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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 8 • Número 361

São Paulo, de 28 de janeiro a 3 de fevereiro de 2010

R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Leandro Silva

Indústria de cana inunda terras em Moçambique De olho no clima e nas terras favoráveis, o mercado internacional tem estimulado Moçambique a investir na produção da cana-de-açúcar. Como efeito da pressão internacional, áreas de plantação de alimento têm sido substituídas pela monocultura. No distrito de Minhaça, a empresa sul-africana Maragra inundou terras de pequenos agricultores impondo como condição para solucionar o problema a plantação de cana. Pág. 11

Coca-Cola é acusada de poluir rio no Espírito Santo Vizinhos da fábrica Mais Indústria de Alimentos, propriedade da transnacional CocaCola, e famílias ligadas ao Movimento dos Pequenos Agricultores têm denunciado o despejo de efluentes no córrego das Pedras. Com mais de seis anos de contaminação, a fábrica põe em risco fontes de água usadas para o consumo humano. Pág. 6

Portos e outros projetos no RJ devastam a mata atlântica

Mais de 10 mil pessoas percorreram os 4,8 km que ligam o Largo Glenio Peres à Usina do Gasômetro durante a Marcha do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre

Esquerda debate cenário mundial e avalia o papel do Fórum Social A 10ª edição do Fórum Social Mundial começou no dia 25 de janeiro, em Porto Alegre, com um clima de balanço. Em meio a debates sobre a conjuntura mundial, os participantes do encontro na capital gaúcha se aprofundam numa avaliação sobre o papel do Fórum. Enquanto alguns querem manter a metodologia atual, de debates e atividades que construam discursos e parcerias, outros cobram mais preocupação com a ação concreta. Em entrevista, o cientista político belga Éric Toussaint alerta

para o risco de “um debate sem fim que paralisa mais que ajuda” e sugere que, se o Fórum não permite a definição de prioridades e estratégias comuns,“deve-se construir outro instrumento, não eliminando o Fórum”. Já em Davos, na Suíça, acontece a 40ª edição do Fórum Econômico Mundial. Na pauta, o controle do sistema financeiro para enfrentar e superar a crise. Para analistas, as medidas na verdade serviriam para garantir a sobrevivência do capitalismo, ou seja,“mudar para permanecer igual”. Págs. 3, 4, 5 e 9 André Vicente-Folha Imagem

Serra e Kassab perseguem moradores de bairro alagado

Diversas obras em andamento no Estado do Rio de Janeiro são alvo de críticas por parte de ambientalistas. Os portos do Açu e do Sudeste, além de outros empreendimentos, demandarão um reflorestamento de 55,7 km² de mata atlântica. Algumas obras não têm estudo de impacto ambiental. Pág. 8

Faixa erguida em rua alagada do Jardim Romano em protesto contra a prefeitura Divulgação

Para o governador José Serra (PSDB) e o prefeito Gilberto Kassab (DEM), nada pode atrapalhar a construção do Parque Linear do Rio Tietê, em São Paulo. As casas que impedem a empreitada “precisam” ser demolidas. Os moradores do “Pantanal”, região inundada desde 8 de dezembro de 2009, acusam ambos de serem omissos em relação às causas do alagamento. Do modo mais apressado e sem planejamento, pessoas que vivem há décadas na região têm sido forçadas a sair do local. Pág. 7 Vinícius Mansur

Na Bolívia, o horizonte é o socialismo Um novo mandato concedido pelo povo boliviano a Evo Morales foi ratificado no dia 24 de janeiro. O próximo passo é aprofundar a comunitarização da riqueza e a capacidade de mobilização da população boliviana. “Nosso horizonte estatal é socialista”, afirmou o vice. Pág. 10

O fim de Avatar

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ISSN 1978-5134

Na Bolívia, Amautas se reúnem diante do templo de Kalasasaya à espera de Evo Morales


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editorial A HISTÓRIA JÁ é tão bem conhecida que se torna monótona: o governo Chávez suspende os direitos de transmissão de meios de comunicação venezuelanos por descumprirem as leis do país. Como consequência, cria-se uma “gritaria” internacional com o objetivo de denunciar o governo Chávez como “autoritário”, “totalitário”, “ditatorial” etc. No caso, trata-se da RCTV e outras cinco emissoras que transmitem por cabo (os direitos de transmissão por canal aberto da RCTV foram suspensos em 2007). Elas se recusaram a retransmitir um discurso de Chávez, contrariando determinações recentemente aprovadas pela Conatel (Comissão Nacional de Telecomunicações), que obriga as emissoras a levar ao ar programas oficiais sempre que solicitadas. Além disso, desrespeitaram a regra que determina a transmissão de um aviso com a qualificação etária para a transmissão de telenovelas (norma que vigora inclusive no Brasil). O novo episódio seria exatamente igual a tantos outros se a punição não tivesse causado baixas importantes no governo: renunciaram o vice-presidente e ministro da Defesa Ramón Carrizález (no cargo de vice desde janeiro de 2008) e sua

debate

Burocratas ameaçam a revolução na Venezuela mulher, Yuribí Ortega, ministra do Meio Ambiente. Carrizález, amigo de longa data de Chávez, alegou motivos “estritamente pessoais” para a renúncia, assim como sua mulher. Mas ninguém acredita nisso. O gesto do casal está sendo interpretado como um sintoma da grave crise que hoje ameaça a estabilidade do governo Chávez. Na esteira da renúncia do vice-presidente e da ministra do Ambiente, o presidente do Banco da Venezuela, a maior entidade financeira sob controle do Estado, gerou ruídos em torno da estabilidade financeira do país. Eugenio Vázquez Orellana anunciou, porém, que vai deixar a instituição por motivos de saúde. Os sinais da crise aparecem por todos os lados. Em 2009, a Venezuela registrou uma queda de 2,9% do PIB, na primeira recessão em cinco anos, e sofre com um racionamento de energia. Há duas semanas, Chávez anunciou a maior desvalorização da moeda nacional,

o bolívar, desde 2003, medida que tenderá a aumentar a inflação. Para além dos índices econômicos, que causam frustração em boa parte da população, há um clima de pessimismo mesmo entre os apoiadores de Chávez. Basta notar que houve um elevado índice de abstenção na eleição, realizada no final de 2009, para os delegados do Congresso do Partido Socialista Unificado da Venezuela, liderado por ele (mais de 52% dos habilitados para votar não o fizeram, segundo dados oficiais). Além disso, altos funcionários do governo são abertamente criticados como incompetentes, autoritários, eventualmente corruptos e responsáveis diretos por muitos dos problemas urgentes que afetam a população. A crise afeta a qualidade dos serviços oferecidos pelo sistema de saúde pública, apesar dos imensos investimentos feitos pelo governo no setor. O mesmo pode ser dito dos programas de habitação

crônica

Ignacio Ramonet

Estados Unidos já têm 13 bases militares em torno da Venezuela Gama

A CHEGADA DE Hugo Chávez ao poder, na Venezuela, em 2 de fevereiro de 1999, coincidiu com um acontecimento militar traumático para os Estados Unidos: o fechamento de sua principal instalação militar na região, a base Howard, situada no Panamá (fechada em virtude dos Tratados Torrijos-Carter, de 1977) Em troca, o Pentágono escolheu quatro localidades para controlar a região: Manta, no Equador; Comalapa, em El Salvador, e as ilhas de Aruba e Curazao (de soberania holandesa). A suas – por assim dizer –“tradicionais” missões de espionagem, acrescentou novas atribuições oficiais a essas bases (vigiar o narcotráfico e combater a imigração clandestina para os EUA) e outras tarefas encobertas: lutar contra os insurgentes colombianos; controlar os fluxos de petróleo e minerais, os recursos de água doce e a biodiversidade. Mas, desde o início, seus principais objetivos foram vigiar a Venezuela e desestabilizar a Revolução Bolivariana. Após os atentados de 11 de setembro de 2001, o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, definiu uma nova doutrina militar para enfrentar o “terrorismo internacional”. Modificou a estratégia de deslocamento no exterior, fundada na existência de enormes bases dotadas de numeroso pessoal. E decidiu substituir essas megabases por um número mais elevado de Foreing Operating Location (FOL) e de Cooperative Security Locations (CSL), com pouco pessoal militar, mas equipado com tecnologias ultramodernas de detecção. Resultado: em pouco tempo, a quantidade de instalações militares estadunidenses no estrangeiro se multiplicou, alcançando a insólita soma de 865 bases de tipo FOL ou CSL distribuídas em 46 países. Jamais na história uma potência multiplicou de tal modo seus postos militares de controle para espalhar-se pelo planeta. Na América Latina, a reorganização de bases permitiu que a de Manta (Equador) colaborasse com o fracassado golpe de Estado de 11 de abril de 2002 contra o presidente Chávez. A partir daí, uma campanha midiática dirigida por Washington começou a difundir falsas informações sobre a suposta presença nesse país de céculas de organizações como Hamás, Hezbolá e até Al Qaeda. Com o pretexto de vigiar tais movimentos e em represália ao governo de Caracas, que, em maio de 2004, pôs fim a meio século de presença militar estadunidense na

popular, de energia elétrica e de abastecimento. Mesmo a reforma agrária caminha a passos de tartaruga, apesar da desapropriação de latifúndios importantes. A sensação que se tem nas ruas é que o governo não cumpriu quase nada ou, na melhor das hipóteses, cumpriu muito pouco do que prometeu. É óbvio que isso tem um efeito desmoralizador e frustrante. Chávez multiplica os apelos para que o povo tome as rédeas do governo. Mas aí é que está o grande problema: como fazê-lo, quando todos os processos democráticos esbarram numa imensa máquina capitalista burocrática, corporificada pelo aparelho de Estado controlado por um punhado de funcionários que não estão nada interessados no desenvolvimento da revolução? Que ninguém se iluda: o Estado capitalista venezuelano ainda está em pé, por mais que tenha sido golpeado pelas reformas adotadas por Chávez nos últimos

Venezuela, o Pentágono ampliou o uso de suas bases militares nas ilhas de Aruba e Curazao, situadas muito perto das costas venezuelanas, onde ultimamente tem se incrementado a visita de navios de guerra dos EUA. Esse fato foi recentemente denunciado pelo presidente Chávez: “É bom que a Europa saiba que o império norte-americano está armando-se até os dentes, enchendo de aviões e navios de guerra as ilhas de Aruba e Curazao. (...) Estou acusando a Holanda de estar preparando, junto com o império ianque, uma agressão contra a Venezuela” (1). Em 2006, começa-se a falar em Caracas do “socialismo do século 21, nasce a Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA) e Hugo Chávez é reeleito presidente. Washington reage impondo um embargo sobre a venda de armas para a Venezuela, sob o pretexto de que Caracas “não colabora suficientemente na guerra contra o terrorismo”. Os aviões F-16 da Força Aérea Venezuela ficaram sem peças de reposição. Diante dessa situação, as autoridades venezuelanas estabeleceram um acordo com a Rússia para dotar a sua força aérea de aviões Sukhoi. Washington denunciou um suposto “rearmamento massivo” da Venezuela, omitindo que os principais orçamentos militares na América Latina, hoje, são os do Brasil, da Colômbia e do Chile. E que, a cada ano, a Colômbia recebe uma ajuda militar estadunidense de 630 milhões de dólares. A partir daí, os acontecimentos se aceleram. No dia 1° de março de 2008, apoiadas pela base de Manta, as forças colombianas atacam um acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), situado no interior do território do Equador. Quito, em represália, decide não renovar o acordo sobre a base de Manta, que vencia em novembro de 2009. Washington respondeu,

no mês seguinte, com a reativação da 4a Frota (desativada em 1948, há 60 anos...) cuja missão é vigiar a costa atlântica da América do Sul. Um mês mais tarde, os Estados sul-americanos, reunidos em Brasília, replicam, criando a União de Nações Sul-americanas (UNASUL) e, em março de 2009, o Conselho de Defesa Sul-americano. Algumas semanas depois, o embaixador do EUA em Bogotá anuncia que a base de Manta seria transferida para Palanquero, na Colômbia. Em junho, com o apoio da base estadunidense de Soto Cano, se produz o golpe de Estado em Honduras contra o presidente Manuel Zelaya, que havia conseguido integrar seu país na Alba. Em agosto, o pentágono anuncia que terá sete novas bases militares na Colômbia. E, em outubro, o presidente conservador do Panamá, Ricardo Martinelli, admite que cedeu aos EUA o uso de quatro novas bases militares. Desse modo, a Venezuela e a Revolução Bolivariana se veem hoje rodeadas por nada menos do que 13 bases estadunidenses na Colômbia, Panamá, Aruba e Curazao, assim como pelos porta-aviões e navios de guerra da 4a Frota. O presidente Obama parece ter deixado o Pentágono de mãos livres nesse tema. Tudo anuncia uma agressão iminente. Os povos da América Latina consentirão que um novo crime contra a democracia seja cometido na região? (1) Discurso no Encontro da Alba com movimentos sociais da Dinamarca, em Copenhague, dia 17 de dezembro de 2009. Ignacio Ramonet é jornalista, foi diretor do Le Monde Diplomatique entre 1990 e 2008. Tradução: Katarina Peixoto – Carta Maior.

anos. Morosidade na condução da reforma agrária e outros programas de desenvolvimento; prática de corrupção em todos os escalões; nepotismo, clientelismo e tráfico de influência: todos os vícios burgueses se combinam e se somam contra a revolução. É claro que o imperialismo e seus aliados dentro da Venezuela jogam um papel importante no sentido da desestabilização do governo. Exercem pressão, apostam na sabotagem, jogam ao máximo com a máquina de propaganda. Tudo isso é bem conhecido. Mas se Hugo Chávez quiser mesmo enfrentar o imperialismo e seus agentes, terá que derrotar a burocracia instalada dentro mesmo do aparelho de Estado venezuelano e até no interior de seu PSUV. Não é com chamadas voluntaristas que o presidente venezuelano irá convencer o povo a se mobilizar e sustentar o governo revolucionário, mas com ações concretas que indiquem o caminho da democracia real e verdadeira, em oposição ao formalismo vazio e burocrático burguês. Chávez terá que conduzir uma guerra sem trégua contra os burocratas da Venezuela. É uma luta perigosa, que demanda todo o apoio das forças progressistas de todo o mundo.

