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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 8 • Número 380

São Paulo, de 10 a 16 de junho de 2010

Consenso e elitismo por Copa e Olimpíadas Fincadas no coração das comunidades cariocas, com a expulsão de narcotraficantes ou milicianos, as Unidades de Polícia Pacificadora possuem o apoio dos cariocas de todas as classes. Porém, especialistas argumentam que implantação dá suporte para uma série de medidas de criminalização da pobreza de olho na realização de megaeventos esportivos. Pág. 4

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Mudança na lei florestal permite ao agronegócio desmatar ainda mais O deputado federal Aldo Rebelo (PC do B) entregou, no dia 8, o relatório final com propostas de mudanças no Código Florestal Brasileiro. De acordo com especialistas, se aprovadas no Congresso, as alterações reduzem as áreas de proteção ambiental, gerando impactos diretos no meio ambiente e nos pequenos produtores agrícolas. Além disso, o relatório perdoa

grandes produtores por desmatamentos ilegais realizados até 2008. Ambientalistas e movimentos sociais acusam Rebelo de ter se aliado a ruralistas disfarçado atrás de um falso discurso nacionalista.“Não é proteção da nação que ele está fazendo, é justamente entregar nossas florestas para meia dúzia de transnacionais”, critica Frei Sérgio Görgen, do MPA. Pág. 5 Marcelo Buzetto

No Paraguai, transição para a democracia é incipiente Em entrevista, o ministro da Comunicação do Paraguai Augusto dos Santos afirma que o processo de estabilidade democrática no país está apenas começando. De acordo com ele, os 20 anos após o fim da ditadura do general Stroessner, em 1989, foram perdidos, já que não se tratou de uma transição à democracia, mas de uma manutenção de práticas clientelistas. Mesmo com o governo de Fernando Lugo, o ministro aponta que ainda há muitos entraves para se promover mudanças efetivas no país. Pág. 12

Na Palestina, a violência israelense é cotidiana Ataque contra a frota humanitária que se dirigia à Faixa de Gaza chocou o mundo, mas, para palestinos, foi apenas mais um das violações diárias cometidas por Israel

Unidade em torno de um projeto para avançar lutas Em entrevista, Vanderlei Martini, do MST, e a irmã Delci Franzen, da CNBB, fazem um balanço da 2ª Assembleia Popular Nacional, realizada em Luziânia (GO) entre os dias 25 e 28 de maio. O sem terra analisa a importância de se construir a unidade em torno de lutas unitárias para superar a cisão da esquerda, enquanto irmã Delci expõe uma análise otimista sobre o início de uma ofensiva dos trabalhadores na conjuntura atual. Pág. 6 ISSN 1978-5134

Ipea sugere privatização de aeroportos e é criticado Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o sistema aeroportuário brasileiro aponta a falta de estrutura do setor diante da crescente demanda. Por conta dos megaeventos que o país deve sediar, o instituto sugeriu a concessão à iniciativa privada de aeroportos mais rentáveis e recebeu críticas de especialistas. Pág. 3

Ocupação em terra de Dantas recupera a natureza

Desde que Israel construiu o muro que dividiu povoados palestinos na Cisjordânia, moradores locais realizam, toda sexta-feira, manifestações contra a construção. Como resposta, soldados israelenses jogam bombas de gás lacrimogêneo e, às vezes, chegam a atirar. A enviada à Palestina Dafne Melo acompanhou uma dessas mobilizações. Em artigo, a jornalista Nicola Nasser analisa as implicações geopolíticas da ação israelense contra a Frota da Liberdade. Págs. 2, 10 e 11

Manifestantes caminham em direção ao muro israelense na cidade de Ni’lin (Palestina)

Reprodução

No dia 25 de julho, completam-se dois anos da ocupação da fazenda Maria Bonita, do grupo Santa Bárbara, ligado ao banqueiro Daniel Dantas. Atualmente, 390 famílias vivem no acampamento em Eldorado dos Carajás (PA). A paisagem, antes devastada pela pecuária extensiva, começa a dar lugar a um renascimento da natureza, revigorada pela agricultura familiar. “É bonito quando ocupamos uma área e começamos a dar vida onde antes não tinha”, conta acampado. Pág. 7 Adriana Medeiros

