Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 8 • Número 362
São Paulo, de 4 a 10 de fevereiro de 2010
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br
Reprodução
A nova guerra midiática da oposição venezuelana
Governo ignora meio ambiente e libera usina de Belo Monte O Ibama assinou a licença ambiental que permite o início da maior obra do PAC, a hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. A medida foi tomada a despeito das populações locais e da opinião de ambientalistas, que se preocupam com os impactos do empreendimento. A usina será a terceira maior do mundo e deve desalojar 30 mil famílias. Pág. 6
O material escolar como objeto de desejo infantil Na volta às aulas, as campanhas publicitárias expõem as novidades em materiais escolares ao seu público-alvo, as crianças. Lápis, mochilas e cadernos estampados com os personagens do momento chamam a atenção do público infanto-juvenil. E os pais nem sempre podem atender aos pedidos insistentes. Para a psicóloga Noeli Godoy, a variedade de produtos e a publicidade ostensiva contribuem para estimular o consumo e acentuar as diferenças sociais dentro da sala de aula. Pág. 4
Observados pela Guarda Nacional Bolivariana, estudantes realizam protestos em Caracas
O governo do presidente venezuelano Hugo Chávez passa por mais uma forte disputa interna. Crise energética e de abastecimento de água, aliados à saída do ar do canal privado RCTV, têm sido o pivô de protestos da oposição. No entanto, de acordo com analistas, a motivação dos adversários do governo vai além da defesa do acesso às necessidades básicas da população ou do livre pensamento: os partidos opositores, aproveitando a falta de investimentos em tempo hábil para evitar
apagões e a escassez de água até as eleições legislativas de setembro, veem nestas a oportunidade de retornar à atividade política institucional e reverter, assim, a correlação de forças favorável para o governo. “A estratégia será evidenciar os erros relacionados a crises parciais e setoriais e aplicar o desgaste definitivo com o objetivo de conquistar espaço na Assembleia Nacional e forçar a saída de Chávez do governo”, analisa o sociólogo venezuelano Javier Biardeau. Pág. 9
Projetos de Serra e Kassab agravam enchentes em SP As enchentes que vêm castigando a Grande São Paulo não são provocadas apenas pelas chuvas recordes que caem desde dezembro de 2009. O modelo de desenvolvimento empreendido pelo governador José Serra (PSDB) e pelo prefeito da capital, Gilberto Kassab (DEM), também é responsável pelos danos causados aos moradores da metrópole. A prioridade ao transporte individual agrava a impermeabilização dos
solos urbanos com a construção de avenidas sobre rios e córregos. O projeto vem desde meados do século 20, mas as gestões atuais continuam seguindo seus passos. Exemplo notável é um dos carros-chefe da propaganda de Serra: a ampliação da marginal do Tietê.“Fala-se em fazer parques lineares, mas duplica-se a marginal do Tietê, lugar natural de espraiamento das águas dos rios”, critica Ermínia Maricato, urbanista da USP. Pág. 3 André Vicente-Folha Imagem
Salinger expôs a revolta da juventude A morte do escritor J.D. Salinger rendeu homenagens dos admiradores da literatura. Sua principal obra, O apanhador no campo de centeio, retrata o cotidiano de um jovem que vive o “sonho americano”, mas demonstra revolta contra esse modo de vida. Pág. 8
Moradores caminham em rua alagada do Jardim Romano, zona leste da capital paulistana
Em Honduras, o foco agora é a luta pela Constituinte Em entrevista, a líder da Frente Nacional de Resistência Popular de Honduras, Lorena Zelaya, afirma que
não vai haver negociação com o governo “eleito” do país e que o foco agora será a Constituinte. Pág. 10 Wilson Dias/ABr
Daniel Bensaïd e a esquerda diante da crise do capitalismo
Camponeses de Moçambique resistem à revolução verde
Daniel Bensaïd, filósofo e comunista francês, morreu em janeiro, aos 64 anos, em Paris. Em entrevista concedida no Brasil em 2008, ele discute a crise capitalista e a união das esquerdas. “Eu acho que ninguém pode imaginar ou pretender saber que forma vão tomar as revoluções do século 21”, apostava. Pág. 12
No distrito de Marracuene, 30 quilômetros ao norte da capital de Moçambique, Maputo, os camponeses procuram fortalecer uma agricultura familiar. Os trabalhadores rurais são os responsáveis por produzir comida para o país e seu objetivo é assegurar a soberania alimentar. Para isso, eles buscam o apoio do governo. Entretanto, o presidente Armando Emílio Guebuza prefere apostar nas técnicas da “revolução verde”, que, por onde passou, deixou um rastro de dependência. Pág. 11
ISSN 1978-5134
Manifestação pró-Zelaya em Tegucigalpa
Um outro mundo possível ainda por ser construído Seminário “FSM dez anos depois: desafios e propostas para um outro mundo possível”, encerrado em 29 de
janeiro, discutiu propostas para a nova ordem mundial surgida da crise do capitalismo. Pág. 5 Ivo Gonçalves/PMPA
Marcha realizada durante o FSM 2010
2
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
editorial A LUTA PELA reforma agrária volta a ser criminalizada. E outra vez a investida é contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Neste momento, dezenas de sem-terra estão presos em várias cidades e outros tantos foram condenados a penas altíssimas pelo simples fato de buscar terra para sobreviver – uma ação na qual o Superior Tribunal de Justiça já decidiu não configurar os delitos de esbulho possessório e formação de quadrilha. A ofensiva, articulada entre os grandes meios de comunicação, latifundiários, agronegócio e Poder Judiciário, mostra-se mais evidente com novas prisões de trabalhadores em São Paulo e Santa Catarina. Em Imbituba (SC), Altair Lavratti, um dos coordenadores do MST catarinense, foi preso. No dia 28 de janeiro, cerca de 30 policiais militares efetuaram a prisão no momento em que o dirigente do MST realizava uma reunião pública, num galpão de reciclagem de lixo da cidade. A acusação é de que Lavratti, junto com outros sindicalistas e militantes sociais, preparava uma ocupação de terras na região. Foi levado sob a alegação de “formação de quadrilha”. Outras duas pessoas também foram detidas, sendo que uma delas, Marlene Borges, presidente da Associação Comunitária Rural, está grávida. Ela teve a casa cercada na madrugada do dia 28 e foi levada para Criciúma (SC). Outro militante, Rui Fernando da Silva Junior, foi levado para Laguna (SC).
debate
Mais uma ofensiva das elites contra a reforma agrária Em São Paulo, no dia 25 de janeiro, a polícia iniciou um cerco aos assentamentos e acampamentos da reforma agrária na região de Iaras, interior do Estado, portando mandados de “busca, apreensão e prisão”, com o intuito de intimidar, reprimir e prender militantes do MST. Nove militantes assentados e acampados foram detidos e levados para a delegacia de Bauru. No entanto, há a possibilidade de mais detenção e outros tipos de repressão. Ao todo, somam-se 20 mandados de prisão temporária. Terrorismo Num clima de terror, além de prenderem militantes, os policiais cercaram casas e barracos, amedrontando as famílias e também apreendendo pertences pessoais. Tudo isso com o objetivo de forjar provas contra os agricultores, induzindo que os objetos teriam sido roubados durante a ocupação às terras griladas pela Cutrale, em 2009. O curioso é que, passados mais de 4 meses desde a ocupação e dos fatos ditos criminosos, o delegado da Polícia Civil já ouviu mais de 47 pessoas entre funcionários e ex-funcionários da Cutrale e integrantes do
MST (acampados e assentados) na região de Iaras, que participaram da ocupação. Só não diligenciou para ouvir os 20 investigados referidos. Outro elemento grave é que o juiz que assinou o despacho prisional se valeu de hipóteses, conjecturas e subjetivismo pessoal articulados pelo delegado e endossados pelo Promotor de Justiça para decretar a prisão temporária dos investigados, por cinco dias, já prorrogada por igual período. A “justificativa” é a de que, se as 20 pessoas continuassem soltas, poderiam atrapalhar as investigações, visto que são “perigosas, violentas, que exercem influências sobre os demais semterra e que causam temor e medo às pessoas e, por serem do MST, podem facilmente se esconder num lugar ou noutro”. Ocorre que, em quatro volumes de inquérito, não existe uma prova sequer que respalde o entendimento dessas três autoridades oficiantes nos autos. Isso mostra a ilegalidade dos decretos de prisão. O fato é que as prisões não encontram motivação fática, estão desgarradas das exigências legais, não atendem aos ditames da Justiça, e sim ao ego dos requerentes,
Reforma Agrária?
Luiz Ricardo Leitão
Vida de cachorro Gama
Os números de famílias anunciadas como assentadas não correspondem à realidade, como já vem sendo levantado por estudiosos e movimentos sociais; grande parte desses números se referem à regularização fundiária de posseiros e reassentamentos em lotes vagos de assentamentos criados há mais tempo. À margem da política de assentamentos rurais, o processo concentrador foi revitalizado pela expansão do agronegócio (essencialmente monocultor e exportador) que promove e impulsiona a compra e a grilagem (especialmente de terras devolutas) de quantidade significativa de terras, inclusive por empresas estrangeiras que investem na terra brasileira como um ativo de alta valorização. A dificuldade de pequenos estabelecimentos em sobreviver no contexto da pressão exercida pela expansão das monoculturas do agronegócio acaba, muitas vezes, os impulsionando à venda para produtores ou empresas de maior porte, quando não é o caso de posseiros expulsos, especialmente em áreas de expansão da fronteira agrícola (ainda existe isso no Brasil no Século 21!).
Solidariedade Os advogados dos trabalhadores estão tentando, com muita dificuldade, acompanhar a situação e obter informações sobre os processos – pois a polícia não tem assegurado plenamente o direito constitucional às partes da informação sobre os autos e, principalmente, sobre as prisões. No entanto, é urgente que outros apoiadores políticos, organizações de direitos humanos e jornalistas comprometidos com a luta pela reforma agrária e com a luta do povo brasileiro divulguem amplamente e acompanhem mais de perto toda a urgente situação.
crônica
Carlos Eduardo Mazzetto Silva
O CENSO Agropecuário de 2006, divulgado no segundo semestre de 2009, apontou, inicialmente, um aumento de concentração de terras no Brasil no período entre 1995 e 2006. Em seguida, teria havido uma correção do índice de Gini, utilizado para tal medição. O referido coeficiente pode variar de 0 (zero) – quando todos os estabelecimentos de uma região/ país têm a mesma área (situação de completa igualdade) – a 1 (um) – quando toda a terra de uma região/país está em um único estabelecimento (situação de concentração absoluta de terras). O primeiro índice divulgado pelo IBGE era de 0,872 para o ano de 2006, e depois foi corrigido para 0,854. Os de 1985 e 1995 eram de 0,857 e 0,856, respectivamente, números já extremamente altos. De qualquer forma, a bancada ruralista comemora. A evolução do índice mostra que não há, nem de longe, um processo de redistribuição fundiária no Brasil, muito menos uma reforma agrária. A concentração de terras neste enorme país segue sendo altíssima, intocável e escandalosa. O mais espantoso dessa evidência é o fato de que desde meados da década de 1990 passou a existir oficialmente no Brasil uma Política Nacional de Reforma Agrária com números que os governos FHC e Lula tentam se vangloriar e que totalizariam em torno 1 milhão de famílias assentadas. Número que equivaleria a um quarto do total dos estabelecimentos familiares identificados pelo IBGE em 2006. Seria muito significativo. Entretanto, fica a pergunta: Se há uma Política Nacional de Reforma Agrária no Brasil com esse montante de famílias assentadas nos últimos 15 anos, porque o índice de Gini se mantém inalterado? Qualquer reforma agrária que se preze tem como objetivo central a desconcentração fundiária. Como desenrolar esse embrulho? A meu ver, esses dados reafirmam algumas certezas e hipóteses (o primeiro enunciado é uma certeza, os seguintes são hipóteses para explicar o fenômeno): A política que existe no Brasil não pode ser chamada de reforma agrária, e sim de política de criação de assentamentos rurais, pois sua dimensão está muito longe de ser capaz de produzir uma “reforma” da estrutura fundiária brasileira, aliás, não parece ser capaz nem de arranhar seu histórico caráter concentrador.
de quem as endossou e de quem as decretou, pois, com elas, passaram a ganhar notoriedade e evidência na Rede Globo, emissora esta que, diferente do tratamento dado aos advogados dos trabalhadores, sempre tem em primeira mão, em questão de minutos, o que se passa nos autos do inquérito. Longe de serem imprescindíveis para o curso das investigações criminais, são para atender as vontades dos latifundiários, do agronegócio e da elite local, avessos à efetivação da reforma agrária na região.
Situações como esta apenas reforçam a urgência da criação de novos mecanismos de mediação prévia antes da concessão de liminares de reintegração de posse e de mandados de prisão no meio rural brasileiro – conforme previsto no Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3) – com o intuito de diminuir a violência contra trabalhadores rurais. Outro elemento importante que corrobora com esse quadro de violência e criminalização no campo é que o governo Lula não cumpriu a meta rebaixada de reforma agrária que fez e ainda não teve coragem de determinar ao ministro da Agricultura Reinhold Stefanes – representante do latifúndio no seu Gabinete – que assinasse a instrução de atualização dos Índices de Produtividade. No caso específico e emergencial de Iaras, tal repressão é o aprofundamento de todo um processo de criminalização e repressão que foi acelerado a partir da repercussão exagerada e dos desdobramentos políticos ocorridos por ocasião da ocupação da Fazenda-Indústria Cutrale. O MST reivindica há anos para a reforma agrária aquelas áreas do Complexo Monções, comprovadamente griladas da União por essa poderosa transnacional do agronegócio. É lamentável que, ao invés de se acelerar o processo de reforma agrária e a democratização do uso da terra, o que se tem é ainda mais arbitrariedade, repressão e violência.
Tudo isso reafirma a constatação de que só se consegue uma desconcentração fundiária efetiva se houver uma reforma agrária que esteja no bojo de um processo de reordenamento territorial mais amplo que “desmercadorize” a terra e faça implementar um controle social e uma gestão democrática do bem mais valioso que um país pode possuir além de seu povo: o seu território. Povo e território têm que estar harmonizados para que se construa um país e uma sociedade sustentáveis. Povo sem território não constitui um país de verdade. Território que vira negócio, expulsando o povo, produz favelas e periferias caóticas e violentas, apartação social. O projeto de barbárie dos ruralistas, hoje reforçados pelas corporações globais do agronegócio e subordinado a elas (e também aos negócios dos complexos siderúrgicos, celulósicos e energéticos), segue concentrando nossos campos, separando território e povo, fazendo piada da falsa e débil “reforma agrária”.