Alejandro Ramírez

Haiti: um caos inventado pela mídia “Os meios de informação desinformam”. Li isso uma vez em um livro de Eduardo Galeano e nunca o tinha notado tão claramente como agora. Agora que tenho acesso às cadeias de televisão estrangeiras, aos monstros da informação, é que me dou conta da manipulação como nunca antes. O mundo está vendo as cenas de pessoas brigando por causa do mau manejo das agências de ajuda humanitária e pela desorganização das autoridades que supostamente deveriam entregar essa ajuda. O que é isso de jogar água a partir de um helicóptero? Isso não é ter dignidade. As ajudas não estão chegando porque as agências têm medo das estradas. Estão causando muito mais dano do que já existe. Não estive em Porto Príncipe, mas posso dar fé de que em Jacmel não existe a situação que apresentam. Os meios escolhem as cenas mais fortes, mais mórbidas e mais sensacionalistas e as repetem uma e outra vez, criando uma imagem totalmente distorcida da realidade. O Haiti tem um povo que sofre esse terremoto como a pior desgraça dos últimos anos, além de todos os problemas que já leva em suas costas, mas, apesar disso, há nesse povo um sentimento de seguir adiante, de se organizar para resolver os problemas. Fui testemunha de famílias que foram ajudadas, nos momentos mais difíceis, pelos vizinhos, por falta de ajuda governamental ou oficial. Foram as próprias pessoas que ajudaram, metendo-se nos escombros para tirar os que ainda estavam vivos, os que não conseguiam levantar as placas de cimento e que não tinham como fazer nada. Foram as famílias de muitos povoados distantes de Porto Príncipe que alojaram os que ficaram sem teto na cidade. Solidariedade No campo de futebol de Jacmel, onde hoje se refugiam 3.200 pessoas que ficaram sem casa, há todo um sistema de cozinhas coletivas, e as mães e mulheres se revezam para cozinhar para todos. Os homens cortam a lenha com machados e carregam os sacos de comida. As crianças fazem fila organizadamente para encher seus baldes de água, e os que já os levaram para suas famílias que se refugiam em tetos de nylon brincam sorrindo. Ao escritório da Crose (Coordenadora Regional de Organizações do Sudeste) chegam muitas pessoas todos os dias para ver como podem ajudar voluntariamente. São os que percorreram todos os bairros de Jacmel a pé, inclusive na montanha, para diminuir as estatísticas de casas afetadas e de famílias com problemas. Fala-se da crescente insegurança, que não é possível transitar por nenhum lado por causa dos saques. Não nego que possa haver atos delitivos, mas é lógico que tirem as coisas dos comércios que desmoronaram e as levem embora. Esse povo tem fome de séculos, e não é razoável que nestes momentos a comida fique enterrada. No entanto, caminhei por todas as ruas de Jacmel com minhas duas câmeras no pescoço sem sentir uma pitada sequer de agressividade ou algum olhar estranho, coisa que não posso fazer na Cidade da Guatemala ou em Caracas. Todo mundo me recebeu com afeto e inclusive me levaram aos lugares onde estão seus problemas, e lamento muito meu conhecimento nulo do crioulo ou do francês, pois me contavam histórias que eu não conseguia entender. Entretanto, muitos falam espanhol e eles conseguiram dizer seus sentimentos a mim, um branco desconhecido que invade seus espaços. Vida normal Percorremos a distância entre Jacmel e Anse-a-Pitre em um carro da Crose, uma Nissan 4x4 cheia de malas e volumes, e nos 187 quilômetros que separam essas duas comunidades não encontramos nenhum problema de pilhagem como costumam dizer. O que vi, sim, foram muitas pessoas montadas em seus burros indo ao campo trabalhar, os carvoeiros fazendo seus fornos, as mulheres carregando água como sempre, os mercados comunitários vendendo seus produtos. Sim, a preços mais altos, claro. O preço da gasolina subiu muito e isso encarece tudo, mas as pessoas do campo levam sua vida normalmente, buscam garantir a vida com seu trabalho, que muitas vezes não lhes proporciona o suficiente para comer. Então, como os meios de comunicação podem dizer que tudo é desastre se existe um montão de corações que ainda batem com um sentimento humano de solidariedade que sempre se nota mais entre os que menos têm? E esse povo é possivelmente um dos povos que menos têm, e menos ainda agora. Alejandro Ramírez, cineasta guatemalteco, presenciou o terremoto no Haiti ocorrido no dia 12. Tradução: Igor Ojeda.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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Esquerda volta a se reunir em Porto Alegre e discute os rumos do Fórum FSM 10 ANOS Em Porto Alegre, as avaliações dos dez anos do evento seguem duas tendências principais. Enquanto alguns querem manter a metodologia atual, de debates e atividades que construam discursos e parcerias, outros cobram mais preocupação com ação concreta Cristine Rochol/PMPA

Leandro Uchoas de Porto Alegre (RS) EMBORA EM clima festivo, as primeiras intervenções do Fórum Social Mundial (FSM) deste ano, em Porto Alegre (RS), foram naturalmente de avaliação. As discussões iniciais tiveram um caráter de questionamento do processo criado há dez anos. O que haveria de positivo em sua metodologia e organização? O que fazer para que os debates nele situados ganhassem corpo em medidas concretas? Dentre os principais intelectuais e lideranças presentes, podese dizer que as avaliações seguiram duas tendências principais. Há os que consideram que o Fórum deve permanecer um espaço de debate e construção de unidade, e que em geral são contra a formatação de resoluções documentadas; e há os que prefeririam que houvesse maiores indicativos de ação concreta nas lutas sociais. Personalidades como Oded Grajew, Chico Whitaker e Candido Grzybowski estão entre os que defendem a manutenção do Fórum como um espaço aglutinador de ideias. Criadores do evento, pensam que o Fórum não tem a missão de organizar os movimentos e entidades para a ação concreta. Segundo eles, após a construção de alianças e parcerias nos espaços de discussão, os participantes teriam que sair do FSM com outras estratégias concretas de atuação, construir outros espaços. Grajew considera que as bandeiras e prioridades não podem ser impostas pelo evento, de forma a dar liberdade de participação àqueles que não concordam com um determinado direcionamento. O empresá-

Primeiro Seminário Internacional do Fórum Social Mundial na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre (RS)

Apesar da divergência entre as lideranças, é quase unânime a aprovação do FSM enquanto espaço de construção de ideias rio propõe a adoção de novas culturas civilizatórias, propagando a ideia de responsabilidade individual e coletiva. Os integrantes de movimentos sociais e sindicais manifestaram um posicionamento diferenciado, embora concordem com a necessidade de debates amplos e bem elaborados para a forma-

ção de alianças. Entretanto, consideram que o FSM precisa ter resultados concretos e resoluções mais nítidas. Segundo seu posicionamento, o Fórum teria tido o grande mérito de colocar ao mundo as contradições do neoliberalismo num momento-chave – início dos anos de 2000 – e de formatar uma grande

mobilização entre elementos de resistência espalhados pelo globo que já tinham seus espaços políticos em solidificação. João Pedro Stedile, do MST, foi um dos principais críticos à incapacidade do evento de formular uma estratégia de estímulo à ascensão de massas e de se contrapor aos espaços de legitimação ao neoliberalismo. Até mesmo em Porto Alegre, onde o FSM foi criado, as forças de direita tomaram o governo das de esquerda que fizeram da cidade e do Estado exemplo de administrações ousadas e democráticas. Em ana-

logia, Stedile afirmou que o Fórum é o “vestiário”, mas que o jogo se constrói efetivamente no campo. Alianças

Candido Grzybowski não concorda com a tese. Ressaltando que a divergência entre as lideranças é menos impactante que os consensos, ele defende o modelo atual. A ação concreta dos ativistas deveria ser feita em outros espaços, a partir das alianças criadas no local. “Os que estão interessados nisso podem se unir e formar coalizões no interior do Fórum, mas o Fórum enquanto tal não pode.

Há o risco de que se afaste aqueles que não concordam com determinadas decisões coletivas”, defende. O cientista político Eric Toussaint se contrapõe a esse posicionamento. “Se um setor do Fórum não quer uma evolução rumo a transformar-se em um instrumento de mobilização, melhor constituir outro instrumento entre as organizações e indivíduos que estão convencidos de que precisamos desse instrumento. Isso não impediria seguir como parte ativa do Fórum”, defende. “Há uma debilidade muito forte do FSM para enfrentar a crise. Vimos, por exemplo, que a juventude brasileira do Estado do Pará estava muito interessada, foi em massa [ao FSM de 2009, em Belém], mas o Fórum Social Mundial não é um instrumento de mobilização”. Apesar da divergência entre as lideranças, é quase unânime a aprovação do FSM enquanto espaço de construção de ideias. Há consenso de que o evento conseguiu se estabelecer como um contraponto bem-sucedido ao Fórum Econômico Mundial, de Davos, e entrar na agenda dos acontecimentos mundiais de influência. A partir do FSM, diversas outras iniciativas surgiram, inclusive com o surgimentos de fóruns regionais e temáticos. Em geral, a avaliação é de que ele representou uma injeção anual de disposição e resistência em ativistas de diversos movimentos e ONGs. “O Fórum de Davos não conseguiu prever a crise financeira, da qual já falávamos há algum tempo. O nosso Fórum deu muito certo, tanto que já estamos completando dez anos”, avaliou João Felício, da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Leandro Silva

Em debate, a conjuntura mundial Divididas em quatro eixos – ambiental, social, econômico e político –, discussões sobre o atual cenário mostraram unidade de Porto Alegre (RS) Durante o Seminário Internacional “10 anos depois: Desafios e propostas para um outro mundo possível”, a discussão “A conjuntura mundial hoje” mobilizou diversos militantes nas discussões de quatro eixos de análise: ambiental, social, econômica e política. As quatro mesas formadas para discutir os eixos contaram com intervenções de um rico e heterogêneo conjunto de debatedores, do semterra Gilmar Mauro ao sociólogo Emir Sader; da feminista Nalu Farias ao ministro da Economia Solidária Paul Singer. O que se viu foi certa unidade de pensamento perpassando as mesas. Temas como a crise socioeconômica atual, a necessidade de se aliar desenvolvimento e preservação ambiental, o desastre haitiano e avaliações sobre o papel do Fórum Social Mundial (FSM) perpassaram todas as contribuições. O tema ambiental ganhou a mesma dimensão que o econômico, o político e o social. Dimensão que há dez anos, no primeiro FSM, ele não tinha. Também ultrapassou as fronteiras a ele impostas pela metodologia empregada. O cuidado com o meio ambien-

te foi discutido por inúmeros palestrantes das quatro mesas. Em sua mesa específica, o debate foi intenso. Houve unidade quanto à necessidade de se colocar em marcha um outro modelo de desenvolvimento menos predatório. A decepção com a Conferência de Copenhague (COP-15) também foi uníssona.

A atuação dos EUA na COP-15 e a militarização da “ajuda humanitária” ao Haiti simbolizariam o fracasso do governo Obama O diagnóstico foi claro. A crise ambiental foi causada pelo modo de produção e consumo capitalistas e não há como resolvê-la se não houver uma ruptura com o atual sistema, que mantém uma relação mercantilista com a natureza, incluindo a exploração do homem. Também foram unânimes as posições contrárias ao mercado de carbono

e o reconhecimento do papel das comunidades tradicionais na proteção ao meio ambiente. A polêmica ficou em torno do papel das negociações internacionais sobre o clima conduzidas pela ONU. Nas discussões sobre a conjuntura econômica, dois principais consensos. A luta por outro modelo econômico precisa ter, necessariamente, um viés anticapitalista; e não é mais possível pensar em um modelo de desenvolvimento que não contemple radicalmente a questão ambiental. Nas ricas intervenções, muita crítica à postura dos países diante da crise socioeconômica mundial e à corriqueira interpretação dada a ela pelos economistas. As críticas aos posicionamentos de enfrentamento da crise não se limitaram à direita. O professor da City Universtity de Nova York, David Harvey, criticou a obsessão por crescimento econômico mesmo entre os setores progressistas. “Fica cada vez mais difícil encontrar como e para onde crescer. Temos que encontrar uma alternativa ao capitalismo”, disse. À frente da Secretaria Especial de Economia Solidária há sete anos, Paul Singer destacou os avanços incríveis da forma alternativa de mercado. A economia solidária já repre-

Durante seminário, tema ambiental teve mesmo peso que o econômico e o social

sentaria 1% dos setores econômicos, e os resultados das políticas estatais estariam mudando a forma de comunidades inteiras se relacionarem. Segundo o economista, as taxas de crescimento da economia solidária sobem de 20% a 30% e isso não se deve às políticas governamentais. Seriam a prova de que outras formas de gerir a economia dão certo. Fracasso de Obama

A mesa de avaliação sobre a conjuntura política começou com um vídeo de Jamal Juma, da Palestinian Grassrrots Anti-Apartheid Wall Campaign. Juma clamava os palestinos a “organizar um trabalho coletivo para pôr fim à ocupação” de Israel. O estadunidense Michael Leon Guerrero lamentou a administração Obama, que teria apresentado “resultados desastrosos”.

