Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 8 • Número 365
São Paulo, de 25 de fevereiro a 3 de março de 2010
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Fabio Pozzebom/ABr
Vida ameaçada de quem só luta pelo direito de ser pescador O pescador Luis Carlos de Oliveira não vê a família há um ano. Ameaçado de morte por liderar sua categoria na luta contra a construção da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro, ele teve que fugir do local onde vivia. O empreendimento, denuncia, vem afetando seriamente o meio ambiente e a comunidade da região. Em janeiro, as graves acusações contra a empresa, silenciadas no Brasil, tiveram grande repercussão na Alemanha, após sua visita ao país. Págs. 6 e 7
Fundação Casa: negação de direitos ao menor Criada para dar nova roupagem à antiga Febem, a Fundação Casa continua sendo foco de violação dos direitos humanos dos menores. Em entrevista, o coordenador do Observatório de Direitos Humanos da Unesp, Clodoaldo Meneguello, diz que os maus tratos aos adolescentes estão ligados à desigualdade social e à criminalização da pobreza. Pág. 8
Durante o 4º Congresso Nacional do PT, delegados votaram o Regimento Interno do partido
PT 30 anos: maior partido de esquerda, mas menor que Lula O Partido dos Trabalhadores chega ao seu 30º aniversário na posição de maior partido de esquerda e com o presidente mais popular desde a redemocratização do país. Para especialistas, a sombra de Lula é um dos principais fatores para a escolha da candidatura de
Dilma Rousseff à presidência da República. Isto porque a liderança do presidente ocupa um espaço muito grande – maior que o petismo – e impede a criação de novos quadros partidários. Sendo assim, Lula recorreu à ministra, que ingressou no partido há apenas 9 anos. Págs. 2, 4 e 5 Sérgio Lima/Folha Imagem
Soja e mineração usurpam terras de camponeses na Argentina
Crise em países da zona do euro põe moeda única em xeque
Ao passo que avançam na Argentina monoculturas como a soja e indústrias extrativistas, como a mineração, a resposta surge por meio da organização das comunidades rurais e dos povos originários. Nos conflitos por terra que ocorrem somente no nordeste argentino, com 5milhões de hectares em disputa, quase 600 mil pessoas são afetadas. Em Córdoba, 89% dos produtores rurais ficam com apenas 30% de um território agricultável de 3 mil hectares. Pág. 9
A recessão econômica que estourou no final de 2008 ainda causa estragos em alguns países europeus. Agora, é a vez dos mais fracos da zona do euro: Grécia e Espanha. A adoção da moeda única por esses países, no entanto, impede que seus governos tomem medidas monetárias para aumentar a competitividade de suas indústrias. A saída encontrada é o ataque aos direitos dos trabalhadores. Pág. 11
Em entrevista ao Brasil de Fato, Pascual, coordenador-geral do Comitê de Unidade Campesina da Guatemala, relata como os movimentos indígenas e populares resistem a 500 anos de mentalidade colonial. Uma guerra de 36 anos exterminou as principais lideranças indígenas do país. Findada a guerra, a população originária agora sofre com o neoliberalismo, e a base do país continua sendo o latifúndio. Pág. 10 ISSN 1978-5134
Semestre será decisivo na batalha para reduzir jornada As centrais sindicais não estão dispostas a deixar para 2011 a decisão sobre a redução da jornada de trabalho de 44 para 40
horas semanais. Como o segundo semestre deverá ser tomado pelas eleições, o objetivo do movimento sindical é jogar peso na
luta neste primeiro semestre, construindo mobilizações e pressionando o Congresso. Para o sociólogo Giovanni Alves, “essa
pauta permite unificar as centrais e toda a classe trabalhadora. Falta apenas envolver a sociedade como um todo”. Pág. 3
val
em Oruro, Bolívia
ABI
Na Guatemala, povo indígena resiste ao colonialismo
Manifestação das Centrais Sindicais pela aprovação das 40 horas semanais de jornada de trabalho
Pág. 12
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editorial O PARTIDO DOS Trabalhadores (PT) acaba de completar 30 anos de existência. É fato que boa parte dos brasileiros já votaram, em alguma eleição, em candidatos do PT ou participaram de alguma mobilização política por ele encabeçada. É claro que num primeiro momento se tratava dos militantes que ajudaram a construir o partido na década de 1980, militantes vindos de várias experiências, de organizações políticas de formação marxista, comunistas e socialistas de diversas matizes; cristãos progressistas e de esquerda de diversas confissões; militantes dos movimentos populares; e intelectuais que participaram das lutas contra a ditadura militar e pela democratização do país. Mas também é fato que, nos últimos anos, vimos chegar ao PT os neopetistas, que se insinuaram desde sempre por perceberem o potencial do partido, e que “aderiram” em massa sobretudo após a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República. Ou seja, elementos oriundos de setores mais conservadores e que almejavam vantagens eleitorais, acostumados às legendas de aluguel, uma tradição política em nosso país. Desde as grandes jornadas populares que antecederam o golpe de 1964, somente a partir da primeira metade dos anos 1970 e da década de 1980 – portanto, apenas durante um curto período – o nosso país conheceu um reascenso das lutas
debate
PT, 30 anos depois populares. Foi nesse período de efervescência social e política que surgiram vários partidos, organizações e movimentos dos trabalhadores e do povo, de orientação à esquerda, entre os quais o PT, a CUT, o MST e as pastorais sociais. Essas organizações enfrentaram grandes desafios políticos, como a reorganização da esquerda brasileira (parte dela destruída pela ditadura), a reorganização dos seus instrumentos políticos e a elaboração de um novo projeto para o Brasil. Nesse período de reascenso da luta política, o PT, junto com as demais organizações do movimento sindical e social, construiu uma estratégia política e uma elaboração teórica importante sistematizada no Programa Democrático Popular, tendo como horizonte o socialismo. Para dar conta dessa estratégia investiu na combinação de várias frentes de atuação. A primeira frente era a luta institucional; eleger prefeitos, vereadores, deputados, governadores e até o presidente da República, no intuito de ir acumulando forças e avançando na democratização do Estado através da consolidação de mudanças importantes – como educação, reforma agrária e urbana – e que tinham como slogan O Modo Petista de Governar.
A segunda grande frente dessa estratégia era a do fortalecimento das lutas populares, através da organização dos vários movimentos sociais, da aposta numa nova concepção de sindicato e do incentivo às lutas políticas numa perspectiva de enfrentamento do Estado e de conquista das várias demandas sociais do conjunto da classe trabalhadora. Importantes intelectuais e quadros políticos ajudaram nessa elaboração política, e essa estratégia democrática e popular conseguiu, em dez anos, construir um dos maiores partidos de esquerda do mundo e projetar uma das lideranças de massa mais importantes da esquerda, que é o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No entanto, esse ciclo de avanços das lutas e organização da classe trabalhadora dentro de uma perspectiva de construção do socialismo sofreu uma importante derrota política em sua frente institucional de luta, que foi a vitória do candidato Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989, o que se transformou em uma grande derrota da estratégia escolhida pelo partido. Paralelamente, foi nesse mesmo período que tivemos a derrota do socialismo do Leste Europeu, com a queda do muro de Berlim e o avanço da imple-
mentação do neoliberalismo em toda América Latina e no Brasil. E com o neoliberalismo, tivemos a reorganização de todo o mundo do trabalho, enfraquecendo os movimentos dos trabalhadores assalariados, especialmente os operários, e as bases políticas e organizativas dessa estratégia coordenada pelo PT. Nesses 30 anos, o PT não foi um partido apenas com uma perspectiva eleitoral, mas deu uma contribuição política muito importante à classe trabalhadora brasileira e da América Latina. O Partido dos Trabalhadores é uma grande experiência política-partidária dos últimos anos por combinar um partido de quadros, dirigentes, intelectuais e ao mesmo tempo ser um partido de massas com grande participação popular e abrangência nacional. Mas, claro, é fácil perceber que o PT chega aos 30 anos bem diferente do PT da década de 1980. Por um lado, porque a conjuntura política é outra, os desafios da classe trabalhadora são de outra natureza e os inimigos do povo também se transformaram. Portanto, é natural que as organizações da classe também ajustem sua estratégia. No entanto, a principal mudança no PT foi na definição dos seus objetivos políticos:
crônica
Leonardo Boff
Belo Monte: a volta triunfante da ditadura militar?
Elaine Tavares
“Ops, desculpe, foi engano!”
Gama
O GOVERNO Lula possui méritos inegáveis na questão social. Mas na questão ambiental é de uma inconsciência e de um atraso palmar. Ao analisar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) temos a impressão de sermos devolvidos ao século 19. É a mesma mentalidade que vê a natureza como mera reserva de recursos, base para alavancar projetos faraônicos, levados avante a ferro e fogo, dentro de um modelo de crescimento ultrapassado que favorece as grandes empresas à custa da depredação da natureza e da criação de muita pobreza. Esse modelo está sendo questionado no mundo inteiro por desestabilizar o planeta Terra como um todo e mesmo assim é assumido pelo PAC sem qualquer escrúpulo. A discussão com as populações afetadas e com a sociedade foi pífia. Impera a lógica autoritária; primeiro decide-se, depois se convoca a audiência pública. Pois é exatamente isto que está ocorrendo com o projeto da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, Estado do Pará. Tudo está sendo levado aos trambolhões, atropelando processos, ocultando o importante parecer 114/09 de dezembro de 2009, emitido pelo Ibama (órgão que cuida das questões ambientais), contrário à construção da usina; contrariando a opinião da maioria dos ambientalistas nacionais e internacionais que dizem ser esse projeto um grave equívoco, com consequências ambientais imprevisíveis. O Ministério Público Federal que encaminhou processos de embargo, eventualmente levando a questão a foros internacionais, sofreu coação da Advocacia Geral da União (AGU), com o apoio público do presidente, de processar os procuradores e promotores dessas ações por abuso de poder. Esse projeto vem da ditadura militar dos anos 1970. Sob pressão dos indígenas apoiados pelo cantor Sting, em parceria com o cacique Raoni, foi engavetado em 1989. Agora, com a licença prévia concedida no dia 1º de fevereiro, o projeto da ditadura pôde voltar triunfalmente, apresentado pelo governo como a maior obra do PAC. Nesse projeto tudo é megalômano: inundação de 51.600 ha de floresta, com um espelho d’água de 516 km2;
abriu mão do seu projeto de poder e hoje se contenta com um projeto de governabilidade do Estado, e em ganhar espaço no campo institucional consolidando uma hegemonia política com setores do centro-esquerda. Nesse cenário, a estratégia de acúmulo de forças através das lutas de massa já não é mais prioridade. Hoje podemos esperar do PT uma contribuição na luta eleitoral, o que na atual conjuntura de descenso das lutas sociais e disputa institucional cumprirá um papel político importante. Ao mesmo tempo, não devemos deixar de ter em mente que ele continua sendo um aliado importante da classe trabalhadora e dos movimentos sociais. Como também não podemos esquecer que as eleições constituem sempre uma das expressões da luta de classes. Este é talvez o momento de, a partir do olhar sobre a experiência histórica do PT, fazermos uma boa avaliação da estratégia política da esquerda brasileira, em especial dos limites e avanços da luta política dos últimos 30 anos. E de aproveitar para fazer um amplo debate com toda a militância sobre o papel e a natureza de um partido na atual conjuntura, e como conciliar a luta institucional com a luta social e sindical no próximo período, sendo que o PT ainda poderá cumprir um papel de grande referência para uma nova estratégia política.
ESTAS NOTÍCIAS, todas as noites, sempre me enchem de uma absurda perplexidade. Diz o repórter, em tom monocórdio: “Mais 45 mortes em Bagdá”. E isso acontece todos os dias, 45, 34, 27, 50, os números variam por aí. Já passaram cinco anos da ocupação estadunidense no Iraque. E isso é notícia noite após noite. Banalizou. Morrer, no Iraque, é coisa normal. Ninguém sequer pestaneja, segue comendo, ou varrendo, ou fazendo o que seja, enquanto ouve a terrível notícia. É que o Iraque está tão longe, quase ninguém tem algum parente lá, ou um conhecido. A dor dos iraquianos toca raras pessoas. Eu, por exemplo, me assombro a cada noite. Outro dia, o locutor informou com voz impassível: 27 civis foram mortos por engano no Afeganistão. Putz! E ele nem pestaneja, e logo segue outra notícia, de preferência alegre, para que as pessoas não fiquem estarrecidas diante do fato de que, num outro país distante, também ocupado desde há nove longos anos, morrem civis todos os dias, vítimas da violência da ocupação. E só volta e meia algum desses ataques a civis sai na imprensa. Como este da semana passada. É que o Afeganistão “saiu da pauta”. Há outras desgraças a perscrutar.