“ANO NOVO, vida nova” – dizem os otimistas de plantão, que, feliz ou infelizmente, ainda são muitos em nossa Bruzundanga. A cruel realidade, porém, teima em desacreditá-los. E o recém-chegado 2010 já nos dá provas de que, ao menos nesta banda ocidental do planeta, as boas novas nem sempre nos chegam no ritmo que os povos demandam. É claro que essa constatação desagrada a muita gente, sobretudo àqueles reunidos no 10º Fórum Social Mundial, esperançosos de que bons ventos possam soprar em favor de todos os movimentos que insistem em proclamar que “um outro mundo é possível”. De fato, no Velho e no Novo Mundo as boas novas nos chegam com um indisfarçável odor de naftalina. O bom-mulato Obama, por exemplo, não procurou nem sequer disfarçar a secular ambição imperial no Caribe, onde, desde o século 19, as Antilhas eram vistas como “fruta madura” do Tio Sam, e despachou quase 10 mil soldados ianques para fazer uma faxina no velho quintal abandonado do Haiti. E, enquanto Evo Morales reafirmava a soberania dos povos indígenas na Bolívia, o povo chileno debatiase angustiado entre duas candidaturas que, no frigir dos ovos, eram meras versões requentadas da velha política oligárquica que Allende buscou infrutiferamente suplantar em sua pátria. É claro que os efeitos da crise imobiliária e financeira de 2008 ainda ressoam sobre a Europa e os Estados Unidos, mas a desfaçatez das elites, tanto lá como cá, parece não ter se abalado com a retração dos mercados e a expressiva queda dos indicadores econômicos. Tampouco se alterou a lógica perversa do sistema vigente, sobretudo o “impulso incansável do capital em direção ao monopólio”, que o pensador húngaro István Mészáros, já em 2002, qualificava como um concomitante necessário do regime imperialista ainda em expansão. Esse fenômeno acelera as desigualdades e o vertiginoso processo de concentração que se dá na área corporativa. Prejuízos para quase todos, bem o sabemos, exceto para os próprios monopólios e, permitam-me dizê-lo, para os cronistas de Bruzundanga... Eu lhe explico, caro leitor: o ritmo alucinado de acumulação implica paradoxos e situações muito além de sarcásticas, ou até mesmo absurdas, que ensejam diariamente um sem-número de motes para quem vive do imprevisível ofício de escrever. Há poucos dias, por exemplo, comentaristas especializados do “velho e violento esporte bretão” nos informavam, com um tom entre o deboche e a perplexidade, que o astro inglês David Beckham, atual jogador do Milan, pagou a bagatela de 6.000 dólares (isto é, mais de dez mil reais!) para que o seu cãozinho de estimação viajasse na primeira classe de um voo internacional. Para quem não sabe, Beckham – tido por muitos como o mais vaidoso ou metrossexual dos craques da pelota – é casado com a ex-Spice Girl Victoria Adams, aquela que recentemente gastou mais de 800 mil dólares numa tarde de compras em Milão, onde adquiriu 20 pares de sapatos da Dolce & Gabanna, 12 pares de óculos de sol Versace e um caríssimo relógio Rolex (o mesmo que roubaram de um tal de Luciano Huck nas ruas de São Paulo...). A criatura se diz “viciada” em consumo, mas adverte que sua compulsão não deve ser objeto de censura, já que, afinal, ela presta inegável “contribuição” à economia. Pensando em Victoria e no pobre cachorrinho de Beckham, eu acabei por convencer-me de que aquela tenebrosa “vida de cachorro” com que os folhetins de antigamente ironizavam a existência dos miseráveis e dos setores mais explorados da própria classe operária hoje não é mais do que um chiste sarcástico. A cachorrada pósmoderna – tanto lá, na terra da Rainha, como cá, nos lares da burguesia tropical – há muito tempo vem levando uma vida de dar inveja a muito assalariado dessas latitudes... Para que não me tachem de exagerado, vejam só os artigos disponíveis para a turma de Rex, Rintintim & Cia nos luxuosos ‘pet-shops’ de São Paulo: botas de couro sintético para proteção das patas, a R$ 54,99; tigela com sensor para abertura automática da tampa (quando o cão se aproxima), a R$ 69,90; cesta de piquenique, com brinquedos, osso sintético, pente e alicate, R$ 353,00; capa de chuva para cães pequenos, R$ 35,90; e cd de música new age para cachorros ansiosos (!), R$ 16,35. Fez as contas, amigo? Pois é, deu mais que um salário-mínimo de Lulinha paz & amor. E aí o cronista, que é da família dos suínos, deve indagar: quem afinal leva “vida de cachorro” nesta era dita globalizada?
Carlos Eduardo Mazzetto Silva é engenheiro agrônomo, doutor em Geografia, pesquisador e professor concursado da FAE/UFMG.
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
3
brasil Rodrigo Coca/Folhapress
Eduardo Sales de Lima da Redação AS SEGUIDAS gestões, seja do governo estadual ou da prefeitura, pavimentam as ruas da cidade de São Paulo segundo o desenvolvimento de um modelo que prioriza carros. Desde meados do século 20, o “projeto” urbanístico da metrópole não leva em conta o curso das águas, mas sim dos automóveis. Hoje, o erro se repete. Uma das principais obras do governo paulista de José Serra (PSDB) é a ampliação das vias da Marginal Tietê; mais um erro, na visão de especialistas. O objetivo do poder público é fomentar dois sonhos de consumo impostos pelo estilo da classe média: o carro e o apartamento, o que intensifica o foco das obras públicas voltadas à locomoção rodoviária. Isto é o que pensa o sociólogo Tiaraju D’Andrea, autor da dissertação de mestrado Nas tramas da segregação: O real panorama da pólis. Ele critica a “irracionalidade” da produção da elite paulista, que construiu avenidas sobre todos os rios e córregos da cidade. “Mais carros na rua, mais asfalto, mais avenidas, mais impermeabilização”, conclui.
“Fala-se em fazer parques lineares, mas duplica-se a marginal do Tietê. As ações são casuísticas e obviamente obedecem a agendas eleitorais” Marginais
A ampliação das vias marginais do rio Tietê, por exemplo, revela a insistência de erros cometidos há 70 anos, de acordo com a urbanista e professora da USP Ermínia Maricato. Para ela, ampliar a marginal, extremamente vulnerável a alagamentos, é de uma irracionalidade do ponto de vista ambiental e da macrodrenagem que não tem explicação. “Fala-se em fazer parques lineares, mas dupli-
para o automóvel e as marginais contribuem para um modelo que impermeabiliza crescentemente o solo e aumenta a velocidade com que as águas correm para as calhas naturais”, explica Maricato. Sobre os piscinões, ela considera como “solução de emergência”, mas muito discutíveis.
Mesmo com a ampliação da calha (leito) do rio Tietê, é impossível controlar o fluxo de tanto lixo e material sólido nos rios da cidade de São Paulo Assoreada
Projetada para carros, São Paulo submerge METRÓPOLE Impermeabilização e construção de avenidas de fundo de vale e de córregos sanfonados “afundam” a cidade no caos Motoristas olham a marginal Tietê alagada, próximo à ponte Atílio Fontana
Quanto R$ 48 milhões, em
média, foram investidos pelo governo Serra na limpeza das calhas dos rios Pinheiros e Tietê; em 2006, o gasto foi de milhões R$
72,9
ca-se a marginal do Tietê, lugar natural de espraiamento das águas dos rios. As ações são casuísticas e obviamente obedecem a agendas eleitorais”, lembra. De acordo com ela, a duplicação das marginais vai aliviar durante um ano o fluxo de automóveis, depois voltará à condição de terror. Es-
se modelo, segundo Maricato, tem sido copiado inclusive por cidades de porte médio, com as marginais à beira de rios, que é o espaço restante da urbanização. Concreto e lixo
Além de haver um subplanejamento a reboque dos anseios da cultura automobilís-
tica, os córregos sanfonados em geral estão nos vales, cercados de taludes (solo íngreme), sendo seguidos por vias asfaltadas. “Infelizmente não há o controle sobre o uso do solo, que continua sendo impermeabilizado. As avenidas de fundo de vale, o tamponamento de córregos para ampliar as vias
Somado aos erros da falta de planejamento, ainda existe o assoreamento dos rios na cidade. Para se ter uma ideia, mesmo com a ampliação da calha (leito) do rio Tietê, é impossível controlar o fluxo de tanto lixo e material sólido nos rios da cidade de São Paulo. O urbanista Jorge Wilheim disse, em entrevista ao programa Canal Livre, da Rede Bandeirantes, que o Tietê foi projetado num afundamento da calha para mil metros cúbicos por segundo; entretanto, no fim de janeiro, na altura da Ponte da Casa Verde, estavam passando 850 metros cúbicos por segundo. Isso porque, segundo afirmou no programa, “são milhares de toneladas de terra que são carregadas, sem falar dos entulhos, dos pneus e das kombis que podem estar lá”. Segundo Wilheim, o trabalho de desassoreamento por parte do poder público precisa ser incessante e “conviria realmente conhecer se nos últimos quatro anos foi feito esse trabalho ou não”. Não foi. No final de 2009, uma reportagem do jornal Agora mostrou que a limpeza da calha dos rios Tietê e Pinheiros caiu 34% na gestão de José Serra, que investiu R$ 48 milhões, em média, contra R$ 72,9 milhões empenhados no último ano de administração de outro ex-governador tucano, Geraldo Alckmin (PSDB).
Criminalizar a pobreza, valorizar a terra Água gera lucro Enquanto governos relacionam pobreza e ocupações irregulares com o meio ambiente, setor imobiliário ganha fôlego da Redação O poder público tem insistido que áreas de risco e constantemente alagadas, como a região do Pantanal, na zona leste de São Paulo, foram invadidas. As famílias que viviam, boa parte há mais de vinte anos, em ocupações irregulares da região foram obrigadas “a se virar” apenas com o auxílio-aluguel de R$ 300, durante seis meses, sendo que existem no local casas que valem bem mais que R$ 30 mil. Fato é que a maioria das famílias removidas de assentamentos informais acabam não tendo acesso à moradia da CDHU em função de problema de comprovação de renda. Não existe para elas um plano de assentamento. Na zona sul ocorre algo parecido. “Vemos a prefeitura levar ao morador do Grajaú, que está ali há mais de 20 anos, uma notificação de crime ambiental”, lembra a urbanista e professora da USP Ermínia Maricato. A prefeitura quer fazer um parque linear no local, na Área de Proteção e Recuperação dos Mananciais da Bacia Hidro-
gráfica do Reservatório Billings (APRM-B). “No restante da área de proteção dos mananciais não se toca. Nessa região da zona sul, removem os pobres, mas ficam as mansões à beira da represa”, acrescenta. O cinismo é parecido na zona leste. O sociólogo Tiaraju D’Andrea revela que, no projeto da construção do Parque Linear do Tietê, as indústrias poluidoras localizadas na beira do rio não serão removidas. Para ele, o discurso ambientalista para justificar as remoções esconde que o objetivo da prefeitura paulistana é simplesmente garantir a realização dos lucros do setor imobiliário, em qualquer parte da cidade. Pobre culpado
“O fenômeno que ocorre na cidade de São Paulo, em que o poder público tenta culpar as classes populares pelo ataque ao meio ambiente, é mais uma faceta da nova investida de forças políticas de direita ao redor do mundo com o objetivo principal de criminalizar a pobreza”, segundo diz D’Andrea. Obrigada a partir para a informalidade, tanto no trabalho como na moradia, a população de baixa renda – aproximadamente 90% da população brasileira que compõe o deficit habitacional está entre zero e três salários mínimos – fica sem alternativa para se instalar nas cidades, como lembra Maricato. O espaço que “sobra” para a maioria dos pobres são as beiras dos córregos, as várzeas, as encostas íngremes, os mangues, as áreas de proteção ambiental
ou as áreas periféricas. “Essa expulsão da cidade formal/legal conduz a uma oposição entre os pobres e a preservação ambiental. Eles ocupam terras que não interessam ao mercado, desvalorizadas pela distância em relação à cidade ou proibidas de serem ocupadas pela legislação ambiental”, afirma Maricato.
