Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 8 • Número 367
São Paulo, de 11 a 17 de março de 2010
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br João Zinclar
Os “socialistas” europeus e o neoliberalismo contra a crise
Mulheres pautam seus direitos no 8 de março A semana do 8 de março começou com muita luta para milhares de mulheres de todo o Brasil. Em diversos estados, militantes pautaram suas reivindicações para um mundo mais justo e menos machista. No Rio Grande do Sul, o foco das mobilizações foram os efeitos dos transgênicos e dos agrotóxicos. “Não queremos ser geradoras da morte, mas sim da vida”, afirmaram em nota. Em São Paulo, 2 mil mulheres iniciaram marcha em Campinas, com destino à capital. Págs. 2 e 6
No Rio, CPI apura esquema de corrupção no judiciário No dia 4 de março, foi aberta na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar acusações de venda de sentenças no judiciário carioca. O pivô do esquema seria Eduardo Raschkovsky, acusado de usar sua amizade com desembargadores para vender decisões do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para políticos, tabeliães e empresários. Pág. 7
Marcha deixa Campinas em direção a Valinhos, no interior de São Paulo
Energia cara para o consumidor, lucros altos para distribuidoras A Rio Grande Energia registrou, de outubro a dezembro, lucro de 134,4% acima dos R$ 21,5 milhões apurados no mesmo período de 2008. E não é um caso isolado. As distribuidoras de energia elétrica cobram as tarifas mais caras do mundo. A ingerência política desse setor no poder público é tão intensa que, mesmo a população
tendo pago R$ 7 bilhões a mais na conta de luz, entre 2002 e 2009, está longe de ser ressarcida pelas empresas Enquanto isso, a canadense Brookfield Energia Renovável implanta a barragem Barra da Braúna no rio Pomba, Zona da Mata Mineira, afetando moradores e destruindo o meio ambiente. Págs. 4 e 5 Marcello Casal Jr./ABr
Estado chileno responde com militarização ao terremoto
Na Bolívia, cultura aimara para “salvar o mundo” Boa parte da esperança depositada no atual momento boliviano – e em sua capacidade de superação do modelo civilizatório desigual e destruidor do meio ambiente erguido pelo capitalismo – reside no aporte teórico-filosófico dado pela cultura indígena, muitas vezes sintetizado no conceito de “Viver Bem”. Em entrevista, o intelectual aimara Pablo Mamani fala sobre esse “cambio” em seu país. Pág. 11 ISSN 1978-5134
Passada a primeira semana após o terremoto que deixou mais de 800 mortos e afetou ao menos 2 milhões de chilenos, a avaliação é de que o governo não cumpriu com suas obrigações. “Durante vários dias, a percepção das pessoas era de um caos geral”, conta, em entrevista ao Brasil de Fato, o jornalista Paul Walder, para quem a reação do governo centrou-se em frear os saqueios. Pág. 12
Manifestação Fora Arruda interrompe o trânsito no Eixo Monumental, no Distrito Federal
Brasilienses se organizam contra a corrupção no DF Graças à denúncia do esquema de propina envolvendo o governo de Roberto Arruda, no final de novembro
do ano passado, fala-se mais de política em Brasília (DF). Mas, para além da indignação, os brasilienses decidi-
ram se juntar em organizações que levantam a bandeira da anticorrupção. Assim, o debate sobre a necessidade
de uma maior participação popular nas decisões políticas da capital brasileira se fortalece. Pág. 3
Reprodução
EUA aumentam lista de crimes de guerra no Afeganistão A imprensa calou mais uma vez diante dos abusos estadunidenses. No dia 26 de dezembro de 2009, nove jovens, entre 11 e 18 anos, foram assassinados. Jornalistas reproduziram a versão do Pentágono de que os mortos faziam parte de um grupo de terroristas. Dias depois, o governo se desmentiu e assumiu que as vítimas eram apenas estudantes. Pág. 10
Diante da crise financeira que toma conta da Europa, os partidos socialistas e social-democratas têm adotado medidas de liberalização da economia, arrocho salarial e perda de direitos. Na Grécia, movimentos sociais realizaram uma greve geral com ampla adesão para barrar as perdas de direitos que o governo pretende implementar. Para especialistas espanhóis, os maiores sindicatos não estão empenhados em barrar as medidas de Zapatero. Pág. 9
Raro de Oliveira
Furacão conservador ganha força nos Estados Unidos O número de grupos nacionalistas e racistas estadunidenses aumentou consideravelmente nos últimos anos. Isso é o que diz o relatório A Fúria da Direita, elaborado pela Southern Poverty Law Center. Segundo o estudo, trata-se do efeito social advindo das mudanças demográficas do país, dos problemas econômicos e de uma série de iniciativas progressistas do presidente Barack Obama. Pág. 10
2
de 11 a 17 de março de 2010
editorial O escritor Luis Fernando Veríssimo, com sua inigualável habilidade literária, escreve: “as mulheres são mães! E preparam, literalmente, gente dentro de si. Será que Deus confiaria tamanha responsabilidade a um reles mortal?” Na passagem do 8 de março, no centésimo aniversário do Dia Internacional da Mulher, as mulheres em lutas e marchas nos impõem a reflexão sobre o sagrado direito à vida, em condições dignas, a todos os seres humanos. Não há maior legitimidade do que a bandeira em defesa da vida sendo empunhada pelas lutadoras da classe trabalhadora. Como não há maior sentença quando essas mesmas mulheres apontam os causadores e os que lucram com as mortes. Como ficar insensível e inerte frente ao drama de 1 bilhão de pessoas que passam fome em nosso planeta, porque uma minoria lucra com o controle da distribuição dos alimentos? Estima-se que morrem 15 crianças, por minuto, por causa da fome. No mesmo tempo, um minuto, 3 milhões de dólares são destinados a gastos militares. Dinheiro utilizado unicamente para assassinar pessoas. Armas cada vez mais letais são disseminadas pelo mundo. Guerras são
debate
Sejamos livres! fabricadas para destruir povos, se apoderar de riquezas naturais e estabelecer controle sobre áreas estratégicas. Não há limites na sede de poder e na avidez de subjugar seres humanos. As guerras, cada vez mais, se tornam uma exigência do sistema capitalista. Este não sobrevive sem elas. Há uma necessidade imperativa de multiplicá-las e intensificá-las por todas as partes do planeta. As bases militares estadunidenses, que proliferam mesmo durante o governo do atual ganhador do Prêmio Nobel da Paz, Barack Obama, atestam os ideais belicistas do império. O povo palestino, o iraquiano, o afegão são vítimas diariamente dos ideais altruístas de liberdade dos exércitos de Obama. Mas no cenário nacional a voracidade por lucros e riquezas também gera mortes, degradação social, miséria e destruição ambiental. Proliferam denúncias e constatações da existência de trabalhadores rurais vivendo em condições de trabalho escravo na região economicamente mais desenvolvida do país, a Sudeste. O
agronegócio, seja da cana-de-açúcar ou da pecuária, que farta-se com os recursos públicos, otimiza seus lucros impondo condições subumanas aos trabalhadores. Onde o monocultivo de eucalipto tem se expandido, verdadeiros desertos verdes, são visíveis a degradação ambiental e social que ocorrem nessas regiões. As áreas em pouco tempo se tornam desertificadas, nascentes de água e rios desaparecem, as pequenas comunidades rapidamente são fragmentadas e as pequenas cidades, sem nenhum preparo ou planejamento, de uma hora para outra se veem cercadas por favelas. É o custo para que o país continue exportando alguns produtos primários exigidos pelo mercado externo e que asseguram ganhos fabulosos ao capital financeiro internacional, empresas transnacionais e alguns grandes proprietários rurais brasileiros. Novamente, a supremacia do lucro em detrimento das condições de vida do povo brasileiro. E nos fazem crer, a burguesia com sua mídia, que o mo-
crônica
Mário Maestri
A difícil volta do Cristão para casa EM 1º DE março, celebrando os 140 anos do fim da Guerra Grande [1864-70], no Parque Nacional Cerro Corá, onde Francisco Solano López caiu lutando no último ato de resistência, o vice-presidente paraguaio exigiu a devolução do célebre canhão El Cristiano, trazido como botim de guerra ao Brasil, hoje no Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro. Federico Franco, na presidência devido à viagem de Lugo ao Uruguai, afirmou que o Paraguai “nunca vai cicatrizar a ferida da epopeia de 1865 a 1870 se o Brasil não devolver o arquivo militar que injustificadamente retém hoje, como também o canhão Cristão [...].” Disse esperar que a “mensagem” chegasse a Lula da Silva, para que as devoluções fossem feitas logo, pois considerava “incrível” que o Brasil mantivesse “troféus da guerra” quando a Argentina e o Uruguai devolveram as últimas recordações daquele excídio. O pedido já fora feito no ano passado. Desde 1810, a pressão expansionista de Buenos Aires forçara o Paraguai, para defender sua independência, a esforço autárquico que manteve e expandiu sua produção artesanal e pequeno-manufatureira, enquanto esses setores eram aniquilados na Argentina, Brasil e Uruguai pela importação de manufaturados ingleses, de melhor qualidade e preço. Conscientes da insularidade paraguaia, as autoridades guarani esforçaram-se em apoiar na medida do possível a defesa do país na produção local de armamentos. Após a morte, em 1840, do doutor José Gaspar Rodriguez de Francia, fundador da nação, o presidente Antônio Carlos López enviara em 1853-54 o filho à Europa, com, entre outras, a tarefa de contratar técnicos para a modernização do país. Dessa modernização fez parte a fundação de siderurgia de El Rozado, em Ybycuí, em 1854, destinada à produção de implementos agrícolas e armamentos. A pequena siderúrgica teria sido levada em 1869 para o Brasil, também como presa de guerra. Desde o início do confronto, o Paraguai enfrentou a Tríplice Aliança com enorme inferioridade de armamentos. O controle do Plata pela Argentina e pelo Império determinou que os exércitos guarani lutassem durante quase cinco anos sem receber qualquer armamento do exterior, enquanto sobretudo o Brasil comprava o que havia de melhor na Europa. Durante a guerra, o Paraguai resistiu galvanizando a produção autóctone. Realizou enorme esforço quanto à fundição de canhões de ferro e bronze que, em parte, funcionavam com granadas lançadas em profusão pela artilharia imperial, já que não explodiam. Como parte desse esforço de guerra, foi fundido em Ybycuí e
delo de agricultura do agronegócio é de interesse de todo o povo brasileiro. Os megaprojetos de desenvolvimento capitalista, como o da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, o da transposição do rio São Francisco, no Nordeste, e o do polo siderúrgico na baía de Sepetiba, Rio de Janeiro, são feitos sobre a destruição dos locais de moradia e laços sociais de milhares de famílias, sem mencionar os desastres ambientais provocados. Mas, se há os mercadores da morte, há também os lutadores e lutadoras pela vida. As mais de 3 mil mulheres que estão em marcha desde o dia 8, saindo de Campinas (SP) para chegar a São Paulo (SP) no dia 18, são portadoras da esperança de que haverá resistências e lutas para que a vida prevaleça sobre os lucros e sobre o sistema capitalista. Organizada pela Marcha Mundial das Mulheres, a atividade manifesta sua solidariedade àquelas que não têm liberdade de se manifestar, exige o atendimento de seus direitos, combate a mercantilização da
Reprodução
finalizado no arsenal de Assunção um canhão de doze toneladas, fundido com o cobre de parte dos sinos das igrejas do país, lançando balas esféricas de dez polegadas. O El Cristiano estreou na batalha de Curupaity, em 22 de setembro de 1866, a mais estrondosa derrota da Tríplice Aliança. Mais tarde, com o resto dos sinos e com panelas de cobre, produziu-se outro canhão semelhante, o também famoso El Criollo. Dois outros célebres canhões nascidos da arte paraguaia foram o General Díaz, um fracasso, e o Acã Verá. El Cristiano foi levado para Humaitá, onde se mostrou, com os demais canhões paraguaios, ineficaz contra os encouraçados imperiais. A fortaleza e duas centenas de canhões, entre eles El Cristiano, foram abandonadas aos inimigos pela guarnição em inícios de 1868. El Criollo escapou por algum tempo do triste destino do irmão mais velho, sendo capturado com a rendição da defesa de Angostura, em dezembro de 1868. No dia 3 de março, Lula da Silva teria determinado o fim do longo sequestro de El Cristiano. Sobre os importantes papéis mantidos em sigilo, nada foi dito ou decidido. Tramita na Câmara dos Deputados regulamentação do direito de consulta da documentação pública. Em geral, na Europa e nos Estados Unidos, o governo pode manter documentos sob sigilo por 50 anos. No Brasil, o Estado mantém a tradição majestática colonial de guardar sob chaves indefinidamente os pa-
péis, quando quer. Nessa situação encontram-se documentos sobre a expansão das fronteiras do Brasil, a Guerra do Paraguai, a ditadura militar, os acordos para a construção de Itaipu. No projeto de lei, o Estado manteria papéis sob sigilo por até 75 anos! Proposta que determinaria a publicidade imediata dos documentos sobre a Guerra do Paraguai. E empurraria com a barriga, por alguns anos, os sobre a ditadura e Itaipu. Ambos, assuntos candentes, devido aos crimes de Estado de 1964-85 e às condições impostas pela ditadura brasileira à nação paraguaia, quando daquele acordo, e às denúncias de mortes e torturas de operários durante as obras da usina. Parece difícil que as feridas abertas pela guerra cicatrizem-se com a devolução do botim e a revelação da documentação. Mais do que a perda territorial e a enorme indenização paga pelo Paraguai, a grande chaga na carne daquela população foi a liquidação da forte comunidade camponesa proprietária e arrendatária, que entregou literalmente a vida combatendo o avanço de invasores. Ela sabia ou intuía que eles chegavam para impor a ordem liberal-latifundiária reinante em suas nações. Mário Maestri é historiador, professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. Sobre o tema, ver, do autor: A guerra do Paraguai: história e historiografia - http://www.estudioshistori cos.org/edicion_2/mario_maestri.pdf.
vida, da sexualidade e dos corpos, denuncia o sistema capitalista que explora o seu trabalho reprodutivo e produtivo, exige o imediato fim dos conflitos armados e do uso de seus corpos como botim de guerra e, por fim, protesta contra a privatização dos recursos naturais e do serviços públicos. Da mesma forma, as mulheres da Via Campesina Brasileira promoveram mobilizações em 15 estados, na jornada de lutas contra ao agronegócio e a violência que atinge trabalhadoras e trabalhadores rurais e busca criminalizar os movimentos sociais do campo. As manifestantes protestam contra o controle que as transnacionais estão tendo da agricultura brasileira e exigem do governo uma política que assegure a soberania alimentar do país, estimule a agricultura familiar e promova a reforma agrária. Essas jornadas de lutas e marchas das mulheres renovam sim a esperança de que é possível construir um mundo superior ao sistema capitalista. Mas, acima de tudo, o exemplo dessas lutadoras deve motivar a todos e todas a lutarem em defesa da vida e dos ideais de uma sociedade socialista.