A atuação de seu país na COP15 e a militarização da “ajuda humanitária” ao Haiti simbolizariam o fracasso do governo atual dos Estados Unidos. Nalu Farias, da Marcha Mundial das Mulheres, fez referência à crise e atuação dos movimentos sociais de denunciar o fracasso do sistema capitalista. Entretanto, também ressaltou a enorme capacidade que o capitalismo tem de se adaptar. Ela celebrou o momento positivo da América Latina, com a ascensão de governos progressistas em diversos países. “Há um crescimento dos movimentos de resistência ao neoliberalismo e ao colonialismo”, disse. O boliviano Gustavo Soto comemorou o governo de Evo Morales como “a esperança indígena do continente” e historicizou as lutas antineoliberais no país na última década.

E o francês Bernard Cassen avaliou que os Estados Unidos não têm, hoje, o mesmo poder de há 10 anos, no início do FSM. A avaliação da conjuntura social foi, talvez, a mais concorrida das quatro exposições. Os expositores apontaram as particularidades e localidades da crise mundial e as possíveis alternativas. A análise de Emir Sader, secretário-executivo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), talvez sintetize os rumos dos debates. Ele analisou a conjuntura apontando três eixos de leitura da crise: a passagem de um mundo bipolar para um multipolar; de uma fase de capitalismo expansivo para uma de capitalismo recessivo; e de um modelo de bem-estar regulado para um modelo neoliberal, desregulado. (LU)




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Manifestantes denunciam a poluição da Coca-Cola no ES Rede Alerta Contra o Deserto Verde

ESPÍRITO SANTO Fábrica que contamina o córrego das Pedras está construindo nova tubulação para jogar o efluente em outro rio Winnie Overbeek de Linhares (ES) REVOLTADOS COM o avanço da poluição de suas águas, cerca de 100 manifestantes denunciaram em Linhares, norte do Espírito Santo, a contaminação do córrego das Pedras, causada pela empresa de fabricação de sucos Mais Indústria de Alimentos, propriedade da transnacional Coca-Cola. A empresa é conhecida pela marca Minute Maid Mais, transformado recentemente na marca Del Valle Mais. O protesto realizado no último dia 23 de janeiro mobilizou as famílias da comunidade do bairro Santa Cruz, vizinho à fábrica no município de Linhares, e famílias rurais camponesas ligadas ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). A fábrica, que já contamina o córrego das Pedras, afetando alguns agricultores e o bairro Santa Cruz, está construindo uma nova tubulação para poder jogar o efluente (produtos poluentes produzidos pela indústria lançados no meio ambiente) em um córrego limpo que tem contato direto com dezenas de lagoas naturais na região. Centenas de agricultores temem a contaminação desse córrego, já que pode afetar as fontes de água que usam para irrigação e para o consumo humano. A nova fonte de contaminação afetará diretamente os pequenos agricultores da região, que já sofrem os impactos da expansão da monocultura da cana em larga escala, realizada pela empresa Lasa. Uma das agricultoras, Cristina Soprani, explica que “o grande objetivo do movimento hoje é produzir comida limpa, comida saudável. E, para isso, a gente precisa essencialmente da água, e da água preferencialmente limpa”. A poluição avança O problema começou em 2003, quando a empresa chamada Su-

Trabalhador mostra água contaminada que é jogada no Córrego das Pedras

As reclamações feitas ao longo dos anos surtiram pouco efeito. E, depois da compra do empreendimento pela Coca-Cola em 2006, a situação se agravou ainda mais cos Mais iniciou o lançamento de efluentes no córrego das Pedras, que passa por algumas propriedades rurais e depois pelo bairro Santa Cruz. Desde então, os moradores do bairro sofrem com o mau cheiro. Uns dos agricultores mais afetados, os irmãos Zanetti, tiveram sua produção de café reduzida de 1.500 para 60 sacas e não podem mais tomar água do poço da propriedade. As reclamações feitas ao longo dos anos surtiram pouco efei-

to. E, depois da compra do empreendimento pela Coca-Cola em 2006, a situação se agravou ainda mais. Segundo os dados do Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema), a empresa requereu licença de ampliação da produção exatamente em 2006, visando produzir outras bebidas, como chás, bebidas mistas de sucos de frutos com soja, bebidas lácteas, preparados líquidos, entre outros, objetivando produzir mais de 900 mil litros por mês. Apesar das denún-

cias, o Iema tem concedido e renovado o licenciamento ambiental da empresa. Em 2007, devido à situação de calamidade do córrego das Pedras, a família dos irmãos Zanetti procurou o Ministério Público na cidade de Linhares e denunciou a situação. A promotora de meio ambiente na época, Carina Jovita de Sá Santos, resolveu solicitar um laudo técnico realizado pelo Ibama. O laudo, de 14 de julho de 2008, concluiu “uma inequívoca vinculação da degradação da qualidade ambiental do córrego “rio das Pedras” ao lançamento dos efluentes da empresa”, sobretudo no “período de junho a setembro de 2007”. O laudo constatou ainda que a Mais Indústria de Alimentos S/A, por ter poluído o rio das Pedras e descumprindo a Licença de Operação 27/200, tinha infringido os artigos 41 e 44 do decreto 3.179/99, constituindo também crime contra o meio ambiente. Posteriormente foi aberta ação criminal que tramita na 3ª Vara Criminal. Em função do laudo do Ibama, o Ministério Público do Espírito Santo ingressou com Ação Civil Pública para responsabilizar a empresa pelo dano ambiental. No entanto, Ministério Público e empresa resolveram celebrar um acordo sugerindo melhorias no tratamento do efluente num prazo de 120 dias. Considerando, dentre outros, que o córrego das Pedras continuava apresentando baixa qualidade de água, o Ministério Público resolveu celebrar no dia 27 de agosto de 2009 outro acordo contendo obrigações, como apresentar dentro de um prazo de 90 dias “projeto de adequação a ser realizada para regularização do sistema de tratamento de efluentes industriais atualmente existentes na empresa”, além de “apresentar ao Iema e implementar, após aprovação, projeto de recuperação das áreas adjacentes que possam ter sido objeto de degradação pelas obras de colocação das manilhas, no ponto de lançamento de efluentes da empresa”. Porém, segundo os manifestantes, o efluente continua sujo e a prometida recuperação não foi realizada. “A gente percebe que os governos municipal e estadual dão concessão às empresas e que os órgãos ambientais fazem todo o processo de licenciamento, e aí a gente fica se perguntando: onde fica a vida?”, reclama Cristina Soprani.

CRIMINALIZAÇÃO

Polícia prende nove militantes do MST por ação contra Cutrale Luciano Garciat

Movimento denunciava que a área, cuja posse é da União, vinha sendo utilizada ilegalmente há 5 anos Patrícia Benvenuti da Redação UM CERCO policial a acampamentos e assentamentos da reforma agrária na região de Iaras, no interior de São Paulo, resultou, desde o dia 25 de janeiro, na prisão de nove integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os detidos foram para a delegacia seccional de Bauru e devem ser encaminhados a presídios da região. Os oito homens presos podem ser levados para casas prisionais diferentes; e a vereadora de Iaras, Rosimeire Pan D’Arco de Almeida Serpa, a Rose (PT), que também é assentada no município, pode ir para o presídio feminino de Avaí. Os mandados de busca, apreensão e prisão resultaram da

Repressão policial em área utilizada ilegalmente pela Cutrale

Entre os presos está a vereadora de Iaras, Rosimeire Pan D’Arco de Almeida Serpa, a Rose (PT), que também é assentada no município ocupação promovida pelo MST no ano passado à fazenda Capim, que abrange os municípios de Iaras, Lençóis Paulista e Borebi. Os sem-terra denunciavam que a área, cuja posse é da União,

vinha sendo utilizada ilegalmente há cinco anos pela Sucocítrico Cutrale para monocultura de laranja. Em nota, o Partido dos Trabalhadores afirmou repudiar as de-

tenções dos nove militantes assentados e acampados do MST. Interesses De acordo com relatos, além de prenderem militantes, os policiais cercaram casas e barracos, amedrontando as famílias, e também apreenderam pertences pessoais. Os soldados também exigiram que os sem-terra apresentassem notas fiscais e outros documentos. Na avaliação do integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), Bruno de Oliveira Pregnolatto, que assessora as famílias, a polícia tenta, com isso, forjar provas contra os agricultores, induzindo que os objetos teriam sido roubados durante a ocupação às terras griladas pela Cutrale, no ano passado. “Eles querem produzir provas que não têm contra as famílias”, acusa o advogado. Para o integrante do MST Delwek Matheus, o intuito é relacionar as atividades dos militantes do MST com ações criminosas, como roubo. “O objetivo é tentar criminalizar os militantes por meio de acusações de roubo. Querem associar ocupação a roubo”. As prisões revelam, na avaliação de Matheus, também os instrumentos usados pelo agronegócio para manter seu domínio na região. “Nessa disputa pelas terras públicas e pelo latifúndio na região, as empresas recorrem a meios como o Judiciário e a polícia”, completa. Até o fechamento desta edição do Brasil de Fato, os esforços do MST se concentravam em libertar os presos.

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Péssimo exemplo

O Brasil ficou em 88º lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação – um estudo realizado pela Unesco em 128 países e que analisa o percentual de crianças matriculadas no ensino fundamental, o analfabetismo, a igualdade de gênero (meninos e meninas) e o percentual dos que conseguem terminar o 5º ano de estudo. Entre os 20 países pesquisados da América Latina, o Brasil ficou em 15º lugar. Maior vergonha é impossível!

Atraso midiático

Num país com baixo índice de leitura de jornais, revistas e livros, o surgimento de um novo jornal diário deveria ser comemorado. Mas não é esse o caso do jornal MAIS, lançado em São Paulo no dia 20, que procura conquistar os setores populares (R$0,50 o exemplar) com conteúdo superficial e chupado de outros veículos da mídia neoliberal, sem oferecer aos leitores material que contribua para elevar o nível de conhecimento da realidade. Mais uma droga na praça!

Serra cobrador

As gestões tucanas no Estado de São Paulo implantaram o maior esquema de assalto aos usuários das estradas de rodagem, proporcionado pela privatização e proliferação de pedágios extorsivos – tudo para favorecer os consórcios constituídos por empreiteiras. Nem mesmo o Rodoanel, que deveria ajudar a desafogar o trânsito na capital, escapou da sanha espoliativa. Esses governos deveriam ser julgados por crimes contra a economia popular.

Modelo negativo

De 2008 para 2009, o fluxo mundial de investimentos sofreu uma redução média de 39%, em consequência da crise econômica; mas a queda dos investimentos no Brasil foi maior, chegou a 49,5% e deixou o país em 12º lugar no ranking dos países mais procurados pelo capital. De outro lado, a remessa de lucros das empresas estrangeiras para suas matrizes bateu todos os recordes em 2009. A tendência é aumentar o rombo no balanço de pagamentos.

Central capitalista

O presidente Lula recebe dia 29 o Prêmio Estadista Global, dado pelo Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Esse fórum tem sido há muitos anos o principal encontro de articulação do capitalismo neoliberal mundial. Por causa desse evento na Suíça é que setores da esquerda mundial organizaram em 2001 o Fórum Social Mundial, realizado várias vezes em Porto Alegre, para construir um mundo bem diferente daquele que é defendido em Davos.

Em julgamento

O ex-presidente da Argentina, general Jorge Rafael Videla, está sendo julgado por 30 homicídios, 555 sequestros e 264 casos de tortura – durante a ditadura militar (1976-1983). No país vizinho, mais de 400 civis e militares envolvidos em crimes de lesa-humanidade foram processados, julgados e punidos. Aos poucos a Argentina acerta as contas com a verdade, a memória, a história e a violação dos direitos humanos. Um exemplo para o Brasil.

Negócio nefasto

O Sindicato dos Químicos do ABC paulista, filiado à CUT, promete entrar com ações judiciais contra a compra da empresa Quattor, controladora do polo petroquímico de Capuava, em Mauá (SP), pela Braskem, empresa controlada pela Odebrecht. A aquisição contou com a injeção de R$ 2,5 bilhões da Petrobras. Segundo o sindicato, a incorporação aumenta a concentração privada e vai gerar mais desemprego na categoria dos químicos.

Redefinição política

Depois de acenar com a possibilidade de coligação com o PV para apoiar a candidatura de Marina Silva à Presidência da República, o Psol parece agora mais concentrado na escolha de uma candidatura própria e na aliança com partidos de esquerda. Pelo menos três pré-candidatos disputam internamente a indicação: Plinio Arruda Sampaio (SP), Martiniano Cavalcanti (GO) e o ex-deputado federal Babá (PA).

Ação solidária

A maioria da imprensa tem omitido informações sobre a contribuição de Cuba na ajuda internacional ao povo do Haiti: a brigada médica deslocada para lá logo após o terremoto conta com 657 médicos e enfermeiras, 417 auxiliares de saúde e 240 residentes de medicina (haitianos que estudam em Cuba); eles organizaram sete centros de atendimento, 14 salas especiais de cirurgia e socorreram milhares de vítimas em estado grave.