O discurso ambientalista para justificar as remoções esconde que o objetivo da prefeitura paulistana é simplesmente garantir a realização dos lucros do setor imobiliário A partir daí, sem que haja nenhum tipo de garantia, certos governos tentam naturalizar, segundo D’Andrea, a expulsão de famílias pobres de áreas irregulares. Com isso, ocorre “um silenciamento da verdadeira causa dos problemas gerados na ocupação do solo urbano, que é o preço dos terrenos”. Especular
Nada é dito, porém, especificamente em relação ao extremo leste da capital paulista, que fica ao redor da rodovia Ayrton
Senna e do rio Tietê, onde existe um novo eixo de valorização fundiária na cidade, como conta o sociólogo; tendo em conta, sobretudo, a construção da USP Leste, a reforma da linha de trem e a proposta de construção de um trem de luxo ligando o bairro da Luz ao aeroporto de Cumbica, na cidade de Guarulhos. A especulação imobiliária é latente em toda a cidade. Como consequência do aumento dos preços dos terrenos nas regiões centrais e/ou mais valorizadas do município nos últimos anos, os pobres foram empurrados cada vez mais para longe do centro. “É interessante observar como em todo município de São Paulo há mais imóveis vagos, especulando, do que famílias necessitando de domicílio. Logo, seguindo a lógica do capitalismo, o problema é de superprodução, e não de falta de habitação”, explica D’Andrea. Para ele, a função do poder público, que era agir contra a especulação imobiliária, faz o papel inverso e intensifica a criminalização da pobreza para garantir a realização da “mercadoria terra” e da “mercadoria imóvel” para certos grupos de interesse, principalmente o setor imobiliário. “Apesar de termos planos e leis que permitiriam aplicar a função social da propriedade e da cidade, garantindo assim a inserção dos pobres na cidade e impedindo a ocupação das áreas ambientalmente frágeis, isso não acontece em nenhuma metrópole do país, nenhuma”, conclui Maricato. (ESL)
da Redação Há fortes indícios de que o poder público fechou a Barragem da Penha para não inundar a marginal, quando ocorreram fortes chuvas em 8 de dezembro de 2009. A suspeita é a de que o governo estadual optou por inundar milhares de casas na região do Pantanal, na zona leste da capital paulista, para não comprometer o trânsito. Nos últimos dias, entretanto, surgiram mais informações sobre as novas enchentes no Pantanal. No início de 2009, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e o Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee) quase secaram o Tietê e encheram os reservatórios ao longo do rio. No final do ano, as barragens estavam cheias demais para a época. Porém, em entrevista ao site Viomundo, o ambientalista José Arraes revela que há anos o Daee e a Sabesp controlam o nível das barragens prevendo cheias no verão. Arraes denunciou que as chuvas podem até ter contribuído, mas a causa mais importante das novas inundações (do mês de janeiro) no extremo leste da cidade de São Paulo é que as barragens do Alto Tietê estão excessivamente cheias. Além de “extravasar” as barragens, suas comportas estão sendo abertas, contribuindo com as inundações em toda a calha do rio até a região do Pantanal. As comportas estão sendo abertas na época errada. Para explicar isso, Arraes cita algumas possibilidades; dentre elas, a de que pode ter havido uma determinação governamental para que os reservatórios estivessem na cota máxima para não faltar água na região metropolitana de São Paulo. Uma outra se refere à privatização do Sistema Produtor de Água do Alto Tietê (SPAT). Hoje é um consórcio de empresas privadas que regula, administra, mantém e fornece as águas que estão represadas nessas barragens. Assim, as empresas do consórcio fazem a conservação das barragens e a intermediação com a necessidade da Sabesp, que trata e remete a água para a população. Logo, para o consórcio de empresas, quanto mais cheias estiverem as barragens, mais água elas podem fornecer para a Sabesp. (ESL)
4
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
brasil
Material escolar vira objeto de desejo Raquel Júnia
EDUCAÇÃO Como quase tudo não é um conto de fadas, consumo incentivado pela publicidade acentua a desigualdade dentro da escola e faz as famílias gastarem mais Raquel Júnia do Rio de Janeiro (RJ) MOCHILA DAS Princesas, borracha do Ben10, caderno do Homem Aranha. Se você já ouviu falar nesses personagens, é porque está por dentro dos desenhos animados que fazem parte do imaginário das crianças. E, já que as férias terminaram, é o momento deles aparecerem não apenas na televisão, mas também nos materiais escolares. No Rio de Janeiro e em boa parte do país, as férias já terminaram e, com o novo ano letivo, chega também a necessidade de material escolar para ser usado no cotidiano das escolas. No caso de muitos estudantes, é o momento de insistir para ganhar aquela mochila com o personagem preferido ou aquelas canetas que, além de escrever, soltam perfume. As papelarias estão lotadas, muitas crianças acompanham os pais na maratona salgada da compra do material escolar no sol de 40 ºC do verão carioca. As vitrines estão enfeitadas. “Tudo para você se divertir na volta às aulas”, convida uma grande loja de departamentos. O problema é que muitas famílias não têm verba suficiente para agradar os pequenos, e o material escolar não é oferecido gratuitamente aos estudantes da rede pública de ensino como deveria – pelo menos não de maneira suficiente. O resultado já é conhecido: crianças frustradas por não comprar o que é visto na propaganda e diferenças sociais acentuadas na escola, até mesmo nas públicas.
“Por exemplo, hidrocor é legal para cobrir um desenho, para treinar o controle motor, mas para que tantas cores? É para acentuar a diferença social?” Desigualdade “A criança gosta de ter material novo, de mostrar para os colegas. Isso extrapola quando você começa a comprar junto com o material escolar objetos que não são necessários. Por exemplo, hidrocor é legal para cobrir um desenho, para treinar o controle motor, mas para que tantas cores? É para acentuar a diferença social?”, questiona a psicóloga Noeli Godoy, do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro. Noeli, que estuda a relação da mídia com o consumo, também lida com a questão em casa, já que é mãe de quatro filhos e três estão na escola. “Os fabricantes de caderno, borracha, lápis vão querer incrementar esse material. A Faber Castell lança, por exemplo, o lápis de cor das Princesas, as meninas vão ficar doidas, porque aquelas princesas viraram referência na infância. É aí que a publicidade consegue garantir a venda e se intensifica o capitalismo e a diferença social”, explica.
Ônibus escolar estadunidense decora vitrine de loja de departamento no Rio de Janeiro
Para Sindicato, Estado é responsável pelo material escolar
Quando papai e mamãe não têm superpoderes Raquel Júnia
do Rio de Janeiro (RJ) Tatiana Lima tem 31 anos e é mãe de cinco filhos em idade escolar. Ela também é estudante e em 2010 pretende concluir o Ensino Fundamental pelo ProJovem (Programa do governo federal orientado para a reinserção do jovem na escola). Moradora do Morro do Estado, em Niterói, região metropolitana do Rio, ela precisa se virar com o salário mínimo que ganha como zeladora de um prédio para sustentar as crianças. Tatiana vive com os pais, o irmão e os cinco filhos em uma casa de dois quartos. Ela reclama que, no início do período letivo de 2009, a escola municipal onde estão matriculados dois de seus filhos enviou uma carta dizendo que a prefeitura garantiria material escolar e uniforme, mas que o tempo passou e só duas camisetas foram entregues às crianças, nada de lápis, borracha e caderno, objetos básicos. Para conseguir comprar o material dos cinco filhos, ela encontrou uma saída. Junto com a prima, a irmã e a tia que também têm crianças em idade escolar, faz as compras em papelarias que vendem no atacado. Segundo Tatiana, comprando o pacote fechado de cadernos ou a caixa fechada de lápis, sai bem mais em conta. “Assim eu gastei cerca de R$ 180 no ano passado”, assegura. Preço alto De fora do orçamento de Tatiana ficaram os objetos escolares com personagens, já que encarecem os materiais. Ela conta que, em 2009, uma de suas filhas ganhou do pai uma mochila da Penélope Charmosa – outra personagem conhecida do mundo dos desenhos animados. Segundo a mãe, a mochila foi cara e mesmo assim rapidamente começou a descosturar, o que para ela prova que nem sempre o preço é sinônimo de qualidade. “Já que os pais não tiveram muita coisa quan-
Professor Sergio Paulo Filho explica que o poder público deve garantir isonomia no ambiente de ensino do Rio de Janeiro (RJ)
Tatiana se juntou com outras mães para comprar no atacado
“Se você pegar dois orçamentos de material escolar, uma lista de material simples chega a R$ 80, mas se caprichar muito, colocar apontador que faz mágica e borracha colorida, chega aos R$ 200” do eram criança, para compensar e para agradar os filhos, compram tudo que eles pedem. Aqui em casa eu explico: é este que eu posso dar. Por exemplo, uma barbie custa mais de R$ 200, aí falo com eles: se eu dou para vocês agora e depois não posso dar mais, vocês vão roubar para comprar?”, reflete. Mesmo sem saber, Tatiana segue um conselho bastante enfatizado pela psicóloga Noeli Godoy, do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro. Faz parte da tática dela não levar as crianças na compra do material escolar. “Se eu levar, elas dão muito prejuízo”, diz. “Se você pegar dois orçamentos de material escolar, uma lista de material simples chega a R$ 80, mas se caprichar muito, colocar apontador que faz mágica e borracha colorida, vai a R$ 200. E às vezes o apontador mágico não é tão bom
quanto aquele velho apontador de ferro. Os pais se esquecem de ver a qualidade do produto para poder satisfazer um desejo desnecessário”, comenta Noeli. Pedidos desnecessários Tatiana lembra que há ainda outro problema com as listas de material escolar: para ela, há pedidos desnecessários. Ela cita como exemplo marcadores de texto exigidos na lista de um de seus filhos. “Quem usou fui eu”, diz. Apesar disso, ela acredita que os pais devem comprar os materiais escolares, mas que o Estado deveria ajudar. Atento à entrevista, Ryan, filho dela, fala que não gosta de ir para a escola. “O pátio é pequeno e não temos como brincar”, reclama. A mãe faz coro com o filho e critica também a má utilização da estrutura da escola. “Lá tem sala de informática, mas nunca é utilizada”. (RJ)
O Sindicato Estadual dos Profissionais em Educação do Rio de Janeiro (Sepe) sustenta que os governos têm o dever de fornecer o material escolar. O professor de História da rede pública do Rio de Janeiro e coordenador-geral do Sepe, Sergio Paulo Filho, afirma que é ilegal as escolas cobrarem dos pais a compra dos objetos. “O Sepe inclusive pede para ser acionado quando há cobrança de material escolar em escola pública”, informa. Sergio afirma que o kit fornecido pelos governos municipal e estadual é bastante incompleto, geralmente composto por caderno, caneta, lápis e a camiseta do uniforme. O professor concorda que a desigualdade social se acentua em sala de aula, já que alguns estudantes podem comprar os objetos e outros não. Para ele, o poder público é o responsável por promover a isonomia, ou seja, evitar que essas diferenças sejam tão gritantes no ambiente escolar.
“Do nosso ponto de vista é um crime os governos não investirem os 35%, porque fazem falta esses 10%” Questão do consumo A psicóloga Noeli Godoy sustenta que só o oferecimento do material escolar pelo Estado não resolverá as diferenças sociais na escola, mas pode amenizar o problema. Para ela, é bom para a educação que o Estado cumpra suas atribuições, mas a disputa pode continuar.
“A questão do consumo não está na distribuição do material escolar, está na relação dos pais com a mídia, da publicidade com os pais. O estojo que o Estado irá oferecer, por exemplo, não tem personagem, não tem nenhum chamamento de status, então eu vou ficar com aquele que o Estado me deu ou vou comprar o do Batman? Cada criança vai se sentir contemplada, mas a disputa da diferença de poder continua”, aponta. Financiamento Em entrevista ao Brasil de Fato, o subsecretário executivo de Estado da Educação do Rio de Janeiro, Julio Cesar da Hora, informou que a “Secretaria de Estado de Educação não fornece material escolar para as escolas da rede”, apenas as camisetas do uniforme. Ele ressaltou que os livros são fornecidos pelo governo federal. O Sepe acredita que o Estado e o município deveriam investir em educação os 35% previstos no texto original da Constituição Estadual e da Lei Orgânica do Município. Uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida pelos governos derrubou a norma em 2003. Questionado sobre os recursos destinados pelo governo estadual à educação, o subsecretário Julio da Hora respondeu que em 2009 o governo investiu mais do que os 25% determinados pela Constituição Federal. “Em 2009, foram destinados 25,12% dos recursos para a Educação em geral, incluindo universidades, escolas profissionalizantes etc.”, argumentou. Para o Sepe, os governos tendem a caracterizar a educação como gasto e não como investimento. “Do nosso ponto de vista é um crime os governos não investirem os 35%, porque fazem falta 10%. Poderiam também estar engrandecendo o material didático. É um crime monstruoso com o futuro da sociedade do Rio de Janeiro”, reforça Sergio Filho. Procuradas pela reportagem, as secretarias municipais de educação do município do Rio de Janeiro e de Niterói, onde estudam os filhos de Tatiana Lima, não responderam até o fechamento desta edição (dia 2). (RJ)
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
5
brasil
Que outro mundo possível? André Netto/PMPA
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL Seminário de balanço e perspectivas sobre o espaço debateu em Porto Alegre as alternativas ao modelo de desenvolvimento em crise Igor Ojeda da Redação DESDE SUA primeira edição, em 2001, o Fórum Social Mundial (FSM) tem recebido reiteradas críticas por ficar restrito a discussões e não resultar em ações políticas, embora se reconheça a importância que teve e ainda tem para a formação de articulações e redes internacionais. Este foi, inclusive, o principal debate da mesa de abertura do seminário “FSM dez anos depois: desafios e propostas para um outro mundo possível”, um dos principais eventos do FSM 2010 – que teve atividades em todo o mundo –, realizado entre 25 e 29 de janeiro em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul De um lado, os que defendiam a manutenção do caráter aglutinador de ideias, atores e propostas do FSM. De outro, aqueles que propunham que o espaço deve dar um passo à frente no que se refere a ações concretas (leia mais sobre o assunto na edição 361). No entanto, um aspecto é quase unânime: nessas dez edições de Fórum Social Mundial, a postura dos seus participantes evoluiu de praticamente apenas se opor ao neoliberalismo vigente para também propor alternativas mais elaboradas a esse modelo. Assim, o seminário “FSM dez anos depois” serviu, além de espaço de balanço do evento nesta década, também como centro de debates sobre perspectivas e propostas diante da crise do capitalismo. O que propor? Nesse sentido, a discussão, grosso modo, se resumiu a um questionamento preponderante: frente à crise do neoliberalismo e do poder político e econômico estadunidense, o que fazer? O que queremos pôr no lugar, e como construir uma nova hegemonia? Durante a mesa “Novo Ordenamento Mundial”, realizada no dia 28, Antonio Martins, da Attac (Associação pela Tributação das Transações Financeiras para ajuda aos Cidadãos) de São Paulo, afir-
mou que a configuração de uma nova ordem pode se converter em processo de transferência de hegemonia, mas, para isso, “temos que considerar as potencialidades deste momento e superar alguns deficits. Entre eles, estão o deficit da comunicação e o da formulação”. O italiano Giampiero Rasimelli, do Observatório Euro-Latino-Americano de Democracia e Desenvolvimento Social (Euralat), defendeu, na mesa “Organização do Estado e do Poder Político”, também do dia 28, a criação de um governo mundial que funcionasse sustentado em instituições internacionais. Segundo ele, para essa proposta funcionar, é preciso “mais regionalismo”, em nível continental ou subcontinental: “O governo mundial deve ser o representante das diversas partes do planeta, mas com uma atuação diferente da que estamos acostumados”.