Frei Betto
Valores na economia pós-crise A CRISE FINANCEIRA desencadeada a partir de setembro de 2008 exige, de todos, profunda reflexão e mudança de atitudes. Ela encerra uma crise mais profunda: a do modelo civilizatório. O que se quer: um mundo de consumistas ou um mundo de cidadãos? Frente às oscilações do mercado agiram os governos. A mão invisível foi amputada pelos fatos. A destrambelhada desregulamentação da economia requereu a ação regulamentadora dos governos. O mercado, entregue a si mesmo, entrou em parafuso e perdeu de vista os valores éticos para se fixar apenas nos valores monetários. Foi vítima de sua própria ambição desmedida. A crise nos impõe, hoje, mudanças de paradigmas. O que significa a robustez dos bancos diante da figura esquálida de 1 bilhão de famintos crônicos? Por que, nos primeiros meses, os governos do G-8 destinaram cerca de 1,5 trilhão de dólares (até hoje, já são 18 trilhões de dólares) para evitar o colapso do sistema financeiro capitalista e apenas (prometeram em L’Aquila, ainda não cumpriram) 20 bilhões de dólares para amenizar a fome no mundo? O que se quer salvar: o sistema financeiro ou a humanidade? Uma economia centrada em valores éticos tem por objetivo, em primeiro lugar, a redução das desigualdades sociais e o bem-estar de todas as pessoas. Sabemos que, hoje, mais de 3 bilhões – quase metade da humanidade – vivem abaixo da linha da pobreza. E 1,3 bilhão abaixo da linha da miséria. A falta de alimentação suficiente ceifa, por dia, a vida de 23 mil pessoas. E 80% da riqueza mundial encontram-se concentradas em mãos de apenas 20% da população do planeta. Sem alterar esse panorama a humanidade caminhará para a barbárie. Os governos deveriam estar mais preocupados com o crescimento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do que com o aumento do Produto Interno Bruto (PIB). O que importa, hoje, é a Felicidade Interna Bruta (FIB). As pessoas, em sua maioria, não querem ser ricas, querem ser felizes. A crise nos faz perguntar: que projeto de sociedade legaremos às futuras gerações? Para que servem tantos avanços científicos e tecnológicos se a população não conta com serviços de saúde acessíveis e eficazes; educação gratuita e de qualidade; transporte público ágil; saneamento básico; moradia decente; direito ao lazer? Não é ético e, portanto, humano um sistema que privilegia o lucro privado acima dos direitos comunitários; a especulação à frente da produção; o acesso ao crédito sem o respaldo da poupança. Não é ético um sistema que cria ilhas de opulência cercadas de miséria por todos os lados. Uma ética para o mundo pós-crise tem como fundamento o bem comum acima das ambições individuais; o direito de o Estado regular a economia e assegurar a toda a população os serviços básicos; o cultivo dos bens infinitos, espirituais, mais importante que o consumo de bens finitos, materiais. A ética de um novo projeto civilizatório incorpora a preservação ambiental ao conceito de desenvolvimento sustentável; valoriza as redes de economia solidária e de comércio justo; fortalece a sociedade civil organizada como normatizadora da ação do poder público. O velho Aristóteles já ensinava que o bem maior que todos buscamos – até ao praticar o mal – não se encontra à venda no mercado: a própria felicidade. Ora, o mercado, não tendo como transformar esse bem num produto comercializável, procura nos incutir a convicção de que a felicidade resulta da soma dos prazeres. Ilusão que provoca frustração e dilata o contingente de fracassados espirituais reféns de medicamentos antidepressivos e drogas oferecidas pelo narcotráfico. O pior de uma crise é nada aprender com ela. E, no esforço de amenizar seus efeitos, não se preocupar em suprimir suas causas. Talvez as religiões não tenham respostas que nos ajudem a encontrar novos valores para o mundo pós-crise. Mas com certeza a tradição espiritual da humanidade tem muito a dizer, pois é na espiritualidade que a pessoa se enxerga e se mede. Ou, na falta dela, se cega e se atola. O ser humano tem sede de Absoluto. Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: “Faço apenas um passeio socrático.” Diante de olhares espantados, explico: “Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: “Apenas observo quanta coisa existe que não preciso para ser feliz.” PS: texto escrito a pedido do Fórum Econômico Mundial 2010, de Davos. Frei Betto é escritor, autor de A arte de semear estrelas (Rocco), entre outros livros.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 11 a 17 de março de 2010
3
brasil
População adere a movimentos anticorrupção em Brasília Wilson Dias/ABr
MOBILIZAÇÃO Brasilienses se organizam para não deixar crise política e moral cair no esquecimento
assim como o de afastamento dos deputados envolvidos no chamado mensalão do Democratas e a garantia, por meio de um habeas corpus, de ingresso da população nas dependências da Câmara Legislativa, entre outras ações. A OAB tem a missão constitucional e legal de defender a sociedade e o ordenamento jurídico”. Intervenção federal
Monique Maia de Brasília (DF) “POLÍTICA NÃO se discute”. Em Brasília (DF), conversar sobre política parece ter virado parte do cotidiano desde a denúncia, feita pela Polícia Federal, de um suposto esquema de propina envolvendo o governo do Distrito Federal e a base aliada na Câmara Legislativa, no final de novembro passado. Mas a indignação tem ido além do batepapo, e muitas pessoas decidiram se organizar em movimentos anticorrupção para se manifestar e não deixar a crise política na capital federal cair no esquecimento. O movimento Fora Arruda é um exemplo. De acordo com um dos primeiros integrantes, Levy Brandão, tudo foi organizado muito rapidamente logo após as primeiras denúncias contra o governo de José Roberto Arruda (exDEM, agora sem partido). A primeira ação foi criar uma página na internet para divulgar a ideia do movimento e cadastrar pessoas interessadas em participar de manifestações. Com cinco dias de criação, cerca de 30 mil cadastros já tinham sido realizados. “A partir daí foram marcadas reuniões para preparar as manifestações e discutir o que precisava ser feito’’. Levy Brandão explica, ainda, que foi preciso organizar comissões de segurança, comunicação, mobilização popular e logística. Segundo o integrante, o movimento não leva bandeiras ou candidatos e conta com o apoio da população em ge-
Manifestação na porta da Câmara Legislativa do Distrito Federal
Uma das manifestações mais divulgadas do movimento Fora Arruda, e que ficou conhecida em boa parte do país, foi a ocupação da Câmara Legislativa do Distrito Federal ral, professores, sindicatos e outras entidades, como o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade de Brasília. “Para dar início ao movimento tiveram algumas pessoas-chave, como as do movimento Passe Livre, do DCE e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), mas não existe uma liderança”, esclarece. Ações importantes
Uma das manifestações mais divulgadas do movimento Fora Arruda, e que ficou conhecida em boa parte do país,
foi a ocupação da Câmara Legislativa do Distrito Federal. O ato ocorreu durante a entrega de um pedido de impeachment contra os deputados distritais envolvidos no escândalo, o governador, José Roberto Arruda, e seu vice, na época, Paulo Octávio. De acordo com o estudante de Ciências Políticas da Universidade de Brasília e coordenador-geral do DCE, Raul Cardoso, outro momento marcante foi o protesto em frente ao Palácio do Buriti, edifício sede do governo do Distrito Federal, em que hou-
Entidades desenvolvem campanha Ficha Limpa Movimento desenvolveu um projeto de lei de iniciativa popular que cria novos critérios de inelegibilidade para políticos em débito com a Justiça de Brasília (DF) O movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) trabalha para garantir maior participação da sociedade na gestão pública. Composto por um comitê nacional, com 44 entidades da sociedade civil, e comitês estaduais, o movimento lançou em abril de 2008 a campanha batizada de “Ficha Limpa”, em que desenvolveu um projeto de lei de iniciativa popular (PLP 518/ 09) que cria novos critérios de inelegibilidade para políticos em débito com a Justiça, entre outros aspectos. Para a proposta tramitar no
Congresso Nacional foram necessárias 1,3 milhão de assinaturas (1% do eleitorado brasileiro). O projeto foi protocolado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, no dia 29 de setembro de 2009 e foi subscrito por 33 parlamentares. Um grupo de trabalho foi montado para definir um texto de consenso e deve encerrar os trabalhos até 17 de março. A proposta tramita na Casa em caráter de prioridade. De acordo com a diretora da Secretaria Executiva do MCCE, Jovita José Rosa, a ideia de um novo projeto de lei de iniciativa popular surgiu para aprofundar e melhorar o combate à corrupção eleitoral iniciada pela lei 9.840, de 1999, também de iniciativa popular. Para isso, o projeto prevê a inclusão de novos critérios na Lei Complementar n° 64/90, chamada Lei das Inelegibilidades. Segundo Rosa, a própria Constituição permite a inclusão de normas considerando a vida pregressa dos candidatos. Enquadramento Dentre os novos casos de inelegibilidade do projeto estão: o registro de candidatos condenados em primeira instância por crimes graves como racismo e desvio de verbas públicas; po-
líticos que renunciaram ao cargo para evitar a abertura de processo por quebra de decoro ou por desrespeito à Constituição Federal; e que foram condenados por compra de votos ou uso eleitoral da máquina administrativa. A matéria também estende de três para oito anos o prazo que impede a candidatura de parlamentares e simplifica os processos judiciais que tratam das inelegibilidades. “O caso do Arruda é um bom exemplo para explicar a proposta. Ele renunciou em 2001 para fugir de um processo de cassação no Senado Federal, voltou na eleição seguinte como deputado federal e depois como governador do Distrito Federal. Se ele tivesse que ficar afastado da política por oito anos, Brasília não estaria vivendo esse período tão crítico”, afirma a diretora do MCCE. Jovita José Rosa considera que, independentemente da aprovação do projeto de lei no Congresso, a campanha ajudou a despertar a consciência política da população. “A partir do Ficha Limpa acredito que o perfil dos nosso candidatos vai melhorar. O Brasil precisa, e a sociedade quer”. A campanha ainda recebe adesão e contabiliza atualmente mais de 1,5 milhão de assinaturas. (MM)
ve confronto entre a cavalaria da Polícia Militar e manifestantes. “O problema da violência é a repercussão que isso dá. Se de um lado pode ser a nosso favor e contra a truculência da PM, por outro lado pode ser muito ruim para nós porque afasta muita gente do movimento. É complicado porque fica um sentimento de insegurança para algumas pessoas”, aponta o estudante. Pressão popular
Cardoso avalia que a pressão popular feita até agora tem sido importante para reforçar as denúncias e para não deixar que “tudo acabe em pizza”. Para o estudante, as manifestações também tiveram papel importante para cobrar do Poder Judiciário um posicionamento em relação à crise política no DF. “A Câmara Legislativa não estava tocando
os processos e as denúncias. As coisas começaram a andar só quando houve pressão popular em todos os poderes em Brasília e a Procuradoria Geral da República protocolou um pedido de intervenção federal. Mas tudo isso é resultado de uma mobilização desde o ano passado”. Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal, Francisco Caputo, a mobilização é necessária e atua como instrumento de cobrança do povo frente aos seus representantes, mas não interfere nas tomadas de decisões do Judiciário. “No caso da OAB, não é preciso sofrer pressão popular porque ela já age motivada pelos seus próprios conselheiros. Desde o início dessa crise política, a OAB já deu para a sociedade a resposta que ela espera da nossa entidade, como o pedido de impeachment do governador,
Em relação à intervenção federal, Francisco Caputo argumenta que não há razões jurídicas que justifiquem a adoção da medida e defende que “a população de Brasília tem total condição de restabelecer, ao menos minimamente, a estabilidade no Distrito Federal”. O pedido de intervenção federal foi feito no último dia 11 de fevereiro pela Procuradoria Geral da República. No entanto, o Supremo Tribunal Federal ainda não tem data para julgar o pedido. A medida de intervenção está prevista na Constituição Federal e é utilizada para retirar, temporariamente, a autonomia do Estado ou município em que for aplicada. Além disso, se posta em uso, impede o Congresso Nacional de votar Propostas de Emenda à Constituição (PECs). Apesar de aprovar a intervenção, o estudante e integrante do movimento Fora Arruda, Raul Cardoso, é incisivo e não acredita que o problema será resolvido com novas eleições e com a saída de José Roberto Arruda e Paulo Octávio do governo do Distrito Federal. Ele defende uma reforma política no DF. “A máfia é muito maior do que os dois. Não é uma ação de alguns indivíduos separadamente, mas sim algo muito bem orquestrado. Existe uma lógica na política do Distrito Federal que precisa ser repensada, e essa nova estrutura passa principalmente pela participação popular. É preciso pensar novas formas de engajar a população nesse processo”.
Primeiras iniciativas populares de lei Em 1991 chegava ao Congresso Nacional o primeiro projeto de lei de iniciativa popular de Brasília (DF) Para falar um pouco da participação popular no processo legislativo atual é preciso voltar um pouco no tempo e ir até a época da elaboração da Constituição de 1988. De acordo com o secretário executivo da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Francisco Whitaker, foi nesse momento em que instrumentos como as emendas populares, o referendo e o plebiscito foram criados. A lei de iniciativa popular também estava garantida na nova Constituição, apesar da necessidade do cumprimento de algumas exigências para valer esse direito. Este é o caso da obrigatoriedade do recolhimento de assinaturas de pelo menos 1% do eleitorado brasileiro, o que corresponde a 1,3 milhão de assinaturas devidamente acompanhadas do número de títulos de eleitores.
Assim, em 1991 chegava ao Congresso Nacional o primeiro projeto de lei de iniciativa popular. O texto criava um Fundo Nacional de Habitação, mas tramitou como um projeto de iniciativa parlamentar e levou treze anos para ser aprovado. Quase dez anos depois, uma nova proposta de iniciativa popular surgia e era focada na corrupção eleitoral. Whitaker teve a chance de participar da elaboração. Segundo ele, o projeto levava em consideração “a oferta de bens e favores aos eleitores e o uso eleitoral da máquina administrativa’’. O secretário executivo da CNBB explica que a compra de votos já estava prevista como crime eleitoral na lei 9.504/97. “No entanto, a lentidão do processo penal, a ser seguido por se tratar de crime, fazia com que praticamente ninguém fosse condenado, menos ainda antes do fim do mandato’’, conta. Coleta de assinaturas Ele relembra que a CNBB, juntamente com a Ordem dos Advogados do Brasil e outras 60 organizações da sociedade civil, deu início à coleta de assinaturas. “O processo levou um ano e meio para se completar, ajudado, a partir de certo momento, pelos grandes meios de comunicação de massa”. Após o recolhimento das assinaturas, a matéria obte-
ve aprovação após sete semanas em tramitação e se transformou na lei 9.840/ 99, primeira lei de iniciativa popular a ser aprovada pelo Congresso Nacional desde a Constituição de 1988. Segundo dados do movimento Contra a Corrupção Eleitoral (MCCE), cerca de 1.000 registros de candidatos já foram cassados desde que a lei entrou em vigor. A proposta de iniciativa popular (PLP 518/09) encontra-se atualmente no Congresso. Se aprovada, vai tornar obrigatória a “ficha limpa” para futuros candidatos a cargos eletivos. Para Francisco Whitaker, que também é um dos idealizadores do Fórum Social Mundial e teve sua militância social e política iniciada ainda quando estudante, a campanha Ficha Limpa se insere na perspectiva da Reforma Política no país. Ele aponta que a aprovação do projeto será ainda mais difícil que o da primeira lei de iniciativa popular (9.840/99). “Para os maus políticos, essa lei é mais perigosa do que a lei contra a compra de votos. Esta cria uma dificuldade futura, e recusar-se a aprová-la correspondia a um declaração explícita de que se tinha a intenção de comprar votos. Já a lei da Ficha Limpa para muitos deputados pode corresponder a decidir sobre sua própria exclusão das próximas eleições”, finaliza. (MM)
4
de 11 a 17 de março de 2010
brasil
Para o setor elétrico brasileiro, o “capitalismo dos sonhos” Aneel
ENERGIA Com o apoio do poder público, distribuidoras de energia elétrica cobram tarifas mais caras do que a produzida por petróleo; e lucram como nunca
Eduardo Sales de Lima da Redação A DESPEITO DA revelação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) – da Câmara dos Deputados – das Tarifas de Energia em 2009, que trouxe à tona o fato de que a população pagou, entre 2002 e 2009, R$ 7 bilhões a mais na conta de luz, os lucros, sobretudo das distribuidoras de energia, mantêm-se elevados, assim como o preço da energia elétrica. O coordenador do Programa de Pós-Graduação em Energia da Universidade de São Paulo (USP), Ildo Luís Sauer, apresentou à CPI, em 2009, um estudo que constatou que as distribuidoras tiveram lucro de até 103% sobre o seu patrimônio líquido entre 2007 e 2008. Uma história que se repete. Alguns exemplos: o Grupo CEEE, que atua no Rio Grande do Sul na distribuição, geração e transmissão de energia elétrica, registrou lucro líquido de R$ 3,5 bilhões em 2009. A EDP – que tem presença no setor de distribuição
As empresas estão vendendo energia equivalente a 125 dólares por barril de petróleo (1 barril = 1,612 MWh). “Ou seja, a energia hídrica está sendo vendida a quase o dobro do barril de petróleo” no Estado de São Paulo; no de geração, em Tocantins, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina; e na geração e distribuição no Espírito Santo – divulgou que seu lucro líquido no ano passado cresceu 60,8% em relação a 2008. O ganho do quarto trimestre de 2009 aumentou 74,5% em relação ao mesmo período do ano anterior, totalizando R$ 175,1 milhões. Já a distribuidora Elektro (SP) registrou lucro de R$ 485,6 milhões em 2009, o que significa alta de 23,9% sobre o resultado do ano anterior, de R$ 391,8 milhões. “Petr’água” Para especialistas, esses números refletem a influência política desse setor nos espaços decisórios do governo federal. Segundo eles, para
além do fracionamento do setor (geração, transmissão, distribuição) decorrente de sua privatização, que dificultou o controle público sobre suas contas, é necessário considerar a ação conjunta dos empresários nacionais e internacionais. Além de exercerem grande poder dentro do governo federal, eles veem o capitalismo brasileiro como o melhor dos capitalismos. Prova disso é que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel, criada durante o processo de desestatização) descartou o ressarcimento dos R$ 7 bilhões que a população brasileira pagou a mais durante sete anos. São grupos transnacionais que, agindo conjuntamente, forçam uma padronização internacional da tarifa, atrelan-
do o valor da energia elétrica ao valor da energia produzida a partir de combustíveis fósseis, como o petróleo. Ao compararmos a tarifa cobrada por outra empresa que obteve lucros exorbitantes, fica claro que as águas das barragens brasileiras estão custando mais que petróleo para a população. A Rio Grande Energia (RGE-RS), pertencente ao grupo CPFL, distribui energia a partir de hidrelétricas construídas na Bacia do Rio Uruguai, localizadas no norte e nordeste do Rio Grande do Sul e em parte de Santa Catarina. São sete hidrelétricas: Itá, Machadinho, Barra Grande, Campos Novos, Monjolinho, Foz do Chapecó e Passo Fundo. A RGE-RS registrou, de outubro a dezembro, um lucro de R$ 50,5 milhões, 134,4% acima dos R$ 21,5 milhões apurados no mesmo período de 2008. De acordo com Gilberto Cervinski, integrante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), as geradoras da Bacia do Uruguai estão vendendo energia ao preço médio
de R$ 140 o MWh (Megawatt/ hora). Todas juntas produzem em torno de 2.600 MWh médios de energia. “Isso significa que elas geram em torno de R$ 3,2 bilhões por ano de faturamento ou R$ 95 bilhões em 30 anos de concessão”, atesta. Ele compara a Bacia do Rio Uruguai a um poço de petróleo, e afirma que as empresas estão vendendo energia equivalente a 125 dólares por barril de petróleo (1 barril = 1,612 MWh). “Ou seja, a energia hídrica está sendo vendida a quase o dobro do barril de petróleo”, conclui. Segundo um estudo de André Lima, consultor do EnergyTrends Desenvolvimento de Negócios (ETC), somente o Havaí, entre os 50 estados estadunidenses, possui tarifa mais cara que a do Brasil: 0,29 dólares o kilowatt/hora, sendo que sua produção energética é baseada exclusivamente no petróleo. No Brasil, a tarifa cobrada pela Light é 0,26 dólares o kilowatt/hora, ou R$ 0,48. Escudo público As hidrelétricas construídas na Bacia do Rio Uruguai custaram cerca de R$ 8 bilhões para serem construídas; R$ 5,5 bilhões vieram do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Entre as associadas na construção estão a empreiteira francesa Suez Tractebel, a estadunidense Alcoa, e as brasileiras Votorantim e Camargo Corrêa. “Nós privatizamos o setor elétrico com o argumento central de que o setor público não tinha recursos para assegurar a expansão do setor elétrico; mas a expansão do setor elétrico hoje é feita com recursos públicos”, critica o professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Vainer. Segundo ele, “atualmente, o controle da expansão dessas empresas é privado, e os lucros da exploração do patrimônio físico do país também”. De acordo com Vainer, uma das explicações dos altos lucros das empresas do setor energético no Brasil é que, juntamente com os ramos financeiro e do agronegócio, ele
é protegido por uma grande e sólida rede do poder público. “Não devemos imaginar que são três grupos separados uns dos outros, porque existe uma participação cruzada. Evidentemente, eles não são estranhos uns aos outros”, elucida. De acordo com o professor da UFRJ, há setores financeiros investindo na mineração e na energia, e empreiteiras que exploram o agronegócio, como a Votorantim, por exemplo. Segundo Vainer, quando há algum problema, vem a proteção do Estado, como aconteceu com a empresa AES, que estava inadimplente com o BNDES e que contabilizava uma dívida que não foi executada. Como solução, o banco transformou-se num sócio da empresa. “Este é o capitalismo dos sonhos. Para os capitalistas, evidentemente”, ironiza.