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brasil

Parceria Serra-Kassab intimida moradores do “Pantanal”, em SP André Vicente/Folha Imagem

DESCASO Apesar da ação da prefeitura e do governo, região abarca Zonas Especiais de Interesse Social, próprias para habitação Eduardo Sales de Lima da Reportagem A CIDADE DE São Paulo presencia um dos meses de janeiro com maior índice pluviométrico: 344,1 milímetros de chuva (cada milímetro equivale a um litro de água por metro quadrado) até o dia 24. Quando a chuva cessa, porém, apenas uma região permanece debaixo d’água: o “Pantanal”. A área compreende um conjunto de 17 bairros paulistanos que margeiam o rio Tietê, percorrendo 11 quilômetros do extremo leste da cidade. Desde as águas que caíram no dia 8 de dezembro de 2009 até o fechamento desta edição (26 de janeiro), o alagamento em grande parte da região da zona leste da cidade não baixou; e não por acaso. Os moradores acusam tanto o prefeito Gilberto Kassab (DEM) como o governador José Serra (PSDB) de serem omissos propositalmente. Pior, a dupla está tratando os moradores como criminosos por ocuparem as áreas de várzea do rio Tietê e já começaram o processo de demolição de casas e expulsão de famílias, seja via bolsa-aluguel, seja por meio da compra de apartamento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) em alguma localidade distante, ou ainda, simplesmente, por mera expulsão das famílias, demolindo suas casas. “A prefeitura está amedrontando as pessoas; já demoliram duas casas aqui na vila”, critica o morador e liderança comunitária da Chácara Três Meninas, Cristovão de Oliveira. Mas, dentro da lei, há contradições gritantes na expulsão dessas famílias. O Jardim Romano, por exemplo (uma das vilas que compreende o “Pantanal”), é um local “regularizável”; tanto que a prefeitura construiu um Centro de Educação Unificado (CEU) e o governo estadual, um conjunto habitacional no local.

“Queremos que as assistentes sociais comecem a trabalhar não só para a prefeitura, mas para a população”

De fato, o governo paulista não perdeu tempo. No começo deste ano iniciaram-se as demolições de casas “irregulares” no “Pantanal”. Mas, por ação da Defensoria Pública, as demolições de residências na região foram paralisadas no dia 13 de janeiro. O motivo principal para a remoção dessa população, mas não desvelado, é a liberação das áreas supostamente irregulares para a construção do Parque Linear do Rio Tietê. Existem, entretanto, algumas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) dentro desse conjunto de bairros.

Passagem da travessa Antônio Soares, na vila Aimoré, região do Jardim Romano, uma das mais afetadas pelas chuvas

Enquanto a mídia corporativa acentua o fato de a população da região viver em uma região de várzea, de acordo com Bruno Miragaia, que assumiu a defesa da população local, ela não revela tudo. Não conta uma informação importantíssima: que algumas áreas do “Pantanal” são regularizáveis e que estão dentro do Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade. “Existem algumas Zeis ali. Nossa preocupação é que a remoção esteja em algumas dessas áreas. E o pior é que a população é alocada para outras regiões que não são Zeis”, afirma Miragaia. Para o defensor público, como na várzea do rio Tietê há várias Zeis, as pessoas que vivem de fato em áreas de risco deveriam ser prioritariamente levadas para uma delas, pois estão mais próximas de onde elas moram atualmente. Intransigência

De acordo com Miragaia, o poder público coloca sob pressão a população para que ela aceite alternativas habitacionais ausentes de participação popular. Algumas pessoas estão aceitando o auxílioaluguel, outras estão mudando para alguma unidade da CDHU. Como não houve a regularização da terra em muitas localidades do “Pantanal”, muitos moradores não possuem a escritura do imóvel e, consequentemente, têm insegurança da posse, o que diminui a resistência dessas pessoas em permanecer nas casas. “Todo o processo de regularização de áreas vai ter remoção. Mas tem que ter um estudo antes. Os técnicos precisam se envolver com a comunidade e ‘envolvê-la’. Hoje, as famílias não têm confiança nenhuma na prefeitura; parece que é uma guerra”, afirma Miragaia. Segundo ele, para essa “guerra” se transformar, é preciso, antes de tudo, mudar o papel de agentes da prefeitura nos bairros alagados. “Queremos que as assistentes sociais comecem a trabalhar não só para a prefeitura, mas para a população. Elas vêm aqui, fazem o pessoal aceitar o bolsa-aluguel ou mandam para os apartamentos em Itaquaquecetuba e nada mais”, reivindica o morador e líder comunitário da vila Aimoré, que pediu para não ser identificado por temer represálias. (colaborou Ênio Lourenço, de São Paulo - SP)

Água “estorvada” Sem transparência, prefeitura e concessionárias omitem informações à população da Reportagem Os moradores do “Pantanal” relacionam a manutenção do alagamento na região diretamente ao fechamento das comportas da barragem da Penha e à liberação das comportas da barragem de Mogi das Cruzes (SP), ocasionando um grande “piscinão”, invasor dos bairros. Quase

dois meses após o ocorrido, o fato foi abafado pela mídia corporativa. Somada a esse acontecimento, outra sequência de erros e omissões por parte do governo estadual tem sido constantemente denunciada pela Defensoria Pública do Estado: o entupimento de galerias pluviais e o assoreamento do rio na altura em que os moradores do “Pantanal” o margeiam. Repletas de água do rio Tietê misturadas ao esgoto, a 30 centímetros de altura, ruas de bairros como a vila Aimoré servem de caminho não só às pessoas, mas também a ratos e cobras. “Tem criança andando nessa água com mijo de rato e cheia de escorpiões”, conta um morador da vila Aimoré e membro do

Movimento de Lutas nas favelas, vilas e bairros (MLB) que pediu para não ser identificado. “O direito de ir e vir está sendo afetado; a saúde e possivelmente o direito à educação também serão”, afirma o defensor público de São Paulo, Bruno Miragaia, se referindo ao retorno das aulas a partir de fevereiro. O excesso de esgoto permanece porque houve uma quebra de bombas na estação de tratamento de esgoto do Jardim Romano e de estações elevatórias de coleta de esgoto da região. Não se sabe ainda o porquê de não ter havido troca imediata das bombas. Segundo Miragaia, há famílias no Jardim Romano que moram a mil metros do rio e ainda convivem com o esgoto na porta de casa. A defensoria pública está trabalhando, até o momento, somente com informações colhidas entre a popula-

Família teme demolição Moradores da vila Aimoré são ameaçados constantemente por agentes da prefeitura Ênio Lourenço de São Paulo (SP) Mais um dia se passa, e as águas das chuvas continuam paradas na vida dos moradores da vila Aimoré (Jardim Pantanal) – ou parando suas vidas. Na viela dos Peixes, onde existiam cerca de 40 casas, hoje somente cinco resistem às tentativas de coerção da prefeitura de São Paulo por meio da bolsa-aluguel. As outras viraram escombros e foram demolidas. Em meio ao cenário de destruição que se tornou a região, uma das casas que persiste na mesma viela é a de Silvio e Denise. O casal mora com os três filhos em uma casa simples de três cômodos, que os agentes da prefeitura insistem em derrubar. “Quero

que isso aqui esteja no chão até terça”. É o que as assistentes sociais acompanhadas de um arquiteto responsável dizem em suas visitas regulares para “auxiliar” os moradores alagados, relata Denise. Silvio é pedreiro e diz que sua casa, construída por ele mesmo, vem sofrendo danos constantes devido às chuvas e ao processo de destruição das casas ao redor. “A parede mesmo já afastou 20 centímetros, a água não sai do quintal, quando volta a chover entra tudo dentro de casa, inclusive os entulhos das casas destruídas. O chão já está absorvendo a água e criando rachaduras por toda parte”. Mesmo assim, ele e a família pretendem resistir, já que a bolsa-aluguel oferecida pela prefeitura no valor de R$ 300, durante o período de seis meses, traz muita insegurança e incerteza quanto ao futuro. “Quem me garante que eu vou ter o meu dinheirinho para pagar o aluguel? Já estão dizendo que as bolsas acabaram, que você se cadastra e fica esperando até a metade de fevereiro para começar a receber”, relata.

E a situação se agrava ainda mais quando o casal, agora nessa situação de alagados dentro de sua própria casa, não pode sair da residência para tocar sua vida normalmente. Isso porque os agentes da prefeitura passam diariamente na viela dos Peixes intimidando os moradores remanescentes a fim de que eles abandonem sua casa. “Eu estou perdendo serviço, não consigo arrumar mais trabalho, mas não posso sair, não existe confiança”, completa Silvio. E Denise continua: “derrubaram a casa do Panda [um vizinho] com os móveis e tudo que tinha lá dentro, só porque o rapaz tinha ido trabalhar. E ele não tinha aceitado o bolsa-aluguel. Se aqui saírem os dois [o casal], derrubam nossa casa”. Ineficácia Outra medida paliativa que a prefeitura e o governo de São Paulo tentam junto ao moradores remanescentes é a transferência para apartamentos da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), em Itaquaquecetuba, município da região metropolitana.

ção dos bairros atingidos pelo alagamento. Dentre as instituições acionadas por esse órgão para prestar esclarecimentos, a Sabesp, o Departamento de Águas e Energia (Daee) e a subprefeitura de São Miguel Paulista se mostram omissos. “Precisamos de vários documentos e entramos com um mandado de segurança [contra a Sabesp] para termos em mãos relatórios individuais”, relata Miragaia. Segundo ele, sobretudo na Sabesp, que é responsável pelas bombas de coleta de esgoto, falta transparência. O Daee, responsável pela barragem da Penha e do escoamento do rio Tietê, não deu nenhuma resposta sobre suas responsabilidades. Já a subprefeitura de São Miguel Paulista respondeu o ofício, mas não precisou o número de famílias atingidas, o perímetro alagado e o conhecimento efetivo das medidas que estão sendo adotadas. (ESL)

Um dos vizinhos do casal, que preferiu não se identificar, afirma que essa situação é grave e vem causando conflito entre a população dos dois municípios: “se tiram a gente de nossas casas, que deem outra habitação e não joguem em Itaquaquecetuba. A população de lá discrimina as famílias de cá e acaba havendo um confronto com pessoas na mesma situação. Assim, quem sai prejudicada é a população.” Esse entrave ocorre porque já havia uma lista de espera entre os moradores de Itaquaquecetuba para ingressar no CDHU do município. E o problema se torna maior quando a infraestrutura oferecida pelo governo no local é precária: “lá tem gente passando fome, gente que não trabalha, dormindo no chão. Tem gente que não lava louça porque o carro-pipa aparece a cada três dias”, constata o vizinho. Enquanto o governo e a prefeitura permanecem com o seu descaso ao extremo leste da capital, o casal Silvio e Denise e outros moradores que não sabem como será o dia de amanhã continuam suas vidas debaixo da água e sem perspectiva quanto ao futuro, como eles mesmos afirmaram ao final da entrevista: “estamos sem chão”. (Colaborou Eduardo Sales de Lima, da Redação)


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brasil Otávio Nogueira/CC

Ameaça paira sobre a mata atlântica

Empreendimentos autorizados a desmatar a mata atlântica precisam replantar 55,7 km de floresta, área equivalente à cidade de Osasco (SP)

RIO DE JANEIRO Desmatamento provocado por empreendimentos demanda reflorestamento de 55,7 km², área equivalente à de Osasco Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) NOS ÚLTIMOS anos, uma série de polêmicos empreendimentos tem se instalado no Rio de Janeiro. Foram abrigados em terras fluminenses em contextos distintos. Alguns decorrem dos projetos da Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA), outros da fartura de petróleo sob terras marítimas, e outros ainda da cândida amizade entre Eike Batista e os líderes políticos locais. Aquilo que deveria ser motivo de celebração, entretanto, tem sido seriamente questionado por organizações de meio ambiente e direitos humanos ao carregar em sua concepção um modelo degradante de desenvolvimento. Apenas para citar alguns exemplos, a Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) já foi embargada duas vezes pelo desrespeito às legislações ambiental e social. O Porto do Açu promete degradar radicalmente o nordeste do Estado e remover milhares de agricultores. As obras do Porto Sudeste já deixaram rochas destruírem casas de moradores. A atuação da Petrobras em Magé causou conflitos com pescadores locais que causaram prejuízos e a morte de uma liderança. Nesse contexto, chama a atenção um dado recente revelado pela própria Secretaria Estadual do Ambiente (SEA). Os empreendimentos autorizados pelo governo estadual a desmatar a mata atlântica, desde 2007, precisam reflorestar 55,7 quilômetros quadrados (km²) de floresta. A área equivale ao tamanho do município de Osasco (SP) ou duas vezes o de Nilópolis (RJ). O cálculo toma por base o cruzamento dos dados das autorizações para supressão de vegetação (ASVs) e as medidas compensatórias e mitigatórias. Pela legislação brasileira, cada empreendimento é obrigado a restaurar uma área igual ou superior àquela que desmatou. Entretanto, apenas 1% da área acordada entre governo e empreendimentos foi reflorestada. Somente o Porto do Açu precisa restaurar uma área

de 18,55 km², um terço do passivo total. Segundo a secretaria, os próprios empreendedores já estariam desenvolvendo mudas para o enorme replantio de restinga, considerada de difícil restauração. A empresa afirma produzir mudas de 45 espécies nativas da região. O Açu deverá ser o maior porto da América Latina, ocupando uma área de 75 km². O empreendimento de Eike Batista responde na Justiça Federal, através de uma ação civil de iniciativa do Ministério Público Federal (MPF), à acusação de danos ambientais irreparáveis. A licença ambiental para a instalação do empreendimento foi obtida sem a aprovação do estudo de impacto ambiental, e as obras podem destruir o ecossistema de várias lagoas e invadir área de proteção permanente.