A guerra sem sangue, a “limpeza” clínica, cirúrgica, bem demarcada pelos radares
desvio do rio com a construção de dois canais de 500 m de largura e 30 km de comprimento, deixando 100 km de leito seco, submergindo a parte mais bela do Xingu, a Volta Grande, e um terço de Altamira; com um custo entre R$ 17 e R$ 30 bilhões; desalojando cerca de 20 mil pessoas e atraindo para as obras cerca de 80 mil trabalhadores para produzir 11.233 MW de energia no tempo das cheias (4 meses) e somente 4 mil MW no resto do ano, para, por fim, transportá-la a até 5 mil km de distância. Esse gigantismo, típico de mentes tecnocráticas, beira a insensatez, pois, dada a crise ambiental global, todos recomendam obras menores, valorizando matrizes energéticas alternativas, baseadas na água, no vento, no sol e na biomassa. E tudo isso nós temos em abundância. Considerando as opiniões dos especialistas podemos dizer: a usina hidrelétrica de Belo Monte é tecnicamente desaconselhável, exageradamente cara, ecologicamente desastrosa, socialmente perversa, perturbadora da floresta amazônica e uma grave agressão ao sistema-Terra. Esse projeto se caracteriza pelo desrespeito: às dezenas de etnias indígenas que lá vivem há milhares de anos e que sequer foram
ouvidas; à floresta amazônica, cuja vocação não é produzir energia elétrica, mas bens e serviços naturais de grande valor econômico; aos técnicos do Ibama e a outras autoridades científicas contrárias a esse empreendimento; à consciência ecológica que, devido às ameaças que pesam sobre o sistema da vida, pedem extremo cuidado com as florestas; ao bem comum da Terra e da humanidade, a nova centralidade das políticas mundiais. Se houvesse um Tribunal Mundial de Crimes contra a Terra, como está sendo projetado por um grupo altamente qualificado que estuda a reinvenção da ONU sob a coordenação de Miguel d’Escoto, ex-Presidente da Assembleia (2008-2009), seguramente os promotores da hidrelétrica de Belo Monte estariam na mira desse tribunal. Ainda há tempo de frear a construção dessa monstruosidade, porque há alternativas melhores. Não queremos que se realizem as palavras do bispo Dom Erwin Kräutler, defensor dos indígenas e contra Belo Monte: “Lula entrará na história como o grande depredador da Amazônia e o coveiro dos povos indígenas e ribeirinhos do Xingu”. Leonardo Boff é teólogo, escritor, representante e corredator da Carta da Terra.
Pois a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que é nome pomposo do braço armado estadunidense naquela região, divulgou que matou por engano os civis pensando que eram terroristas. Pois assim é a guerra “cirúrgica” promovida pelo exército mais poderoso da terra. Recrutam garotos sem oportunidades nos Estados Unidos, transformam os mesmos em máquinas de guerra, mas tiram deles a visão do horror. No geral, estão lá em cima, nos aviões, apontando para pontos escuros na terra, como se fosse um video game. A guerra sem sangue, a “limpeza” clínica, cirúrgica, bem demarcada pelos radares. Só que os radares são observados por humanos que erram, e tampouco podem dizer se os pontinhos no chão são terroristas ou gente simples, que tenta viver a vida naquela região conflagrada e ocupada há quase uma década. Bueno, para os estadunidenses isso parece coisa irrelevante, visto que basta ser afegão ou iraquiano para ser terrorista, é como um sinônimo. Então, vez ou outra, alguns soldados de outras bandeiras, ou mesmo algum estadunidense com consciência, percebem que essa versão de “terroristas” que eles têm cravada nas retinas não é tão verdadeira assim. Então se dão conta de que aqueles pontos lá embaixo são mulheres lavando, crianças brincando, velhos tomando sol, homens trabalhando. Então, ficam estupefatos. “São civis”! Aí uma boa alma admite o erro e pede desculpas. “Foi um engano, desculpe”. Mas essas desculpas são para quem? Aos mortos? Estes já estão em outro plano, bem melhor, nos braços de Alá. Aos vivos? E para quê? Para que os desculpem por antecipação, caso o radar ou os olhos falhem outra vez? O general McCrystal ainda tem a cara de pau de dizer que estão lá para proteger os afegãos. Proteger do quê, cara pálida? Os Estados Unidos ocuparam o Afeganistão para, segundo seu governo, levar a democracia e a liberdade. Mas quem, além da mídia cortesã, acredita nisso ainda? Lá estão para garantir as plantações de ópio, para manter bases militares capazes de incendiar a região a qualquer momento, para garantir seu poder de polícia do mundo. Pouco importa se para isso tenha que matar o povo inocente. A nós, aqui, cabe o assombro, a perplexidade diante do cinismo: “Ops, desculpe, foi engano”. E assim segue a vida, na apatia de ver o ladrão entrando na casa do vizinho. Fecha-se a janela com vagar, para não ser visto. Até que um dia o ladrão entra no nosso quintal... Elaine Tavares é jornalista.
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brasil
Menos tempo de trabalho vai depender de maior capacidade de luta social ABr
REDUÇÃO DA JORNADA Centrais sindicais pressionam parlamentares e prometem mobilizações para definir votação de projeto no Congresso Dafne Melo da Redação COM UM SEGUNDO semestre que certamente será tomado pelas disputas eleitorais, as centrais sindicais prometem jogar peso na luta pela redução da jornada de trabalho nestes primeiros seis meses de 2010. “Queremos construir, com outras forças políticas, mobilizações, um dia de paralisação nacional. E nossa orientação é que todas as campanhas salariais coloquem a redução na pauta de reivindicação”, afirma Artur Henrique, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT). A Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que reduz o tempo máximo da jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais – sem redução de salário – e aumenta a remuneração da hora extra de 50% para 75% sob o valor padrão, foi aprovada ano passado na comissão especial da Câmara dos Deputados e agora aguarda votação no Congresso Nacional, que deverá ocorrer em dois turnos. Entretanto, o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), ainda não definiu uma data para a proposta ser apreciada. Luiz Carlos Prates, o Mancha, dirigente da Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas), acredita que as centrais envolvidas em torno da campanha pela redução não poderão apenas esperar uma definição do Congresso. “Temos que colocar a campanha nas ruas, forçar acordos coletivos que consigam reduzir a jornada”, defende. Para Giovanni Alves, professor de Sociologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a campanha é uma das demandas mais importantes do movimento sindical hoje, e o maior desafio é sensibilizar a sociedade, o que, na sua opinião, ainda não ocorreu. “Essa pauta permite unificar as centrais e toda a classe trabalhadora. Falta apenas envolver a sociedade como um todo”, avalia.
“Essa pauta permite unificar as centrais e toda a classe trabalhadora. Falta apenas envolver a sociedade como um todo”, diz Giovanni Alves, professor de Sociologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Resistência
O empresariado tem se mostrado irredutível e pretende empurrar a votação para 2011. Em fevereiro, o vice-presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Roberto Della Manna, e o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), deputado Armando Monteiro (PTBPE), em negociações com Michel Temer avaliaram que não há possibilidade de os empresários aceitarem a redução tal como prevê a PEC. Aceitam falar em redução apenas se ela vir acompanhada de incentivos fiscais. Para Artur Henri-
que, da CUT, nesse ponto não há consenso. “Não concordamos que haja nenhum tipo de contrapartida, aí não tem acordo”, pontua. Temer também propôs às centrais uma redução para 42 horas feita de forma gradual: 43 horas em 2011 e 42 horas em 2012. “Não rejeitamos a ideia de que a diminuição se dê de forma paulatina, nesse sentido não temos uma posição de tudo ou nada, mas queremos as 40 horas”, reitera. O presidente da CUT ainda chama atenção para o fato de a proposta de Temer tampouco ter respaldo em alguma proposta do empresariado. “Eles não querem reduzir nada, nem essas duas horas eles concordaram”. O sindicalista ainda conta que as centrais têm designado todas as semanas alguns de seus dirigentes para conversar com parlamentares e pressionar a definição de uma data para a PEC ser votada.
Clemente Ganz Lúcio, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), acredita que o setor do empresariado ligado às áreas de serviços e comércio são os que mais resistem às mudanças
Integrantes da Força Sindical fazem manifestação na Câmara pela redução de horas de trabalho
Reduzir a jornada Luta por menos tempo é dividir riquezas de trabalho é histórica Aumento da produtividade e do lucro das empresas, além da economia estável, dão condições para diminuir tempo de trabalho da Redação
Na pauta
Outra medida das centrais sindicais é tentar acordos de redução com o patronato, também como forma de pressionar uma mudança institucional. Mancha, da Conlutas, conta que todas as montadoras de automóveis do Estado de São Paulo já reduziram a jornada para 40 horas. A categoria dos químicos farmacêuticos também conseguiu a redução de quatro horas, além de algumas funções dentro dos bancários. Outro exemplo é dos trabalhadores da Ford em Camaçari (BA). A fábrica foi instalada na cidade em 2001 e no ano seguinte, após uma greve, os trabalhadores conseguiram uma redução para 42 horas, sem redução de salários. Em 2004, conseguiram reduzir para 40h 50min. Em 2008, após novas greves, foram conquistadas as 40 horas, sem perda salarial. “A redução vem somente com organização dos trabalhadores”, conclui Mancha. Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), acredita que o setor do empresariado ligado às áreas de serviços e comércio são os que mais resistem às mudanças. “Nesses setores, a participação da mãode-obra é mais relevante, especializada”. De acordo com estudo da entidade, o impacto no aumento dos custos no setor produtivo com a redução das quatro horas fica em torno dos 2%, mas é superior no setor de comércio. Na prática, porém, essas duas frações do empresariado se unem. “Eles são contra a redução como um todo, embora haja setores que perderiam mais”, afirma.
Desde que o Brasil reduziu sua jornada de trabalho de 48 para 44 horas em 1988, a produtividade da indústria só tem aumentado. Só de 1990 a 2000, cresceu 113%. Nos últimos anos, os lucros recordes de empresas e uma certa estabilidade da economia brasileira fazem com que este seja um momento propício para se travar a luta pela redução. Clemente Ganz Lúcio, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), acredita que é hora de dividir parte do bolo. Segundo ele, também em 1988 o empresariado afirmava que indústrias iam quebrar e empregos seriam perdidos. “Não foi o que aconteceu, pelo contrário”. Grande parte devido às inovações tecnológicas. De acordo com a pesquisa industrial do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE), em 1990, um trabalhador que produzia 100 unidades de produto, hoje, com o mesmo tempo trabalhado, produz 213. A participação da massa salarial no PIB em 1990 era de 45% para empregados, 7% para autônomos e 15% para impostos. Em 2003, essas proporções passaram, respectiva-
mente, para 36%, 5% e 17%, enquanto os lucros foram de 33% para 43% no mesmo período. Emprego
Não só o aumento da produtividade é uma razão para se reduzir a jornada mantendo a mesma remuneração. No Brasil, o peso dos salários no custo total de produção é bem baixo quando comparado a outros países. De acordo com o Dieese, o custo do trabalho por hora no setor produtivo aqui é de 5,96 dólares. Na Alemanha, é de 37,66 dólares e no Reino Unido, 29,73. Além disso, o processo de flexibilização da legislação trabalhista, ocorrido ao longo da década de 1990, intensificou significativamente o ritmo do trabalho. Outro argumento do Dieese é que hoje, sobretudo nos grandes centros urbanos, leva-se mais tempo para se chegar ao trabalho, o que, na prática, significa mais tempo dedicado à atividade laboral. Uma das vantagens mais imediatas da redução da jornada é possibilitar o aumento do número dos postos de trabalho, um dos pontos que pode ajudar a conquistar outros setores da classe trabalhadora, como os informais, que hoje já são metade da força de trabalho no Brasil. “Em um contexto de precarização, aumento do desemprego e da informalidade, reduzir a jornada significa que muitos poderão voltar à formalidade”, analisa Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Universidade de Campinas (Unicamp). De acordo com o Dieese, a diminuição do tempo de trabalho poderia gerar 2,2 milhões de empregos, limitando-se também o limite de hora-extra. (DM)
Reivindicação é essencialmente política e expressão da luta de classes da Redação Embora os argumentos técnicos sejam importantes, não há dúvidas de que a luta pela redução da jornada de trabalho se dará no campo político. “Não é uma questão técnica. Cada um vai apresentar seus dados e ter suas razões. É fundamentalmente uma questão política”, explica Giovanni Alves, sociólogo e professor da Unesp. Ricardo Antunes, também sociólogo e professor da Unicamp, afirma que a classe burguesa sempre irá se opor a uma menor exploração do trabalho. “O capital sempre vai buscar prolongar o tempo de trabalho ou intensificar a jornada”. Ao longo da história, esse processo tem sido freado por meio da organização e luta dos trabalhadores, procurando não só avançar, mas manter as conquistas. Na Europa, por exemplo, onde a maioria dos trabalhadores conquistaram jornadas iguais ou inferiores a 40 horas, as ameaças de retrocesso são constantes. “Nesses países há inclusive a ameaça de se fechar fábricas e levá-las para países com jornadas menores”, explica Antunes, e continua: “O trabalhador tem que ter consciência de que isso é parte do cotidiano do mundo do trabalho, é luta de classes”. Tempo “livre”
Para Antunes, a redução das quatro horas reivindicada pelas centrais é uma medida importante, pois recupera parte do tempo que o trabalhador dedica ao trabalho. O sociólogo, porém, enfatiza que deve-se ter cuidado ao afirmar que o trabalhador conquistará mais tempo livre. “O tempo fora do trabalho, na sociedade capitalista, não é de fato livre. A pessoa tende a usar esse tempo para qualificar-se, fazer uma segunda atividade para aumentar a remuneração ou consumir, ou seja, vira tempo de consumo para o capital”, analisa Antunes. Mesmo assim, Antunes afirma que a classe trabalhadora só tem a ganhar com a re-
dução, uma de suas bandeiras historicamente mais importantes. “Reduzir o tempo de trabalho é uma demanda que existe desde o início da formação da classe operária. Durante a revolução industrial inglesa, homens, mulheres e crianças chegavam a cumprir 16 horas ininterruptas de trabalho”, explica. A primeira vitória desses trabalhadores se deu em 1847, na Inglaterra, com a redução para 10 horas.
