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Ano 1 • Número 38 • São Paulo • De 20 a 26 de novembro de 2003

R$ 2,00

Circulação Nacional

Marcha chega a Brasília e exige reforma Joedson Alves/AE

Sem-terra cobram de Lula a implantação do Plano Nacional de Reforma Agrária, que prevê assentar 1 milhão de famílias

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epresentantes dos movimentos que integram o Fórum Nacional pela Reforma Agrária estão em Brasília para garantir a assinatura, sem alterações, do Plano Nacional de Reforma Agrária, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O plano foi encomendado pelo governo federal e prevê o assentamento de 1 milhão de famílias, em quatro anos. Depois da marchar 130 quilômetros, de Goiânia até a capital federal, os trabalhadores rurais não abrem mão das metas do projeto, que prevê a geração de 3 milhões de empregos e elevação da renda familiar para 3,5 salários mínimos. Págs. 2 e 7

Com o PT, continua o desmonte

Dois mil trabalhadores rurais, vindos de vários Estados do país, marcharam de Goiânia até Brasília e esperam ser recebidos em audiência pelo presidente Lula

Enquanto os representantes de 34 países – todas as nações americanas, menos Cuba – participam, em Miami (EUA), da VIII Reunião Ministerial da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), as organizações populares fazem manifestações locais e planejam, para o dia 21, uma jornada continental contra a Alca. As negociações se concentram, a princípio, na proposta chamada de “Alca a

la carte”, redigida em conjunto por Brasil e Estados Unidos e, segundo a qual, se estabelecem normas mínimas de comércio, mas ficam excluídos temas polêmicos como subsídios agrícolas e compras governamentais. Alguns países, como Canadá, Chile e México, defendem um acordo mais amplo. Mas os movimentos sociais condenam qualquer acordo. Pág. 9

Robert Sullivan/AFP

Nova rodada de resistência à Alca

Jogo de palavras o governo falar em “herança maldita”, pois a atual equipe econômica continua com as privatizações iniciadas em 1996. Dia 10, foi publicado o edital de privatização do Banco do Estado do Maranhão, cujo roteiro deve ser o de sempre: “doar” o banco, exigindo 10% do preço mínimo em dinheiro vivo, 90% em títulos podres. Pág 5

Outra Europa é possível Sob o lema “Outra Europa é possível, outro mundo é possível”, o movimento “altermundista” do Fórum Social Europeu manteve acesa a resistência à militarização e ao neoliberalismo na União Européia. Inspira-

do nas manifestações deste ano contra a invasão estadunidense ao Iraque, dia 20 de março de 2004 será o dia mundial de luta contra a guerra “preventiva ao terror” de George W. Bush. Pág. 11

E mais:

Momento de luta e mudanças para movimento negro

Projeto capacita agricultor a usar sementes limpas

Dia 20, o Brasil celebra o Dia Nacional da Consciência Negra. A data, uma conquista dos movimentos negros, antes de inspirar comemorações, reflete um momento de luta para os afrobrasileiros. Segundo o deputado federal Luiz Alberto (PT-BA), as desigualdades entre negros e brancos só têm aumentado e, só a pressão popular pode dar força ao governo para fazer as mudanças necessárias. Nesse sentido, a eleição de Lula representou uma vitória. O governo prevê o anúncio, dia 20, de um pacote de políticas, como a reserva de vagas para negros em universidades públicas e a reformulação de ações voltadas para as comunidades quilombolas. Pág. 6

Pág. 3

VIOLÊNCIA – No Brasil, Irene Khan, da Anistia Internacional, detectou diferenças entre discurso e realidade. Foram várias denúncias de abuso policial, tortura e mortes. Pág. 6 ÁFRICA – As eleições municipais em Moçambique, dia 19, podem ser vistas como uma prévia do pleito de 2004, quando a população optará pela situação ou pela direita, representada por um grupo guerrilheiro anticomunista. Pág. 12 MAIORIDADE PENAL – Um crime violento, praticado por um adolescente, reacendeu o debate sobre a redução da idade penal. Veja na Seção Debate. Pág.14

Protestos contra a Alca encontram seu ponto de convergência em Miami, onde milhares de manifestantes são esperados

MP deixa livre o caminho para transgênicos Pág. 3

No palco, a arte dos excluídos e dos oprimidos Pág. 16


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De 20 a 26 de novembro de 2003

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, 5555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 55 Natália Forcat, Nathan, Ohi • Diretor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistentes de redação: Bruno Fiuza, Maíra Kubík Mano e 55 Tatiana Azevedo 55 Programação: André de Castro Zorzo 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Momento histórico da reforma agrária

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epois de dez dias caminhando desde a cidade de Goiânia (GO), chegaram a Brasília cerca de 2 mil militantes do campo vinculados ao MST, MTL, FetagContag, CPT e outras entidades. Na Marcha dos Movimentos Sociais do Campo, organizada pelas mais de 60 entidades do Fórum Nacional de Reforma Agrária, pela primeira vez, os marchantes estão fazendo tamanho sacrifício apenas para exigir que o governo cumpra a promessa de apresentar, à sociedade, o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Como todos sabem, o governo Lula priorizou neste seu primeiro ano as reformas da Previdência e tributária, e construiu toda uma aliança no Congresso para aprová-las até o final do ano. Mas fez muito pouco na preparação do PNRA. Um plano de reforma agrária é muito importante, não só porque é uma determinação do Estatuto da Terra, ou promessa de campanha, mas sobretudo porque fixa as diretrizes que o governo precisa assumir, do ponto de vista econômico, orçamentário, político e administrativo, ao longo dos próximos três anos. Há também uma polêmica sobre qual seria a meta de assentamentos do governo. Nos documentos histó-

ricos do PT, desde as propostas elaboradas em 89, 94 e 98, com o saudoso José Gomes da Silva, sempre se trabalhou com metas ao redor de 200 mil familias por ano. Mas, mais do que metas estatísticas, estamos diante de uma nova oportunidade histórica de realizar a reforma agrária em nosso país. Perdemos uma primeira chance quando da libertação dos escravos, em que conquistaram a liberdade, mas as elites impediram seu acesso a terra por meio de uma lei contra a reforma agrária, a Lei 601, de 1850. Depois, com a implantação do modelo de industrialização, na década de 30, de novo perdemos uma oportunidade histórica, quando as elites industriais preferiram manter sua aliança histórica com as oligarquias rurais e mantiveram a grande propriedade intocável. Mais tarde, na década de 60, perdemos nova chance, quando da grave crise que o modelo de industrialização enfrentou, e o então ministro do Planejamento, Celso Furtado, defendeu que a única maneira de desenvolver o País e sair do subdesenvolvimento era desenvolver a indústria para o mercado interno e promover a reforma agrária. A resposta das elites foi um golpe militar.

Bem, agora, estamos diante de nova oportunidade, pois temos um modelo neoliberal que entrou em crise, que gerou enormes problemas sociais, em especial de desemprego, e temos um governo popular, eleito para fazer as mudanças. E fazer mudanças, significa adotar políticas econômicas que enfrentem o modelo neoliberal, reorganizem a economia para o mercado interno, defendam a soberania nacional, distribuam renda e gerem trabalho para nosso povo. Esse programa de mudanças, anunciado durante a campanha, é símbolo de toda a trajetória histórica do PT e do presidente Lula, somente se viabilizará com a reforma agrária. Portanto, agora a reforma agrária não é apenas uma demanda dos movimentos camponeses. Não se trata de políticas sociais compensatórias, como julgou FHC, e como defendem alguns dentro do atual governo. Agora, a democratização da propriedade da terra, o combate ao latifúndio, é uma necessidade para construir um novo modelo econômico, centrado no mercado interno e na distribuição de renda, e que ao mesmo tempo resolva o problema do desemprego e da pobreza. OHI

FALA ZÉ

CARTAS DOS LEITORES SAUDAÇÕES Brasil de Fato é uma publicação redondinha. Seus textos são curtos, objetivos e muito lúcidos. Logo de cara o projeto fez a minha cabeça. Tudo que está no semanário bate com a minha forma de pensar, como encaro esse mundão aí fora. É o tipo de publicação que dá para contar nos dedos – de uma só mão. Felizmente, vocês não estão sozinhos. Mas dá para perceber que todos que seguem o caminho da verdade, da justiça e da defesa das classes populares são penalizados, sofrem horrores com a discriminação de anunciantes, com campanhas difamatórias e com dificuldades de distribuição. Não deve ser um caminho fácil, porém, a recompensa é a ressonância do outro lado, na qual o público alvo se sente satisfeito com o resultado. Escrevo só para incentivar a continuidade desse valoroso projeto. Não esmoreçam. Quando leio sobre a necessidade de uma injeção de ânimo, em novas campanhas de fortalecimento, sei que o caminho deve ser por aí mesmo, pois não vejo mais o semanário nas bancas aqui de Bauru. Henrique Perazzi de Aquino Bauru (SP) Vocês estão cada dia melhor. Enfim conseguiremos ter um informativo comprometido com o povo brasileiro. Parabéns. Continuem assim, não dando espaço para as safadezas. Altair Corrêa Aracaju (SE) RELEMBRANDO Sem falar no ocorrido desde o início da implantação da República até 1950, a verdade é que temos vivido em um verdadeiro império de escândalos,

em que o dinheiro público tem parado sistematicamente nos bolsos e cofres dos ladrões de sempre, pessoas ou países. Rouba-se neste imenso Brasil de riquezas imensuráveis sem que medidas sérias sejam tomadas. Com isso, a impunidade passou a ser incluída na Constituição federal, a qual, diga-se de passagem, de tanto ser emendada acabará sendo definitivamente rasgada. Não há poder que, de uma forma ou de outra, não esteja envolvido com o ilícito, da esfera criminal que for. Sabe-se, por exemplo, que o crime organizado vive e prospera graças ao poder corrupto que tem e sabe usar tão bem. Porém, o que poucos sabem: existe outro tipo de crime bem pior, que pode ser denominado de superorganizado, e que, por envolver governo, empresas e até países, desenvolve-se sorrateira e impunemente à sombra da própria lei, que os protege ou é simplesmente comprada para tal. O que acabei de mencionar está representado pelo protecionismo e influência mútua de uns e outros nas seguintes roubalheiras (não necessariamente em ordem cronológica ou de importância) que cataloguei mais ou menos de 1950 para cá: construção de Brasília, construção de Itaipu, empreitadas, usineiros, ruralistas, latifundiários, Sudam, Sudene, montepios e títulos de capitalização, privatizações (“privataria”), BNDES, Proer, bancos Econômico e Nacional (..). Eis aí a grande maioria dos escândalos brasileiros das últimas décadas que ficou ou ficará impune, mesmo com CPIs, abertas e solenemente arquivadas. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS)

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CRÔNICA

Como ser canibal na era globalizada Luiz Ricardo Leitão Quem visita um shopping poderá talvez pensar que nós vivemos em um país colonizado por britânicos ou estadunidenses. Afinal de contas, escrever sale, com vergonha da nossa velha “liquidação”, é uma aberração. Substituir a entrega (domiciliar) por delivery é outro absurdo. Por que essa gente não se muda de vez para Miami, com o Collor e o Nicolau? O português brasileiro possui elementos árabes, africanos, europeus e nativos (tupi-guarani), mas quase sempre adaptados ao nosso sistema lingüístico. Os africanos criaram o samba, ao passo que os poderosos ingleses trouxeram o futebol. Será que algum gramático alucinado exigirá que o povo fale ludopédio? O único critério que um lingüista admite é o da canibalização popular. Há vocábulos importados que se adaptam muito bem à nossa língua materna. Ninguém tem nada contra o romântico abajur (do francês abatjour, quebra-luz). Tampouco o reggae jamaicano ou o rock inglês nos molestam. O povo é mesmo antropofágico... Quando o primeiro peão nordestino viu o que estava escrito na porta do clube, em inglês, imagi-

nando o arrasta-pé arretado que os donos da fábrica promoveriam no sábado à noite, não teve dúvida: naquele momento, o for all da placa já tinha virado definitivamente forró. Eu creio que em toda a América Latina somente no Brasil seja comum a adoção integral das prosódias e léxicos importados. Os hispânicos quase sempre adaptam os termos estrangeiros: até um hambúrguer se torna uma hamburguesa! Entre nós, até o hotel Meridien, no Leme, no Rio, não é mais oxítono (Meridien), mas sim um falso paroxítono (Meridien), ou seja, o que era uma palavra francesa agora virou inglês... Enquanto isso, o governo francês decreta a nacionalização obrigatória de qualquer expressão estrangeira. Claro que é um exagero. Essa medida oficial somente atesta o extremo etnocentrismo dos netos de Asterix. A História nos ensina que até os impérios costumam sucumbir à força espiritual dos povos dominados. Que o digam os romanos frente à cultura grega. E que se cuidem os ianques com os chicanos na Flórida, na Califórnia e em diversos outros Estados do Império atual. O problema é que no Brasil tudo é entregue de mão beijada ao capital

estrangeiro: as telecomunicações, as empresas públicas de água, luz e gás, as minas estatais, além das mulatas e dos gênios da pelota. Por que essa gente tem vergonha do nosso português brasileiro cantado por Elis, Chico, Milton e milhares de artistas talentosos? Confesso que cresci ouvindo músicos de diversos países: John Lennon, Janis Joplin, Violeta Parra, Edith Piaf... Contudo, quando estou em um churrasco com os amigos e tomo uma cerveja bem gelada, prefiro Noel e Martinho, os mestres do samba. São minhas raízes. “Se queres ser universal, canta a tua aldeia”, escreveu o romancista russo Máximo Gorki. Traduzindo para o Novo Mundo, foi o que disse o mestre Simón Rodríguez ao seu discípulo Bolívar: “Na América Latina, ou inventamos, ou fracassamos!” Será que chegou a hora de essa gente bronzeada mostrar seu valor? Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana e Caribenha pela Universidade de La Habana (Cuba), é autor da Gramática Crítica: o culto e o coloquial no português brasileiro (Oficina do Autor Editora).

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De 20 a 26 de novembro de 2003

NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR

MP prepara novo fato consumado O

s ruralistas não fizeram muito esforço para ter seus interesses atendidos na votação simbólica (os deputados não votaram nominalmente) da Medida Provisória 131, que libera o cultivo de soja transgênica este ano. O parecer do relator, deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS), estende o prazo de comercialização da safra transgênica, libera a reprodução das sementes modificadas e prevê um registro provisório para essas variedades. Mais que isso, porém, a MP preparara um fato consumado para 2004, quando a pressão pela liberação da soja modificada será fortalecida diante da existência das sementes transgênicas. A decisão, segundo Pimenta, garante o plantio de sementes transgênicas nacionais caso o projeto de lei (PL) de biossegurança (em tramitação) libere o seu cultivo. No entanto, a inclusão desse artigo foi duramente criticada dia 12 pela ministra Marina Silva, que afirmou estar em curso uma proposta para disseminar a reprodução ilegal e o plantio de sementes geneticamente modificadas no país. “A emenda destoa completamente do projeto de medida provisória. Antes de sancionar qualquer coisa, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) vai levar suas considerações para a Casa Civil e avaliar Agrobusiness – Poo prejuízo que lítica agrícola que pode ser cautem como principal objetivo atender às sado ao projeto exportações. Esse de biosseguranmodelo prioriza as ça”, afirma a monoculturas, como ministra. O sea da soja, reduz a oferta de trabalho cretário de Biono campo e comprodiversidade do mete a diversidade MMA, João de produção de alimentos. Paulo Capobianco, reiterou: Royalties – Co“Essa liberação brança de taxa pelo uso de tecnologia é fundamenpatenteada por uma tada na presunindústria. No caso ção de que a da soja, a técnica soja transgênide transgenia é de propriedade da Mon- ca será permitisanto. da. Mante-mos a nossa posição e, portanto, defendemos a supressão desse item”. O governo é criticado também pelo deputado estadual João Alfredo (PT-CE), que denuncia uma “manobra” do presidente da Câmara, João Paulo Cunha, para manter a votação simbólica, evitando constrangimentos com a sociedade e com os movimentos sociais que se manifestaram durante a votação. “Mais de 40 parlamentares contrários à medida fizeram questão de pronunciar seu voto. Claramente, há uma disputa dentro do governo. Quem lê a MP e o PL acredita que existem dois governos. Na medida, a lógica é a liberação; no projeto, prevalece a precaução”, avalia o deputado. Alfredo não poupa críticas ao ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues: “Ele é o grande responsável, por não ter feito a fiscalização durante todo o ano e por ter incentivado a produção transgênica”.

MEA CULPA Apesar das críticas, Pimenta afirma que a MP “tem o intuito de proteger os agricultores”, e que o artigo que trata da reprodução das sementes seria votado em destaque. “Incorporei a emenda no texto para tentar minimizar seus efeitos. O pedido pretendia a liberação geral”, diz. Porém, na avaliação dos agricultores, a medida é um sinal de ameaça e não de proteção. Manoel dos Santos, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), afirma que a MP ameaça o pequeno produtor – consciente ou não, ele terá de arcar com o pagamento de royalties –, e a soberania alimentar. “Os países têm

O presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, e os deputados Inocêncio Oliveira e Paulo Pimenta, durante a votação da MP dos transgênicos

direito de produzir suas sementes e garantir suas variedades”, afirma Santos. Para ele, mais do que decisões ideológicas, deve-se pesar as questões políticas, técnicas, ambientais e de sustentabilidade.