“Os trabalhos de restauração florestal não são tarefa fácil. Requerem escolha das áreas, coleta de sementes, produção de mudas, plantio e manutenção de médio prazo” Carência de mudas Para cumprir o passivo de reflorestamento, são necessárias 9 milhões de mudas, muito acima da capacidade atual de governo e empresas. Diante do enorme desafio, cada empreendimento tem uma estratégia, desde parcerias com universidades e institutos até o desenvolvimento próprio de vegetação. Os órgãos estaduais ainda não têm o levantamento das regiões que poderiam abrigar o replantio, nem uma orientação clara sobre as mudas adequadas. Até o momento, a SEA tem apenas qua-

tro viveiros de mudas. “As mudas devem ser adquiridas por quem solicitou e obteve as licenças ambientais. Não é do governo a obrigação de fornecê-las. O Estado do Rio vive um apagão de mudas. Nosso Estado tem inúmeros pequenos viveiros particulares, mas nós os desconhecemos. Estamos falando da necessidade de criar a profissão de produtores de sementes e mudas, de cooperativas de reflorestadores”, defende Alba Simon, superintendente de Biodiversidade da secretaria. A Superintendência de Biodiversidade da SEA prevê para maio o lançamento do Plano Estadual de Restauração da Mata Atlântica. O documento visa estabelecer detalhadamente áreas mais recomendadas e estratégias de replantio do passivo. Enquanto essas informações não vierem a público, o governo estadual afirma não ter como estipular prazos aos empresários. É necessário que o plano indique não apenas as áreas de reflores-

tamento, mas também o período adequado de manutenção das mudas. A secretaria prevê que, após a divulgação do projeto, ainda sejam necessários quatro anos para completar o replantio. O governo pretende negociar a conformação de corredores ecológicos, através do replantio em áreas contínuas. “Para se ter uma mata ecologicamente viável, é preciso grandes extensões contínuas. Para isso, grande parte das áreas passam por terras privadas. E quem tem que fazer o contato com o proprietário é o Inea [Instituto Estadual do Ambiente]. A empresa não pode. Esse processo é demorado e difícil. O fato de estarmos fazendo sem pressa significa que o resultado final será muito melhor”, argumenta André Ilha, diretor de biodiversidade do Inea. A instalação do Complexo Petroquímico de Itaboraí é outro empreendimento que tende a produzir enorme dano à mata atlântica. Segundo os dados divulgados, 14 km² – um quarto do passivo – de-

veriam ser replantados pela Petrobras, responsável pelo empreendimento. A empresa afirma estar desenvolvendo um projeto de restauração em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), no qual 6,26 km² de mata ciliar já estariam em processo de restauração. Quanto à instalação do Arco Rodoviário pelo próprio governo estadual, 8 km² de reflorestamento seriam necessários. Nesse caso, haveria um convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para o replantio. Empreendimentos de grande porte costumam demandar uma relação de reflorestamento bem maior do que um para um. Tarefa difícil O processo de reflorestamento é considerado caro, difícil e demorado. Existem poucos hortos de plantio de mudas, e a concentração deles em poucos locais dificulta a promoção da variedade de espécies. Além disso, existe a necessidade de acompanha-

mento e fiscalização. A existência de poucos funcionários, tanto do governo como das empresas, inviabiliza por completo o cumprimento das demandas. “Os trabalhos de restauração florestal não são tarefa fácil; requerem escolha das áreas, coleta de sementes, produção de mudas, plantio e manutenção de médio prazo”, esclarece Márcia Hirota, diretora de Gestão do Conhecimento da ONG SOS Mata Atlântica. “Mas há outras formas para promover a revegetação das áreas naturais nativas, e todos os métodos podem ser considerados. Assim como há outras formas para compensação, como por exemplo por meio da proteção de áreas nativas existentes na região”, completa. Ao contrário do que ocorre em outros estados, o Rio de Janeiro não tem marco regulatório ambiental. É frequente a eliminação de trechos centenários de mata atlântica. Soma-se a isso o problema da fiscalização, tida como deficiente no Estado.

Ritmo de desmatamento se mantém inalterado Desde 2000, desmatam-se anualmente 340 km². Restam hoje apenas 11,41% da área total de mata atlântica no Brasil do Rio de Janeiro (RJ) A mata atlântica é, com larga vantagem, o bioma mais afetado pela ação humana no Brasil. Desde a chegada dos portugueses em 1500, a área foi amplamente explorada. Inicialmente pela extração de pau-brasil, depois pelo monocultivo de café e cana-de-açúcar. Hoje, apenas 11,41% dos 1,3 milhões de quilômetros quadrados (km²) permanecem preservados – cerca de 148 mil km². Grande parte dessa área encontra-se em propriedades particulares. Dada a proporção de pessoas que moram na região (112 milhões de pessoas, ou 62%

da população brasileira), os dados seriam até compreensíveis. Entretanto, o ritmo de devastação está longe de terminar, mesmo em tempos em que o discurso ambiental ganha projeção diária. Segundo o Atlas dos Remanescentes da Mata Atlântica de 2009, o ritmo de deterioração do bioma segue constante desde 2000. Perde-se, em média, 340 km² por ano. Apenas entre 2005 e 2008, 1,03 mil km² foram devastados. Realizado em 10 dos 17 estados em que a mata se encontra, o estudo também revela uma fragmentação ostensiva das áreas restantes. Dos 233 mil trechos de mata atlântica com mais de três hectares (0,03 km²) existentes, só 18,4 mil são maiores que 100 hectares (1 km²). É como se houvesse ao longo do território anteriormente ocupado por vegetação uma série de pequenas ilhas de mata, não necessariamente conectadas. Essa fragmentação é tão preocupante quanto a devastação. Dela resulta o empobrecimento da mata atlântica. Além dos trechos com vegetação ficarem mais expostos às pressões ambientais, os animais e vegetais têm menor ampli-

tude de cruzamentos, fragilizando sua espécie. A solução seria a construção de corredores ecológicos – interligação com vegetação entre as “ilhas”. Entretanto, o excessivo volume populacional e a falta de vontade política e da iniciativa privada tornam rara a medida. “É necessário mudar a cultura. Abandonar a cultura da degradação para criar a da restauração. Isso só ocorre com política pública e ação”, defende Alba Simon, superintendente de Biodiversidade da Secretaria Estadual do Ambiente (SEA).

“É necessário mudar a cultura. Abandonar a cultura da degradação para criar a da restauração” Vasta e diversa Equivalente a 15% do território nacional, a área ocupada pela mata atlântica vai do Rio Grande do

Sul ao Piauí. Abrange diferentes características climáticas e formas distintas de relevo. Distribui-se em faixas litorâneas, florestas de baixada, matas interioranas e campos de altitude. Nela estão sete das nove maiores bacias hidrográficas brasileiras, que fornecem água a 3,4 mil municípios. Na mata existem hoje cerca de 860 unidades de conservação. Em 2006, foi aprovada a Lei 285/99, que define uma metodologia de preservação. Em toda entrevista que deu à reportagem, Márcia Hirota, diretora de Gestão do Conhecimento da ONG SOS Mata Atlântica, destacou o papel da sociedade, para além da responsabilidade de políticos e empresários. “É fundamental que cada pessoa exerça a cidadania, denunciando, caso presencie, uma agressão à natureza, um desmatamento, uma ocupação irregular, uma queimada”, defende. Em janeiro, a exposição itinerante “A Mata Atlântica é aqui” passou pelas cidades do Rio de Janeiro, Teresópolis, Nova Friburgo e Campos dos Goytacazes, com oficinas de conscientização, debates e shows. (LU)


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internacional

Davos: mudar para permanecer igual CAPITALISMO Fórum Econômico Mundial defende medidas de controle financeiro para manter sistema econômico Michael Wuertenberg/WEF

Renato Godoy de Toledo da Redação CERCA DE 2.500 representantes de empresas e chefes de Estado participam da 40ª edição do Fórum Econômico Mundial (FEM) em Davos, na Suíça. O Fórum Social Mundial (FSM), principal contraponto ao evento suíço, chegou à 10ª edição. Em 2009, algumas bandeiras historicamente ligadas à esquerda entusiasta do FSM começaram a aparecer no fórum mais poderoso. Com a crise financeira internacional, os próprios agentes do mercado passaram a enxergar que a desregulamentação excessiva poderia comprometer a continuidade do modelo. O controle da atuação dos bancos e do fluxo de capitais tornaram-se fundamentais para a sobrevivência do capitalismo. Para alguns, estava decretado o fim do neoliberalismo. Mas o modelo ainda sobrevive, mesmo que sua supremacia tenha sido golpeada. Davos deve ratificar que a saída da crise econômica passa pela regulação do mercado e por um maior controle sobre as atividades financeiras. Essas medidas já estavam presentes no primeiro FSM, em Porto Alegre, sobretudo com a bandeira da Taxa Tobin, que incidiria sobre transações internacionais e seria destinada a um fundo de combate à pobreza. O megaespeculador George Soros, voz ativa em Davos, já se declarou favorável à medida. Para legitimar o FEM, diante da perda de credibilidade do neoliberalismo, os organizadores optaram por uma homenagem ao presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, que receberá o título de Estadista Global. Lula tem sido o chefe-de-Estado que transita com mais habilidade entre os dois fóruns (leia matéria ao lado). G-20, G-7 e G-2 Com a criação do G20, a chamada multipolaridade também chegou a Davos, dando mais voz aos países emergentes. Para o jorna-

Segurança caminha do lado de fora de instalação do WEF; ao fundo, cartaz onde se lê “Comprometido com a melhora do estado do mundo”

“A crise colocou abaixo os dogmas que vinham sendo adotados. Eles foram obrigados a se reciclar para salvar o sistema” lista português e ex-deputado pelo Partido Comunista Miguel Urbano Rodrigues, o papel mais destacado desses países não deve influir nos rumos apontados pelo Fórum Econômico. “A estratégia do Fórum de Davos não mudou. Davos se abriu. A presença de líderes dos chamados ‘países emergentes’ e as mesas redondas não alteraram minimamente a estratégia do grande capital. O discurso sobre o controle do mercado e das transações financeiras é tático”, salienta.

Rodrigues aponta a necessidade de o Fórum Social tomar posições anticapitalistas para se distanciar ainda mais do evento de Davos. “Não vejo aproximação entre Davos e o FSM. Mas este ou muda ou perde a razão de existir. A participação crescente no FSM de governantes e ex-governantes de países capitalistas e de parlamentares e intelectuais identificados com políticas neoliberais mascaradas de social-democratas tende a tornar o FSM uma caixa de resso-

Prêmio dado a Lula gera polêmica Ricardo Stuckert/PR

Pela primeira vez um chefe-deEstado recebe o título de Estadista Global em Davos

O presidente em Davos durante o encontro de 2007

mio dado a Lula resume-se em três questões: “Por que Davos propôs? Por que Lula aceitou? Por que o FSM não tomou uma iniciativa semelhante?”. Miguel Urbano Rodrigues, do Partido Comunista Português, compara a decisão de Davos ao prêmio Nobel da Paz concedido ao presidente estadunidense Barack Obama. “Foi uma decisão ridícula que expressa bem a admiração do grande capital pelo presidente brasileiro. Comparo essa decisão ao prêmio Nobel da Paz dado a Obama. Não se pode negar que a popularidade de ambos é inseparável de campanhas midiáticas que os apresentam como estadistas progressistas. Essas campanhas distorcem grosseiramente aquilo que Lula e Obama são, mas funcionam. E o mal está aí. Milhões de pessoas progres-

sistas, incluindo intelectuais que respeito, continuam, no Brasil, nos EUA e no mundo, a identificar em Lula e Obama estadistas providenciais”, defende. Já José Reinaldo Carvalho aponta uma visão diferente. O dirigente do PCdoB acredita que Davos está interessado em trazer Lula para perto de seus interesses. “Pelo Brasil ser um país importante e o Lula sendo a liderança que é, as forças de Davos tentam cortejá-lo e atraí-lo para o seu lado. Por isso que ele ganha esses elogios da grande imprensa mundial, ligada à globalização. Ao mesmo tempo, não deixa de ser um reconhecimento do êxito do seu governo, que lidera o Brasil numa rota de equilíbrio e fazendo as mudanças que têm sido possíveis. Isso obriga o lado de lá a reconhecer”, aponta. (RGT)

rimperialista. Isso é um fator que joga a favor da luta antiimperialista, é um fator positivo. A emergência de outros países como o Brasil também é importante, pois eles apresentam políticas progressistas”, explica. S.O.S. capitalismo Para especialistas, a inflexão do Fórum de Davos – que parece atender antigas reivindicações do FSM – é na verdade uma medida para salvar o capitalismo. Assim, Davos admite trocar o modelo (neoliberal) para preservar o sistema. O secretário de Relações Internacionais do PT, Valter Pomar, endossa essa tese: “Frente à crise, os capitalistas apelam para o Estado e

impõem certos limites às forças do ‘livre mercado’. Sempre foi assim. A questão é saber o que as forças de esquerda têm a propor, muito além disto. E, mais do que propor, se saberemos contribuir com alternativas políticas para fazer prevalecer nossas propostas”, afirma. Já para José Reinaldo, há uma mudança de discurso. “Eles tiveram apenas que alterar a retórica e o discurso. A crise colocou abaixo os dogmas que vinham sendo adotados. Eles foram obrigados a se reciclar para salvar o sistema. Davos não vai fazer uma agenda de reformas estruturais. Não vai mudar sua essência imperialista, capitalista e neoliberal”, pontua o dirigente do PCdoB.

