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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 8 • Número 372

São Paulo, de 15 a 21 de abril de 2010

Sem reforma agrária, mais problemas nas cidades Muitos problemas presentes nas cidades – a pressão demográfica, o processo caótico de urbanização das periferias etc. – se explicam, ao menos em parte, pela não realização de uma reforma agrária, diz estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado no dia 1º. Págs. 2 e 4

R$ 2,80 www.brasildefato.com.br

CPT aponta aumento da violência do Estado contra os camponeses A publicação Conflitos no Campo Brasil 2009, lançada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), no dia 15, destaca o aumento da violência praticada por agentes do Estado contra trabalhadores rurais. Segundo o relatório, no ano passado, as ordens de despejo atingiram 12.388 famílias, contra 9.077 em 2008, uma

elevação de 36,5%. Já as prisões subiram de 168 para 205, um crescimento de 22%. Encarregados de fazer um balanço da publicação, que chegou à sua 25ª edição, os professores Carlos Walter Porto-Gonçalves e Paulo Roberto Raposo Alentejano identificam o período atual como o mais violento desde 1985. Pág. 5 Joel Silva/Folha Imagem

Imprensa e governo do Rio culpam pobres por tragédia

Truculência do PSDB impõe fim à greve de docentes em SP

O caos que tomou conta do Rio de Janeiro por conta das chuvas poderia ser uma ótima oportunidade para se debater as políticas habitacionais da cidade. Entretanto, no discurso das autoridades e da imprensa, o que se ouviu foi a reafirmação das práticas que perpetuam a injustiça social. Págs. 2 e 3

Após um mês de paralisação, os professores de São Paulo voltaram às aulas sem nenhum reajuste. Os docentes pediam 34,3% de aumento, para repor as perdas dos últimos cinco anos, mas nenhum canal de diálogo foi aberto pelo governo estadual. As manifestações foram reprimidas e tiveram até PMs infiltrados. A política de avaliação do governo tucano é outro alvo dos professores, pois geraria individualismo e competição na categoria. Pág. 8

ISSN 1978-5134

Policiais reprimem manifestação de professores na região do Palácio dos Bandeirantes (sede do governo paulista), na zona sul da capital Reprodução

Luca Barreto/Canal 03

Críticas não fazem governo federal desistir de Belo Monte Idealizada ainda na década de 1970 pelo governo militar, a futura construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA), tem sido fortemente contestada pelos movimentos sociais. Em 8 de abril, um relatório lançado pela Plataforma Dhesca Brasil apontou que a mega-construção causará danos irreversíveis à biodiversidade e à população da região. Pág. 6 Patrulha da polícia militar mexicana em Ciudad Juarez

A farsa da “guerra contra as drogas” No México, exército e milícias massacram jovens e pobres A ativista mexicana Rosario Ibarra desmascara as ações de combate ao narcotráfico do governo Felipe

Calderón. Segundo ela, a maioria dos mortos em enfrentamentos entre militares e traficantes no país é

No rio São Francisco, mais

formada por homens e mulheres, jovens e pobres, que não têm nenhuma relação com o crime. Pág. 10

barragens desnecessárias Pág. 7 Divulgação

Reprodução

O testemunho das vítimas dos padres católicos irlandeses

“Chico Xavier”: a história de um espírita de espírito cristão

Pior que uma prisão e similar a um campo de concentração. Assim Christopher Heapy descreve os anos vividos em um colégio católico na Irlanda. Vítima de violência sexual, física e psicológica, o irlandês é, hoje, um militante dos direitos humanos que busca a punição dos culpados e a reparação aos que sofreram abusos. Muitas instituições de ensino católicas do país foram denunciadas recentemente. Pág. 9

O filme sobre o médium Chico Xavier bateu recorde de bilheteria logo na primeira semana de exibição. Não são a produção de R$ 12 milhões, as boas atuações de Nelson Xavier (foto), Ângelo Antonio e Matheus Costa ou a direção de Daniel Filho que atraem tanto a atenção do público, mas sim o próprio personagem central. Soma-se a isso o fato de o Brasil ser o país com o maior número de espíritas. Pág. 12


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editorial O DIA 17 DE abril de 1996 estava marcado como mais um dia de luta. Cerca de 1.500 sem terra manifestavam-se em favor da reforma agrária e contra a demora na desapropriação de latifúndios no município de Eldorado dos Carajás (PA). A Polícia Militar do Estado, por sua vez, usou da truculência para conter a manifestação. Resultado: 19 sem terra assassinados, 67 feridos, mais duas mortes dois anos depois, devido a sequelas, e outras centenas de trabalhadores, que, até hoje, têm a marca da violência policial expressa em seus corpos. Passados 14 anos, o episódio que ficou conhecido internacionalmente como o Massacre de Eldorado dos Carajás ainda não foi resolvido. A impunidade dos responsáveis pela maior chacina de camponeses ainda impera. Daí a importância do 17 de abril como Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária. A data concentra uma série de atividades organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pela Via Campesina, exigindo a reforma agrária e melhorias de condições de vida no campo. Uma jornada que leva a sociedade à reflexão sobre que tipo de agricultura o Brasil precisa; qual modelo trará real desenvolvimento no campo, ao mesmo tempo em que o meio ambiente e o ser humano estejam acima do lucro. Mesmo sendo reconhecida por lei, a luta por reforma agrária é voraz-

debate

A reforma agrária é urgente e necessária mente criminalizada pelos setores mais conservadores do país. Não é de hoje que o movimento social brasileiro é tratado como caso de polícia. Na questão do campo, tudo que não condiz com o agronegócio e o seu modelo destruidor é rechaçado. A senadora Kátia Abreu (DEM/TO), que de uma só vez consegue ser a estrela da bancada ruralista e a líder do patronato rural brasileiro, através da CNA, é o símbolo dessa conjuntura em que não importa que a terra cumpra a sua função social, como determina a Constituição. Os pobres são quem devem ser combatidos. Criminalização da luta O agronegócio, conhecido pelos inúmeros calotes contra os cofres públicos e ligado ao latifúndio presente no Brasil, não responde às necessidades do povo. Essa forma de agricultura imposta pelas empresas transnacionais, pelos bancos, pelo governo e pelo Estado para o campo brasileiro já demonstra a sua inviabilidade e não tem condições de melhorar a vida dos trabalhadores rurais e de garantir a nossa soberania alimentar. E mais: força a privatização dos nossos recursos

naturais, como a água, a energia e os minerais. A pressão sobre a construção de Belo Monte é o melhor exemplo: expulsam-se ribeirinhos, populações indígenas e camponeses para o benefício de empresas estrangeiras e para gerar energia a grandes indústrias. Além disso, as transnacionais passam a controlar o território nacional, por meio da associação com os latifúndios improdutivos, e se apropriam de terras que deveriam ser destinadas à reforma agrária. Não produzem alimentos para o povo brasileiro e deterioram o ambiente com o uso da monocultura, como de soja, eucalipto, cana-de-açúcar e pecuária intensiva. Esse modelo gera poucos empregos, utiliza grandes extensões de terra para a monocultura de exportação, baseada em baixos salários e no uso intensivo de agrotóxicos e de sementes transgênicas. Além disso, desrespeita as leis trabalhistas e ambientais, inclusive com a utilização de trabalho escravo. Não tem condições de produzir alimentos saudáveis para a população e criar postos de trabalho para os agricultores. Não à toa, o Brasil se transformou

Chuvas e hipocrisia

Direito de propriedade E para onde foram esses trabalhadores? Para as áreas das grandes cidades que não interessavam ao grande capital imobiliário, por conta dos custos de produção mais elevados: as encostas dos morros e as várzeas dos rios. Não porque inexistam espaços urbanos vazios em melhores condições para a moradia dessas pessoas, mas porque esses vazios estão controlados pelo capital imobiliário, aguardando a valorização dessas áreas. Da mesma forma, há um sem número de prédios e apartamentos vazios nas nossas grandes cidades, mas estes não podem ser ocupados por essas pessoas, pois o “sagrado direito de propriedade” garante o direito dos proprietários de mantê-los vazios,

Urgência da reforma agrária É fato que a reforma agrária garante o aumento real do número de agricultores familiares atuando no Brasil. Dados do IBGE mostram que são eles os verdadeiros responsáveis por 75% do alimento que chega à mesa dos brasileiros, além de garantir a diversificação da produção, preservando a biodiversidade. Mas, mesmo assim, a situação não é animadora. São mais de 100 mil famílias acampadas em todo o país esperando que o Estado lhes dê algum retorno. Enquanto isso, de acordo com o último Censo Agropecuário do IBGE (2006), mil fazendeiros com mais de 2 mil hectares controlam nada menos que 98 milhões de hectares. Em 2009, a Via Campesina realizou um acampamento nacional em Brasília, cujo resultado foi o compromisso do governo em atualizar os índices de produtividade – nada mais do que cumprir a Constituição Federal, que protege justamente aqueles que de fato são produtores

crônica

Paulo Alentejano

NAS HORAS EM que centenas de pessoas morrem ou ficam desabrigadas em função do desabamento de encostas, enchente e transbordamento de rios, proliferam na mídia textos e entrevistas de “especialistas” que buscam apontar as causas ”naturais” e “antrópicas” que explicariam tais “tragédias”. Alguns desses textos e entrevistas são mais sérios, outros mais oportunistas. Uns mais pontuais, outros mais abrangentes. Alguns mais contundentes na crítica aos governantes de plantão, outros mais benevolentes. Mas, poucos vão a fundo na análise do conjunto de questões que estão envolvidos nessa complexa problemática. O que nenhum texto, entrevista ou declaração que circulou nesses últimos dias disse é que tudo isso tem a ver com o modelo de desenvolvimento vigente no Brasil desde meados do século 20, baseado na modernização acelerada, seletiva e conservadora do campo e da cidade. E a raiz do problema está na forma acelerada com que se expulsou do campo brasileiro, no último século, mais de 50 milhões de pessoas. A perpetuação do controle das terras pelo latifúndio e a modernização deste estão na origem da expulsão dessa enorme massa de trabalhadores rurais, os quais foram precariamente absorvidos pelas grandes cidades brasileiras. A histórica reivindicação da reforma agrária foi não só negada, como substituída por uma política de incentivo ao desenvolvimento de tecnologias poupadoras de mão-de-obra no campo, levando ao aumento da concentração fundiária e ao desemprego e subemprego generalizados no campo e à consequente expulsão de grandes contingentes de trabalhadores rurais para as cidades.

no maior consumidor mundial de venenos agrícolas (720 milhões de litros por safra).

Hipocrisia das elites E agora o que vemos se descortinar é mais um exemplo da hipocrisia das nossas elites, através da multiplicação das declarações de políticos e editoriais da grande imprensa defendendo a remoção das populações residentes em áreas

O campo precisa avançar O modelo, tido como “moderno”, não pode ser pautado na manutenção do status quo de setores conservadores. A reforma agrária, nesse contexto, faz-se como uma importante medida democratizante que traz uma série de avanços sociais e geração de emprego e renda, mantendo, assim, as famílias no campo. Esse debate precisa ganhar as ruas. Nesse sentido, é fundamental a unidade entre os movimentos urbanos e rurais para avançar esta luta. Por isso, apostar na mobilização social contra aquilo que vai de encontro ao povo brasileiro ainda é o caminho mais acertado. Lutar – ao contrário do que tentam convencer os capitalistas – não é crime. É esse o caminho para as verdadeiras mudanças necessárias em nosso país.