O seminário “FSM dez anos depois” serviu, além de espaço de balanço do evento nesta década, também como centro de debates sobre perspectivas e propostas diante da crise do capitalismo “Novo socialismo” Já os integrantes da mesa “Como Construir uma Hegemonia”, realizada no mesmo dia, avaliaram que um novo socialismo está sendo desenhado pelos movimentos sociais e os governos gerados por eles no continente latinoamericano nos últimos anos. Para a peruana Virginia Vargas, da Articulación Feminista Marcosur, o chamado socialismo do século 21 traz um no-
Primeiro Seminário Internacional do Fórum Social Mundial na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre
vo horizonte de poder, no qual não há divisão entre governantes e governados. “A proposta não é substituir uma hegemonia por outra. É inventar relações não hierarquizadas, que também estão nas relações pessoais e nas relações entre as organizações”, disse. Essa dinâmica, defende ela, leva à formação de um sujeito emancipado e revolucionário. No entanto, na mesa “Novo Ordenamento Mundial”, uma polêmica foi levantada pelo belga Éric Toussaint, do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM). Para ele, além de a crise não ter fragilizado o poderio estadunidense, ele está sendo reforçado por atitudes imperialistas dos países do chamado Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). “Podemos afirmar que o modo como o Brasil está presente na Bolívia, no Peru, no Equador, é um tipo de imperialismo periférico, a reprodução da lógica imperialista em escala regional”. Taoufik Ben Abdallah, do Enda Tiers Monde do Senegal, discordou, afirmando que, se se considera imperialismo como “a confiscação do potencial e do futuro dos povos em favor de uma potência por dominação econômica,
política ou militar”, os países do Bric não podem ser chamados de imperialistas. Democratizar a economia Polêmica à parte, um consenso entre os participantes do seminário “FSM dez anos depois” é que qualquer democratização do poder político só é possível de ser alcançada com a democratização do poder econômico. “É triste ver que, mesmo em países onde as instituições democráticas funcionam bem, a desigualdade social vem aumentando. A fonte dessa realidade reside na concentração do poder econômico”, alertou, durante a mesa “Organização do Estado e do Poder Político”, Nancy Neamtan, da organização Chantier de l’Economie Sociale, do Canadá, para quem o caminho para o socialismo deve vincular o exercício do poder político com o exercício do econômico. Para ela, a economia solidária seria uma das formas de se alcançar esse objetivo. Na mesma mesa, João Pedro Stedile, da coordenação do MST, explicou que, a partir dos anos 1990, o Estado burguês – que, embora controlado pelos proprietários dos meios de produ-
ção, possibilitava avanços à classe trabalhadora em termos de direitos – foi “sequestrado” pelo capitalismo financeiro e pelas transnacionais. “O Estado mudou de características, não é mais um Estado republicano”, disse. Para ele, hoje, o Estado é o principal instrumento de acumulação de capital, através do pagamento de juros da dívida pública para bancos e empre-
sas. “Ou seja, o voto não vale nada”. Como exemplo desse argumento, ele cita os bancos centrais de todo o mundo, que têm mais poder que o próprio poder político de cada país. “Ou seja, se há uma coisa que devemos reivindicar é eleger o presidente dos BCs. E estatizar todo o sistema financeiro”. (Com informações do blog do Seminário Dez Anos Depois)
Durante a tradicional Assembleia dos Movimentos Sociais, algumas datas de lutas foram definidas ou convocadas: 8 a 18 março – jornada de comemoração dos 100 anos do Dia Internacional da Mulher. Março – jornada de lutas da UNE e da Ubes em defesa da educação. Abril – jornada de mobilizações em defesa da reforma agrária e contra a criminalização dos movimentos sociais. 19 a 22 de abril – Conferência dos Povos sobre as Mudanças Climáticas, em Cochabamba, na Bolívia. 31 de maio – Assembleia Nacional dos Movimentos Sociais. 1º de junho – Conferência Nacional da Classe Trabalhadora. 11 a 15 de agosto – Fórum Social das Américas, em Assunção, Paraguai. Setembro – Plebiscito sobre o limite máximo da propriedade da terra.
PETRÓLEO
Petroquímicos acusam governo Lula de conivência com monopólio Carta responsabiliza presidente pela entrega de 100% do setor petroquímico para a Odebrecht/ Braskem Nara Roxo de Porto Alegre (RS) APROVEITANDO A presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Rio Grande do Sul para participar das atividades do Fórum Social Mundial 2010 Grande Porto Alegre, que aconteceu entre os dias 25 a 29 de janeiro, os petroquímicos gaúchos publicaram uma “Carta Aberta ao presidente Lula” cobrando responsabilidade do governo, bem como da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, também presidente do Conselho de Administração da Petrobras, pela entrega de 100% do setor petroquímico para o Grupo Odebrecht/Braskem. No documento, os trabalhadores cobram do governo
as demissões que a empresa vem fazendo no Rio Grande do Sul, as tentativas de eliminar direitos do Acordo Coletivo de Trabalho, a precarização das condições de trabalho e os prejuízos que a concentração da petroquímica com a Braskem acarretará para a sociedade brasileira. A nota, além de ser publicada no informativo semanal da categoria, também foi publicada em jornal de grande circulação no Estado e distribuída aos participantes do FSM. “Nosso objetivo foi mostrar o que a Braskem vem fazendo no Rio Grande do Sul e que agora, com a negociação da Quattor e a entrega do controle do setor para essa empresa, poderá acontecer em todo o país”, afirma o presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Petroquímicas de Triunfo/RS (Sindipolo), Carlos Eitor Rodrigues. Para ele, a “complacência” do governo federal com as atitudes da Braskem configura uma traição do governo aos trabalhadores. “Desde 2007, estamos nas ruas, na mídia, em audiências públicas nas câmaras de vereadores, Assembleia Legislativa [gaúcha], Câmara e Senado denunciando as atitudes da Odebrecht/ Braskem em relação aos traba-
Maria Rosa Junges
lhadores e seus direitos. Portanto, não há como o governo dizer que não sabe. Inclusive levamos essas questões à Petroquisa [braço petroquímico da Petrobras], na expectativa de uma posição, o que não aconteceu”. Resistência Essa iniciativa não é a primeira que os trabalhadores tomam para denunciar as atitudes predatórias, desrespeitosas e agressivas da Braskem. Desde 2007, quando foi anunciada a compra do Grupo Ipiranga pela Petrobras, Braskem e Grupo Ultra, os trabalhadores vêm realizando atividades para manter os postos de trabalho e garantir os direitos da categoria. “Em muitas delas houve compromisso da Braskem e da Petrobras de que não haveria demissões, mas até agora já foram mais de 500 trabalhadores demitidos somente entre os diretos. Se forem levados em conta os terceirizados, esse número mais que triplica”, diz Eitor, lembrando que esta é uma prática antiga na Braskem. Desde o início, quando ela assumiu o Polo de Camaçari, na Bahia, as demissões se sucedem. “Lá foram mais de 1.500, e a retirada de vários direitos”, acrescenta.
Seminário sobre práticas antissindicais no FSM
“Em muitas delas houve compromisso da Braskem e da Petrobras de que não haveria demissões, mas até agora já foram mais de 500 trabalhadores demitidos somente entre os diretos” Práticas antissindicais Os trabalhadores petroquímicos também distribuíram o material no seminário do Fórum que debateu o tema das praticas antissindicais. Segundo Eitor, a perseguição a dirigentes sindicais, monitoramento dos locais onde os trabalhadores costumam fazer manifestações, assédio moral
descarado dentro das fábricas, pressão nas assembleias de trabalhadores para aprovar as propostas da empresa, ameaças veladas de demissões e até controle do caminhão de som utilizado normalmente pelo sindicato nas atividades são práticas rotineiras na Braskem. “São ações inaceitáveis que não desrespeitam somente
o sindicato, mas a todos os trabalhadores”, destaca ele. Eitor salienta que os prejuízos não são só para os petroquímicos. “A sociedade irá pagar o preço por essa concentração, além da própria Petrobras”. Ele explica que, em relação à estatal, a Braskem terá condições de influenciar muito no preço da nafta, produto do qual a Petrobras é fornecedora. Em relação à sociedade, como a Braskem será a única produtora de matérias-primas petroquímicas, já que está com todos os polos sob seu controle, poderá ditar os preços em relação à indústria de transformação. “A conta, quem pagará, será a sociedade, o consumidor final dos produtos de origem petroquímica; tanto as indústrias de segunda e terceira geração como a própria população”. Para Eitor, desde a indústria automobilística à dona de casa que compra um pote de plástico no mercado, incidirá o preço do produto influenciado pela Braskem. “Com a ganância da Braskem, a busca desenfreada e desumana por lucros, as práticas de gestão perversas e o desrespeito aos direitos dos trabalhadores, características que ela imprime onde quer que chegue, o que se pode esperar dessa empresa?”, desafia.
6
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
brasil
Governo atropela diálogo para leiloar Belo Monte ENERGIA De olho nas eleições, poder público ignora riscos ambientais, estudos e debates Glenn Switkes/International Rivers
Patrícia Benvenuti da Redação APESAR DAS manifestações contrárias de movimentos sociais e organizações ambientalistas, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu, no dia 1º, a licença ambiental prévia para a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA). A liberação da licença prévia não significa ainda a autorização para o início da obra, mas permite a realização de leilão para decidir qual consórcio será o responsável pelo empreendimento. De acordo com o Ministério de Minas e Energia, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) deve publicar em breve o edital do leilão, e a expectativa é de que o processo ocorra em março. O governo tentou realizar o leilão no final de 2009, mas a licitação teve que ser adiada pela falta da licença. A Usina de Belo Monte constitui o carro-chefe dos projetos energéticos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e terá capacidade para gerar 11,2 megawatts médios (MW) a partir de 2015. O custo total da obra, segundo o governo, será de R$ 16 bilhões, com a inundação de uma área de 516 quilômetros quadrados. A hidrelétrica será a segunda maior do país e a terceira do mundo, atrás apenas de Três Gargantas (China) e da usina binacional de Itaipu. Lideranças locais, comunidades tradicionais e pesquisadores, porém, apontam que o projeto deve causar um desastre na região, com impactos ao meio ambiente e a populações tradicionais de indígenas e ribeirinhos. Estima-se que 30 mil famílias serão despejadas, e bairros inteiros devem ser inundados em Altamira (PA). O município também deve ser impactado pelo intenso fluxo de mão-deobra atraída pelas promessas de emprego, comprometendo ainda mais sistemas básicos como saúde e educação. Crítica Contrário ao projeto, o presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), dom Erwin Krautler, lamentou a concessão da licença e a falta de diálogo que vem marcando o processo. Em julho, o bispo integrou uma comissão de representantes da bacia do Xingu para discutir a implantação da hidrelétrica. “O presidente Lula me prometeu, em 22 de julho [de 2009], que não ia empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja e que o diálogo teria que continuar. Infelizmente não houve diálogo, de jeito nenhum”, afirma. Em novembro, a Justiça Federal de Altamira (PA) chegou a suspender o licenciamento da hidrelétrica por considerar insatisfatórias as audiências públicas realizadas até então para discussão da obra junto às comunidades. A liminar, no entanto, foi derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 1° Região (TRF-1), que acolheu pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) juntamente com a Procuradoria do Ibama. Condicionantes Junto com a licença, o Ibama divulgou uma lista com 40 condicionantes que deverão ser cumpridas pelo empreendedor para a execução da obra. No documento constam medidas socioambientais como saneamento, melhoria das condições de vida da população impactada, monitoramento de florestas e adoção de unidades de conservação. No anúncio da liberação, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, afirmou que as condicionantes são “ações de mitigação aos impactos do empreendimento” e que o valor para implementação das medidas pode chegar a R$ 1,5 bilhão. A aparente solução, porém, não convenceu o advogado Raul Silva Telles do Vale, do Programa de Políticas e Direitos do Instituto Socioambiental (ISA). De acordo com ele, o Ibama não disponibi-
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Belo Monte – 1
Pressionado por empresas empreiteiras e de mineração, o governo federal tratorou o processo do Ibama para aprovar a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará. Em defesa da população que será duramente afetada pela obra (povos indígenas, pescadores, moradores do município de Altamira), dom Erwin Krautler, bispo da Prelazia do Xingu e presidente do Cimi, alerta que a reação dos povos da floresta é “imprevisível”.
Belo Monte – 2
Em entrevista coletiva em São Paulo, dia 29 de janeiro, no auditório da Livraria Paulinas, dom Erwin Krautler deixou claro que os danos ambientais causados pela usina de Belo Monte serão irreversíveis, já que o lago da barragem deverá destruir o ecossistema do rio Xingu, inundar terras indígenas, provocar o despejo de 30 mil famílias e destruir sítios arqueológicos importantíssimos. Enfim, um desastre natural, humano e cultural – para beneficiar alguns grupos empresariais.
Congelador
Não apenas os processos contra a Construtora Camargo Corrêa e o banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity, foram congelados pelo Judiciário: dezenas de casos apurados pela Polícia Federal e denunciados pelo Ministério Público, nos últimos anos, dormem em berço esplêndido, especialmente os que envolvem empresários nos crimes de sonegação fiscal, evasão de divisas e corrupção ativa de funcionários públicos. Por que será?
Mulher Kayapó banha criança no rio Xingu: impactos ambientais afetarão populações tradicionais
“O presidente Lula me prometeu, em 22 de julho [de 2009], que não ia empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja e que o diálogo teria que continuar. Infelizmente não houve diálogo, de jeito nenhum” lizou, em sua página na internet, uma série de documentos necessários para um exame mais detalhado das proposições e de seus benefícios reais. “A falta de transparência atrapalha a análise das condicionantes”, esclarece. O tamanho da lista e da cifra que pode ser gasta com as benfeitorias também não pode ser considerado, por si só, uma boa notícia. Pelo contrário: para Vale, o alto número de condicionantes expõe a fragilidade do projeto. “A quantidade de condicionantes não quer dizer nada. Se você
tem um bom estudo, não precisa de condicionantes. E também, se você tem muita condicionante, é uma obra com problema”, alerta. Dom Erwin também critica a precariedade dos estudos do Ibama. “As condicionantes falam que ainda tem que se estudar a qualidade da água. Ora, se isso ainda tem que ser estudado, por que cargas d’água se publica então essa licença prévia para o leilão, já que ainda não foi suficientemente estudado?”, questiona. A resposta, para o advogado do ISA, está nos interesses envolvi-
dos na construção da usina, que atropelaram as demais preocupações. “Tinha um calendário político para emitir o licenciamento, e foi ele que prevaleceu”, conclui. Acirramento A liberação da licença prévia pode ainda agravar os tensionamentos na região. O alerta é do coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Marcos Apurinã. Ele lembra que, em carta, os povos indígenas já solicitaram ao governo a paralisação do licenciamento e anunciaram que estão dispostos a entrar em confronto com os brancos caso seja instalada a hidrelétrica Belo Monte. “As comunidades já deram seu recado”, afirma Apurinã, que responsabiliza o poder público por possíveis conflitos. “O primeiro tijolo construído será derrubado, e o governo será responsável pelo que acontecer lá”, sentencia.