COFRE DE OURO Para o procurador da República Aurélio Rios, a MP é inconstitucional e, por se tratar de sementes contrabandeadas, a Monsanto não tem o direito de cobrar royalties sobre as sementes. No entanto, as pressões da Monsanto têm conquistado ampla defesa para seus interesses no Congresso, em detrimento das necessidades da população. “Não é à toa que o ministro da Agricultura tem sido chamado de ministro RR (apelido da soja Roundup Ready). Ele tem defendido a Monsanto e o agrobusiness”, avalia Lavínia Pessanha, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O fato é que a Lei de cultivares (nº 9456), criada durante o governo Fernando Henrique Cardoso, abre o precedente para um impasse jurídico entre a Monsanto e o governo. A legislação protege contra

André Kishimoto/ Greenpeace

Claudia Jardim da Redação

Wilson Dias/ABR

Ao liberar a reprodução das sementes, medida provisória prepara terreno para autorização da safra transgênica

assumir um risco político ao assinar a MP 131 para resolver de vez a questão” e enfatiza: “Não acreditem que essa lei foi elaborada só para agradar a ministra (Marina Silva). A divulgação dessa idéia faz parte da estratégia daqueles que querem modificar o projeto passando a imagem de que o governo não está nem aí”, diz o secretário. Para analisar o projeto de lei foi criada uma comissão especial, formada essencialmente por ruralistas, e o relator será o líder do governo Greenpeace devolve produtos trangênicos a supermercado de Belo Horizonte (MG) na Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP). o uso comercial da tecnologia sem transgênica. “A Monsanto vai enPara que a nova lei atenda aos autorização do titular dos direitos, trar na justiça para tentar ganhar interesses nacionais, João Alfredo desde que devidamente patente- o que eles ainda não ganharam. O convoca a sociedade para decidir o ados, o que não é o caso. Ainda TAC é um instrumento forte para futuro dos transgênicos no país: “É assim, na avaliação do deputado ‘procurar direitos’. Mas se for co- preciso que os movimentos sociais Alfredo, a assinatura do termo brada, a ação será educativa para estejam cada vez mais próximos de compromisso e ajustamento os agricultores”, avalia. dos parlamentares para decidir essa de conduta (TAC) pode ser um Apesar das comemorações dos grande batalha. Para que o PL não mecanismo de rastreamento dos ruralistas, João Paulo Capobianco seja desfigurado, será preciso muita produtores que cultivarem soja advertiu que “o governo decidiu mobilização social”.

Sem-terra recuperam sementes puras Edilene Lopes de Belo Horizonte (MG) Em Minas Gerais, trabalhadores rurais assentados e acampados estão criando casas e campos de sementes. O objetivo do projeto é recuperar variedades escassas e combater o uso e a expansão das sementes híbridas (que sofreram cruzamento dentro da espécie) e transgênicas (geneticamente modificadas). Os 63 assentamentos e acampamentos envolvidos no cultivo das sementes nativas (variedades locais) e crioulas (variedades locais adaptadas) integram o Programa de Segurança Alimentar (PSA), desenvolvido pela Cáritas em parceria com o Instituto de Terras do Estado (Iter-MG). Desde 2000, o PSA viabiliza profissionais especializados e recursos financeiros para a produção auto-sustentável de mais de 4 mil famílias que não receberam créditos para reforma agrária. Segundo Frederico Santana Rick, assessor da Cáritas e um dos coordenadores do programa, o projeto surgiu da necessidade dos próprios agricultores, que tinham

dificuldade em encontrar sementes que não dependessem da enorme quantidade de adubos do mercado. Junto da necessidade de diminuir gastos surgiram discussões sobre a importância da autonomia dos lavradores e sobre os malefícios provocados pelo uso de sementes transgênicas e híbridas.

ECONOMIA E CULTURA O trabalho ainda está em fase inicial. Os agricultores resgatam as sementes disponíveis por região, e ensaios de variedades e campos de reprodução estão sendo implantados nas áreas envolvidas, para definir o que cultivar em cada localidade. Carlos Dayrell, coordenador regional do parceiro Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA), destaca a estratégia de estimular as comunidades a dominarem a tecnologia de produção e melhoria de sementes. “A proposta é iniciar um amplo trabalho de identificação de variedades nativas que ainda possam existir com trabalhadores rurais”, afirma. Além de ser uma forma original e viável de preservar variedades, a recuperação e o plantio das semen-

tes puras trazem vantagens econômicas aos trabalhadores rurais, que não têm de comprar sementes anualmente e ganham em produtividade. “Ano após ano, as sementes irão sofrer novas combinações genéticas, produzindo plantas totalmente diferentes umas das outras e provocando a queda da produtividade, até chegar a zero”, explica Ciro Eduardo Correia, agrônomo da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab).

ALTA PRODUTIVIDADE Na Casa de Sementes, o agricultor adquire gratuitamente a variedade que vai plantar. Após a colheita, tem a responsabilidade de devolver uma quantidade maior – geralmente o dobro – de sementes. Existe ainda o benefício de o trabalhador rural dispensar o uso de insumos químicos, prejudiciais à qualidade do alimento e ao meio ambiente. Rick conta que, em uma das experiências feitas pelo PSA, em área de um hectare os agricultores conseguiram produzir sementes utilizadas por 20 famílias. O custo da ação ficou em cerca de R$ 300, incluindo o gasto com cursos de formação pa-

ra agricultores e técnicos. “O custo para se conquistar autonomia é impressionantemente baixo”, constata. Correia acrescenta: com o uso de crioulas a produtividade é superior à obtida com sementes híbridas ou adquiridas no mercado. “Trata-se de cultivar sementes de variedades adaptadas à realidade local, tipo de solo, clima, períodos de seca etc, inclusive aos costumes culturais dos agricultores”, diz Correia. Com ele concorda Rick, ao lembrar que muitas variedades quase foram perdidas por causa da imposição dos híbridos, a partir da expansão das transnacionais do setor agroquímico, no final dos anos 70. Conforme o coordenador do PSA, a ação não passou de “um crime ecológico, por perda da diversidade e da variabilidade genética”. Correia diz que, em três anos, a iniciativa de Minas deve tornar-se realidade em vários Estados. A proposta de criação de casas de sementes baseadas no manejo da agrobiodiversidade chegou ao conhecimento de vários movimentos sociais no 3º Fórum Social Mundial em Porto Alegre, por meio da Via Campesina, e foi muito bem aceita.


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De 20 a 26 de novembro de 2003

NACIONAL CONJUNTURA

As vendas do comércio ainda patinam Lauro Jardim de São Paulo (SP)

QUEDA MENOR Refletindo uma queda de 14,6% no rendimento médio recebido em setembro, na comparação com idêntico período do ano passado, as vendas do comércio em todo o país registraram baixa de 2,7% de acordo com pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Até aqui, foram 10

Almeida Rocha/Folha Imagem

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economia deve receber, entre novembro e dezembro, uma poderosa injeção de recursos, estimada em R$ 25,1 bilhões, relativos ao pagamento do restante do 13º salário devido a quase 50 milhões de empregados com carteira assinada, aposentados e pensionistas da Previdência. O cálculo foi divulgado na semana passada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio Econômicos (Dieese), que prevê um valor total de R$ 35,8 bilhões para o 13º, dos quais aproximadamente R$ 10,7 bilhões já foram pagos pelas empresas nos primeiros meses do ano. O dinheiro, que deverá assegurar um rendimento extra de R$ 718,32 por pessoa, em média, será destinado ao pagamento de dívidas e às compras, com alguma predominância para a primeira opção, segundo o economista José Silvestre Prado de Oliveira, supervisor de atendimento técnico do Dieese. “Não dá para fazer muita coisa com R$ 718”, comenta. O suficiente, pelo menos, para animar as estatísticas, ainda negativas no comércio varejista, e insuflar previsões de retomada dos negócios, embora as bases concretas para isso sejam ainda bastante precárias.

O 13º, encomendas de fim de ano e altos estoques no varejo estimulam a produção. Mas a retomada esbarra na queda dos salários

negativo indicado na comparação com setembro de 2002, quando persiste uma queda de 1%. A redução diante do mesmo mês do ano passado foi liderada exatamente pelos ramos da indústria mais diretamente influenciados pelo mercado interno, com baixas para vestuário (-7%), minerais não metálicos (-7,6%), têxtil (-5,9%), calçados e couros (-5,2%).

FOLHA EM BAIXA

Cenário do Natal que se aproxima: juros altos, salários achatados e o tão esperado milagre do crescimento que não chega

meses consecutivos de retração das vendas, mas setembro, aponta o IBGE, anota uma tendência de desaceleração no ritmo de queda, o que sugere alguma recuperação neste final de ano, conforme esperado, reforçada pelo pagamento do 13º salário e pela maior oferta de crédito ao consumo. Como reforço àquela tese, o segmento de móveis e eletrodomésticos foi o único a apresentar desempenho positivo, crescendo praticamente 7% em relação a setembro do ano passado. Para

outubro, o comércio de São Paulo aponta um aumento de 9,3% no faturamento na comparação com setembro, quando as vendas ainda estavam em queda. O resultado sofreu influência positiva das lojas de departamento, com avanço de 18,1%, e das vendas de utilidades domésticas (mais 14%), sempre em relação ao mês anterior. O ritmo não tem sido suficiente, da mesma forma, para superar os números de um ano atrás, persistindo um tombo de 10,7% frente a outubro de 2002.

A expectativa de alguns setores é de que essa retomada tenha fôlego curto, se os salários e o emprego não voltarem a crescer de forma sustentada. Em setembro, pelo segundo mês consecutivo, ainda de acordo com o IBGE, o total de contratações voltou a superar ligeiramente as demissões realizadas pela indústria, indicando uma variação positiva de 0,8% na comparação com agosto, quando houve uma oscilação positiva de 0,1%. Para o IBGE, aquela reação foi insuficiente para reverter o sinal

Pelo segundo mês, no entanto, a folha de salários da indústria encolheu 0,6% em relação a agosto e despencou 4,8% frente a setembro do ano passado, o que sugere que as novas contratações estariam ocorrendo com salários menores, puxando para baixo a massa de rendimentos (ou seja, o total de salários pagos pelo setor), com impacto negativo sobre o mercado consumidor. Em pesquisas anteriores, de qualquer forma, tanto o IBGE quanto a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) identificaram uma tendência de recuperação da atividade industrial. Aquele avanço, como parecem sugerir os indicadores mais recentes, refletiria um incremento das encomendas do comércio para o fim de ano, levando-se em conta, ainda, os níveis reduzidos da atividade industrial em 2002. A Confederação Nacional do Comércio (CNC), de fato, aponta a existência de estoques elevados em alguns setores do varejo, precisamente porque teriam exagerado na previsão de vendas e ampliaram as encomendas à indústria mais do que a prudência recomendaria. Isso explicaria o aumento da produção industrial desde setembro, segundo a entidade.

DÍVIDA

Mantega descarta auditoria da dívida Maíra Kubík Mano e Tatiana Merlino da Redação Esquecendo o compromisso de assumir uma posição ativa nas questões da dívida externa brasileira, previsto no programa de governo do Partido os Trabalhadores, o ministro Guido Mantega, do Planejamento, descartou a possibilidade de realização de uma auditoria da dívida. “Não sei o que descobriríamos com essa auditoria”, declarou o ministro no dia 11. Exatamente porque os brasileiros desconhecem os fatos que levaram ao endividamento externo brasileiro é que a auditoria se torna imprescindível, acredita Rodrigo Ávila, coordenador da Campanha Jubileu Sul. “O ministro se esqueceu do compromisso assumido por seu partido durante toda a sua existência, ou caiu de pára-quedas nesse governo?”, questiona. Mantega declarou, também, que “a dívida pública não está sendo paga, está sendo rolada”. Em português claro, “rolar” a dívida

é como empurrá-la com a barriga, pagando apenas o seu serviço (juros). Assim, apenas neste ano, R$ 145 bilhões do orçamento federal foram gastos com o pagamento dos serviços da dívida pública (externa e interna), enquanto R$ 81,3 bilhões foram destinados para políticas sociais como segurança pública, assistência social, saúde e educação. Dos R$ 14 bilhões reservados para investimentos em 2003, apenas 6% foram aplicados até agosto, e menos que 5% das verbas anuais programadas para urbanismo, habitação e saneamento foram utilizadas.

A HISTÓRIA PROVA Ávila justifica a importância da auditoria da dívida externa por meio de fatos históricos. Getúlio Vargas realizou a primeira e única avaliação do processo de endividamento brasileiro, em 1931. Descobriu-se, então, que apenas 40% dos contratos estavam documentados, o que resultou na redução da dívida. “Em 1970, os Estados Unidos aumentaram

O ministro do Planejamento, Guido Mantega

Em vez de pagar juros da dívida, o dinheiro serviria para... (Gastos totais em 2003: R$ 153,9 bilhões) Assentar 6,7 milhões de famílias sem-terra

Segundo o Plano Nacional de Reforma Agrária, sugerido ao governo pelo professor Plinio de Arruda Sampaio.

Construir 10,2 mil unidades do Centro Educacional Unificado (CEU), vitrine da gestão de Marta Suplicy em São Paulo

Cada CEU atende, em média, a 2,4 mil alunos e possui sala de computação, teatro, quadras poliesportivas, piscinas, bibliotecas.

Construir conjuntos habitacionais com 2,8 milhões de apartamentos em São Paulo, próximos a estações do metrô

Custo por apartamento, R$ 54.000 no projeto Residencial Cidade de São Paulo, que prevê áreas verdes, equipamentos públicos e área para uso comercial, como farmácia, supermercado e padaria.

Aumentar o gasto público com saúde de 0,70 centavos de dólar para 317 dólares por brasileiro

Anuário estatístico da Saúde 2000.

ilegalmente em cinco vezes as taxas de juros da dívida e como resultado o Brasil enviou ao exterior R$ 158 bilhões a mais do que recebeu de empréstimos”, afirma o coordenador da campanha. Além disso, os contratos firmados durante o período da ditadura militar podem ser considerados inválidos, de acordo com o direito internacional, porque não houve participação democrática no processo. “O povo não pôde opinar”, diz Ávila. Em 2000, foi realizado um plebiscito nacional da dívida externa, que teve a participação de 6 milhões de pessoas. Na votação, 95% se manifestaram favoráveis à auditoria da dívida. Atualmente, a campanha Jubileu Sul está analisando os contratos da dívida para realizar uma auditoria não-oficial. Porém, os organizadores têm encontrado dificuldades para reunir a documentação necessária porque os contratos federais realizados durante a ditadura não foram registrados.

Movimentos sociais dizem não à Alca e ao FMI Dia 21 ocorrem, em todo o país, manifestações contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e a assinatura de novo acordo do Brasil com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Nelas, a Coordenação dos Movimentos Sociais distribui panfletos manifestando o repúdio de todos os povos da América às negociações de Miami, e informa que “estão nas ruas para dizer que não aceitam os acordos que só são vantajosos para as transnacionais dos Estados Unidos”. Diz mais: “A Alca transformaria toda a América Latina em quintal dos Estados Unidos (EUA), que não teriam limites para explorar nossas riquezas e interferir no nosso destino. Por isto, cresce a resistência. Em 2002, realizamos um plebiscito popular com mais de 10 milhões de votos dizendo não ao acordo”.

A Coordenação destaca a imensa pressão dos EUA, acrescentando: “Queremos não apenas que o governo se oponha às pressões de Bush, mas que se apóie no povo e convoque um plebiscito para que decidamos democraticamente nosso destino. Queremos a unidade, a solidariedade e o direito do povo de participar nas decisões que afetarão nosso continente”. Quanto ao FMI, assinala que, mesmo não sendo obrigado, o Brasil está em vias de assinar novo acordo com o Fundo, que obriga o governo a usar o dinheiro dos impostos para pagar juros aos banqueiros e especuladores, ao invés de aplicá-lo no desenvolvimento e geração de empregos no país. “Por desenvolvimento econômico e social, trabalho e distribuição de renda!”, defende o panfleto da Coordenação dos Movimentos Sociais.


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NACIONAL AFRO-BRASILEIROS

O governo lança pacote de políticas, mas os movimentos negros têm papel fundamental na eliminação das desigualdades

Agência Reflexo

Políticas para combater desigualdades movimentos negros. “Devemos estimular mobilizações de rua e um posicionamento rigoroso que organize a população. O governo precisa de pressão da sociedade para fazer as mudanças”, afirma. Nesse sentido, a vitória do Partido dos Trabalhadores na eleição presidencial já significou um começo. Segundo o deputado, o governo tem afinidade com a questão racial, por sua origem de esquerda. A criação da Seppir, a aproximação do Brasil com o continente africano e o número recorde de ministros negros (quatro: Matilde Ribeiro, da Sepprir; Gilberto Gil, da Cultura; Benedita da Silva, da Assistência Social e Marina Silva, do MeioAmbiente) são sinais desse avanço.

Luís Brasilino da Redação

O

s afrodescendentes brasileiros não têm muito o que comemorar no Dia Nacional da Consciência Negra. A data, 20 de novembro, foi escolhida como homenagem a Zumbi dos Palmares, líder quilombola morto nesse dia, em 1695, e hoje um dos maiores símbolos da resistência negra no Brasil – país onde as desigualdades entre brancos e negros só têm aumentado, na opinião do deputado federal Luiz Alberto (PT-BA). A Organização das Nações Unidas (ONU) comprova: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos brancos brasileiros passou de 0,745, em 1991, para 0,814, em 2000; enquanto isso, o IDH dos negros foi de 0,608 para 0,703, no mesmo período. No ranking das nações de maior desenvolvimento social, o “Brasil branco” subiu da 65ª para a 44ª posição e o “Brasil negro” foi da 101ª para a 104ª. Na tentativa de reverter esse quadro, o governo federal, por meio da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), comemora o Dia da Consciência Negra com o anúncio de uma série de políticas específicas. Entre elas, a reformulação de ações

DEFESA DA IGUALDADE

Imagens da mostra BrasilÁfrica-Brasil, inaugurada, dia 20, em Brasília, para sensibilizar brasileiros e africanos para as similaridades existentes entre o país e o continente. A exposição, tem trabalhos de Ricardo Teles e Christian Knepper, entre outros fotógrafos

voltadas para as comunidades descendentes dos quilombos, a criação de uma proposta de reserva de vagas para negros nas universidades públicas e o fortalecimento das relações Brasil-África. No entanto, o deputado Alberto destaca o papel fundamental dos

DIREITOS HUMANOS

ANÁLISE

Anistia comprova impunidade

CRÍTICAS À JUSTIÇA Em seu encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a secretária da Anistia entregou um documento com críticas severas ao funcionamento da Justiça no Brasil e à crise da segurança pública. O texto acusa o país de ter um “sistema judiciário de duas faces”, que protege os ricos de abusos e reserva aos pobres a repressão. Segundo Irene, o secretário de segurança pública do Rio, Anthony Garotinho, admitiu existir uma cultura de brutalidade dos agentes policiais e reconheceu que até 50% dos chamados “atitudes de resistência” são, na verdade, mortes ilegais. Em São Paulo, a secretária

Quem é Nascida em Bangladesh, Irene Khan é a sétima secretáriageral da Anistia Internacional. Assumiu o cargo em agosto de 2001, como a primeira mulher muçulmana e asiática na direção da maior organização de direitos humanos do mundo. É formada em direito, com especialização em direitos humanos e direito internacional.

foi informada de que o aumento nas ações policiais levaram ao crescimento das mortes. “Não é correto medir a eficiência da polícia pela quantidade de mortes nos conflitos. A sociedade precisa de melhor policiamento, não de um policiamento brutal”, indigna-se. Irene também pediu ao presidente Lula que lidere um movimento internacional pelo desarmamento. O fato de o Lula ter prometido um posicionamento firme em relação aos direitos humanos foi comemorado pela secretária da Anistia porque assim será possível “cobrar dele resultados concretos”. Entretanto, a secretária afirma que o teste real está por vir: “Ou o presidente Lula vai se entregar ao pragmatismo político, ou vai se levantar para fazer mudanças reais”. Brasil de Fato – Como a senhora avalia a violência policial no Brasil? Irene Khan – A Anistia trabalha há muitos anos com a questão policial. Uma das nossas preocupações principais é o alto grau de violência urbana, e a forma como ela é combatida, com atitudes policiais repressoras. É um fenômeno internacional, não só do Brasil. Com as preocupações

Mata, mas faz J.Freitas/ABr

Tatiana Merlino da Redação É grande a discrepância entre discurso e realidade. Com essa constatação, a secretária-geral da Anistia Internacional, Irene Khan, encerrou sua visita ao Brasil, dia 14. De um lado, Irene ouviu os governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo, que prometeram mudanças na política de segurança pública; do outro, recebeu denúncias de abusos policiais, torturas e mortes, feitos por moradores da região de Sapopemba, (SP) e do Morro do Borel (RJ). “Existem dois Brasis: um que defende os direitos humanos e outro que abusa deles”, concluiu Irene. Ela também contou que viu pessoas encarceradas “feito gado” na carceragem da Divisão de Capturas e Polícia Interestadual (Polinter), na zona portuária do Rio de Janeiro. No local, encontrou 1.100 detentos numa carceragem onde cabem 300. Em algumas celas, 77 presos ocupam um espaço que comporta apenas 14. “É uma espécie de depósito de gente pobre das favelas. As pessoas são trancafiadas para permanecer longe dos olhos da sociedade”, disse ela.