“O capital sempre vai buscar prolongar o tempo de trabalho ou intensificar a jornada”, diz Ricardo Antunes, professor da Unicamp Brasil
Aqui, a luta pela redução da jornada começou já em fins do século 19 e início do 20 – quando o tempo de trabalho ficava entre 60 a 72 horas semanais. Nas greves realizadas nesse período, o tema era pauta constante junto a outras reivindicações trabalhistas. Aos poucos, os limites de 48 a 60 horas semanais foram sendo conquistados pelas categorias junto aos empregadores. A pressão dos trabalhadores pela jornada de 48 por semana persistiu e foi sendo oficializada aos poucos. A Bahia foi o primeiro Estado a aprovar a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias, em 1917. Na década de 1930, com a entrada de Getúlio Vargas no poder, o limite é fixado em 48 horas, embora a legislação das horas extraordinárias fosse bem flexível. Somente em 1943 a hora extra foi fixada em duas horas diárias. Com o fim da ditadura militar e o aparecimento de um forte movimento sindical, a reivindicação pela redução da jornada de trabalho volta à cena. De novo, as categorias foram aos poucos conquistando as 44 horas em acordos e somente na Constituição Federal de 1988 as 44 horas foram consagradas. (DM)
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brasil fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Avanço privatista A grande mídia liberal está comemorando a proposta do Ministério das Comunicações de privatizar a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, que deixará de ser empresa estatal para se tornar uma Sociedade Anônima com gestão corporativa – ou seja, mais do que prestar um serviço público essencial para o povo brasileiro, deve visar a rentabilidade e o lucro para seus acionistas. Já dá para imaginar onde vão parar os preços das tarifas!
Amnésia eleitoral Em campanha para o governo de Minas Gerais, o ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, esteve no dia 12 de fevereiro em Unaí, onde foi recebido entusiasticamente pelo prefeito Antério Mânica, do PSDB. O prefeito e seu irmão Norberto Mânica são os principais suspeitos pelo mando do assassinato de quatro funcionários do Ministério do Trabalho, em 2004, quando investigavam trabalho escravo na região. Dá para esquecer?
Mais concentração Deu no Estadão de 16/02/2010: “Relatório da Price Waterhouse Coopers lista 60 operações de fusão e aquisição no país somente em janeiro”. Mais adiante, aparece a informação esclarecedora: “O BNDES não costuma atuar diretamente nas operações, mas tem fortalecido empresas para isso”. Isso o quê? A acelerada concentração empresarial e do capital, a formação de oligopólios e monopólios privados. Esta é a política pública?
Brasil atrasado A fina flor da direita midiática brasileira estará reunida no dia 1º de março, no Hotel Golden Tulip, em São Paulo, num seminário denominado 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, organizado pelo Instituto Millenium, que é patrocinado por grandes grupos empresariais. A programação contempla a participação do que existe de mais reacionário na Veja, TV Globo, Estadão etc. Plínio Salgado comemora!
Reforço patronal O presidente da poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, já está em plena campanha eleitoral na internet. Deve disputar o Senado ou a Câmara dos Deputados pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), o mesmo do deputado Ciro Gomes. Se Ciro Gomes aceitar disputar o governo de São Paulo em coligação com o PT, o empresário Skaf estará também na campanha de Dilma Rousseff para a presidência. Faz sentido?
Puro genocídio A Unidade de Justiça e Paz da Promotoria da Colômbia divulgou relatório, dia 16 de fevereiro, no qual afirma, com base nos depoimentos de ex-integrantes de grupos paramilitares, que estes assassinaram mais de 30 mil pessoas entre 1983 e 2003, quando foi iniciado o processo de desmobilização. Vale lembrar que muitos membros do atual governo de Álvaro Uribe foram acusados de participação nos grupos paramilitares de direita.
Chuva mortal De dezembro a fevereiro, foram registradas, na Grande São Paulo, 77 mortes atribuídas às chuvas que caíram na região, em decorrência de afogamentos e desabamentos em áreas de risco. O número excessivo de mortes apenas demonstra que boa parte da população mora em locais inadequados e que as prefeituras da região, em especial a da capital, e o governo do Estado nada fizeram – em medidas preventivas e obras – para evitar essa tragédia.
Droga global A TV Globo, nos seus jornais de maior audiência, criticou a medida da Agência Nacional de Saúde que proíbe a venda de remédios em gôndolas, nas quais os clientes – de qualquer idade e nível de informação – podem se servir sem qualquer orientação das farmácias. O argumento da emissora é a defesa de um suposto “direito” do consumidor. Errado: remédio é droga, só deve ser usado com orientação correta. A Globo presta mais um desserviço à saúde pública.
Em marcha A Marcha Mundial das Mulheres convoca homens e mulheres para o lançamento da 3ª Ação Internacional da MMM, no dia 8 de março, em Campinas (SP), quando será iniciada a marcha das mulheres até São Paulo. Durante dez dias haverá uma série de atividades culturais e de formação política para comemorar o centenário do Dia Internacional das Mulheres. A luta continua!
História (real) de pescador TRANSNACIONAIS Principal líder de resistência à instalação da empresa TKCSA na baía de Sepetiba, no RJ, o cadeirante Luís Carlos vive há um ano escondido, sob ameaça de morte Christian Russau
Gilka Resende do Rio de Janeiro (RJ) REFUGIADO EM seu próprio país. Assim se sente Luís Carlos de Oliveira, de 59 anos. Esse pescador não vê a mãe, o pai, irmãos e filhos há exatamente um ano. Longe do local onde nasceu, cresceu e começou a exercer sua profissão, ainda aos nove anos, ele tenta se fortalecer e fugir da solidão tomando nota de pensamentos em um caderninho. “A vida parece uma pista de corrida cheia de desejos e obstáculos. Basta ultrapassá-los. Nunca fui muito de escrever, mas agora tenho sentido vontade. É importante registrar a luta contra os desmandos dessa empresa”, conta, referindo-se à ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), cuja construção na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro, vem afetando seriamente o meio ambiente e a comunidade local, segundo movimentos sociais da região. Sair de Jesuítas, no bairro Santa Cruz, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, não foi uma escolha, mas sim uma imposição do atual modelo de desenvolvimento implantado no país. Desde o início das obras da TKSCA, ele e outros pescadores foram responsáveis por motivar a população local a reivindicar seus direitos. Ameaça de morte À frente da Associação dos Pescadores dos Cantos dos Rios (Apescari), Luís Carlos organizou manifestações no mar e na porta da transnacional. Com as denúncias sobre o envolvimento de milicianos na segurança da empresa, a devastação ambiental e o uso privado de locais que eram excelentes viveiros de pesca, o pescador passou a ser ameaçado de morte. A coerção, que primeiro era feita cotidianamente por telefone, passou a ser presencial. Certa vez, ao sair de casa, um carro encostou-se no dele, o vidro baixou e lhe mostraram uma arma. “Senti como um aviso de morte e tive que sair de casa de vez. Depois que fui embora, eles foram até a minha casa três vezes, perguntaram por mim no entorno. Chegaram a entrar e queimar roupas no quintal. O preço de enfrentar a destruição que essa empresa trouxe tem sido muito alto. Com certeza este é o maior obstáculo que eu já enfrentei na vida”, admite, com a voz embargada. Emoção e coragem são características bem perceptíveis nesse pescador, que precisa usar ca-
Ignoradas pela grande mídia, as denúncias do pescador tiveram espaço na imprensa alemã
“A vida parece uma pista de corrida cheia de desejos e obstáculos. Basta ultrapassálos. Nunca fui muito de escrever, mas agora tenho sentido vontade. É importante registrar a luta contra os desmandos dessa empresa”, conta o pescador deira de rodas para se locomover. As pernas secas por uma paralisia infantil, adquirida aos dois anos, nunca o impediram de levar uma vida de conquistas, mesmo com tanto sofrimento. Esteve internado dos sete aos 12 anos e teve que estudar no hospital. Mas ele não traz à memória apenas lembranças tristes da juventude. Imagens de uma baía de Sepetiba farta e bonita não faltam. “Quando era pequeno, o médico me recomendou passar a lama medicinal do mangue e das praias nas pernas. Ficava de lama até a cintura. Era ótimo, muito bom para a circulação. Agora está tudo contaminado de metal pesado, tudo sujo, os peixes estão mais uma vez morrendo”, compara. Proteção federal Hoje, Luís Carlos faz parte do Programa Federal de Defensores dos Direitos Humanos, que,
além de um local seguro de moradia, disponibilizou um salário mínimo para sua sobrevivência. “Eu mando todo o dinheiro do Programa para a minha família. Por ser cadeirante, também recebo um salário mínimo pela Previdência. É com ele que tenho vivido, já que ainda não consegui reestruturar minha vida”. Antes de ter sua atividade econômica totalmente inviabilizada com a chegada da empresa, o pescador chegou a obter, apenas com a pesca, renda de cinco salários mínimos. O barco de trabalho, construído por ele mesmo com a ajuda de um companheiro de profissão, hoje está danificado. “Fora da baía meu barco rachou, não serve mais. Gostaria de conseguir um novo, arrumar outro local para poder pescar. Não gostaria de ficar por muito mais tempo nessa situação. Foi com trabalho que consegui tudo na vida”, conta.
As denúncias contra a TKCSA Acusações vão de poluição ambiental a graves prejuízos aos pescadores e trabalhadores do turismo da região Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) Para os governos estadual e federal, e para a mídia comercial, a instalação da Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA) é um marco na história do país. Aquela destinada a ser a maior siderúrgica da América Latina representaria desenvolvimento e entrada de capitais. Entretanto, ONGs e movimentos sociais comprovam que, além de representar a consolidação de um modelo de desenvolvimento provinciano, o empreendimento tem provocado uma tragédia socioambiental na área. As denúncias começaram ainda em 2006, no início das negociações. A região, que já foi uma das 25 de maior biodiversidade do planeta, estava destinada a receber um projeto degradante e poluente. Aos
poucos, com as obras, resíduos de lixo químico lançados na baía de Sepetiba há duas décadas pela empresa Ingá – uma tragédia que estava sendo revertida pela ação da natureza – começaram a ser revolvidos e voltaram à superfície. Passaram a contaminar não apenas o ambiente, mas também as pessoas e os peixes – inviabilizando a pesca. Oito mil pescadores, e suas famílias, teriam sido afetados. Outra irregularidade desse período foi o licenciamento ambiental. Concedido em tempo recorde pelo órgão estadual (a então Feema, atual Inea), deveria ter sido analisado pelo federal, o Ibama. Não por coincidência, o instituto foi o primeiro a embargar a obra, ainda em 2007. A acusação era de que a devastação colossal do mangue no local não estava prevista na licença. Soma-se a isso o fato de o terreno – doado pelo governo estadual – invadir uma Área de Preservação Permanente (APP). A segunda interdição veio em 2008, dessa vez por questões trabalhistas. O Ministério Público do Trabalho (MPT) interveio na obra por detectar irregularidades nas condições de segurança. Um acordo entre o MPT e a empresa suspendeu o embargo dois meses depois. No campo do desrespeito às leis trabalhistas, as acusações con-
tra a CSA vão da contratação de mão-de-obra barata de chineses, que vivem em condições precárias no local, à proximidade com as milícias da região.
No campo do desrespeito às leis trabalhistas, as acusações contra a CSA vão da contratação de mão-deobra barata de chineses, que vivem em condições precárias no local, à proximidade com as milícias da região Turismo afetado A ameaça não atinge somente os pescadores. As mil pessoas que vivem do turismo em Mangaratiba e as 1.250 em Itaguaí também verão sua atividade refluir. Por conta da
Invisível O desrespeito aos modos de vida dos pescadores dentro de seu próprio país deixa Luís Carlos inconformado. Mesmo tendo participado de audiências públicas no Rio e em Brasília, mandado cartas ao Ministério Público e conversado com jornalistas de grandes meios de comunicação, suas denúncias contra a empresa nunca ganharam a devida visibilidade. “O que se passa na baía de Sepetiba foi parar nos jornais da Alemanha. Tive mais voz no parlamento alemão do que no brasileiro. Já fui duas vezes a Brasília, tentei falar com o presidente Lula e ele nunca me recebeu. Tentei falar com o ministro da Pesca e mandaram o secretário conversar comigo. Pedi que olhassem para a baía de Sepetiba, para a população que vai ficar doente com tanta poluição. Nada aconteceu”, relata. Luís Carlos acredita que não mais poderá voltar a viver em Santa Cruz. Longe da baía de Sepetiba, sente saudade de sua rotina: levantar todos os dias às cinco da manhã, sair para pescar e voltar apenas no final da tarde, com o barco cheio de tainhas, corvinas, pescadas, guaibiras e piraúnas. A diferença entre esta e as outras histórias de pescador é que ela não é engraçada, não possui floreios ou traços de ficção. Quem dera tivesse.
gravidade das denúncias, movimentos sociais escolheram a região para a principal manifestação do Dia do Trabalho em 2009. A caminhada de 2 mil pessoas do bairro carioca de Santa Cruz até a sede da empresa foi um dos atos de maior relevo dos movimentos sociais fluminenses no ano passado. Após o final da obra, prevê-se um total de empregos gerados de 3,5 mil – menos da metade do número de pescadores que estão perdendo seu sustento na região. Principal resistência ao empreendimento, a categoria acusa a empresa de tentar cooptá-los. Além disso, em audiência pública na Assembleia Legislativa (Alerj), Luís Carlos de Oliveira, liderança dos pescadores, reconheceu entre um dos representantes da CSA o miliciano que o tinha ameaçado de morte. Um estudo recente da Secretaria de Meio Ambiente do Estado divulgou que haverá, após a inauguração da companhia, um crescimento de 76% nas emissões de gás carbônico na capital. Anualmente, 9,7 milhões de toneladas de CO2 serão lançados na atmosfera, 12% do que é hoje produzido em todo o Estado. Pelo menos 300 famílias, vizinhas imediatas das obras nas comunidades João XXIII e Cação Vermelho, serão gravemente afetadas. Esse tipo de empreendimento costuma gerar doenças como disfunções respiratórias, problemas dermatológicos e câncer, afetando especialmente as crianças.