Na Argentina, a eterna busca por filhos de desaparecidos

A estética do nascimento e a mutação do corpo feminino

Teve início no dia 7 o teste de DNA que determinará se as duas crianças adotadas pela diretora do jornal argentino Clarín, Ernestina Herrera de Noble, durante a última ditadura no país, são filhos de desaparecidos políticos roubados, na ocasião, por militares. A família Noble impôs todo tipo de obstáculos para impedir o exame. Pág. 9

Exposição “InCorpos – Mutação e Criação”, da fotógrafa Adriana Medeiros, registra imagens capturadas durante cinco anos de acompanhamento de histórias de partos reais. A mostra, que reúne 15 obras, segue pelo mês de junho na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com entrada franca. Pág. 8

Obras buscam no parto a relação sensitiva entre mãe e espectador


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editorial DESDE 1948, o povo palestino vive uma tragédia: foram expulsos de suas terras e de suas casas e tiveram suas propriedades roubadas ou destruídas pelo chamado Exército de Defesa de Israel. Vilas e cidades palestinas vêm sendo constantemente destruídas durante os 62 anos da Nakba (“A tragédia”). Milhares de pessoas seguiram o caminho do exílio e os refugiados palestinos já chegam a 5 milhões. E, ainda assim, milhares seguem resistindo dentro dos territórios ocupados por Israel. Em 1967, o expansionismo israelense se intensifica. Novas colônias e assentamentos judeus-sionistas são criados em Gaza, Cisjordânia e Jerusalém, agora tomada militarmente pelo exército colonialista, em mais um desrespeito às resoluções da ONU sobre a questão palestina. No Plano de Partilha da Palestina de 1947, Jerusalém seria uma cidade neutra, administrada pela ONU, com garantia de que todos os locais sagrados do judaísmo, do cristianismo e do islamismo fossem respeitados por todas as forças envolvidas no conflito. Além disso, Israel ocupa militarmente as colinas de Golan, que são da Síria. A única resolução da ONU que Israel respeitou até aqui foi a da sua própria criação. Israel segue hoje como o único país do Oriente Médio com armas nucleares, ou seja, armas de destruição em massa. Fala-se de 200 ogivas. Mordehai Vanunu, físico nuclear israelense, que denunciou o programa nuclear de Israel, comprovando sua finalidade bélica, ficou 18 anos na prisão, sendo 16 na solitária,

debate

Palestina: um povo em luta pela libertação depois foi para a prisão domiciliar, com proibição de se comunicar com qualquer estrangeiro por quaisquer meios. Agora, voltou para a cadeia acusado de tentar fazer contato com outros seres humanos ligados ao Movimento pelo Fim das Armas Nucleares no Oriente Médio. De acordo com a ONU, Israel não tem nenhuma autorização para exercer o controle sobre o litoral de Gaza, território palestino banhado por águas internacionais, portanto, com livre acesso a todos que queiram chegar ou sair dessa região, transportando pessoas e/ou produtos. Após o covarde ataque israelense contra a frota de barcos que levava ajuda humanitária para Gaza, voltam novamente as perguntas: é possível deter a escalada de terror e violência praticada por Israel em 62 anos de colonialismo na Palestina? É possível uma coexistência pacífica com governos sionistas-colonialistas-imperialistas? Quais medidas precisam ser tomadas, e por quem, para impedir que o governo de Israel continue o genocídio contra o povo palestino? A resistência palestina já desenvolveu as mais diversas formas de luta. Entre 1964 e 1988, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) dirigiu o processo de mobilização anti-colonialista e desenca-