“Nós privatizamos o setor elétrico com o argumento central de que o setor público não tinha recursos para assegurar a expansão do setor elétrico; mas a expansão do setor elétrico hoje é feita com recursos públicos” Erro primário Para Vainer, o Estado fortalece as empresas transnacionais do setor elétrico, transferindo a elas lucros financeiros exorbitantes e condenando o país progressivamente a ser regido por um modelo primário-exportador. Nesse sentido, um dos principais erros das administrações federais foi, segundo Ildo Sauer, ter deixado “florescer o mercado livre que compra energia em geral a 20% do custo, quebrando as estatais geradoras e favorecendo 666 grandes empresas e duas dezenas de comercializadoras”. De acordo com ele, as estatais vendem energia a um baixo custo por pressão política de setores ligados à indústria “energo-intensiva” (alumínio e ferroligas). Sauer lembra que as empresas públicas do setor, ao invés de lucro, somam grandes prejuízos.
Ricardo Stuckert/PR
Ambiente favorável Governos Lula e FHC partilham responsabilidade quanto aos gritantes lucros das concessionárias do setor elétrico da Redação Entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o setor de distribuição de energia foi privatizado. De junho de 2001 a fevereiro de 2002, no entanto, ocorreu um forte racionamento de energia no país, com graves prejuízos à população brasileira. Em plena crise de energia, entretanto, o governo de Fernando Henrique Cardoso permitiu que as empresas conseguissem intensificar a exploração dos trabalhadores, cobrando deles a energia elétrica não vendida durante o racionamento. A situação se agravou ainda mais para a população quando, em 2002, empresas e governo tiveram uma série de conversas após as distribuidoras reclamarem dos “riscos” que corriam. Um dos princi-
pais argumentos era de que elas tinham que comprar a energia em dólar; como a moeda estadunidense tinha descolado muito do real, esses valores deveriam ser transferidos para as tarifas. Com a pressão política, a partir daí se desenhava a fórmula do cálculo da cobrança tarifária presente na portaria interministerial criada em 2004. Apesar do governo de Luiz Inácio Lula da Silva ter realizado pequenas reformas no setor de energia elétrica, o modelo adotado no Brasil a partir das privatizações teve as suas principais características mantidas. Fórmula errada De acordo com Ildo Sauer, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Energia da Universidade de São Paulo (USP), os contratos de concessão continham fórmulas erradas para se calcular as tarifas, concedendo às empresas mais de R$ 1 bilhão por ano. “Enriquecimento ilícito aceito pelo Ministério das Minas e Energia [MME] e Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] em 2003 porque Lula e Dilma não quiseram implementar as correções necessárias”, afirma. Sauer explica que os contratos de concessão calculam
Aneel: “sucesso” na função da Redação
Fernando Henrique e Lula: mesmo modelo para o setor
“Enriquecimento ilícito aceito pelo Ministério das Minas e Energia [MME] e Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] em 2003 porque Lula e Dilma não quiseram implementar as correções necessárias” o reajuste da tarifa elétrica ano a ano sem levar em conta ganhos em produtividade e em escala. Ou seja, o consumo cresce e alguns fatores de custo (para as distribuidoras) não crescem na mesma proporção. Segundo ele, a diferença econômica é embolsada e se transforma em lucro. De acordo com o que explicou o professor Dorival Gonçalves Júnior, da Universi-
dade Federal do Mato Grosso (UFMT), na edição 350 do Brasil de Fato, com a legislação para o setor elétrico de março de 2004, foram mantidos os elevados níveis de lucratividade dos setores de distribuição, transmissão e comercialização e, ainda, foram estabelecidas regras para o setor de geração que o tornaram extremamente seguro e lucrativo. (ESL)
A CPI das Tarifas de Energia, em 2009, revelou que R$ 7 bilhões foram cobrados indevidamente à população brasileira pela tarifa de energia elétrica entre 2002 e 2009. Só no primeiro semestre de 2009, R$ 631 milhões foram cobrados de forma irregular. Estava prevista para novembro a entrega, pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), de um estudo que mostra detalhadamente as dívidas das distribuidoras com os consumidores. Passou-se o tempo, mas o diretor-geral da agência, Nelson Hubner, afirmou considerar inviável tal levantamento. Disse, ainda, que a única mudança a ser realizada seria a implantação de um aditivo (ajuste) na fórmula do cálculo das tarifas, sem ressarcimento aos consumidores. Desse modo, duas das determinações da CPI das Tarifas de Energia não serão cumpridas: calcular e divulgar o que foi pago a mais pelos consumidores e montar uma metodologia de devolução do dinheiro cobrado a mais.
A nova fórmula de cálculo está sendo aplicada aos poucos. Em fevereiro, já houve o reajuste nas tarifas cobradas por sete pequenas distribuidoras do interior de São Paulo e de Minas Gerais. A Pro-Teste Associação de Consumidores, entretanto, questiona a parcialidade da Aneel e afirma, em nota, que, se o aditivo sair sem uma compensação aos consumidores, existe “a possibilidade de se acionar judicialmente a agência para que sejam devolvidos os valores, que já podem ter superado os R$ 7 bilhões desde 2002”. A negativa de se compensar os consumidores também foi entendida como ato de obstrução à CPI, o que ensejou um pedido ao Ministério Público Federal para que este investigue, por prevaricação, o atual diretor-geral da agência. Para Ildo Sauer, coordenador do Programa de PósGraduação em Energia da Universidade de São Paulo (USP), o comportamento da Aneel desvela a principal função da agência. “O governo criou uma empresa de papel para precificar tarifas”. (ESL)
de 11 a 17 de março de 2010
5
brasil
Devastação ambiental e social em MG Reprodução
HIDRELÉTRICA Empresa canadense Brookfield Energia Renovável implanta a barragem Barra da Braúna no Rio Pomba, Zona da Mata Mineira, afetando moradores e destruindo o meio ambiente Mariana Starling de Belo Horizonte (MG) ÁGUAS INVADINDO casas, entulho, garrafas plásticas e lixo por todos os lados. Animais mortos, famílias desabrigadas e terras produtivas inundadas. A princípio, esse cenário parece descrever as consequências de uma tragédia natural, como a que assolou recentemente o Chile. Mas não; este é o relato de moradores de Laranjal, município na Zona da Mata Mineira drasticamente afetado pela implantação da barragem Barra da Braúna no Rio Pomba, sob responsabilidade da empresa canadense Brookfield Energia Renovável. Barra da Braúna é apenas mais um caso do processo ditatorial de implantação de hidrelétricas no Brasil e flagrante desrespeito às leis ambientais. Não aconteceram, como deveriam, audiências públicas para informação e participação dos moradores da região e, com isso, as Licenças Prévias e de Instalação (LP e LI) foram concedidas pelos órgãos ambientais sem o conhecimento da grande maioria das famílias. E, apesar de todas essas evidentes irregularidades, a Licença de Operação (LO) da barragem foi concedida “ad referendum” – ou seja, em um ato secreto, sem publicação do conteúdo – por Sheley Carneiro, vice-secretário da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Minas Gerais, no dia 6 de setembro de 2009. Em processo movido pelas famílias atingidas, sob orientação de entidades como Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Cáritas, a licença foi suspensa. O enchimento do lago, porém, seguiu, e a empresa começou a gerar energia de forma “clandestina” no final de dezembro de 2009. Em janeiro deste ano, por intervenção direta do governador do Estado de Minas Gerais, Aécio Neves, a liminar de cassação da LO foi derrubada.
O enchimento do lago, porém, seguiu, e a empresa começou a gerar energia de forma “clandestina” no final de dezembro de 2009 Impactos A chegada da Barra da Braúna às cidades mineiras provocou imensa agressão ao Meio Ambiente. O lago da barragem está repleto de entulhos e sujeira, principalmente garrafas plásticas e toras de madeira de até 15 metros. Os peixes são contaminados pela emissão de gás metano, proveniente da inundação das matas locais. Com isso, as espécies que conseguem resistir tornam-se impróprias para o consumo e têm seu habitat devastado. Mas o descaso do poder público local e estadual no processo de implantação da barragem tem reflexos diretos e prejudiciais principalmente à população das cidades atingidas: além de Laranjal, Cata-
O lago da Barragem de Braúna, repleto de lixo, trouxe transtornos psicológicos e econômicos para os habitantes da região
guases, Leopoldina e Recreio. Segundo relato de Sebastião Alex Dias Machado, um dos prejudicados, “desde o princípio dessa negociação, fomos torturados psicologicamente. Sofremos até hoje. Não vejo a hora de acabar com essa história. O meu pai tem 82 anos e está sofrendo a cada dia que passa, adoentando-se, e não vê o fim disso. A empresa chegou e não fez um trabalho de base nessa área de assistência social, com psicólogos, para nos ajudar. Levou-nos ao desespero e a noites sem dormir. Enfim, nem estamos conseguindo trabalhar direito”. As artimanhas De acordo com José Montes Duarte, proprietário de terras em Cataguases, a implantação da barragem foi toda “viciada”. Os trabalhos de campo se iniciaram em 1997 com a Companhia Força e Luz Cataguases Leopoldina. Ficaram paralisados por dez anos e, depois, foram retomados em 2007, com a Brookfield, que teria comprado o projeto. Montes lembra como a empresa chegou, dizendo que “o progresso estava vindo. Falavam que tinham dinheiro e quem vendesse um sítio poderia comprar uma fazenda”. Maria Júlia, também moradora de área atingida, confirma: “diziam que a gente ia ser bem indenizado, que não iam fechar o lago enquanto não acertassem com o último proprietário. Mas não cumpriram. Ameaçaram, e a negociação foi forçada, pois ficamos com medo diante das ameaças de levar para a Justiça”. Prejuízos econômicos E a calamidade, além de trazer transtornos psicológicos aos habitantes das regiões afetadas, trouxe inúmeros prejuízos econômicos para os municípios. Toda uma cadeia produtiva foi afetada. Areeiros, meeiros e diaristas estão entre os que sofrem com a implantação da barragem Barra da Braúna. Conforme depoimento do senhor Joaquim Monteiro, proprietário de uma empresa de extração e comércio de areia, com a inundação, a atividade foi interrompida. A paralisação gerou prejuízos financeiros não só a ele, principalmente pela ausência de devido ressarcimento financeiro legal, mas também para toda a população. “Estamos no ramo há mais de 15 anos. Nossas atividades são de extrema importância para o desenvolvimento da região, pois produzimos, geramos empregos diretos e indiretos, recolhemos regularmente os impostos e participamos do processo de movimentação da economia regional. Sou proprietário legal de uma área cuja parte nego-
ciei com a Brookfield, mas ficou uma remanescente, onde, sem a minha autorização como proprietário legal, entraram e desconfiguraram todo o terreno. E, mais ainda, para a minha surpresa, há um documento que diz que a minha empresa já foi indenizada. Isto é uma mentira”. Violação de direitos Os relatos dos atingidos pelo empreendimento da Brookfield apontam a existência de agressão descarada aos direitos humanos elementares. São citados casos de negociação forçada, ameaças verbais e coação para a venda de terras por preços menores do que os valores justos. É o caso de José Montes. O morador de Leopoldina relata a postura da empresa Vert Ambiental, que presta consultoria para a construtora canadense: “Um funcionário da Vert, ultimamente, de uns três meses para cá, ameaça proprietário, ameaça trabalhador, não vai às reuniões. Ele andou o dia inteiro junto com a assistente social, ameaçando trabalhadores. Os plantadores de arroz foram ameaçados pela Vert Ambiental. É o trabalho dessa empresa na região. Há trabalhadores ameaçados, torturados e ninguém recebeu nada. Tem gente que, há quatro meses, vendeu sua propriedade para essa empresa mas não pagam ninguém. Fez acordo e não recebeu nem um centavo até hoje. É assim que essa empresa se conduz”. Outro atingido pela barragem, que preferiu não se identificar, relata a coação no momento da assinatura de venda das terras: “Quando eles assinam os documentos, a pessoa que o levou para ser assinado lhes retira o papel, não lhes permitindo o direito da desistência e da contradição. Vim aqui porque ouvi, vi e senti esse problema”. Danos também são relatados pela assistente social dos atingidos, senhora Neusita Mendes Ferreira: “Onde estão os plantadores de arroz? Não aparecem para reclamar porque foram coagidos. Se aparecessem aqui, não receberiam nada. Vi a perda da identidade das pessoas, funcionários terceirizados ameaçando; e os idosos sofrem o impacto pior”. A falta de planejamento (ou má-fé da Brookfield, como pregam os atingidos) criou uma situação alarmante nos municípios atingidos, principalmente em Laranjal: o nível do lago está acima do previsto, há casos de famílias não incluídas no Relatório de Impacto Ambiental (produzido por consultora contratada pela empresa canadense), e os prejuízos ambientais, culturais e sociais são visíveis.