ANÁLISE Marcello Casal Jr/ABr
Usina colonial
Dívida Pública – 1
O governo aumentou a dívida pública federal em R$ 100 bilhões, em 2009, exatamente 7,16% acima do final de 2008. Agora está em R$ 1,497 trilhão. O aumento foi feito com a emissão de títulos para captar recursos para o BNDES. O banco estatal tem usado esses recursos para financiar, com juros baixíssimos, grandes grupos empresariais, nacionais e estrangeiros, entre os quais a indústria automobilística e o agronegócio exportador. Quem vai pagar?
Dívida Pública – 2
O aumento da dívida pública vai obrigar o governo a promover superavit primário destinado ao pagamento de juros, o que significa reduzir investimentos públicos em áreas sociais ou desonerar setores geradores de empregos. A elevação da dívida só faz sentido quando acoplada a políticas de distribuição da renda e melhoria das necessidades básicas da população. Caso contrário, é transferência de renda para o capital privado.
Luta política
A imprensa empresarial-burguesa do Brasil caiu de pau – mais uma vez – no presidente da Venezuela, Hugo Chávez, porque a autoridade de comunicação de lá puniu as emissoras de TV que não transmitiram programação obrigatória em rede nacional. Mais uma vez a RCTV, aquela que perdeu a concessão de canal aberto, foi punida e alegou que não entrou em rede porque sua sede fica em Miami. A gritaria é luta política e ideológica!
Teto salarial Lúcio Flávio Pinto TALVEZ A projetada hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, se torne única na história da energia em todo mundo: o custo da transmissão irá superar o da geração. Jorge Palmeira, presidente da Eletronorte, diz que a obra da usina sairá por valor “superior” (não diz em quanto) a R$ 6 bilhões. Já a linha de transmissão custará R$ 7 bilhões. Em geral, a hidrelétrica é muito mais cara do que a sua linha. Por que a diferença? Belo Monte foi concebida para gerar energia para consumidores que estão a grande distância, e não para atender demanda local. Suas linhas de transmissão poderão chegar a 3 mil quilômetros de extensão para que atinja os mercados mais eletrointensivos do país. Como o pacote completo do projeto, superando R$ 13 bilhões, dificilmente atrairia interessados e ainda exporia o seu custo a críticas, foi dividido em duas partes e assim será licitada. Como se trata de um projeto colonial, de transferência de energia bruta para transformação em outro local, o que acontecerá é que essa linha de transmissão será quase só de mão única. No período úmido, quando chover bastante no vale
O ministro Carlos Minc e o presidente do Ibama, Roberto Messias
do rio Xingu, ela remeterá para o sul uma enorme quantidade de energia, que a Eletronorte continua a dizer que chegará a 11 mil megawatts (um terço a mais do que a potência máxima de Tucuruí). No período seco, quando não houver água suficiente sequer para movimentar uma das 20 máquinas da casa de força da usina, não virá por esse linhão a energia do sul, que estará em período hidrológico favorável, através do sistema integrado nacional. Por quê? Porque não haverá demanda significativa em torno de Belo Monte – típico projeto de enclave e não de desenvolvimento – para absorver a carga justificável para transferência em alta tensão por essa distância. Se o que a Eletronorte diz for verdadeiro, mesmo em certos momentos do verão no Xingu, quando poderá estar gerando
de 800 a mil MW, Belo Monte continuará a ser um sangradouro de energia do Pará se não surgir empreendimentos produtivos associados à oferta abundante de energia. Por enquanto, essa relação não foi estabelecida. O que existe são conjecturas e especulações. Ou, quando muito, intenções não consolidadas. Se Belo Monte sair, o Pará se tornará o maior exportador de energia bruta do Brasil (é o 3º no momento). Talvez do mundo. Não é um título que nos honre, muito pelo contrário; estará mandando para outros lugares um dos principais insumos do desenvolvimento para se subdesenvolver cada vez mais. (Artigo originalmente publicado no Jornal Pessoal, de Belém-PA) Lúcio Flávio Pinto é jornalista e sociólogo.
Em 1994, quando as primeiras operadoras de TV a cabo iniciaram acirrada disputa com a perspectiva de expansão do mercado, tinham como previsão que o Brasil teria, até o ano 2000, algo em torno de 10 milhões de assinantes. No entanto, a coisa não caminhou conforme o previsto, já que ainda hoje – em 2010 – o número de assinantes da TV paga está em torno de 7 milhões, e assim mesmo com muita inadimplência. A renda não ajuda!
Conexão nacional
As empresas privadas de telefonia estão em pé de guerra contra a proposta governamental de recriação da Telebras (InfoBrasil), que assumiria o fornecimento de banda larga para o setor público e localidades onde o setor privado não tem interesse econômico. A mídia burguesa, como sempre, está bombardeando o projeto, que pode representar grande economia para os cofres públicos e para os bolsos dos cidadãos. Será que o governo vai peitar?
Deu desemprego
Ao longo de 2009 a grande mídia divulgou inúmeras vezes, com base em fontes do governo, a queda do desemprego e o aumento de empregos formais – sempre como prova de superação da crise econômica e retomada do crescimento. Agora, dado oficial do IBGE constata que 2009 fechou com taxa de desocupação de 8,1%, pouco acima da taxa de 2008, que foi de 7,9%. Aumentou mais o desemprego entre trabalhadores com maior escolaridade.
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
7
8
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
cultura Reprodução
Muito além do campo de
centeio
LITERATURA O retrato da desilusão juvenil no pós-guerra marcou a obra do escritor estadunidense J.D. Salinger; mas quem foi esse tipo recluso e misterioso? Ligia Ximenes de São Paulo ENTRE OS mais jovens, talvez a morte de Jerome David Salinger tenha passado despercebida. Afinal, para os adolescentes que consomem autoajuda acreditando que há fórmula para a felicidade, são ultrapassadas as inquietudes do escritor estadunidense que em 1951 pintou o retrato da juventude no cenário pós Segunda Guerra Mundial, ao retratar um dia na vida de Holden Caulfield. Protagonista do aclamado romance O apanhador no campo de centeio, Caulfield é um garoto de 17 anos, destes articulados e irônicos que hoje são comuns em vários dos seriados norte-americanos. Ele vive o sonho americano – nasceu em família rica, com dinheiro para matriculá-lo no Pencey, um desses tradicionais colégios preparatórios. Só que, diferente dos meninos dos seriados, ele não está contente com nada.
Expulso do colégio depois de ser reprovado em quatro matérias, o anti-herói de Salinger vaga por uma Nova York gelada, às vésperas do Natal, questionando a hipocrisia e os valores do mundo adulto. É um desses meninos que não se encaixam, um pouco como o velho Salinger, que, um ano após a publicação de “O apanhador”, se recolhe do burburinho na bucólica Cornish, em New Hampshire.
A dúvida sempre pairou no ar e, quando se anunciou a morte do autor, começou a especulação em torno de um baú da casa em Cornish [onde passou seus últimos dias] contendo manuscritos inéditos
A outra escola Como Caulfield, Salinger também estudou em colégios nos quais se prepara a elite norte-americana. Também, como sua personagem, Salinger foi expulso. Matriculou-se na academia militar de Valley Forge, na Pensilvânia, formando-se aos 18 anos. Depois, viveu alguns meses na Europa, tentando aprender o ofício do pai, um comerciante de artigos de luxo de Nova York. De volta, matriculou-se num curso noturno de literatura e foi lá que descobriu seu talento.
Apesar disso, houve um episódio mais determinante para formar o Salinger que conhecemos do que essas aulas de literatura. Aconteceu quando o Japão atacou a base norte-americana de Pearl Harbour, determinando a entrada dos Estados Unidos na Segunda Grande Guerra. Em 1942, Salinger passou a servir ao exército, e, em março de 1944, sua unidade foi convocada a se preparar para a invasão da Normandia. Enquanto esperava a ordem pa-
ra o ataque, escreveu seis capítulos de um romance que tinha uma personagem muito parecida com o próprio Salinger adolescente. Para o crítico literário Paul Fussell, é dessas experiências que vêm a ironia e o completo desprezo de Holden Caulfield pelas coisas que o cercam. Sobre a guerra, aliás, diz o menino em determinada passagem de “O apanhador”: “Juro que, se houver outra guerra, é melhor me pegarem logo e me botarem na frente de um
pelotão de fuzilamento. Juro que não ia protestar”. Para além de “O apanhador”, Salinger se consagraria com uma narrativa direta e fustigante e três outros títulos: Nove estórias (1953), Franny e Zooey (1961) e Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira & Seymour, uma introdução (1963), nos quais são contados pedacinhos da história da família Glass, outra célebre criação salingeriana. Obras inéditas? Ao longo dos três títulos de Salinger, conhecemos os sete irmãos: Franny e Zooey, os gêmeos Walt e Walter, Boo Boo, Buddy e Seymour, este, o primogênito que na juventude lutou a Segunda Guerra Mundial e depois se tornou professor na Universidade de Columbia. É ele quem
protagoniza o pungente conto “Um dia ideal para os peixe-banana” e também a personagem principal de Hapworth, 16 (1924), o único título de Salinger ainda não publicado. Mas seria “Hapworth” única criação de Salinger ainda inédita para a maior parte de nós? A dúvida sempre pairou no ar e, quando se anunciou a morte do autor, começou a especulação em torno de um baú da casa em Cornish [onde passou seus últimos dias] contendo manuscritos inéditos. Quem melhor dá a pista para entender essas décadas de silenciosa reclusão é o próprio autor, em O apanhador no campo de centeio: “A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo”.
MÚSICA
O síndico, o romântico e o general; ou 40 anos esta noite Aldo Gama da Redação FOI EM 1970 que Paul McCartney anunciou o fim dos Beatles, que o Brasil ganhou o tricampeonato mundial de futebol, que o Concorde fez o primeiro voo supersônico e que estreou a comédia Betão Ronca Ferro, de Mazzaropi. Também foi o ano em que Roberto Carlos deu adeus à Jovem Guarda e que Tim Maia lançou seu primeiro álbum. Tudo sob o olhar atento da ditadura civil-militar. Alguns milhões em ação Emílio Garrastazu Médici chegou ao poder em 1969 prometendo restabelecer o regime democrático, mas acabou sendo responsável pelo período de maior repressão na história política do país. Era o “milagre brasileiro” em ação, época de grande desenvolvimento econômico que, paradoxalmente, resultou no aumento da concentração de renda. A propaganda do regime teve a seu lado a conquista da Copa do Mundo de 1970 no México, gerando marchinhas ufanistas e a ideia de que o Brasil seria uma potência mundial. Mas Tim Maia e Roberto Carlos tinham outras preocupações. O primeiro buscava estabelecer-se no cenário musical e o segundo queria desvencilhar-se definitivamente
da imagem de ídolo das tardes de domingo. E a música “soul” estadunidense seria o instrumento utilizado por ambos. Da Tijuca para o mundo Tim e Roberto eram velhos conhecidos da Tijuca, subúrbio carioca, onde foram companheiros no conjunto Os Sputniks, em 1957. Mas o grupo durou pouco, se dissolvendo após uma briga entre os dois. Em 1959, Tim embarca para os Estados Unidos, onde aprende o idioma e se envolve com a música negra local. Fica no país até 1963, quando é preso por porte de drogas (maconha) e deportado. De volta ao Brasil, encontra os amigos desfrutando o sucesso da Jovem Guarda. Tim consegue gravar duas canções de sua autoria em 1968, sem maiores repercussões, mas, no ano seguinte, outro compacto com a música “These are the songs” atraiu atenção suficiente (foi regravada por Elis Regina) para garantir o lançamento de um LP. Roberto vivia um momento bem distinto. Após algumas tentativas frustradas – incluindo o LP Louco por você, de 1961, e que ele próprio impede o relançamento –, grava “Splish, splash” em 1962, dando início a uma série de sucessos sob o guardachuva da Jovem Guarda que, em 1968, já dava sinais de cansaço.
Executada à exaustão na época, dado o caráter ufanista que se adequava aos interesses da ditadura, a composição é até hoje polêmica Mas agora resolvi falar A paternidade do soul brasileiro pode até gerar controvérsia, mas ninguém contesta que Tim Maia é o principal representante do gênero. Para muitos, ele seria até responsável pela criação de um novo tipo de música ao misturar o estilo estadunidense com ritmos tradicionais brasileiros. Polêmicas à parte, anos depois da dissolução dos Sputniks, os caminhos de Tim e Roberto voltam a se cruzar. Em O Inimitável (1968), Roberto já se mostrava adepto desse tipo de música, incluindo a batida e arranjos de metais em canções como “Se você pensa” e “Não há dinheiro que pague”. Mas é no seguinte, no álbum Roberto Carlos, que o gênero é abraçado sem restrições em músicas como “As curvas da estrada de Santos” e “Não vou ficar” (esta última de autoria de Tim Maia). O primeiro LP de Tim, lançado em 1970, trouxe o sucesso que ele tanto aguardava. Bem recebido pela crítica e pelo público, foi um dos mais bem vendidos daquele ano, estabelecendo ainda alguns clássicos do cancioneiro po-
pular do país, como da “Cor do mar” e “Primavera”. Números da indústria O final da década de 1960, no Brasil, também ficou marcado pelo desenvolvimento da indústria fonográfica. Em 1966, segundo dados da Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), eram vendidos 5,5 milhões de álbuns no país, número que salta para 10,6 milhões em 1970, um aumento de quase 100% em cinco anos. A consolidação desses artistas, é provável, teria sido beneficiada por essas condições uma vez que, em 1980, as vendas chegam a 46,9 milhões. Ame-o ou deixe-o! Mas Tim e Roberto tiveram forte concorrência. Escrita por Dom, da dupla Dom e Ravel, a marchinha “Eu te amo, meu” Brasil foi gravada pelo grupo Os Incríveis e lançada em um compacto em outubro de 1970 – e mais tarde incluída no LP lançado em dezembro daquele ano, que trazia ainda “Adeus, amigo vagabundo”, homenagem ao guitarrista estadunidense Jimi Hendrix, morto pouco antes, em setembro.