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Na Europa, forte repercussão das acusações contra a TKCSA Christian Russau
TRANSNACIONAIS Desconhecidas dos brasileiros, agressões socioambientais promovidas no país pela ThyssenKrupp ganham amplitude na Alemanha Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) FOI MELHOR do que se esperava. Depois de três anos de denúncias, uma excursão pela Europa finalmente trouxe à luz as várias arbitrariedades cometidas durante a construção da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA). Desde 2006, movimentos sociais e organizações não governamentais denunciavam a enorme devastação ambiental e a destruição de comunidades tradicionais causadas pela transnacional na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro. Embora a obra tenha sido embargada duas vezes, as violações jamais chegaram à opinião pública brasileira com a intensidade que mereciam. Na Alemanha, as denúncias entraram no coração da empresa e ganharam as manchetes dos principais veículos. Ainda em novembro, a articulação de movimentos sociais brasileiros conseguiu organizar uma audiência pública no Parlamento Europeu. O forte bloqueio midiático às denúncias contra a TKCSA no Brasil era rompido na Alemanha. Com a ajuda de organizações sociais e ONGs europeias, e do partido alemão Die Linke (“A Esquerda”), organizou-se a excursão à Europa. A partir das denúncias iniciais, os brasileiros ganharam aliados importantes, como parte da base de um dos maiores sindicatos alemães, o IG Metall.
Porém, os principais aliados foram ativistas conhecidos como “acionistas críticos”. Trata-se de uma organização de pessoas que compram ações de empresas para ter o direito de entrar em suas assembleias e protestar “Acionistas críticos”
Porém, os principais aliados foram ativistas conhecidos como “acionistas críticos”. Trata-se de uma organização de pessoas que compram ações de empresas para ter o direito de entrar em suas assembleias e protestar. Convencidos pelas flagrantes denúncias, os acionistas críticos compraram ações da ThyssenKrupp e organizaram a atuação no Encontro Anual de Acionistas da empresa, em 21 de janeiro, em Bochum, na Alemanha. Na atividade, deram voz aos brasileiros. Dentre eles, falaram Karina Kato, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), e o pescador Luís Carlos de Oliveira, que era a principal liderança da categoria até ser ameaçado de morte e ter de fugir. Discursando no coração da empresa, os brasileiros levaram ao conhecimento dos acionistas, e de toda a Alemanha, as acusações contra a TKCSA. Karina relatou uma por uma das acusações, incitando a empresa a respondêlas. Mesmo o documento en-
viado pela empresa anteriormente, em resposta às denúncias – provavelmente por desconfiar da ação – foi amplamente questionado. “A TKCSA afirma [no documento] que não existe turismo na Baía de Sepetiba. No entanto, no Estudo de Impacto Ambiental, a empresa reconhece o turismo, a agricultura e a pesca como as principais atividades da região impactada pela siderúrgica”, disse Karina na ocasião. O relato de Luis Carlos emocionou muitos dos presentes. Cadeirante, ele narrou sua atuação na liderança da resistência, nos primeiros anos do projeto. Ameaçado por integrantes de uma milícia – entre eles um que o pescador posteriormente reconheceu como representante da empresa numa audiência pública –, vive foragido há um ano, longe da família. Ao final de sua fala, Luis Carlos ofereceu um peixe de pelúcia ao chairman da empresa, Ekkehard D. Schulz, “o único peixe que se está podendo pescar”. O executivo recebeu o presente e estendeu a mão para cumprimentar o pescador. Luis Carlos se negou. Fragilidade legal
Membro diretivo da Rede Alemã dos Grupos de Solidariedade ao Brasil, o alemão Christian Russau questionou a falta de monitoramento da qualidade da água na região impactada pela siderúrgica. Segundo ele, o procedimento seria elementar se o empreendimento estivesse sendo instalado na Alemanha. Tal análise era realizada pelo Instituto Estadual do Meio Ambiente (Inea), que parou de fazê-la dizendo que a ThyssenKrupp assumira o papel. A empresa, por sua vez, diz que quem faz o monitoramento é o instituto alemão Tutec, mas que este não publica os resultados. “Sindicalistas de base da ThyssenKrupp, da cidade de Duisburg, nos contaram que a diretoria, em assembleia, há alguns anos atrás, dizia descaradamente que no Brasil há menor rigidez ambiental”, conta Christian. A transnacional declarou que todas as denúncias eram infundadas, com argumentos considerados frágeis. Ela defende que, por ter recebido aval do governo brasileiro, os protestos teriam que ser feito junto aos governantes. “Nós respondemos que a gente reconhece a responsabilidade do governo brasileiro, mas isso não tira a da empresa”, afirma Karina. Um dia antes, a TKCSA já havia tentado impedir Luis
Luis Carlos entrega peixe de pelúcia ao chairman da ThyssenKrupp no Encontro dos Acionistas da empresa
Ao final de sua fala, Luis Carlos ofereceu um peixe de pelúcia ao chairman da empresa, Ekkehard D. Schulz, “o único peixe que se está podendo pescar” Carlos de falar na assembleia, através de um telefonema. “O chefe de Relações de Investimento e um assessor jurídico ligaram para o gerente dos acionistas críticos perguntando se Luis Carlos sabia falar alemão, alegando que na assembleia só se pode falar o idioma”, conta Christian. Os acionistas disseram que tinham o direito legal de dar voz ao pescador. No dia 27, os ativistas foram chamados a uma audiência pública no Bundestag (parlamento alemão), por iniciativa da Comissão de Cooperação e Desenvolvimento Econômico local. Nesses seis dias de intervalo entre o Encontro dos Acionistas e a audiência, a empresa preparou uma brochura com explicações sobre o projeto e supostos programas sociais da ThyssenKrupp no Brasil. Três executivos foram do Brasil para a Alemanha. Novamente, a empresa alegou que as denúncias seriam infundadas, e que se reclamasse ao governo brasileiro. Comissão internacional
Então, Karina declarou: “Já que as denúncias são infundadas, por que a gente não forma uma comissão internacional, de especialistas indicados por ambos os lados, com acesso ao canteiro de obras e aos documentos, para verificar as acusações?”. Constrangidos, os executivos mudaram de assunto. Já como resultado da audiência, ficou fixado que uma comissão de parlamentares alemães visitará a empresa, possivelmente no segundo
semestre. A deputada alemã do Die Linke, Gabriele Zimmer, parceira antiga dos ativistas, pretende trazer uma delegação ao Brasil. Também se comprometeu em traduzir para o alemão todo o material das denúncias. “Essa ação fez com que a gente se libertasse de encabeçar esse processo. Outros o tomaram nas mãos e o levaram. Eu acho que o lado internacional está muito fortalecido. Precisamos agora fortalecer o local. É o mais difícil no momento. O ciclo de debates do ano passado ajudou a envolver os pescadores, mas não suficientemente”, avalia Ana Garcia, da Fundação Rosa Luxemburgo, que integrou a equipe de brasileiros. Os ativistas pretendem, agora, ampliar a atuação na baía de Sepetiba. Nesse sentido, uma cartilha de conscientização está sendo desenvolvida pelo Pacs. Mas não é apenas o movimento social brasileiro que elabora suas estratégias. Enfurecida com os resultados da excursão, a empresa também promete atuar. “Se a CSA vier a ser obrigada pela lei a instalar filtros para proteção ambiental, por exemplo, ela vai fazê-lo, e depois dizer que reduziram as emissões, para vender isso no futuro mercado de carbono. Terceiros vão pagar por isso. E ainda vão fazer propaganda de ‘responsabilidade ambiental’”, avalia Christian. O ano de 2010 promete ser agitado na região. (colaborou Gilka Resende) Christian Russau
“A baía de Sepetiba quer viver”, diz cartaz exibido por ativistas durante o encontro
TKCSA, símbolo de um modelo caduco Projeto de desenvolvimento do governo federal estimula megaprojetos com danos sociais e ambientais e produção de baixo valor agregado do Rio de Janeiro (RJ) Empreendimentos como a TKSCA não são novidade no Brasil de hoje, especialmente no Estado do Rio de Janeiro. Estão diretamente relacionados ao modelo de desenvolvimento que vem sendo implementado pelo governo federal. Nos últimos anos, o país tem deixado abertas as portas à entrada de empresas estrangeiras, tocando obras de grande impacto socioambiental e gerando produtos de baixo valor agregado. O presidente do Conselho Regional de Economia (Corecom-RJ), Paulo Passarinho, explica o modelo que ele chama de liberal-periférico. “É o recomendado por banqueiros e transnacionais, no qual há total abertura financeira, com o investimento externo como propulsor de desenvolvimento. Toma o Brasil como plataforma de exportação de matéria-prima para as economias mais desenvolvidas dos EUA, Europa, China e seus satélites”, explica. No caso do setor siderúrgico, a postura das empresas é de clara submissão. Ao receber financiamento, conformam-se em gerar produtos primários de siderurgia, que serão beneficiados em outras unidades fabris, na Alemanha e nos EUA – mesmo havendo tecnologia no Brasil para esse impulso de valor agregado. Tal tendência conta com forte protagonismo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Para a construção da TKCSA, o banco investiu R$ 1,48 bilhão, dinheiro que poderia ser gasto no desenvolvimento do turismo ou da maricultura locais. No governo Lula, o BNDES tem sido o grande incentivador de projetos de grande impacto socioambiental, além de megafusões entre grandes empresas visando criar corporações de atuação em âmbito internacional. A economista do Instituto Políticas Alternativas para o Cone
Sul (Pacs), Sandra Quintela, reuniu-se três vezes com a direção do banco para denunciar os danos da TKCSA. De nada adiantou.
“A verdade é que o modelo liberalperiférico cumpre etapas. Após as privatizações, veio a necessidade de investimento via BNDES. São etapas distintas de um mesmo processo. A continuidade do equívoco” Polaridade Para alguns analistas, há diferença na atuação do BNDES na gestão atual. Enquanto no governo FHC o banco praticamente só atuava como financiador de privatizações, no de Lula a instituição visaria fortalecer o mercado interno. Paulo Passarinho considera incorreta essa interpretação. “Não existem grandes diferenças. A verdade é que o modelo liberal-periférico cumpre etapas. Após as privatizações, veio a necessidade de investimento via BNDES. São etapas distintas de um mesmo processo. A continuidade do equívoco”, interpreta. Porém, o bom crescimento da economia a partir de 2004 – muito em função de um cenário internacional favorável – permitiu que o modelo atingisse parcelas da população pouco contempladas. A ampliação de programas de transferência de renda, os reajustes do salário mínimo acima da inflação, a reposição de vagas no serviço público e outros programas sociais bem-sucedidos do governo auxiliaram na inclusão de setores historicamente desfavorecidos. (LU)
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“A Fundação Casa não trata internos como sujeitos de direito” Fotos: Milton Michida/Governo SP
DIREITOS HUMANOS Especialista analisa o quadro da instituição e a situação do Brasil quanto à cultura da punição a adolescentes e jovens por meio de violência física Ênio Lourenço de São Paulo (SP) PARA O PROFESSOR e coordenador do Observatório em Direitos Humanos da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Clodoaldo Meneguello, a situação da Fundação Casa, em São Paulo, e as denúncias de maus tratos e abusos contra adolescentes e jovens em suas unidades estão ligadas ao quadro de desigualdade social e econômica do país. No final de janeiro, como relatado na edição anterior do Brasil de Fato, o jornal O Estado de S. Paulo publicou trechos de um relatório, produzido por algumas entidades da sociedade civil, que denunciava essa série de violações dos direitos humanos por parte da instituição que há quatro anos substituiu a antiga Febem. O documento, finalizado em outubro de 2009, fora encaminhado a todas as esferas do poder público, inclusive para o secretário de Justiça Luiz Antônio Marrey e ao governador José Serra (PSDB). Contudo, as entidades que o produziram não haviam obtido nenhuma resposta oficial até o vazamento das informações. Em entrevista ao Brasil de Fato, Meneguello aponta que, em nossa cultura educacional, a criança não é vista nem preparada como “sujeito de poder”. “O poder é próprio do ser humano, só que a educação [que temos] é a educação na qual o elemento é tido como passivo, pois existe um medo de dar o poder a ele. Se a criança não tem isso (...), vai adquirir um poder fora. Aí é um poder individual, e não social”, analisa.