Assembleia Legislativa Mineira intervém para buscar soluções Comissão de Direitos Humanos da Casa se reuniu para ouvir os envolvidos e tentar buscar soluções para o caso Marcelo Metzker/ALMG
Atingidos pela construção da barragem se reúnem com a Comissão de Direitos Humanos
de Belo Horizonte (MG) As falhas nos processos de indenizações, a retirada truculenta de pessoas de suas residências, a devastação ambiental, dentre os muitos problemas gerados pela implantação da barragem Barra da Braúna, motivaram a realização de uma audiência pública no município de Leopoldina. A pedido do deputado estadual Padre João, do Partido dos Trabalhadores (PT) – líder do bloco PT/PMDB/PC do B na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais (ALMG) – a Comissão de Direitos Humanos da Casa se reuniu no final de 2009 para ouvir os envolvidos e tentar buscar soluções para o caso. A suspensão das atividades da barragem foi a principal proposta apresentada na audiência. Os deputados da Comissão ouviram os relatos de alguns integrantes das mais de 100 pessoas presentes – dentre atingidos pela obra, representantes do Conselho Estadual de Assistência Social (Ceas) e de órgãos estaduais ambientais, consultores ligados à Brookfield, membros da Comissão Pastoral da Terra (CPT), promotores de Justiça e secretários de Meio Ambiente. “Foi concedida a licença de operação para a empresa, mas com a promessa de que as condicionantes impostas ao plano de assistência social se-
riam cumpridas. Mas isto não ocorreu. E a concessão da licença de operação por ‘ad referendum’ foi um verdadeiro desrespeito com a população das regiões, com os próprios membros do Conselho de Política Ambiental (Copam) de Minas Gerais e com todos os envolvidos na questão”, enfatizou Padre João ao justificar a necessidade de revogação do funcionamento da Barra de Braúna.
A suspensão das atividades da barragem foi a principal proposta apresentada na audiência Minimizar queixas O consultor da Vert Ambiental, empresa ligada à Brookfield, Marco Antônio Barbosa, afirma que a mesma agiu dentro das normas: “Tentamos cumprir, desde o início, o nosso plano de assistência social. Tentamos cumpri-lo desde o início. Os conselhos municipais estão sempre nos fiscalizando, dando informações e nos cobrando, E nós continuamos cumprindo”. A tentativa do consultor foi de minimizar as queixas: “No
final de 15 anos, há pessoas insatisfeitas, há problemas sendo resolvidos. Depois de várias audiências públicas, depois de várias reuniões com a comunidade, depois de várias visitas, vêm agora, num relâmpago, falar que estão aborrecidas e insatisfeitas, orientadas por movimentos que criam esse tipo de caos”. Empresa seduziu Para o coordenador estadual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Reinaldo Barbeirine, a empresa fez uma propaganda bastante sedutora, e só meses depois os moradores começaram a perceber os reais impactos da barragem. Dentre estes, há relatos também de omissão de policiais militares do município de Laranjal, que, segundo alguns atingidos pela obra, teriam se negado a registrar boletins de ocorrência quando acionados para conter a forma agressiva de retirada dos moradores de suas casas. A Comissão de Direitos Humanos da ALMG abriu representação na Corregedoria da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais (PMMG) para apuração dos fatos e punição aos responsáveis. O deputado Padre João lembrou que a lei garante o direito dos atingidos por barragens de serem indenizados com outra propriedade igual ou melhor. (MS) Colaboraram: Padre Antônio Claret Fernandes e Sandro Starling.
6
de 11 a 17 de março de 2010
brasil
Pela verdadeira emancipação João Zinclar
8 DE MARÇO Ações em diversas partes do Brasil e do mundo recolocam pautas sobre os direitos femininos Luiz Felipe Albuquerque da Redação “NUM MUNDO em que mulheres e homens desfrutassem condições de igualdade (...) Viveriam juntos porque se querem, se estimam no mais puro, belo e desinteressado sentimento de amor”. Assim diziam as anarquistas brasileiras no periódico A Voz do Trabalhador, em 1915. Noventa e cinco anos depois, elas bradam: “Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres”. Este é o lema das mobilizações que pautam as ações da Marcha Mundial da Mulher (MMM), iniciada na semana do Dia Internacional da Mulher. Mais de 15 estados brasileiros foram cenário da luta durante a comemoração do centenário do 8 de março. Mulheres de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Via Campesina, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTB), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Consulta Popular, entre outros, formaram um contingente feminista com mais de 10 mil participantes no total. As reivindicações da 3ª Ação Internacional da MMM estão baseadas em quatro pilares, considerados temas fundamentais para a vida das mulheres em todo o mundo: autonomia econômica das mulheres, bens comuns e serviços públicos, paz e desmilitarização, e fim da violência contra elas. Discrepância salarial Em de São Paulo, 3 mil mulheres de 25 estados iniciaram uma marcha, no último dia 8, de Campinas à capital paulista, com previsão de chegada para 18 de março. A parte da manhã é reservada para marchar, enquanto o período da tarde é destinado à formação política em diversos temas. “Queremos justamente desnaturalizar essa ideia de que o trabalho doméstico é coisa de mulher e tentar entender esse fato como uma construção social, como uma divisão sexual do trabalho”, comenta Nalu Faria, da Coordenação da MMM, referindo-se a uma das questões abordadas. Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2009 ainda retrata a opressão social sofrida pelo gênero. Os dados revelam por exemplo que, quanto maior a escolari-
Raquel Casiraghi Porto Alegre (RS) OS AVANÇOS dos transgênicos e do uso dos agrotóxicos característicos do modo de produção do agronegócio foram os alvos nos protestos das mulheres durante a jornada de lutas do 8 de março no Rio Grande do Sul. Nos dias que antecederam o Dia Internacional da Mulher, cerca de 1,7 mil mulheres da Via Campesina, Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), da central sindical Intersindical e estudantes se mobilizaram em Porto Alegre e
Modelo garantido
Os bancos estrangeiros já estão fazendo relatórios para orientar investidores sobre os cenários econômicos no Brasil após a eleição presidencial deste ano, considerando principalmente a disputa entre José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT). De acordo com o Banco Merrill Lynch, a vitória da Dilma significa “manutenção dos fundamentos da economia”. Para o Banco WestLB, “do ponto de vista da gestão, não haverá grande mudança”. É isso aí.
Sinuca tucana
A tucanada (PSDB) e a direita em geral começam a entrar em pânico com a eleição presidencial: já perceberam a fragilidade de José Serra e o crescimento da candidatura de Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo ganha força a tese de que somente o governador mineiro Aécio Neves tem cacife para ganhar da coligação governista. Se quiser retomar o espaço político perdido para o lulismo, a direita vai ter que inventar outro candidato no lugar do Serra. Mulheres de 25 estados iniciaram marcha em Campinas (SP), no dia 8, rumo à capital paulista
dade de ambos os sexos, maior a discrepância salarial entre homens e mulheres: estas ganham em torno de 72,3% do rendimento recebido pelos homens. “Isso demonstra a divisão sexual do trabalho. Sempre nos tentam fazer acreditar que ganhamos pouco porque o que fazemos é pouco valorizado e porque não somos qualificadas. No entanto, quando as mulheres se qualificam, os trabalhos delas continuam sendo desvalorizados”, observa Nalu. Rearticulação Com caráter internacional, tais atividades estão programadas para serem realizadas em 51 países, como Canadá, Colômbia, França e Espanha, com ações acontecendo até 17 de outubro, dia do encerramento, em Kivu do Sul, na República Democrática do Congo. Para Tatiana Berringer, da Consulta Popular, tais ações, além de trabalharem sob a ótica dos movimentos coletivos e o direito à reforma agrária, visam também “uma nova rearticulação dos movimentos feministas”. Discute-se, também, conquistas dos movimentos feministas que serviram muito mais para uma reorganização do modelo liberal de produção, como a imersão no mercado de trabalho, do que para uma verdadeira emancipação das mulheres. “O grande desafio de fato é demonstrar para a sociedade como as mulheres ainda vivem nessa situação de opressão e exploração, principalmente por cumprirem uma dupla jornada de trabalho: o reprodutivo e doméstico e o próprio trabalho produtivo, relacionado ao mercado; intensificando-se, na verdade, tanto a exploração como a opressão das mulheres”, analisa Tatiana.
As ações nos estados Alagoas: em Maceió, manifestantes acamparam em frente ao Palácio do Governo do Estado. Em Arapiraca, ato criticou o avanço da monocultura e a transposição do rio São Francisco. Bahia: mais de 1.500 mulheres se reuniram em frente à Universidade Federal da Bahia e discutiram temas como soberania alimentar e violência contra a mulher. Ceará: em Fortaleza, 400 mulheres acamparam em frente à produtora de agrotóxicos Nufarm, exigindo a desapropriação do terreno. Espírito Santo: 400 mulheres marcharam até o Banco do Brasil, em São Mateus, exigindo políticas para as camponesas. Marcha pelas principais ruas de Vitória contra o latifúndio. Goiás: caminhada contra o agronegócio no município de Rubiataba. Mato Grosso: doação de sangue em Várzea Grande. Mato Grosso do Sul: 300 mulheres caminharam pelas ruas de Campo Grande, entregando ao Incra local uma pauta com reivindicações para melhorias na área de saúde, educação e crédito para as mulheres do Estado. Minas Gerais: exigindo mais acesso ao crédito, 300 mulheres concentraram-se em frente ao Banco do Brasil, em Governador Valadares. Em Belo Horizonte, 500 mulheres acamparam em frente à Assembleia Legislativa e denunciaram a situação de opressão pelo agronegócio, a violência e o machismo. Paraíba: em João Pessoa, as mulheres marcharam pelas principais ruas da cidade, destacando a violência contra elas. No município de Sousa, 400 mulheres também marcharam, denunciando o uso desenfreado de agrotóxicos pela empresa Santana. Paraná: cerca de mil camponesas, na cidade de Porecatu, ocuparam a Usina Central do Estado, denunciando o trabalho escravo e a monocultura de cana. Pernambuco: cerca de 350 mulheres ocuparam a sede da Secretaria de Agricultura, no Recife. No dia 7, 180 mulheres reocuparam a fazenda Uberaba, no município de Bonito. Rio de Janeiro: ocupação da Usina Capim, em Ururaí. Rio Grande do Sul: ocupação da Delegacia do Ministério da Agricultura, dia 3, e manifestação em frente à Universidade Federal do Rio Grande do Sul contra projeto da construção do Parque Tecnológico, dia 4. Rondônia: protesto contra a construção da Hidrelétrica no rio Madeira, em Porto Velho. São Paulo: 3 mil mulheres marcham, do dia 8 ao dia 18, de Campinas à São Paulo. 150 mulheres ocuparam o Incra de Araraquara e seguiram para a frente da empresa Cutrale. Tocantins: 800 mulheres da região Amazônica e de movimentos populares marcharam em defesa da vida, da soberania alimentar e dos direitos humanos.
No RS, mulheres amamentam esqueletos em favor da vida Protestos da Via Campesina, de organizações urbanas e estudantes tiveram como foco os efeitos dos transgênicos e dos agrotóxicos
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
em Palmeira das Missões, no norte do Estado, para denunciar os prejuízos provocados pelo agronegócio ao meio ambiente, à economia dos pequenos agricultores e à saúde da população. As manifestantes destacaram que a população pobre é quem mais sofre com o emprego de transgênicos e o uso de venenos nas lavouras. Sem dinheiro para comprar produtos saudáveis, como os agroecológicos, que acabam custando mais caro nos mercados, a população é obrigada a comprar os produtos industrializados das grandes empresas. Agrotóxicos A integrante do MTD, Eliane Martins, lembra que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Na safra passada, foram empregadas mais de 700 milhões de toneladas desse veneno no campo. Ao mesmo tempo, o país se tornou recentemente o segundo maior produtor de transgênicos, perdendo somente para os EUA. “Os pobres são os que vão comprar o produto mais barato, que é o mais envenenado. Dados do Sis-
tema Único da Saúde [SUS] mostram que 80% dos trabalhadores morrem em decorrência desse modelo de alimentação e de vida”, argumentou. A agricultora Celi Raddatz, produtora de fumo na cidade de Agudo (a 241 km da capital), diz que a última vez que teve contato direto com agrotóxicos foi há 25 anos, quando parou no hospital com problemas nos rins depois de passar veneno na lavoura. No entanto, é a história de uma vizinha, plantadora de fumo, que mais a emociona. “Ela passava veneno na lavoura mesmo estando grávida. Um mês depois, o bebê dela nasceu e nem chegou a ir para casa; morreu com 21 dias no hospital. Fui com ela buscar o corpo no necrotério e vi que o bebê estava colorido que nem as ervas da roça: amarelo, rosa. Os médicos não falaram que foi por causa do veneno, mas eu desconfiei. Avisei a ela que isso poderia acontecer”, contou. Esqueletos Pesquisas apontam que os agrotóxicos consumidos junto com os alimentos podem ser transmitidos
por até quatro gerações, por meio do aleitamento materno. Este foi um dos motivos que fez com que, durante os protestos, as mulheres carregassem esqueletos e os amamentassem. “Esse projeto de agricultura precisa ser barrado. Ou o futuro das próximas gerações é a morte. E nós, mulheres, não queremos ser as geradoras e amamentadoras da morte”, comentou Ana Hanauer, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Via Campesina. A produção e a comercialização de transgênicos e de agrotóxicos são dominadas, hoje, por cinco megaempresas, que se juntam a outras transnacionais para industrializar os alimentos. É o caso da processadora de soja Solae, um dos alvos das mulheres no RS, resultado da união entre a Bunge – que atua no setor de sementes e fertilizantes, e até na fabricação de azeite, margarina, maionese e farinha de trigo – e a DuPont (fabricante de agrotóxicos). “A gente [agricultores] precisa aprofundar e melhorar as nossas experiências de cultivo ecológico, que já temos entre os assentados e camponeses em geral. Agora é preciso muita organização política, uma aliança entre os trabalhadores. A população da cidade também é superexplorada no trabalho e também não tem as informações de onde vem sua comida”, diz Ana.
Voto pensado
Considerado uma “cria” do PT e do lulismo, o mais novo ministro do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Toffoli, foi o único a votar a favor da liberação do governador José Roberto Arruda (DEM), do DF. Antes, ele já havia votado contra o indiciamento do senador Azeredo e dos envolvidos no mensalão do PSDB de Minas Gerais. Tudo indica que está construindo uma “posição coerente” para futuros votos a favor de corruptos.
Doença programada
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recuou na tentativa de colocar restrições na publicidade e na embalagem de produtos alimentícios dirigidos para as crianças. Estudos realizados comprovam que elas são influenciadas no consumo de alimentos que provocam doenças do coração, pressão alta, diabetes e obesidade. Falaram mais alto os lobbies das agências de publicidade e da indústria de alimentos.
Veneno puro
Em inspeção sanitária realizada na empresa estrangeira Basf, na fábrica de Guaratinguetá (SP), a Anvisa bloqueou a comercialização de mais de 800 mil litros de agrotóxicos com validade vencida. O veneno seria utilizado nas lavouras de 15 produtos alimentícios, entre os quais arroz, feijão, milho e café. Ficou constatado que a empresa agiu de má-fé e tentou esconder a fraude dos fiscais. Há quanto tempo engana o agricultor brasileiro?
Alerta ambiental
O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) denunciou o aumento do desmatamento da floresta em janeiro deste ano, 26% a mais do que em janeiro do ano passado. Da mesma forma, de agosto de 2009 a janeiro de 2010 a área de destruição da Amazônia Legal cresceu 22% em relação ao mesmo período do ano anterior. O discurso do “desenvolvimento” a qualquer preço tem endereço certo.
Fome não
Reunidos em São Paulo nos dias 4 e 5 de março, parlamentares de 14 países da América Latina e Caribe debateram medidas contra a fome no continente. De acordo com o organizador do evento, deputado estadual Simão Pedro (PT), todos os participantes assumiram o compromisso de formar frentes parlamentares e de lutar contra a fome e a desnutrição em seus respectivos países, especialmente com o apoio à agricultura familiar.