ANÁLISE

Um Davos... muitos “anti-Davos” FORTEMENTE reprimidas em edições anteriores, as vozes de protesto contra o Fórum Econômico Mundial de Davos manifestam-se nessa ocasião em um programa tão amplo quanto descentralizado em diversas regiões do país. A mobilização anti-Davos começou no dia 23 de janeiro com um protesto pacífico na cidade de Luzerna, na Suíça central. Os manifestantes desfilaram durante duas horas sob a consigna: “Suprimir o Fórum Econômico, por uma sociedade solidária”. Nesse mesmo dia, em Berna, capital do país, centenas de pessoas participaram do já famoso Tour de la Lorraine – nome de um bairro popular –, com várias atividades culturais e palestras. O cenário “alternativo” da capital através dessa atividade expressou seu rechaço ao “Fórum de Davos e à guerra”, tal como sua consigna de origem, propalada há dez edições.

torgam o Public Eye Award, prêmio anual às empresas públicas ou privadas do mundo inteiro que tenham tido o comportamento mais irresponsável. Entre as candidatas de 2010 encontram-se o Banco Royal do Canadá; Arcelor Mittal, empresa metalúrgica mais importante do mundo; a agência de publicidade e relações públicas Farner, de Zurique – que atacou com métodos quase de “guerra fria” a recente iniciativa popular que, na Suíça, tentava opor-se à exportação de armas –; e o Comitê Olímpico Internacional, com sede em Lousane, organizado como um verdadeiro ‘holding’ empresarial, com meios financeiros de grande envergadura. Dez dias antes do início do Fórum, ambas organizações haviam realizado um protesto noturno com refletores que iluminavam a fachada da sede central da transnacional suíça Nestlé, em Rive-Reine (Suíça francesa), projetando em letras gigantes a frase “O olho público está vendo vocês”.

Olhar público Quase paralelamente à inauguração do Fórum Econômico, no dia 27, fora de seu recinto, porém na mesma cidade, duas organizações suíças realizarão uma atividade de protesto sob o signo “Olho público sobre Davos”. A Declaração de Berna e Greenpeace Suíça, em uma solene cerimônia alternativa ou-

O “outro Davos” No entanto, será no último fim de semana de janeiro o momento em que a atividade anti-Davos na Suíça concentrará a maior energia, mobilizando o número mais significativo de atores cidadãos. Duas mobilizações de rua estão previstas para o dia 30. Uma na Basileia, no norte do país, e outra, convocada pelas

Sergio Ferrari

da Redação Pela primeira vez nos 40 anos do Fórum Econômico Mundial, um chefe-de-Estado será premiado com o prêmio de “Estadista Global”. O contemplado foi o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. A trajetória de Lula no movimento sindical e na esquerda brasileira tem uma proximidade muito maior com o Fórum Social Mundial, do qual o mandatário participou diversas vezes como dirigente partidário e presidente do Brasil. A atenção que Davos dispensa a Lula gera diferentes teses no âmbito da esquerda. Alguns setores defendem que o Fórum Econômico o premiou por entender que ele tem prestado bons serviços ao capital internacional. Outra visão aponta que Lula goza de muito prestígio pelas mudanças que vem fazendo no Brasil, e, portanto, Davos busca atraí-lo para o seu lado. Para o secretário de Relações Internacionais do PT, Valter Pomar, o prê-

nância inofensiva, apesar da participação de líderes revolucionários como Hugo Chávez, Evo Morales e dirigentes cubanos”, alerta. Além da tese sustentada por Rodrigues, de que os países emergentes não têm poder decisório, há quem enxergue um “G-2” dentro do G20, composto por China e Estados Unidos. Para José Reinaldo Carvalho, secretário de Relações Internacionais do PCdoB, ainda é cedo para decretar uma nova bipolaridade, mas o poder político, econômico e militar do país asiático é crescente. “A longo prazo essa é uma rivalidade que pode ser estabelecida. Na minha opinião, a emergência da China objetivamente não tem caráter inte-

juventudes dos Partidos Socialista e Verde, em Davos. Nos dias 29 e 30, por outro lado, o “Outro Davos” convida para a sua décima edição, nessa oportunidade a realizarse nas instalações da Universidade de Basileia. Como em sua primeira edição, em 2001, o “Outro Davos” – ideia original de Attac/Suíça e ampliada para outros anfitriões – será iniciado com uma teleconferência do intelectual estadunidense Noam Chomsky. No debate público participarão o escritor britânico Tariq Ali; Silvia Lazarte, ex-presidente da Assembleia Constituinte da Bolívia; a socióloga alemã Christa Wichterich; o sindicalista brasileiro Dirceu Traveso; e vários representantes de associações sociais, sindicais e altermundialistas suíças. A solidariedade internacional ativa, o tema candente das migrações no mundo (e, particularmente, na Europa), bem como as reivindicações e a luta sindical estarão no centro do debate da 10ª edição do “Outro Davos”. Dessa forma se encerrará uma semana de variadas manifestações – políticas, culturais, sociais – em um país onde, se Davos tem sua história, o protesto anti-Davos também já forjou a sua. (Publicado originalmente na Adital) Sergio Ferrari é colaborador da Adital na Suíça. Colaboração E-CHANGER, ONG membro da Plataforma Comunica-CH.


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américa latina

Nasce o Estado Plurinacional da Bolívia Vinicius Mansur

NOVO MANDATO Evo Morales é empossado presidente pela segunda vez. Vice afirma que este é o “enterro do Estado colonial e racista”

Pela primeira vez na história da Bolívia, os ministérios serão dirigidos por um número igual de homens e mulheres de La Paz (Bolívia)

Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) A PRESENÇA DA wihpala – bandeira indígena formada por 49 quadrados coloridos com as cores do arco-íris – na faixa presidencial entregue a Evo Morales e a medalha que faz referência aos mártires indígenas Tupac Katari e Bartolina Sisa – e não mais ao Marechal Antônio José de Sucre – dada ao vicepresidente, Álvaro Garcia Linera, foram os emblemas que simbolizaram a transição que vive a Bolívia durante a cerimônia oficial de posse dos líderes do “processo de mudanças”. Os parlamentares recémeleitos, reunidos no antigo Congresso Nacional, agora chamado de Assembleia Plurinacional, ratificaram no dia 24 de janeiro o mandato dado pelo povo boliviano ao binômio Morales-Linera. Um dia antes, houve um ato de posse simbólico nas ruínas pré-colombianas da cidade de Tiwanaku, cerca de 80 quilômetros ao norte de La Paz. De acordo com o governo, um ato de “autoafirmação cultural dos povos indígenas diante do mundo”. Na abertura de seu discurso de posse oficial, o presidente saudou os deputados e senadores que representam setores historicamente excluídos da política institucional boliviana e brincou com os representantes

Presidente nomeia ministério com igualdade de gênero

Evo Morales e membros do governo saúdam a população da sacada do palácio presidencial

que mantêm o antigo perfil: “É uma honra ver sentados, como um concurso de chapéus e vestimentas, essa Assembleia Plurinacional, que representa todos os setores do povo. E também nossos irmãos formados, intelectuais, com suas gravatas, ainda que não veja distinção, mas uma só cor de gravatas.” Morales enfatizou que a Bolívia “tem a enorme responsabilidade, como indígenas, de salvar o mundo” e lamentou que “ainda falta entender, em alguns países industrializados, sobre a vida, sobre a humanidade e a natureza”. “Se não salvamos a natureza vai ser impossível salvar a humanidade em seu conjunto”, completou o primeiro presidente indígena da América Latina. Após fazer um longo apanhado das conquistas de sua primeira gestão (veja quadro abaixo), Morales deixou uma sinalização e um pedido no que tange às relações internacionais bolivianas. Primeiro,

afirmou que quer ter boas relações com os estadunidenses, mas que “não venha a Embaixada dos EUA dizer com que países vamos ter relações”. Segundo Morales, agora, mais do que nunca, serão fortalecidas as relações com Cuba, Venezuela e Irã. Em segundo lugar, ele pediu ao novo presidente direitista do Chile, Sebastián Piñera, que mantenha a agenda de 13 pontos já acertada com o governo de Michelle Bachelet, entre os quais está a demanda marítima da Bolívia. Em sua campanha, Piñera chegou a afirmar que não cederia nenhuma parte de seu território ou mar. Horizonte socialista

O pronunciamento do vicepresidente Álvaro Garcia Linera tratou de explicar a origem histórica do atual momento político da Bolívia e de apontar os próximos desafios do processo. Segundo ele, a convulsão social que viveu o país antes do governo Morales se deu de-

vido a “quatro falhas tectônicas” sobre as quais foi constituída a república liberal: o racismo, a não-regionalização do Estado, a exclusão da sociedade no controle dos recursos e a construção de uma economia subordinada aos interesses estrangeiros. Para fazer avançar a “revolução democrática e cultural”, o vice-presidente listou cinco desafios: “Nosso horizonte estatal é socialista, é comunitarizar a riqueza, o que faziam nossos antepassados em escala menor. Outro requisito é manter a capacidade de mobilização, só ela pode vencer as adversidades. Necessitamos também derrotar inimigos internos: o faccionalismo, a corrupção e a ambição. Precisamos transformar o poder político em poder econômico e poder cultural. Por último, não há revolução que triunfe sem solidariedade internacional. A única maneira de derrotar o império é construir outra globalização”.

Cumprindo com um dos valores que a Nova Constituição Política atribui ao Estado, a equidade de gênero, o presidente Evo Morales anunciou, no dia 23 de janeiro, que, dos 20 ministros de sua nova gestão, 10 são mulheres. Na gestão anterior, apenas quatro mulheres eram ministras, sendo que, destas, apenas uma permaneceu no cargo: Nardi Suxo, do Ministério de Transparência e Luta contra a Corrupção. As outras nove mulheres estarão à frente dos Ministérios da Justiça; do Planejamento e Desenvolvimento; do Desenvolvimento Produtivo e Economia Plural; do Trabalho, Emprego e Previsão Social; do Meio Ambiente e Águas; de Culturas; da Saúde; do Desenvolvimento Rural e Terras; e de Defesa Legal do Estado. Além de Suxo, outros seis ministros foram mantidos: David Choqueuanca (Relações Exteriores), Luis Arce (Economia), Walter Delgadillo (Obras Públicas), Roberto Aguilar (Educação), Carlos Romero (Autonomias) e Óscar Coca (que passa do Ministério de Hidrocarbonetos para o da Presidência). Este último ocupa o ministério dado aos cocaleiros das Seis Federações do Trópico de Cochabamba. Outros quatro ministérios estão em mãos de organizações sociais: os sindicalistas de El Alto estão representados por Antonia Rodriguez, no Ministério de Desenvolvimento Produtivo e Economia Plural; os mineiros contam com Milton Gómez, no Ministério de Mineração e Metalurgia; enquanto a organização de mulheres camponesas Bartolina Sisa está à frente dos Ministérios de Justiça, com Nilda Copa, e de Desenvolvimento Rural e Terras, com Nemesia Achacollo. Morales afirmou que “foi difícil combinar equidade de gênero, intelectualidade e consciência social”, mas se disse feliz por conseguir conformar uma equipe de ministros que representa todos os setores e regiões do país. O presidente também fez questão de mandar um recado aos insatisfeitos com suas escolhas: “Alguns sindicalistas e dirigentes do MAS estão esquecendo princípios. Antes se lutava pela vida, pela pátria, agora sinto que só se luta por cargos”. (VM)

O primeiro mandato de Evo em números* Macroeconomia

- Depois de 66 anos de permanente deficit fiscal, a Bolívia alcançou superavit fiscal em todos os anos de gestão Morales. Em 2006, 4,5%; em 2007, 1,7%; em 2008, 3,2%; e, em 2009, 0,1%. - O PIB per capita subiu de 1.010 dólares, em 2005, para 1.651 dólares em 2008. De acordo com o FMI, em 2009, a Bolívia foi o país que apresentou a maior taxa de crescimento do PIB em toda a América Latina (3,2%). - A inflação em 2009 foi de 0,26%, a mais baixa em 45 anos. - As reservas internacionais subiram de 1,7 bilhão de dólares, em 2005, para mais de 8,5 bilhões de dólares em 2009. - Os depósitos bancários em moeda estrangeira na Bolívia diminuíram de 84%, em 2005, para 53% em 2009, valorizando a moeda nacional, o peso boliviano. - A arrecadação tributária subiu de cerca de R$ 5 bilhões para R$ 10 bilhões. - Com a nacionalização dos hidrocarbonetos, a arrecadação do Estado subiu de 2,4 bilhões de dólares para 8,5 bilhões de dólares. - A dívida externa caiu de 4,9 bilhões de dólares, em 2005, para 2,5 bilhões de dólares em 2009. - Em 2005, o crescimento da dívida interna era de 14,2%, e em 2009 foi de 5,6%. - Em 2005, o investimento em mineração era de 393 milhões de dólares, sendo 6,1 milhões de dólares do setor público e 387 milhões de dólares do privado. Em 2009, os investimentos chegaram a 1,285 bilhão de dólares, sendo 101 milhões de dólares do setor público (crescimento de 1.555%) e 1,185 bilhão de dólares do setor privado (crescimento de 207%). - Em 2005, a arrecadação de impostos com a mineração era de 56 milhões de dólares. Depois da nacionalização, em 2009, esse valor subiu para 439 milhões de dólares. - As exportações de 2002 a 2005 somaram 1,9 bilhão de dólares. De 2006 a 2009, alcançaram 5,2 bilhões de dólares. - A balança comercial de 2002 a 2005 foi de 95 milhões de dólares positivos. De 2006 a 2009, 1,5 bilhão de dólares positivo. - Em 2005, o investimento público foi de 629 milhões de dólares, em 2009 atingiu 1,4 bilhão de dólares.