“Toda vez que se fala em justiça se fala em punição de dor. E quando se trata de criança e adolescente entram outras questões mais complexas, como a da educação ligada à violência” Brasil de Fato – As denúncias sobre maus tratos aos adolescentes e jovens internados na Fundação Casa são recorrentes dentro da instituição. Do ponto de vista dos direitos humanos, como o senhor enxerga essa situação? Clodoaldo Meneguello – Essa questão deve ser vista dentro de um quadro nacional, e não isoladamente. Existe uma cultura no Brasil que confunde violência com justiça e educação. Isso ainda é algo a ser superado. A ideia de justiça foi construída a duras penas ao longo do tempo na modernidade, superando a ideia da Lei de Talião, de vingança, que predominava nos povos antigos e medievais. Isso no Brasil é complicado, já que toda vez que se fala em justiça se fala em punição de dor. E quando se trata de criança e adolescente entram
outras questões mais complexas, como a da educação ligada à violência. Se os pais batem nos filhos, ou seja, a educação com o sofrimento no corpo, imagine dentro de uma instituição onde a maior parte das crianças e adolescentes é da classe pobre. Você tem aí um quadro terrível em que, por mais que se tente avançar, e avança em algumas coisas, ainda persiste uma cultura muito grande da exclusão. Da punição como exclusão. Não se tem ideia de uma punição via Justiça agregada à recuperação, reeducação. Então o Estado não tem capacidade de promover a reeducação e ressocialização desses adolescentes e jovens? O problema é que existe uma ideia na nossa cultura – uma visão que a própria mídia vai construindo – de que o pobre, quando erra, tem que ser excluído. Já o jovem de classe média, quando erra – e tem muitos que o fazem, já que a adolescência é um ponto crítico da vida, uma época de excessos –, tem a possibilidade de se recuperar. O pai do último vai alegar: “meu filho não tem culpa, a culpa é de terceiros, foi má companhia que o influenciou e é possível recuperá-lo, pois vou levá-lo ao psicólogo”. Entende? São dois pesos e duas medidas. Portanto, a Fundação Casa está ligada a um quadro bastante grave de desigualdade social e econômica do país. É preciso que não só o governo, mas a sociedade brasileira, pense o que é educar. A educação em direitos humanos é justamente uma educação política. Nada mais é que colocar uma criança desde pequena para atuar num mundo de diversidade, que necessita de igualdade, em que todos devem respeitar a dignidade do outro. Assm, a liberdade está posta vinculada à questão da igualdade. Não só a igualdade de direitos, mas a igualdade de condições econômicas. E tem uma questão muito importante do ponto de vista da educação em direitos humanos: a criança tem que ser educada desde pequena como sujeito de poder, esse é o espírito do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] que pouca gente entende. Porque se ele não adquire um poder democrático, voltado para o coletivo, voltado para a felicidade coletiva, na escola, vai adquirir na rua. O poder é próprio do ser humano, só que a educação [que temos] é a educação na qual o elemento é tido como passivo, pois existe um medo de dar o poder a ele. Se a criança não tem isso, se é uma educação repressiva que passa valores de fora para dentro, através do discurso e não da ação (porque os valores se passam na ação), a criança vai adquirir um poder fora. Aí é um poder individual, e não social. No que diz respeito aos direitos humanos dos adolescentes e jovens em regime de internação na Fundação Casa, o ECA se faz valer em algum ponto além do papel? Todo o ECA é voltado para essa ideia do adolescente como sujeito de direito. O ECA é uma lei nova que está aproximando o Brasil de possuir as
leis dos países mais avançados. Mas aqui existe uma leitura de que o ECA protege o bandido, porque, quando se diz bandido no Brasil, quer dizer o pobre. O jovem de classe média alta, quando comete um delito, não é bandido, é revoltado, é o problemático que teve má companhia. A palavra bandido no Brasil é para o pobre. Por isso falam que os direitos humanos servem para defender bandido. Na verdade, servem para defender os pobres, prioritariamente. Porque, em uma sociedade desigual, a atuação dos direitos humanos, embora seja universal, é para defender, em primeiro lugar, o mais fraco. O compromisso, primeiro, é com o excluído. Agora, é claro que há toda uma conjuntura. Muita gente pensa que o ECA e a Fundação Casa protegem o jovem da punição e da reclusão. Mas, pelo contrário, com o ECA é muito mais fácil você reter por 24 horas na Fundação Casa um adolescente ou jovem que cometeu um furto ou um homicídio do que um adulto. Até mesmo porque o recolhimento também é uma proteção para eles. Na verdade, toda a questão em torno desse debate está em ver as crianças, os adolescentes e jovens como se fossem nossos filhos.
Quem é Clodoaldo Meneguello é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e em Letras pela Universidade do Sagrado Coração-Bauru e Universidade de Marília. Fez mestrado e doutorado em Educação na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Atualmente, é professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp (campus de Bauru). Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: ética, filosofia moderna, educação, tolerância e direitos humanos. Coordena o “Núcleo pela Tolerância” e é pesquisador associado ao Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI) da Universidade de São Paulo (USP). No Projeto Intolerância/Tolerância – Democracia e Cidadania, do Programa Institutos do Milênio – CNPq, desenvolve a pesquisa “Intolerância e imprensa alternativa: valores ético-políticos em jornais de resistência à ditadura militar”. É autor do livro Tolerância e seus limites: um olhar latino-americano sobre diversidade e desigualdade, da Edunesp.
Dormitório e refeitório da unidade da Fundação Casa de Peruíbe, litoral de São Paulo
Para Fundação Casa, a transição já aconteceu Resposta oficial da instituição apresenta dados que comprovariam tal tese, mas deixa algumas perguntas sem respostas de São Paulo (SP) Em nota oficial, a assessoria de imprensa da Fundação Casa respondeu ao Brasil de Fato, após o fechamento da última edição (364), algumas questões referentes ao relatório produzido por entidades da sociedade civil que continha denúncias de maus tratos e evidenciava a transição incompleta do modelo arquitetônico e pedagógico da antiga Febem, vigente ainda hoje na instituição que a substituiu. Segundo o comunicado, “a transição de Febem para
Fundação Casa já aconteceu”, pois “foram construídas 44 unidades para atender 56 adolescentes”. “Prova disso”, conforme a resposta, é que o atendimento que antes era centrado na capital migrou para o interior: “em termos estatísticos, a Fundação Casa inverteu o quadro: 50,7% dos jovens estão na capital e 49,3%, no interior. Esses números são os reflexos das mudanças que ocorreram no atendimento socioeducativo no Estado de São Paulo”. Contudo, como apontou a reportagem na edição anterior, as entidades que participaram do processo de produção do relatório apontam diversas unidades que funcionam com mais de 100 adolescentes, questão sobre a qual não obtivemos resposta. Em relação às denúncias de maus tratos aos internos, a assessoria de imprensa respondeu que “a Fundação Casa repudia o uso de violência e qualquer prática não condizente com o que preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescen-
te e com a proteção integral do jovem que cumpre medida socioeducativa”. Especificamente sobre a denúncia de que um adolescente teria permanecido preso em uma solitária, a resposta oficial enfatiza que “o jovem nunca ficou ‘trancafiado numa solitária’. Ele ficou por um curto período em situação de ‘convivência protetora’, prevista pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), pois sofria ameaças dos outros jovens por conta de divergências ocorridas quando estava em liberdade”. Por fim, a nota complementa afirmando que “as denúncias estão sendo investigadas por meio da abertura de sindicâncias pela Corregedoria da Fundação Casa”. Vale a pena lembrar que o relatório foi produzido em outubro de 2009 e, antes do vazamento de seu conteúdo no jornal O Estado de S. Paulo, no final de janeiro, nenhuma entidade foi comunicada oficialmente sobre as providências que seriam tomadas. (EL)
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Os desalojados da soja e da mineração Reprodução
ARGENTINA O modelo agropecuário e a mineração que começou a se instalar no país no fim da década passada afetaram os camponeses pobres e os povos originários Darío Aranda de Buenos Aires (Argentina) À MEDIDA QUE avançam no país as diferentes indústrias extrativistas (petróleo, mineração, monoculturas industriais), a organização das comunidades rurais e povos originários que resistem ao avanço empresarial se incrementa como resposta. Um levantamento dos conflitos territoriais e ambientais sobre seis províncias do nordeste argentino confirma essa situação, quantifica a magnitude do fenômeno e aporta dados inéditos: 5 milhões de hectares em disputa, quase 600 mil pessoas afetadas. Confirma, ainda, que o setor privado e estatal são os principais opositores dos camponeses e indígenas, um espectro da população rural silenciado e situado no espectro diametralmente oposto ao da Mesa de Enlace, união das quatro principais associações nacionais de empresários do agronegócio da Argentina – Sociedade Rural Argentina (SRA), Federação Agrária Argentina (FAA), Confederações Rurais Argentinas (CRA) e Confederação Intercooperativa Agropecuária Limitada (CONINAGRO). O trabalho, que coincide com outro realizado pela Cátedra da Unesco de Sustentabilidade da Universidade Politécnica da Catalunha (UPC),
Grandes áreas rurais argentinas adotaram a agricultura pampeana, eliminando cultivos tradicionais
600 mil pessoas, majoritariamente camponeses e indígenas, das províncias de Salta, Formosa, Santiago del Estero, Chaco, Córdoba e norte de Santa Fé, estão sendo afetadas por conflitos territoriais e ambientais revelou que a escalada dos conflitos de terra começou na década de 1990, com um avanço sobre o norte do país. Conflitos recentes Conflitos sobre posse de terras e meio ambiente na região do Chaco argentino é o título do levantamento da Rede Agroflorestal Chaco Argentina (Redaf), integrada por um coletivo de organizações, acadêmicos e técnicos
de distintas disciplinas. Eles identificaram 120 conflitos, e os dados são contundentes: 600 mil pessoas, majoritariamente camponeses e indígenas, das províncias de Salta, Formosa, Santiago del Estero, Chaco, Córdoba e norte de Santa Fé, estão sendo afetadas por conflitos territoriais e ambientais. “Uma superfície e população que praticamente equivalem à província de Jujuy são
as que se encontram atualmente afetadas por conflitos de terra ou de meio ambiente na região chaquenha argentina”, compara o informe, que destaca que mais da metade dos conflitos (63%) começaram a partir do anos 2000, época em que se iniciou a expansão da fronteira agropecuária no nordeste argentino. O documento também sublinha que em 95% dos conflitos existe o protagonismo de organizações de base e a articulação de comunidades. A região do Chaco Americano, que inclui o norte argentino e zonas do Paraguai e Bolívia, é, depois do Amazonas, a área mais rica em biodiversidade. Também é a área com os índices de pobreza mais altos do país. Os conflitos das famílias camponesas e dos indígenas com o Estado contabili-
zam 52% dos casos; empresas e pessoas físicas, 44%; Estado junto a empresas, ONGs e igrejas, 4%. Estado responsável A grande maioria, 70% das famílias e comunidades afetadas, responsabiliza o Estado pela situação de conflito, sobretudo pela falta de títulos de propriedade, que os afetados atribuem à falta de vontade política ou à negligência e demora de parte da diligência para resolver a situação. Também acusam o Poder Judiciário, que, na opinião dos afetados, realiza uma interpretação enviesada do Código Civil, favorecendo apenas a quem possui os duvidosos títulos de propriedade, e não a quem tem a posse das terras. “Nos últimos anos, amplas zonas do nordeste argentino
(NEA) e noroeste argentino (NOA) se somaram à produção de oleaginosas, especialmente soja, e foram incorporadas ao esquema modernizante de agricultura pampeana, que causaram a destruição de milhares de hectares de campos, a eliminação de cultivos tradicionais, a mudança do destino de terrenos dedicados ao gado e a alteração da estrutura de posse da terra”, afirma o levantamento. O estudo destaca, ainda, que “a modernização agrícola agravou ou deteriorou esses dois ecossistemas, piorou as condições de vida e acelerou as migrações de pequenos produtores”. Conflitos ambientais Foram identificados, também, 14 casos de conflitos ambientais, dos quais 72% iniciaram-se a partir de 2000. 36% do total se devem ao desmatamento (para realizar obras de infraestrutura ou habilitar campos para a semeadura); 29%, à contaminação (uso de agrotóxicos, dejetos industriais e canais que provocam deterioração do meio ambiente); e 14%, a obras de infraestrutura. Outros 14% são preventivos (por ameaças de contaminação e desmatamento). As partes envolvidas nas disputas ambientais são o Estado (79%) e as empresas (21%). Diferentemente dos conflitos de terra, os ambientais afetam a população em geral, não somente “criollos” e aborígenes. O informe ressalta os casos de conflitos ambientais causados por obras públicas que, embora ainda não são a causa majoritária, afetam ecossistemas importantes da região: Bañado la Estrella, em Formosa, e os Bajos Submeridionales, em Santa Fé, que envolvem extensas superfícies e grande quantidade de população. “As obras provocam mudanças em sua dinâmica natural, inundações, secas, desertificação, desmatamento e perda da biodiversidade”, explica. (Página/12) Tradução: Eduardo Sales de Lima
Perigo de alta toxicidade A usurpação de terras A mineração se enquadra no desmantelamento da capacidade industrial argentina e no retorno à mera exploração dos recursos naturais de Buenos Aires “O agronegócio e as empresas extrativistas privatizam os lucros e socializam os problemas. A contaminação e a alta toxicidade dos insumos da mineração e das atividades agroindustriais, assim como o despojo das terras de muitas comunidades camponesas e indígenas, atentam contra a capacidade de subsistência desses povos”, adverte a recente investigação Situação dos direitos humanos no Noroeste argentino 2008-2009, realizada pela Cátedra Unesco da Universidade Politécnica de Catalunha (Espanha). O trabalho, produzido durante dois anos e apresentado nas Nações Unidas, joga luz sobre o modelo de agronegócios, a mineração em grande escala e sobre como se violam os direitos das comunidades rurais e se vinculam os fatos locais com a geopolítica e a divisão de funções na economia internacional. Desindustrialização “O papel da Argentina passou pelo desmantelamento de sua capacidade industrial e o retorno à mera exploração dos
recursos naturais que alimentam as cadeias produtivas dos países do Norte. A Argentina se insere em uma combinação internacional que resulta prejudicial para boa parte de sua população”, alerta o estudo. Os realizadores da pesquisa detectaram a contaminação proveniente de minas abandonadas em décadas passadas e cujos efeitos continuam afetando a população. E numerosos casos em que, além da contaminação, “existem pressões e ameaças à população que protesta pelos danos causados”. O trabalho assinala que a exploração da mineração de metal na Argentina (sobretudo de ouro, prata e cobre) provoca consequências ao meio ambiente mesmo em zonas distantes às jazidas e pontua os efeitos nocivos das drenagens ácidas da rocha, a contaminação química por metais pesados e o uso de cianureto. Em diferentes pontos, o trabalho afirma que tanto empresas como governos consideram os recursos naturais simplesmente como commodities, “mercadorias cujo valor justifica qualquer tipo de intervenção dirigida a provê-las ao mercado internacional”. Um aspecto pouco mencionado pela classe política e o setor empresarial é o monumental uso de água que as explorações minerais requerem. “As explorações minerais, ainda antes de contaminarem as águas, competem primeiro com os produtores agropecuários por sua provisão”, diz o estudo, que afirma que as jazidas utilizam a água pura dos aquíferos e a devolvem contaminada. A investigação recorda, ainda, que as multinacionais minerais não pagam pe-
la água que usam em enormes quantidades. Sobre as doações e políticas de “responsabilidade socioempresarial” das companhias mineradoras, a pesquisa as define como “um exemplo de assistencialismo privado, que busca manipular e condicionar a liberdade de pensamento e consciência dos habitantes das comunidades afetadas, que recebem benefícios por parte das firmas com o único fim de se conseguir uma ‘licença social’ para a extração dos recursos naturais”.