Espírito Santo
O Conselho de Direitos Humanos da ONU analisa, dia 15 de março, dossiê sobre a dramática situação carcerária nos presídios do Espírito Santo, onde a superlotação e a barbárie extrapolam de longe os limites do que acontece em todo o Brasil. Vídeos e outros documentos mostram até corpos esquartejados dentro das penitenciárias capixabas. Além disso, jornais do Espírito Santo foram censurados sobre esse assunto.
Fundo Florestan
A partir de 12 de março o Fundo Florestan Fernandes, da Universidade Federal de São Carlos, deixará disponível na internet aproximadamente 30 mil páginas de documentos pessoais e profissionais do sociólogo Florestan Fernandes. Os documentos – acessados no endereço online www.bco.ufscar.br – foram doados pela família para a Universidade. Mais uma fonte para se conhecer a vida e a obra do sociólogo.
de 11 a 17 de março de 2010
7
brasil
No Rio de Janeiro, sentenças à venda CORRUPÇÃO O empresário Eduardo Raschkovsky usava amizade com desembargadores para extorquir políticos e empresários. Preço de “blindagem eleitoral” chegava a R$ 10 milhões Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) EM NOVEMBRO de 2009, uma sequência de matérias do jornal O Globo revelou um esquema de venda de sentenças no Judiciário carioca. Através da série de reportagens intitulada “Relações perigosas”, ligações criminosas entre personalidades da Justiça do Rio de Janeiro, que já eram conhecidas de forma velada, desta vez vieram a público com provas. O empresário e estudante de direito Eduardo Raschkovsky seria um lobista que, usando contatos no interior do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), vendia decisões no órgão para políticos, tabeliães e empresários. Entre os desembargadores envolvidos no esquema, destaca-se Roberto Wider, expresidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ). O então corregedor de Justiça do Estado, posteriormente afastado do cargo, estaria intrinsecamente ligado ao escândalo.
No escritório de Raschkovsky, há muitos indícios de que a corrupção é maior do que se supõe. Entre seus sócios, há doleiros investigados pela polícia, um deles por associação ao tráfico de drogas As denúncias geraram a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Em depoimento na CPI, em 4 de março, Raschkovsky negou veementemente todas as acusações – além de não responder a algumas perguntas. Recentemente, entretanto, tem-se descoberto conexões mais profundas e complexas no esquema do empresário. Durante o período em que Wider estava na Corregedoria de Justiça – órgão responsável pela fiscalização dos cartórios judiciais e extrajudiciais –, foram nome-
Nelson Jr./ASICS/TSE
ados oficiais de cartórios de notas dois advogados do escritório de Raschkovsky. O empresário também foi acusado, por políticos, de cobrar por blindagem eleitoral no período em que Wider estava à frente do TRE. O esquema teria funcionado durante as duas últimas eleições. Raschkovsky também era acusado de dar festas em sua casa a desembargadores, onde provavelmente organizava a negociação. No escritório de Raschkovsky, há muitos indícios de que a corrupção é maior do que se supõe. Entre seus sócios, há doleiros investigados pela polícia, um deles por associação ao tráfico de drogas. Raschkovsky é dono de uma empresa acusada de lavagem de dinheiro pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), além de se envolver com negociações pouco transparentes do banco Opportunity. “Há muitas testemunhas de acusação, inclusive parlamentares e prefeitos. Nosso papel, agora, é convencer essas pessoas a falar publicamente na Alerj”, afirma o deputado estadual Paulo Ramos (PDT), presidente da CPI. Negação suspeita Segundo a investigação da CPI, pelo menos quatro remessas de dinheiro teriam sido feitas por Raschkovsky, entre 1998 e 2002, ao Royal Bank of Canada. As emissões representariam um total de R$ 140 mil. A operação financeira teria sido feita através da ajuda de doleiros cariocas, por meio de contas no Uruguai. Embora ainda não se possa afirmar que o depósito é ilegal, causou estranheza entre os deputados o fato de Raschkovsky ter também negado a existência dessa conta – enquanto a investigação já comprovara tal fato. As acusações não são apenas de aliciamento dos políticos, mas de tentativa de extorsão. Políticos com problema anterior na Justiça teriam sido ameaçados pelo lobista de não concorrerem a eleições, em troca de dinheiro. As quantias supostamente pedidas pelo empresário variam de R$ 200 mil a R$ 10 milhões. Em todos esses contatos, Raschkovsky se valia de sua proximidade com Wider. Entretanto, hoje, ambos afirmam que a amizade entre eles não é tão intensa quanto se suspeita. O sigilo bancário de Raschkovsky foi quebrado, e, em breve, poderá se chegar a novas constatações. A CPI solicitou à Polícia Federal (PF) que possíveis contas no exterior sejam investigadas, além de outras informações. Novos dados foram requisitados a outras instituições bancárias. Raschkovsky era sócio, na empresa do setor imobiliário Ocean Coast, dos irmãos Davies, que fizeram as remessas de dinheiro ao banco canadense. A esposa de um excorregedor de Justiça, Manoel Carpena Amorim, acusado pela PF de possuir contas suspeitas no exterior, também formava sociedade na firma. Raschkovsky admite que convidou Marlene, esposa de Manoel, e Raul Davies, para formar sociedade em sua empresa. Raul seria seu vizinho em propriedade situada em Angelo Cuissi
O deputado estadual Paulo Ramos, presidente da CPI
O desembargador Roberto Wider, então presidente do TRE carioca, conversa com o presidente do TSE, Carlos Ayres Britto
Itaipava. “Existem muitas conexões. Só temos que reunir as tantas provas de tráfico de influência e extorsão”, afirma Paulo Ramos.
“Existem muitas conexões. Só temos que reunir as tantas provas de tráfico de influência e extorsão”, afirma o deputado estadual Paulo Ramos Farol da Colina A CPI agora está em busca de dados da Operação Farol da Colina, da Polícia Federal, que, a partir de investigação no Paraná, combateu um esquema de doleiros. Foi a partir desse processo que surgiram as quatro referências a Raschkovsky nas remessas ao Royal Bank of Canada. Em uma delas, o empresário foi diretamente acusado. Na operação, a PF contou com ajuda até mesmo da Promotoria Distrital de Nova York. Por meio da mesma investigação, constatou-se que os sócios da Ocean Coast ajudaram Vera Lúcia dos Santos, então mulher de Wider, a depositar dinheiro no Banco Comercial Português, em Lisboa. Também há registros de que Raschkovsky ofereceu um jantar a Wider em 22 de outubro, com a presença de cinco desembargadores e dois juízes. Ambos teriam viajado juntos para Inglaterra e Israel, em 2005, e passado alguns fins de semana em uma casa de Raschkovsky na região serrana do Rio de Janeiro. Um depoimento na CPI, em fevereiro, causou especial constrangimento. Fernanda Leitão, tabeliã do 15º Ofício de Notas da capital, afirmou que pagou, durante oito meses, R$ 40 mil mensais à L. Montenegro Advogados Associados. O advogado do escritório pertencente a Raschkovsky afirma ter recebido apenas R$ 7 mil pelo contrato, assinado em 2003. Fernanda deu a entender que foi pressionada a pagar em dinheiro vivo, e recebeu recibo em que se registrava valor menor. Os deputados interpretaram a denúncia como prova de extorsão. O advogado que assinou as notificações, Alexandre Rui Barbosa, seria posteriormente nomeado titular do 11º Ofício de Notas por Wider.
Nem toda denúncia ocupa a mídia Principais acusados da venda de sentenças estão envolvidos com retaliação a quilombo e tráfico de influências em clubes da Barra da Tijuca, bairro nobre da cidade Mauricio Scerni
do Rio de Janeiro (RJ) A venda de sentenças no judiciário carioca não apenas surgiu de denúncias do jornal O Globo como permanece tendo nele sua principal plataforma de reverberação. Entretanto, há conexões dos dois principais protagonistas dessa história que, misteriosamente, nunca foram registrados no jornal. Uma delas é de Roberto Wider, ex-presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) e ex-corregedor de Justiça do Estado, com o Sacopã, quilombo urbano situado nas proximidades da lagoa Rodrigo de Freitas, região nobre do Rio de Janeiro. Há um século, os moradores vivem nessas terras. E há quatro décadas lutam pelo reconhecimento dessa realidades, como revelou reportagem do Brasil de Fato de julho do ano passado. Wider foi relator do processo que reverteu negativamente, na Justiça, o reconhecimento do direito dos quilombolas às terras. Em primeira instância, em 2003, a ação havia recebido parecer favorável, com indicação de ganho de causa com indenização. Amizades
Em 2005, quando chegou à segunda instância – agora sob supervisão de Wider –, não só o resultado anterior foi anulado como se criou o indicativo de reintegração de posse. O processo seguiu ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde ainda aguarda julgamento. Talvez uma outra amizade, até hoje omitida pela mídia comercial, possa explicar a repentina reversão da decisão. Roberto Wider é amigo íntimo de Antonio Eduardo Duarte, desembargador que mora no condomínio vizinho ao Sacopã, invasor de parte de seu terreno. Duarte é considerado inimigo número um do quilombo, e seria a pessoa que mais intercede na Justiça contra o reconhecimento das terras aos negros. A cantora Tia Nenê, famosa liderança dos quilombolas, morreu um dia após violen-
Luiz Sacopã aponta condomínio construído irregularmente
ta discussão com o desembargador. “Ele praticamente matou a minha irmã. Essa ação só foi julgada na 5ª Câmara Cível por pressão dele”, acusa José Luiz Pinto Júnior, o Luiz Sacopã, irmão de Tia Nenê e principal referência dos quilombolas. “As coisas estão muito claras agora. A gente só precisa encontrar uma maneira de ser ouvido”, completa. A comunidade quilombola ocupa, hoje, cerca de 32 metros quadrados, o que valeria quase R$ 400 mil. Já sofreram quatro ordens de despejo, a maioria delas por pressão do condomínio vizinho. Mídia dependente
O quilombo foi vítima de mais perseguição este mês. Moradores de 22 condomínios da região, que foram notificados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 2008, a devolver as terras aos quilombolas, voltaram a atuar: acusaram-nos de desmatamento e violação ao “direito à propriedade”. Na capa do Jornal do Brasil do dia 7, surgiu uma reportagem extremamente desfavorável ao quilombo. Como principal fonte da matéria, apareceu Ana Si-
mas, presidente da Associação de Moradores da Fonte da Saudade e antiga amiga de Luiz Sacopã, que “mudou de opinião” assim que a imobiliária Higienópolis passou a lutar pelas terras. Ana se casou no quilombo, porém distanciou-se. Hoje, mantém relações de proximidade com Antonio Eduardo Duarte. Além do caso Sacopã, Roberto Wider tem envolvimento comprovado em outro processo. Como desembargador da 5ª Câmara Cível, também teve o nome envolvido na venda de terrenos ocupados por dois clubes, o Barra Country Club e o Canaveral, ambos na Barra da Tijuca. Na decisão que envolveu o primeiro, Wider atuou para estimular a alienação do imóvel. Em relação ao segundo, é citado como um dos sócios do empreendimento. Em ambos os casos, os beneficiados foram Roberto Landau e Roberto Sidi, próximos de Wider. Há a denúncia de que um juiz que atuou com intuito oposto, em um dos processos, teria sido procurado por Raschkovsky, que teria perguntado a ele se “estava seguro” de seu posicionamento. (LU)
8
de 11 a 17 de março de 2010
cultura
A poesia latino-americana e suas raízes na comoção social LITERATURA Artista equatoriano produz série de mosaicos com retratos de 42 escritores e escritoras do continente americano
A PRODUÇÃO poética da América tem raízes enlaçadas com a história de lutas sociais do continente. Esse contexto pode ser o ponto de partida para analisar a obra de autores que optaram por uma poesia abertamente social, ou ainda daqueles que, no grito de seu trabalho, contestaram a ordem vigente. O conservadorismo baseado em uma visão de mundo submissa à produção europeia, sem a conexão com a realidade local, é outro afluente que marca a poética latinoamericana, principalmente no século 19. Isso quer dizer que há uma variedade de autores que não se insere no conhecido “boom” latino-americano da segunda metade do século 20, quando nossa literatura foi redimensionada no cenário mundial pelas obras de García Márquez, Vargas Llosa, Alejo Carpentier, Jorge Luis Borges etc. Sob essa perspectiva, o mosaicista equatoriano Javier Guerrero Meza, ao lado dos jovens militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Geniel Moresco e Caio Murilo Padilha, produziu a série de mosaicos “Poetas de América”: 42 retratos de escritores e escritoras do Canadá e EUA à Argentina, passando pelos países do Caribe. Ex-militante da organização Alfaro Vive (Equador) e hoje radicado em Curitiba (PR), Guerrero finaliza mais uma série de obras com a missão de resgatar ícones latino-americanos. A primeira exposição foi sobre os “Homens e mulheres de nossa América”, em 2007, um resgate de lutadores do povo de cada país. Agora, o objetivo é um criar um quadro amplo da poesia latino-americana, construindo um eixo histórico ignorado até agora pelas editoras de mercado.
Há uma variedade de autores que não se insere no conhecido “boom” latino-americano da segunda metade do século 20 Cantos do passado Um primeiro sopro de inspiração da poesia na América Latina surgiu ao norte, com o estadunidense Walt Whitman (1819-1892), o poeta da revolução de independência dos EUA, que na verdade ocorreu uma geração antes dele nascer – como analisou o poeta e tradutor Paulo Leminski, que viu em Whitman a capacidade de captar a comoção social desencadeada por aquele processo revolucionário. Whitman foi o cantor de um mundo anunciado logo no berço das revoluções burguesas, ainda que tenha sido um canto de liberdade frustrado no momento histórico em que a burguesia deixa de ser uma classe revolucionária e passa à repressão contra o proletariado. A poética de Whitman teve peso sobre a poesia centroamericana e caribenha. Na República Dominicana, Pedro Mir (1913-2000) dialoga com os cantos em versos livres de Whitman, na conexão com a sua realidade local. “Este es un país que no merece el nombre de país. Sino de tumba, féretro, hueco o sepultura”, denunciava em um de seus trabalhos.
Na América Latina, observamos uma trajetória diferente dos poetas do século 19. Os chamados “modernistas”, como o mexicano Manuel Gutiérrez Najera (1859-1895) e o hondurenho Juan Ramón Molina (1875-1908), tinham a mirada voltada para a escola europeia do final do século (Simbolismo etc.). Eles cantaram as cores, as musas gregas, as tristezas, em um exercício que hoje soa formalista, principalmente para quem conhece a realidade dos países da mesoamerica: sua rica mitologia, poética e vasta cultura popular, nos revelando que, nesta parte da América Latina, a produção “modernista” não foi o reflexo da chegada da industrialização: foi, na verdade, a chegada apenas do romantismo, primórdios de um Estado oligarca e de um processo liberal incompleto. Algumas exceções históricas foram encontradas, em sua radicalidade e ousadia de conteúdo. A Sor Juana Inês de La Cruz (cerca de 16481695), mexicana, está entre elas. Mestiça. Ladina. Foi a primeira feminista das Américas. Poeta, intelectual e monja. Defendeu o acesso das mulheres aos livros. Deixou sua marca nas letras latinas, sem temer a repressão. Poética da militância Na Nicarágua, o clássico Ruben Darío (1867-1916), considerado fundamental para o modernismo da língua espanhola, apresentou uma poesia onde prevalecem os aspectos formais, a exemplo de outros poetas do mesmo momento histórico. No entanto, o século 20 e a resistência popular contra o imperialismo mais tarde produziram uma poética viva, que fez a ligação entre a técnica dos versos e o conteúdo popular de mais de 70 anos de lutas de classes, sob a direção política do sandinismo. A Nicarágua teve toda uma geração de poetas guerrilheiros e guerrilheiros poetas. Disso resultou o “Exteriorismo”, uma escola que buscava no movimento da realidade o seu ponto de partida: os trabalhadores dos portos, a vida comum, as situações concretas dos trabalhadores. E que tinha como influência o formato de versos livres, canto e música, retirado de Withman e do próprio Darío. O movimento revolucionário na América Central produziu poetas de alta qualidade, como o nicaraguense Leonel Rugama (1949-1970) e Roque Dalton (1935-1975), de El Salvador. Rugama não teve tempo para muita coisa. Morreu aos 21 anos, assassinado ao lado de dois militantes, encurralado pelas tropas da ditadura de Somoza. Já Dalton deixou uma poética que se assemelha à do alemão Bertolt Brecht na sua proposta – irônica e comprometida com a luta de classes. Além disso, o poeta militante foi um elaborador do movimento comunista em El Salvador, com livros como Un libro rojo para Lênin e Miguel Mármol y los sucesos de 1932 em El Salvador, e morreu assassinado por militantes de outra corrente política da esquerda naquele país. A Nicarágua, um bom ponto de encontro para a poesia. Foi ali, à luz da revolução da segunda geração sandinista (1979), que um dos maiores contistas do século 20, o argentino Julio Cortázar (19141984), assumiu apoio declarado ao processo, tratando de propagandeá-lo nos meios intelectuais da Europa. Quando caminhava para os 70 anos, Cortázar assumia a contramão, enquanto outros intelectuais renegavam as ideias de esquerda. Suas seis
estadias na Nicarágua, antes e depois da revolução, renderam o livro Nicarágua tão violentamente doce (tradução brasileira de Emir Sader, da extinta editora Brasiliense). Outros tiveram a militância e a vida pública no mesmo plano da obra literária. A equatoriana Nela Martínez Espinosa (1912-2004) encabeçou a revolução La Gloriosa, de 1944, que derrubou o ditador Carlos Arroyo del Río. Durante dois dias, esteve a cargo do governo equatoriano. Foi militante, brigadista e feminista. Os poetas cubanos Nicolás Guillén (1902-1989) e Mirta Aguirre (1912-1980) foram dois outros exemplos de uma vida em que texto e ação política estiveram entrelaçados – posição que parece inaceitável para os autores contemporâneos, submissos ao esvaziamento cultural e à individualidade do projeto neoliberal. Ao lado da obra de Pablo Neruda, de Eduardo Galeano e do brasileiro Thiago de Mello, o uruguaio Mario Benedetti (1920-2008) compõe uma geração que seguiu os acontecimentos políticos do século 20. Ele foi jornalista no periódico Marcha. Em 1956, publicou o livro Poemas de la oficina, em nome da linguagem clara, em luta contra o academicismo. Voltou da Espanha ao seu país passada a ditadura. Augusto Roa Bastos (19172005), paraguaio traduzido em 25 línguas, também teve uma produção marcada pela vida no exílio político.