Luiz Ricardo Leitão

Sob o signo de Macondo Gama

mesmo que isso signifique empurrar milhares de pessoas para morar em áreas “de risco”. Portanto, o que está na raiz das centenas de mortes que se repetem a cada chuva é a propriedade privada!!! Enquanto o direito de propriedade imperar sobre o direito à vida essas tragédias se repetirão. Enquanto a reforma agrária não for feita, permitindo que muitos trabalhadores que foram expulsos do campo tenham o direito de para lá retornar e que outros que ainda lá estão não sejam expulsos, essas tragédias se repetirão. Enquanto a reforma urbana não for feita, colocando à disposição dos trabalhadores os terrenos e as moradias mantidos fechados pelos especuladores urbanos, essas tragédias se repetirão. É certo que a geografia do Rio de Janeiro favorece a ocorrência de deslizamentos de encostas e transbordamento de rios, mas não é certo que os trabalhadores só tenham a possibilidade de morar nesses lugares, nem que devam morrer por causa disso. É certo que também desabaram encostas onde havia mansões, mas só morreram os pobres. É certo que todos na cidade sofreram com as chuvas, mas o grau de sofrimento é incomparável.

rurais – e em ampliar o orçamento do Incra para a desapropriação de terras. Até agora, nada disso foi encaminhado. Até mesmo para os assentamentos já instituídos, a situação não está fácil. A falta de investimento público para crédito rural e infra-estrutura em áreas de reforma agrária – como casa, saneamento básico, escola e atendimento médico – exige medidas urgentes e uma nova proposta de desenvolvimento para o campo brasileiro, baseada na geração de emprego, na melhoria de vida nos assentamentos e na produção de alimentos.

“de risco” em nome da “segurança dessas próprias pessoas”. Trata-se da retomada de uma das práticas mais autoritárias levadas a cabo na construção do espaço urbano de nossas grandes cidades e que, longe de proteger “os pobres”, acentuou as nossas mazelas sociais. Ou esquecemos que as favelas removidas do entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas deram lugar a prédios de alto luxo enquanto a população que aí residia foi deslocada para lugares como a Cidade de Deus, repleta de problemas de infraestrutura e internacionalmente famosa pela violência. Se o propósito é realmente o de proteger os trabalhadores que moram nas “áreas de risco”, então vamos destinar imediatamente para moradia as centenas de prédios – alguns inclusive públicos – que se encontram hoje vazios na cidade e no estado do Rio de Janeiro. Podemos começar pelos da região portuária do Rio, onde há inúmeros prédios e terrenos públicos e privados abandonados... Mas, não, isso não é possível, afinal essa área já está destinada para os mega empreendimentos imobiliários voltados para a modernização da região portuária do Rio, visando a Copa do Mundo e as Olimpíadas... A hipocrisia das elites brasileiras é incomparável... E inconcebível! Paulo Alentejano é professor do Departamento de Geografia da FFP/UERJ, integrante da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) e da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).

Não chovia há três meses e era tempo de seca. Mas quando o Sr. Brown anunciou a sua decisão, precipitou-se em toda a zona bananeira o aguaceiro torrencial que surpreendeu José Arcadio seguindo a caminho de Macondo. Uma semana depois continuava chovendo. A versão oficial, mil vezes repetida e repisada em todo o país por quanto meio de divulgação o governo encontrou ao seu alcance, terminou por se impor: não houve mortos, os trabalhadores satisfeitos tinham voltado para o seio de suas famílias, e a companhia bananeira suspendia suas atividades até passar a chuva.” (Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão)

A chuva em Macondo, a cidade fictícia criada por García Márquez em seu romance, iria durar quatro anos, onze meses e dois dias. Ela sobreveio após o massacre de milhares de lavradores reunidos na estação ferroviária, fuzilados com rajadas de metralhadoras por tropas militares a soldo da poderosa multinacional bananeira que controlava a economia da região. O aguaceiro fora conjurado pelo Sr. Brown, o executivo da empresa, a fim de protelar a assinatura de um acordo com os trabalhadores, cuja extensa pauta de reivindicações fora reduzida, a tiros, a dois únicos itens: reforma do serviço médico e instalação de latrinas nas moradias. O temporal era a mordaça dos céus contra a revolta dos pobres camponeses; seus líderes seriam arrancados de suas casas pelos soldados e, sob o véu sangrento da Lei Marcial, conduzidos na calada da noite para uma viagem sem regresso. O temporal em Macondo é, sem dúvida, uma alegoria fabulosa do arbítrio e desfaçatez das elites latino-americanas, cuja riqueza se assenta na economia agroexportadora e na subserviência às grandes corporações transnacionais. O escritor colombiano (um dos raros autores do subcontinente agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura) narra com uma mescla extraordinária de lucidez e alucinação o secular processo de pilhagem colonial e neocolonial a que fomos submetidos na Pátria Grande, contra o qual nossos povos tão criativos e explorados têm se rebelado ao longo de mais de cinco séculos de solidão. Lembrei-me pesarosamente daquele triste povoado quando vi, há poucos dias, as imagens do Morro do Bumba, em Niterói, onde dezenas de trabalhadores desta nossa Bruzundanga padeceram mais uma tragédia social anunciada do genocídio capitalista tupiniquim. Contudo, se o temporal de Macondo se destinava a embotar os crimes da burguesia bananeira e silenciar os líderes da resistência popular, suspeito que as águas de nosso rincão tenham vindo para literalmente revirar e desvelar tudo de podre que existe sob o modelo de “desenvolvimento” por meio do qual os onipotentes monopólios e o latifúndio ergueram suas fortunas neste país. Não há como ignorar o sentido alegórico do lixo que se depositara ao longo de décadas naquela encosta, sobre o qual centenas de sem-teto (produto de décadas de concentração fundiária e da feroz criminalização da reforma agrária) ergueriam suas taperas urbanas, com a criminosa conivência do ‘poder público’, que, decerto, sempre angariou muitos votos e licitações fraudulentas por meio desse e de outros desvarios sociais legalizados. Contraparte dialética do luxo que as ditas elites cultivam acintosamente nessas plagas tropicais neobarrocas, esse lixo é uma metáfora irretocável das raízes do capital em Bruzundanga, onde o latifúndio se consolidou à custa de sucessivas grilagens e assassinatos, enquanto os monopólios se serviram do Estado para disseminar seus tentáculos por todo o país. E por mais que alguns setores da mídia se apressassem em responsabilizar as próprias vítimas pela tragédia, tampouco não houve como ocultar a perversa cumplicidade das ‘autoridades’ com o dilúvio desta Macondo pós-moderna. Em meio ao chorume que escorria da massa de lixo e terra revirada pelas escavadeiras, era visível o desconforto do prefeito Jorge Roberto da Silveira e a irritação do governador Sérgio playboy Cabral com as verdades que as águas nos expuseram. O reizinho está nu: bobo da corte da sociedade espetacular tupiniquim, Cabral pôde sentir nas vaias que recebeu em Niterói contundentes sinais de indignação do povo com seu mundo de cinismo e fantasia, em que tudo se resume a Copas e Olimpíadas, reluzente fachada sob a qual uma rede voraz de negociatas drena as verbas públicas. Sob o signo de Macondo, lá estão os corpos, mergulhados em lama e detritos. Somente o poeta ou o romancista saberiam dizer-nos que parte lhes coube neste latifúndio e quantas maracutaias jazem nessa terra que sonhavam ver dividida. Ainda assim, estou convicto de que muito mais lixo virá à tona bem antes que se escoem os quatro anos, onze meses e dois dias daquele triste século de solidão... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Felipe Dias Carrilho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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brasil Vitor Abdala/ABr

Um rio de lágrimas RIO DE JANEIRO Sem debater causas estruturais, a dor com as chuvas estimula apenas, no discurso oficial, a defesa de remoções de favelas Leandro Uchoas do Rio de Janeiro Na segunda semana deste mês, uma nuvem negra tomou os céus do Rio de Janeiro. Sob o maior volume de chuvas da história, uma cidade inteira gritou a dor da imobilidade e da morte. Inundações, desabamentos, caos. Mais de duas centenas de mortos, quase cem desaparecidos. A tragédia carioca traz em sua substância quase todos os sintomas da absurda vida contemporânea nas metrópoles, do descaso das autoridades e da apatia social. Por isso, junto à imensa tristeza que provoca, o dilúvio também poderia trazer, pela diversidade de temas que lhe servem de causa, debates mais ricos para a construção de uma cidade justa. Entretanto, ao que se vê pelo discurso dos governantes e da mídia, a tragédia reforça o ideário conservador de cidade e estimula as políticas públicas mais nefastas surgidas no Rio de Janeiro nos últimos anos. A princípio, o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes (ambos do PMDB) culparam as chuvas. Evidentemente, tinham certa razão – no dia 6, choveu na cidade o equivalente a, somados, janeiro e fevereiro, ou 280 litros por metro quadrado. A cidade literalmente parou. Porém, o discurso de criminalização da pobreza viria em seguida. Em entrevista à GloboNews, Cabral declarou que a culpa pelas mortes era da “irresponsável ocupação desordenada de áreas irregulares”. Em seguida, ele defendeu os muros que vem construindo em comunidades, supostamente para evitar que “habitações irregulares” avancem. Já Paes chamou de “demagogos de plantão” aqueles que se posicionam contra a remoção de favelas. No dia seguinte, 7, o prefeito anunciou um decreto que permite a retirada à força dos moradores de áreas consideradas de risco.

As imagens revelavam, com clareza, a má qualidade da moradia do carioca. O número de desabrigados só aumentou o problema Despejo facilitado

Embora tenha validade de 90 dias, algumas entidades temem a utilização do decreto para justificar remoções já planejadas anteriormente, com outro objetivo. “O prefeito colocou algumas áreas pouco atingidas no decreto. O que ocorreu em Jacarepaguá, com as chuvas, para justificar remoções? Estão usando o que aconteceu, muitas vezes por falta de política habitacional, para remover. E fica difícil questionar, porque existe a comoção popular. Não somos contra a realocação das reais áreas de risco. Na verdade, nós questionamos o conceito que eles têm de ‘área de risco’”, afirma Maria Lúcia Pontes, coordenadora do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Quatro mil famílias, de oito favelas, já estão prestes a ser removidas emergencialmente. É a vitória da ideia de

que a culpa é dos pobres que ocupam áreas irregulares. A vítima, no discurso oficial, havia novamente se tornado o criminoso. Os mortos na tragédia, quase todos pobres, estavam sendo culpados pela fatalidade que lhes tirara a vida. “Ninguém mora nesses lugares porque quer, mas por necessidade”, atesta Guilherme Marques, o Soninho, urbanista do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). “As pessoas vão morar em áreas de risco porque não podem arcar com os custos de áreas melhores. Muitas vezes, querem removê-las para regiões muito distantes. Com o sistema de transportes que temos, como vão trabalhar?”, questiona. Rentabilidade

O Morro dos Prazeres, por exemplo, um dos mais afetados pelas chuvas, já foi contemplado pelo programa Favela-Bairro. Na comunidade, todos pagam IPTU. Paes chegou a anunciar a remoção de toda a favela dos Prazeres, demonstrando desconhecer a legislação, que protege áreas tituladas. Em entrevista ao Terra Magazine, a relatora especial da ONU para o Direito à Moradia, Raquel Rolnik, deu pistas dos problemas enfrentados pelo Rio. Ela criticou a gestão urbana “para aumentar o potencial imobiliário e lotear e rentabilizar essas áreas”. “O preço que nós estamos pagando por isso são vidas que estão sendo perdidas, além do enorme prejuízo em função do colapso na circulação, na mobilidade e os efeitos que isso causa”, disse. No Rio de Janeiro, o plano de emergência anunciado por Eduardo Paes, que chegou a ter um grupo de trabalho constituído em 2009, saiu apenas após a tragédia. “Faltou coordenação e investimento regular em um projeto que fosse bem definido”, afirma Moacyr Duarte, especialista em análise de acidentes da COPPE/UFRJ, lembrando a edição do livro Tormentas Cariocas, em 1997, pela instituição, que já apontava o risco. O sistema de drenagem não funcionou. Lixos por toda a cidade entupiam ralos. Completamente interrompido, o trânsito ficou caótico por dois dias. Os saques a automóveis parados dispararam – em doze horas, houve quase 28 mil ligações ao 190, 21% acima da média. Dois importantes museus tiveram seu acervo rigorosamente danificado e o Viradão Cultural – 48 horas de atrações promovidas pela Prefeitura –, previsto para os dias 10 e 11, foi adiado. Escolas e universidades suspenderam as aulas. Na cidade, só se falava na tragédia, mas as discussões mais relevantes não surgiam.