Trabalho

- De 2002 a 2005, o incremento real do salário mínimo foi de 10 pesos bolivianos. De 2006 a 2009, de 247 pesos bolivianos. - De 2002 a 2005, foram gerados 228 mil empregos. De 2006 a 2008, 413 mil. - Em 2005, 38 cooperativas foram registradas. Em 2009, 170. - De 2002 a 2005, 649 sindicatos foram reconhecidos. De 2006 a 2009, 1.298. - De 2002 a 2005, o aumento salarial na saúde e educação foi de 15,3%. De 2006 a 2009, 37%.

Educação

- A evasão escolar, nível fundamental, era de 5,3% em 2005. Com a criação da bolsa “Juancito Pinto”, dada aos estudantes do ensino fundamental público, no valor de 200 pesos bolivianos (pouco mais de R$ 50) mensais, este índice caiu, em 2009, para 2%. - De 2002 a 2005, 117 unidades educativas foram construídas. De 2006 a 2009, 1.611. - De 2002 a 2005, nenhuma instituição pública de nível superior foi criada. De 2006 a 2009, foram quatro: Universidade Policial Antonio José de Sucre, em La Paz; Universidade Indígena Aymara Túpac Katari, em Warisata (La Paz); Universidade Indígena Quechua Casimiro Huanca, em Chimoré (Cochabamba); e Universidade Indígena Guaraní de Terras Baixas Apiaguaiki Tüpa, em Kuruyuki (Chuquisaca). - De 2002 a 2005, nenhum telecentro foi construído. De 2006 a 2009, 177. - O analfabetismo foi erradicado na Bolívia, com cooperação do governo de Cuba.

Saúde

- Foram feitas 444.429 operações, realizadas gratuitamente por médicos cubanos, para devolver ou melhorar a vista das pessoas. - Em 2005, o Sistema Público de Saúde fez 13,5 milhões de atendimentos. Em 2009, 16 milhões. - De 2003 a 2005, 29 ambulâncias foram entregues. De 2006 a 2009, 798 ambulâncias. - Até 2005, só havia 15 equipamentos para hemodiálise em toda Bolívia. Em 2009, eram 65. - O índice de incidência do mal de chagas diminuiu de 67% para 5%.

Campo

- Em 2005, 106.886 hectares de terra eram identificados como devolutas e aptas a realização da reforma agrária. Em 2009, elas somaram 13 milhões de hectares. - De 1996 a 2005, 9,321 milhões de hectares de terra boliviana foram tituladas. De 2006 a 2009, 31,181 milhões de hectares. - De 2006 a 2009, 449.959 hectares foram expropriados e revertidos para reforma agrária. - Antes da gestão Morales, o trabalho de identificação, regularização e reversão de terras era feito por serviços terceirizados, agora quem o faz é o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Inra). Com os serviços privatizados, o custo médio de saneamento de um hectare de terra era de 10 dólares; hoje custa, em média, 1 dólar. - De 2000 a 2005, 223 tratores foram entregues. De 2006 a 2009, 2.066. - Criação das empresas estatais para apoio à produção agrícola: Emapa (alimentos), Papelbol (papel), Cartonbol (embalagens), Lacteosbol (laticínios), Azucarbol (açúcar) e EBA (amêndoa). O Estado também criou a Acebol (cimento). - Pela primeira vez na história da República boliviana, indígenas guaranis foram libertados do trabalho escravo. Foram 150 famílias, indenizadas em 1,2 milhão de pesos bolivianos (cerca de R$ 315 mil).

Energia

- Em 2005, 33% da área rural tinha cobertura de serviço elétrico. Em 2009, 47%. - Mais de 650 mil famílias foram beneficiadas pela Tarifa Dignidade, que dá descontos de até 25% nas contas de energia a pequenos consumidores. Desde o início da Tarifa Dignidade, em 2006, o povo boliviano economizou cerca de 150 milhões de pesos bolivianos (quase R$ 40 milhões). - A distribuição de mais de 8,5 milhões de lâmpadas fluorescentes para cerca de 1,3 milhão de famílias diminuiu o consumo de energia elétrica na Bolívia em 123 megawatts, gerando, em média, uma economia mensal de 34 pesos bolivianos (pouco menos de R$ 10) para cada família.

Outros

- Em dezembro de 2009, três de cada dez bolivianos receberam alguma bolsa social. Nesse ano, a bolsa Juancito Pinto chegou a 1,7 milhão de estudantes do ensino fundamental. A bolsa Juana Azurduy – que chega a quase R$ 480 em um período de 33 meses – foi paga para mais de 340 mil grávidas e crianças de até 2 anos. A Renda Dignidade – cerca de R$ 50 mensais – chegou a mais de 770 mil idosos. - De 2002 a 2006, 2.137 casas populares foram entregues. De 2006 a 2009, foram 13 mil casas, estando outras 20 mil em construção e mais 10 mil com financiamento já garantido. - De 2002 a 2005, 452 km de estradas foram construídos. De 2006 a 2009, foram 956 km. Todos os pedágios foram estatizados. - Em 2005, a cobertura do serviço de telecomunicações alcançava 32,53% do território. Em 2009, após a reestatização da empresa Entel, 60% do território tem cobertura. - Criação do Ministério de Transparência e Luta contra a Corrupção. Da posição número 180 no ranking de países menos corruptos, a Bolívia passou a ocupar a posição 103. * Dados retirados do discurso de posse do presidente Evo Morales no dia 22 de janeiro.


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áfrica

Transnacional inunda terras para forçar camponeses a plantar cana MOÇAMBIQUE Empresa sul-africana exige que agricultores de Manhiça produzam agrocombustíveis e açúcar em vez de alimentos Ana Maria Amorim

Ana Maria Amorim de Manhiça (Moçambique) ALÉM DAS semelhanças da história, com a mesma dominação colonial portuguesa, o Brasil divide com Moçambique uma posição geográfica que favorece a produção de cana-deaçúcar. Atraído por esse atributo, o mercado internacional tem estimulado o país a investir na produção da planta, seja para a comercialização de agrocombustíveis ou para a produção de açúcar. O incentivo ao cultivo encontra apoio e facilidades disponibilizados pelo próprio Estado moçambicano, que, na figura do ministro da Indústria e Comércio, António Fernando, enxerga na exportação para Egito, Seychelles e Indonésia uma porta de desenvolvimento para a nação. A preciosidade de Moçambique é realçada pelas empresas devido à expressiva quantidade de terras que elas consideram disponíveis – 30 milhões de hectares – e aos seus potenciais geográficos, que facilitam o escoamento de materiais para a Ásia e Europa a partir de uma estrutura de portos presentes no decorrer de sua costa. Baseado nesse interesse, a província de Maputo, a exemplo das áreas circunvizinhas do distrito de Manhiça, foi tomada por empresas que visam o plantio de monocultura da cana – a produção de açúcar na região em 2009 teve uma estimativa de 500 mil toneladas, e o investimento do governo no projeto chegou aos 15 milhões de dólares. Veias abertas Presente na área de Manhiça há mais de uma década, a empresa açucareira sul-africana Maragra chegou à região com o fascínio das facilidades encontradas no país. Em uma região de cultivo de alimentos, onde famílias camponesas moravam e trabalhavam na agricultura para próprio sustento e venda às comunidades vizinhas, a Maragra encontrou uma oportuna forma de manter o controle sobre uma área que já estava anteriormente ocupada e com cultivos: o domínio dos canais por onde escoavam as águas para o rio Incomati. Dominando o escoamento da água, parte das terras antes usadas pela

Agricultor mostra terra alagada em Manhiça, vila moçambicana na província de Maputo

A Maragra encontrou uma forma de manter o controle sobre uma área que já estava anteriormente ocupada: o domínio dos canais por onde escoavam as águas para o rio Incomati agricultura ficou inundada, impossibilitando a continuidade de grande parte das atividades dos camponeses. Para solucionar o problema e permitir que o excesso de água escorra para o rio, a Maragra mostra disposição apenas se uma condição for aceita: a de que os camponeses usem parte de suas terras para a produção de cana. Abel Magaia, presidente da Mahoxalomo II, uma das associações camponesas locais, diz que a Maragra não produz nada na região e que os camponeses se negam a aceitar a premissa da empresa. “As associações não aceitaram fazer a cultura de cana porque precisam produzir aquilo que as famílias possam comer – milho, batata doce e outros cultivos. Mesmo com a recusa, a

empresa disse que era para estudarmos a proposta e só depois levarmos nossa resposta. Na verdade, não estão esperando uma resposta, estão esperando apenas o nosso ‘sim’, o que não vão conseguir, pois queremos produzir para comer e alimentar a comunidade, e não produzir cana apenas para alimentar a fábrica”, afirma. Magaia comenta que a terra local é extremamente fértil, mas está condenada apenas a produzir caniço, planta utilizada para a construção de casas locais. “Trabalhamos em uma pequena parte que sobrou sem inundar, mas onde não é possível ter uma grande cultura. Há muito que já falamos com organizações que apoiam esse distrito, mas não temos suces-

so em vencer essa batalha contra a empresa”, lamenta. A presença da companhia – e, portanto, da inundação das terras – é sentida desde 1996. A presidente da União de Manhiça, Rebeca Mabuie, diz que, mesmo com organizações ajudando a causa dos camponeses, nada foi resolvido. “A Action Aid [ONG de combate à pobreza] fez um levantamento dos problemas causados pela inundação na área e apresentou esse estudo para o governo do distrito. A resposta que tivemos foi que a empresa gerava empregos e que isso beneficiava muitas famílias. Eles ignoraram o fato de que, desde a época colonial, aquela região era dos camponeses, onde tudo era produzido, e que somos muito mais famílias prejudicadas em comparação à quantidade de famílias beneficiadas por empregos”, relata Rebeca. Os estudos continuaram sendo feitos, incluindo pesquisas feitas pela Universidade Eduardo Mondlane, mas os levantamentos não foram suficientes para uma ação do governo na área.

Apoio de ONG Se de um lado percebese a ajuda de uma entidades aos camponeses, do outro, uma ONG serve como empecilho à causa. Segundo relato dos camponeses, a Organização Rural para Ajuda Mútua (Oram), apesar de ter nascido em 1992 com a missão de apoiar as comunidades rurais, especialmente pela causa da legalização das suas terras, não cumpre essa função. “A Oram foi desviada de sua essência, defendendo agora as pessoas que têm dinheiro em detrimento dos desfavorecidos. A organização já não ajuda os necessitados, e sim aqueles que vêm usurpar as terras dos camponeses”, diz Rebeca. A presidente relata que a Oram é uma das organizações envolvidas no apoio à empresa, através da blindagem da mesma com a criação de associações para conseguir a posse das terras locais. A Maragra ainda conta com o apoio do governo do distrito, diz o vice-presidente da União de Manhiça João Mutemba. “Há uma aliança entre eles [a

empresa Maragra e o governo distrital], visto que a empresa trabalha em uma área que foi atribuída pela administração. Ademais, as reclamações enviadas para o governo não são atendidas, o que mostra essa aliança”, declara. Vicente Chongo, secretário da Associação Malavel, que também atua na região de Manhiça, endossa a aliança e ressalta a omissão do governo com as comunidades rurais. “O governo deveria investir em projetos para os desfavorecidos. Através desses projetos conseguiríamos trabalhar em maiores extensões de terra. Já do lado daqueles que usurpam a nossa terra, o governo atua com investimentos e financiamentos”, diz. Chongo ainda acrescenta que, para ter uma ampla aceitação na sociedade, o governo mobiliza recursos de propaganda dos projetos a implementar, tornando favorável a imagem das empresas no local, o que, para ele, é “uma forma de dissimular uma aceitação de um projeto que não traz benefício para a sociedade”. Resistência Diante da situação local, a União Nacional dos Camponeses (Unac) trabalha na região de forma a mobilizar os trabalhadores rurais para que se organizem em uma luta contra os prejuízos que a Maragra e outras açucareiras vêm causando na província. “Se nós nos organizarmos, teremos força até mesmo para enfrentar o governo, e um dos frutos diretos dessa luta deve ser o uso da terra para a soberania alimentar de Moçambique”, diz Rebeca. Enquanto a empresa mantém o domínio sobre a inundação da área, negociando apenas através do cultivo da cana, as famílias rurais são privadas de ampliação do cultivo e de investimentos. Muitas chegam a sobreviver com algo em torno de 1.300 meticais moçambicanos por mês – um valor equivalente a menos de R$ 100. “Enquanto esse problema permanece na região, as famílias ganham esse valor. E com esse dinheiro dá para comprar um saco de arroz, um pouco de óleo e um tecido para uma senhora – ou nem isso”, desabafa Rebeca.