deou uma incrível luta de libertação nacional que deu esperanças para as massas populares de todo o mundo árabe. Enquanto uma frente de cerca de 10 partidos políticos (nacionalistas laicos/nasseristas e comunistas/socialistas), a OLP seguia como a única e legítima representante do povo palestino. De 1988 a 1994, novos personagens surgem e o fim da URSS e do Bloco Socialista fizeram desencadear uma crise também no interior da esquerda palestina. A Al-Fatah (Movimento de Libertação Nacional), organização majoritária na OLP, empurra a resistência palestina para a mesa de negociação, mas em condições bastante desfavoráveis para o povo palestino. Os “acordos de paz” firmados com Israel em 1994 alimentam ilusões e ignoram a natureza expansionista/imperialista do Estado de Israel, que negocia e, ao mesmo tempo, faz crescer o número de colônias judias nos territórios palestinos ocupados em 1948 e 1967. Nessa conjuntura complexa, se projeta como uma alternativa política o partido Hamas (Movimento de Resistência Islâmica). A crise política, ideológica e organizativa dificulta a ascensão da esquerda palestina (Frente Popular para a Libertação da Palestina, Frente Democrática para a Libertação da Palestina, Partido do Povo Palesti-

crônica

Frei Sérgio Antônio Görgen

Dívidas camponesas O VALOR GLOBAL das dívidas dos pequenos agricultores e assentados com dificuldades de pagamento (vencidas e vincendas) talvez passe um pouco de R$ 20 bilhões, um valor muito pequeno em relação aos investimentos sociais do Estado brasileiro e em relação aos benefícios sociais e econômicos produzidos por esta forma de agricultura. O que exige solução excepcional não passa de R$ 8 bilhões. É realmente muito baixo se comparado com as dívidas do agronegócio. Segundo a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), suas dívidas sem condições de pagamento giram em torno de R$ 110 bilhões. Este endividamento, sim, não encontra bases para se justificar, pois desnuda um modo de agricultura insustentável que irriga fortunas aos cofres das transnacionais e deixa para trás uma montanha de dívidas para a sociedade pagar, gerando poucos empregos, devastando matas, degradando solos e secando mananciais de água. E se considerarmos o volume de produção dos pequenos agricultores (40% da produção agropecuária global do país e 70% do abastecimento interno), a importância da agricultura camponesa no abastecimento alimentar do país, sua importância social na geração de emprego e na ativação da economia dos pequenos e médios municípios – o conjunto das dívidas da agricultura camponesa é insignificante perto do benefício gerado para a sociedade. E se comparada com o endividamento do agronegócio, é irrisória e com enorme retorno social e ambiental. As causas deste endividamento e do descompasso entre dívidas e capacidade de pagamento não são recentes. Estas causas remetem aos últimos 25 anos de custos de produção muito altos, preços baixos, secas frequentes, empobrecimento no campo, falta de políticas públicas de comercialização, desmonte do sistema público de assistência técnica, falta de seguro agrícola, crédito caro e insuficiente, baixa produtividade, estrutura fundiária injusta, enfim, um modelo agrícola equivocado que enriqueceu as indústrias de insumos e as tradings exportadoras e empobreceu o povo do campo. O Estado brasileiro e suas políticas equivocadas são os responsáveis por este endividamento.

Luiz Ricardo Leitão

Contra a vida, não há argumentos Gama

Durante os anos de 1985 até 1998, quando o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) começou a ser acessado em maior escala, os camponeses não tiveram acesso a crédito. Neste longo período sem crédito público, os agricultores financiavam a produção nas agropecuárias privadas. Muitos abandonavam o campo. Desta forma, os primeiros créditos do Pronaf, não raro, serviram para quitar dívidas privadas e estruturar as unidades camponesas para produzir. A partir de 2003 há uma maior expansão do crédito, o que permite que milhões permaneçam no campo e melhorem suas condições de vida e produção, estancando o êxodo rural. Os resultados positivos foram captados pelo Censo Agropecuário de 2006. Neste sentido é justo afirmar que esta pequena dívida é um problema bendito, pelo bem que trouxe a tanta gente. Desta forma, cumpre reconhecer que o atual governo, desde 2003, é que vem criando alguns mecanismos de políticas públicas para reverter esta situação. Durante o governo do presidente Lula foram criados vários mecanismos importantes que estão tendo e terão impactos positivos no futuro – seguro agrícola, garantia de preços mínimos, garantia de comercialização, programas de aquisição de alimentos, crédito barato, energia elétrica no campo, assistência técnica – mas não suficientes para carregar o peso do passado que ainda sobrecarrega o financiamento agrícola da agricultura camponesa. São mecanismos, em sua maioria, muito recentes e ainda em condições insuficientes para reverter em pouco tempo todo o acumulado nos últimos 25