Executada à exaustão na época, dado o caráter ufanista que se adequava aos interesses da ditadura, a composição é até hoje polêmica. Para alguns, uma peça publicitária encomendada pelos golpistas. Para o autor, apenas uma canção que traduzia “o clima de entusiasmo do povo, resultante do grande sucesso do futebol brasileiro” e que pretendia “despertar sentimentos de afeto pelo país, a graça e o carinho da mulher brasileira, e a vontade que se tem sempre de semear o amor entre nosso povo”. Oportunista ou ingênua, a música foi um dos maiores sucessos de Os Incríveis, que viram ali um filão a ser explorado. Em 1971, o Hino Nacional Brasileiro foi o lado A do compacto que, no lado B, trazia o Hino da Independência do Brasil. Em 1976 seria a vez do “clássico” “Este é um país que vai pra frente” (...De um povo unido, de grande valor/ É um país que canta, trabalha e se agiganta/ É o Brasil de nosso amor...) e de “Este é o meu Brasil” (ambas de Heitor Carillo). No ano seguinte, outro compacto trazia “O Brasil é feito por nós”, do mesmo compositor. Trocando em miúdos Ainda em 1970, Roberto faria uma bem-sucedida temporada na casa de espetáculos Canecão, no Rio de Janeiro. O show Roberto Carlos a 200 km por hora consolidaria
seu nome como grande intérprete e o afastaria de vez da Jovem Guarda. O soul ainda seria importante nos discos seguintes, como “Todos estão surdos” (1971) e “Não adianta nada” (1973), mas perderia espaço à medida em que Roberto se estabelecia como um intérprete de canções românticas. E aí o caminho dos dois se separam de vez. Tim Maia continuou investindo no gênero, lançando clássicos como “Gostava tanto de você”, “Réu confesso” e “Sossego”. Roberto começou a incluir músicas religiosas em seus discos. Tim entrou para uma seita procurando discos voadores. Roberto virou uma estrela internacional de difícil acesso. Tim deixava as crianças do bairro brincar em sua piscina. Roberto é uma das principais estrelas de uma multinacional. Tim Maia foi um dos primeiros artistas nacionais a possuir seu próprio selo (Seroma). Roberto sofre de TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo). Tim era usuário de inúmeras drogas “recreativas”. E, se em dezembro do ano em que os Beatles chegaram ao fim, John Lenon dizia que o sonho tinha acabado, para dois ex-membros dos Sputniks ele apenas começava. Para Tim, pelo menos, até 1998, quando, aos 55 anos, morreu após internação hospitalar devido a uma infecção generalizada.
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
9
américa latina
De olho nas eleições legislativas, guerra midiática recobra força Reprodução
VENEZUELA Oposição se aproveita de aspectos relacionados a crises setoriais para desgastar ao máximo governo Chávez até setembro, quando ocorrerá o pleito para o Parlamento Manuela Sisa de Caracas AO DAR INÍCIO ao 11º ano à frente da presidência da Venezuela, o governo de Hugo Chávez mais uma vez é colocado à prova. Crise energética e de abastecimento de água, aliados à saída do ar do canal privado RCTV, têm sido o pivô de protestos da oposição. No entanto, de acordo com analistas, a motivação dos adversários do governo vai além da defesa do acesso às necessidades básicas da população ou do livre pensamento: os partidos opositores, aproveitando a falta de investimentos em tempo hábil para evitar apagões e a escassez de água até as eleições legislativas de setembro, veem nestas a oportunidade de retornar à atividade política institucional e reverter, assim, a correlação de forças até agora favorável ao governo. Para alcançar esse objetivo, os partidos opositores têm utilizado o movimento estudantil – que voltou à cena na última semana – como “ponta-de-lança” para esquentar as ruas e canalizar, favoravelmente, o desgaste político chavista. Aposta no desgaste “A demanda dos estudantes, em termos gerais, é a defesa da liberdade de expressão e de imprensa, mas, fundamentalmente, ao avaliar as declarações desse grupo, há uma clara relação entre a de-
Estudantes protestam contra retirada do sinal da emissora RCTV
“A estratégia será evidenciar os erros relacionados a crises parciais e setoriais e aplicar o desgaste definitivo com o objetivo de conquistar espaço na Assembleia Nacional e forçar a saída de Chávez do governo” fesa da RCTV e a batalha eleitoral”, afirma ao Brasil de Fato Javier Biardeau, analista político e professor de sociologia da Universidade Central da Venezuela. “A estratégia será evidenciar os erros relacionados a crises parciais e setoriais e aplicar o desgaste definitivo com o objetivo de conquistar espaço na Assembleia Nacional e forçar a saída de Chávez do governo”, acrescenta. As manifestações estudantis eclodiram no dia 26 de janeiro, logo após a suspensão das transmissões do canal privado RCTV e de outros cinco canais de transmis-
são por TV a cabo, por desacato a uma nova legislação (leia matéria nesta página sobre o pivô da crise com a RCTV). Três dias depois de tiradas do ar, três dessas emissoras compareceram à Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel), apresentaram a grade de programação comprovando que são canais internacionais – ou seja, não são obrigadas a cumprir a nova regra – e, logo depois, voltaram ao ar. Agenda eleitoral Agravando a tensão interna, a disputa com as televisoras ocorreu ao mesmo tempo
que o vice-presidente, Ramón Carrizález, militar conservador do núcleo duro do governo, e sua esposa, Yubirí Ortega, renunciaram, alegando “motivos pessoais”. Tal decisão alimentou a ideia intensificada pela oposição de que os dias de Chávez no governo estariam contados. “O impacto internacional da crise interna é parte da acumulação de informação negativa no campo midiático. A guerra política e virtual agora recobram força e a imagem que querem projetar do Chávez é a do tirano que está sofrendo os últimos momentos no poder”, avalia Biardeau. Durante os protestos, dois estudantes vinculados ao chavismo foram assassinados em enfrentamentos entre manifestantes oficialistas e opositores no Estado de Mérida. O governo responsabilizou a oposição. A imprensa local minimizou o fato de que os jovens assassinados eram simpatizantes do governo.
A imprensa internacional ignorou o fato, convertendo os jovens chavistas em opositores que teriam sido mortos em repressão governamental. À espera da repressão “Estão buscando mortos para poder dizer ao mundo que aqui há violação dos direitos humanos, o que não é correto”, afirma ao Brasil de Fato o vice-presidente do Parlamento, Dario Vivas, que acrescenta: “Tudo isso de olho na Assembleia. Mas nós temos povo organizado e o mostraremos nas ruas”. Nos últimos dias, as mobilizações estudantis, que chegaram a reunir 3 mil pessoas, vêm perdendo força. No entanto, continuam denunciando a ineficiência governamental no manejo da gestão pública, além das queixas à criminalização do protesto. “No fim-de-semana, o governo fez um chamado à guerra contra o movimento estudantil, do povo contra o povo. Querem que sejamos
atacados pelo povo, mas nós somos o povo. Não entraremos na agenda da violência”, afirmou Roderick Navarro, dirigente estudantil opositor, em entrevista coletiva. Na avaliação de Javier Biardeau, as manifestações estudantis – que, a seu ver, são financiadas por agências estadunidenses como a USAID e a NED, “que apoiam mobilizações antigovernamentais em países que são inimigos oficiais dos Estados Unidos” – devem durar até as eleições de setembro. “As manifestações buscam uma repressão desmedida do governo, erros como detenções e repressão, para depois conseguirem uma reação da comunidade internacional”. Outra realidade A Comissão Interamericana de Direitos Humanos já manifestou “preocupação” com os atos de violência ocorridos durante os protestos e pediu ao governo que investigue o uso “indevido da força” policial durante as manifestações. Diferentemente de oportunidades anteriores, quando a polarização entre chavistas e antichavistas favorecia o governo, a realidade agora é outra. “A oposição tem uma vantagem agora porque o governo está na defensiva. Ainda não conseguiu identificar quais são suas debilidades e não tem capacidade de correção política por apresentar uma posição exageradamente arrogante frente ao adversário”, analisa Biardeau. No ato político de comemoração do 11º aniversário de seu governo, no dia 2 de fevereiro, Chávez rebateu os rumores de que a crise interna desembocaria em um levantamento popular capaz de derrocá-lo. “Nestes dias, dirigentes e centros de estudos estão dizendo que a Venezuela está à beira de um Caracazo [rebelião popular de 1989], por isso eles estão como estão. Tem gente que de tanto dizer mentiras termina sendo vítima delas e atua em consequência [disso]”, disse Chávez, acrescentando: “As rebeliões na Venezuela não são feitas pelos ricos, são feitas pelos pobres”.
Santiago Armas (Presidência do Equador)
Governo tenta diminuir custo político da crise energética
Pivô da disputa entre RCTV e governo é a restrição à publicidade Nova legislação para a radiodifusão determina, entre outras coisas, fim de comerciais entre dois blocos do mesmo programa de Caracas (Venezuela) A controvérsia que desatou a nova crise entre governo e oposição está na divergência em relação à definição, ou não, do caráter nacional da RCTV. Segundo a Conatel, 94% da programação da RCTV é de conteúdo venezuelano, elemento que qualifica a emissora como nacional. De acordo com uma nova normativa para radiodifusão, promulgada em 23 de dezembro, os canais que são qualificados como nacionais devem obedecer à lei interna, que determina, entre outras regras, a transmissão de anúncios do governo, a obrigatoriedade de classificação etária da programação e
restrições à transmissão de publicidade. Esse último ponto, no entanto, é o central na disputa entre RCTV e governo. Segundo a nova legislação, os canais de TV nacionais transmitidos por cabo não podem difundir publicidade entre os blocos da programação. Somente ao final e início de cada programa é permitida a difusão de comerciais. Essa restrição, segundo o diretor do canal, Marcel Granier, o tornaria “economicamente inviável”. São considerados produtores nacionais os canais de TV que contenham 70% ou mais de produção audiovisual venezuelana, ou seja, a realizada com capital, pessoal técnico, artístico e locações do país. “Plano político” A RCTV, por sua vez, argumenta que a avaliação do conteúdo de sua programação foi feita antes do dia 13 de janeiro, data que, de acordo com a direção da emissora, o canal reduziu a programação nacional a 30%, elemento que o definiria como internacional. A Conatel diz que, se isso for verdade, a RCTV deve apresentar a grade de sua programação à instituição para, em segui-
de Caracas (Venezuela)
Canal de TV tenta colar no governo a imagem de autoritário e repressor
da, poder voltar ao ar. A emissora, que espera a definição do Supremo Tribunal de Justiça, afirma que não negociará com o governo. No entanto, na opinião de Arlenin Aguillón, professor de Semiótica da Universidade Bolivariana da Venezuela, “não estão protestando por um aspecto técnico ou legal. A oposição está utilizando um fato noticioso para levá-lo ao plano político, ao acusar o governo de repressor e autoritário”, afirma ao Brasil de Fato.
A seu ver, se o caso RCTV é avaliado essencialmente pelo aspecto legal, a polêmica perde sentido. “Se vamos ao plano legal, o governo tem razão. Terá de assumir um custo político, sem dúvida, mas como em qualquer país do mundo, a lei deve ser respeitada”, avalia. A disputa entre a RCTV e o governo se arrasta desde 2007, quando o Executivo decidiu não renovar a concessão da emissora. Desde então, o canal deixou de ser transmitido no sinal aberto. (MS)
Em uma tentativa de diminuir o custo político da crise energética, o governo da Venezuela decidiu poupar as residências de Caracas do programa de racionamento de eletricidade em vigor em todo o país. O novo plano determina que os “grandes consumidores” da capital reduzam o consumo em 20%. Segundo a agência estatal ABN, serão poupados do racionamento “pequenos comércios, o setor residencial e setores de alta sensibilidade social”. A data para implementação da medida ainda não foi divulgada. Essa é a terceira tentativa do governo de estabelecer um programa de economia de eletricidade na cidade. O presidente venezuelano, Hugo Chávez, já voltou atrás em medidas como cortes de luz de até quatro horas em dias intercalados e mudança no horário de funcionamento de shoppings. A Venezuela sofre com os efeitos de uma severa seca que levou à redução dos níveis da principal represa que abastece a usina hidrelétrica de Guri, responsável por quase a totalidade da energia utilizada no país. No país petroleiro, 70% da energia é proveniente de hidrelétricas. Recentemente, em uma tentativa de diminuir a crise, o governo anunciou o investimento de 1 bilhão de dólares no setor, além de ter recorrido à ajuda de Brasil e Cuba para tentar amenizar a crise. O ministro cubano de Tecnologia, Ramiro Valdés, encabeça a comissão técnica venezuelana para paliar a crise. “Eles [os cubanos] tiveram [problema elétrico] muito grave em outras épocas (...) está conosco, à frente dessa comissão, um dos heróis da Revolução Cubana, o comandante Ramiro Valdés”, anunciou Chávez. (MS)
10
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
américa latina Wilson Dias/ABr
Movimento social hondurenho muda estratégia ENTREVISTA À frente da resistência, Lorena Zelaya defende foco na convocação da Assembleia Constituinte e boicote aos golpistas Leandro Uchoas, Otávio Nagoya, Julio Delmanto, Gabriela Moncau e Bárbara Mengardo de Porto Alegre (RS) NO DIA 27 de janeiro, o golpe de Estado em Honduras, cometido em junho de 2009, deu novo passo. Porfirio “Pepe” Lobo, vencedor das eleições (boicotada por movimentos sociais) realizadas em novembro de 2009, assumiu o comando do país em substituição ao ditador Roberto Micheletti. Por sua vez, o presidente deposto Manuel Zelaya deixou o país. Líder da Frente Nacional de Resistência Popular, Lorena Zelaya (que não possui nenhum parentesco com o presidente deposto) deu entrevista ao Brasil de Fato durante o Fórum Social Mundial (FSM) 10 anos, em Porto Alegre (RS). Lúcida e destemida, ela afirma que não vai haver negociação com o governo “eleito” do país e acusa os golpistas de tortura e boicote econômico. Brasil de Fato – Queríamos conhecer um pouco da história desse movimento.
Lorena Zelaya – É um movimento composto por trabalhadores e trabalhadoras, sindicalistas, colégios magisteriais, grupos de jovens. Um espaço com muitas organizações, que surge da luta contra os tratados de livre comércio. Isso é importante, porque o que aconteceu agora em Honduras tem a ver com essa resistência. Fomos contra as privatizações, pelos direitos trabalhistas etc.
“Recentemente li que o Brasil não iria reconhecer o governo de Porfírio Lobo. O que pedimos à comunidade internacional é isso” Mas em que ano surge?