Aproveitando essas condições favoráveis, será realizado em Brasília (DF), entre os dias 21 e 23, o I Encontro de Parlamentares Negros das Américas e do Caribe. Com a participação de 300 representantes envolvidos com a questão racial, a reunião pretende articular os parlamentares e criar um programa permanente em defesa da igualdade entre brancos e negros. Para Alberto, esse é um momento de se investir em políticas direcionadas aos afrodescendentes. Ele explica que as políticas generalizadoras (para toda a sociedade), apesar de melhorar a situação da população como um todo, não resolvem a questão: “A pobreza mais grave do Brasil é conseqüência da divisão racial, da escravidão dos africanos. Desde sempre, a origem determina a situação social e, portanto, podemos afirmar que a pobreza aqui é negra”.

políticas na guerra ao terror, e com o objetivo de conseguir mais segurança, o respeito aos direitos humanos retrocedeu. Aqui no Brasil, o combate ao crime está endurecendo a política de segurança pública e aumentando os abusos aos direitos humanos. As mortes causadas por policiais cresceram 35% nos últimos meses. BF – Em relação aos abusos cometidos no Brasil, o que mais preocupa a Anistia? Irene – Os assassinatos cometidos pela polícia. O governo brasileiro admitiu que existe tortura no país. Aqui há problemas massivos que precisam ser solucionados urgentemente, como as questões da Febem e da superlotação nas prisões. O assunto da impunidade é muito importante. Existem milhares de denúncias, mas poucas são investigados e menos ainda são realmente punidas. Quando lideranças políticas falam sobre a guerra contra o crime, é como um sinal verde para a polícia usar os métodos que quiser para ir atrás dos suspeitos. Esse será um desafio enorme para o presidente Lula porque grande parte da violência acontece no nível estadual.

João José Sady A recente publicação de mais um volume da história da ditadura militar causou intensa celeuma em razão da divulgação de que um dos generais-presidentes mais celebrados pelos admiradores do regime militar não só estava plenamente ciente do uso da tortura e do assassinato político, como também aprovava e endossava esses métodos. Na enxurrada de declarações que vieram em torno de tal notícia, o que desperta grande interesse é aquela vinda de um dos assessores diretos do referido general, dizendo que tal informação não “desilustra” a imagem daquele potentado porque, em compensação, o mesmo teria feito isto e aquilo. Como se algo por ele feito pudesse apagar sua participação como facilitador de tais crimes. Há uns tantos anos, em São Paulo, havia um político cujos seguidores gostavam de enaltecer com o slogan “rouba, mas faz” – argumentando que, apesar de suposto ladrão, era um grande realizador de obras. A idéia de que alguém possa transportar esse slogan para a hipótese de assassinato e tortura é bastante elucidativa da lógica política violenta de nossas classes dominantes. E dizem que este é um país cordial. O discurso do “mata, mas faz” é algo que sempre ressurge a cada nova etapa da vida do país, sempre vestido com uma roupa nova. No momento, em São Paulo, o marketing do sistema de segurança pública se alimenta com o furor popular que clama pelo sangue dos criminosos. As coisas se invertem e, para muitos, “fazer” é, justamente, matar. Essa atitude começou a se evidenciar no episódio da execução dos doze passageiros do ônibus em Sorocaba, em 2002, quando se falava na “hora da virada” e se entoava o refrão de “doze a zero”. Os defuntos foram exibidos no horário

eleitoral do tucanato, catalogados como membros do PCC sob o “irrefutável” argumento de que muitos usavam bigode, cavanhaque e cabeça raspada. Desde então, em 2003, a quantidade de pessoas mortas pela polícia aumentou em 78,83%, tudo em homenagem ao silogismo de que se está matando, logo, se está fazendo.

REPRESSÃO AOS POBRES Não é verdade. A matança encobre a falta de vontade política do governo em reorganizar a polícia para reduzir a insegurança pública. A maioria dos distritos policiais está paralisada em razão da falta de material e de pessoal, viaturas quebradas e carceragens superlotadas. Não se combate com firmeza e eficácia a tortura, a corrupção, o abuso de poder. E a periferia continua submetida ao poder sem limites do banditismo enquanto a polícia fica a vigiar, conter e reprimir o povo pobre. Os ditadores se foram e o “mata, mas faz” continua a ser um silogismo poderoso, disponível para seduzir um povo desesperado pelo sofrimento que lhe é imposto pelas agruras da crise brasileira. A defesa da vida humana e dos direitos fundamentais já não leva o cidadão para a masmorra mas, apenas, para o pelourinho da mídia sangrenta que, se não lhe tira a vida, destrói sua reputação. É hora de se perceber que o sucesso no combate à crise brasileira não vai se garantir pela quantidade de cadáveres mas pela quantidade de empregos, moradias, vagas nas escolas e nos hospitais. Por enquanto, matar é muito usado para se fazer de conta que se está fazendo alguma coisa. As classes dominantes continuam a matar mas ainda não começaram a fazer. João José Sady é professor associado doutor no curso de Direito da Universidade de São Francisco


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NACIONAL REFORMA AGRÁRIA

Sem-terra exigem 1 milhão de assentados Claudia Jardim e Rodrigo Savazoni da Redação e de Brasília (DF)*

A

marcha do Fórum Nacional pela Reforma Agrária, que chega à capital federal depois de nove dias de estrada, tem um único objetivo: garantir a assinatura do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), encomendado pelo governo federal e que prevê o assentamento de um milhão de famílias em quatro anos. “Viemos a Brasília para fazer com que o governo Lula aproveite esse momento e atenda a demanda histórica dos brasileiros pela redistribuição da terra”, afirma João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No entanto, antes mesmo da chegada dos cerca de 2 mil trabalhadores rurais a Brasília, dia 19, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, já indicava que conversas ventiladas nos corredores do Palácio do Planalto têm fundamento. Antes de anunciar o dia da audiência com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Rossetto queria se encontrar com representantes dos movimentos. O objetivo da conversa antecipada seria flexibilizar a meta de 1 milhão de famílias assentadas. Esse é apenas um dos indicativos da polêmica que em Brasília divide dois grupos envolvidos no plano, entregue no dia 15 de outubro ao ministro Rossetto, que comprometeu-se a entregá-lo ao presidente Lula. O documento foi elaborado pela equipe de Plínio de Arruda Sampaio, advogado especialista em questões agrárias e exdeputado federal pelo Partido dos Trabalhadores. Apesar do sigilo com que o assunto está sendo tratado, segundo informações de fontes ligadas ao governo, dois grupos divergem sobre os rumos do plano. Um deles defende a manutenção do PNRA, ainda que com metas mais elásticas, como a redução do número de assentados. Outro grupo pretende manter as metas estabelecidas, mesmo que para isso precise alterar as linhas gerais do plano, descaracterizando-o. Um exemplo da alteração é uma das propostas do Ministério, de incluir na meta de 1 milhão de assentados os índices de regularização fundiária (dar título aos trabalhadores já assentados) e o acesso ao crédito fundiário (na prática serviria para comprar terra de outro pequeno proprietário). Tais manobras sempre foram duramente criticadas pelos movimentos de trabalhadores do campo por não eliminar o problema central: a concentração de terras em grandes latifúndios.

CONCENTRAÇÃO Para Plínio de Arruda Sampaio, além das mudanças econômicas, sociais e políticas, a efetivação do PNRA será “uma operação real de combate ao monopólio da terra, que fragiliza a população rural e a deixa à mercê do agronegócio e dos fazendeiros”. Arruda Sampaio ressalta que a descentralização das terras proporciona distribuição de renda, absorve a força de trabalho excedente e de desempregados e “ liberta a classe de trabalhadores excluídos”. Segundo o PNRA, uma família assentada gera três novos empregos: 2,5 na agricultura e 0,5 em atividades esporádicas no setor de serviços e de infra-estrutura. Isso significa que a cada 100 mil famílias assentadas, 300 mil novos empregos são gerados. Em quatro anos, se realizar a reforma agrária, o governo Lula pode chegar a 3 milhões de novos empregos no campo. “É o emprego mais barato do Brasil. Não tem nenhum setor

Fotos: Elza Fiúza/ABR

Em Brasília, integrantes da marcha do Fórum Nacional pela Reforma Agrária cobram implementação integral do plano

Cerca de 2 mil pessoas, vindas de pelo menos 12 Estados do Brasil, marcham rumo a Brasília para exigir a reforma agrária do governo Lula

Caminhar em busca do sonho vale a pena da Redação

produtivo que crie um posto de trabalho a cada R$ 8 mil investidos”, avalia o deputado Orlando Desconsi (PT-RS). A geração massiva de empregos contribuiria para elevar a participação dos assentamentos no Produto Interno Bruto (PIB) agrícola, de 1% para cerca de 8%, garantindo o abastecimento do mercado interno e elevando a renda familiar para 3,5 salários mínimos – atualmente 63% dos lavradores brasileiros vivem com menos de 2 salários mínimos por mês. Em quatro anos, o PNRA custará aos cofres públicos 1,5% do PIB de um ano. Ou seja, a terça parte do superávit primário do orçamento federal economizado em 2003 para amortizar a dívida pública. Nos três primeiros anos, a despesa seria de 0,3% do PIB. No quarto, passaria para 0,6%.

Cada assentamento custa, em média, R$ 24 mil (R$ 13 mil da terra; R$ 5 mil para construir casa e instalações; e R$ 6 mil para vistoria, assistência técnica, capacitação e pequena infra-estrutura). Por outro lado, causaria um considerável impacto macroeconômico, principalmente no que se refere à criação de empregos e à distribuição de renda. Se efetivado tal como foi elaborado, serão assentadas um milhão de famílias. Devem ser gerados três milhões de empregos diretos e permanentes no campo, a renda mínima dos assentados será elevada para 3,5 salários mínimos e a participação dos assentamentos será ampliada de 1% para de 8% do Produto Interno Bruto (PIB) agrícola. Cabe ao presidente Lula decidir. *Repórter da Agência Carta Maior

Foram nove dias de caminhada e 130 quilômetros, de Goiânia (GO) a Brasília (DF). Na bagagem, muita disposição para ver efetivado o Plano Nacional de Reforma Agrária, prometido na campanha eleitoral de 2002 e já nas mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Eram mais de 2 mil pessoas, vindas de pelo menos 12 Estados e ligadas a diversos movimentos que integram o Fórum Nacional pela Reforma Agrária. A meta principal do movimento é o assentamento de 1 milhão de famílias durante a vigência do próximo Plano Plurianual (PPA), entre 2004 e 2007. “No ritmo que a coisa vai, não vão assentar nem 100 mil até o fim do governo”, reclamava Joselito Ferreira da Silva, um dos coordenadores da marcha. “Vamos lá, meu povo, que o Lula está esperando nós”, gritava um dos que seguiam à frente das duas fileiras organizadas de trabalhadores, para animar o grupo. Na marcha, o dia transcorria entre gritos de ordem, canções e brincadeiras. O militante de Tocantins avi-

sa: “Grava aí que eu quero ser recebido com honra ao mérito pelo governador quando voltar pra lá”. Outro, meio envergonhado, fala de Lula: “Ele é comedor de cuscuz, que nem a gente!”. Automóveis que passavam na pista oposta da BR-060 buzinavam e acenavam em apoio. Os sem-terra recebiam aplausos. Músicas de Sérgio Reis no carro de som eram respondidas com gritos típicos dos bailes rurais. O grupo de Mato Grosso do Sul levou, a tiracolo, a guampa de tereré (bebida de ervamate verde com água gelada, popular na região da fronteira com o Paraguai). Nas paradas, reencontravam as crianças, filhas de alguns trabalhadores, que seguiam em paralelo à caminhada, num ônibus fretado logo à frente do grupo. Três caminhões carregavam as bagagens dos caminhantes. O apoio também incluía uma ambulância, que ajudava nos curativos de pés machucados e em desmaios provocados pelo sol. Poucas reclamações, pois o sonho da terra prometida e conquistada vale a pena. (com informações da Agência Carta Maior)

Leis emperram distribuição de terra Luis Brasilino e Maíra Kubík Mano da Redação Reunidos em Belo Horizonte (MG), diversos representantes do Poder Público criticaram o atual modelo de reforma agrária e sugeriram mudanças profundas. O encontro ocorreu, dia 7, durante o 1º Fórum Social Brasileiro, organizado pelo Fórum Permanente de Assuntos Fundiários de Minas Gerais. “O modelo atual está fracassado. Levaria dez anos só para assentar os acampados existentes hoje”, afirmou Marcos Leoni Pena, superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Minas Gerais. Segundo ele, o governo Fernando Henrique Cardoso deixou uma “herança maldita” no campo.

Pena explicou que 80% dos assentamentos feitos nos últimos oito anos não possuem infra-estrutura básica, como saneamento, estradas, crédito rural, moradia etc. Ele defendeu a implantação de um programa fundiário nos moldes do proposto pelo Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), elaborado por um conjunto de entidades, e leis mais ágeis. Para Luiz Antônio Chaves, diretor geral do Instituto de Terras de Minas Gerais (Iter), vontade política não basta. “Precisamos ter o poder, mas ele ainda está nas mãos dos ruralistas”, diz. Chaves acredita que a reforma agrária hoje privilegia os grandes proprietários, oferecendo pagamentos supervalorizados por suas terras: “O latifúndio ganha um prêmio quando é indenizado”. Ele aponta duas soluções para

o problema. A primeira exige uma mudança na legislação, limitando o tamanho da propriedade rural. A outra, a necessidade de a propriedade privada ter uma função social, já consta da Constituição atual, porém depende de uma atuação mais vigorosa do Judiciário. Para ele, se as leis fossem minimamente aplicadas, já teríamos um avanço enorme. “A Justiça ignora a Constituição, preferindo aplicar o Código Civil. Este define o direito à propriedade como absoluto e, desse modo, as importantes inovações conquistadas no que se refere, por exemplo, a danos ambientais, não são utilizadas”, esclarece Chavez, que diz nunca ter visto um latifúndiário perder sua terra por esse crime. “As grandes propriedades improdutivas, as que degradaram o meio ambiente, as que escraviza-

ram trabalhadores, jamais devem receber indenização. Têm que ser expropriadas”, opina. Também participaram do debate a Promotoria, o Juizado de Conflitos Agrários e a Polícia Militar de Minas Gerais, além da Ouvidoria Agrária do governo federal. Todos destacaram a importância dos movimentos sociais como instrumento de pressão política para acelerar o processo de reforma agrária. O major Jader Lourenço salientou o papel fundamental das mobilizações populares em cada uma das conquistas atingidas até o momento: “A Polícia Militar mudou sua atuação, tornou-se mais democrática e agora negocia com todas as partes envolvidas sempre que recebe um pedido de reintegração de posse. Por isso encorajamos a pressão popular”.


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NACIONAL RÁDIOS COMUNITÁRIAS

Globo e rádio dos EUA ocupam programação N

o Rio de Janeiro, a Rede Globo tenta mudar sua imagem. Numa estratégia de marketing, coloca um pé no morro, ao tornar-se parceira da organização não-governamental Viva Rio. Uma das investidas é no portal Viva Favela, hospedeiro de uma rede virtual de rádios comunitárias que, curiosamente, abriga a Voz da América, emissora do governo dos Estados Unidos. O jornalista Gustavo Gindre, coordenador da organização nãogovernamental Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indesc) e um dos fundadores do Fórum pela Democratização da Comunicação, acha temeroso o fato de a Voz da América estar sendo veiculada em sintonia com rádios comunitárias. O Viva Favela é um portal criado em 2001 pela organização não-governamental Viva Rio. Em sua carta de princípios, afirma ter por meta “a inclusão digital, a democratização da informação e a redução da desigualdade social”. Entre outros meios, hospeda uma rede virtual de rádios comunitárias – a Rede Vida Favela. “O objetivo é ter uma programação de qualidade que consiga se contrapor às programações das emissoras que estão aí, já que as rádios comunitárias lutam para ter voz”, diz Gindre. Patrocinado pela Globo, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Comunidade Européia, o portal tem um slogan: “A comunidade aqui e agora”. A rádio abrigada no portal apresenta-se como emissora que promove o diálogo entre favela e asfalto, dando espaço para os novos talentos e manifestações culturais do Estado do Rio de Janeiro. Contudo, com o tempo a programação passou a abrigar programas da Globo. “Mata-se pela raiz aquilo que a rádio comunitária tem de mais genuíno, que é expressar a diversidade cultural”, analisa Gindre Para o jornalista carioca, a parceria com a Viva Rio não passa de marketing social da Globo. “Para eles é muito interessante. Se der certo, é a ‘rádio comunitária’ da Globo que fez sucesso e, a partir daí, começam a se criar vínculos com os movimentos sociais. Se der errado, quem quebra a cara é a Viva Rio”. A Voz da América, rádio do governo dos Estados Unidos, está incluída na lista de rádios comunitárias. É apresentada como opção para aprender inglês e entrar em sintonia com notícias do mundo.