no). As denúncias de corrupção e de enriquecimento de muitos dos dirigentes demonstram um processo de degeneração em setores importantes da Al-Fatah. As eleições de 2006 contribuem para acirrar as disputas internas no movimento da resistência palestina, com Hamas vitorioso em Gaza e Al-Fatah na Cisjordânia. A esquerda palestina tem procurado convocar todas as forças progressistas, populares, democráticas e de esquerda a se unir num grande movimento nacional de resistência para desencadear novamente uma ofensiva contra as medidas do governo de Israel que visam acelerar o processo de expropriação de terras do povo palestino. Nesse momento de indignação também ocupam um papel importante e mesmo decisivo as massas populares e a classe operária dos países árabes, que podem pressionar seus governos a romper relações diplomáticas e comerciais com Israel como medida concreta de represália pelo constante desrespeito por parte de Israel às inúmeras resoluções da ONU sobre Gaza. Romper o bloqueio sobre Gaza pode ser o início de um novo ciclo de mobilizações que empurre as organizações palestinas para uma unidade programática e política mínima contra o principal inimigo: o governo do Estado sionista de Israel.

Não se derrotam 62 anos de colonialismo israelense com duas semanas de mobilizações, mas as lutas de agora vão se transformando mais uma vez numa onda, que pode se desmanchar quando chegar próxima à areia ou que pode se transformar num enorme tsunami de lutas populares em todo o mundo árabe, que vá obrigando os governos a tomar medidas mais duras e mais concretas contra Israel. Ainda é cedo para dizer qual será o resultado dessa estupidez e insensatez cometidas pelo governo israelense, mas já é possível perceber um maior isolamento político internacional de Israel. O momento é propício para as forças democráticas, populares, progressistas e de esquerda denunciarem mais uma vez o caráter colonialista e racista do sionismo, essa ideologia expansionista que tem alimentado o ódio e a violência que movem a máquina de guerra israelense. A unidade nacional da resistência palestina e a crescente influência das forças de esquerda nesse processo, além das mobilizações de massa dentro e fora da Palestina, podem ser elementos importantes para alterar a correlação de forças numa perspectiva de fazer avançar a luta pela criação de um Estado palestino laico e democrático nos territórios ocupados em 1948 e em 1967, criando assim condições para que a questão nacional palestina seja, mesmo que tardiamente, resolvida. Apesar das dificuldades, ainda é possível acreditar que nada pode deter a luta desse povo pela sua libertação.

anos. Este peso tornou-se maior diante das intempéries climáticas, secas e enchentes, que afligiram os pequenos agricultores nos últimos anos, o que fez com que parte das dívidas fossem prorrogadas para anos seguintes, provocando um grande acúmulo destas prorrogações nos anos de 2010 e 2011. Parte delas serão pagas, mas pagar todas é impossível, pois os preços agrícolas continuam, via de regra, baixos. Isto permite baixa inflação no país e oferta abundante de alimentos baratos. Por isto se, faz necessário tratar o conjunto das dívidas e dar uma solução estrutural e de longo prazo. Neste sentido, a proposta de um rebate que saneie pela raiz o endividamento passado é a melhor solução. Empurrar com a barriga só joga o problema para a frente. A proposta dos movimentos da Via Campesina é consolidar todas as dívidas da agricultura de pequeno porte (inclusive as dívidas dos pequenos agricultores integrados, cujos financiamentos são tomados pelas empresas integradoras em nome dos agricultores – frango, fumo, porcos etc) num contrato único, dar um rebate fixo tendo como referência o valor de R$ 10.000,00 por família e prazo de 15 anos com juros fixos para pagar o saldo devedor. Isto dará condições a todos de quitar suas dívidas, diminuir seu peso nos próximos anos e dar condições para continuar produzindo alimentos, gerando emprego e desenvolvimento no campo e nas cidades, de modo especial, no interior do Brasil.