Reformas esquecidas

Outro debate que as chuvas poderiam trazer, e não trouxeram, é o da reforma agrária. Pela opção histórica por um modelo agrícola concentrador e injusto, ex-agricultores migraram para as cidades, ocupando periferias e áreas de risco. Formaram uma imensa reserva de mão-de-obra superexplorada ou subaproveitada. O resultado são cidades infladas, sem infraestrutura democratizada. Na mídia corporativa, nem nas melhores reportagens esse debate surgiu. Em geral, viuse uma cobertura jornalística melodramática, exibindo o vendável choro da morte. O debate sobre a necessidade de reforma urbana – amplamente discutida no recen-

Casa destruída pelas chuvas no bairro do Fonseca, segundo maior de Niterói (RJ)

Quatro mil famílias, de oito favelas, já estão prestes a ser removidas emergencialmente. É a vitória da ideia de que a culpa é dos pobres que ocupam áreas irregulares te Fórum Social Urbano, realizado entre 22 e 26 de março – também foi escanteado. Assim como a discussão da precariedade do sistema de transportes e do despreparo da Defesa Civil. Aos importantes assuntos esquecidos, soma-se a notória vinculação entre a tragédia e o aquecimento global, também fruto da intempestiva ação humana no planeta. O enorme déficit habitacional da cidade também não pautou as discussões. As imagens revelavam, com clare-

segurado o desabamento no Complexo do Alemão. Recém-anunciado pelo governo federal, o PAC 2 promete R$ 10 bilhões para políticas de prevenção de risco. Sede de competições

za, a má qualidade da moradia do carioca. O número de desabrigados só aumentou o problema. Em Manguinhos, o primeiro andar dos apartamentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) ficou completamente alagado. Segundo a comunidade, a obra já apresentava infiltração e uso de material inadequado desde dezembro de 2009, quando foi entregue. Os moradores da Grota também denunciaram as obras do PAC, que não teriam

A tragédia foi notícia no mundo todo e o que mais se questionou foi a capacidade de a cidade abrigar as competições que se realizarão nela nos próximos anos. O Rio de Janeiro abrigará as Olimpíadas em 2016 e importantes jogos da Copa do Mundo de 2014. Sede da futura final, o Maracanã ficou encharcado após as chuvas. O jogo entre Flamengo e Universidad, pela Copa Libertadores da América, foi adiado para o dia seguinte. No Maracanazinho, jogadoras de vôlei ficaram presos e dormiram no vestiário. A Praça da Bandeira,

próxima, foi uma das regiões mais afetadas. Um complexo plano de reforma foi, em seguida, anunciado às pressas. Contudo, um fato, 1.150 quilômetros distante do Rio de Janeiro, despertou ainda mais a revolta dos cariocas. Uma denúncia do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que o ex-ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima (PMDB), doou a seu Estado, a Bahia, 64% dos recursos referentes a vergas da Secretaria de Defesa Civil, e apenas 0,9% ao Rio de Janeiro. Geddel foi recentemente substituído no Ministério para concorrer ao governo baiano. A OAB apresentou representação à Procuradoria Geral da República para averiguar o caso. Aparentemente, a tragédia não é apenas implicância da natureza com o Rio.

Dor e descaso em Niterói Vladimir Platonow/ABr

Conhecida por ter uma suposta qualidade de vida acima da média, a cidade viu revelada sua enorme massa de desamparados, e a conivência dos governantes com o problema do Rio de Janeiro (RJ) Em Niterói, cidade vizinha à capital, o dilúvio que atingiu o Estado do Rio de Janeiro deixou um rastro de devastação e morte. O local mais atingido foi o Morro do Bumba, um antigo lixão que, após ter sua vida útil encerrada, foi ocupado por barracos, muitas vezes com o estímulo do poder público. Mesmo após o término das chuvas, devido à fragilidade do solo, o morro desabou, deixando, ao menos, 200 pessoas soterradas. As revelações que surgiam escancararam o desleixo histórico dos governantes com o local. Mesmo sabendo que se tratava de área construída sobre lixão, prefeitos e governadores permaneceram historicamente com ofertas de pequenos beneficiamentos, de aparente interesse eleitoreiro. O atual prefeito, Jorge Roberto da Silveira (PDT), em 1989, em sua primeira gestão (está hoje na quarta), foi o primeiro a ignorar denúncias de inviabilidade para se morar

Bombeiros carregam corpo de vítima dos deslizamentos de terra no Morro do Bumba

O Ministério Público Estadual está investigando responsabilidades na cidade. Há suspeitas de concessão de licenças para construções ilegais no terreno. Até um ano antes, as construções no morro estavam proibidas. Silveira manteve-se indiferente. O ex-governador Leonel Brizola (PDT, 1991-1994) aplicou obras de saneamento e iluminação na região. O ex-prefeito Godofredo Pinto (PT, 2002-2005) também promoveu a urbanização local. No Morro do Estado, moradores chegaram a organizar uma assembleia para discutir o que fazer devido à grande quantidade de mortos e desaparecidos. O Largo da Batalha, numa região conhecida como Garganta, te-

ve soterradas 20 casas. Os locais que poderiam receber desabrigados, como o posto de saúde local, também desabaram. Devido à dificuldade de acesso da Defesa Civil, eram os próprios moradores quem faziam o trabalho de busca dos soterrados. O Ministério Público Estadual está investigando responsabilidades na cidade. Há suspeitas de concessão de licenças para construções ilegais. Existem inquéritos para cobrar das prefeituras a regularização do sistema de drenagem da água das chuvas. Dois estudos da Universidade Fede-

ral Fluminense (UFF) enviados à prefeitura de Niterói, em 2004 e 2008, já revelavam risco de desabamento em regiões da cidade. Cerca de 90% das áreas que desmoronaram durante as chuvas eram apontados nos relatórios. Em 2004, a universidade doou à Secretaria do Meio Ambiente um mapeamento das áreas de risco. O Morro do Bumba, evidentemente, constava do mapa. O estudo de 2008, financiado pelo Ministério das Cidades, apontava um Plano de Prevenção de Risco, com medidas necessárias e orçamento; foi ignorado. “A omissão é, no mínimo, estranha”, aponta Adalberto da Silva, um dos autores do estudo de 2004. O Ministério Público requisitou junto à UFF a entrega dos estudos para averiguar a responsabilidade do poder público. (LU)




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brasil

As violações de Belo Monte Roosewelt Pinheiro/ABr

ENERGIA Relatório desnuda falhas no processo de licenciamento da obra e recomenda a revisão total do projeto da usina hidrelétrica

Processo falho No relatório, são feitas ao governo brasileiro dez recomendações, embasadas nas falhas verificadas no projeto da hidrelétrica. Entre elas, é pedido o cancelamento do leilão de Compra de Energia Elétrica Proveniente da Usina Hidrelétrica Belo Monte, marcado para o próximo dia 20, e o cancelamento da licença prévia concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A Missão Xingu também denuncia que Belo Monte acarretará danos irreversíveis à biodiversidade, além do impacto sobre as populações da região. “Se o governo quer realmente construir [a hidrelétrica], o projeto precisaria ser completamente revisto do ponto de vista técnico”, analisa Zagallo.

Bela maracutaia Ato do MAB na Esplanada dos Ministérios contra a construção da Usina de Belo Monte, no rio Xingu (PA)

Cecília Mello explica que a resolução nº 06/1987 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determina que o leilão não pode ser feito somente com a licença-prévia Zagallo conta que o relatório foi entregue à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e está sendo encaminhado ao governo federal, aos ministérios do Meio Ambiente e de Direitos Humanos e aos órgãos envolvidos no projeto, entre eles, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ibama. Violações No documento, são apontadas falhas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA), realizado pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio), a pedido da Eletronorte, em nome da holding Eletrobras, empresa responsável pelo empreendimento. De acordo com Cecília Mello, assessora da relatoria e integrante da secretaria nacional da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, que também participou da Missão Xingu, Belo Monte chama a atenção por “uma série de violações que foram verificadas ao longo do processo de licenciamento”. A licença-prévia para a construção da usina, expedida pelo Ibama em 1ºde fevereiro, possui 40 condicionantes para a realização da obra. Para Zagallo, “uma licença prévia concedida com 40 condicionantes significa que não está atestada a viabilidade ambiental do empreendimento”. Já Cecília Mello explica que a resolução nº 06/1987 do Conselho Nacional do Meio Ambiente

(Conama) determina que o leilão não pode ser feito somente com a licença-prévia. O mesmo ponto é levantado pelo o Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA), em uma ação ajuizada contra a construção da UHE de Belo Monte no dia 8 de abril. A instituição concluiu que o Ministério de Minas e Energia desrespeitou a resolução ao marcar o leilão sem a licença de instalação. Insistência O governo federal, no entanto, insiste na implantação da hidrelétrica. Belo Monte foi pensada ainda na década de 1970, pelos militares, como um dos grandes projetos de ocupação da Amazônia. Com o nome de usina Kararaô, o projeto foi retomado em 1989 e, logo após, cancelado devido à resistência dos povos indígenas. Hoje, o empreendimento é a maior obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo Lula. Além disso, Belo Monte será o terceiro maior empreendimento hidrelétrico do planeta, atrás apenas do projeto chinês de Três Gargantas e de Itaipu, localizada na fronteira de Brasil e Paraguai. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou, no dia 8, que a UHE de Belo Monte será construída, seja com a participação de empresas privadas ou não. A declaração foi uma resposta à desistência das construtoras Camargo Correa e Norberto Odebrecht de partici-

parem da concorrência por Belo Monte, por considerarem o valor teto de R$ 83 o megawatt-hora insuficiente. Autoritarismo As empresas, que formariam um consórcio, eram tidas como certas na disputa contra o único consórcio confirmado até então, formado pela construtora Andrade Gutierrez, a mineradora Vale, a Votorantim e a Neoenergia (associação entre a Iberdrola, a Previ e o Banco do Brasil). O relator do Direito Humano ao Meio Ambiente considera que a declaração de Lula demonstra uma postura autoritária por parte do governo federal. Para Rogério Rohn, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o governo age como um gerenciador do grande capital e dos interesses das empresas ligadas à construção de barragens. Segundo ele, a insistência pela construção de Belo Monte não é do Executivo federal, e sim “do grande capital, que faz a sua pressão para dentro do governo, através de vários mecanismos”. Para garantir a concorrência comercial no leilão, o governo aumentou o prazo (para o dia 16) para a inscrição das empresas interessadas na energia de Belo Monte. Especula-se, ainda, a participação de fundos de pensão nos consórcios que disputarão a concorrência. De acordo com reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, o governo iria recorrer aos fundos Previ (dos funcionários do Banco do Brasil), Funcef (da Caixa Econômica) e Petros (da Petrobrás), que seriam distribuídos de forma equilibrada entre os consórcios, para capitalizar e garantir poder de concorrência entre todos os grupos.

Ações e protestos contra a barragem

da Redação Organizações sociais e de direitos humanos intensificaram, desde o início de abril, as ações de protesto contra a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA). As supostas arbitrariedades do projeto foram denunciadas à Organização das Nações Unidas (ONU) por cerca de 100 organizações sociais e de direitos humanos, em representação de 40 comunidades de 11 municípios que serão atingidos pela implantação do projeto.