Diversidade cultural é morta pela raiz Brasil de Fato – A Rede Globo está cooptando as rádios comunitárias? Gustavo Gindre – A Globo fez uma parceria com a organização Viva Rio, que mantém um portal na internet chamado Viva Favela. Esse portal diz querer formar uma rede de rádios comunitárias, o que eu acho ótimo, pois a internet pode servir para a troca de informações entre as emissoras. O grande problema é a parceria com a Globo, que é o grande mal na comunicação no Brasil. BF – Em que sentido essa parceria é danosa? Gindre – O governo anterior montou uma estratégia perversamente inteligente: reprimia as rádios comunitárias. Colocadas contra a parede, elas passam a funcionar sob habeas corpus

Mestre em Comunicação, Gustavo Gindre, 34 anos, é jornalista e coordenador do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indesc). É editor responsável do portal de notícias Prometheus, criado no contexto do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.

preventivo, o tempo inteiro com medo de a polícia entrar pela porta. Assim, não conseguem se preocupar com sua primeira finalidade, que é ter uma programação de qualidade que consiga se contrapor às programações das emissoras que estão aí. Hoje, a maior parte das emissoras comunitárias padece do problema de uma programação com deficiências. BF – Como deveria ser a programação?

Gindre – As rádios comunitárias surgem para se contrapor à pausterização e dominação. Elas estão dizendo que a comunidade local precisa ter voz. Nesse sentido, a Globo é o adversário a ser combatido e com quem se acaba fazendo justamente a aliança. BF – Qual é o interesse da Globo nas rádios comunitárias? Gindre – Para a Globo, a parceria foi muito interessante. Se

Universidade abre cursos sem autorização Maíra Kubík Mano da Redação A Universidade Salgado de Oliveira (Universo), com sede no Rio de Janeiro (RJ), abriu unidades sem autorização do Ministério da Educação (MEC) em Goiânia (GO), Recife (PE) e Juiz de Fora (MG). Uma sentença judicial, confirmada em 2001 pelo Superior Tribunal de Justiça, tirou a autoridade do ministério sobre os atos praticados pela universidade. A decisão abre um precedente preocupante: libera as instituições de ensino superior privadas de submeter seus planos de expansão ao controle do governo, como determina a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Para Márcio André Mendes Costa, advogado da Universo, é natural que a instituição procure garantir sua ampliação e o MEC não deve “criar obstáculo à instalação de novos campi”. Carlos Antunes dos Santos, secretário de Educação Superior (Sesu), discorda: “Esta é uma situação atípica”. A Universo já afirmou que prentende abrir unidades em Osasco (SP), Brasília (DF) e Anápolis (GO), mas o governo entrou com uma ação rescisória no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região. O MEC promete apurar as con-

Sem-teto montam acampamento na USP O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) montou um acampamento, na semana passada, dentro da Universidade de São Paulo (USP). Organizada pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE), a atividade fez parte da Semana dos Movimentos Populares e foi reprimida pela reitoria da universidade, que chegou a chamar a Polícia Militar para retirar os manifestantes, mas voltou atrás na decisão. Maurício Costa, diretor do DCE, acredita que a reação da USP à manifestação dos sem-teto legitima a necessidade de discutir a participação dos movimentos sociais na universidade. “Nós já fizemos acampamentos de estudantes e nunca houve essa repressão”, diz. Para Miguel Sorana, do MTST,

Quem é

der certo, a emissora começa a criar vínculos com os movimentos sociais, mudando sua imagem. Os filhos de Roberto Marinho estão muito preocupados em mudar aquela velha imagem conservadora e começam a buscar alianças com alguns setores da sociedade. A rádio Viva Rio presta-se a isso. BF – É possível preservar os setores marginalizados da sociedade da massificação? Gindre – Quanto mais vínculos sociais comunitários uma pessoa tiver, mais ela poderá resistir à massificação dos veículos. Sempre há formas de resistência. Mas no caso das rádios comunitárias, fica cada vez mais difícil: há o medo da polícia na porta, lei proibindo publicidade, autorização para funcionamento com validade de apenas seis anos, uma série de limites, e ainda por cima vem a Globo e fornece a programação. Assim, mata-se na raiz aquilo que há de mais genuíno nas rádios comunitárias, que é sua diversidade cultural.

a ocupação, que envolveu 52 pessoas durante dois dias, foi importante para dar visibilidade ao movimento: “Foi a primeira vez que fizemos uma ação dentro da universidade”.

VALOR SIMBÓLICO A Semana teve como objetivo abrir a universidade para as questões discutidas pelos movimentos sociais, como violência, democratização da mídia e participação do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas (Alca), entre outras. Na avaliação de Costa, apesar de não ter tido a participação de grande parte dos estudantes, a Semana teve “um valor simbólico porque trouxe para o campus um público que não tem acesso à universidade”.(MK)

Marcello casal Jr/ABR

Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ)

Ana Maria Straube

Parceria entre o grupo Marinho e o Viva Favela permite transmissão de programação comercial e da Voz da América

Protesto de universitários em Brasília: expansão da Universo ocorreu sem o controle do governo

dições de abertura dos cursos em funcionamento, além de verificar a qualidade do corpo docente, a infra-estrutura geral e a organização pedagógica dos cursos. O processo da Universo começou quando a instituição encontrou uma brecha na legislação, durante a gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas só agora, dois anos depois, a Advogacia Geral da União está tentando reverter a

decisão porque a instituição enviou, no início deste ano, uma proposta de alteração de seu estatuto para aprovação no Conselho Nacional de Educação. Mesmo sem indicar os locais em que tem campi, procedimento obrigatório, a universidade teve o documento aceito pelo coordenador-geral de legislação e normas do Ensino Superior do MEC, Elias Dora. A decisão gerou polêmica no

Conselho e foi revista antes de ser homologada pelo ministro Cristovam Buarque. Segundo Santos, o MEC foi forçado judicialmente a enviar o estatuto ao Conselho, apesar das irregularidades: “Esse foi o principal dilema do ministério: escolher entre enviar os estatutos ao CNE ou responder pelos crimes de prevaricação e desobediência”. O Conselho agora aguarda a definição jurídica do caso para dar novo parecer.

ONU defende delegacias especializadas Tatiana Merlino da Redação Para combater a exploração sexual infantil é urgente criar delegacias e varas especializadas, na opinião do relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU), o uruguaio Juan Miguel Petit, que veio ao Brasil fazer um levantamento sobre crimes praticados contra crianças e adolescentes. Ele também reconhece que essa luta é prejudicada pela dificuldade em mapear os casos de exploração, e pela crise de impunidade e de confiança na polícia. Petit não descarta a possibilidade de sugerir o envio de um relator ao Brasil para analisar o tratamento do tema pelo Judiciário. Em reunião com organizações não-governamentais e conselhos tutelares em São Paulo, dia 12, Petit ouviu Renata Liborio, doutora em Educação da Universidade Estadu-

al Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Renata pesquisou a vida de 14 adolescentes, entre 13 e 17 anos, envolvidas com prostituição na região de Presidente Prudente, Oeste do Estado de São Paulo. Das 14, oito são afro-descendentes e seis brancas; todas têm baixo índice de escolaridade; metade foi explorada sexualmente antes dos 12 anos; três foram estupradas por familiares; cinco tiveram as primeiras relações sexuais antes dos 12; e quase todas usam drogas. De acordo com dados da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), estima-se que no Brasil, a cada hora, sete crianças ou adolescentes sofrem abusos sexuais. A exploração sexual é, de acordo com a Associação, a segunda forma de violência contra crianças e adolescentes, perdendo apenas para a agressão física. Em visita a Brasília, Petit re-

cebeu um relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que considerou de extrema relevância: em quatro meses de trabalho, a comissão recebeu cerca de 600 denúncias de exploração sexual de crianças e adolescentes. Os crimes mais freqüentes são de comércio sexual, praticados principalmente nas rodovias e nas fronteiras brasileiras. Há, inclusive, denúncias de envolvimento de políticos e policiais nesses crimes. Petit defende o combate do problema em sua origem: “Faltam locais de relacionamento social, de educação e serviços básicos. A origem do problema está nas difíceis condições de desenvolvimento”. O último relatório da ONU sobre o tema no Brasil foi divulgado em 1992. Ao final da missão, com duas semanas de duração, Petit produzirá um relatório que será lido na Sessão de Direitos Humanos da ONU, em abril de 2004.


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De 20 a 26 de novembro de 2003

NACIONAL DESMONTE

O governo do PT retoma a privatização Palocci tenta completar a obra de Fernando Henrique: a doação do Banco do Estado do Maranhão ao setor privado previstas. Em primeiro lugar, os ajustes exigidos pela União foram bancados pelo governo estadual, enquanto detinha o controle do banco, ao demitir 70% de seus funcionários – o efetivo diminuiu de 1.742 empregados em 1996 para 523 hoje. Além disso, caso surjam novos rombos na contabilidade da instituição, a União separou R$ 25 milhões para evitar “surpresas”, um dinheiro mantido na conta do governo estadual. Se não ocorrerm novos rombos, os recursos retornam para a União, e serão sendo abatidos da dívida do Estado.

Lauro Jardim de São Paulo (SP)

A

penas uma semana depois de anunciar oficialmente que vai mesmo renovar o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mantendo a política de arrocho em 2004, o governo petista divulgou, dia 10, sua decisão de retomar o processo de desmonte dos bancos estaduais. O próximo da lista, conforme edital veiculado naquele mesmo dia, será o Banco do Estado do Maranhão (BEM), instituição transferida para o controle da União desde julho de 2000. A manutenção dessa política, na verdade, já havia sido antecipada pelo ministro da Fazenda, Antônio Palocci, no início do ano, e apenas dá continuidade ao programa de desmanche inaugurado pelo governo FHC em junho de 1996. Até janeiro de 2002, nada menos do que onze bancos estaduais foram transferidos em condições ultravantajosas aos seus novos donos privados, num roteiro que deverá ser seguido também no caso do BEM. Na terceira tentativa, em quatro anos, de privatizar o banco, a data do leilão, o valor e as condições da venda ainda não foram fixadas, mas é praticamente certo que o Banco Central seguirá o modelo sugerido pelo edital de venda publicado em 25 de abril do ano passado. Obviamente, os valores devem ser atualizados, mas as condições gerais tendem a seguir o mesmo modelo, permitindo aos futuros compradores desembolsarem apenas 10% do preço mínimo em dinheiro vivo, e os restantes 90% em títulos “podres”, comprados no mercado financeiro com deságios (descontos) substanciais, que terminarão derrubando o valor efetivo a ser pago pelo banco.

VANTAGENS... Como nos demais casos, os futuros compradores do BEM herdarão uma série de vantagens devidamente escamoteadas à opinião pública pelos editais e portarias que sempre regularam a privatização dos bancos estaduais. Numa retrospectiva rápida, o BEM foi incluído na lista dos bancos privatizáveis ainda em 1998. Nesse ano, a União e o governo estadual firmaram um acordo que permitiu uma injeção de R$ 275 milhões (em valores da época) para cobrir um suposto rombo de quase R$ 212 milhões na contabilidade do banco. A primeira tentativa de venda do BEM foi realizada em 12 de julho de 2000, mas os dois bancos qualificados para o leilão – Bradesco e Itaú – não apresentaram propostas. O fracasso determinou a transferência do controle do BEM para a União naquele mesmo mês. Um segundo leilão foi marcado para 10 de junho do ano passado, mas nem chegou a se realizar. O preço mínimo de venda das ações do BEM em poder da União, que detêm 99,9% do capital total, havia sido fixado pelo Banco Central em R$ 87,2 milhões, dos quais somente R$ 8,7 milhões precisariam ser pagos em dinheiro (os R$ 78,5 milhões poderiam ser pagos em títulos podres). Naquela época, o banco registrava ativos totais (prédios, instalações, equipamentos, ações de outras companhias, dinheiro em caixa, títulos públicos federais e

FAXINA TOTAL

Em greve há mais de duas semanas, bancários reivindicam aumento de salários, e são terminantemente contra a privatização do Banco do Estado do Maranhão

aplicações financeiras diversas) de R$ 699,2 milhões.

... MAIS VANTAGENS Esse valor superava o passivo (compromissos que o banco tem a honrar a curto, médio e longo prazos) em R$ 45 milhões, correspondentes ao patrimônio líquido do BEM (ou ao total de recursos efetivamente disponíveis para financiar investimentos e a expansão dos negócios do banco). Além disso, o banco tinha em caixa R$ 42,7 milhões, o que, somado ao patrimônio líquido, deixaria para os futuros donos exatamente R$ 87,8 milhões a mais do que o valor a ser pago por todas as ações do banco.

O BEM, na verdade, terminaria saindo totalmente de graça aos futuros controladores. Em função dos prejuízos acumulados no passado, decorrentes das políticas adotadas pelo governo estadual, e de impostos recolhidos a mais ao longo do tempo, o BEM acumulou créditos fiscais no valor de R$ 44,8 milhões até junho de 2002. Esse valor poderia ser utilizado para abater impostos no futuro, reduzindo, na prática, ainda mais o preço real a ser pago pelo banco.

TCU BARRA O valor dos créditos tributários, mais o patrimônio líquido e as sobras de caixa atingiam R$ 132,6 milhões, ou 52% acima do valor

mínimo de venda. O Tribunal de Contas da União (TCU) questionou o preço estabelecido, obrigando o adiamento do leilão para 26 de julho de 2002. Como vantagem adicional, mantida agora na reabertura do processo de privatização, os futuros (ou futuro) compradores vão operar toda a movimentação financeira do Estado até 31 de dezembro de 2010, incluindo salários, aposentadorias e pagamentos a fornecedores, num total estimado em quase R$ 400 milhões ao ano, amplificando as chances de lucro do banco. Para completar, os novos donos (se e quando o BC conseguir vender a instituição) não terão qualquer despesa com ajustes e despesas im-

Desde julho de 2002, o leilão sofreu mais quatro adiamentos até que o processo de venda fosse suspenso em 28 de janeiro deste ano. No dia 6 de novembro, o BC revogou os editais de abertura do processo de privatização e de venda do BEM. Quatro dias depois, publicou um novo edital, reabrindo o processo para pré-qualificação das instituições interessadas na compra do banco estadual. Com 76 agências espalhadas entre a capital (nove) e o interior (67) do Maranhão, o BEM tem a maior rede bancária do Estado, equiparável apenas à do Banco do Brasil. A instituição encerrou o primeiro semestre deste ano com ativos totais de R$ 758,3 milhões e um patrimônio líquido de R$ 35,4 milhões. O valor total dos depósitos, incluindo cadernetas de poupança, depósitos à vista e aplicações financeiras de clientes, atingia quase R$ 360 milhões. As disponibilidades de caixa (dinheiro vivo) e o valor do patrimônio líquido, somados, chegavam a R$ 77,8 milhões. Ajustado, o BEM teve um lucro de R$ 2,4 milhões no primeiro semestre deste ano, turbinados também pela política de juros altos do governo federal. Esse resultado significou um aumento de 221% em relação à primeira metade de 2002.

Demissões em massa para sanear o BEM Claudia Jardim da Redação Apreparação do BEM para ser entregue ao setor privado ocorreu gradativamente e resultou em mais desemprego e empobrecimento da população do Estado, o de pior índice de desenvolvimento humano do país (IDH). Lá, 68% da população economicamente ativa vivem com menos de R$ 80 por mês. De 2 mil funcionários, o banco mantém agora, a duras penas, 520 trabalhadores. “Foi um processo brutal de demissões, para antecipar a venda do banco. Os trabalhadores foram quase obrigados a se demitir, o que provocou muito sofrimento e dor aos funcionários e suas famílias”, conta Rosário Braga, secretária de políticas sindicais e sociais do Sindicato dos Bancários do Estado, e funcionária do BEM. Ela relata que o governo federal gastou R$ 900 milhões na incorporação de passivos trabalhistas e dívidas do banco, para entregá-lo sem despesa alguma à iniciativa privada, que deve pagar pela aquisição cerca de R$91 milhões. “Isso é, no mínimo, estúpido. Esses recursos tinham que ser destinados para atender às necessidades do povo maranhense em saúde, educação, moradia e não para a privatização. É uma lógica absurda”, critica Rosário. Além de terem de enfrentar o fantasma do desemprego, que não é exclusividade dos maranhenses, os funcionários do BEM estão em greve há mais de 15 dias, reivindicando reajuste salarial de 12% do piso salarial de R$ 631, abono

de R$1.500, mais acréscimos nos benefícios como cesta alimentação e auxílio creche. O banco recusou a proposta na assembléia do dia 17, reduzindo o reajuste para 9,4% e abono salarial de R$1.300. Para os bancários, este acordo é inaceitável, e eles ainda aguardam nova proposta do banco.

PRIMAZIA DO CAPITAL Mesmo à revelia da população e de parte dos parlamentares, o governador maranhense apóia a privatização e endossa a posição do Banco Central, definida pelo ex-diretor de liquidação e desestatização do BC, Carlos Eduardo de Freitas. Suas palavras: “Os bancos federalizados estão preparados para a privatização e não para ficar sob o comando do Estado”. O governador José Reinaldo Tavares defende a privatização do banco por considerá-lo “pequeno e sem rentabilidade”, ou seja, inex-

Uma das propostas apresentadas para solucionar o impasse seria a incorporação do BEM ao Banco do Nordeste (BNB), ou ao Banco da Amazônia S.A. (BASA). De acordo com Danúzio Gurgel, consultor financeiro da Stuart Gurgel Consultoria, a integração desses bancos seria a principal solução

jurídica para uma privatização inconstitucional. Gurgel recorda que o artigo 163 da Constituição exige que os recursos dos Estados sejam depositados em instituições federais, e não privadas. “Um banco público tem a responsabilidade de oferecer à sociedade condições de desenvolvimento econômico e social”, argumenta. A proposta de integração é positiva na avaliação dos bancários. “A nossa expectativa é que os políticos maranhenses se sensibilizem e que a sugestão de incorporação seja aceita. Se isso acontecer, será um importante instrumento de combate à miséria que assola o Maranhão”, diz Rosário Braga, que acreditava que o governo Lula suspenderia as privatizações. “Para nós, foi uma grande decepção ver a manutenção dessa política estúpida de acordo com o FMI, que exige as privatizações”, afirma.

Eletropaulo e da Cia. de Geração de Energia Elétrica Tietê.

ra abrir amplamente o seu mercado, ou desvalorizar a sua moeda.