de Buenos Aires
Os realizadores da pesquisa detectaram a contaminação proveniente de minas abandonadas em décadas passadas e cujos efeitos continuam afetando a população
Na madrugada de 5 de setembro de 2008, 20 policiais e uma dezena de civis armados romperam a porta de um rancho camponês da família González, em Santiago del Estero. Rodearam Santos Ramón e o espancaram com paus, mãos e pés e lhes dispararam balas de borracha na perna. Agarraram-no pelo cabelo e o arrastaram por 20 metros. Roubaram seu dinheiro, ferramentas e uma caminhonete. Levaram-no então à delegacia de Quimilí, onde o torturaram durante dois dias, para depois ser levado ao tribunal penal da capital santiagueña. As torturas nunca cessaram. Após três dias de detenção, lhe permitiram falar com seu advogado, internaramno por dez dias no hospital e foi finalmente liberado, sob prévia ameaça para que deixasse o local onde mora. O motivo dessa escalada da violência? A família González se nega a deixar a terra onde sempre viveu. E produtores rurais insistem em ficar com esse campo e semear soja.
A Cátedra Unesco da Universidade de Catalunha destaca também que as organizações sociais que defendem os direitos humanos não devem enfrentar apenas a ação das empresas mineiras, pois existem “importantes relações econômicas” entre integrantes dos governos e as transnacionais. (DA, do Página/12)
Concentração de terras Este é só um dos casos descritos no informe da Catédra Unesco da Universidade de Catalunha, que no capítulo sobre o modelo agropecuário detalha que 82% dos produtores do país são famílias camponesas, comunidades indígenas e trabalhadores rurais que ocupam somente 13% da terra. Por outro la-
“Mais de 200 mil famílias foram expulsas por causa da febre neoliberal dos anos 1990, que as deslocou aos bairros marginais das grandes cidades” do, apenas 4% das chamadas explorações agropecuárias se apropriam de quase 65% da terra utilizada para a produção. “Mais de 200 mil famílias foram expulsas por causa da febre neoliberal dos anos 1990, que as deslocou aos bairros marginais das grandes cidades. Nos últimos 25 anos, a concentração de terras em poucas mãos agravou as profundas desigualdades sociais no campo”, denuncia o estudo. Em Córdoba, por exemplo, os despejos, em sua maioria violentos, estão relacionados com a situação precária da posse de terras. Segundo um levantamento do Movimento Camponês de Córdoba, 60% dos camponeses carecem de títulos, apesar de possuírem as terras por mais de 20 anos e estarem protegidos por leis nacionais. Poder Judiciário Por sua vez, Santiago del Estero é um caso paradigmático da articulação entre a ação judiciária e policial: mais de 300 camponeses estão sendo processados por resistirem ao despejo das terras onde viveram por gerações. Tratam-se de falsas acusações de usurpação de propriedade privada,
ameaças, resistência à autoridade, desobediência judicial, danos e furto florestal. Todos esses “delitos” cometidos em suas próprias terras ancestrais. Já Mendoza está longe de ser apenas uma região de rios caudalosos e lagos extensos que os turistas conhecem. Somente 3% da superfície da província conta com acesso suficiente de água para desenvolver a agricultura. Com o agravante de que 50% dessa superfície irrigada está abandonada e é improdutiva. Além disso, os agricultores que não possuem terras se veem obrigados a alugálas para produzir, pagando ao proprietário porcentagens de até 50% da produção, e os trabalhadores rurais se veem forçados a trabalhar nas terras dos grandes proprietários, em condições precárias. Um capítulo especial do estudo conta a situação dos povos indígenas na Argentina. Embora celebre o fato de o país possuir um amplo marco jurídico que reconhece os direitos dos povos originários, o trabalho avalia a situação como “grave”, pela usurpação de terras e recursos naturais de que padecem. (DA, do Página/12)
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américa latina
500 anos de exploração, opressão e resistência popular na Guatemala ENTREVISTA Daniel Pascual denuncia que a elite de seu país continua com a mesma mentalidade de seus ancestrais colonizadores CUC
Claudia Santiago de Porto Alegre (RS) DANIEL PASCUAL, 38 anos, coordenador-geral do Comitê de Unidade Campesina da Guatemala (CUC), veio ao Brasil para representar a Via Campesina guatemalteca em Porto Alegre (RS) na décima edição do Fórum Social Mundial, realizada entre os dias 25 e 29 de janeiro. Durante o encontro, ele participou de diversas mesas de debate e também de um ato contra a criminalização dos movimentos sociais. Entre uma atividade e outra, o líder camponês recebeu o Brasil de Fato para uma conversa de 40 minutos sobre a vida na Guatemala.
A Guatemala tem 13 milhões de habitantes. Como vivem essas pessoas? Um milhão em extrema pobreza, mais de 3 milhões em situação de pobreza. A classe média está passando à pobreza. Em alguns municípios as pessoas passam fome. 49% das crianças de até cinco anos da Guatemala sofrem de desnutrição crônica. Estes são dados da FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação].
Brasil de Fato – Você sempre foi camponês? Daniel Pascual – Sempre, e também meus pais e avós. Sempre vivemos da terra. Como você se tornou dirigente do CUC? Como se formaram suas ideias? Meus avós e meus pais me ensinaram a luta. Três irmãos morreram na luta armada. Meus avós foram perseguidos por se oporem ao sistema. Meu pai foi da direção nacional do CUC. Então, a luta é uma herança. Minha formação teve influência do Exército Guerrilheiros dos Pobres (EGP) e da Teologia da Libertação, da Igreja Católica, que ajudou a entender o porquê da pobreza. E também da vivência direta da discriminação, do racismo, da opressão, da exploração. É casado? Tem filhos? Unido. Dois filhos, de 17 e 12 anos. E o que você ensina para eles? Eles estão estudando, o que eu não pude fazer. Tenho a preocupação que eles estudem. Falo da realidade dos companheiros indígenas, dos parentes perseguidos pela ditadura. A avó deles, mãe da minha companheira, também é indígena, e o avô foi sequestrado e desaparecido pelo exército da ditadura nos anos 1980. Eles têm também um envolvimento muito forte na luta camponesa, com os indígenas, mas também se interessam muito pela América Latina. Gostam do [presidente da Venezuela Hugo] Chávez. O mais velho quer ir estudar em Cuba.
“Em 1996, com o aumento da privatização das estatais, os sindicatos quebraram. Houve muita demissão” É possível a Guatemala se transformar em uma Bolívia? É possível, mas muito difícil. Apesar de muitas semelhanças, por sermos maioria indígena, com muito latifúndio, muita pobreza e opressão, na Guatemala vivemos uma guerra de 36 anos que exterminou o movimento indígena e o movimento popular, social. Há poucas lideranças. As principais estão desaparecidas. Foram massacradas, assassinadas, perseguidas. É uma geração muito incipiente de novos quadros, de homens e mulheres. Há muita pobreza, e o latifúndio é muito opressor. Há também a cooptação de quadros do movimento popular
Sim. Estão comprando terra, obtendo concessões. Há uma reconcentração da terra. Compram terras de pequenos camponeses e medianos proprietários principalmente para o cultivo da cana e da palma africana.
“Sim à vida e não à mineração”, diz cartaz exibido em protesto em rua Cidade da Guatemala, capital do país
Quanto
75% das terras da Guatemala estão nas mãos de 6% ou 7% da população. pelo governo. Na Guatemala, quando terminou o conflito armado e se assinaram os Acordos de Paz, houve um retrocesso com o neoliberalismo, com tratados comerciais, exploração mineira de ouro, prata, zinco, níquel, petróleo. É um cenário muito complexo, e são poucas as organizações dispostas a confrontar essa situação. É muito difícil a luta com esse modelo neoliberal. Com que movimentos o CUC se articula? Há muitas articulações que se perderam no caminho. Nos anos 1980 tivemos uma articulação muito forte com o movimento estudantil, trabalhadores, sindicatos, mulheres, indígenas, camponeses. Sofremos uma grande repressão por parte do Estado. Em 1990, 1991 e 1992, reconstruímos uma articulação indígena, camponesa, sindical. Há também uma coordenação indígena, que foi a articuladora das Organizações do Povo Maia, que também terminou com os Acordos da Paz. Em 1993, criamos a Coordenação Nacional das Organizações Camponesas. Atualmente, temos a Coordenação de Convergência Nacional Maia, que é uma mescla de organizações camponesas, indígenas, de saúde, de educação e ONGs. É uma organização interessante contra as transnacionais dos minérios, petróleo, monocultivo para agrocombustíveis. Esta é a que está mais forte agora. E o movimento sindical? Não estão na articulação. O movimento sindical na Guatemala vive uma realidade distinta. Em 1996, com o aumento da privatização das estatais, os sindicatos quebraram. Houve muita demissão e muita demissão voluntária. O modelo neoliberal atacou mais fortemente o movimento sindical. Muitos sindicatos desapareceram, muitos sindicalistas foram aniquilados. Há uma política de desregulamentação do emprego, de reforma das leis e da Constituição, para favorecer os governos neoliberais. Qual a principal luta dessa articulação? A defesa do território. A terra para trabalhar, as plantas, montanhas, os bosques, as pessoas, a memória histórica, o manejo do tempo. A defesa não só do solo parado.
“Na Guatemala vivemos uma guerra de 36 anos que exterminou o movimento indígena e o movimento popular” O que é exatamente a defesa do território? Território, na cosmovisão Maia, não é só Guatemala. Tem território Maia em toda a América Central: Guatemala, Honduras, Nicarágua e El Salvador. Este é o território ancestral Maia. Na Guatemala, somos quatro povos indígenas, divididos em 22 grupos linguísticos. Começa a se despertar a consciência de que território não é só o solo. É o solo, os recursos minerais do subsolo, a energia que gera equilíbrio na natureza. Tirar o ouro, o petróleo ou a prata significa tirar a energia da mãe terra, o que gera desequilíbrio. É a busca de um modo de vida diferente. E quem são os principais inimigos desse modo de vida que vocês buscam? As corporações que estão entrando na Guatemala com tratados comerciais, com concessão de exploração mineradora de ouro, prata, ferro, carvão, petróleo, acumulação da terra para cultivo de agrocombustível. Isso de oito anos para cá. Tem também o projeto Marlin, da empresa mineradora Montana, subsidiária da mineradora Goldcorp, de origem canadense, com capital internacional. Há concessão de exploração de mineira de 20, 30 km². A Guatemala tem 108 mil km². Há 119 projetos de hidrelétrica, tratados de livre comércio e criminalização dos que se opõem a tudo isso. E como os meios de comunicação agem frente a isto? São o principal instrumento para a criminalização do povo na Guatemala, usado para convencer a população de que as medidas do governo são boas e necessárias, e que as comunidades indígenas são invasoras, terroristas, usurpadoras, delinquentes. Temos poucos meios alternativos. Então, o Ministério Público investiga e persegue, os tribunais emitem ordem de captura, julgam e condenam a muitos anos de prisão. A mídia faz as pessoas acharem que está tudo certo. Vocês têm lideranças presas? Sim, temos seis casos bem graves. Dentre eles está o de Ramiro Cho, líder da luta de defesa da terra e contra as empresas petroleiras e do setor hoteleiro. Ele confrontou diretamente as empresas. Foi acu-
sado de roubo e sequestro e, embora não haja provas contra ele, foi condenado a oito anos de prisão. Estamos apelando nos tribunais. Há outros casos muito graves, como o do companheiro Abelardo Curup, que, em luta contra a instalação de uma fábrica de cimento que traria destruição ambiental e causaria mal à saúde da população, foi acusado de assassinato e condenado a 150 anos de prisão. Há centenas de processos como estes. Em São Marcos, um Estado na fronteira com o México, em um confronto com a Goldcorp, oito mulheres que encabeçam as lutas estão sendo perseguidas. Mulheres que não falam bem o espanhol e que não têm muita escolaridade.
Quem são os donos das terras na Guatemala? São dois. De um lado, os latifundiários descendentes dos europeus, de origem espanhola ou alemã, que continuam com a mesma atitude colonial. Nos veem como mão-deobra barata sem direito à saúde e à educação. Pessoas que servem para trabalhar para os outros. São eles que firmam os tratados de livre comércio com os EUA. Eles são os donos do poder na Guatemala, controlam a mídia, a política, o Judiciário, o Legislativo, os bancos e as terras. 75% das terras da Guatemala estão nas mãos de apenas 6 ou 7 % da população. E o restante da terra? Bem, existem também os minifúndios, principalmente nos planaltos do país. São muito pequenos. E os outros donos são as transnacionais?