Em 2000. Já havia outros espaços em Honduras desde a década de 1980. Foi muito forte a mobilização. Muitos estudantes morreram. Até hoje há desaparecidos. E por que isso é importante? O atual assessor de Michelleti, por exemplo, é quem fez desaparecer, torturou e matou pessoas nos anos de 1980. Chama-se Billy Joya Amendola e é o assessor de Segurança. O que acontece em Honduras é então uma grande radiografia dessas conexões. Não somente do golpe, mas todas as conexões das oligarquias, dos meios de comunicação. Quando o golpe aconteceu, o país inteiro estava se preparando para sair a vo-
tar. Iríamos todos às urnas. E, às seis da manhã, recebemos a notícia do golpe de Estado. Ninguém sabia se era sério ou brincadeira. Antes disso, já haviam dito ao presidente Zelaya que não poderia haver consulta de nenhum tipo, apesar de termos uma lei de participação cidadã e de constitucionalmente podermos. Ameaçaram destituir o presidente. Quando veio o golpe, todo mundo começou a chegar à casa presidencial. Vinha gente de todo lado. Então, criamos a Frente Nacional contra o Golpe de Estado. O que foi decisivo para que se desse o golpe?
Zelaya começou a manter relações com o movimento popular. Outra coisa que fez foi aderir à Alba [Alternativa Bolivariana para as Américas, aliança que reúne Antigua e Barbuda, Bolívia, Cuba, Dominica, Equador, Nicarágua, São Vicente e Granadinas e Venezuela] e à Petrocaribe [aliança petrolífera entre a Venezuela e países da América Central e do Caribe]. Eram ações muito fortes, que foram deixando-o cada vez mais só. A única alternativa que tinha era o movimento popular. Então, quando a corte diz que ele não podia fazer o referendo, ele leva as urnas a uma base militar. Subiu em um ônibus para trazer as urnas. Imagine o presidente da República na porta de um ônibus para trazer as urnas. Por isso, as pessoas acreditavam que poderia haver mudanças. Ele aprovou um salário mínimo que nunca se pensou ser possível. Mais de 50% de aumento. De 3 mil a 5,5 mil lempiras [cerca de R$ 546]. O aumento historicamente sempre foi de 8%, no máximo 10%. Então, por acreditar nele, a população saiu às ruas.
Como foi o processo da convocação das eleições?
Um ano antes do processo eleitoral, Zelaya já fez a convocatória. O Tribunal Superior Eleitoral é composto pelos mesmos partidos tradicionais golpistas. São autônomos, mas conservadores. Ele convocou as eleições tendo ainda um tribunal supostamente novo. Como não estamos presos a nenhum partido, candidatamos um companheiro trabalhador. Era pre-
Manifestantes fazem marcha pró-Zelaya, no centro de Tegucigalpa, capital hondurenha
“Sustentaram econômica, técnica, tática e militarmente o golpe. Os Estados Unidos são os golpistas intelectuais, os executores” sidente do Sindicato da Indústria de Bebidas. Para isso, nos pediam 40 mil assinaturas, e coletamos 60 mil. Não nos podiam dizer que não. Mas, quando entregamos a documentação, nos pediram um mês e meio. Antes disso, acontece o golpe. Durante a mobilização pós-golpe, dizem a Carlos [H. Reyes], nosso candidato, que ele podia concorrer. Tudo isso para dar legitimidade ao golpe. Mas a candidatura independente renunciou às eleições, e a Frente deu indicativo para não votar. As pessoas não foram. Mas, como o tribunal está nas mãos dos mesmos golpistas, dizem que foram as eleições mais votadas da história. Milhões de pessoas nas ruas dizem que não foram votar. Sabemos que, mesmo que ninguém vá votar, se há um voto, eles ganharam. Mas queremos mostrar à comunidade internacional que a maioria da população estava contra o golpe. Qual a posição da Frente perante o resultado das eleições?
A Frente não reconhece o governo. E a tarefa que tem agora é evidenciar que é um continuísmo do golpe. Há organizações que são combatidas pelo governo, porque não se renderam. Nós não vamos fazer nenhuma negociação com Porfírio Lobo, a não ser que o que esteja colocado seja a Assembleia Nacional Constituinte.
O que você pensa da participação do governo brasileiro?
Tem sido importante para nós. O presidente viveu em terras brasileiras por mais de três meses, na Embaixada. Foi determinante para que não o tivessem retirado, apesar de terem tentado de mil formas – com sons, sonegando água, lançando bombas de gás lacrimogêneo, lançando químicos pelo ar. Se não fosse pelo apoio, acredito que ele Renato Araújo/ABr
Lorena Zelaya, da Frente Nacional de Resistência Popular de Honduras
estaria morto. Então, tem sido muito importante. Recentemente li que o Brasil não iria reconhecer o governo de Porfírio Lobo. O que pedimos à comunidade internacional é isso. Mas com a saída de Zelaya do país, lamentavelmente vai haver muita mudança nas relações internacionais. E quanto à participação do governo dos Estados Unidos? O que você pensa?
Ao longo do golpe, houve decisiva participação dos Estados Unidos. Retiram o presidente de sua casa, e o levam a uma base militar estadunidense em Honduras. E, a partir dali, levam-no para a Costa Rica. Além disso, antes do golpe, chegou a Honduras John Negroponte, um dos maiores torturadores da história, inclusive em Honduras, onde foi embaixador. Embora em outros momentos os Estados Unidos pudessem retirar facilmente o presidente, agora não podiam. Isso justifica esse discurso dúbio. Sustentaram econômica, técnica, tática e militarmente o golpe. Portanto, são os golpistas intelectuais, os executores.
Vocês sofreram muita repressão?
As primeiras mobilizações, no primeiro dia, foram brandas. Achavam que iriam liquidar rapidamente, em um país onde há muitos golpes de Estado. No segundo dia, quando viram que a resistência seria grande, deu-se o primeiro ato de repressão do Exército. Repreenderam nas ruas, com bombas lacrimogêneas, paus, pedras. Muitos foram feridos. E, desse dia em diante, todas as mobilizações são acompanhadas pelo Exército. Em muitos momentos houve repressão, embora as mobilizações fossem sempre pacíficas. Desde os anos 80 eu não via tanta bomba. Caíam como chuva.
Você sofreu pessoalmente alguma repressão?
A repressão está menos intensa. O Exército está preparado para qualquer reação. Mortes acontecem todos os dias. Então, temos muitos companheiros que têm saído do país. E temos que procurar o que fazer com eles. Temos que contar com a solidariedade de todo o mundo: guatemaltecos, salvadorenhos, nicaraguenhos. Eu pessoalmente não sofri nada. Sobretudo entre os jovens, há muitos que sofreram fraturas. É complicado, porque o Estado não cumpre o papel de cuidar da saúde dessas pessoas, então nós temos que nos virar.
Qual foi o papel da mídia na manutenção da hegemonia conservadora em Honduras?
Esta é a grande chave para nós. Os meios de comunicação são os maiores golpistas. Há inúmeras ligações entre eles. O golpe foi anunciado de uma forma incrível. “Ocorreu um golpe de Estado em Honduras. Voltemos a nossa programação normal”. Não reconhecem que existem mortos, que existe resistência. Referem-se a Micheletti como o presidente, e Zelaya é o que quis desrespeitar a Constituição. Há uma rádio popular que fez um trabalho muito bom e foi fechada. Há a rádio do Congresso, também fechada. Na televisão, só o canal 36 transmite alguma coisa. O mesmo ocorre entre os jornais.
“Em muitos momentos houve repressão, embora as mobilizações fossem sempre pacíficas. Desde os anos 80 eu não via tanta bomba. Caíam como chuva” Qual a sua avaliação da situação atual de Honduras?
Há algum tempo, o povo suspendeu as mobilizações diárias. Era muito complicado manter, depois de 190 dias. A última foi agora em janeiro. Muitíssima gente. Pessoas muito felizes de voltar a se encontrar. Nossa meta é a Assembleia Nacional Constituinte. Não vai haver tanta mobilização quanto no início, mas as pessoas não estão quietas. E não apenas em Tegucigalpa, mas em todo o país, em todas as comunidades, há resistência.
Qual o papel de Zelaya agora?
É um homem que chegou à presidência sem pensar que iria fazer tudo isso. Lembro quando ele dizia: veja, agora já entendo o que é livre comércio, agora já entendo o que é o neoliberalismo. Por isso, o discurso de Zelaya foi mudando, inclusive nas Nações Unidas. As pessoas se perguntavam de onde ele tinha tirado aquilo. A princípio, pensou apenas que o povo hondurenho tinha que viver melhor. Não pensou em princípios de esquerda. Depois foi aprendendo coisas. Os setores que o apoiaram deixaram-no só. Os empresários que estavam com ele, quando veem que ele havia – para eles – enlouquecido, vão deixando-o sozinho. E ele vai se aproximado cada vez mais dos movimentos sociais. Ele está convencido cada vez
mais que o que está acontecendo é ótimo. Ele nunca reivindicou a reeleição, coisa de que lhe acusaram muito. Reivindicava reeleição para os que viriam depois. Há a possibilidade de Zelaya trocar de partido?
Em Honduras, são cinco os partidos. O Liberal e o Nacionalista são os principais. O que chamam de alternância de poder é a troca entre eles. E são a mesma coisa, ou seja, não havia alternância de poder. Representavam os mesmos oligarcas, os mesmos ciclos de poder. Surgiram outros três. A democracia-cristã, que nunca cresceu. Os social-democratas, que são golpistas também, apesar de terem em suas bases um setor que se declarou não-golpista. E há também um partido de esquerda, que nunca cresceu. Estamos começando um novo período em que temos que ver como atuar, e não acreditamos que vai ser por meio de um novo partido.
Existe a possibilidade de migrar para o partido de esquerda que já existe?
O partido de esquerda tem mais ou menos 15 anos, e não cresce. Não é um partido que a cada ano vai tendo mais militantes, mais deputados. E, neste momento, atuamos diferente. Porque nós convocamos a população a não comparecer ao processo eleitoral. E esse partido, o Unificação Democrática, participou do processo eleitoral. Eles não renunciaram para não perderem o partido. Mas seguem fazendo resistência. Não podemos dizer que são golpistas.
“Os meios de comunicação são os maiores golpistas. Há inúmeras ligações entre eles. O golpe foi anunciado de uma forma incrível” Como está o país do ponto de vista econômico?
Vou responder em uma palavra: quebrado. Quando se dá o golpe de Estado, e se retira toda a cooperação internacional, perdemos muito investimento. E os golpistas começam a usar o dinheiro de forma questionável. Usaram os fundos de pensão dos professores, dos funcionários públicos, dos aposentados. Estão descapitalizando o país. Por isso a preocupação de “Pepe” Lobo restabelecer essa relação com a comunidade internacional. Porque senão não sei como vai governar. O país está quebrado.
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
11
áfrica
Os árduos passos e entraves da agricultura familiar em Moçambique CAMPO Camponeses do distrito de Marracuene cobram apoio do governo, que, por sua vez, aposta suas fichas na “revolução verde” Fotos: Ana Amorim
Ana Maria Amorim de Marracuene (Moçambique) APENAS 30 quilômetros ao norte da capital de Moçambique, Maputo, localiza-se o distrito de Marracuene. Terra de antigas batalhas, com rebeliões locais travadas contra os portugueses, a cidade e seus arredores vivem um cenário escasso de desenvolvimento e qualidade de vida. O perfil do município, segundo relatório realizado pelo Ministério de Administração Estatal, mostra que a população local vive predominantemente em palhotas – casas feitas de caniço, pavimentadas com terra e tetos de placas de zinco e pau. Outro caráter marcante das casas é a falta de acesso à eletricidade e de saneamento básico. O distrito ainda carrega 60% de Índice de Incidência da Pobreza (proporção de pessoas cujo consumo está abaixo da linha da pobreza). Dentro desse quadro, os camponeses da região tentam fortalecer uma agricultura familiar que assegure sobretudo a soberania alimentar do país. Tomas Ouana, integrante da União Nacional dos Camponeses (Unac), explica que Marracuene pode ter todos os seus problemas escondidos em uma passagem superficial pelas suas ruas pavimentadas. “A impressão pode até ser favorável, pode-se até acreditar que estamos em uma região desenvolvida, pois veremos casas de alvenaria, mas, para nós, é diferenciado. Falta-nos uma vida favorável, com casas de alvenaria e acesso à luz, mas para isso precisamos de investimento, e atualmente a ajuda é muito difícil”, completa. Revolução não desejada Os empecilhos para o investimento na agricultura local estão para além da burocracia para angariar fundos de projetos e da proatividade do governo com a causa – a prioridade elencada não passa pela produção nos moldes que os agricultores propõem. “Se nós não conseguimos abastecer os mercados, é por causa dessa fragilidade de investimentos. O apoio ao setor familiar está aquém do necessário, mesmo sabendo que quem alimenta a cidade de Maputo não são os grandes agricultores, são os camponeses. Os mercados se movem com nossa produção, e já alimentamos até mesmo outra província, como Gaza. Se fôssemos capacitados materialmente, produziríamos ainda mais”, ressalta Ouana. A posição do integrante da Unac faz contraste com a postura governamental. O novo governo, empossado em janeiro, realça que a prioridade estará na agropecuária e em recursos minerais – seria esta a “espinha dorsal” para o desenvolvimento do país, nas palavras do ministro da Energia, Salvador Namburete. Es-
Para os agricultores de Marracuene, setor carece de investimentos
“Potencializar e capacitar os movimentos camponeses das zonas rurais é uma saída para enfrentar os altos índices de pobreza de Moçambique” pinha dorsal essa que é comumente substituída por outra expressão: “revolução verde”. A expressão, conhecida dos agricultores, está também estampada nas capas de jornais e revistas como uma bonança para o país. Para Ouana, as incertezas do retorno dessa dita “revolução verde” para o povo são muitas. “Eu não sei qual será o cenário dos próximos anos, pois o governo está a priorizar a ‘revolução verde’. Tememos como ela será implementada, pois não houve consulta sobre a implementação dessa política. Mas o governo diz que a melhoria do sistema de produção em Moçambique só será atingida com a revolução verde”, comenta. O presidente da Mesa da Assembleia Geral da Unac, Ismael Ossane, enfatiza o fracasso das outras tentativas de implantação da “revolução verde”. “Ele [o presidente de Moçambique, Armando Emílio Guebuza] fala sobre a revolução verde em todo discurso voltado para a agricultura. Não nos sentimos bem com isto, pois conhecemos as experiências da Ásia e América, que desembocaram em uma dependência ao mercado, uso excessivo de produtos químicos e exaustão da terra”. Guebuza, que em outubro de 2009 esteve presente na 5ª Conferência da Via Campesina em Maputo, acompanhou os relatos sobre como a implantação da revolução verde prejudicou a vida dos campone-
ses e não contribuiu para a segurança nem para a soberania alimentar dos países. Osmane relembra o posicionamento do governo: “O presidente disse que entendia os problemas que aconteceram em outros países, mas que a revolução verde era uma forma de ‘mobilização de recursos’. Ele disse que valoriza mais as formas de agricultura camponesa e que fará a revolução verde à maneira moçambicana – mas isto quando está conosco, pois, nas outras representações da agricultura, ouvimos que estamos atrasados e que o crescimento pede a revolução verde”. Esperança É com dança que a comunidade rural de Telmina Pereira, uma das áreas de agricultura familiar em Marracuene, espera a chegada dos representantes da Unac. A alegria do momento está nos documentos que reconhecem e, portanto, oficializam a associação local, permitindo assim que seja facilitado o acesso dos camponeses aos projetos e incentivos ao campo. Com as cópias dos documentos em mãos, os camponeses cantam, como que aguardando as melhorias que essas páginas podem proporcionar para a região. Entre os agricultores, está Issufo Assani. Assim como os outros, Assani enxerga no trabalho coletivo uma forma de poder enfrentar as dificuldades locais na produção. “Além
Ismael Ossane, presidente da Mesa da Assembléia Geral da Unac
dessa coletividade, precisamos de investimento, o que está limitado. Quem precisa nos apoiar para, por exemplo, termos tração animal ou máquinas, é o governo. Antes sofríamos com a falta de documentos oficiais. Estamos recebendo agora o estatuto, espero que isso nos ajude”, diz.