> A China cresce

> Programa não decola

pressivo como instituição financeira para o Maranhão. Se mesmo essa “inexpressividade” deixar de ser estatal, 41 municípios do Maranhão vão ficar sem crédito, de acordo com Raimundo Costa, presidente do sindicato dos bancários do Estado. E aumentará o desemprego. “A lógica da iniciativa privada é sangrar recursos para os grandes centros financeiros, como São Paulo e a consequência disso será a demissão de quase todo o quadro de funcionários”, prevê.

ALTERNATIVAS

Fatos da Economia > Fraudes na privatização

Quando sai na imprensa internacional, aí, sim, os desvios de rota nas privatizações são admitidos no Brasil. Segundo o jornal britânico Financial Times, teriam ocorrido irregularidades na venda das estatais de energia elétrica. Há informações, agora, que, depois de quase seis meses de investigações preliminares, a Secretaria de Direito Econômico (SDE), do Ministério da Justiça, vai instaurar um processo administrativo contra a VBC, AES, Enron e Light, suspeitas de fechar acordos para fraudar, entre outros, os leilões da

Em 2003, a economia do país deve crescer 8,5%, segundo estimativas oficiais do governo. A expansão do Produto Interno Bruto (PIB, soma de todas as riquezas produzidas pelo país) terá forte influência do setor industrial, que deve ter uma expansão de 16,5%. Quanto aos investimentos, podem aumentar até 30% em relação a 2002. Até agora, a República Popular da China não se submeteu às exigências dos EUA pa-

Nem empolgadas com o governo Lula, nem recebendo subsídios para contratar jovens entre 16 e 24 anos, as empresas aderiram ao Primeiro Emprego. Operacional em dez capitais, há um mês, até a segunda quinzena de novembro menos de mil jovens foram atendidos, em relação a uma previsão de 260 mil até julho de 2004. O programa dispõe de recursos de R$ 139 milhões para este ano.


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SEGUNDO CADERNO LIVRE COMÉRCIO

Começa mais uma etapa da batalha Jorge Pereira Filho da Redação

Renato Stockler

Em Miami, movimentos organizam mobilizações para barrar Alca em encontro que pode definir futuro do continente

O

s povos da América Latina vão enfrentar mais uma rodada da batalha contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Representantes de 34 países – todas as nações americanas, menos Cuba – participarão da VIII Reunião Ministerial da Alca, em Miami, nos Estados Unidos, entre os dias 19 e 21. Cada setor da sociedade tenta defender seus interesses. Empresários brasileiros e estadunidenses lançaram um manifesto a favor de um acordo ambicioso. As centrais sindicais, os movimentos populares e as organizações não-governamentais preparam uma série de mobilizações contra as negociações. No Brasil, a Coordenação dos Movimentos Sociais convocou protestos para o dia 21, em diversas capitais (veja reportagem abaixo). A intensificação das manifestações ocorre ao mesmo tempo em que as negociações do acordo chegam a um momento decisivo. A pouco mais de um ano do prazo estipulado pelo governo dos Estados Unidos para a implantação da Alca, janeiro de 2005, os países divergem em mais de 5 mil pontos do textobase proposto.

A LA CARTE Na última semana, Brasil e Estados Unidos passaram a defender oficialmente a mesma proposta, batizada de “Alca a la carte”, redigida pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorin, e pelo secretário de Comércio estadunidense, Robert Zoellick. A fórmula sugere um acerto mínimo entre os países, com definição de regras e normas de comércio. Para os temas mais polêmicos, como os capítulos de subsídios agrícolas, investimentos e compras governamentais, as nações poderiam fazer acordos bilaterais ou multilaterais. O acerto, considerado uma vitória brasileira, só foi alcançado depois que o governo brasileiro desistiu de negociar a redução dos subsídios agrícolas na Alca, como queriam os estadunidenses. A

Coordenação dos Movimentos Sociais convoca protestos contra o acordo e o Fundo Monetário Internacional (FMI) em diversas capitais para o dia 21

proposta está sendo considerada um segundo nível de negociações, acima da “Alca light”, defendida pelo Mercosul, que seria o primeiro nível. “Embora essa proposta seja uma derrota para os Estados Unidos, que querem um acordo abrangente, mantemos nossa posição de dizer não a qualquer Alca, seja ela ‘light’, ‘a la carte’ ou ambiciosa”, diz Fátima Mello, da Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip), que está em Miami como representante da Campanha Continental contra a Alca. Segundo ela, foi armado na cidade um rígido esquema para intimidar as mobilizações. “Nunca vi tantos policiais por metro quadrado”, afirma. Os Estados Unidos, apesar de dizer que aceitaram a proposta da “Alca a la carte”, ameaçam com represálias. Zoellick avisou que os

Brasileiros contra a Alca e por trabalho A Coordenação dos Movimentos Sociais está preparando manifestações nas capitais brasileiras durante o dia 21, data de protestos em todo o continente americano. Em Miami, local da VIII Reunião Ministerial da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), uma grande marcha percorrerá a cidade. As organizações que compõem a coordenação, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) já divulgaram um documento com suas propostas (veja reportagem na página 4). Segundo Ana Lu Faria, inte-

grante da Marcha Mundial das Mulheres, a mobilização tem como objetivo rejeitar a Alca e a renovação do acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que está sendo negociado pelo governo. Além de rechaçar a continuidade do modelo neoliberal, o protesto vai defender um novo padrão de desenvolvimento sócio-econômico. “Queremos um novo modelo, que gere distribuição de renda, faça a reforma agrária e execute uma política industrial voltada para o consumo de massa”, afirma Ana. No Brasil, já estão definidas as programações de algumas cidades para o dia 21. Confira abaixo. (JPF)

Brasília

Mobilização em frente à embaixada dos Estados Unidos

São Paulo

Protesto em frente ao Banco Central, com início às 10h

às 13h, em frente ao consulado Rio de Janeiro Concentração dos Estados Unidos

Salvador

Manifestação às 17h, em frente ao Terminal da Lapa

Fortaleza

Caminhada, com concentração às 8h30, na Praça da Bandeira

Porto Alegre

Marcha dos Sem pela cidade

países que não quiserem acordos amplos poderão ser penalizados. Essa ameaça confirma a tese de que, para fazer valer sua vontade, os Estados Unidos estão armando um cerco à América Latina, por meio de organismos multilaterais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

PAPÉIS TROCADOS Alguns países também já assumiram a defesa de um acordo amplo e ambicioso. É caso do Chile, do Canadá e do México. Os três países não aceitam a proposta do Mercosul e lideram um grupo de 13 nações que já assinaram tratados de livre comércio e, por isso, perderiam menos com a Alca. Nos bastidores, desconfia-se de que os Estados Unidos estejam fazendo jogo duplo: acatam a “Alca a la carte” e, ao mesmo tempo, estimulam

outros países a defender o acordo original. Essas nações estariam desempenhando papel parecido ao que a Colômbia teve no G-Plus, como relatou Hector Mondragon, em artigo publicado na edição 32 do Brasil de Fato (9 a 15 de outubro). Naquela ocasião, o país andino defendia interesses estadunidenses dentro da articulação de países subdesenvolvidos, criada para negociar na Organização Mundial do Comércio (OMC).

MOBILIZAÇÕES Os empresários do Brasil e dos Estados Unidos, organizados, divulgaram um documento defendendo a Alca abrangente, como era proposta no início. O manifesto do grupo patronal ganhou amplo destaque na grande imprensa. O mesmo não ocorreu, no entanto, com as

manifestações de outros setores da sociedade. Movimentos sociais, reunidos na Campanha Continental contra a Alca, cumprem uma jornada de mobilizações nos países latinoamericanos. Do Canadá ao Chile, os povos opõem-se ao acordo, que pode trazer mais desemprego. Para ficar nos países da América do Sul, Peru, Venezuela, Bolívia, Equador e Colômbia organizam, desde o início do mês, campanhas de esclarecimento da população sobre as conseqüências da Alca na vida das pessoas. No Paraguai, no Uruguai e na Argentina, durante o encontro em Miami, estarão sendo realizadas consultas populares para a população se expressar sobre o acordo. As manifestações vão culminar com grandes marchas, dia 21, data da mobilização continental contra a Alca.

O QUE QUER A ALCA? Investimentos – EUA querem impor garantias e privilégios para suas transnacionais e investidores em todos os Estados nacionais integrantes do acordo. Conseqüências: Permitiria empresas processarem Estados em tribunais nos EUA. Impediria que os povos formulassem suas próprias políticas de desenvolvimento nacional. Compras governamentais – Fornecedores internacionais podem competir em condições iguais com empresas locais nas licitações e compras do setor público. Conseqüências: Impediria os Estados de usar seu poder de compra para promover o desenvolvimento nacional. Exemplo: proibiria uma prefeitura de comprar produtos de pequenos agricultores destinados à merenda escolar. Propriedade Intelectual – Criar uma legislação regulando direitos de propriedade intelectual. Conseqüências: Patenteamento de frutas, plantas, animais, sementes e até de códigos genéticos. Impede que o conhecimento humano seja compartilhado entre todos os po-

vos, dando às empresas o poder exclusivo de explorá-lo comercialmente por anos. Agricultura –Reduz tarifas para o comércio dos produtos agrícolas entre os países. Conseqüências: O abandono de políticas de desenvolvimento agrário ou voltadas para a agricultura familiar aumentaria o êxodo rural. Favoreceria o modelo agrícola baseado no latifúndio. Acesso a mercados – Diminui tarifas, subsídios e impede a adoção de políticas industriais pelos Estados nacionais. Conseqüências: Agravamento do desemprego. A irrestrita abertura comercial prejudicaria a indústria local, além de eliminar postos de trabalho. Serviços – Serviços profissionais (consultoria, contabilidade etc.), educacionais, culturais, ambientais (água e esgoto) são tratados como mercadorias. Conseqüências: Privatização dos serviços públicos. Aniquilaria a possibilidade de o Estado considerar a educação ou o acesso à água e à saáude, por exemplo, como direitos universais. Fonte: Rebrip e www.jubileubrasil.org.br


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De 20 a 26 de novembro de 2003

AMÉRICA LATINA CÚPULA IBERO-AMERICANA

O perigo chama-se neoliberalismo da Redação

A

governabilidade democrática está em perigo por causa da crescente insatisfação social e da desesperança popular diante de um sistema econômico que concentra a riqueza em poucas mãos, aumenta a pobreza e agrava as diferenças entre ricos e pobres. Essa sentença condenatória ao neoliberalismo foi firmada por chefes de Estado da América Latina, Espanha e Portugal, reunidos semana passada em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Em uma declaração conjunta, eles convocam todos a lutar pela superação da pobreza na América Latina, por meio da aplicação de políticas integrais e desenvolvidas pelo Estado, com a participação de todos os setores. A Declaração de Santa Cruz foi assinada pelos 21 chefes de Estado e de governo dos países-membro da 13ª Cúpula Ibero-americana. O documento, de 45 pontos, não menciona literalmente as políticas de livre mercado que agravam a desigualdade e a injustiça social. Mas na carta os líderes ibero-americanos admitiram que a exclusão social é um problema de caráter estrutural, com profundas raízes históricas, econômicas e culturais, cuja superação exige amplas transformações. No papel, a declaração foi uma concessão, ainda que apenas formal, aos movimentos sociais e populares do Continente, que sofrem a pobreza na própria carne e por essa razão estão contra o neoliberalismo. No entanto, à margem da Declaração, os presidentes dos quatro países mais desenvolvidos da região – Brasil, México, Argentina e Chile – advogaram apoio à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), dando respaldo ao livre mercado e ao aprofundamento do neoliberalismo em todos os âmbitos da vida econômica, social e política na América Latina.

Dida Sampaio/AE

A Declaração de Santa Cruz reconhece que os latino-americanos não agüentam mais o neoliberalismo e a pobreza

Presidente Lula se encontra com o líder dos camponeses bolivianos Evo Morales, um dos organizadores do Encontro Social Alternativo

Quanto à dívida externa, que se converteu outra vez num grande problema regional, os chefes de Estado e de governo exigiram

uma atitude diferente das instituições internacionais. Ratificaram sua predisposição para resolver a questão de maneira “efetiva, justa e duradoura”, com o objetivo de que os planos de ajuste econômico preservem os princípios de eqüidade e justiça social, bem como a luta contra a pobreza, a fome e o desemprego. Essa seria outra grande transformação, que, no entanto, depende das instituições filiadas a Washington. “Para aliviar o peso da dívida por meio das negociações e iniciativas multilaterais, instamos o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento a que intensifiquem os mecanismos de prevenção e resolução das crises financeiras que ocorrem em determinadas economias latino-americanas”, diz a Declaração. Pede ainda que sejam avaliadas, individualmente e em

VENEZUELA

DIREITOS HUMANOS

DÍVIDA EXTERNA

Chávez pede calma no referendo da Redação Em seu discurso de todos os domingos, em rede nacional de rádio e televisão, o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, conclamou a população a não recorrer à violência durante as diferentes campanhas para coleta de assinaturas para referendos a respeito de seu mandato e dos mandatos de parlamentares. Setores de oposição a Chávez programaram uma campanha de coleta de assinaturas entre os dias 28 de novembro e 1º de dezembro, para convocar um referendo sobre a interrupção do mandato do presidente. Setores favoráveis ao atual governo marcaram sua própria campanha de coleta de assinaturas entre os dias 21 e 24 de novembro. Só que a consulta diz respeito a um referendo que interrompe o mandato de 38 parlamentares da oposição. Chávez lembrou, em seu discurso, que é a primeira vez em que o povo venezuelano assina petições “para solicitar alguma coisa” e chamou a ocasião de “histórica”. Pediu que os promotores das duas campanhas opostas não entrem em confronto. (Com agências internacionais)

conjunto com os países afetados, fórmulas para aliviar os pesos insustentáveis da dívida, preservando os princípios de responsabilidade mútua, de eqüidade, de combate à exclusão e, em especial, promovendo o fortalecimento da governabilidade das democracias. O documento estabelece, além disso, que os países ibero-americanos reconheçam a urgente necessidade de aplicar políticas públicas orientadas para diminuir a pobreza e aumentar o grau de participação de todos os setores excluídos da população na formulação das políticas sociais, da tomada de decisões e do controle e fiscalização sobre os recursos financeiros destinados a fazer cumprir essas políticas. “Assim poderemos propiciar seu acesso à terra, às fontes de trabalho, a uma melhor qualidade de vida, à educação, saúde e moradia e outros serviços básicos”, assinala o documento.

Os países ibero-americanos se propõem impulsionar ações necessárias para fazer diminuir os elevados índices de desemprego, gerando condições propícias para o desenvolvimento dos negócios e para o investimento produtivo. A declaração, repleta de idéias sugestivas, retoma tópicos abordados nas declarações das 12 reuniões de cúpula anteriores, e que ficaram na simples e estéril retórica.

FORÇA POPULAR Paralelamente à 13ª reunião da Cúpula Ibero-americana, acontecia na Bolívia o Encontro Social Alternativo, com cerca de 200 dirigentes camponeses e indígenas. Eles deliberaram a favor de uma Assembléia Constituinte, que segundo o governo de Carlos Mesa será realizada o mais breve possível. “Não podemos permitir que os mesmos politiqueiros conti-

nuem nos manejando, que só eles tenham a possibilidade de fazer algumas coisas. Temos que ser nós mesmos, a partir de nossas próprias organizações”, sustentou um dos líderes. Um dos ativistas que participaram do Encontro Social Alternativo foi o líder cocaleiro Evo Morales, que fez um discurso aos chefes de Estado. Defendendo o movimento populares que paralisou o país pouco mais de um mês atrás, Morales apresentou o resultado de três dias de deliberações populares. Disse que os bolivianos exigem “a liberdade absoluta de nossos direitos, saúde digna, moradia digna, trabalho digno, educação digna, o respeito à dignidade da soberania dos povos, o respeito à dignidade da autodeterminação dos povos. O respeito à dignidade das Nações que formam nossa república”. (Com agências internacionais)

Líder mexicano denuncia trabalho escravo da Redação Lucas Bernítez, camponês mexicano condecorado com o prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, denuncia: nos Estados Unidos, os direitos dos trabalhadores imigrantes são violados, ao mesmo tempo em que o presidente George W.Bush não manifesta interesse em resolver o problema de milhares de latino-americanos sem visto e escravizados. “É desumano que, enquanto os tratados de livre comércio abrem fronteiras para o capital, fechem as portas para os seres humanos”, declarou o lavrador de 29 anos, que lidera a Federação de Trabalhadores de Immokalee, no Norte da Flórida. O prêmio, no dia 20, foi outorgado a Bernítez e aos guatemaltecos Julia Gabriel e Romeo Ramírez. Nos últimos anos, eles liberaram milhares de trabalhadores sem visto de permanência nos Estados Unidos. Para o mexicano, o prêmio significa “um grande avanço, pois assegura nossa luta para denunciar os maus-tratos e a violação aos direitos humanos que os trabalhadores do campo nos Estados Unidos continuam sofrendo”. Sobre as promessas de legalizar a residência dos trabalhadores imigrantes, o camponês disse que

“Bush não tem qualquer interesse em legalizar os irregulares ou em reunificar famílias há anos radicadas nos EUA, ou tampouco remediar as violações aos direitos humanos”. Para ele, o programa de emigração para trabalhos temporários, incentivado pelo presidente mexicano Vicente Fox, é mais “uma forma de escravidão, pois nos obrigaria a trabalhar com um só patrão e não poderíamos sair de uma companhia a outra. Se isso não é escravidão, então não sei o

que é”. Ele acredita que a saída é “primeiro legalizar os milhões que já estão aqui. Segundo, se realmente querem fazer um tratado, garantir que os imigrantes possam trabalhar com qualquer patrão e que tenham todo o direito de organizarem-se para ter uma voz própria nesse país”. Para Bernítez, o Tratado de Livre Comércio da América do Norte “foi mais um fator que obrigou a emigração de muitos”. Segundo ele, o trabalho de organizações

como a Federação de Trabalhadores de Immokalee contribui para mudar essa realidade. “Começamos a nos organizar de forma discreta e em 1995 fizemos uma greve. Desde esse momento, as coisas mudaram, vários patrões foram julgados e condenados e as condições de trabalho melhoraram. Mas ainda temos que fazer muito para que realmente os direitos humanos dos trabalhadores do campo sejam garantidos nos Estados Unidos”. (Adital/Tierramerica)

CHILE

Presos políticos fazem greve de fome da Redação Em Santiago, desde 27 de outubro, quatro presos políticos – Alejandro Rodríguez, Pablo Morales, Rodolfo Retamales e Marcelo Villarroel – estão em greve de fome para exigir a liberdade de todos os presos políticos chilenos e mapuches, além da liberdade imediata dos presos que reúnem os requisitos para obter “benefícios carcerários”. No dia 17, aderiram ao movimento Pedro Rosas Aravena (doente de câncer) e Julio Peña Parada, também enfermo. A greve coloca em

risco suas vidas. No dia 10, já faziam parte do movimento 21 presos. A greve exige que seja promulgada a lei de indulto geral para os detentos políticos, “adormecida” no Senado há quase um ano. Trata-se de uma possibilidade real de liberdade para a maioria dos ativistas, alguns encarcerados há13 anos. Os presos políticos estão nos cárceres de Alta Segurança (CAS), Penal de Colina 1, Hospital Penitenciário, Cárcere de Antofagasta e de Talca, Penal El Manzano de Concepción e Penal de Osorno.

