, grita Maurílio, para encerrar mais uma noite cultural. Como se fosse ensaiado, as pessoas se levantam. Enquanto a última música toca, as cadeiras são colocadas umas sobre as outras. Ao final da música, o salão já está livre. Começa a se formar a fila da sopa. “Não existe samba sem comida”, conta Magnu, que teve a idéia de fazer a sopa. Até nisso o Samba da Vela se inspira na velha guarda, para quem os sambas sempre foram acompanhados de comida. E esse não podia ser diferente: lembra os mestres que faziam várias receitas, como nos encontros na casa de Candeio, compositor da Portela, no Rio de Janeiro. Depois da vela e da sopa, os quadros saem das paredes e as luzes se apagam. A comunidade parte, à espera da próxima segunda-feira.
O dia em que acenderam a vela Quando Chapinha, Paquera, Magnu e Maurílio se reuniam no bar Ziriguidum, o samba não tinha hora para acabar. Eles cantavam os novos sambas, conversavam sobre as realidades do bairro de Santo Amaro e, entre um verso e outro, invadiam a madrugada cercados de alguns amigos que também apreciavam o samba tradicional que tentavam resgatar. Mas, o que fazer para terminar? Foi então que o compositor Paquera teve a idéia de acender a vela, que, totalmente consumida, marcaria o fim do encontro. “Enquanto houver uma chama acesa o samba se renovará, essa é a nossa certeza”, diz uma das composições. Assim nasceu o Samba da Vela, que há mais de três anos contribui para resgatar a história da cultura popular brasileira na periferia de São Paulo. A partir daí, os compositores começaram a construir um espaço de formação cultural e a chamar a comunidade para participar. “No começo o pessoal ficava de pé. Isso incomodava, tinha de sentar junto. Aí um foi puxando a cadeira, o outro também, e se formou uma grande roda”, conta Maurílio Oliveira. E acrescenta: “ Depois que a Beth Carvalho apareceu, o Samba da Vela tomou dimensão”.
MADRINHA DE PESO Da sombra da tamarineira do Cacique de Ramos (RJ) – onde surgiram grandes nomes como Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra e Fundo de Quintal – à periferia da zona sul de
Quinteto em Preto e Branco com a madrinha Beth Carvalho: samba sobre transgênicos, Alca e reforma agrária
São Paulo. A história do samba e suas gerações se confundem com a de Beth Carvalho, madrinha do Quinteto em Branco e Preto e de tantos outros da velha guarda. Um dia, ela foi conhecer o pagode na zona sul paulistana e passou a freqüentar o Samba da Vela. “A madrinha veio somar para que mantivéssemos a linhagem do samba tradicional e nos ajudar na formação política também”, explica Yvison Pessoa, percussionista e compositor do Quinteto. Com o tempo, a idéia de formação política e de conscientização popular foi crescendo junto com o
samba e seus novos artistas. Chapinha, um dos comandantes da roda, se entusiasma com a participação da juventude e cobra do artista sua responsabilidade. “Música é cultura e temos que nos preocupar. Fazer samba é falar da verdade com que a população vive”, afirma. Ao envolver a comunidade, quem não era sambista passou a ser. “Aqui a gente vê a ansiedade das pessoas em mostrar o que fizeram. Com isso eles se entusiasmam para compor, colocar as idéias no samba ou na poesia. Em todo lugar tem um artista, basta dar oportunidade”, comenta Yvison. Seu irmão
Victor acrescenta: “Toda arte vem do povo, quem diz o contrário mente”. A escritora e agora compositora Sônia Pereira conta entusiasmada que já compôs duas músicas. Apesar de ouvir samba desde pequena, nunca pensou em fazer um. Ao ver a participação da comunidade e o interesse em descobrir o trabalho do outro, tomou coragem e já tem mais dois sambas inéditos a apresentar. “O que acontece aqui é coisa de comunidade mesmo. Apesar de não acreditar em democracia, se ela um dia existir, será algo parecido com isso”, diz. (CJ)