HÁ UMA CENA no célebre documentário Fahrenheit 9/11, do diretor estadunidense Michael Moore, que até hoje não me sai da cabeça. Refiro-me precisamente àquela visita do abestado George W. Bush a uma escola infantil, no exato instante em que se consuma o atentado contra as Torres Gêmeas. As imagens que registram a reação quase disléxica do presidente ianque são, de fato, impressionantes. Ele parece estar virtualmente catatônico, em meio à leitura de uma história para as crianças que o rodeiam, enquanto os assessores e a segurança o informam dos insólitos acontecimentos que se sucedem “lá fora”, naquele misterioso e insondável “mundo dos adultos”. A (falta de) atitude de Bush não impediu que este se reelegesse à Casa Branca em 2004, após derrotar o candidato democrata John Kerry por escassa margem de votos (50,7% a 48,3%), mas foi, sem dúvida, um fator a mais a influir na vitória de Barack Obama em 2009. É claro que não pretendo, aqui, igualar os dois síndicos mais recentes do Império... O bom mulato de Chicago em nada se assemelha ao caubói mimado do Texas; Obama é articulado, possui uma retórica bastante sedutora e exibe sinais inequívocos de inteligência em suas intervenções públicas, dotes que, bem o sabemos, Bush filho jamais logrou cultivar. Contudo, em se tratando do Tio Sam, a história costuma repetir-se uma ou mais vezes, ora como farsa, ora como tragédia – e sempre ao custo de muitas vidas para os povos de todo o planeta. É o que penso cá com meus botões, ao ler as notícias sobre o estúpido e inominável ataque das forças militares israelenses à frota humanitária que pretendia furar o bloqueio marítimo imposto pelo regime fascista de Israel aos palestinos que habitam a Faixa de Gaza. O que fez o bom mulato após ser informado da agressão? Sabemos que ele não se refugiou em nenhum Clube de Leitura escolar, para ler ou ouvir o clássico Onde vivem os monstros, de que tanto gosta. Mas sua reação poderia estar no próximo filme de Michael Moore, como um marco da desfaçatez e fragilidade atual do Império: o bom mulato incumbiu sua cadela de guarda Hillary Clinton de jogar uma nuvem de fumaça na mídia, acusando a suposta presença de terríveis “terroristas” nas embarcações que seguiam para Gaza, enquanto ele próprio saía de foco e se dirigia à região afetada pelo vazamento de óleo provocado pela empresa BP no Golfo do México. O festival de retórica presidencial já não surte o mesmo efeito dos tempos de campanha. O governo dos EUA, não importa o perfil do síndico de plantão, tornou-se um mero agente das poderosas corporações de petróleo e armas, vagando como nau perdida nesse imenso e ignoto oceano conhecido como Mercado. Hoje, contudo, há novas correntes nessa rota – e uma delas é, sem dúvida, a sinuosa China, a maior credora de Tio Sam no mundo e, decerto, a grande fiadora do futuro ianque neste planeta. Israel continua empenhado em valer-se das armas para expandir seu território, julgando ser a força seu único meio para tal propósito, como fizeram as nações imperialistas no início do século 20. A Guerra Fria, porém, já terminou – e novos atores reclamam seu espaço no palco global. O ditado também mudou: contra a vida, Mr. Obama, não há argumentos. A perigosa aliança firmada com Israel é um feitiço que hoje ameaça o mestre dos feiticeiros: o conflito no Oriente Médio não será superado pelo poder militar nem por ameaças de retaliação, conforme tão bem preconizam as gestões diplomáticas postuladas por países como Brasil e Turquia. Até quem tratou de demonizar o Irã em suas colunas midiáticas anda hoje bem mais reflexivo. Afinal, ninguém ignora que, como dizem os cubanos, uma mentira pode correr cem anos, que a verdade a alcança em um único dia. O cinismo de Netanyahu, que denuncia em tom paranoico uma “conspiração internacional” antijudaica, não encontra eco no pensamento dos jovens judeus estadunidenses, que em pesquisa de 2003 revelam sentir-se cada vez mais distantes do sionismo e do próprio Estado de Israel. Por mais que o premier israelense ainda creia na linguagem da força, os ventos parecem soprar em outra direção – e a insistência nessa opção só fará aumentar o isolamento de Tel Aviv e Washington. Embargos, bombas e bloqueios causam mortes e sequelas, mas não logram silenciar os povos, como nos prova a resistência heroica da Palestina ou a persistência serena e inabalável de Cuba em sua via autônoma e soberana de construção do socialismo.