Entre os presos está Abraham Larrea Zamorano. Detido há 13 anos, foi condenado a 34 anos, dos quais 23 anos correspondem a processos da ditadura militar. Ele foi o primeiro a entrar em greve de fome, exigindo que sua situação seja resolvida, por meio da aplicação da “Leye Cumplido”. Caso tivesse recebido indulto, ele estaria em liberdade há dois anos. O presidente Ricardo Lagos não se pronunciou sobre o caso, apesar do compromisso de indultar os presos políticos da ditadura. (Adital)


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INTERNACIONAL FÓRUM SOCIAL

Europa debate “outro mundo possível” P

aris e mais três cidades francesas sediaram o movimento que vem sendo chamado de “altermundista”, entre os dias 12 e 15, durante o II Fórum Social Europeu. O encontro manteve acesa a resistência ao neoliberalismo na União Européia e reuniu cerca de 100 mil pessoas na marcha de encerramento. Com o lema de “Outra Europa é possível, outro mundo é possível”, o Fórum foi marcado pela diversidade cultural e por protestos contra a militarização (veja reportagem abaixo). No final, as organizações sociais estabeleceram uma agenda de mobilizações até abril de 2004. O principal foco da luta no Velho Mundo é o debate sobre a União Européia. Está em elaboração a nova Constituição Européia (CE) que, segundo os movimentos sociais, estabelece o liberalismo como doutrina oficial dos países europeus. Os altermundistas afirmam que os legisladores estão trabalhando sem ouvir a sociedade civil e prometem uma série de mobilizações para barrar a CE. Uma grande manifestação está sendo preparada para 9 de maio, quando a União Européia irá ratificar a Constituição. A luta pela paz também foi enfatizada no documento final do Fórum Social Europeu. Os movimentos vão adotar o dia 20 de março de 2004 – data definida pelo movimento antiguerra estadunidense como dia da luta contra a guerra preventiva ao terror de Bush – como marco para um protesto global, a exemplo do que ocorreu este ano, em 15 de fevereiro. Entre os objetivos, está o

Disparos contra a invasão de Bush Julio Godoy de Saint Denis (França)

Invasão do Iraque e a situação da Palestina foram alguns dos temas abordados no Fórum Social Europeu

repúdio à invasão militar do Iraque e à construção do muro de Israel, dividindo o território palestino.

ESQUERDA RENOVADA Para o cientista político Emir Sader, o Fórum Social Europeu foi a expressão de uma esquerda renovada no Velho Mundo, com novas gerações e novas expressões organizativas. As principais bandeiras do movimento, segundo Sader, são: proteção social pública; taxação do capital financeiro; luta contra o desemprego; defesa dos serviços públicos; variantes da renda míni-

ANÁLISE

Antes dos ataques com mísseis e com 2 mil bombas sobre áreas urbanas de Bagdá, e antes que se espalhassem armamentos com urânio, já se espalhavam nos Estados Unidos as armas de enganação em massa. Essas armas estavam contidas nas falas do presidente Bush e do secretário de Estado Colin Powell, que se empenhavam em repetir mentiras sobre armas de destruição em massa no Iraque e sobre as ligações do governo iraquiano com a Al Qaeda. Mas o principal arsenal dessa propaganda – que garantiu a guerra contra o Iraque – foram os meios de comunicação. Quando um país que se considera uma democracia entra em guerra, a aprovação passiva dos governados lubrifica a máquina do extermínio. O silêncio é peça-chave da cooperação, mas a máquina da guerra não se conforma somente com aprovação. A mera passividade já serve de apoio aos mísseis e bombas que matam. Hoje, apesar dos fatos conhecidos e da divisão de opinião entre as elites nos EUA sobre Iraque, o colunista Thomas Friedman, do The New York Times, continua a apoiar a ocupação. Mas em 1999 ele escreveu um livro com a seguinte afirmação: “A mão invisível do mercado não poderia atuar sem um pulso forte. O McDonald’s não cresceria sem o McDonnell Douglas, que desenhou o avião de guerra F-15. O pulso oculto que mantém a tecnologia dos computadores do Vale do Silício se chama Exército, Aeronáutica e Marinha dos EUA”. Essa visão vem da perspectiva de um mundo controlado por uma espécie de “corporação estadunidense”, onde a soberania pertence a empresas

mais de 100 organizações não-governamentais, a Europa sai às ruas em questões específicas, como nos protestos contra a guerra, mas falta uma cultura de lutas concretas e mobilizações permanentes, tão bem implementados pelos movimentos latino-americanos. Já para o mexicano Hector de La Cueva, da Rede Mexicana de Ação contra o Livre Comércio (Remalc), os movimentos latino-americanos têm de superar deficiências como um corporativismo limitante. Segundo Cueva, ainda falta maior noção de como as questões globais afetam os povos.

IRAQUE

A mídia, um poderoso arsenal de guerra Norman Solomon dos Estados Unidos

ma e controle da cidadania sobre o Banco Central Europeu. Tal fortalecimento dos movimentos sociais altermundistas ocorre, na Europa, depois de um período de descrença com os partidos sociais-democratas, que assumiram o poder na maioria dos países, mas colocaram em prática uma agenda neoliberal. De acordo com reportagem da Agência Carta Maior, essas organizações européias buscam maior aproximação com os movimentos sociais latino-americanos. Para a rede italiana 3º Settore, que reúne

A guerra contra o terrorismo, declarada pelos Estados Unidos, é uma tentativa de George W. Bush de dominar os recursos do planeta pela força militar, afirmaram analistas no II Fórum Social Europeu. “A ocupação do Iraque é o componente militar de uma estratégia mundial de capitalismo conduzida por Washington”, disse o jornalista espanhol Ignácio Ramonet, diretor do jornal francês Le Monde Diplomatique, cuja posição foi compartilhada por oradores de vários países, inclusive dos Estados Unidos e de Israel. O orçamento militar estadunidense chega a 360 bilhões de dólares ao ano, recordou o pacifista grego Panos Garganas. Porém, um orçamento semelhante para a Europa não estabilizaria o mundo. “Estaríamos pagando por melhorias militares com uma queda de nossos sistemas de previdência social. Com forças armadas de poder similar, a Europa poderia cometer os mesmos crimes que os Estados Unidos”, afirmou Garganas. O ativista israelense Peretz Kidron considerou a ocupação dos territórios palestinos por seu país “uma tragédia para os dois povos”. Kidron estimou que mais de mil soldados e oficiais israelenses estão na prisão por se opor à guerra contra o povo palestino. (IPS/Envolverde)

como American Express, Citibank, McDonalds, Burger King, Monsanto, Disney e CNN. A mídia tem o poder de incluir e excluir idéias, e assim manipula a opinião pública. Em tempos de guerra, se cria uma consciência militarista. Em um país considerado democrático, é assim que se manipula o consenso sobre uma guerra baseada em mentiras. É impossível gerar participação democrática, quando o peso do capital esmaga a liberdade de expressão e limita o debate. É necessário, mas não é suficiente garantir liberdade de expressão. Todos devem ter o direito de ser ouvidos. Do contrário, “liberdade de expressão” significa – o que acontece geralmente – liberdade de falar para as paredes. O monopólio da mídia e o poder dos anunciantes são fatores que limitam a gama de informação e o debate. Outras pressões – econômicas, ideológicas e governamentais – limitam o trabalho dos jornalistas, que constantemente são submetidos à autocensura. Um trabalho contínuo para desafiar a mídia comercial deve ocorrer paralelamente – incluindo a criação, a manutenção e a expansão da mídia independente; a divulgação de posturas críticas sobre a grande imprensa; a luta por mudanças estruturais para democratizar as instituições governamentais e estabelecer o acesso público; e a denúncia, a sátira e a revelação do lixo disfarçado de jornalismo ou de programação cultural. A longo prazo, uma campanha para reformar a mídia não pode estar dissociada de um movimento social amplo – e vice-versa. A degradação do jornalismo e da comunicação de massa está ligada ao poder perverso das grandes empresas, que prejudica todas as esferas sociais e políticas.

Patrick Baz/AFP

da Redação

Joel Saget/AFP

Milhares participam da marcha de encerramento do Fórum Social Europeu, marcado por protestos contra a militarização

Iraquianos assistem a incursões militares nos arredores de Bagdá

Pentágono toma conta de tudo Da Redação O Pentágono, órgão de Defesa dos Estados Unidos, criará um escritório em Bagdá para direcionar os projetos de reconstrução no Iraque. Chamado de Escritório para a Reconstrução da Infra-Estrutura do Iraque (IIRO, sigla em inglês), esse centro de administração será responsável também pelo destino das doações internacionais e dos lucros da venda do petróleo iraquiano. De acordo com Joseph Yosh, porta-voz da junta cívico-militar estadunidense no país árabe ocupado, o escritório também administrará os 18,7 bilhões de dólares recentemente aprovados pelo Congresso. A divisão do Pentágono, sob o comando do almirante de reserva David Nasch, e que contará com 100 membros, vai supervisionar a outorga de contratos a empresas

privadas – até agora, somente dos Estados Unidos – e verificará o seu desenvolvimento. Também prestará contas a Paul Bremmer, o administrador civil da junta estadunidense, segundo noticiou o jornal The Washington Post. Yosh disse que a IIRO não será responsável pela outorga dos negócios, mas controlará organismos dos Estados Unidos encarregados de fazê-lo. Exemplos são a Agência Internacional para o Desenvolvimento (Usaid) e o Corpo de Engenheiros do Exército, que devem destinar vinte novos contratos de reconstrução.

EMPRESAS BENEFICIADAS A Usaid concedeu a empresas estadunidenses, sem prévia consulta licitatória, onze contratos fixos e cinco contratos de subvenção, pelo valor de 2 bilhões de dólares.

Investigações posteriores provam que as empresas beneficiadas são as principais doadoras da campanha eleitoral do presidente George W. Bush. Já o Corpo de Engenheiros do Exército entregou 1,5 bilhão de dólares à empresa KBR, subsidiária da corporação Halliburton, com sede em Houston, Texas, para dirigir as operações petrolíferas no Iraque. O atual vice-presidente Richard Cheney, um dos principais arquitetos da guerra contra o Iraque, acumulou uma fortuna de cerca de 30 milhões de dólares como chefe executivo da Halliburton, cargo que deixou em 2000, para unir-se a Bush na Casa Branca. Ainda não foi noticiado novo processo de licitação para a segunda rodada de assinatura contratual e tampouco será permitida a participação de outros países. (Envolverde/IPS)


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INTERNACIONAL ÁFRICA

Eleições antecipam confronto em 2004 Mirella Domenich e Marilene Felinto especial para o Brasil de Fato em Beira (Moçambique) e da Redação

A

s eleições municipais que aconteceram dia 19 de novembro em Moçambique antecipam os prognósticos para o pleito de novembro de 2004, que vai eleger o legislativo e um novo presidente para o país falante de português, no sudeste da África. Estima-se que mais de dois milhões de moçambicanos foram às urnas para escolher os “presidentes municipais” ou prefeitos de 33 municípios de todo o país. Em Moçambique, o voto não é obrigatório, e todas as pessoas com mais de 18 anos, portadoras de título de eleitor, podem votar. O confronto esperado nas eleições municipais estava entre os candidatos dos dois principais partidos, a Frente para a Libertação de Moçambique (Frelimo), do atual presidente, Joaquim Chissano, e o oposicionista Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), de direita. Chissano está no poder desde 1986, quando, então ministro do governo marxista de Samora Machel, subiu à Presidência depois da morte de Machel em acidente de avião provocado por sabotagem do governo racista da África do Sul. Foi eleito depois por voto direto em 1994 e 1999, nesta última eleição em vitória apertada (53,3% dos votos válidos) contra Afonso Dhlakama, então líder da Renamo, que obteve 47,7%. A Renamo é uma ex-guerrilha anticomunista que combatia a Frelimo e levou o país a uma guerra civil de meados dos anos 70 até 1990, deixando um saldo estimado de 900 mil mortos e 1,3 milhão de refugiados. As últimas eleições municipais no país ocorreram em 1998, com vitória da Frelimo e boicote da Renamo, que alegou, na época, que a legislação para a formação dos 33 municípios do país continha inconstitucionalidades. Sem concorrência, a Frelimo elegeu todos os prefeitos. Desta vez, depois de mudanças na lei, a Renamo está disputando as eleições em 32 dos 33 municípios. Em Mocuba, município da província (equivalente a Estado) da Zambézia, na região central de Moçambique, o candidato da Renamo, José Manteiga, foi impedido de concorrer às eleições pela Comissão Nacional de Eleições (CNE) por ter apresentado atestado falso de residência. A Renamo apelou com recursos até o último momento inutilmente. A campanha eleitoral transcorreu em relativa calma, com episódios isolados de violência, como o ataque que supostos partidários da Renamo teriam desferido contra uma jovem de 24 anos numa rua de Maputo (capital), só porque ela vestia uma camiseta estampada com o retrato do candidato da Frelimo à prefeitura da cidade, Eneas Comiche. As eleições desta semana contaram com a presença de 52 observadores internacionais, credenciados pela Comissão Nacional de Eleições de Moçambique, a maioria da União Européia (UE) e da Comunidade Britânica.

FATOR LULA Até mesmo a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Moçambique, no início de novembro, tem sido vista como fator que poderia beneficiar os candidatos da Frente para a Libertação de Moçambique, principalmente nas regiões onde o partido de oposição, a Resistência Nacional Moçambicana, teve maior adesão nas eleições presidenciais de 1999. A análise é do articulista político do jornal independente mo-

Fotos: Paulo Pereira Lima/Brasil de Fato

Moçambicanos vão às urnas escolher prefeitos, em pleito que representa verdadeira prévia do confronto que elegerá presidente no ano que vem

Campanha eleitoral da Frente para a Libertação de Moçambique (Frelimo) em rua de Maputo, no início de novembro

çambicano Zambeze, Alberto Paulo Chissico. O motivo, segundo ele, é que a visita de Lula com uma delegação de empresários, seria utilizada na campanha política. “Os moçambicanos confundem partido político com atividade de estadista”, disse Chissico. “Por isso, não ficarei surpreso se a

Frelimo usar a visita do chefe de Estado brasileiro a seu favor, instigando o povo a achar que a Frelimo, como partido político, é que foi a responsável pela vinda de Lula e dos empresários, e dos conseqüentes investimentos e empregos que isso possa vir a gerar”, afirmou ele, que considera a visita positiva para Moçambique do pon-

to de vista econômico. A imprensa local divulgou pesquisas eleitorais que apontavam a vitória da Renamo em 14 municípios do país, especialmente na região central e em alguns municípios do Norte, onde o partido recebeu maioria dos votos nas eleições de 1999. Se as previsões se confirmarem, será uma derrota política para a Frelimo e um forte

indicativo de que, em novembro de 2004, o partido que sempre governou o país terá dificuldades para continuar no posto. O Presidente Joaquim Chissano já anunciou que não pretende se apresentar como candidato às eleições presidenciais de 2004. Seu sucessor natural é o político veterano Armando Guebuza, provavel candidato pela Frelimo.

Township (favela) da população negra nos arredores de Pretória, capital da África do Sul, novembro de 2003

Sul-africanos querem terra para votar “Sem terra, sem voto”, este é o slogan do movimento dos sem-terra da África do Sul, Landless People´s Movement (LPM), empenhado em boicotar as eleições presidenciais de abril de 2004 no país, se o governo não tomar medidas imediatas em favor da reforma agrária. Na semana passada, o LPM lançou um manifesto em forma de cartaaberta ao presidente Thabo Mbeki,

repudiando uma recente decisão da Companhia do Metropolitano de Johannesburgo de remover quase um milhão de pessoas de assentamentos informais ao redor da cidade. O governo alega que as remoções são “realocações voluntárias”, o que o LPM nega. Uma marcha organizada pelo movimento em 7 de novembro foi proibida de acontecer pelas autoridades locais.