Fale um pouco sobre a juventude de seu país. Aqui no Brasil temos uma parcela de jovens que está sendo perdida para o narcotráfico ou morrendo pelas mãos da polícia, ou seja, pelo Estado. Até os anos de 1990, tínhamos uma juventude muito militante. De lá para cá, uma parte foi cooptada pela mídia, pelo consumismo, perdendo consciência política, migrando para os Estados Unidos. E há uma parte que é vítima do narcotráfico. Uma palavra a mais. De onde você tira sua força? Nós, maias, temos história de resistência e de luta. Minha família perdeu três filhos na guerra de combate ao exército do Estado colonial e capitalista da Guatemala. A luta é minha vida porque eu nasci em 1971 e meus pais saíram de casa para buscar justiça, autonomia e porque ainda hoje continuam as raízes da pobreza, da miséria, da fome e da opressão. (Do Núcleo Piratininga de Comunicação – NPC, especial para o Brasil de Fato)
Reprodução
Anos de luta de Porto Alegre (RS) Desde a chegada dos espanhóis, em 1500, a Guatemala, povoada por índios maias, tornou-se colônia espanhola. O país servia para produzir café e, depois, bananas para exportação. Foi dominado por dois grupos: os criollos, mais conservadores; e os ladinos, mais liberais e modernos. Os dois grupos criaram governos autoritários a serviço das elites locais e do capital estrangeiro. A Guatemala era a típica “República das bananas”, dominada totalmente pela maior empresa imperialista de frutas, a United Fruit, dos EUA. De 1944 a 1954, o governo progressista de Jacobo Arbenz enfraqueceu o poder da velha oligarquia e fez reformas democratizantes. A principal foi a reforma agrária, em 1953. Em 1954, a CIA organizou um golpe militar e depôs o presidente, sob acusação de ser comunista. Foi um clássico golpe na América Latina, coordenado pelos EUA e apoiado pela “tríplice aliança”: militares, Igreja e empresários. A ditadura implantada modernizou a economia,
Guatemaltecos celebram o 65º aniversário da Revolução de 1944
toda voltada para a exportação. Isso gerou milhões de ex-camponeses e de miseráveis e provocou a reação popular. Nos anos de 1960, nasceram grupos revolucionários armados contra a política de opressão e miséria popular. Em consequência, o exército exterminou dezenas de milhares de camponeses. Neoliberalismo Nos anos de 1980, entra em cena o neoliberalismo do FMI. Nova onda de guerrilhas contrárias, ao mesmo tempo em que havia eleições mais ou menos livres. Com crônica fraqueza partidária, desde os anos 1970, crescem os movimentos sociais: sindicais, camponeses, de bairro, estudantis e pastorais. Fortíssima repressão contra o povo. Mais de 300 líderes urbanos assassinados. Massacres em massa de camponeses e 300 aldeias com 50
mil índios chacinados. No campo, nasce na década de 1980 o Comitê de Unidade Camponesa (CUC), que uniu camponeses, operários e comunidades indígenas, associando a luta étnica à de classe. Em 1996, realizam-se os polêmicos “Acordos de Paz”, com os seguintes pontos: fim do conflito armado, denúncia dos excessos do exército e promessa de melhoras econômicas. O Estado continua nas mãos da oligarquia associada ao capital financeiro global. Em 2005, o Congresso aprova o tratado de livre comércio com os EUA. A Guatemala de hoje é um país de muitas etnias e culturas, a se reconstruir. País dos mais pobres da América Latina, é dominado pelo narcotráfico na rota dos EUA, com impunidade para os assassinos do povo, fraca organização partidária e muitas lutas populares. (CS)
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internacional PSOE
Prisioneiros do euro ANÁLISE Em grave crise econômica, Espanha tenta medidas neoliberais impostas pela União Europeia, enquanto outros países, como Grécia, Portugal e, em breve, Itália, serão obrigados a repensar a adesão ao euro Ernesto Tamara A ESPANHA continua em recessão e com índices de desocupação próximos ao 20%, e, nas últimas semanas, vem tendo que enfrentar um verdadeiro bombardeio especulativo. A única saída que a União Europeia (UE) lhe oferece é aumentar a idade das aposentadorias, elevar o número de anos de trabalho para reduzir os gastos do Estado. Sem independência monetária depois de ter adotado o euro, a Espanha não pode desvalorizar a sua própria moeda para melhorar a competitividade, nem modificar as taxas de juros para recuperar o crédito interno: só lhe resta castigar os assalariados. Mas a Espanha não está sozinha nessa situação. Grécia, Portugal e, talvez em breve, a Itália, estão obrigados a repensar a adesão ao euro. Para muitos economistas, a crise nesses países poderia ser superada mais rapidamente, e com menos custos sociais, se a moeda única não existisse e cada país pudesse adotar o tipo de câmbio e as taxas de juro que lhes permitissem recuperar a competitividade de suas indústrias. No entanto, ainda que essa alternativa venha sendo mencionada há mais de um ano, ela está praticamente descartada pelas rígidas normas da União Europeia. Não existe nenhum mecanismo que permita que uma nação renuncie ao euro uma vez que o tenha adotado, e tampouco há a possibilidade desta ser excluída de tal sistema monetário. O debate sobre o abandono do euro não começou com a crise na Grécia e na Espanha, mas em 2004, quando a crise açoitava a França e a Alemanha. Na época, os dois países considerados as locomotoras da economia europeia apresentavam deficits fiscais muito superiores aos autorizados pela União Europeia. No entanto, nenhuma autoridade decidiu sancionar ou monitorar suas economias, como acontece agora com países mais fracos. O governo alemão de então chegou a considerar seriamente o abandono do euro para melhorar a competitividade e aumentar suas exportações, mas não foi necessário devido à indiferença da UE para controlar seu deficit fiscal.
Para muitos economistas, a crise nesses países poderia ser superada mais rapidamente se a moeda única não existisse Penalizar Agora, o governo de Madrid está disposto a realizar reformas mesmo que às custas de um maior desemprego, do desaparecimento dos investimentos públicos em infraestruturas e do congelamento salarial. A perda de competitividade da economia espanhola desembo-
cou no brutal descenso das exportações em relação ao PIB. Segundo dados oficiais, as exportações eram de 8% do PIB em 2008, e se contraíram a 4,7% no ano passado. Além do mais, numa antecipação dos dados do quarto trimestre de 2009, o Banco da Espanha informou que o PIB retrocedeu 0,1% em relação ao trimestre anterior (uma queda de 3,1% em relação a um ano antes). Dessa maneira, acumulam-se sete trimestres com queda. Dentro da zona do euro, Grécia, Islândia e Hungria também continuam em recessão. Depois que a Comissão Europeia decidiu submeter contas públicas gregas a uma vigilância reforçada, assumindo que os dados da economia que brindavam os governos anteriores eram falsos, e exigir fortes medidas de gastos públicos, a Espanha foi posta no centro das atenções e mencionada como o próximo país a cair em uma situação de insolvência de sua dívida pública.
A Espanha foi posta no centro das atenções e mencionada como o próximo país a cair em uma situação de insolvência de sua dívida pública Joaquín Almunia, comissário europeu de Assuntos Econômicos e Monetários, ex-dirigente do Partido Socialista de Espanha, não ajudou em nada o governo de seu país ao afirmar que a situação econômica espanhola tinha os mesmos problemas que a grega: depois de suas declarações, uma nova onda de especulações atingiu a Bolsa de Valores de Madrid. Anteriormente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) contribuiu para gerar incertezas sobre a Espanha quando, em 26 de janeiro, insistiu que sua recuperação era muito fraca. Claro que não foram só as declarações do comissário europeu – que deveria ter sido mais discreto – que desencadearam a especulação. Também os dados econômicos que demonstram que o país segue em recessão – sétimo trimestre consecutivo de queda do Produto Interno Bruto (PIB) e aumento do desemprego – alentaram o assalto dos fundos “abutres” que já haviam se alimentado com Dubai e Grécia. “As suspeitas talvez sejam exageradas, porque os mercados tendem a sobreatuar, mas, ao fim, refletem percepções baseadas em elementos reais: as suspeitas sobre a capacidade da Espanha para sair disso”, comentou Tomás Baliño, ex-subdirector do FMI, ao diário El País. (Barómetro Internacional) Ernesto Tamara é jornalista sueco. Tradução: Eduardo Sales de Lima e Renato Godoy de Toledo
Encontro do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), do presidente Zapatero, para discutir a reforma das aposentadorias
Alternativas vêm do receituário neoliberal Entre as ações de Zapatero estão a austeridade e as medidas fiscais da futura Lei de Economia Sustentável, e também as reformas trabalhista e do sistema de pensões
Nas últimas semanas, empresários, economistas vinculados a organismos internacionais e porta-vozes dos bancos têm apresentado propostas e ideias de como sair da crise. Como era de se esperar, todas obedecem à lógica do liberalismo econômico, que é o fundamento que rege a União Europeia e a moeda única. Assim, o governo do socialista José Luis Rodríguez Zapatero terminou por apresentar um programa econômico que deixou mudos os porta-vozes do Partido Popular. Tanta ortodoxia neoliberal por parte do governo desalojou os radicais direitistas. Em seu plano para reduzir o gasto, enviado ao execu-
tivo da União Europeia (UE) em Bruxelas, o governo prevê um deficit público de 9,8% do PIB em 2010. Para 2011, projeta um déficit de 7,5% do PIB, 5,3% para 2012 e 3% em 2013, tal como exige o Pacto de Estabilidade da União Europeia. Segundo os dados do governo espanhol, a dívida pública se situa em 52% do PIB, mas, de acordo com as projeções do mesmo governo entregues à Comissão Europeia, poderia alcançar 74,3% até 2012. Retirar direitos Entre as ações imediatas para modificar o gasto previsto no orçamento do ano em curso, a administração de Rodríguez Zapatero mencionou seu plano de austeridade e as medidas fiscais da futura Lei de Economia Sustentável. Incluiu, também, duas grandes e controvertidas reformas em curso: a trabalhista e a do sistema de pensões. Em sua primeira versão da reforma das pensões, o governo espanhol incluiu, no documento entregue a Bruxelas, a proposta de prorrogar de 15 para 25 anos de trabalho a base para se calcular o valor das pensões, o que implica uma drástica redução do total a ser pago. Atualmente, leva-se em conta o ingresso do trabalhador nos últimos 15 anos para estimar tal valor. Elevar essa base para os últimos 25 anos trabalhados repercutirá enormemente no cálculo final. Ade-
mais, a proposta inclui aumentar a idade de aposentadoria, de 65 para 67 anos.
Numa primeira tentativa, o governo havia considerado elevar a idade de aposentadoria para 70 anos, tal como reclamava a associação de empresários Numa primeira tentativa, o governo havia considerado elevar a idade de aposentadoria para 70 anos, tal como reclamava a associação de empresários. Segundo a imprensa ibérica, o presidente teve uma reunião secreta com líderes sindicais da CGT (Confederação Geral do Trabalho) e CCOO (Confederação Sindical de Associações Operárias), no último 29 de janeiro, e ali decidiu aumentar a idade de aposentadoria para 67 anos. Além disso, em seu Programa de Estabilidade, o governo anuncia cortes do gasto público que, em três anos, resultarão numa economia de 50 bilhões de euros.