Ouana enfatiza que o carrochefe das promessas de Guebuza, o combate à pobreza, deveria ser pensado de forma a incluir a agricultura familiar, incentivando a produção de Marracuene. “O governo tem a linha única de combate à pobreza, que precisa de nosso trabalho e de nossa produ-
ção. Esse combate tem duas vertentes: nas zonas rurais e na zona urbana. Potencializar e capacitar os movimentos camponeses das zonas rurais é uma saída para enfrentar os altos índices de pobreza de Moçambique”, opina. Ainda nesse cenário, encontram-se as dificuldades naturais. Com as mudanças climáticas, o castigo para o sul de Moçambique está nos extremos: Marracuene sofre ora com uma grande seca, que impede a estabilidade da produção e agudiza a pobreza local, ora com fortes enchentes, que também deixam os camponeses sem colheita e sem sustento. Esse retrato faz com que 5% da população local seja considerada em situação de vulnerabilidade alimentar. Diante de tantas dificuldades, Assani fala com força e cuidado sobre a machamba – expressão que usam para designar as terras roçadas. “Já tivemos até mesmo ameaça de perdermos nossa machamba para os latifundiários portugueses, que não queriam deixar que trabalhássemos aqui. Enfrentamos uma grande enchente em 2000, quando não tivemos nenhuma ajuda do governo a não ser mudas de bananeira. O acesso às ajudas do Estado nunca foi facilitado porque não tínhamos o estatuto. Agora, ao menos, temos esses documentos e festejamos, na esperança de que agora poderemos crescer”.
12
de 4 a 10 de fevereiro de 2010
internacional
Daniel Bensaïd: um lutador irredutível MEMÓRIA Pensador francês, morto em janeiro, concedeu esta entrevista em 2008, na qual discute a união da esquerda e os efeitos da crise Reprodução
Mariana Santos de São Paulo (SP) O FILÓSOFO e militante comunista Daniel Bensaïd morreu em janeiro, aos 64 anos, em Paris, lutando, como em maio de 1968, pela união das esquerdas contra o capitalismo, com a fundação do Novo Partido Anticapitalista (NPA). Professor de Filosofia da Universidade Paris VIII, foi fundador da Juventude Comunista Revolucionária, em 1966, e da Liga Comunista Revolucionária, em 1969, e dirigente da Quarta Internacional. Nesta entrevista, concedida em 2008 durante o lançamento do livro Os irredutíveis (Boitempo), em São Paulo (SP), Bensaïd discute a força simbólica das lutas operárias e estudantis de 1968 na França, as consequências da aliança da social-democracia com o Estado neoliberal, a crise capitalista e a união das esquerdas anticapitalistas. Um dos fundadores do Fórum Social Mundial, Bensaïd sugeria uma nova palavra de ordem sob a pressão da crise capitalista: “outro mundo é necessário e urgente”. Brasil de Fato – Como o senhor avalia as manifestações de maio de 68 na França?
Daniel Bensaïd – Acho que muitas vezes se lembra do maio de 1968 insistindo muito no aspecto estudantil. Então nós, que fomos estudantes, somos conhecidos, mas isso tende a esconder o que faz de 68 uma data simbólica. Eu acho que a característica foi a greve geral. Em proporção à população, é a mais importante pelo menos da história da França. Quase 10 milhões de trabalhadores em greve durante três semanas. Por outro lado, também porque participa de uma série de acontecimentos internacionais. Não se pode pensar em 68 francês sem relacioná-lo com a ofensiva de fevereiro no Vietnã, a Primavera de Praga, o movimento dos estudantes no México e no Paquistão. É um conjunto de muita carta simbólica. Isso eu acho que tem certa importância, porque a greve – não digo que poderia ser feita uma revolução socialista, mas derrubar o governo, como na greve geral – abria um cenário, não só para a França, mas para a Europa, totalmente distinto durante os anos de 1970.
“Não quero generalizar, mas na França agora quase ninguém se diz liberal. Liberal parece sinônimo de capitalismo mau, mafioso, desonesto, imoral” Quem são os irredutíveis, hoje?
Os que lutam. São muitos, das mobilizações da juventude, que conquistaram, dois anos atrás [em 2006], uma das poucas vitórias sociais dos 15 últimos anos. A grande mobilização da juventude conseguiu a retirada da lei chamada de contrato de primeiro emprego, que precarizava o trabalho da juventude, mas tem que ver também com um contrato parecido para os desempregados. Tem começado a aparecer coletivos de jovens desempregados que estão ocupando os supermercados para repartir
Evento do NPA (Noveau Parti Anticapitaliste) homenageia Daniel Bensaïd
“A conseqüência de tudo isso, o debilitamento dos PCs e a mudança da socialdemocracia, é a abertura de um espaço à esquerda da esquerda tradicional” comida, não no sentido Robin Hood, mas para denunciar a alta dos preços. São os trabalhadores que se mobilizam contra a privatização, o fechamento de fábricas. Tem muitas atividades sociais com poucas ou muitas excepcionais vitórias. As mobilizações sobre pensões, seguro social, educação, tanto em 1995, com as grandes greves, como em 2003, foram derrotadas, e também a última, a mobilização juvenil do ano passado [2007] sobre a reforma da universidade. Tudo isso se perdeu, mas há possibilidade de se recompor um espaço não só de resistência social, mas também de radicalidade política. Isso em formas distintas significa, quase em todos os países da Europa, uma remobilização social sem vitórias e o início da recomposição política até com certo impacto eleitoral. Isso tem a ver também com a crise, a quase desaparição dos partidos comunistas e com um debilitamento da socialdemocracia. O senhor acredita que os valores neoliberais foram desmistificados com essa crise econômica?
Não quero generalizar, mas na França agora quase ninguém se diz liberal. Liberal parece sinônimo de capitalismo mau, mafioso, desonesto, imoral. Então, todo mundo, o governo primeiro, fala que é necessário moralizar o capitalismo, reinventar, refundar o capitalismo. Então, isso é importante no sentido simbólico. Todo discurso nos 25, quase 30 últimos anos de legitimar o capitalismo, o fetichismo de mercado, tudo isso de fato eu acho que feriu de morte o deus mercado. Agora, não significa que automaticamente tenha alternativa a isso e tampouco se sabe que tipo de novo discurso se pode inventar do lado do governo ou da social-democracia. A crise é muito recente, é só o início, mas já abalou a so-
cial-democracia. Então, tem mudado o discurso – alguns pedem a nacionalização dos bancos. O próprio governo tem desistido agora da privatização do Correio, que estava prevista para este ano [2008]. Está claro que é indecente, porque o motivo, o pretexto para privatizar era atrair 3 bilhões de euros da iniciativa privada, enquanto o governo acaba de encontrar 40 bilhões de euros para salvar os bancos. Então, isso também está deslegitimado no momento. Vai ser muito difícil, por exemplo, seguir com a reforma do seguro social com a falência dos Fundos de Pensão nos Estados Unidos. Então não sei que discurso vão inventar para tentar encontrar uma nova legitimidade. Ademais, um problema que tem a Europa é que qualquer discurso, não digo revolucionário, mas de reforma um tanto sério, imediatamente se choca com o conjunto dos tratados da Constituição europeia. Logo, não vai ser uma crise econômica, mas também uma crise política da Constituição europeia. Com que saída ninguém sabe. Depende das lutas, e a crise vai ter efeitos contraditórios; de um lado, intentos de dar um passo adiante na construção política da Europa. Por exemplo, criar o que [o presidente francês Nicolas] Sarkozy reivindica: um fundo soberano, uma reserva comum financeira europeia. Mas, por outro lado, a crise provoca tendências centrífugas, porque cada país tenta salvar seus bancos, como a Alemanha, a Irlanda. Então, o que vai prevalecer das tentativas vai depender muito das lutas sociais. Como o senhor avalia hoje o contexto internacional, a crise na Europa, o crescimento do fascismo e a articulação dos partidos de esquerda?
Eu acho que a esquerda europeia é distinta da existente na América Latina; é organizada desde os anos 1920 praticamente, em torno de corrente comunista stalinista e da social-democracia. Os partidos comunistas, com a desaparição da União Soviética, estão muito debilitados, alguns, agonizando. Por outro lado, a social-democracia – que necessitaria confirmar minha hipótese – tem participado durante 25 anos do desmantelamento do Estado social, que é sua base de sustentação, porque é um mecanismo de manutenção da paz social, para assegurar um certo crescimento do nível de vida. Nesse processo, foi se destruindo metodicamente tanto o sistema de seguro social como os serviços públicos e as empresas públicas com as privatizações. As lideranças, as cúpulas da social-democracia, também têm mudado muito. Não são só funcionários de Estado, com um certo sentido do serviço público; agora são organicamente associados ao capital financeiro e industrial. São os gerentes de confiança do capital. Isso eu duvido que será reversível. A consequência de tudo isso, o debilitamento dos PCs e a mudança da social-democracia, é a abertura de um espaço à esquerda da esquerda tradicional. Um espaço que não é ocupado de forma homogênea. A posição é que, para um futuro previsível pelo menos, haja uma total independência da social-democracia, nenhuma coligação, nem em nível de prefeitura, nem de governo etc. Isso parte da ideia de que saímos de uma derrota histórica no século 20. Então, é um início de reconstrução e, se queremos reconstruir algo sólido, não se pode confundir desde o início com operações táticas que confundem a gente. Tem que traçar para médio ou longo prazo uma perspectiva de reconstrução de verdade. Ora, a crise facilita, de certo modo, porque mostra quem quer reconstruir ou refundar o capitalismo e quem quer destruí-lo. É um ponto de divisão de águas bastante visível. Digamos que a nova esquerda, na Europa, está paralisada. Eu acho que tem um espaço da esquerda em disputa, tem várias opções. O que tentamos fazer é agrupar, não conclamar um partido,
mas uma esquerda anticapitalista europeia, para tentar fazer com nome comum a campanha à eleição europeia de 2009. Com chapa na Polônia, Espanha, Itália, França, Inglaterra, vai ser complicado, mas isso começa a firmar não só uma opção anticapitalista na França, mas dar, já jogando com um desenvolvimento desigual, uma perspectiva europeia.
“Eu acho que ninguém pode imaginar ou pretender saber que forma vão tomar as revoluções do século 21. Ninguém sabia em 1789 que ia haver uma revolução em Paris” Na sua opinião, pode-se ter alguma perspectiva de uma retomada revolucionária nesse contexto de crise econômica internacional? Quais as tarefas da esquerda?
De um lado, digamos que a palavra simbólica de ordem dos fóruns sociais, “outro mundo é possível”, hoje teria de ser mudada: “outro mundo é necessário e urgente”. O problema é fazê-lo possível, mas aqui tem que ser lúcido também. Se a hipótese seria de que o ponto de partida é uma derrota, não qualquer, mas uma derrota histórica das esperanças de libertação do século 20, se pode imaginar o início de um processo de reconstrução. Falo para a Europa. Revolução social do “dia para a noite” com a correlação de força atual, porque não se trata só de reconstruir uma esquerda política, mas também de reconstruir os movimentos sociais. É preciso saber que na França os sindicalistas são apenas 10% da força de trabalho. É muito minoritária. Então trata-se verdadeiramente de uma recons-
trução, depois de uma derrota política, e em condições difíceis, porque o obstáculo não é só ideológico. Os efeitos da individualização do salário, do emprego, do seguro de pensão e flexibilização, tudo isso obstaculiza a organização coletiva. A crise pode favorecer a reconstrução por um lado, mas vai ter efeitos contraditórios, vai ter gente que tentando se salvar por si mesma. Então é uma batalha política aberta. Na América Latina pode ser diferente. Que efeito vai ter a crise no processo bolivariano? Se vai retroceder ou avançar, se a convergência Bolívia e Equador se fortalece, que resposta à crise, que uso do Banco do Sul... Tem aparecido o tema de uma moeda latino-americana para desvincular-se do dólar, e não sofrer com o seu enfraquecimento. Tudo isso está em aberto. Eu acho que a mudança com a crise é que o discurso sobre o socialismo, o comunismo, está ganhando legitimidade. A ideia de que o capitalismo era o fim da história agora terminou. Ninguém pode imaginar ou pretender saber que forma vão tomar as revoluções do século 21. Ninguém sabia em 1789 que ia haver uma revolução em Paris. Dizer que tem uma oposição quase sistemática entre uma lógica do capital – de concorrência, de todos com todos, de ganância privada, de egoísmo, falta de solidariedade, privatização do espaço público etc. – e uma lógica alternativa que é de reconstrução do espaço público, defesa do serviço público, dos bens comuns da humanidade, como terra, água, ar etc., uma política solidária de energia, que tem também mais que uma dimensão ecológica, porque o que está em crise na realidade é a lei do valor como forma de organizar a vida social, que se traduz por uma crise social e ecológica. Não é para fazer manobras políticas, mas é o núcleo de um programa alternativo. Se vai ter essa envergadura de 1968, fazemos propaganda para isso, mas não depende de propaganda, acontece ou não acontece. Veremos. Mas o importante é já convencer a gente de que outra coisa é possível, o capitalismo não é fatal, não é o estado terminal da história, e que há outra lógica possível.