Grande parte da população brasileira que vive nos centros urbanos não tem acesso à terra e à moradia. Compete ao Estado confiscar áreas urbanas e construir habitações para todos. Não faz o menor sentido que o povo seja obrigado a viver em áreas de risco, de forma improvisada e irregular. É preciso acabar com a especulação imobiliária e o monopólio privado da terra. É dever do Estado acabar de vez com o déficit habitacional. Estudo do IPEA publicado no dia 6 de abril é categórico: “O argumento segundo o qual a questão urbana prevalece hoje sobre a questão agrária não leva em consideração que muitos problemas presentes nas cidades – a pressão demográfica, o processo caótico de urbanização das periferias etc. – se explicam, ao menos em parte, pela não-realização de uma reforma agrária, isto é, de uma verdadeira política pública de distribuição de patrimônio.”

Valter Campanato/ABr

A construção de Belo Monte é contestada pelo Ministério Público e denunciada à ONU por organizações sociais

Matança urbana

Reforma agrária

Michelle Amaral da Redação ALVO DE INÚMERAS contestações e denúncias de irregularidades, a futura construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, no rio Xingu (PA), tem representado uma queda de braço entre a sociedade civil, de um lado, e o governo federal e as empresas do setor energético, de outro. A gestão Lula defende a necessidade da hidrelétrica para que se possa garantir a oferta de energia para a expansão da economia brasileira. Organizações sociais, populações ribeirinhas e povos indígenas denunciam as violações aos direitos humanos que o projeto carrega e os impactos sócio-ambientais que serão gerados pelo empreendimento. No dia 8 de abril, a Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente, da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Plataforma Dhesca Brasil), lançou um relatório sobre a UHE de Belo Monte, intitulado “Missão Xingu - Violações de Direitos Humanos no Licenciamento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte”. José Guilherme Zagallo, relator do Direito Humano ao Meio Ambiente, que participou da Missão Xingu, explica que foi feita uma análise de todos os documentos coletados, denúncias recebidas e questionamentos formulados a respeito da viabilidade de Belo Monte. A conclusão é a de que já estão ocorrendo violações de direitos humanos, mesmo antes do início da obra.

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

As entidades pedem que a entidade solicite informações ao governo brasileiro sobre o empreendimento, que os relatores realizem uma visita ao Pará e que o Brasil reconsidere a construção da usina. Além disso, somente no dia 8 de abril foram ajuizadas duas ações – impetradas pelo Ministério Público Federal (MPF-PA) e pela Procuradoria Geral da República (PGR) no Pará – que pedem a anulação da licença prévia do empreendimento e o cancelamento do leilão de compra de energia da usina, marcado para o dia 20. Manifestações Para José Guilherme Zagallo, do Direito Humano ao Meio Ambiente, da Dhesca Brasil, “as irregularidades [do projeto de Belo Monte] são tão elevadas que é possível que o Poder Judiciário, ao ser consultado, agora venha a reconhecer a ilegalidade do processo”. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) tem articulado manifestações contra a construção

Marcado para o dia 20, o leilão da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, estimula a ganância das grandes empresas, mas poderá ser suspenso por ação do Ministério Público Federal, que considera o processo com falhas constitucionais e ofensivo à legislação ambiental. Na pressa de entregar essa mina de ouro para grupos privados, o governo federal atropelou estudos de impacto ambiental do Ibama.

Terror imperial

Documento elaborado por um coronel que trabalhou no governo de George W. Bush, nos Estados Unidos, comprova que a alta cúpula do governo, inclusive o presidente da República, sabia que a maioria dos presos confinados na base militar de Guantánamo era inocente, não tinha nada a ver com o Taleban e a Al Qaeda. Assim mesmo, as autoridades dos Estados Unidos decidiram manter os sequestrados encarcerados – até hoje, no governo Obama.

Sabujo midiático

A grande imprensa brasileira, que sempre foi servil ao imperialismo dos Estados Unidos, continua fustigando o governo brasileiro por ter uma posição soberana em relação ao Irã e demais países que apoiam o povo palestino. Todos os dias esses veículos divulgam materiais de propaganda para reafirmar que o governo estadunidense e seus aliados condenam a posição brasileira. São contra a independência do Brasil!

Direita inquieta

Estrategistas da campanha presidencial de José Serra (PSDB) definiram que o tucano não pode ser oposição ao governo Lula e nem aparecer como o candidato anti-Dilma. Não pode também confrontar os governos FHC (1995-2002) com o atual. Só pode vislumbrar o futuro, encarnar o pós Lula sem o PT. Se a retórica vai enganar o eleitor é outra história. Será difícil esconder o discurso direitista do DEM e as besteiras de FHC!

Projeto socialista

Mesmo com divisões internas, a Conferência Nacional do PSOL, realizada dias 10 e 11 no Rio de Janeiro, aprovou, por aclamação, a pré-candidatura presidencial de Plinio Arruda Sampaio, que deverá agora iniciar entendimentos com o PSTU e o PCB para restabelecer a frente de esquerda das eleições passadas. A campanha de Plinio deverá colocar no debate político-eleitoral a crítica ao capitalismo e a defesa de uma sociedade socialista.

Herói nacional

O cineasta James Cameron, em entrevista de apoio à manifestação

As entidades pedem que a ONU solicite informações ao governo brasileiro sobre o empreendimento, que os relatores realizem uma visita ao Pará e que o Brasil reconsidere a construção da usina da usina. Ao lado das populações ribeirinhas e dos povos indígenas da região, o movimento realizou, no dia 12, uma marcha em Brasília (DF). Participaram da ação cerca de mil pessoas de 17 estados brasileiros.

Segundo Rohn, até a data do leilão, “a ideia é que a gente possa intensificar os nossos protestos de repúdio contra a construção de barragens, contra o modelo energético e contra Belo Monte”. (MA)

Depois da denúncia de produtores de laranja contra o cartel da indústria do suco, agora os produtores de cana criaram coragem para denunciar o cartel das usinas de álcool e açúcar. Há muito tempo que essas empresas ditam as regras e os preços do setor, inclusive jogam pesado para elevar os preços do etanol combustível. Será que nenhum órgão governamental vai estabelecer limites civilizatórios para os usineiros do Brasil?

Banda privada

Mais uma vez o governo recuou na proposta de implantação do sistema de banda larga para todo o país: antes seria feito pela Telebrás; agora em parceria com as empresas de telefonia. O setor privado reclamou e conseguiu conquistar para o mercado uma parte do bolo. Assim mesmo a grande mídia neoliberal-burguesa continua batendo na nova proposta “estatizante”. O capital não abre mão de explorar (bota explorar nisso!) todo o setor.


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brasil Fotos: Luca Barreto/Canal 03

Pescadores no rio São Francisco, cujas águas nunca chegaram às torneiras da comunidade Ferrete, em Curaçá (BA)

Novas barragens, velhas violações HIDRELÉTRICAS Construção das usinas de Riacho Seco e Pedra Branca, no rio São Francisco, copia exemplos antigos e ameaça expulsar mais de 20 mil pessoas da região Patrícia Benvenuti de Curaçá (BA) É COM A ÁGUA do rio São Francisco que Maria Eunice Santos lava as roupas da família. Sob o sol forte do sertão, a agricultora de 51 anos esfrega bem as peças, lavadas uma a uma sobre as pedras da margem. Situada a 400 metros da beira do rio, a comunidade Ferrete, em Curaçá (BA), não tem água encanada, e os moradores recorrem, todos os dias, ao Velho Chico para suprir as necessidades de abastecimento. A água que nunca chegou nas torneiras, porém, pode agora engolir todo o povoado. Até o final deste ano, o governo federal, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), preten-

de iniciar a construção da hidrelétrica de Riacho Seco, que inundará toda a área de Ferrete e da comunidade vizinha, Fazenda do Meio. Para a mesma região, além de Riacho Seco, está prevista a barragem de Pedra Branca, ainda sem data para implantação. Serão apenas 20 quilômetros de distância entre as duas usinas que, juntas, atingirão as cidades de Curaçá e Juazeiro, na Bahia, e os municípios pernambucanos de Orocó, Santa Maria da Boa Vista, Lagoa Grande e Petrolina, alagando comunidades, ilhas e assentamentos. De acordo com movimentos sociais, as obras devem desalojar 20 mil pessoas, entre pescadores, ribeirinhos, quilombolas e indígenas do submédio do rio São Francisco. Informações, até agora, há poucas para os habitantes de Ferrete. O que predomina é o medo de sair da terra já conhecida. “A gente tem medo de sair porque, se sair, vai morar onde?”, questiona Dona Maria Eunice. Fraude

Também morador de Ferrete, o integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) João Teles confirma que todas as comunidades da região estão carentes de informação sobre os projetos. No dia 25 de março, depois de uma mobilização que reivindicava sua suspensão, representantes das futuras áre-

Exemplo negativo está na região Barragem que era esperança de desenvolvimento virou sinônimo de expulsão e morte de Curaçá (BA) A educadora popular Maria do Socorro Alves, de 51 anos, volta no tempo quando sente a apreensão das comunidades que serão atingidas pelas hidrelétricas de Riacho Seco e Pedra Branca, no submédio do rio São Francisco. Ela tinha 15 anos quando, nos anos 1970, sua família foi removida do município de Casa Nova (BA) para a construção da usina de Sobradinho, no mesmo rio. Na época, o então governo militar divulgou que o empreendimento acarretaria a saída de oito mil pessoas da área, mas que todas seriam amparadas em programas de reforma agrária. Engano A família de Maria do Socorro foi para uma agrovila do município de Bom Jesus da Lapa, mas logo constatou que o local era bem diferente

do que havia sido prometido. “Quando chegamos lá, não tinha comida, roça preparada, água tratada, escola e nem acesso médico. A gente passou até fome. Teve uma agrovila em que, em uma semana, morreram 12 crianças desnutridas”, afirma. Resistência A educadora popular lembra ainda que houve mortes relacionadas à água, que continha calcário. “Não tinha organismo que conseguisse sobreviver àquela água salgada. E tem gente que até hoje está morrendo porque nunca resolveram o problema”. Em vez de oito mil pessoas, a barragem expulsou cerca de 70 mil, que lutam, até hoje, para receber as indenizações.

as atingidas obtiveram uma audiência com a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) – responsável pelos empreendimentos, juntamente com as empreiteiras Odebrecht e Engevix. No encontro, entretanto, a empresa não forneceu mais detalhes sobre as obras e garantiu que não abre mão delas. Antes do encontro, o único contato direto que havia sido feito com a comunidade de Ferrete deu-se durante a elaboração dos estudos para implantação da usina. Na época, técnicos da Chesf foram à comunidade fazer o cadastramento das famílias. Manipulação

O levantamento realizado pela companhia, no entanto, é descrito por Teles como fraudulento. De acordo com ele, não foram coletadas informações de todas as famílias, o que pode encobrir o verdadeiro número de pessoas afetadas. “Os cadastros foram feitos em três ou quatro casas e tiraram base para todas as outras”, acusa Teles, que destaca também outras manipulações: “Diziam, no cadastro, que as comunidades estavam de acordo, e era mentira”. A suspeita de fraudes nos estudos feitos pela Chesf motivaram, em março de 2009, uma ação do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que recomendou à empresa que respeitasse nor-

Maria do Socorro lamenta que, na época, não houvesse entidades que orientassem a mobilização das comunidades. Mesmo assim, houve pessoas que resistiram até o final contra o alagamento. “Muitos idosos resistiram. Na hora em que a barragem ia avançando, eles estavam em cima do telhado das casas, sem querer sair. Tinha que ir de barco até o encontro dessas pessoas para tirá-las dali. Teve gente que morreu em seguida porque não tinha, psicologicamente, mais condição de viver”, conta. O desfecho do projeto de Sobradinho, para Maria do Socorro, teria sido diferente com a organização existente hoje nas comunidades. Se não se pode mudar seu final, pelo menos que o caso sirva como exemplo. “Foi a destruição da nossa vida e da nossa cultura. Por isso, eu não acredito que nenhum projeto de barragem vai gerar dignidade e vida. Não, vai gerar sempre morte”, assegura. (PB)

Projeto de barragem não gera dignidade

mas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) durante todas as etapas de construção das barragens. O MPPE indicou, além disso, a realização de audiências públicas para debater os impactos causados pelas obras. Depois das pesquisas domiciliares, a Chesf planeja retornar às comunidades para ministrar oficinas que funcionarão, na prática, como encontros entre seus representantes e moradores, a fim de explicar mais sobre o projeto de Riacho Seco.