Tanto o governo como setores empresariais justificam as medidas assegurando que são a única maneira de sair da recessão e assegurar as pensões e aposentadorias do futuro, ainda que sejam muito mais baixas que agora. Mas desde meados do ano passado existe uma preocupação pela economia espanhola. Já em setembro de 2009 mencionava-se que, somando a dívida pública e a privada, a Espanha devia quase 1 trilhão de euros, o que equivalia a 100% do PIB. Alguns analistas advertiam então que, se a dívida continuasse crescendo, os investidores deixariam de emprestar dinheiro ao Estado e às entidades espanholas, ou pelo menos o fariam por uma taxa de juros muito superior às atuais. O jornal The Wall Street Journal advertia que “isso significaria anos de estancamento, em um país onde a população está acostumada com um crescimento rápido de sua qualidade de vida. Alguns economistas preveem uma década perdida, como aconteceu com o Japão”. Junto com o diário, diversos economistas e empresários começaram a exigir mudanças na política econômica, cobrando do governo corte de gastos, especialmente na seguridade social, flexibilidade trabalhista e compromissos de que se cumprirão os pagamentos da dívida pública. (ET, do Barómetro Internacional)
Perda de competitividade e ruptura na zona do euro Situação pode gerar um enorme problema para a União Europeia, já que, em caso de um elevado endividamento, poderia se cogitar novamente que o país afetado saia da zona do euro A Comissão Europeia reconheceu que Grécia, Portugal, Espanha e outros países da zona do euro têm problemas estruturais, como perda de competitividade, desde que passaram a ser membros desse bloco. O comissário europeu de Assuntos Econômicos e Monetários, Joaquín Almunia, afirmou que, entre os países que adotaram o euro, há um desequilíbrio mais ou menos grande. “Nesses países, observamos uma perda cons-
tante de competitividade desde sua incorporação à zona do euro (…). Eles têm deficits públicos elevados, com componentes cíclicos e estruturais”, disse. Essa falta de competitividade e a rigidez das normas da moeda única têm despertado o debate sobre a possibilidade de que alguns países abandonem o euro, o que motivou um desmentido do Banco Central Europeu (BCE). Instabilidade Os rumores sobre o desaparecimento da zona do euro são exagerados, afirmou o conselheiro do BCE, Ewald Nowotny. Em declarações à imprensa na semana passada, Nowotny considerou que o tipo de câmbio da moeda comum e, em geral, seu comportamento frente a outras divisas, não constitui motivo de preocupação. Em que pese o desmentido de Nowotny, ainda se mantém a especulação de que a Grécia poderia ser o primeiro país a ser expulso da zona do euro – não da UE –, ainda que não exista essa possibilidade legalmente. No dia 5 de fevereiro, a estabilidade do euro se viu
afetada quando os investidores vendiam ativos da moeda única diante dos temores de que os países mais endividados (Espanha, Grécia e Portugal) decretassem moratória. Ewald Nowotny tentou amenizar a importância da drástica queda do euro, que chegou ao seu nível mais baixo em relação ao dólar desde maio de 2009, e qualificou de “absurda” a possibilidade de uma ruptura na zona do euro. Os meios financeiros informaram que, pelo segundo dia consecutivo, investidores dos Estados Unidos e da Ásia se desprenderam dos ativos de risco e se mudaram para a segurança dos bônus do Tesouro estadunidense e do yen japonês. “O mercado está observando de perto a capacidade de cada país de pagar suas dívidas. Se a confiança se perde, as taxas subirão significativamente”, disse Erkki Liikanen, outro membro do Conselho de Governo do Banco Central Europeu. Estancamento “Os problemas que a Espanha está atravessando pa-
ra superar a crise são o melhor exemplo das desvantagens de se compartilhar uma moeda única”, afirmou o diário The Wall Street Journal, que advertiu que “enquanto França e Alemanha começam dar sinais de recuperação, os membros mais fracos da zona continuam atolados na recessão”. Se não existe o risco de um colapso em nenhum país da zona do euro, alguns economistas estimam que vários anos de estancamento econômico poderiam levar os países ainda em recessão a uma crise de dívida no futuro. Essa situação pode supor um enorme problema para a União Europeia, já que, em caso de um elevado endividamento, poderia se cogitar novamente que o país afetado saia da zona euro. Em todo caso, tal hipótese será pouco menos do que uma utopia enquanto o Tratado de Maastricht considerar irreversível a União Monetária da Europa e, em consequência, não contemplar nenhum mecanismo para que um país possa sair voluntariamente desse sistema monetário. (ET, do Barómetro Internacional)
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de 25 de fevereiro a 3 de março de 2010
cultura Fotos: ABI
A Bolívia de outras
guerras d’água CARNAVAL Povo que luta também é povo que faz festa. O espírito carnavalesco que contamina o Brasil também aparece em território boliviano, lotando as ruas de gente, música, dança e... água Vinicius Mansur de Oruro e La Paz (Bolívia) PARA RECORDAR os dez anos da Guerra da Água – matéria que publicamos em nossa última edição – em Cochabamba, cidade localizada na região central da Bolívia, a reportagem percorreu as ruas cochabambinas no final de semana anterior ao feriadão de carnaval. Mas, não é que a guerra d’água ainda estava a pleno vapor? Ruas centrais estavam tomadas. Como verdadeiro exemplo de auto-organização, o povo, dono do asfalto, movia-se em blocos, com movimentos coordenados, aos gritos, pulos e toques de bumbos. Cantavam muito. Nitidamente, ensaiavam a tomada completa do espaço urbano para os próximos dias. A resistência popular também tinha seu braço armado: centenas de pequenas tropas, extremamente jovens, armadas com pistolas, metralhadoras, granadas e sprays, deslocavam-se por toda a cidade. Em plena luz do dia, francoatiradores brotavam das menores frestas. “Bom, trabalhando, andando discretamente, sem mexer com ninguém, vai ficar tudo tranquilo”. Errado. Nem vi de onde, mas fui atingido por um deles. Em cheio. Nas costas. “Ética na guerra, idiota? Nesse front, qualquer branquinho é um letreiro piscando ‘transnacional’, ‘transnacional’...” e, sem tempo para mais nada, tisssss! Spray na cara. Às favas com a autopenitência: já queria pegar o primeiro quando notei que estava cercado, ainda que só enxergasse vultos gargalhantes. “¿Qué pasa, loco?”, soltei, como dissesse “Qualé, rapá?” E pow, pow, pow! Fui alvejado por todos os lados. Sem dó. À queima-roupa. “Jajajaja!”. Acho que era esse o código para dispersão. Limpei a vista e me encontrei encharcado. De água. “Mas não era por ela que eles quase
se mataram em 2000?” Caiu a ficha. Carnaval também é carnaval na Bolívia. Transgredir o código de condutas socialmente aceitas nessa época do ano não é exclusividade brasileira. “Mas aqui não é Salvador pra bagunça começar uma semana antes!”. Instintivamente, abandonei a postura jornalística. Me dirigi à primeira senhora tipicamente trajada de chola e comprei minhas bexigas de água (los globos) por um boliviano (cerca de R$ 0,30). Ao lado, sprays de espuma saíam a 13 (R$ 3,30). “Queria mesmo era a bazuca d’água desse moleque, é maior do que ele!”. Oruro
O hábito de guerrear com água e espuma é tradicional em praticamente todas as cidades da Bolívia. Mas, para além desse espírito, digamos, “bagunceiro”, o carnaval boliviano também se assemelha ao brasileiro pela invasão de ritmos musicais nas ruas do país. Destaque especial para Oruro, conhecida como a capital do folclore boliviano e localizada a aproximadamente 230 quilômetros de La Paz. Diablada, Morenadas, Tobas, Caporales, Tinku, Kullawada, Watiris, Tarqueadas, Chacarera; são inúmeros os ritmos e danças originários da Bolívia que são expressados pelas “fraternidades” – algo similar às escolas de samba brasileiras – durante todos os carnavais em Oruro. A maior festa orurenha consiste numa verdadeira peregrinação dançada nesses diferentes ritmos, na qual dançarinos e músicos, com os mais variados figurinos e coloridos, percorrem cerca de cinco quilômetros de interação com a multidão que abarrota avenidas, ruas estreitas, a praça central da cidade, até o destino final: a Igreja da Virgem do Socavón. “Uma pessoa que sai às 8 da manhã do início do trajeto chega às 13 horas, mais ou menos, na igreja. Porque vai dançando e intercambiando com o público. Lá [na igreja], a banda já não toca o ritmo da dança, mas um ritmo em homenagem à Virgem, como um canto a ela. Todos tiram suas máscaras e entram de joelho, muitos chorando, pedindo por sua saúde, por sua gente”. Em síntese, as palavras do sociólogo e diretor da Secretaria de Folclore e Patrimônio Intangível da prefeitura de La Paz, David Mendoza, explicam o que fizeram, em 2010, mais de 50 mil dançarinos e músicos, divididos em 52 fraternidades. Eles atraíram aproximadamente 500 mil pessoas à cidade de cerca de 250 mil habitantes, movimentando quase 28 milhões
de dólares, segundo os dados divulgados pelo vice-ministro da Indústria do Turismo, Iván Cahuaya. Fraternidades
Mendoza explica que as fraternidades têm sua própria estrutura, com seus fundadores, passistas, blocos, bandas etc. Hoje, desfilam com no mínimo 400 pessoas, mas algumas já chegam a 1.500 integrantes. Todas elas fazem parte da Associação de Conjuntos de Folclore de Oruro (ACFO), responsável por buscar patrocínio e distribuir cotas às suas integrantes. “A arrecadação deles diminuiu este ano porque o governo acabou com o monopólio da transmissão televisiva, que era vendido pela ACFO”. Mendoza se refere ao Decreto Supremo 412, editado pelo governo ainda neste mês, que declara livre a transmissão televisiva e radiofônica das manifestações artísticoculturais de caráter público, “ficando expressamente proibida a assinatura de contratos de exclusividade para sua transmissão”, diz o texto. Há oito anos, a Unesco reconhece o carnaval de Oruro como Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade.
“Lá [na igreja], a banda já não toca o ritmo da dança, mas um ritmo em homenagem à Virgem, como um canto a ela. Todos tiram suas máscaras e entram de joelho, muitos chorando, pedindo por sua saúde, por sua gente” Outra forma de financiamento das fraternidades, tal qual as escolas de samba, é a venda das fantasias e do direito de integrar o seu desfile, o que pode custar de 600 a 21 mil bolivianos (de 85 a 3 mil dólares). “O povo investe”, conta Mendoza. “Uns economizam durante o ano para isso, uns acreditam que a Virgem devolve mais do que o valor gasto, outros vêm do exterior só para o carnaval e depois voltam”. A comercialização do desfile parece trazer outra seme-
As “fraternidades” bolivianas se assemelham às escolas de samba brasileiras
Passistas, blocos e bandas desfilam pelas ruas de Oruro
lhança com o carnaval brasileiro. Um olhar atento sobre ele pode notar facilmente a predominância de brancos e mestiços nas alas de dançarinos das fraternidades, especialmente dos Caporales, uma manifestação cultural mais nova e com muita aceitação pela juventude urbana, de acordo com Mendoza. Por sua vez, na composição das bandas predominam indígenas. Ironicamente, seja no Brasil ou na Bolívia, a responsabilidade – ou seria a capacidade? – de animar os carnavais segue sobre os ombros daqueles que mais sofreram nos tempos de colonialismo europeu. Desfile indígena
Com uma estrutura menos profissionalizada do que no Brasil, as fraternidades bolivianas começam seus ensaios em novembro e continuam a cada domingo. No domingo anterior ao carnaval, realizam um ensaio geral em forma de pré-desfile. E a grande apresentação acontece no sábado e domingo de carnaval, com muita música, dança e, diga-se de passagem, bebida ininterruptas. A guerra d’água e espuma que também atravessa todo o dia, apesar da violência com que uma bexiga pode te acertar a cara, chega até a aliviar a verdadeira fritura a qual os foliões estão submetidos numa cidade que está 3,7 mil metros mais próxima do sol. Mas um bom senso divino paira sobre Oruro com o cair da noite, decretando um “cessar-água” num período em que a temperatura aproxima-se dos 10º. Um dos momentos mais bonitos da festa começa às 4 horas da manhã de domingo, quando boa parte das bandas, já não mais dividas por fraternidades, reúnemse nos arredores da Igreja da Virgem de Socavón, animando os foliões à espera do amanhecer. “É uma espécie de catarse”, explica Mendoza, que ainda afirma que, apesar de menos prestigiada e conhecida, as comemorações do Jallupacha (tempos de chuva) também marcam o carnaval de Oruro na quinta-feira anterior ao sábado de carnaval, quando mais de 50 comunidades indígenas e camponesas fazem exatamente o mesmo percurso das fraternidades, com seus trajes indígenas.
O sincretismo que produz o carnaval de Oruro e La Paz (Bolívia) Explicar com precisão o início do carnaval de Oruro é praticamente impossível. De acordo com o antropólogo e diretor do Centro de Ecologia e Povos Andinos (Cepa), Gilberto Pauwels, quatro lendas diferentes justificam as comemorações, mas uma seria a mais coerente. Em 1925, o escritor José Víctor Zaconeta descreve a presença de uma espécie de Robin Wood dos Andes, que roubava dos espanhóis para das às comunidades, conhecido como Chiru-Chiru. Ele conta que a Virgem de Socavón protegia o “bom ladrão” em seus assaltos, mas um dia ele foi ferido com uma punhalada no peito. Segundo a lenda, ao lado do corpo, encontrado em uma zona abandonada da cidade, apareceu uma imagem da Virgem, transformando o local em ponto de romaria incessante. “Assim, os mineiros decidiram que deveriam fazer uma grande festa em sua homenagem. Desobedientes às normas da Igreja, optaram por fundi-la com o carnaval porque a Virgem foi vista nessa época do ano e porque só nos carnavais tinham permissão para suspender o trabalho durante três dias, tempo que consideravam necessário para uma festa com grande pompa”, relata Pauwels. A primeira manifestação cultural que marca o carnaval de Oruro, segundo o diretor da Secretaria de Folclore e Patrimônio Intangível da prefeitura de La Paz, David Mendoza, é a diablada, uma representação da luta do bem contra o mal baseada no cristianismo e criada pelos mineiros, que consideravam o dia-
bo como dono das minas, do subterrâneo e dos metais. Na atualidade, observamos o Arcanjo Miguel à frente do desfile, dirigindo os perdedores do combate: os “diablos” arrependidos, que vestem um rico traje, produto da criatividade dos artesãos bolivianos. Ch’allas
Outro exemplo do sincretismo religioso do altiplano boliviano é a Anata, um ritual pré-hispânico dos povos andinos em agradecimento a Pachamama (Mãe Terra) realizado num período muito próximo ao carnaval. Segundo Mendoza, como os primeiros meses do ano são a época de chuvas (Jallupacha), os povos andinos tinham por costume realizar a Anata e “ch’allar” suas coisas. “A ch’alla é uma ação cotidiana do povo, que, quando bebe, por exemplo, ch’alla à Pachamama, ou seja, joga um pouco no chão em oferecimento a ela”, conta Mendoza. “Aqui no escritório ch’allamos com álcool, confetes, serpentinas, flores e oferendas à mesa, o computador, o telefone, os cantos das salas, para que tudo vá bem, para que não haja doentes. Nesse dia, tomamos cerveja e comemos juntos”, relata. Desde as vésperas do carnaval até a terça-feira, a cidade de La Paz estava recheada de ch’allas. Os carros, sejam de uso particular ou comercial, como táxis, vans e ônibus, andam decorados com flores e serpentinas pela cidade. A cerimônia acontece desde o palácio presidencial até os inúmeros quiosques informais que ocupam as ruas da capital. Apesar das diferentes crenças, na Bolívia, assim como no Brasil, o ano parece começar de fato somente depois do carnaval. (VM)