GÊNERO

O desafio de ser mulher na África do Sul País possui altos índices de violência sexual e de pessoas com o vírus da Aids da Cidade do Cabo (África do Sul) A VOZ QUE sobe no palco pede silêncio por alguns instantes. A pausa é para uma poesia. Recitada na maior parte em africâners, alguns versos em inglês insinuam a força das palavras – é um pedido de respeito, é uma denúncia contra os ataques aos direitos humanos. As palavras são de Janine Van Rooy, cantora da Cidade do Cabo (África do Sul). Pérola Negra, como é conhecida, morou nos guetos da capital durante sua infância, quando vivenciou as “doenças sociais” da capital sul-africana. Dentre os desafios que enfrentou durante sua vida, estava o peso de ser mulher em um país marcado pelo ma-

chismo. “Eu tinha doze anos quando percebi que as coisas não faziam sentido, e isso estava nos pequenos momentos do cotidiano. Na hora do lazer, por exemplo, eu era obrigada a sentir o medo dos meus pais caírem sobre mim”, relata a cantora. O medo estava em seu gênero: enquanto mulher, Janine era privada de se expressar, de estar em espaços públicos. “Quando não conseguia mais me imaginar neste mundo, comecei a escrever sobre como me sentia. Enquanto escrevia, chorava. E após chorar, me sentia mais livre”, conta. Durante sua vida, Janine presenciou as mais diversas formas de violência contra a mulher. Para ela, o maior desafio está em combater a violência dentro dos mais variados ambientes e em todas as possibilidades de manifestação: sejam físicas, emocionais, psicológicas. Junto com outras mulheres que se inserem também na luta pelos direitos das mulheres, Janine participa da publicação Sparkling Woman, iniciativa recente que busca possibilitar a troca de experiências nas variadas lutas feministas do pa-

ís. “Todo dia é um desafio para que essa luta possa dar melhores frutos. Além dos direitos das mulheres, trabalho junto a organizações que visam educar e cuidar de pessoas que têm Aids”, diz.

Sendo a maior parte do público masculina, a realização dos jogos da Copa do Mundo é comumente associada ao aumento do turismo sexual Em poucas palavras, Janine mostra duas linhas doentias que se cruzam na África do Sul. O país possui altos índices de violência sexual – cerca de 150 mulheres são violadas diariamente, segundo dados do Instituto Sul-africa-

no para Relações Raciais – e um dos mais altos números de pessoas com o vírus da Aids – 17% de todos os infectados do mundo estão na África do Sul, conforme o programa das Nações Unidas para o combate da Aids, a Unaids. Apesar das atuais condições das mulheres e infectados pela Aids no país, Janine espera que 2010 possa representar avanços e conquistas. Com ironia, ressalta: “é o ano da Copa do Mundo”.

As mulheres na Copa “A Copa do Mundo de 2010 será o maior evento esportivo que a África já acolheu. A África do Sul estará no centro das atenções. Mas existem alguns obstáculos: pode isto alegrar os 5 milhões de infectados pela Aids e 1,2 milhão de órfãos por causa da pandemia desse vírus?”. Este é o alerta do South Africa Project, organização que trabalha pela igualdade de gênero, suporte a vítimas de violência sexual e portadores de Aids. Assim como foi na Copa do Mundo da Alemanha, em 2006, a proximidade do evento faz a polêmica questão da descriminalização da prostituição ser pautada no país-sede.

Sendo a maior parte do público masculina, a realização dos jogos da Copa do Mundo é comumente associada ao aumento do turismo sexual. Na Alemanha, quatro anos antes da realização dos jogos, a indústria do sexo foi legalizada. A África do Sul espera que ao menos 450 mil turistas visitem o país motivados pelo evento esportivo. Enquanto a Copa não chega, as opiniões sobre a legalização da prostituição se enfrentam. O ativista Tim Bannet, do World Aids Campaign, acredita que, caso o trabalho das prostitutas seja reconhecido, a taxa de transmissão de Aids poderá sofrer uma diminuição significativa. A opinião sustentada por ele se assemelha com a do Conselho Nacional de Aids da África do Sul (Sanac, sigla em inglês). Para o Sanac, faltam programas específicos de saúde para pessoas que trabalham com o sexo, mesmo que medidas para aplicação de tais programas sejam previstas no Plano Estratégico Nacional de Combate à Aids. A Sanac avalia que “descriminalizar a prostituição seria um passo positivo, visto que significaria que o trabalho com

o sexo seria mais seguro, e os turistas e ‘clientes do sexo’ estariam mais protegidos”. O contraponto às opiniões favoráveis a descriminalização é encontrado naqueles que divergem na concepção do corpo da mulher enquanto mercadoria. O temor também pesa quanto à capacidade do país fiscalizar as possíveis consequências da descriminalização. A Organização Internacional de Migração (IOM, sigla em inglês), por exemplo, enxerga na medida um caminho para o incentivo do tráfico de mulheres na África do Sul. Enquanto as opiniões se afloram e o debate ocorre no país-sede da Copa, a lei da África do Sul continua intacta pelo menos até março de 2010 – e nenhuma mudança constitucional deverá ser aprovada antes de 2011. As decisões acerca do comércio do sexo só poderiam ser realizadas em casos extraordinários, como o projeto de lei que tramita na Comissão de Reforma Legislativa da África do Sul, mas as decisões – tal qual as polêmicas – sobre o tema não devem se encerrar no prazo da Copa. (AMA)


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de 28 de janeiro a 3 de fevereiro de 2010

cultura Divulgação

Outro fim para

Avatar CINEMA Filme reforça a mensagem de que salvador do povo deve ser alguém que vem de fora

Elaine Tavares FILMES DE aventuras míticas me encantam demais. Gosto destas coisas arquetípicas da raça. O bem, o mal, tudo muito claro, sem as nuances da vida real, na qual tudo fica meio misturado e a gente parece não conseguir mais saber quem é o quê. Por isso fui ver Avatar. Vibro com histórias que tecem os temas imemoriais do humano: a cobiça, a coragem, o medo, a inveja, o altruísmo, a covardia, o amor que tudo salva.

O autóctone parece nunca ser capaz de tomar o destino de seu povo nas mãos. Terrível metáfora de todos nós

E ali, no filme de James Cameron, tudo se apresenta, sem claro/escuro, tudo na luz. Um homem perdido, um mundo perfeito, uma cientista boa, um empresário ganancioso, um militar sanguinário. Temas como o meio ambiente, a guerra e a ambição desenfreada permeiam a trama hollywoodiana. Tudo no filme é bonito. A moral da história é absolutamente contemporânea. No mundo dos Na’vi a harmonia é coisa natural entre os seres que vivem. Há a luta pela sobrevivência, mas não há acumulação. Os bichos são caçados, mas não vão para o freezer, e a grande mãe é uma árvore, responsável pela ligação simbiótica de tudo o que ali vive. Então, vem o ser humano e sua sede de riqueza. Empresas terráqueas exploram um mineral e vão destruindo o planeta. A vida dos Na’vi está ameaçada. Para completar, há um militar que não vê a hora de empreender a jornada da destruição, desalojando as famílias autóctones. Uma história que bem conhecemos, nós, os latinoamericanos. Então, o homem perdido entra na história. É o herói estadunidense típico. Arrojado, engraçadinho, valente. Ele se transforma num Na’vi a partir de um projeto de criação de avatar. O nome avatar vem do sânscrito e significa, na cultura indiana, a encarnação de uma divindade. É quando um deus

Fico ainda a pensar e me vem à cabeça a grande saga cubana. Havia el Che, o grande trunfo, mas foi Fidel quem comandou as gentes rumo à vitória final ocupa um corpo material. Mas, nos nossos tempos internéticos, são esses bonequinhos que as pessoas fazem de si mesmas e que podem viver uma segunda vida num mundo virtual. Pois o soldado mutilado estadunidense passa a viver uma segunda vida como um Na’vi e, é claro, como bem cabe a um filme de aventura, tão logo chega ao mundo deles, se apaixona pela filha daquele que comanda o povo local. Mas o garoto vai mais fundo ainda, ele se enamora também do modo de vida dos Na’vi, passa a compreender o que significa esse equilíbrio da vida e das coisas

que vivem. Sua segunda vida passa a ser a primeira. Então, quando o exército mercenário dos humanos vem destruir o mundo Na’vi, ele, a cientista que o criou e outros amigos assumem um lado na história: o lado dos Na’vi. E aí vem o pecado original do filme: sua mensagem subliminar. Para além do cuidado com a natureza, explícito, para além do ódio que podemos sentir contra o empresário ganancioso ou o general fanático, está a mais verdadeira das verdades: o mundo só pode ser salvo pelo herói que chega de fora, o “soldier”, o “mariner”, o salvador da pátria. Eu, que curti

Fantasia futurista supera desastre épico Divulgação

Nos cinemas, Avatar já ultrapassou Titanic como a maior bilheteria mundial da história. Em meados de janeiro, o filme já havia arrecadado mais do que os 1.843.201.268 dólares conquistados pelo “naufrágio” do transatlântico, que, diga-se, também foi dirigido por James Cameron. A contabilidade, no entanto, não se aplica ao número de espectadores, uma vez que, além da inflação, os ingressos em salas 3D e Imax são mais caros.

No Brasil, o filme já foi visto por mais de 6 milhões de pessoas, batendo recordes de público em países como China e Rússia, além de ser o filme estadunidense que mais arrecadou na Índia. Com isso, Avatar encabeça a lista dos filmes que renderam mais de 1 bilhão de dólares, como O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (3º), Piratas do Caribe: O Baú da Morte (4º) e Batman: O Cavaleiro das Trevas (5º).

o filme, fico cá pensando com meus botões. Avatar teria sido perfeito se, em vez de ser o garoto estadunidense aquele que consegue montar o animal mítico dos Na’vi e salvar o mundo, tivesse sido o herdeiro natural do comando da raça, aquele que era o prometido da princesa Na’vi e que fica apenas como o subalterno. Ele perde a mulher e ainda tem de ver o “que veio de longe” ser aquele que domina a força da natureza do seu povo. O autóctone parece nunca ser capaz de tomar o destino de seu povo nas mãos. Terrível metáfora de todos nós. Pecado de Cameron, explicável até. Ele é estadunidense e deve ter isso marcado na pele. Eu teria feito diferente. Aceitando o terráqueo que chegou e compreendeu o mundo Na’vi, mas fazendo com que fosse o príncipe Na’vi a ser o que monta a ave mítica. Ele comandaria a ação de defesa do seu mundo. O estadunidense seria apenas

Elaine Tavares é jornalista.

Depressão Azul Recente reportagem publicada no sítio eletrônico da estadunidense CNN aponta que fãs de Avatar experimentaram sentimentos de depressão e pensamentos suicidas após assistirem ao filme. Em fóruns de discussão relacionados ao longa de James Cameron, várias pessoas comentam a frustração de não poderem vivenciar no mundo real a atmosfera de sonho de Pandora, terra dos Na’vi. O sentimento nasce,

Filme ratifica tendência tecnológica Divulgação

O sucesso de Avatar consolida a tecnologia 3D como tendência da indústria cinematográfica estadunidense. Entre as produções mais recentes destacam-se as animações UP – Altas Aventuras, Shrek 4, Toy Story 3, A Era do Gelo 3, Os Fantasmas de Scrooge e os filmes Alice no País das Maravilhas, Piranha e Jogos Mortais 6. Também vale citar que o próximo mundial de futebol, na África do Sul, será o primeiro registrado com a tecnologia. A tendência é justificada por haver, ao menos momentaneamente, reconduzido os espectadores às salas dos cinemas. Outro motivo seria a possibilidade de combater a pirataria, já que o efeito não pode ser reproduzido com facilidade. O formato também ameaça popularizarse fora das salas de projeção. Grandes fabricantes já trabalham com a produção de aparelhos domésticos, como televisores de alta definição, adaptados para o 3D. E como sempre acontece com novas tecnologias, começa a ser explorado pela indústria pornográfica estadunidense. No Brasil, a produtora Cacomotion desenvolve a animação 3D Ivete Stellar e a Pedra da Luz, cuja protagonista é um “avatar” inspirado na cantora Ivete Sangalo. Produzido inteiramente no Brasil, o projeto ainda não tem data de lançamento.

um a mais no grande exército Na’vi, o que bem mais sabe das artimanhas terráqueas, o grande trunfo. Mas, certamente, o guerreiro Na’vi seria capaz de comandar seu povo, soberano e feliz, ainda que tivesse perdido a amada. Ah, o cinema estadunidense e sua moral redentora! Que pena ser sempre tão igual. Fico ainda a pensar e me vem à cabeça a grande saga cubana. Havia el Che, o grande trunfo, mas foi Fidel, amparado em Martí (ambos cubanos da gema), quem comandou as gentes rumo à vitória final. Cuba é meu final de Avatar. Nele, não há redenção vinda de fora, há consciência popular e líderes autóctones. Por isso não me importo muito de ir ao cinema e ficar de boa... Porque, ao fim, a vida é real!!! E pelas terras de “nuestra América” caminham os avatares... Cuba, Haiti, Bolívia, Equador, Venezuela...

principalmente, da comparação do planeta projetado na tela com a vida na Terra. Ou ainda, com suas vidas. Muitos dos que discutiram seus dissabores online encontraram algum conforto para retornar ao cotidiano. Para o psiquiatra consultado no artigo, o que de fato os ajudou foi a possibilidade de estar em contato com outras pessoas, ainda que via internet. E saber que estavam no mesmo mundo.

Toque de Midas? Mesmo sem contar com sucesso junto à crítica especializada, James Cameron construiu uma carreira de sucesso em Hollywood. Antes de Avatar, dirigiu Titanic (1997), True Lies (1994), O Exterminador do Futuro 1 (1984) e 2 (1991), O Segredo do Abismo (1989), Aliens – O Resgate (1986) e o clássico “trash” Piranhas 2 – Assassinas e Voadoras (1981). Seu próximo projeto, Battle Angel, também será realizado com a tecnologia 3D.


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