“Hoje, somos agricultores, e quem trabalha na agricultura não tem condições de trabalhar em supermercado, banco ou fábrica. É muito difícil” Antes de debatê-lo, porém, Teles avalia que as atividades servirão para legitimar informações que continuam equivocadas. “A Chesf está mandando essas pessoas para dizer que sentaram com a comunidade e que ela está de acordo”, explica.

Além da ocultação de informações sobre as famílias nos relatórios, o MAB acusa a Chesf de esconder outros impactos, como a possibilidade de inundação de toda a cidade de Curaçá em função da barragem. Também não foram citadas nos estudos as famílias do município de Riacho Seco que, por estarem a dois quilômetros do local do reservatório, receberão água contaminada por causa dos explosivos usados nas construção e terão suas casas atingidas. Promessas

De acordo com Teles, cerca de 90% dos moradores da comunidade são contrários às barragens. Os que continuam favoráveis estão esperançosos de que as usinas tragam desenvolvimento, empregos e melhoria para a região, tese que é contestada pelo integrante do MAB. “Muitas pessoas estão sendo enganadas e pensam em trabalhar. Mas o emprego pode vir agora, na construção. E depois, quem vai garantir emprego para esse povo?”, pergunta. Ele recorre ao exemplo de comunidades próximas, que foram impactadas por grandes hidrelétricas e nunca viram as promessas se concretizarem. “Já vieram dizer [a Chesf] que vai ter escola boa para as pessoas. Mas, em relação a outras comunidades atingidas, a gente não vê melhorias. So-

bradinho é uma realidade. A infraestrutura é muito pobre, e a questão da educação não melhorou nada (leia matéria nesta página). Por que aqui vai ser melhor?”, indaga. Perda

A concretização de Riacho Seco e Pedra Branca deverá resultar também, segundo os movimentos sociais, na expulsão do trabalhador do campo, em direção às cidades. Para o integrante do MAB, a mudança trará riscos à sobrevivência das famílias, que hoje tiram sustento da agricultura familiar e da pesca. “Hoje, somos agricultores, e quem trabalha na agricultura não tem condições de trabalhar em supermercado, banco ou fábrica. É muito difícil”, analisa. A saída das comunidades acarretaria, ainda, a perda da identidade e da cultura das populações tradicionais. “Tem pessoas que vivem aqui há mais de 30 anos. É uma raiz que está plantada e, se você sai, perde tudo”, afirma. Histórias que podem se perder, como a do ribeirinho Antonio Medrado da Costa. Perto de completar 70 anos, ele lamenta a possibilidade de deixar a convivência direta com o rio São Francisco. “O rio São Francisco é uma riqueza para nós e vai ser difícil [sair], porque a gente pega peixe do rio para sobreviver”, explica Seu Antonio. “É melhoria pra uns e piora pra outros”, conclui.

Volume do rio será insuficiente para gerar mais energia, afirmam pesquisadores De acordo com especialistas, já existem hidrelétricas no rio São Francisco que operam abaixo de sua capacidade

milhão de hectares), 340 mil já estariam comprometidos. “O rio São Francisco já está no seu limite”, atesta. A prova desse limite, para o pesquisador, são as hidrelétricas de Itaparica e Xingó. Suassuna recorda que as duas usinas foram projetadas para funcionar, cada uma, com dez turbinas. Entretanto, elas operam com apenas seis cada. Evidência

de Curaçá (BA) Projetadas para o submédio do rio São Francisco, as usinas hidrelétricas de Riacho Seco e Pedra Branca terão capacidade, respectivamente, para a geração de 240 e 320 Megawatts (MW). O volume do rio, porém, não deve ser suficiente para a geração de mais energia elétrica. A afirmação é do engenheiro agrônomo João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Ele lembra que as águas do São Francisco são responsáveis por 95% da energia gerada na região, consumindo quase todo o potencial de 10 mil MW previsto para o rio. Além disso, da área irrigável (um

No caso de Xingó, poderiam ser instaladas mais quatro turbinas de 500 MW, totalizando a capacidade de 5 mil MW. Já Itaparica poderia abrigar mais quatro motores de 250 MW, elevando os atuais 1.500 MW produzidos para 2.500 MW. O caso dessas usinas é questionado no artigo “Impasses e controvérsias da hidreletricidade”, publicado em 2007 pelo professor livre docente do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP) Celio Bermann. No texto, a própria Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), responsável pelos empreendimentos, justifica a não instalação das turbinas. “Com respeito às duas usinas no rio São Francisco,

a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) alega que houve um superdimensionamento nos dois projetos e que não existe água suficiente para efetivar a complementação da motorização de ambas”, afirma o artigo. “Se o rio está no seu limite, por que se fala na cons-

“Se o rio está no seu limite, por que se fala na construção de mais duas usinas? Essa é a pergunta que a Chesf tem que responder” trução de mais duas usinas? Essa é a pergunta que a Chesf tem que responder”, salienta Suassuna. Procurada pela reportagem, a assessoria de comunicação da Chesf não retornou as ligações nem as mensagens enviadas por correio eletrônico. (PB)


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Intransigência tucana põe fim à greve de professores em São Paulo EDUCAÇÃO Após 30 dias de greve, docentes paulista suspendem movimento sem reajustes; salário-base é apenas o 14º do país Zanone Fraissat/Folha Ima-

Renato Godoy de Toledo da Redação O TRATAMENTO dispensado pelo governo de José Serra (PSDB) ao movimento grevista dos professores de São Paulo oscilou entre o desprezo e a repressão. Em um mês de greve, de 8 de março a 8 de abril, os docentes obtiveram um pico de quase 70% de adesão entre os mais de 250 mil membros da categoria no estado. Para concorrer à presidência da República, Serra deixou o Palácio dos Bandeirantes sem ter aberto qualquer perspectiva de melhoria salarial para o professorado. Alberto Goldman (PSDB), seu sucessor, manteve a mesma postura. Com o ponto cortado e cientes do refluxo da greve, a categoria viu-se obrigada a encerrar o movimento e retomar as aulas. A postura do governo paulista foi inédita. Mesmo nos outros mandatos do PSDB em São Paulo – que comanda o estado desde 1995 –, existia ao menos um canal de diálogo aberto. Durante a greve, houve apenas uma reunião entre o secretário Paulo Renato de Souza, ex-ministro da Educação de Fernando Henrique Cardoso, e os grevistas. Na ocasião, o tucano foi irredutível e apontou que qualquer negociação só seria feita mediante a suspensão do movimento. Agora, os diretores do sindicato negociam a reposição de aulas e o pagamento dos dias descontados. Ao que tudo indica, o governo não deve ceder. A Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) já cogita parcelar o desconto salarial para amenizar o impacto no orçamento da categoria. Na unidade federativa mais rica do país, o vencimento dos professores é apenas o 14º no ranking nacional. Quando Serra tomou posse, em 2007, São Paulo ocupava a 11ª posição. O salário-base do profes-

Assembletia de professores realizada no vão livre do MASP, na Avenida Paulista (SP)

“A greve foi política mesmo, mas não no sentido eleitoreiro, como o PSDB queria tachar”, afirma a presidente da Apeoesp sorado paulista é de R$ 1.835 para uma jornada de 40 horas semanais, ou R$ 11,47 por hora-aula. Em Roraima, menor PIB do país, o vencimento-base de um docente é de R$ 2.419 para 25 horas trabalhadas, o que representa R$ 24,19 hora-aula. Os dados foram levantados pelo jornal Folha de S. Paulo. Desde 1999, o professorado tem recebido reajustes aquém da inflação. Nos últimos cinco anos, houve uma reposição de 5%, enquanto a inflação acumulou 22%. Baseado em cálculos do Diee-

Meritocracia gera competição entre docentes Sistema de bônus e avaliação causa exclusão e constrangimento em sala de aula da Redação Um ponto crucial na crítica dos professores à gestão tucana na educação é a primazia dos bônus e premiações em detrimento da valorização salarial da categoria. Além de prejudicial aos rendimentos do professorado, a política impede que cerca de 80% dos docentes tenham a chance de ser avaliados. Os outros 20% podem realizar a prova e, se tiverem bom desempenho, recebem um aumento. Isso porque em 2009 foi aprovado o PLC 29 que impõe regras para a promoção do professorado, sempre condicionada à assiduidade, à produção e ao desempenho nas seguidas avaliações. Para pleitear uma promoção, o docente tem que ter mais de quatro anos no exercício da profissão. Os aposentados foram excluídos do processo.

Segundo os professores, a política tem causado danos à categoria e ao projeto pedagógico nas escolas. Para Pedro Paulo Vieira de Carvalho, da Apeoesp, o governo criou uma visão empresarial para gerir o ensino e tenta difundir essa concepção para sociedade. “Com essa política, eles dizem para o professor que não há mais reajuste igualitário. É o fim da isonomia salarial. ‘O que vale é o seu mérito, o que você produz. E se não produzir, não fizer por onde, você será excluído’, esse é o recado deles. Nada contra as gerações mais novas que estão chegando ao magistério, mas essa política do governo visa excluir os professores mais velhos que, muitas vezes, dedicaram metade de suas vidas ao magistério”, analisa. O sindicalista relata que tal política educacional gera um individualismo crescente e constrangimento em sala de aula. “Os pioneiros da educação que sempre defenderam uma gestão democrática dos órgãos governamentais e uma escola capaz de dinamizar a vida cotidiana, com os professores e estudantes como protagonistas, veem esse modelo posto em xeque por um projeto educacional pautado na meritocracia e na avaliação

se, a Apeoesp levou ao governo a proposta de um reajuste de 34,3%, para suprir o arrocho do último período. Política, mesmo O reajuste não foi o único ponto de reivindicação dos professores. As críticas à política de incorporação de bônus e gratificações aos salários, à avaliação dos professores e à meritocracia foram as principais bandeiras dos professores nos 30 dias de greve. Por criticar nominalmente o governador José Serra e o PSDB, a mídia e o governo es-

do desempenho e da produtividade. Hoje um professor se vê como um grande adversário do outro. O governo induz a sociedade e o estudante a gerir a escola nessa concepção empresarial. Aqueles professores que não são aprovados nos exames são considerados pelos pais como incapazes de dar aula aos seus filhos. Mesmo na sala de aula os alunos podem dizer ao docente: ‘você não passou, professor, você não tem condições de exercer sua função’”, critica.