Trechos do manifesto dos sem-terra sul-africanos “Nós, do Movimento das Pessoas Sem Terra, um movimento nacional de trabalhadores pobres que lutam por terra e reforma agrária, queremos aqui expressar nossa ira e indignação por sermos insultados pelo governo. Nós falamos em nome dos 5 milhões de ‘posseiros’ que representamos e que vivem nas grandes cidades e nos pequenos povoados de toda a África do Sul. Todos os dias temos que confrontar um governo que quer nos tirar de nossa terra e de nossos lares. Todos os dias temos que suportar a dureza de viver sem habitações adequadas e sem os serviços básicos

que todos os seres humanos devem ter para sobreviver! (...) Nós lutamos contra o apartheid na esperança e na crença de que a vida seria melhor para nós! Esperávamos que na nova África do Sul nós teríamos terra e casas! Acreditávamos que a opressão e a indignidade criadas pelo apartheid terminariam com um novo governo! Mas, depois de toda a nossa luta, vêm dizer-nos que as comunidades que construímos por muitas décadas devem dar lugar às prioridades do governo de construir shoppingcenters, cemitérios e quadras de esportes. (...) Nós estamos aqui hoje para di-

Os sem-terra reivindicam a imediata reversão da decisão, uma moratória em todas as remoções de assentados informais das zonas rural e urbana do país e reforma agrária já. A África do Sul comemora em 2004 dez anos de democracia e fim do regime de segregação racial instituído pela minoria branca e conhecido como apartheid, que dominou no país por mais de meio sézer-lhe que em vez de construir uma vida melhor para todos, seu governo está levando a cabo remoções forçadas no estilo do apartheid. Estas remoções, dizemnos, está acontecendo em nome do ‘desenvolvimento’. Pois nós perguntamos por que o ‘desenvolvimento’ é trazido a nós por meio das armas e do terror dos Red Ants (Formigas Vermelhas, força policial da África do Sul). (...) Achamos difícil nos juntarmos às comemorações do décimo aniversário da democracia quando ainda somos tratados como animais. (...) Hoje nós estamos aqui para lhe dizer que nós não votaremos até termos nossa terra! Nós não votaremos até que nós, os pobres e sem-terra, sejamos tratados com a dignidade que merecemos!”

culo. Mbeki, o segundo presidente negro eleito democraticamente (o primeiro foi Nelson Mandela), está pronto para concorrer a um novo mandato, que lhe daria o poder por mais cinco anos. O partido de Mbeki, Congresso Nacional Africano (CNA), que teve participação lendária no combate ao apartheid desde os anos 40 até sua derrubada final no início dos anos 90, abrigou líderes como Nelson Mandela, Walter Sisulu e Stephen Biko, heróis da resistência sul-africana. Hoje, porém, o governo de Mbeki é duramente criticado pelos movimentos sociais locais por sua promoção de políticas neoliberais que ignoram uma reforma agrária ampla e justa. Cerca de 65 mil brancos (menos de 1% da população) detêm mais de 80% das terras férteis sul-africanas. Estima-se em 26 milhões o número de sem-terra no país de 40,4 milhões de habitantes. (MF)


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NACIONAL MEIO AMBIENTE

Contra o crime organizado, a preservação da Redação

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recente onda de mobilizações contra o crime organizado no Sul do Pará e Norte do Mato Grosso obteve sua primeira conquista. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, e o governador do Pará, Simão Jatene, anunciaram que a área conhecida como Terra do Meio, entre Altamira e São Félix do Xingu, será transformada em um mosaico de unidades de conservação. O primeiro passo é a criação de uma força-tarefa, de policiais federais e estaduais na região. A medida é defendida em diversos manifestos de organizações ambientais e sociais, já que o desmatamento é produzido pela expansão das atividades das madeireiras e agropecuárias, que trazem consigo a grilagem, o trabalho escravo e a violência no campo. O mosaico em estudo para a região envolve a consolidação de terras indígenas e áreas federais. Cria diversas unidades de uso sustentável no eixo Transamazônica-Xingu e também na região de Anapu, onde recentemente uma manifestação do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) bloqueou a rodovia. O primeiro alvo são os traficantes de madeira, de trabalho escravo e de títulos falsos de terras que atuam na imensa região – onde as estradas ilegais passam de 15 mil quilômetros – a partir de grupos sediados em Estados vizinhos. O ministro de Justiça negou os boatos recentes falando em intervenção federal na região.

FISCALIZAÇÃO No dia 12, durante encontro com organizações civis, foram apresentadas as diretrizes elaboradas pelo Grupo Permanente Interministerial de Combate ao Desmatamento. O grupo foi criado em julho, depois dos números alarmantes anunciados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Segundo o Instituto, no período 2001-2002 foram desmatados 25.400 km². Com quase metade de seu território ocupado por terras públicas ou em disputa, os nove Estados da Amazônia brasileira devem ganhar ações mais enérgicas contra os invasores, principalmente no arco do desmatamento. Uma de-

Antônio Milena/ABR

Terra do Meio, extenso território entre Pará e Mato Grosso, será transformada em mosaico de unidades de conservação

Força-tarefa vai proteger área de preservação ambiental entre o Pará e o Mato Grosso

las é a lei que torna crime a invasão das áreas. De imediato, estão sendo desenvolvidas ações integradas entre fiscais dos setores fundiário, ambiental e trabalhista, a fim de se obter um cadastro integrado de referências geográficas. O trabalho de monitoramento também deve aumentar a parceria entre setores do governo federal e destes com organismos estaduais e municipais. As orientações foram feitas por um grupo interministerial, que envolveu 12 ministérios e a Casa Civil. A proposta final deve ser divulgada dia 30. Até agora, a parte mais surpreendente das diretrizes é na área de fomento, com acesso de pequenos produtores ao crédito, aumento de rigor nos fundos e financiamentos e maior incentivo para arranjos produtivos locais. Conforme as diretrizes, todos os grandes projetos passam a receber grupos específicos de acompanhamento e revisão, com diversos ministérios e autarquias federais. (Adital)

PERU

Exploração ameaça territórios dos índios da Redação “Existem na Amazônia peruana numerosas comunidades cujas moradias, lugares de caça, pesca, coleta e zonas sagradas estão sendo transformadas em unidades de aproveitamento florestal”. A denúncia é da Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (Aidesep), referindo-se a territórios indígenas alocados a empresas de exploração florestal. A instituição alega que, por muitos anos, a presença de madeireiros ilegais, decididos a destruir bosques a todo custo, “motivaram embates, mortes, depredação, desorganização, desabastecimento de gêneros alimentícios para nossas famílias e para a geração de renda”. Mesmo diante desse quadro, o Estado não tomou as ações necessárias para solucionar o problema. “Diante do pedido de reparação física e legal das comunidades afetadas pelas concessões florestais, o Estado respondeu que não conta com recursos para atender às nossas solicitações”, diz a Aidesep. Paradoxalmente, o Estado conta com

fundos exigidos para a “eficiente” e acelerada concessão de títulos a colonos e permissões a empresas florestais. “Discriminação? E o que aconteceu com a política de respeito aos povos indígenas tão difundida por Alejandro Toledo internacionalmente?”, pergunta o organismo, referindo-se ao presidente peruano. A Aidesep menciona os casos de povos indígenas como o Asháninka que, “em conseqüência das ações em defesa de seu território, hoje se confronta com denúncias judiciais impostas pelo Consórcio Florestal Amazônico, o mesmo que possui concessões florestais em uma superfície superior aos 180 mil hectares”. Anuncia que as organizações indígenas da região se declararam em estado de emergência e que tomarão ações em defesa de seus territórios. “Os Asháninka estão se organizando para defender, se necessário com os próprios recursos, seus territórios e seu direito à vida. O exército Asháninka do Grande Pajonal, pilar fundamental da luta contra o terrorismo, decidiu mobilizar-se e dirigir-se à zona de conflito para apoiar a defesa do território de Churinashi.” (Adital/Agenot)

Vem aí a Conferência Nacional Jasper Lopes Bastos de São Paulo (SP) Sob grande expectativa dos movimentos sociais e ativistas ecológicos, acontece, entre os dias 28 e 30, a 1ª Conferência Nacional do Meio Ambiente. O encontro, com o tema “Vamos cuidar do Brasil”, foi precedido de conferências em todos os Estados e no Distrito Federal, numa tentativa de ampliar a participação da sociedade. Seis temas estratégicos orientarão os debates: água; biodiversidade e espaços territoriais protegidos; agricultura, pecuária, pesca e floresta; infra-estrutura de transporte e energia; meio ambiente urbano; e mudanças climáticas. O documento final aprovado em Brasília será encaminhado ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) A expectativa em relação à conferência deve-se ao caráter do encontro. Trata-se de uma conferência com poder decisório, que acontece em meio aos debates sobre produtos transgênicos, reservas indígenas e florestais e degradação generalizada do meio ambiente. Para participar do evento, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, decidiu convocar vários setores da sociedade: organizações ambientalistas, movimentos sociais, cooperativas, sindicatos de trabalhadores, federações empresarias e comerciais, comunidades tradicionais (indígenas, pescadores,

Ministra Marina Silva convocou vários setores para discutir questões ambientais

caiçaras, negros etc.), estudantes, órgãos representativos de profissionais liberais, instituições religiosas, policiais, militares – incluídos os bombeiros –, prefeituras e câmaras municipais. As conferências regionais começaram em setembro. No final de outubro, foram realizados os encontros estaduais, com eleição

dos representantes ao encontro nacional. Segundo Renato Lorza, secretário estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Partido dos Trabalhadores (SP) em São Paulo, a Conferência é inédita. “É a primeira vez na história deste país que as pessoas podem influir na política nacional de meio ambiente”, disse.

ÍNDIGENAS

Interferência em terras causa polêmica da Redação A Casa Civil da Presidência da República não gostou nem um pouco do documento divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), durante o 1ª Fórum Social Brasileiro. Em carta pública, nega que tenha criado procedimentos protelatórios para a homologação de terras indígenas, conforme denúncia da entidade indigenista. No documento “Dez meses de violências contra os povos indígenas”, o Cimi acusa a Casa Civil de “submeter arbitrariamente a demarcação das terras indígenas às

instâncias não identificadas com os direitos dos povos indígenas, como o Conselho de Defesa Nacional”. Na carta aberta, a Casa Civil classifica as informações de “equivocadas”. Diz que o procedimento adotado pela Casa Civil atualmente não contempla a oitiva do Conselho de Defesa Nacional para o reconhecimento oficial das terras indígenas na fase de homologação das terras já demarcadas. “Esse procedimento vinha sendo adotado desde o governo passado, para as áreas de fronteiras ou que, por outras razões, eram consideradas de segurança nacional, e, embora não configure

nenhuma inconstitucionalidade ou ilegalidade, foi abolido”. Conforme o Cimi, neste ano ocorreu um “verdadeiro desfile” de comitivas pleiteando junto ao Ministério da Justiça e outros setores do governo a não-demarcação de terras indígenas ou negociando a redução de limites ou mesmo propondo transferência dos índios. Para a entidade, compromissos básicos da campanha, como a criação do Conselho Superior de Política Indigenista, com participação decisiva dos índios, e a realização de uma Conferência de Política Indigenista, não foram cumpridos.


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DEBATE LEGISLAÇÃO

Luiz Eduardo Greenhalgh debate sobre a redução da maioridade penal volta a público, mais uma vez, à luz de um caso de extrema violência envolvendo um adolescente, que praticou um crime bárbaro que a todos indignou. Certamente é dever da sociedade reagir diante da violência e envolver-se nas discussões desse problema. Se essa solução pudesse ser encontrada em medidas reativas, violentas e simplistas, tomadas no calor da comoção, como o endurecimento das penas e a inclusão de adolescentes no sistema prisional, o problema estaria resolvido. Não faltam exemplos da ineficácia dessas medidas: o seqüestro passou a ser considerado crime hediondo sem que tenha havido redução no número de casos, pelo contrário. Fez-se uma lei de repressão aos crimes hediondos e o resultado foi negativo. Os seqüestros multiplicaram-se. Em São Paulo, contrariando a legislação, o governo Geraldo Alckmin mandou para presídios dezenas de adolescentes. O único impacto dessa medida foi o agravamento da crise nas unidades da Febem e no sistema prisional. Quem conhece as dependências da Unidade de Acolhimento Inicial (UAI) da Febem, sabe que aquilo não recupera. Antes, avilta. Poderíamos retomar todo o debate realizado recentemente sobre a ilegalidade da redução da maioridade penal, já que ela é cláusula pétrea da Constituição, assegurada pelo artigo 5º e pelos inúmeros tratados internacionais

O

dos quais o Brasil é signatário. As legislações brasileira e internacional fixam a maioridade penal aos 18 anos porque reconhecem que até essa idade as pessoas estão em fase de formação. Dados do Ministério da Justiça revelam que 89,6% dos adolescentes privados de liberdade no país não concluíram o ensino fundamental. A imensa maioria dos adolescentes que comete crimes teve, portanto, sua formação interrompida. A redução da idade penal é um paliativo que não resolve. Melhor seria que houvesse reais escolas para a juventude. Nesse contexto, a sociedade pode assumir dois papéis distintos: garantir a formação desses adolescentes e lhes oferecer condições para o retorno à convivência em sociedade ou colocá-los em penitenciárias, na convivência com todo o tipo de criminosos. Sem dúvida nenhuma, a segunda opção é a mais cômoda. Ao prender e condenar severamente os adolescentes como adultos, a sociedade fica sem o ônus de buscar a ressocialização dos adolescentes. Mas, em vez de possibilitar que esses adolescentes completem sua formação e possam conviver em sociedade, a opção por colocá-los em penitenciárias representa a destruição definitiva do futuro dessas pessoas que, na grande maioria dos casos, irão se tornar criminosos reincidentes. É preciso que se diga que apesar de a opção da legislação brasileira ser pela ressocialização dos adolescentes, o Estado não tem sido capaz de colocar essa

política em prática com eficiência. As unidades de internação de adolescentes estão longe de cumprir a função para a qual foram criadas. É nessa perspectiva que entendemos que em vez de discutir uma mudança legislativa, com a redução da maioridade penal, deveríamos questionar a realização de métodos eficazes de ressocialização de adolescentes. O estabelecimento da maioridade penal aos 18 anos não significa que os menores não sejam punidos pelas infrações que cometem. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê uma série de medidas para cada tipo de infração cometida, que muitas vezes pode ser tão ou mais rígidas que as normas do Código Penal. É necessário que se cumpra o ECA. Mesmo nos casos graves cometidos por adolescentes próximos aos 18 anos, o Ministério Público consegue manter os jovens internados por mais tempo sempre que a análise de psicólogos, educadores e assistentes sociais indica essa necessidade. O que gera impunidade é a incapacidade das nossas polícias de investigar, resolver crimes e prender criminosos. De nada adianta uma legislação extremamente rigorosa se houver na população a certeza de que a polícia não é capaz de investigar e prender, se a Justiça for morosa em julgar e se o sistema prisional for incapaz de manter seus presos. O caminho para conter a violência que amedronta toda a sociedade brasileira é bem mais

Menores criminosos: um patamar perigoso Enio Bacci ou totalmente favorável à redução da maioridade penal para 16 anos, por diversos motivos, mas principalmente porque a criminalidade envolvendo menores ou os inimputáveis alcançou um patamar muito perigoso. A atual inimputabilidade dos menores de 18 anos tem facilitado a prática de crimes, apesar de terem pleno conhecimento da ilegalidade desses atos. São criadas verdadeiras quadrilhas de jovens inimputáveis, aliciados e comandados por adultos com tendências criminosas, bandidos maiores de 18 anos, que se utilizam dos menores para fugirem da responsabilidade e das penas da lei. Todo mundo sabe que os menores são usados por criminosos adultos e nada é feito para se mudar essa situação. Quando é que iremos abrir os olhos e notar que a coisa chegou ao limite, não há mais como esconder essa violência? Os valores de um jovem de 16 anos de idade de hoje em dia são totalmente diferente dos jovens de ontem, e não venham me dizer que diminuindo a idade penal hoje, amanhã talvez vá se querer baixar para 10 anos e assim por diante. Temos que travar uma batalha com os problemas de hoje, e o maior problema hoje é justamente a inimputabilidade desses jovens transgressores. Como advogado e legislador de terceiro mandato, não posso ficar de braços cruzados obser-

S

vando os criminosos menores de idade, absolutamente capazes de discernir o bem do mal, utilizarem-se deste detalhe da legislação, para cometerem crimes hediondos. Apresentei projeto de lei neste sentido, em 1997, depois de anos e anos pensando sobre o assunto, quando cheguei à conclusão de que o melhor para a sociedade brasileira é mesmo penalizar os menores que cometem crimes contra a vida. Esta é a obrigação do legislador. A grande intenção da proposta era a de gerar um grande debate nacional sobre o assunto, o que sem dúvida, acabou acontecendo. Portanto, um dos meus objetivos foi alcançado. Outra das tantas intenções implícitas entre os artigos da minha proposta de redução da idade penal para 16 anos é a de fazer com que estes jovens também tenham direitos, pois se atualmente já podem até votar nas eleições para presidente da República, também podem, por exemplo, dirigir automóveis e responder por seus atos. Todas as pessoas que se manifestam contrariamente à redução da maioridade penal alegam que o Estado não tem condições de cuidar adequadamente dos menores infratores, de ressocializálos e de mostrar-lhes o caminho do bem e recuperá-los para a sociedade. Neste aspecto, a verdade é que o Estado falha duplamente,

pois nem mesmo os maiores de idade recebem as condições exatas de reeducação e ressocialização, conforme determina a Lei de Execuções Penais, por exemplo. Hoje, o Estado apenas pune os criminosos, quando a reclusão e o afastamento do convívio em sociedade deveriam servir de reflexão e ensinamento para a posterior recuperação. É o contrário. A cadeia e a Fase (ex-Febem) são a pós-graduação do crime. Sob este prisma, nenhuma lei serviria, porque o Estado não cumpre, ou não pode cumprir a sua parte. O meu projeto prevê para os menores infratores que cometeram crimes hediondos, o cumprimento de penas mais rigorosas, em locais ou cadeias especializadas, preparadas para reeducá-los. É utopia? Talvez seja, mas é o correto. Enquanto isso não acontece, não podemos permitir que verdadeiros bandidos estuprem e matem, seqüestrem e matem e tenham o mesmo tratamento dado a um menor infrator que furta para comer. Não podemos permitir que quadrilhas contratem menores de idade (os inimputáveis) para assumirem crimes que não cometeram, em nome da lei. A opinião que manifesto aqui é estritamente pessoal e nada tem a ver com o cargo de presidente da Comissão de Direitos Humanos. Enio Bacci é deputado federal pelo PDT do Rio Grande do Sul e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados

Kipper

Reduzir maioridade penal não diminui a violência

longo e difícil que o do recrudescimento da legislação. A solução passa pela análise das desigualdades sociais, pela relação entre a criminalidade e a falta de oportunidades, pelo crime organizado, pela cultura da violência e pelo porte de armas. Luiz Eduardo Greenhalgh é Deputado Federal pelo PT de SP) e presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados


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De 20 a 26 de novembro de 2003

AGENDA

agenda@brasildefato.com.br

PRÊMIO INTERNACIONAL SIMON BOLÍVAR As inscrições para o Prêmio Simon Bolívar, organizado pela Unesco, foram prorrogadas até 31 de dezembro. A premiação promove atividades que estejam de acordo com os ideais de liberdade, independência, dignidade e formação de uma nova ordem mundial do líder sul-americano. O vencedor, que pode ser uma pessoa, um grupo ou uma organização, receberá 25 mil dólares, oferecidos pelo governo da Venezuela, terra natal de Bolívar. O formulário para inscrições está disponível na página www.unesco.org/culture/ simonbolivar. Mais informações: k.stenou@unesco.org.