Dalton deixou uma poética que se assemelha à do alemão Bertolt Brecht na sua proposta – irônica e comprometida com a luta de classes
Poesias da América (traduções do espanhol de Fátima Beatriz Caballero para o projeto “Poetas de América”)
Poema de amor – Roque Dalton (El Salvador) Fotos: Raro de Oliveira
Pedro Carrano de Curitiba (PR)
Os que ampliaram o Canal do Panamá (e foram classificados como “silver roll” e não como “golden roll”) os que prepararam a frota do Pacífico nas bases da Califórnia, os que apodreceram nos cárceres da Guatemala, México, Honduras, Nicarágua por ladrões, por contrabandistas, por vigaristas, por famintos os de sempre suspeitos de tudo “me permito remeter-lhe ao assassinado por malandro suspeito, com o agravante de ser salvadorenho”) os que encheram os bares e os bordéis de todos os portos e as capitais da zona (“La gruta azul”, “El Calzoncito”, “Happyland”), os semeadores de milho em plena selva estrangeira, os reis da crônica policial, os que nunca ninguém sabe de onde são os melhores artesãos do mundo os que foram cozidos a balaços ao cruzar a fronteira, os que morreram de malária ou de picadas do escorpião ou a febre amarela no inferno das bananeiras, os que choraram embriagados pelo hino nacional sob o ciclone do Pacífico ou a neve do norte, os arrimados, os mendigos, os maconheiros, os guanácos filhos de uma grande puta, os que penosamente puderam regressar, os que tiveram um pouco mais de sorte, os eternos indocumentados, os fazemdetudo, os vendedetudo, os comedetudo, os primeiros em tirar a faca, os tristes mais tristes do mundo, meus compatriotas, meus irmãos
Noturno sem pátria – Jorge Debravo (Costa Rica) Eu não quero uma faca nas mãos da pátria Nem uma faca nem um rifle pra ninguém: a terra é para todos, como o ar. Gostaria de ter mãos enormes violentas e selvagens, para arrancar fronteiras uma a uma e deixar de fronteira só o ar Que ninguém tenha terra como tem traje: que todos tenham terra como tem o ar. Pegaria as guerras pelas pontas e não deixaria uma na paisagem e abriria a terra para todos como se fosse o ar... Porque o ar não é de ninguém, ninguém, ninguém... E todos tem a sua parcela de ar.
Lições, não – Mirta Aguirre (Cuba) Cantos de Negritude O mapeamento poético dos autores americanos, dos clássicos até os socialistas, passando pelos contestadores, é uma tarefa que no Brasil apenas a esquerda pode mostrar interesse. Há pouquíssimas informações disponíveis em português e há menos ainda obras traduzidas. O mundo editorial brasileiro ignora todo esse vasto arsenal, entre eles a poesia negra americana, presente nos escritores dos países caribenhos (Haiti, República Dominicana, Martinica) e nos descendentes africanos radicados nos guetos dos Estados Unidos. “Sou um grande admirador dos latinos e mais ainda dos gregos, mas sei também que há os egípcios e que os gregos e os romanos devem muito ao Egito, à Etiópia, a todo esse mundo. Portanto, à África”, dizia Aimé Césaire (1913-2008), da Martinica, que tem uma vasta obra publicada nas áreas do teatro, ensaio e história. Intelectual mundialmente reconhecido, Césaire foi um dos criadores do movimento “Negritude”. Entre a poesia afrodescendente, pode ser citado ainda Pedro Pietri (1944-2004), de Porto Rico, autor de Puerto Rican Obituary (1973), seu texto mais conhecido, que tratou dos migrantes que buscaram uma nova América e que morreram por cinco dólares. “Os que morrem mortos”, escreveu. Suas obras eram recitadas em igrejas hispânicas metodistas. A tradição oral foi uma das características desses escritores.
Mas, este menino arquipélago antilhano tem demonstrado algo. E de algo deve servir aos outros. De ninguém é toda a verdade. E, é claro, nossa tampouco. Mas esta comprida esmeralda marinha algo encontrou, algo oferece, algo mostra na palma da mão. E, não irão outros aproveitar-se da descoberta Lições, não. Mas aqui está, recente como um novo derroteiro das Índias, a Ilha Adelantada. E de algo deve servir aos outros. De algo.
Para fênix – Anne Hébert (Canadá – 1916-2000) (tradução de Pedro Carrano) Cinzas sopradas Reforma tuas asas Pena por pena face ao sol refazia o olho grande aberto Olha fixo novamente O astro do dia A eternidade se volta Sobre camadas de folhas mortas
Epitáfio – Leonel Rugama (Nicarágua) Leonel Rugama gozou da terra prometida no mês mais cru da semeada sem mais alternativa que a luta, muito perto da morte, Porém, não do final.
de 11 a 17 de março de 2010
9
internacional Reprodução
Contra a crise neoliberal, mais neoliberalismo EUROPA Governos da centro-esquerda europeia abandonam “bem-estar social” e, na contramão do mundo, adotam medidas neoliberais Renato Godoy de Toledo da Redação A CRISE ECONÔMICA que teve seu início em 2008 já deixou seu rastro em todos os continentes, mas parece ter feito morada, de forma mais concreta, na Europa. Desde o início do ano, analistas financeiros apontam a dificuldade do continente em retomar o crescimento. Economias até então fortes, como as da Espanha e Itália, mostram sinais de fragilidade. Países menos ricos, como Portugal e Grécia, começam a reavaliar as benesses de pertencer à zona do euro. Mesmo os alicerces econômicos da União Europeia, como Inglaterra e Alemanha, têm visto suas bolsas de valores “andarem de lado”. Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha têm recebido o acrônimo pejorativo de Piigs (Portugal, Italy, Ireland, Greece and Spain) que, na pronúncia em inglês, quer dizer “porcos”.
Os governos da chamada social-democracia europeia têm tomado medidas que provam que o neoliberalismo ainda vive e tende a continuar extraindo direitos dos trabalhadores A crítica econômica foi quase unânime ao apontar o excesso de liberalidade e a desregulamentação finan-
ceira como principais causas do estopim da crise, com a inadimplência no setor imobiliário dos EUA. Para contrapor-se a esse modelo tido como fracassado, iniciou-se um reposicionamento do Estado na economia em nível mundial. No fim de 2008, era comum a análise de que o neoliberalismo agonizava. Mas os governos da chamada social-democracia europeia (outrora defensora do welfare state, ou estado de bem-estar social) têm tomado medidas que provam que o modelo ainda vive e tende a continuar a extrair direitos dos trabalhadores. A implementação de reformas previdenciárias e o congelamento de salários de servidores públicos estão na ordem do dia nos países mais afetados pela turbulência, como Grécia e Espanha. Socialistas e neoliberais Na Espanha, diante de uma taxa de desemprego recorde, o governo do presidente José Luis Zapatero, do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), propõe o aumento do tempo de contribuição para aposentadoria e ajustes tributários que tendem a onerar o consumidor de baixa renda. Para o sociólogo Josép María Antentas, da Universidade Autônoma de Barcelona, a conduta de Zapatero segue a tendência da chamada social-democracia europeia. “Os partidos social-democratas europeus têm mudado historicamente até tornarem-se forças sociais-liberais ligadas diretamente a setores empresariais e desprovidas de qualquer projeto de transformação social. Sua reação diante da crise é um passo a mais nessa evolução histórica. Eles têm sido incapazes de propor alguma agenda para sair da crise que seja distinta da lógica empresarial”, analisa. No caso espanhol, Antentas crê que o PSOE ainda mantém uma importante hegemonia no campo eleitoral. Mas a social-democracia clássica, originada no movimento operário, perde paulatinamente essa característica em países como Espanha e Inglaterra. Segundo o sociólogo, esse movimento leva outra força tradicional, os Partidos Comunistas, a optar ou pela colaboração com o social-liberalismo ou pela reafirmação das bandeiras anticapitalistas.
Em Atenas, policiais prendem manifestante tendo ao fundo a mensagem “revolta de classe agora: todos nas ruas”
“O que está em questão, mais do que a moeda única, é o atual modelo europeu a serviço do capital, desenhado por diversos tratados, como o de Lisboa” “Os laços entre a social-democracia e sua base tradicional estão se corroendo progressivamente. Em alguns países, os Partidos Verdes se beneficiam disso, ainda que sejam subordinados à estratégia dos social-democratas. Os Partidos Comunistas seguem sua tendência histórica de declive, embora possam experimentar alguma ascensão eleitoral limitada diante da crise. A maioria tenta compensar seu declive girando à direita e buscando peso institucional para governar com a social-democracia”, critica.
Diante desse quadro desgastado da esquerda tradicional europeia, algumas dissidências desses partidos optam pela construção de alternativas. Até o momento, no entanto, a representatividade desses esforços na sociedade e nos parlamentos não é considerável. “A crise abre uma possibilidade para a esquerda anticapitalista, mas esta também encontra dificuldades para construir uma alternativa de fato. Na Espanha, esse setor é débil em termos políticos, e sua reconstrução deve demorar. Em vários países europeus, vemos proje-
Reprodução
tos anticapitalistas com uma influência social e política relevante, como o Bloco de Esquerda português e o Novo Partido Anticapitalista, na França. Também existem tentativas de articular projetos reformistas, como o Die Linke [agrupamento dos comunistas da Alemanha Oriental]; de ruptura com o neoliberalismo, mas a partir de uma lógica mais institucional, menos ligada às lutas, e com a perspectiva estratégica de puxar a social-democracia para a esquerda”, avalia. Euro, o vilão? A adoção da moeda única é apontada como um dos principais fatores a gerar essa turbulência financeira no continente, pois ela impediria os países em crise de aplicar políticas monetárias próprias para retomar o crescimento. Recentemente, especulou-se que o governo grego anunciaria a saída do país da zona do euro. A informação foi negada com veemência pelos governantes. De acordo com Josép Antentas, o fim do euro não é uma bandeira da esquerda europeia, ainda que boa parte dela tenha se oposto à implementação da moeda única. “O que está em questão, mais do que a moeda única, é o atual modelo europeu a serviço do capital, desenhado por diversos tratados, como o de Lisboa [que definiu o funcionamento da União Europeia]. Em sua luta por assegurar uma posição relevante na economia global, as elites europeias consideram que as regulações sociais existentes na Europa são um freio à competitividade da economia europeia e por isso acentuam, há tempos, os ataques aos direitos conquistados”, comenta.
Sindicatos espanhóis arrefecem a luta, dizem especialistas Manifestantes exibem faixa onde se lê “os Piigs contra-atacam”
Na Grécia, greves param o país Paralisações têm adesão de 2,5 milhões de pessoas contra reformas anunciadas pelo governo da Redação Para saldar dívidas com bancos como o Goldman Sachs, o governo grego, comandado pelo socialista George Papandreou desde outubro, apresentou medidas de arrocho e que devem onerar o consumidor. Estão em curso a implementação da diminuição das horas-extras, o congelamento das pensões e salários, o combate ao “inchaço” do funcionalismo público grego e o aumento da contribuição previdenciária. Tudo de uma só vez. A reação popular tem sido forte. Uma greve geral paralisou o pa-
ís por 24 horas no dia 24 de fevereiro. A adesão contou com cerca de 2,5 milhões de gregos. O espaço aéreo do país foi fechado por falta de funcionários e algumas redes de televisão ficaram fora do ar. Na capital, Atenas, os ônibus circulavam apenas para que manifestantes fossem aos atos contra o pacote do governo. Outra manifestação estava marcada para 11 de março (depois do fechamento desta edição, no dia 9). A Grécia vive um período de intensificação de lutas nas ruas desde o ano passado, quando um estudante anarquista foi morto pela polícia, o que gerou uma reação de diversos setores da sociedade. (RGT)
Para membros da esquerda espanhola, centrais fazem apenas críticas parciais a políticas do governo da Redação O presidente espanhol José Luis Zapatero apresentou uma proposta que aumenta a idade mínima de aposentadoria do trabalhador de 65 para 67 anos. A medida conta com a oposição das centrais sindicais do país e da maioria da população. A popularidade do mandatário reduziu-se após o anúncio da proposta. Pela primeira vez, as centrais sindicais convocaram manifestação contra uma medida do governo Zapatero, eleito em 2004. Um ato em Madri, capital espanhola, reuniu 60 mil pessoas no final de fevereiro. No entanto, para membros da esquerda espanhola, as críticas dos principais sindicatos são laterais, já que, em geral, eles dão sustentabilidade ao governo do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). “Os sindicatos majoritários tendem
a acompanhar as medidas governamentais, diante da crise, com algumas críticas parciais, mas sem impulsionar uma política de mobilizações e impor uma plataforma alternativa. Adotam um modelo sindical muito institucionalizado e orientado por uma concertação social e comprometida com o governo”, aponta o sociólogo espanhol Josép Maria Antentas. Pascual Serrano, editor do site espanhol Rebelión, também destaca a falta de empenho dos sindicatos contra as medidas do governo. “A última mobilização [contra a reforma da previdência] foi liderada pelos sindicatos majoritários, os quais, segundo muitos setores da esquerda, têm posições muito complacentes em relação ao governo. Eles não propõem mudanças suficientemente profundas, como a criação de um banco público. Na realidade, os sindicatos majoritários não estão liderando uma verdadeira alternativa à crise”, defende. Perda de espaço Para Serrano, o partido de Zapatero tenta conciliar uma agenda conservadora pró-empresariado com a manutenção de sua popularidade entre os assalariados. Segundo o jornalista, a estratégia não tem surtido efeito.