Frei Sérgio Antônio Görgen é frade Franciscano, participante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e da Via Campesina Brasil.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Mello • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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Privatização de aeroportos brasileiros não acarreta melhoria ABr

INFRAESTRUTURA Levantamento do Ipea aponta preocupação com o setor e sugere concessão à iniciativa privada; especialistas discordam Renato Godoy de Toledo da Redação UM ESTUDO divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) expôs as consequências de um longo período de baixo investimento em infraestrutura no país. O sistema aeroportuário brasileiro, segundo o levantamento, pode estar à beira de um colapso operacional, devido ao aumento da demanda pelos serviços nos próximos anos, impulsionado por megaeventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Apesar de retratar a estrutura raquítica do transporte aéreo brasileiro, o Ipea apresentou uma sugestão que desagradou especialistas: a concessão dos aeroportos mais rentáveis. Os críticos da privatização apontam que a medida não traria dinamismo ao setor, como defende o estudo, mas aumento de tarifas e a manutenção de uma estrutura que não atenderia à crescente demanda. O estudo aponta que o aumento da atividade aeroportuária subiu de forma vertiginosa em todo o mundo nos últimos 15 anos. O fenômeno é consequência da economia globalizada em que as cadeias de produção foram fragmentadas. Ou seja, quando antes todas as etapas da produção ficavam em um país, agora são espalhadaa por diversos países. Assim, o mundo precisa se readaptar ao novo cenário.

“Em toda a Europa, os aeroportos são controlados pelo Estado” Situação brasileira

Para o Ipea, o setor aeronáutico passou por períodos de regulação e intervenção estatal, outro de liberalização e quase-regulamentação e, desde 2005, vive um período de “rerregulação”, em que agentes estatais procuram impedir a “competição danosa” e “adequar a oferta de transporte aéreo”. Apesar de apontar deficiências e um aumento de demanda que supera o crescimento do PIB, o Ipea ratifica que “é indubitável que hoje o Brasil possui um transporte aéreo mais competitivo e eficiente”. As propostas polêmicas do Ipea sugerem abrir o capital da Infraero; separar os aeroportos entre “rentáveis” e “não rentáveis” e distribuí-los para novas concessionárias; conceder os aeroportos rentáveis à iniciativa privada para que o Estado se concentre em investir nos não rentáveis; construir novos terminais em aeroportos saturados; e incumbir a iniciativa privada de construir novos aeroportos, por meio de parcerias público-privadas ou concessão. Oneração do usuário

O principal impacto do aumento da participação privada no sistema aeroviário brasileiro é a elevação de tarifas, segundo especialistas. E não há qualquer indício de que o serviço melhoraria com tais medidas.

O Aeroporto de Congonhas, na capital de São Paulo: sistema aeroportuário pode estar à beira de um colapso

tas, devem conter amplo planejamento. “Deve-se fazer, cuidadosamente, o balanço de longo prazo desta decantada modalidade investimento que representa uma renúncia do setor público em atuar diretamente em certas áreas”, considera. Infraestrutura estatal

“A julgar pela experiência decorrente da privatização das rodovias e das ferrovias, a desestatização dos aeroportos seria grandemente prejudicial ao país e aos usuários. Resultaria em elevação real das taxas e tarifas, sem melhora apreciável na qualidade dos serviços da infraestrutura de transportes”, aponta o economista da UnB Adriano Benayon. O professor de economia da USP, Adriano Biava, também acredita em oneração do usuário. “Há que se distinguir impactos de curto e de longo prazo. No curto, pode haver uma aceleração dos investimentos no setor, desde que seja garantida a rentabilidade para quem o assuma. Deve-se levar em consideração que tal garantia de rentabilidade implicará, certamente,

em reajuste das tarifas, afetando usuários e empresas do setor”, prevê. Mesmo as PPPs podem acarretar numa majoração da tarifa, na visão do economista, e ainda podem comprometer uma parte importante do orçamento público. “Se se esperam investimentos adicionais com a parceria público-privada, deve-se lembrar que estes investimentos só serão viáveis se garantida certa remuneração aos que recebam a concessão, o que representará, no futuro, comprometimento de recursos públicos, uma vez que as tarifas dificilmente cobrirão todos os custos, mesmo neste setor de interesse de pessoas de maior renda”, opina. Para Biava, diante de consequências nem sempre benéficas, as PPPs, se forem fei-