“O governo induz a sociedade e o estudante a gerir a escola numa concepção empresarial”, diz Pedro Paulo, da Apeoesp Para Maria Izabel Noronha, presidente da Apeoesp, outro problema instituído pelo método educacional defendido pelo PSDB é a instituição da rotatividade, já que há um processo de demissão dos professores chamados de categoria “O”, com contrato temporário. “Os professores estão sendo demitidos à revelia da lei, pois só se pode demitir por meio de um processo administrativo”, explica. (RGT)

tadual trataram de qualificar o movimento como “político” e “eleitoral”. Em tom de denúncia, veículos publicaram que a presidente da Apeoesp Maria Izabel Noronha, a Bebel, é filiada ao PT, sendo que a entidade é presidida por integrantes do partido desde sua restruturação no final da ditadura civil-militar. “A greve foi política mesmo. Todo ser humano é um ser político, pois toma decisões. Agora, a greve não é política no sentido que eles tentaram tachar, dizendo que era um movimento eleitoreiro”, afirma a Bebel. Para ela, o ano eleitoral é propício para realizar mobilizações como essa, pois recebe mais visibilidade e o movimento ganha maior poder perante os eventuais candidatos, temerosos por sua reputação. “Para usar uma fala do Jâ-

nio de Freitas, a greve é ‘da hora’. Porque em qual outro momento eles vão olhar para a gente. Quem te enxerga em outro ano, que não seja de eleição? Tanto é que logo eles saíram desqualificando nossa greve, dizendo que tinha 1% de adesão, para defender o candidato deles”, considera, referindo-se às estimativas do governo sobre a força do movimento. Segundo o sindicato, o maior problema para a adesão foi na capital e Grande São Paulo, onde, no ápice do movimento, cerca de 50% das atividades foram paralisadas. No total do estado, o sindicato estima que a adesão chegou a mais de 70% no auge. Para Pedro Paulo Vieira de Carvalho, diretor da executiva da Apeoesp, não há problema em assumir o caráter político da greve. “Foi uma

greve positiva, no sentido de conscientizar o professorado acerca dos problemas da política educacional aplicada no estado. Fizemos uma crítica à política educacional que levou o maior estado do país a uma profunda crise educacional”, analisa o sindicalista, membro da oposição ao grupo majoritário da Apeoesp. Para ele, o setor majoritário, representado pela Articulação Sindical, cometeu erros durante o processo. “Infelizmente, eles partidarizaram a questão e acabaram até ajudando a imprensa nessa estigmatização. Queriam focar na figura do Serra, enquanto nós queríamos centrar na necessidade de enfrentar a política educacional que continua, mesmo com a saída do Serra”, critica.

As críticas à política de incorporação de bônus e gratificações aos salários, à avaliação dos professores e à meritocracia foram as principais bandeiras dos professores nos 30 dias de greve Apesar de ser um sindicato marcado por acirradas disputas entre as correntes, a decisão de saída da greve foi feita de maneira consensual. A Apeoesp tem um sistema de representação proporcional em sua direção. Hoje a diretoria majoritária da Apeoesp conta com 60% dos cargos de diretoria. Já a oposição, composta por Conlutas, Intersindical e independentes, controla os 40% restantes.

Infiltração de PM foi a “novidade” da greve Rodrigo Coca/Folhapress

Policial à paisana socorre PM durante manifestação

da Redação No dia 26 de março, o movimento grevista dos docentes estava em seu auge. Após duas semanas com assembleia realizada no vão livre do Masp, na Avenida Paulista, o sindicato decidiu levar suas reivindicações até a sede do governo paulista, no Palácio dos Bandeirantes. Foram recebidos com tiros de borracha, gás lacrimogênio e cassetetes. Cerca de 50 professores ficaram feridos. Após a ação da polícia, uma imagem capturada pelo fotográ-

fo Clayton de Souza, da Agência Estado, retratou um “manifestante” acudindo à soldada Érika Cristina Moraes da PM. Mais tarde, o governo do Estado admitiu que o rapaz que socorrera a policial era um colega de profissão, não um professor. Segundo relatos de professores, o policial à paisana foi à manifestação em um ônibus fretado por docentes de Osasco. Segundo a assessoria da PM, o oficial estava de passagem no local. “Esse foi um episódio lamentável. E esse governo que hegemoniza o estado só nos fez lembrar do

regime militar. Fomos recepcionados de forma covarde, com bombas de gás, tiros de borracha e mais de 50 professores foram feridos. Tínhamos suspeitas de infiltração na greve de 2000. Isso foi comprovado agora. Eles [os infiltrados] são usados para incitar o movimento. Foi um ato covarde e ilegal. Vamos continuar denunciando isso em âmbito nacional e internacional. Muitos professores foram até agredidos por esses policiais à paisana, quando estavam exercendo o direito legítimo de se manifestar pacificamente”, relata. (RGT)


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internacional Reprodução

Rotina de medo IRLANDA Vítimas de pedofilia em instituições dirigidas por padres e freiras católicos nos anos de 1940 e 1950 dizem ter pesadelos com os abusos sofridos e prometem lutar pela punição dos culpados Ernani Lemos e Juliana Yonezawa de Dublin (Irlanda) “A IRLANDA deveria se envergonhar para sempre por permitir que tal barbaridade acontecesse a qualquer ser humano. Eu amo meu país e nunca vou deixar de amar. Eu sou católico e continuarei sendo. Independentemente de ir ou não à igreja. Mas eu jamais vou perdoar as pessoas que fizeram aquelas atrocidades comigo e com meus irmãos”, diz Michael O’Brien. “A única forma que eu tenho de descrever aquelas instituições é dizer que são piores do que prisões e similares aos campos de concentração da Alemanha. A rotina era rigorosa e muito dura. Nós passamos fome e sofremos de malnutrição. Eles deveriam nos preparar para a vida, nos educar e ensinar uma profissão. Em vez disso, só nos infligiram punições e o dogma religioso”, conta Christopher Heaphy. As palavras ásperas e carregadas de rancor são de dois autointitulados “sobreviventes” dos abusos sexuais e da violência praticados contra crianças por membros da Igreja Católica na Irlanda. Sentados na poltrona de um hotel em Dublin, O’Brien e Heaphy contam ao Opera Mundi, em detalhes, o horror que passaram em instituições infantis dirigidas por religiosos nas décadas de 1940 e 1950.

“Éramos tratados como animais”, desabafa O’Brien. Aos 77 anos de idade, o irlandês de Tipperary dedica a vida à luta pelos direitos das vítimas dos abusos “Como animais” “Éramos tratados como animais”, desabafa O’Brien. Aos 77 anos de idade, o irlandês de Tipperary dedica a vida à luta pelos direitos das vítimas dos abusos. Em 1999, ele criou a associação Right for Peace, organização de pessoas que viveram situações semelhantes nos abrigos infantis, orfanatos e reformatórios católicos da Irlanda. O’Brien foi parar em uma dessas instituições em 1941, quando tinha oito anos, logo após a morte da mãe. Ele e os sete irmãos foram tirados do pai e colocados em diferentes internatos. “Eu fui abusado desde o instante em que entrei naquele lugar. Sexualmente, fisicamente, mentalmente e verbalmente. Todos os dias, sem nenhuma razão. E não foram apenas os castigos e os abusos. Eles tiraram de nós as nossas famílias. Isso é imperdoável”, relata. Michael O’Brien era semianalfabeto quando deixou a Escola Industrial São José (St Joseph’s Industrial School), aos 16 anos. “Após oito anos de internato, minha mentalidade era a de uma criança. Eu não sabia nada sobre o mundo. Não sabia o que era mulher ou dinheiro. Não imaginava que poderia comprar

coisas. Não estava pronto para a vida, porque eles não faziam o que deveriam fazer, que era nos educar”. Mesmo com tantas lembranças ruins, o ex-interno se considera um dos sortudos. Ele serviu ao exército e aprendeu a ler sozinho, usando livros que encontrava nos quartéis e alojamentos. Mais tarde, trabalhou como funcionário público, virou político e conseguiu ser eleito prefeito da cidade de Clonmel, onde nasceu. O’Brien casou-se há 55 anos, tem quatro filhos, 11 netos e seis bisnetos. Mesmo com uma vida aparentemente bem estruturada, ele diz que não se sente uma pessoa normal e que não consegue passar um único dia sequer sem se lembrar dos maus tratos da infância. Punição e reparação Christopher Heaphy, de 65 anos, líder da associação Right of Place, também se dedica em tempo integral a buscar punição para os culpados e reparação às vítimas dos abusos. Ele perdeu a mãe quando tinha cinco anos de idade e foi enviado para a Escola Industrial Greenmount, em Cork, sul da Irlanda. Enquanto conta sobre o passado, com a voz calma e delicada, Christopher se emociona com os momentos que marcaram sua vida: “Vivíamos sob terror e medo todos os dias. Eu me reprimi. Saí de lá e não falava. Mal lia ou escrevia. Estava sempre amedrontado. Precisei superar muitas dificuldades na vida. Nunca contei à minha esposa sobre os abusos. Ela não entendia porquê eu dava pulos e chutes na cama durante a noite. A verdade é que eu ainda tinha a impressão de que aqueles homens vinham colocar a mão debaixo das minhas cobertas para me molestar enquanto eu dormia”. Hoje, o irlandês tem três filhos e foi abandonado pela primeira esposa por causa do comportamento estranho que tinha em casa. “Agradeço por ela ter ido embora e levado as crianças. Eu era um estranho

para eles. Na época, eu não podia dar o amor que eles precisavam. O triste é saber que hoje, depois de quase 30 anos, eu mal conheço meus filhos. Não pude vivenciar a alegria de vê-los crescendo”. Christopher se formou em engenharia aos 58 anos de idade, mas se acha muito velho para trabalhar na área. O governo irlandês indenizou os “sobreviventes” com uma reparação média de 63 mil euros. A Igreja não pagou nada. Instituições As escolas industriais na Irlanda eram dirigidas por ordens religiosas da Igreja Católica e recebiam ajuda financeira do governo para dar educação e ensinar uma profissão aos menores. Mas, na prática, segundo relatos dos ex-internos, pouco se ensinava nas salas de aula. O Estado era responsável, mas, de acordo com as associações de sobreviventes, os Ministérios da Educação, da Saúde e da Justiça jamais fiscalizaram as condições de ensino, de higiene ou de comportamento nos locais. O governo irlandês admitiu as falhas recentemente, ao indenizar as vítimas dos maus-tratos. Desde 1930, milhares de crianças passaram pelas cerca de 250 escolas industriais da Irlanda. O contato com a família era perdido, já que a visita dos parentes era desencorajada. Os internos só eram liberados ao completar 16 anos. Christopher Heaphy foi uma exceção. Aos 12 anos, o garoto foi espancado por um religioso e, durante uma rara visita, conseguiu mostrar ao pai as cicatrizes e machucados. “Libertado” O pai levou o caso à Justiça e o então ministro Jack Lynch assinou uma ordem liberando o garoto da instituição. A escola foi fechada três anos depois. Mais tarde, Lynch se tornou primeiro-ministro da Irlanda, mas pouco fez para mudar o que acontecia dentro dos muros de várias outras entidades para crianças.