PERNAMBUCO ATO PÚBLICO PELO DIREITO DE VIVER SEM VIOLÊNCIA Dia 25 Em comemoração ao dia internacional pela não violência contra a mulher. Às 18h30 haverá uma audiência pública na Câmara de Vereadores, e às 20h uma serenata pelas ruas da Cidade Alta. Realização: Fórum de Mulheres de Olinda Mais informações: vivianemendes@caisdoparto.org.br

RIO DE JANEIRO SEMINÁRIO - CONFLITOS AMBIENTAIS NO BRASIL Dia 24, das 9h às 18h30 Apresentação e discussão de resultados de pesquisas sobre conflitos ambientais envolvendo populações tradicionais, projetos agroenergéticos e processos urbano-industriais por meio de mesas-redondas reunindo professores de diversas universidades brasileiras. Local: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Av. Pasteur, 250, 2º andar, Praia Vermelha, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2286-1441

RIO GRANDE DO SUL 8ª MARCHA DOS SEM Dia 21 A Marcha dos Sem foi idealizada para combater o neoliberalismo e expor a face dos excluídos do “deus-mercado”. A primeira, em 1996, se chamou Marcha sobre Porto Alegre e participaram 7 mil pessoas. No ano seguinte, o público dobrou e a marcha passou a se chamar Marcha dos Sem. Desde então, todos os anos, mais e mais trabalhadores se unem nessa já tradicional manifestação dos movimentos sociais. No encerramento, haverá um ato público na Praça da Matriz. Trabalhadores de todo o Estado vão ocupar as ruas da capital gaúcha para dar um recado ao governador do Estado, Germano Rigotto: “Chega de tirar do povo e entregar aos poderosos”. Também irão dizer não à Alca, ao FMI e aos transgênicos e reivindicar a geração de trabalho e renda e a redução da jornada de trabalho. A Marcha dos Sem 2003 será a primeira grande ação que expressa a unidade e dá visibilidade à

SOLIDARIEDADE A CUBA Dia 29, às 21h30 Promovida pelo projeto BrasCuba, a noite terá, entre suas atrações, espetáculos teatrais, musicais e de dança. Grupos participantes: Banda Glória, Pau D´Água, Gambiarra, Mão de Oito, Circo Estatal de Cuba, Bateria da Águia de Ouro, Oficineiro de Salsa. O projeto BrasCuba, grupo de intercâmbio político-cultural entre Brasil e Cuba, aglutina militantes de diversos movimentos sociais, estudantes. A festa faz parte de uma série de atividades desenvolvidas ao longo do ano para aproximar a realidade cubana da brasileira, e tem como objetivo levantar fundos para viabilizar o projeto. Pede-se para levar material escolar que será entregue às crianças cubanas. Local: Projeto Equilíbrio, R. Eugênio de Medeiros, 263, Pinheiros, São Paulo Mais informações: (11) 3813-4684

CELEBRAÇÃO BIONDI Dia 22, às 22h Festa em homenagem ao jornalista Aloysio Biondi, morto em 2000. Nos últimos anos, a grande imprensa e imprensa alternativa contaram com os artigos certeiros do jornalista sobre a economia brasileira e mundial. Biondi era colunista dos jornais Diário Popular e Correio Braziliense e colaborava com as revistas Caros Amigos, Bundas, Educação, necerá documentada em tudo o que publicou. Local: Rua Eugênio de Medeiros, 263, São Paulo Mais informações: (11) 9657-3967, brasilbiondi@uol.com.br

DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA Dia 20 Haverá a marcha da consciência negra, que terá como lemas a defesa da soberania nacional, o desenvolvimento econômico e social, o combate ao racismo, ao machismo, ao sexismo e à intolerância religiosa. No final da década de 70, o movimento negro sai às ruas para denunciar o racismo e lutar pela melhoria da condição de vida do povo negro brasileiro. No Estado do Rio de Janeiro e em várias cidades do país, o dia 20 de novembro é considerado feriado. Há um projeto tramitando em Brasília para que esse dia seja transformado em feriado nacional. Está sendo organizada uma marcha com a participação de todos os setores da sociedade dispostos a fortalecer um movimento por mudanças que consiga concretizar os sonhos, não só do povo negro, mas os sonhos por soberania e preservação de nossos territórios, de nossas religiões, de nossas culturas, de nossas identidades, de nossas opções sexuais, de nossos projetos de vida por um novo Brasil sem machismo, sem sexismo, sem intolerância religiosa, sem racismo, preconceito e discriminação de qualquer natureza. Local: Concentração a partir das 15h no MASP, Av. Paulista. Às 17 horas, início da caminhada, descendo pela Av. Brigadeiro Luiz Antônio. A marcha vai terminar com um ato político-cultural na Assembléia Legislativa de São Paulo.

Uma vida que atravessou três quartos do século 20, Ignazio Silone foi um dos raros escritores italianos que escaparam da corrupção do Estado totalitário fascista e da devastação causada pelo fascismo na literatura do país de Dante. Essa sua obra, Fontamara, publicada em 1933, na Suíça, deu-lhe renome mundial. Realista, ela “fotografa” um momento da vida italiana marcada pela extrema miséria e ignorância dos camponeses oprimidos pelo capitalismo, na sua forma de ignóbil fascismo, com suas mentiras, violências e horrores. “Imaginai Fontamara como a mais pobre e mais atrasada aldeia da Mársica...”, diz o autor, numa linguagem serena, porém mostrando uma realidade não a mais pobre, mas a da mais extremada miséria, não a mais atrasada, mas a da mais extremada ignorância. Mas há muito mais a ser dito. Obra farta de exemplos de uma realidade absurda – como o do cartaz fixado na cantina por ordem do prefeito, que proibia todos os raciocínios (p. 84), ou da relação igreja/ camponeses, que permeia todo o texto, ou..., ou, na verdade, como em todas as páginas – no correr de sua leitura, uma indescritível indignação vai se apoderando do leitor, que, inevitavelmente, faz um paralelo entre aquela e a nossa realidade. CONFIRA

Coordenação dos Movimentos Sociais do Rio Grande do Sul. Local: A concentração será às 14h, no Brique da Redenção, Porto Alegre Mais informações: (51) 3224-2484, 9173-6899 SEMINÁRIO - REFORMA DO JUDICIÁRIO: A SOCIEDADE CIVIL DISCUTE A SUA JUSTIÇA Dias 24 e 25, às 9h Voltado a organizações não-governamentais, ativistas sociais, operadores de direito, estudantes e à sociedade em geral, o seminário vai discutir as propostas de reforma do judiciário apresentadas por segmentos do próprio judiciário e pelo governo federal. No término do encontro será produzido um relatório com o fim de subsidiar fundamentos para uma reforma do judiciário em consonância com as expectativas sociais e com o estado democrático de direito. Local: R. Jerônimo Coelho, 354, Porto Alegre

Mais informações: (51) 3211-5808

SÃO PAULO PROJETO CULTURAL ARMA DA CRÍTICA De 22 de novembro a 13 de dezembro Dia 22 de novembro, às 15h, palestra “Lingugem e Preconceito: o falar nosso de cada dia”, com Marly Barbosa e Manoel Araújo, professores da rede municipal e pesquisadores na área da linguística. Dia 6 de dezembro, às 15h, debate sobre Cuba e os desafios colocados à revolução, com o cônsul geral de Cuba, Omar Torres Olivares. Dia 13 de dezembro, a partir das 10h, Feira do Livro, com clássicos e lançamentos. Local: Espaço Cultural Arma da Crítica, Av. Satélite, 126, São Mateus Mais informações: imabr@osite.com.br

I SIMPÓSIO NACIONAL DE EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO Dia 28 O evento pretende reunir pesquisadores, professores e outros interessados na relação educação e comunicação, e fomentar uma discussão mais sistemática sobre as atuais e as futuras potencialidades e possibilidades dos meios de comunicação na construção do conhecimento. O simpósio é promovido pelo Programa de Pósgraduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por meio do Grupo de Pesquisa Tecnologias de Informação, Comunicação e Ciências. As inscrições são gratuitas, mas limitadas. Local: Salão Nobre da Faculdade de Educação/Unicamp, Av. Bertrand Russell, 801, Cidade Universitária Zeferino Vaz, Campinas Mais informações: iruberti@unicamp.br, aldo@unicamp.br

Fontamara Ignazio Silone Editora Expressão Popular 216 páginas R$ 10

VII ENCONTRO DE EDUCADORES DA BAIXADA SANTISTA Dia 29 O objetivo do encontro é repensar os problemas que afetam o trabalho docente e a aprendizagem de crianças, jovens e adultos, considerando a educação como necessária e direito de todos. Serão discutidas propostas comunitárias e políticas públicas que atendam às necessidades das populações além de projetos que norteiem a preparação de cidadãos e a formação e desempenho dos professores que atuam nos diversos níveis da educação nacional. Local: Auditório do Museu de Pesca, Av. Bartolomeu de Gusmão, 192, Ponta da Praia, Santos Mais informações: (13) 3227-9905, 3235-3676, 3239-4969


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CULTURA

De 20 a 26 de novembro de 2003

TEATRO

Seminário reúne público, atores e especialistas em Teatro do Oprimido, que há 40 anos utiliza a arte para refletir sobre a opressão

Fotos: Tatiana Azevedo

Excluídos e oprimidos sobem ao palcos

Tatiana Azevedo da Redação

E

TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Em uma conversa bastante descontraída no palco do Teatro Municipal, o diretor José Celso Martinez Corrêa afirmou que “sem teatro não há transformação social”. Acreditando nisso, ele adaptou para o palco “Os Sertões”, principal obra de Euclides da Cunha. A equipe do espetáculo tem cerca de 90 pessoas, entre atores e as crianças do Bixiga, bairro do Centro de São Paulo onde está localizado o Teatro Oficina. O palco virou uma espécie de refúgio, em que a realidade não muda, mas transforma-se a maneira de lidar com ela. “Crianças que são filhas de traficantes, algumas que até já traficaram, entram em contato com o texto de Euclides e com a arte, e ficam fascinadas. Chega a ser um teatro de inclusão”, diz Zé Celso. Para o diretor, aceitar o mundo como está é essencial para entender como transformá-lo. Em uma época de terror econômico, o teatro continua a ser o espaço público que agrega indivíduos. Faz com que se sintam parte de um todo. Falar de Canudos, de homens que se organizaram por um ideal de justiça e igualdade, que morreram unidos lutando até o fim, é também falar da sociedade de hoje, apontar os erros que continuam a ser cometidos e orgulhar-se das vitórias conquistadas. Para Zé Celso, “a função social do teatro é acolher o que é rejeitado, é pôr para fora todos os tabus”. Sérgio Penna concorda. Diretor de teatro, desde 1985 ele trabalha com portadores de deficiências mentais e há oito anos dirige um grupo teatral em um hospital-dia

Grupo Kizomba leva o desemprego e as questões sociais ao palco como forma de transformar a realidade

Técnica recupera cidadania e auto-estima Um fato cotidiano é apresentado no palco. Um conflito está em cena. Há uma situação de opressão. A platéia deve identificar o que acontece, identificar a vítima e o causador do problema. Feito isto, pedem-se do público outras possíveis soluções, outros finais para a mesma história. Alguém entra em cena para propor uma alternativa ao que foi apresentado. A platéia tornase parte ativa do problema. Ela se vê na situação e é obrigada a refletir, a aprender a questionar a si mesma e as relações de poder que a cercam. Até então passivo, o espectador torna-se protagonista da ação dramática, um ser que cria e transforma. E que pode agir da mesma maneira na vida real, fora do palco. É assim uma intervenção do Teatro do Oprimido, idealizado por Augusto Boal, homem do teatro de resistência do Arena,

Desde 1997, servidores da Prefeitura de Santo André fazem um trabalho de capacitação nas técnicas do Teatro do Oprimido. Desde então, surgiram grupos como o “Só Depende de Nós”, que trabalha com técnicas de circo como pernas-de-pau, números de palhaços, malabares e esculturas em bexiga. Em uma linha diferente, o Grupo Kizomba conta com integrantes do Movimento Negro de Santo André

e discute questões raciais. Viviane Maria dos Santos, estudante de 17 anos, sempre sonhou fazer teatro. Mas em seis meses de GTO, aprendeu mais que técnicas de interpretação. “Não conhecia meus direitos, pensei que só tivesse deveres. E agora sei lidar com diferenças. Comecei a ter mais confiança em mim mesma e sei que eu tenho capacidade para fazer o que quero, basta ter coragem de enfrentar o amanhã”, diz, orgulhosa de fazer parte do projeto. A amiga e colega de elenco Rhyana Carla Silva sente a mesma coisa. Com uma peruca loira, denuncia o preconceito na apresentação do Kizomba, de que faz parte. Rhyana diz ter recuperado sua auto-estima e confiança. “O projeto é uma porta que se abriu na minha vida. E sei que agora depende de mim não deixar que ela se feche.” (T.A.)

espetáculo com um elenco que sofre de esquizofrenia é uma maneira de propor à sociedade um novo tipo de escuta, atentando para um mundo fragmentado provido de lógica e sentimentos. Nesse território de sutilezas, a arte permite que pessoas que não se encaixam no padrão oficial de

“normalidade” se manifestem à sua maneira. O estímulo pode ser uma fotografia, um poema, uma notícia de jornal. O que importa é que sejam ouvidas, assistidas, aplaudidas. “O teatro é um ambiente seguro para essas pessoas se manifestarem”, diz Penna. “Quem está em tratamento está com a sensibilidade

grupo que usou a arte para combater a ditadura. As técnicas são hoje empregadas em mais de 60 países. Segundo Boal, as dinâmicas fazem com que o espectador se veja em um espelho, em busca por transformação. Os mecanismos que geram o preconceito são identificados e a reflexão provocada ajuda a descobrir opressões internalizadas, que se expressam inconscientemente na vida cotidiana.

CIRCO E NEGRITUDE

(onde os pacientes fazem atividades durante o dia e passam a noite em casa). As montagens são como qualquer espetáculo, com uma equipe de técnicos profissionais, ensaios que se intensificam conforme a estréia se aproxima e obstáculos que qualquer grupo tem de vencer. Para ele, apresentar um

à flor da pele, e a não-internação é uma proposta mais humana de inclusão social.”

TAREFA HUMANA O trabalho requer cuidado especial. Deve-se estar atento aos pequenos detalhes, a fim de descobrir como acontece a linguagem. “É uma tarefa humana, um aprendizado estar com essas pessoas”, conta Penna. Terapeutas são também atores, e não se consegue diferenciá-los das pessoas com problemas mentais. A presença no palco abdica do poder entre médico e paciente e abre para uma experiência humana e artística, em uma relação que depende de honestidade e confiança. A deficiência mental no palco causa um certo incômodo na platéia, mas são ainda artistas que se colocam, que falam de si. “Os grandes personagens da dramaturgia enlouqueceram. O mundo não anda muito são. Quem vai dar atestado de sanidade hoje em dia?”, questiona o diretor. Nos três dias de seminário – os dois últimos foram apenas de apresentações –, as discussões abordaram questões como cidadania e violência, regadas a relatos de melhora do desempenho escolar por meio do teatro, ou do trabalho artístico feito junto a moradores de rua. Foram oferecidas oficinas como de técnicas de circo e de teatro de rua. Na sexta-feira, dia 14, o show da banda Funk Como Le Gusta encerrou a noite ao se apresentar no grande baile à fantasia.

EXPOSIÇÃO

Escola conta trajetória de Darcy Ribeiro Evelyn Trindade do Rio de Janeiro (RJ) Educador, antropólogo, escritor, político. As várias facetas de Darcy Ribeiro podem ser conferidas na exposição permanente, inaugurada pela escola de cinema criada por ele. São fotografias, imagens, frases e livros, contando a trajetória do criador do Museu do Índio. A exposição foi doada pelo Museu da República. Em 1997, ano da morte de Darcy, o museu organizou a mostra “Darcy, o brasileiro”, que passou por várias escolas do país e ficará “abrigada” na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. A mostra é uma homenagem ao antropólogo, que em 2003 completaria 81 anos. Darcy Ribeiro nasceu em Minas Gerais, formou-se em Antropologia em São Paulo e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia. Fundou o Museu do

Luciana Whitaker/Folha Imagem

ra uma vez uma Clara qualquer, que morava na comunidade do Pé de Barro. Um dia, a garota saiu para procurar emprego. Viu um anúncio em um supermercado e conseguiu fazer a entrevista. Mas sua vaga foi preenchida por alguém que, diferente dela, havia estudado em um bom colégio, fez faculdade e tinha carro do ano. Clara não teve chance. Saiu derrotada, por depender do transporte público, por ter cursado apenas o ensino fundamental em uma escola pública, por não possuir casa própria. E por ser negra. Essa situação não poderia ser mais cotidiana. Com tantas Claras espalhadas pelo Brasil, corre-se o risco de banalizar uma história óbvia. Porém, a denúncia ganha força no palco, representada pelo grupo Kizomba. A apresentação ocorreu durante o 1º Seminário de Teatro e Transformação Social, que aconteceu junto ao 2º Encontro Nacional de Teatro do Oprimido, em Santo André, Grande São Paulo. De 12 a 16 de novembro, diversos grupos se revezaram em apresentações que discutiram o comportamento do homem na sociedade. O destaque ficou para a relação que se estabelece entre o opressor e o oprimido em determinadas situações. Foi realizada uma série de debates, oficinas e vivências, com nomes importantes do teatro. As ações eram acompanhadas de apresentações dos Grupos de Teatro do Oprimido. Junto com os relatos de profissionais que trabalham com detentos, moradores de favelas, idosos e outros excluídos, promoveu-se uma rica discussão sobre a função social da arte, em especial as artes cênicas.

Mostra homenageia Darcy Ribeiro, que completaria 81 anos

Índio e estabeleceu os princípios ecológicos da criação do Parque Indígena do Xingu. Escreveu uma vasta obra etnográfica e de defesa da causa indígena. Elaborou para a Unesco um estudo do impacto da civilização sobre os grupos indígenas brasileiros no século XX

e colaborou com a Organização Internacional do Trabalho (1954) na preparação de um manual sobre os povos aborígenes de todo o mundo. Nos anos seguintes, dedicou-se à educação primária e superior. Criou a Universidade de Brasília, da qual foi o primeiro reitor, e foi

ministro da Educação no Gabinete Hermes Lima. Mais tarde, foi ministro-chefe da Casa Civil de João Goulart e coordenava a implantação das reformas estruturais quando sucedeu o golpe militar de 64, que o levou ao exílio. Retornando ao Brasil, em 1976, voltou a dedicar-se à educação e à política. Elegeu-se vice-governador do Rio de Janeiro (1982), foi secretário da Cultura e coordenador do Programa Especial de Educação, com o encargo de implantar 500 CIEPs, escolas de turno completo para mil crianças e adolescentes. Criou a Biblioteca Pública Estadual, a Casa França-Brasil, a Casa Laura Alvim, o Centro Infantil de Cultura de Ipanema e o Sambódromo, em que aliou o samba às salas de aula. A Escola de Cinema Darcy Ribeiro fica na Rua da Alfândega, 86, centro do Rio. A exposição ficará aberta ao público, de segunda a sexta, das 14h às 19h, com entrada franca. (Agência Brasil)


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