José Carlos de Assis, economista e presidente do Instituto Desemprego Zero, aponta que a infraestrutura é uma questão de Estado nos países desenvolvidos, com exceção dos EUA. “Os aeroportos precisam ser ampliados, mas o setor privado não deve entrar nisso. Achar que privatização é uma panaceia, solução para o problema, não é correto. A razão talvez esteja no meio do caminho, mas com o setor público investindo mais. Privatização em infraestrutura é algo seríssimo. Em toda a Europa, os aeroportos são controlados pelo Estado”, afirma. Para o economista, o relatório do Ipea é importante para alertar o governo sobre a falta de investimentos em infraestrutura. “Esse quadro [dos aeroportos] é reflexo de um período de baixo investimento em aeroportos e infraestrutura, que começou no governo Fernando Henrique Cardoso e durou até o primeiro ano do governo Lula”, diz.

Aeroporto privado não garante segurança nacional Estado deixaria de ter controle sobre informações relevantes da Redação A privatização do sistema aeroportuário brasileiro recebe oposição de especialistas não apenas pelo seu caráter neoliberal – que já mostrou ineficácia em outros setores -, mas também por influir em questões como a segurança nacional. De acordo com o economista da UnB Adriano Benayon, os aeroportos hoje são o principal meio de comunicação do Brasil com as grandes potências.

“A consequência [da privatização] é desfavorável à segurança nacional, mormente porque as linhas aéreas constituem o principal meio de conexão com o exterior, além do transporte marítimo, este com importância relativa hoje reduzida em comparação com o transporte aéreo”, aponta. Benayon reduz a importância de ferrovias e rodovias pelo fato de estas ligarem o Brasil apenas a países vizinhos – “dos quais as possíveis ameaças são insignificantes, em contraste com as de potências impe-

riais, cujo acesso ao Brasil se faz sobretudo através de aeronaves”. O economista Adriano Biava, da USP, acredita que, ao perder o controle sobre o setor aeroportuário, o país pode ter dificuldade em obter informações importantes. “No campo extra-econômico, mais especificamente da segurança nacional, poderão ocorrer, dependendo da forma de privatização, dificuldades de comunicação para as autoridades encarregadas do controle do tráfego aéreo”, afirma. (RGT)

Aumento do investimento público pode solucionar deficiência Economista sugere redução de taxa de juros para financiar setor da Redação Com um ciclo de crescimento virtuoso e aparentemente duradouro, o Brasil carecerá de um sistema aeroportuário mais eficiente para escoar a produção e fortalecer o turismo e os negócios. Essa afirmação é um ponto pacífico entre especialistas. No entanto, há aqueles que defendem a concessão do setor à iniciativa privada, como forma de dinamizar a atividade e outros que apoiam o aumento do investimento público na área. Para Adriano Biava, economista da USP, a privatização não é necessária para melhorar as condições do setor. Segundo ele, para a adequação dos aeroportos à nova realidade, seria preciso “realizar os investimentos necessários com recur-

Jobim desqualifica estudo do Ipea da Redação O ministro da Justiça Nelson Jobim criticou duramente o estudo do Ipea sobre o sistema aeroportuário e aeronáutico brasileiro. A pesquisa aponta a falta de investimento no setor nos últimos anos. Jobim afirmou que os dados apresentados no levan-

sos públicos que existem, criando indicadores de aferição de desempenho individual dos aeroportos e, principalmente, profissionalizando sua administração, pública, e criando mecanismos de controle imunes à politica clientelista”.