Jornal irlandês denuncia fúria de vítimas com “desdém” de papa aos casos de abuso sexual

As escolas industriais foram fechadas nos anos de1990 e substituídas por instituições de ensino para menores delinquentes. Atualmente, há apenas cinco em funcionamento em todo o país. Os crimes dos quais membros da Igreja Católica são acusados de cometer contra crianças durante mais de 60 anos teriam acontecido também em orfanatos, reformatórios e em sacristias de igrejas. Ordens religiosas como os Christian Brothers (Irmãos Cristãos) chefiavam muitos desses locais. Segundo investigações, meninas irlandesas teriam sofrido menos abusos sexuais, mas eram frequentemente molestadas moralmente, humilhadas e espancadas em instituições dirigidas por freiras, como as da ordem Sisters of Mercy (Irmãs da Piedade). Há, também, relatos de trabalhos forçados em instituições femininas, como os Magdalene Asylums (Orfanatos de Madalena). As entidades que abrigavam mulheres consideradas socialmente degradadas ficaram famosas em outros países quando foram retratadas no cinema, em 2002, no filme “Em Nome de Deus” (The Magdalene Sisters), de Peter Mullan. O último abrigo da irmandade em Dublin foi fechado em 1996. Sofrimento como rotina De acordo com os relatos, nas escolas industriais, as crianças eram acordadas às 6h. Mesmo no inverno, elas usavam roupas curtas e, por vezes, não tinham sapatos. Antes da missa das 7h, todos tinham de tomar café da manhã: um pedaço de pão mergulhado num galão que misturava água e geleia. Em seguida, todos deveriam estudar até a hora do almoço. Na prática, crianças amedrontadas eram obrigadas a ficar sentadas em suas mesas por horas, sem falar e sem aprender nada. Se alguém era questionado e desse a resposta errada, tinha que ir à frente da sala, tirar a roupa e apanhar do “professor” diante de todos os colegas. No meio da “aula”, alguns padres apareciam para tirar vários alunos das classes. Os menores eram levados para o campo, onde trabalhavam recolhendo pedras, batatas e outros vegetais. “Não bastava trabalhar e obedecer. Os castigos eram severos e sem motivo. Nós éramos atirados em uma banheira de água fria. Depois tínhamos que tirar a roupa e subir uma escada, enquanto um adulto nos batia com uma vara. Não havia razão para aquilo. Eles eram sádicos”, diz Heaphy. O’Brien completa: “Nós éramos tirados da cama no meio da noite para apanhar com a vara. Eles batiam em qualquer parte do corpo. Por quê? Eu acho que aquilo dava a eles satisfação sexual”. Humilhação Ao chegar às escolas industriais, os garotos tinham o cabelo raspado e ganhavam um número. Os nomes eram esquecidos e aquela era a nova identidade deles. “O espancamento não era suficiente, eles queriam nos humilhar. Os padres nos chutavam enquanto andávamos pelos cor-

redores e diziam que não éramos ninguém, que nunca seríamos nada. Aquilo era um abuso mental. Nós tínhamos medo o tempo todo”, lembra o engenheiro. “Havia o abuso mental, o abuso psicológico, o abuso físico... mas nada se compara ao abuso sexual. Sujo, nojento, asqueroso. Um homem me violentou brutalmente no meu primeiro dia naquele lugar e depois me bateu, dizendo que eu era culpado pelo que tinha acontecido, que eu era o diabo trazendo tentação. O pior foi ver o mesmo homem me dar a comunhão na missa da manhã seguinte. Depois de me estuprar, ele colocou a hóstia em minha boca”, desabafa o exprefeito. Heaphy conta que viveu situações semelhantes: “Em um instante, eu tinha o padre me ensinando religião. No próximo minuto, ele estava arrancando as minhas roupas e estuprando meu pequeno corpo inocente. Isso causou problemas psicológicos que me perseguem durante toda a vida”. Quando confrontadas com evidencias de abuso sexual, as autoridades transferiam as crianças para outras instituições, onde elas poderiam ser abusadas novamente.

“Ela não entendia porquê eu dava pulos e chutes na cama durante a noite. A verdade é que eu ainda tinha a impressão de que aqueles homens vinham colocar a mão debaixo das minhas cobertas para me molestar enquanto eu dormia” Suicídio As lembranças e os pesadelos que perseguem as vítimas dos abusos muitas vezes conseguem acabar com a vida dessas pessoas. O’Brien confessa já ter tentado se matar. “Eu voltava dirigindo de Dublin para Clonmel e quis destruir o carro para acabar de vez com o sofrimento. Estava completamente desesperado, me sentindo como um peda-

ço de sujeira. Só não terminei com a dor naquele momento porque minha mulher estava ao meu lado e me convenceu a não fazer aquela besteira”, relata. Heaphy foi mais longe. Aos 29 anos, passou por um momento de desespero e cortou as veias sanguíneas do braço. A hemorragia não foi suficiente para matá-lo. “Eu fiz isso por causa dos crimes psicológicos. Eu continuo indo ao analista a cada duas semanas até hoje, mas nunca vou me livrar disso. Em um momento, estou alegre mas, no instante seguinte, algo me lembra o que aconteceu e a vida perde o sentido”. Outros ex-internos não tiveram a mesma sorte. Por questões de privacidade, as associações de vítimas trabalham para manter em sigilo as identidades, mas sabe-se que muitos chegaram a cometer suicídio após anos de tormento. Escândalo Os casos de violência contra internos das escolas industriais irlandesas ficaram amplamente conhecidos em maio de 2009, quando o juiz Sean Ryan divulgou um relatório de 2.600 páginas contendo o resultado de nove anos de trabalho da Comissão de Investigação de Abuso Infantil da Irlanda. A Comissão ouviu o testemunho de mais de 250 ex-internos e oficiais dessas instituições. O documento afirma que, durante 60 anos, da década de 1930 até o fechamento das escolas, nos anos de 1990, mais de dois mil meninos e meninas foram espancados, violentados e humilhados por padres e freiras. Irlandeses que atualmente vivem em países como Austrália e Estados Unidos voltaram para casa para contar sobre a infância de terror e intimidação. O relatório classifica como “endemia” a rotina de estupro e molestamento nas entidades gerenciadas pela Igreja Católica. Representantes da igreja conseguiram adiar a divulgação do texto por várias vezes e garantiram o direito de anonimato das pessoas citadas no documento como culpadas pelos abusos, mesmo em casos de indivíduos julgados e condenados por ataques físicos e sexuais contra crianças. A manobra revoltou as vítimas. “Eu lutei por dez anos da minha vida para tudo isso vir à tona. Eu fiquei exposto e expus minha família. E, agora, ninguém será punido. É muito triste”, lamenta Michael O’Brien. (Opera Mundi) Reprodução

O arcebispo irlandês Sean Brady


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A farsa da guerra contra as drogas MÉXICO A maioria dos assassinados não faz parte do combate ao narcotráfico; na verdade, se trata de execuções de população civil Jesús Villaseca/PLatitudes Press/CC

Rosario Ibarra HÁ ALGUNS DIAS, em um fórum, escutei as mães dos jovens massacrados impunemente no bairro popular Villas de Salvárcar, em Ciudad Juárez, e as lágrimas contidas diante dos poderosos caíram dos meus olhos, que já viram muitas atrocidades nesta vida. Mortes impunes. Mortes e, também – de novo –, o flagelo dos desaparecimentos forçados. Tudo acontece em meio a histórias enganosas, que tentam esconder o verdadeiro caráter da militarização do país. A farsa da versão de uma “guerra contra as drogas”. A maioria dos assassinados não faz parte de uma guerra contra as drogas, contra o tráfico, de enfrentamentos entre militares e traficantes. Na verdade, se trata de execuções de população civil, de jovens – homens e mulheres – e de pobres. Essa é a realidade da maioria das mortes denunciadas agora em Ciudad Juárez. Jovens executados pelas mãos de grupos paramilitares (milícias) ou militares uniformizados e usando máscaras negras. A outra versão enganosa é a dos “arrastões”. Novamente, os comandos com as mesmas características policiais e militares não realizam “detenções”, mas desaparecimentos forçados de pessoas, e isso numa escala muito maior do que sabíamos antes. Meras cifras A diferença em relação aos desaparecimentos dos anos 1970 é que as vítimas não são, agora, ativistas políticos e militantes, mas população civil fora de todo o conflito social, político ou de tráfico de drogas. Não apenas em Ciudad Juárez, mas em muitos estados do país, pois isso já aconteceu aos montes nos estados de Coahuila, Tamaulipas, Michoacán e Guerrero, onde se estende a militarização e seu rastro de estupros e abusos.

Tudo acontece em meio a histórias enganosas, que tentam esconder o verdadeiro caráter da militarização do país. A farsa da versão de uma “guerra contra as drogas” Esses casos são manejados como meras cifras, como os números de execuções, que permitem aos militares e os governantes espúrios dizerem que “estão ganhando a guerra” porque aumentou o número de mortes. Tanta violência oficial é disfarçada por uma guerra jamais declarada pelo povo do México – que não tomou essa decisão e jamais foi consultado para fazê-lo – e que levou a uma espiral de violência estrutural que causou perto de 20 mil execuções em apenas três anos de governo ilegítimo. Este destruiu a institucionalidade e acabou com qualquer legalidade, em uma estratégia que subordina qualquer direito da maioria ao interesse econômico da classe dominante e à injustificável “razão de Estado”, acima de e contra a cidadania. Violações Qualquer programa de “reconstituição do tecido social” tem de passar, primeiramente, pela volta do exército ao quartel e pela rejeição da impunidade para as violações dos direitos humanos cometidas pelas Forças Armadas.

Patrulha policial em Ciudad Juarez, no Estado de Chihuahua, próximo da fronteira com os EUA

Os exemplos têm aumentado consideravelmente nos últimos anos: tortura, abuso policial, prisões arbitrárias, execuções extrajudiciais, criminalização dos movimentos sociais, violência institucional, feminicídio, discriminação, exploração, miséria, fome, desemprego, impunidade, crescimento do número de presos políticos e desaparecidos etc. Os ataques recentes contra os acampamentos do Sindicato Mexicano de Eletricistas (SME), por hordas enfurecidas do modelo policial criado como um monstro e chamado de Polícia Federal Preventiva,já produzirão um saldo de trabalhadores espancados, baleados, presos e torturados. Eles sofreram ataques em suas casas, realizados nas sombras da noite, violando o direito de greve e eliminando o direito ao emprego, e a ter um sindicato para se organizar livremente. Reduzindo a nada as conquistas históricas da classe trabalhadora encarnadas há quase um século na Constituição, que foi a primeira a incorporar os direitos sociais e econômicos, direitos coletivos hoje em pleno retrocesso. Militarização O “calderonismo” [referência a Felipe Calderón, presidente do México] repete a cruel repressão dos governos do PRI [Partido Revolucionário Institucional], que enviou tropas para reprimir milhares de ferroviários em 1958, estudantes em 1968, vilas e comunidades rurais e indígenas nos anos 1970, em Guerrero e Chihuahua, e em 1994, no estado de Chiapas. Hoje, quase todo o país está militarizado, com dezenas de soldados nas ruas e praças, em uma guerra perdida contra as drogas que não foi decidida pelo povo do México, mas com a qual ele já teve que contribuir com milhares de mortos, feridos, mutilados e desaparecidos. Diante de tantas manifestações de injustiça, intolerância, abuso e desprezo dos donos do poder contra a grande maioria da população, vemos a tentativa de impôr, pela força, as políticas neoliberais de privatização que violam os direitos humanos e eliminam qualquer manifestação de democracia. Para conter a resistência aos seus planos, não hesitaram em criminalizar o protesto social, inventando delitos graves a serem imputados aos presos do movimento social e que consigam ocultar seu caráter de presos políticos e aumentar suas penas.

Criminalização Entre os exemplos, não existe apenas o abuso contra mulheres indígenas em Querétaro, acusadas pelo “sequestro” de agentes da Agência Federal de Investigação (AFI). Existe também a condenação imposta a Ignacio del Valle e a outras lideranças de Atenco, ou a Sara López e os outros presos em Campeche, também acusados de “retenção ilegal” dos funcionários diante dos quais eles protestavam. Desde a perspectiva do poder autoritário, leva-se em conta apenas os lucros gerados sobre a vida dos povos. Por isso, ao invés de construir avanços legislativos que visem proteger os

direitos humanos desde uma perspectiva integral, são introduzidas leis regressivas e obscurantistas que violam o direito das mulheres de decidir sobre os seus próprios corpos e que derrubam as conquistas dos trabalhadores e os direitos sociais estabelecidos nos contratos coletivos de trabalho e na Lei Federal do Trabalho. Em nosso ensanguentado país, é necessário recuperar a capacidade de criar sonhos coletivos, o que envolve a construção organizada da resistência e da solidariedade entre o povo trabalhador que, desde baixo, sempre produziu e criou toda a riqueza, e que, hoje, encontra-se cada vez mais afundado na miséria.