“O PSOE perde apoio na direita e na esquerda. Sua tentativa de ficar bem com todos os setores acaba fazendo com que não se dê bem com ninguém. Pela direita, perde porque não é capaz de enfrentar a crise com contundência. Com a esquerda, perde popularidade porque as propostas que está apresentando são neoliberais. O mais preocupante é que não se vê um crescimento importante das alternativas de esquerda, talvez porque não se tenha deteriorado suficientemente a economia familiar dos cidadãos”, acredita. Antentas também aponta que as mazelas da crise ainda não foram transformadas em motivação para mobilizações. “Há uma dificuldade em transformar o mal-estar social em mobilização coletiva. O medo e o ceticismo do momento pesam muito, ainda que estejamos em uma primeira etapa da crise, e a situação possa mudar. O sindicalismo combativo, os movimentos alternativos e a esquerda anticapitalista têm impulsionado campanhas, mas elas têm alcance limitado e não vão além dos núcleos ativistas. Mas, em pequena escala, há uma certa vitalidade e várias iniciativas interessantes, que podem ser a base para uma futura retomada das lutas”, avalia o sociólogo. (RGT)
10
de 11 a 17 de março de 2010
internacional
O que a imprensa dos EUA esconde Reprodução
AFEGANISTÃO Houve um massacre recente que não foi um erro: a execução, em 26 de dezembro de 2009, de nove crianças algemadas Dave Lindorff QUANDO O tenente William Calley, da Companhia Charlie, do Exército dos EUA, ordenou e incentivou seus homens a violarem, mutilarem e massacrarem mais de 400 homens, mulheres e crianças em My Lai, no Vietnã, em 1968, houve pelo menos quatro estadunidenses que tentaram deter tal massacre e levar Calley e oficiais superiores à Justiça. Um deles foi o piloto de helicóptero Hugh Thompson Jr., que evacuou algumas das vítimas feridas e colocou sua nave entre um grupo de vietnamitas e os homens de Calley, ordenando ao seu artilheiro que abrisse fogo contra os soldados estadunidenses se estes disparassem contra mais pessoas. Outro foi Ron Ridenhour, que soube do massacre, iniciou uma investigação privada e terminou por informar seu resultado ao Pentágono e ao Congresso. Outro deles foi Michael Bernhardt, um soldado na Companhia Charlie que presenciou o massacre e contou tudo a Ridenhour. E outro foi o jornalista Seymour Hersh, que publicou a história nos meios dos EUA. A atual guerra no Afeganistão também tem seus massacres de My Lai. Há um deles quase todas as semanas, quando aviões dos EUA bombardeiam festas de casamento ou casas “suspeitas” de albergarem terroristas, mas que, no fim das contas, só serviam de refúgio a civis. Mas esses My Lai são todos etiquetados convenientemente como acidentes. São arquivados e esquecidos como inevitáveis “danos colaterais” da guerra. Algemados Houve, no entanto, um massacre recente que não foi um erro e que, ainda que só tenha afetado menos de uma dúzia de pessoas, tem o mes-
Manifestantes queimam boneco de Obama em protesto contra os civis executados na província de Kunar, em dezembro de 2009
A atual guerra no Afeganistão também tem seus massacres de My Lai. Há um deles quase todas as semanas, quando aviões dos EUA bombardeiam festas de casamento ou casas “suspeitas” de albergarem terroristas, mas que, no fim das contas, só serviam de refúgio a civis mo fedor de My Lai: a execução, em 26 de dezembro de 2009, na província Kunar, de oito estudantes algemados, de 11 a 18 anos, e de uma criança pastora que estava de visita, de 12 anos. Desgraçadamente, nenhum soldado de princípios e com a consciência do piloto Hugh Thompson tentou salvar essas crianças. Nenhum observador teve a coragem de Michael Bernhardt para informar sobre o que havia visto. Nenhum Ron Ridenhour, entre os soldados dos EUA no Afeganistão, investigou essa atrocidade ou a informou ao Congresso. E nenhum jornalista estadunidense investigou esse crime de guerra. Há um Seymour Hersh para o massacre de Kunar, mas é um britânico. Enquanto os jornalistas estadunidenses
que reproduziram a nota de 29 de dezembro da CNN sobre o incidente aceitaram como real a história inicial do Pentágono – que os mortos formavam parte de um grupo secreto de terroristas –, Jerome Starkey, um jornalista do Times e do Scotsman no Afeganistão, falou com outras fontes – o diretor da escola das crianças mortas, outros moradores locais e funcionários do governo afegão – e descobriu a verdade sobre um atroz crime de guerra: a execução de crianças algemadas. Silêncio na mídia E enquanto alguns poucos meios nos EUA, como o The New York Times, mencionaram que existiam algumas afirmações de que os mortos eram crianças, e não fabri-
cantes de bombas, nenhum veículo, incluída a CNN – que havia aceitado e publicado as mentiras do Pentágono sem questioná-las –, deu-se ao trabalho de publicar a atualização da notícia quando, em 24 de fevereiro, os militares dos EUA admitiram que efetivamente se tratava de estudantes inocentes. Tampouco algum meio corporativo dos EUA mencionou que os mortos estavam algemados quando foram mortos. Starkey informou sobre a admissão incriminadora do governo dos EUA. No entanto, os meios dos EUA ainda se mantêm silenciosos como uma tumba. De acordo com a Convenção de Genebra, é um crime de guerra executar um detido. Mas, em Kunar, em 26 de dezembro, forças dirigidas pelos EUA, ou talvez soldados estadunidenses ou mercenários contratados pelos EUA, executaram a sangue frio nove prisioneiros algemados. É um crime de guerra matar crianças menores de 15 anos, mas, nesse incidente, uma criança de 11 e outra de 12 anos foram algemadas como combatentes, capturadas e executadas. Outros dois dos mortos tinham 12 anos, e um terceiro tinha 15.
EUA
Transferência do problema Liguei para o escritório do secretário de Defesa dos EUA para perguntar se havia alguma investigação ou algum plano de investigar tal crime, e ele me disse para que eu enviasse uma solicitação escrita. Até agora, não tive resposta. Já a maquinaria de relações públicas do Pentágono afirmou, por telefone, que nem sequer sabia de qual incidente eu estava falando, mas sem sua “ajuda” cheguei a saber que o que os militares dos EUA fizeram – o que não constitui uma surpresa – foi transferir o problema, deixando toda investigação nas mãos da Força Internacional de Assistência à Segurança (ISAF), um nome decorativo para as forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – dirigidas pelos EUA – que combatem os talebãs no Afeganistão. É uma artimanha hábil. A ISAF não é mais uma genuína entidade de coalizão como a que foi a Coalizão da Vontade de George W. Bush na Guerra do Iraque, mas esse subterfúgio impossibilita a investigação legislativa sobre o evento, já que o Congresso não possui autoridade para convocar o testemunho da Otan ou da ISAF, como poderia fazer com o Pentágono.
Segundo relatório, a crise econômica nos EUA gerou um caldo de cultura para a proliferação de grupos racistas, milícias anti-imigrantes e organizações neonazistas
O NÚMERO DE grupos extremistas de ultradireita cresceu enormemente nos Estados Unidos com a presidência de Barack Obama, período em que as milícias e outros grupos estouraram em loucas teorias da conspiração, fazendo explodir a ira populista no país, segundo um relatório emitido no dia 5 pelo Southern Poverty Law Center (SPLC), uma organização não governamental que monitora o assunto. Os chamados grupos Patriotas Antigovernamentais – milícias e outras organizações extremistas que veem o governo federal como seu inimigo – surgiram no último ano depois de mais de uma década em silêncio. O SPLC documentou 244% de aumento no número de tais grupos ativos
Protestos Os assassinatos levaram a manifestações estudantis em todo o Afeganistão, a um protesto formal do gabinete do presidente Hamid Karzai e a uma investigação do governo afegão que concluiu que estudantes inocentes foram algemados e executados. Além disso, o massacre, sem dúvida, contribuiu para um chamado do governo afegão para que se processe e execute soldados estadunidenses que matem civis afegãos. Ainda está em tempo de pessoas de consciência se levantarem contra essa aventura imperial que agora pode ser chamada adequadamente de “Guerra de Obama no Afeganistão”. Muitos homens e mulheres uniformizados no país da Ásia Central sabem que nove crianças afegãs foram capturadas e assassinadas pelos EUA, em dezembro, em Kunar. Provavelmente, também existem pessoas que estiveram implicadas no planejamento e realização dessa operação criminosa que se sentem enojadas pelo acontecido. Mas elas, até agora, se calam, seja por medo ou simplesmente por não saberem para onde se virar. Há também numerosos jornalistas no Afeganistão e em Washington que poderiam estar investigando essa história, mas não o fazem. Não me pergunte por quê. Pergunte, talvez, a seus editores. (CounterPunch. Traduzido para o espanhol por Rebelión) Dave Lindorff é jornalista estadunidense. Tradução: Igor Ojeda
Reprodução
O avanço da ultradireita
Celita Doyhambéhère de Buenos Aires (Argentina)
Uma fonte do Comitê de Serviços Armados do Senado dos EUA confirmou que a ISAF está investigando e que o comitê solicitou uma “informação” – o que quer dizer que nada seria sob juramento – uma vez que a investigação se complete. Mas não segure a respiração ou espere algo dramático. Também entrei em contato com o escritório de imprensa do Comitê de Serviços Armados da Câmara dos Representantes [equivalente, no Brasil, à Câmara dos Deputados] para ver se havia alguma audiência prevista sobre esse crime. A resposta foi “não”, ainda que a encarregada de imprensa me pedisse que lhe enviasse detalhes do incidente.
em 2009. Em 2008, eles eram 149; em 2009, chegaram a 512, um crescimento de 363 novos grupos em um só ano. Segundo o relatório, intitulado A Fúria da Direita, os grupos patriotas vêm sendo alimentados por uma raiva pelas mudanças demográficas do país, a crescente dívida pública, a problemática econômica e uma série de iniciativas do presidente Obama que foram chamadas de “socialistas” e até de “fascistas” pelos seus oponentes políticos. Preocupação “Esse extraordinário crescimento é motivo de sérias preocupações”, diz o editor do boletim Intelligence Report, Mark Potok. “As pessoas associadas ao movimento Patriotas, durante seu pico na década de 1990, produziram grande violência, especialmente o atentado na cidade de Oklahoma, que deixou 168 mortos”.
Reprodução da página eletrônica do SPLC com o “Mapa do Ódio”
O movimento Patriotas calou fundo na cena política conservadora, de acordo com o novo relatório. “Os ‘tea parties’ e os grupos similares que surgiram nos últimos meses não podem, efetivamente, ser considerados grupos extremistas, mas estão atravessados por ideias radicais, teorias conspirativas e racismo”, diz o relatório. Diferentemente da década de 1990, as ideias centrais do movimento Patriotas estão sendo promovidas por pessoas que reúnem grandes públi-
cos, como Glenn Beck, da Fox News, e Michelle Bachmann, representante republicana de Minnesota. Beck, por exemplo, revigorou uma teoria-chave conspiratória dos Patriotas: a acusação de que a agência federal Emergency Management está dirigindo, em segredo, campos de concentração. O crescimento dos grupos Patriotas chega em um momento em que o número de grupos de ódio racistas está em níveis recordes – aumentando de 926 em 2008 para
932 em 2009. Na década, tal crescimento foi de 55%. A expansão teria sido muito maior em 2009 se não fosse o desaparecimento do Partido Americano Nacional de Trabalhadores Socialistas, uma rede neonazista cujo fundador foi preso em 2008. Paramilitarismo Também houve um aumento de grupos “extremistas nacionalistas” – organizações paramilitares que vão além de advogar por políticas es-
tritas de imigração e, na realidade, confrontam ou acossam imigrantes suspeitos. Esses grupos cresceram de 173 em 2008 a 309 em 2009, um aumento de quase 80%. Essas três correntes da direita radical – os grupos de ódio, os grupos extremistas nacionalistas e as organizações patriotas – são os elementos mais voláteis da paisagem da política estadunidense. Tomados em conjunto, eles aumentaram em mais de 40%, crescendo de 1.248 grupos em 2008 a 1.753 neste ano. Já existem sinais de reminiscências da violência da direita radical dos anos 1990. Os extremistas de direita assassinaram seis oficiais das forças de segurança desde que Obama assumiu. Skinheads, racistas e outros foram presos em supostos planos para assassinar o presidente. Mais recentemente, indivíduos com opiniões antigovernamentais e racistas foram presos em uma série de casos com bombas. Os grupos de ódio na lista desse relatório incluem os neonazistas, nacionalistas brancos, neoconfederados, skinheads racistas, membros do Ku Klux Klan e separatistas negros. Outros grupos de ódio têm como alvo gays ou imigrantes e alguns se especializam em produzir música racista ou propaganda que nega o Holocausto. (Página/12, traduzido por IHU Online)
de 11 a 17 de março de 2010
11
américa latina Reprodução
“O Viver Bem é também bem morrer” BOLÍVIA O intelectual aimara Pablo Mamani explica o modelo de vida proposto pelos povos indígenas para “salvar o mundo”
Camponesas bolivianas trabalham sentadas em montanha na Isla del Sol, no lago Titicaca
Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia) NO CONTEXTO do atual processo político boliviano, a contribuição do movimento indígena pode ser medida pelos inúmeros episódios de luta protagonizados pelos povos originários do país desde a sua colonização. Porém, boa parte da esperança depositada no atual momento – e em sua capacidade de superação do modelo civilizatório desigual e destruidor do meio ambiente erguido pelo capitalismo – reside no aporte teórico-filosófico dado pela cultura indígena, muitas vezes sintetizada no conceito chamado “Viver Bem”. Ou, em aimara, “Suma Qamaña”. Incorporada, inclusive, à nova Constituição Política do Estado boliviano, qual o real sentido e peso dessa expressão no proceso de câmbio (processo de mudanças)? Para responder a essa questão, o Brasil de Fato entrevistou o intelectual aimara Pablo Mamani. Brasil de Fato – O que você compreende por Viver Bem? Pablo Mamani – Diria que é um termo traduzido literalmente e, por isso, mal compreendido. Em aimara, “suma” é bem e “qamaña” é viver. E isso não me soa bem, parece o mesmo que viver melhor. Mas qamaña é uma forma de viver e pensar de forma equilibrada, de estar consigo mesmo, com o outro, com os deuses, com a natureza, tendo equilíbrio subjetivo ou espiritual, mas também uma posse material para sustentar sua família ou a sua comunidade quanto lhe compete ser autoridade. Porque sabemos que temos desequilíbrios permanentes, a história sempre muda, sempre há momentos de tristeza, pobreza, miséria. Se não tivéssemos essas condições materiais e subjetivas da vida, jamais poderíamos pensar um ideal de vida como é o “Viver Bem”, percebe? E quando se tem essas condições, sente-se na plenitude da vida. Nossos avós falam “eu fiz isso e isso, e agora estou morrendo tranquilo”, porque o Viver Bem é também bem morrer. Quando alguém morre por um delito socialmente sancionado, não é um morrer da vida, mas é ser eternamente esquecido, sem capacidade de habitar as montanhas como espírito. Quem morre assim não chega a esse estado posterior da vida. Então, esta é uma preocupação existencial muito grande. Estes são
“Na lógica racional ocidental, não ofereceríamos nada a quem nos espoliou por 500 anos, mas os aniquilaríamos, não é mesmo? Mas agora estamos falando: ‘Por favor, podemos pensar desse modo? Salvemos o mundo, vocês e nós’” valores importantíssimos para pensar de maneira muito distinta o paradigma do que o ocidente chama de desenvolvimento. O aimara, o quéchua, estão oferecendo ao mundo suas culturas, a troco de quase nada. Na lógica racional ocidental, não ofereceríamos nada a quem nos espoliou por 500 anos, mas os aniquilaríamos, não é mesmo? Mas agora estamos falando: “Por favor, podemos pensar desse modo? Salvemos o mundo, vocês e nós”. É uma atitude, uma forma de pensar mais do que humana. Qual a importância desse conceito para o “proceso de cambio”? O modelo social atual diz que, se eu consigo, é meu. Meu êxito intelectual e econômico é meu. Se eu fracasso, a culpa também é minha, tudo é individual e isolado. Os aimara tem como experiência cultural o sentido de compartilhar as coisas. Temos que expandi-la, senão cumpriremos a profecia trágica da Bíblia, que para nós não tem sentido, porque pensamos que o mundo passa por momentos cíclicos muito duros, mas volta a se recompor. O mundo está numa corrida frenética pela morte e creio que nós temos que começar a corrida pela vida. Mas não é um problema existencial de um grupo, e sim de todos. O Viver Bem é uma ideologia? Uma filosofia de vida? Uma cultura, acho. Para compartilhar o que você tem e o que os outros têm, a qualidade fundamental é ser parte disso, produzir isso. Você não pode esperar de mãos cruzadas que compartilhem esse ideal. Não, você tem que produzi-lo. Quem espera é mal visto. A condição do trabalho, a ética do trabalho, de dar e receber, é fundamental. O que recebe tem que dar. E qual é o alcance do Viver Bem na nova Constituição boliviana? Essa Constituição é intermediária porque, conceitu-
almente, o liberal é dominante nela. Mas tem o indígena, ainda que subordinado a sua lógica institucional. Essa Constituição não é aquela liberal-colonial como tivemos em 1967, mas tampouco é indígena-popular, isso está claríssimo. Podemos dividi-la em duas partes. A primeira é declarativa, na qual estão incluídos os elementos mais substanciais dos povos indígenas. Mas, na parte operativa, esses conceitos ficam reduzidos à exigência de se ter sete deputados provenientes de povos originários. Em termos institucionais, esse espaço funciona na lógica liberal. Não é assembleísta, rotativo. Elege-se alguém e ponto. Na primeira parte [da Constituição], então, está o Viver Bem, não só nosso, mas do planeta Terra, dos animais, das plantas. O que é uma interpelação muito profunda às lógicas racionalistas e individuais da existência. E, se a Constituição está assim, supõe-se que o Estado e a sociedade devem pensar com esses novos modelos de vida, não com o anterior. Isso é ideologicamente muito forte. Mas o programa de 2010 a 2015 do governo é “neocepalino”: um desenvolvimentismo, talvez, sem substituição de importações, em que consta o Viver Bem, mas, talvez, para legitimá-lo. A lógica é a extração de matérias-primas, industrialização e todas essas coisas. É possível conciliar o discurso do Viver Bem com esse desenvolvimentismo? De certo modo, sim, porque nossa gente quer isso também. Quando se diz “vamos modernizar, vamos ter um satélite, aeroportos, estradas etc.”, eu digo “ok”. É impossível dizer ao povo nesse momento que não haja essas coisas. Eles querem internet. Mas qual vai ser o enfoque dessa construção material? Como fazer um modo distinto de vida com as coisas da modernidade? É para continuar explorando nossos recursos, portanto, contaminando a terra? Como seria o modelo de “Viver Bem” com de-
senvolvimento na lógica ocidental? Não podemos negar os recursos econômicos nesse momento. Então, há contradições muito fortes. Parece que fizeram um uso instrumental do Viver Bem. Mas, como ideal, reivindicamos isso. Um governo aimara tem que pensar as coisas de outro modo. Você não considera este um governo aimara? Não é um governo indígena, mas é um presidente indígena. Mas há um entorno que é mestiço. Este se divide em dois grandes grupos. Um é o ex-eixo do Pachakuti, um núcleo fundamental no governo, com visão da velha esquerda – alguns chamam colonial, até racista. As grandes expressões são o Walter Delgadillo [ministro de Obras Públicas] e o Luis Alvarado, exministro de Mineração. O outro grupo é formado por uma esquerda um pouco mais crítica à própria esquerda, mas que, nos últimos anos, é visto pelos índios como folclore: nele está o Álvaro García Linera [vice-presidente]. E há um pequeníssimo grupo, que foi sendo diminuído, com o chanceler David Choquehuanca, o Félix Patzi [ex-ministro de Educação] e também um grupo quéchua. Mas o núcleo duro de pensamento de descolonizar radicalmente o Estado foi o aimara. O chanceler continua pensando desse modo, mas baixou o tom. Os quéchua se mantêm. Sua forma de atuar é mais suave, toleram mais e estão aí. Então, é um governo branco-mestiço de esquerda. Não é a direita liberal-racista que conhecemos, é outro grupo do mesmo estrato social que tem essa visão quase ocidental e paradigmaticamente eurocêntrica. Não existe a possibilidade de olharem para os nossos mundos culturais próprios para pensar a sociedade. É a crítica europeia ao capitalismo, e o marxismo é uma das grandes linhas. Mas é simplesmente copiar, não tem originalidade, enquanto nós estamos lutando para ser originais, para ser o nosso mundo e o mundo daqui para lá.