Governo legítimo Exigimos compromisso e determinação de lutar para mudar essa situação. Que ninguém fique indiferente perante o sofrimento de tanta gente. Um Estado que não consegue gerar emprego, saúde, educação, habitação, alegria e felicidade entre os seus habitantes, não merece continuar existindo. E as pessoas, em todos os momentos e, especialmente, depois de termos atingido os limites do horror, têm o direito inalienável de escolher o governo que merecem e revogar o mandato daqueles que violaram o mandato constitucional de defender o bem comum e que favoreceram seus interesses particulares, como esse governo ilegítimo tem feito. A real unidade de todos os movimentos contra a repressão e pela defesa dos direitos humanos é urgente. Qualquer movimento, por legítimas que sejam as suas pretensões individuais, deve também incluir essas reivindicações como condição necessária para o sucesso e a continuidade da luta. Também é verdade que, face à gravidade da situação – o fato de que o “calderonismo” flerte não apenas com um poder espúrio, mas também com um estado policial similar ao de um golpe militar – e, em meio à crescente decomposição social, a necessidade da saída desse governo, produto de uma fraude eleitoral, é colocada novamente para setores cada vez mais amplos da população. São eles ou nós, como dizem as vozes de milhares de pessoas nas ruas. E, sem eles e elas nas ruas, não há direitos humanos possíveis. (Rebelión) Rosario Ibarra é ativista mexicana, fundadora do Comitê Eureka e senadora pelo Partido do Trabalho (PT) Tradução: César Ortega


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américa latina Federico Saracini/Ucodep/CC

Uma cifra ou uma realidade histórica? HAITI O país tem uma dívida externa superior a 1,3 bilhão de dólares, contraída há décadas e cobrada, mensalmente, pelos mesmos países que vão coordenar o plano de reconstrução José Luis Patrola QUEM JÁ PERCORREU o território haitiano sabe que o vudu é uma prática religiosa presente em grande parte do país. Sobretudo entre os camponeses, é muito forte. Como se trata de uma cultura religiosa, existem grandes mistérios sobre o que realmente ocorre nas cerimônias e celebrações. Entretanto, durante três anos e meio naquelas terras, consegui perceber que, como religião, o vudu tem suas vantagens e desvantagens no que se refere à liberação e formação da consciência dos haitianos. Como qualquer outra religião, ele não usa, necessariamente, a mentira como sua prática. São as pessoas que creem voluntariamente no que se diz ou no que se faz. Os números apresentados na reunião de Nova York [realizada em 31 de março] como base do Plano de Reconstrução do Haiti não são mentirosos. Foi anunciada uma quantia de 5,3 bilhões de dólares. Os Estados Unidos e a União Europeia se apresentam como os mais importantes doadores. O presidente haitiano, René García Preval, ouvia com um pouco de desconfiança. Ele sabe que os números não mentem, mas enganam. Ocupação militar

Os números apresentados por Ban Ki-Moon são verdadeiros e reais. A maioria dos presentes na reunião se calou frente às belas cifras e perspectivas de reconstrução de um país já em ruínas muito tempo antes do terremoto de 12 de janeiro. O Banco Mundial e o FMI foram apresentados como grandes coordenadores do grande orçamento que será obtido com a ajuda importante de Bill Clinton e George W. Bush. A quantia de 5,3 bilhões de dólares não mente, mas oculta outro número tão importante quanto ela. A maioria dos participantes da reunião de Nova York se esqueceu que

a ocupação militar que se estabeleceu no Haiti depois de 2004 demandou mais de 3,6 bilhões de dólares para se sustentar. Ao mesmo tempo, os belos números apresentados não revelam o cálculo completo. Os 13 mil soldados estadunidenses enviados ao Haiti depois do terremoto consomem um orçamento de 468 milhões de dólares por ano, somente na folha de pagamento. O aumento de 3.500 efetivos na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), após o terremoto, aumentou seu orçamento em 126 milhões de dólares anuais, somente em salário. Dívida externa

Por outro lado, os anunciantes do plano de reconstrução não comentaram que o Haiti tem uma dívida externa superior a 1,3 bilhão de dólares, contraída há décadas e cobrada, mensalmente, pelos mesmos países que vão coordenar o plano de ajuda. Um soldado raso enviado para realizar serviços militares no Haiti, segundo eles mesmos, ganha três mil dólares mensais de salário. Já o salário mínimo haitiano é de 60 dólares. Um soldado que sai de qualquer parte do mundo recebe, por mês, o equivalente a quatro anos de trabalho de um haitiano que vive com um salário mínimo. Isso significa que o total pago a um soldado durante um ano, 36 mil dólares, é igual a 50 anos de trabalho de um haitiano. O pequeno cálculo realizado no parágrafo anterior comprova que os números podem enganar. A maioria dos participantes da reunião em Nova York não comentou sobre a forma de pagamento desse novo empréstimo que beneficiará o Haiti. Nem sequer o próprio René Preval. Quem vai pagar as diversas empresas estadunidenses, articuladas por George W. Bush, que já estão contratadas e alocadas para atuar em distintas zonas do país destruído? Não há uma empresa que traba-

Acampamento para desabrigados erguido em Porto Príncipe, capital do Haiti

A maioria dos participantes da reunião de Nova York se esqueceu que a ocupação militar que se estabeleceu no Haiti depois de 2004 demandou mais de 3,6 bilhões de dólares para se sustentar lhe sem ser bem remunerada. Empréstimo é empréstimo e o Haiti terá que pagar, apesar de estar pagando, já faz muito tempo, uma dívida que não é sua. Ajustes econômicos

Os entes encarregados da reconstrução do Haiti são os mesmos que impuseram os maiores ajustes à economia haitiana nos últimos anos, que golpearam duramente todos os serviços públicos, como saúde, construção de estradas e escolas. Os mesmos que arrasaram a economia no campo, onde vivem 70% da popula-

ção, com os acordos de livre comércio que estão aí. Aqueles que, mensalmente, cobram uma dívida vergonhosa, agora voltam ao cenário mundial como os heróis de uma batalha contra a pobreza. Mas foram eles que levaram a pobreza ao Haiti. A reunião em Nova York apresentou números ao mundo como se tudo fosse um cálculo matemático exato, sem risco de equívoco. Cuba e Venezuela têm sido as vozes contrárias à arbitrariedade da matemática dos números reais, porém enganosos. 5,3 bilhões de dó-

lares são uma mentira disfarçada com a suposta obviedade das ciências exatas. Estão golpeando o Haiti com a cruel espada financeira. Estão golpeando o mundo ao afirmar que as cifras são exatas. Que os espíritos de Capois La Mort, Toussaint Louverture, Alexander Petion, Henri Christophe e Jean Jacques Dessalines despertem a consciência internacional e, sobretudo, do povo haitiano, contra tanta crueldade e mentira. Os números não mentem, mas, às vezes, enganam. José Luis Patrola é professor de história, membro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e coordenador da brigada de cooperação entre a Via Campesina Brasil e organizações camponesas do Haiti. Tradução: Dafne Melo

cultura

O espírito cristão do maior espírita brasileiro CINEMA O que fez de Chico Xavier uma espécie de “santo em vida”, mais popular, inclusive, do que a própria doutrina que pregava, foi seu sentimento de doação ao próximo Cristiano Navarro da Redação AO COMPLETAR 100 anos, Francisco Cândido Xavier, responsável pela publicação de 451 livros, tornou-se o nome da mais bem sucedida estreia cinematográfica de um filme brasileiro. Na primeira semana de abril, mais de 590 mil pessoas foram às salas de cinema para assistir a “Chico Xavier”, do diretor Daniel Filho. Anteriormente, o recorde para a primeira semana pertencia a “Se Eu Fosse Você 2”, do mesmo diretor, visto por 570 mil espectadores. Inspirado no livro “As Vidas de Chico Xavier” (2003), do jornalista Marcel Souto Maior, o filme é mais um entre as dezenas de documentários e ficções cinebiográficas lançadas nos últimos anos com elenco do meio televisivo conhecido do grande público.

Além do livro, o fio condutor do roteiro está baseado em duas entrevistas concedidas por Chico Xavier, entre 1971 e 1972, ao programa Pinga Fogo, da extinta TV Tupi. Com grande audiência na época, era a primeira vez em que o entrevistado não fazia parte do mundo político. Nas entrevistas, Chico Xavier responde sobre variados assuntos, sempre com argumentações que convencem o público e os entrevistadores. Ao fim do filme, durante os créditos, é possível ver imagens reais dos programas. O sucesso do filme não está baseado apenas no orçamento de R$ 12 milhões – boa parte investida em marketing –, em uma massiva distribuição feita em 377 salas ou nas atuações convincentes dos atores Nelson Xavier, Ângelo Antônio e Matheus Costa, que representam o espírita em três fases diferentes de sua vida. O sucesso de Chico Xavier está no personagem em si. Uma vida ao outro

Nascido no dia 2 de abril de 1910, no município de Pedro Leopoldo, Minas Gerais, logo aos sete anos de idade manifestava mediunidade, afirmando poder ouvir e conversar com espíritos, especialmente com sua mãe, morta quando ele tinha cinco anos. Em um ambiente fortemente religioso, o preconceito e o medo que sentia e provocava nas pessoas marcaram a infância cheia de dificuldades do pequeno órfão. As agressões, preconceitos e ameaças o seguiriam para o resto da vi-

Divulgação

O ator Ângelo Antônio em cena do filme Chico Xavier

Além do livro, o fio condutor do roteiro está baseado em duas entrevistas concedidas por Chico Xavier, entre 1971 e 1972, ao programa Pinga Fogo da extinta TV Tupi da. No entanto, durante a juventude, ao tomar contato com a doutrina espírita Kardecista, Chico Xavier passou a interpretar o dom mediúnico como uma missão divina, encaminhada por seu espírito guia, Emmanuel, e, assim, começou a atender, em sua própria casa, pessoas com diferentes problemas, vindas

de diversas regiões. Em 1959, depois de conflitos com moradores de sua cidade e com sua própria família – devido à atração de multidões que vinham ao seu encontro – Xavier muda-se para Uberaba, onde fundou uma novo centro espírita, onde trabalhou, atendendo, até a sua morte, no ano de 2002.

A palavra

Outra missão que Chico Xavier havia recebido de seu guia seria a de divulgar a doutrina espírita por meio de livros psicografados de diferentes espíritos. Tais obras foram traduzidas para dezenas de idiomas e, somente em português, foram vendidos mais de 50 milhões de exemplares. O primeiro título, “Parnaso de Além-Túmulo”, foi publicado em 1932. Trata-se de uma coletânea de 256 poemas atribuídos a poetas mortos brasileiros e portugueses, como Antero de Quental, João de Deus, Olavo Bilac, Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos. O médium jamais assumiu a autoria dos textos escritos; por isso, não assumiu o título de autor mais vendido. Todo dinheiro arrecadado com as vendas foi e é aplicado em obras de caridade de centros espíritas. O que fez de Chico Xavier uma espécie de “santo em vida”, mais popular, inclusive, do que a própria doutrina que pregava, não foram seus poderes de se comunicar com os mortos ou sua capacidade de escrever centenas de livros, mas seu espírito cristão de doação ao próximo. A palavra de Chico Xavier popularizou o Kardecismo, transformando o Brasil, segundo a Federação Espírita Brasileira, no país com o maior número de seguidores e simpatizantes do espiritismo do mundo: cerca de 20 milhões, dois terços do total de 30 milhões espalhados por todo o planeta.


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