Voltando à Constituição, houve muita divergência para incluir o Viver Bem e a contribuição indígena no novo texto? Havia várias. Mas, em 184 anos, não houve uma Assembleia Constituinte na Bolívia como essa, que convocou o povo a participar. Mesmo com toda a manipulação que o governo e os setores brancos e mestiços da esquerda fizeram, o indígena pesou muito nisso. Nos faltou concretude em muitas coisas, não sabíamos como reivindicávamos, como nomeávamos as coisas. Mas esse momento era difícil, com uma direita com maioria no Senado e muita força regional que se opunha de forma muito forte. Não havia possibilidade de se ir além. Você considera que o Viver Bem, hoje, é muito mais retórica do que realidade no processo de mudanças? Sim, é a grande contradição. Mas assim vai ser a reação: se está na Constituição, por que diabos não se leva à prática? Esta vai ser a reação do povo, se nos mantivermos na dinâmica em que estamos. Faremos outra Constituição se for necessário. A condição é que o povo se mobilize. Precisamos que entre no Estado, de maneira tácita, as lógicas e as formas de organização do mundo indígena. Os sistemas de rotações, de turnos, sistemas de reciprocidade, sistemas dos equilíbrios, sistemas dos rituais... mas que não sejam retóricos, que sejam de verdade, senão continuaremos no paradigma liberal. É o que foi reivindicado em outubro de 2003, quando se gestou uma forma de fazer territorialmente a política e o poder. E isso nós poderíamos facilmente institucionalizar a partir da lógica aimara. Que as organizações de moradores sejam os próprios gestores dos assuntos políticos na sua zona e que os recursos que venham sejam um mero procedimento técnico, mas
sob um controle regido social e estatal. Fazer circular, na própria sociedade, a sua energia decisiva das questões públicas. O Estado tem que ser desmontado enquanto aparelho centralista de poder. Devese pensar em um Estado multicêntrico, que não se atomiza ou se separa. Que seja como um tecido como o poncho ou o aguayo [prenda utilizada pelas indígenas para carregar, nas costas, objetos ou até crianças], bem trançados, em que todas as cores e todos os povos atravessem o Estado e cuidem de seus interesses, administrem isso pelo bem de todos e gestionem desde os níveis mais locais. No entanto, o Estado sempre concentra e tem medo de soltar esses poderes, temendo a guerra de todos contra todos. Mas a lógica indígena é distinta. E como é a analogia que você faz sobre o funcionamento do Estado e a whipala (bandeira quadriculada e multicolor indígena)? Acho que o Estado deve ser pensado assim, mas não com compartimentos separados em quadrados, e sim articulados. Pedagogicamente, a whipala te dá um guarda-chuva de entendimentos sobre o horizontal. O que ela propõe? Uma maneira de ver de várias formas a horizontalidade: uma por baixo, uma pelo meio, seja de frente para trás, de trás para frente. Ela tem quatro lados, mas você pode enxergá-la em qualquer posição e verá a horizontalidade respeitada, com todas as cores incluídas em todas as linhas. Na vertical, todas estão incluídas também. E, na diagonal, a linha branca divide exatamente o meio; acima ficam 21 quadrados e abaixo também. Tudo fica equilibrado. É uma complexidade muito mais interessante do que uma divisão cartesiana, na qual cada comunidade é diferente, com sua dinâmica interna. Mas sem jamais perder a harmonia na totalidade.
Vinicius Mansur
Quem é Pablo Mamani é sociólogo formado na Universidade Mayor de San Andrés (universidade pública de La Paz), professor da Escola de Gestão Pública Plurinacional e doutorando pela Universidade Autônoma do México, onde estuda a implementação da interculturalidade e da descolonização pelo Estado boliviano dirigido por Evo Morales.
12
de 11 a 17 de março de 2010
américa latina
“Estado chileno foi negligente” Vladimir Platonow/ABr
CHILE Segundo jornalista do país, nas 48 horas que se seguiram à tragédia, sensação era de abandono e caos; sismólogos haviam apontado possibilidade do terremoto
Algumas notícias dizem que muitas construções não cumpriam regras de segurança contra os terremotos, inclusive prédios residenciais construídos recentemente. Fala-se em algum tipo de punição a essas empreiteiras?
Dafne Melo da Redação O TERREMOTO que atingiu o Chile no dia 27 de fevereiro foi tão forte que provocou um deslocamento de três metros para o oeste da cidade de Concepción, a mais próxima do epicentro. Santiago ficou mais 27 centímetros a oeste, e nem mesmo a capital argentina se safou, deslocando-se 4 centímetros. Algumas coisas, porém, parecem não ter se abalado. No país que serviu de primeiro grande experimento neoliberal da América Latina, durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), a solução imediata do Estado para a catástrofe foi a militarização. Em meio à transição de governos, ambos falam em empréstimos e iniciativa privada para reconstruir o país. A área afetada, entre as cidades de Valparaíso e Concepción, concentra 50% da população chilena. Mas, se a resposta do governo de Michelle Bachelet (da Concertación, coalização de partidos derrotada nas últimas eleições) já foi ruim, o que se esperar do próximo governo, de Sebastián Piñera (Renovación)? “Deixará tudo nas mãos dos bancos e empresas privadas. O terremoto pode se converter em uma grande oportunidade de negócios. É provável que a economia volte a crescer, mas às custas de mais sofrimento para os afetados nesse desastre”, avalia o jornalista chileno Paul Walder, da revista Punto Final, em entrevista por e-mail ao Brasil de Fato, de Santiago. Austeridade financeira
As declarações de Piñera confirmam essa percepção. No campo econômico, já anunciou um plano de reconstrução que conta com um programa de austeridade financeira. Determinou a seus ministros que cortem gastos, reduzam despesas e apresentem propostas para as áreas afetadas. O presidente também criticou o “pudor” com o qual Bachelet colocou 14 mil militares nas zonas afetadas e afirmou que, se precisar, colocará mais efetivos para que o país volte à “normalidade”, leia-se: para que os saques acabem. Para Walder, as imagens da população levando produtos nos supermercados se tornaram uma “psicose” no país. Em meio à destruição e ine-
vel, corresponde ao setor privado. A água está privatizada no Chile. Mas o terremoto mostrou outra coisa: a falta de organização da sociedade civil. E, diante desse fato, o que se viu foi desordem e desespero. Como os grandes supermercados estavam destruídos, e ninguém se preocupou em abri-los para tirar ou distribuir os alimentos, foram as pessoas que, com seu desespero, forçaram a entrada. O que vimos foi uma sociedade fragmentada e dirigida de maneira muito autoritária.
Família acampada em rua de Concepción, no Chile: terremoto despertou a ira cidadã
“Desde 2002, há estudos realizados por pesquisadores da Universidade do Chile, em conjunto com universidades estrangeiras, que advertiam sobre esse terremoto com bastante precisão” ficiência do Estado, este tornou-se o falso problema principal do país, e a repressão nas ruas, a falsa solução. “Os meios de comunicação massivos e a classe dirigente aplaudiram a militarização da zona afetada. Eles a pediram, aliás”, conta Walder. A esperança, porém, é que o terremoto tenha acordado parte da população chilena, a partir do mal-estar social que causou. “Junto com o terremoto e o tsunami, entrou em erupção o vulcão do malestar social que permanecia adormecido. A ira cidadã despertou. Temos que canalizála e fazer com que ganhe organização para que se converta em força construtora de um poder democrático e popular. A memória histórica do povo chileno conserva o legado de gerações de lutadores sociais e políticos que foram capazes de estruturar e orientar as demandas populares”, diz o editorial da revista Punto Final. A seguir, leia a entrevista com Paul Walder. Brasil de Fato – Alguns especialistas afirmam que o terremoto estava previsto. Você acredita que houve negligência do governo chileno?
Paul Walder – Desde 2002, há estudos realizados por pesquisadores da Universidade do Chile, em conjunto com universidades estrangeiras, que advertiam sobre esse terremoto com bastante precisão – tanto em relação a sua
magnitude como a sua ocorrência – e que estimavam que ele aconteceria em um “futuro próximo”. Eles passaram, oportunamente, essa informação aos governos chilenos. Entretanto, não se tomaram precauções em relação às construções e sistemas de alerta nem houve uma reação mais eficiente diante da catástrofe. Os motivos da negligência do Estado chileno são hoje matéria de especulação, mas muitos já concordam que não se investiu na prevenção nem na reação porque elas não ofereciam rentabilidade no curto prazo. Em sua opinião, por que o Estado chileno não foi capaz de dar una resposta eficaz após o terremoto?
As primeiras 48 horas depois do terremoto e do tsunami deixaram claro que havia uma total descoordenação entre as diferentes entidades do Estado e uma burocracia ineficiente, o que se traduziu em informações erradas e contraditórias emitidas pelo governo. Depois do terremoto, o governo disse que a população costeira podia ficar tranquila porque não havia risco de tsunami – o que eu mesmo escutei na rádio –, enquanto, nessa mesma hora, muitos povoados eram arrasados pelas ondas. Não houve mais mortes porque as pessoas começaram a fugir por iniciativa própria. Mas houve casos de pessoas que haviam
fugido das altas ondas que escutaram a informação do governo e regressaram a suas casas para buscar algum artigo de primeira necessidade e morreram afogadas pelas ondas posteriores. Ninguém sabia de nada, e certamente o governo também não, logo depois da catástrofe. Por muitas horas, não se conseguiu comunicação com as regiões mais danificadas, devido à destruição da rede de telefonia. A informação que chegava procedia de algumas emissoras de rádio, que obtinham, com muita dificuldade, alguma informação. A paralisia que o governo demonstrou durante as horas posteriores provocou desespero e sensação de abandono entre as vítimas, o que redundou em uma desordem social. O governo não foi capaz de dar uma resposta eficaz porque não contava com organização nem infraestrutura necessária para tal. Portanto, depois da catástrofe, tudo o que se pôde fazer foi improvisar. As doações de alimentos e medicamentos ocorreram, conforme o governo prometeu, logo nos primeiros momentos após a tragédia?
Não. Isso demorou muito, o que explica em parte a reação das vítimas. Antes de entregar a ajuda, o governo decretou o “estado de catástrofe”, que permitiu a militarização da zona afetada e a declaração do toque de recolher. Somente mais tarde, e com bastante lentidão, começou a chegar ajuda. Durante vários dias, a percepção das pessoas era de um caos geral.
Por aqui, temos a impressão de que a resposta foi militarizada,
com forte repressão aos saques antes de tudo. É verdade?
Houve uma reposta militarizada, que ainda se mantém e provavelmente se estenderá ainda mais, segundo as declarações do novo governo, que assume no dia 11 de março. Houve repressão, mas foi menor do que se previa. O governo de Michelle Bachelet sai de cena muito mal por sua evidente ineficiência ou negligência para atuar depois da catástrofe. Creio que foram cautelosos em não agregar a essa triste despedida uma forte repressão.
Como os diferentes setores da sociedade opinam sobre essa resposta militarizada?
Há diversos pontos de vista. Os meios de comunicação massivos e a classe dirigente aplaudiram a militarização da zona afetada. Eles a pediram, aliás. A televisão mostrou imagens dos cidadãos das zonas afetadas aplaudindo os militares. Mas outros setores da sociedade, como organizações da sociedade civil, criticaram a militarização por entender que se tratava de uma reação que na verdade tentava ocultar a ineficiência do governo em fornecer a ajuda. Com o pretexto dos saques nas áreas mais afetadas – o que criou em outros setores uma verdadeira psicose –, o governo chamou as Forças Armadas, sendo que o verdadeiro problema era que a ajuda necessária não chegava. Houve exemplos de auto-organização, nos bairros e povoados, para manter o abastecimento de alimentos e água?
Creio que poucos. A distribuição e venda de alimentos, assim como de água potá-
É verdade que muitos edifícios não cumpriam as regras. O terremoto não derrubou apenas casas antigas, praticamente todas feitas de adobe [tijolo de terra], mas também prédios novos. Até o momento, não houve uma reação clara e enérgica por parte do governo. No geral, tem se tratado do tema como se fosse um assunto entre privados. Ou seja, cada proprietário terá que resolver seu problema sozinho. Creio que esse tema crescerá com o passar do tempo.
“Os meios de comunicação massivos e a classe dirigente aplaudiram a militarização da zona afetada. Eles a pediram, aliás” O fato de setores estratégicos estarem privatizados pode dificultar a reconstrução das áreas afetadas?
No Chile, muitas áreas estratégicas estão privatizadas, como as comunicações, os portos, aeroportos e grande parte das rodovias. A principal via que une o Chile do norte ao sul é privada. O que pode acontecer a partir de agora, com um governo de direita muito neoliberal, é uma reconstrução do país a partir dessa visão, o que significará deixar esse processo em mãos privadas. Com um país em estado de choque, o novo governo pode privatizar o que ainda resta de setor público, que é o sonho neoliberal. Creio que todas as iniciativas para reconstruir o país serão feitas sob esse ponto de vista. Deixarão tudo em mãos dos bancos e empresas privadas. O terremoto pode se converter em uma grande oportunidade de negócios. É provável que a economia volte a crescer, mas às custas de mais sofrimento para os afetados nesse desastre. Reprodução
A presidente Michelle Bachelet enviou 14 mil militares para as áreas afetadas, decretando toque de recolher antes mesmo de enviar ajuda à população