“É só investir, para que não faltem recursos ao Estado” Para o economista da UnB Adriano Benayon, a alternativa à privatização dos aeroportos é relativamente simples. “É só investir, para que não faltem recursos ao Estado, sem falar em que esses recursos poderiam ser exponenciados, bastando, para isso, reduzir para cerca de 2% a taxa básica de juros que o Tesouro Nacional paga nos títulos de sua emissão, hoje de 10% ou mais. Isso vale também para qualquer outro elemento da infraestrutura, tanto de transportes, como de energia etc”, expõe. (RGT)

tamento eram “falsos” e que o instituto “mentiu” ao apresentar dados sobre a capacidade dos aeroportos. De acordo com o estudo, a Infraero investiu R$ 3 bilhões entre 2000 e 2007. Na versão de Jobim, o investimento foi de R$ 4,7 bilhões. O Ipea é uma instituição com mais de 40 anos e é ligada à Presidência da República. Para o economista José Carlos de Assis, a reação do ministro foi “exagerada”. Mesmo discordando da sugestão de concessão privada, o economista aponta que o levantamento do instituto foi importante para expor a necessidade de investimento público. (RGT)


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Desconstruindo o consenso ASCOM/SEGEG

VIOLÊNCIA Aprovada pela maior parte da população do Rio, e exaltada pela mídia, a implantação das UPPs em favelas cariocas tem recebido críticas por vezes severas de especialistas em Segurança Pública Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) NAS RUAS, quase todos concordam: as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), implantadas em algumas comunidades pobres do Rio de Janeiro, são um benefício para a cidade. Finalmente, o Estado estaria assumindo o controle sobre áreas perdidas, trazendo paz para os cidadãos, moradores ou não de favela. Segundo o discurso oficial, outros benefícios viriam de carona com a suposta paz. Instaladas no coração das comunidades, com a expulsão de narcotraficantes ou milicianos, as UPPs seriam o policiamento comunitário que, por tantas vezes, se reivindicou. Amplamente elogiada pela mídia hegemônica, tem o apoio dos cariocas de todas as classes. Entretanto, a avaliação de especialistas em segurança pública, curiosamente, foge a esse consenso. Alguns dos críticos da política pública veem alguns pontos positivos na política. O principal deles é a retomada de territórios perdidos para o narcotráfico. Regiões pobres da cidade, em tese entregues ao controle políticoeconômico dos varejistas da droga, estariam sendo recuperadas pelo Estado, através de seu braço armado, a polícia. Porém, nem todos estão de acordo. “É muito cômodo usar esse argumento. Nunca houve área em que o Estado não pudesse agir. Nós não aceitamos essa teoria, de regiões com Estado paralelo. A implantação das UPPs é suporte para toda uma série de medidas de criminalização da pobreza que estão em andamento no Rio de Janeiro”, afirma Camilla Ribeiro, do Justiça Global. No artigo “Afinal, qual é a das UPPs?”, Luiz Antonio Machado, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), enxerga alguns dados positivos. “Onde estão atuando, de um modo geral, têm apresentado bons resultados, medidos por indicadores locais razoavelmente confiáveis”, considera. “No entanto, não é prudente avaliar políticas públicas por meio de uma síntese binária, do tipo ‘bom’ x ‘ruim’”, alerta.

“As UPPs são direcionadas a lugares estratégicos, tendo em vista as Olimpíadas e a Copa do Mundo” Machado analisa uma série de pontos que estariam “distantes do debate coletivo”. Um deles é o fato de se tratarem “apenas de projetos conjunturais, uma parte menor – muito menor – de uma políti-

ca repressiva de manutenção da ordem pública”. Também vê com preocupação o fato de coronéis das UPPs desempenharem “o papel de mediador político-administrativo” (em algumas unidades, o policial torna-se quase um subprefeito da favela). Intelectuais e ativistas que debatem segurança pública alertam para a necessidade de se fazer a leitura da implantação das UPPs não como uma política isolada. O governo estadual não teria condições econômicas de implantá-las em todas as comunidades onde há tráfico ou milícia. As UPPs seriam apenas parte de uma política ampla. “A UPP busca legitimar a continuidade da política de extermínio, apaziguando o clamor popular através de uma suposta ‘pacificação’. Apresenta-se como um novo modelo, mas, na verdade, é um adendo ao modelo anterior”, afirma Taiguara Souza, do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (IDDH). “As UPPs são direcionadas a lugares estratégicos, tendo em vista as Olimpíadas e a Copa do Mundo”, completa.

“Existe a vantagem da redução da letalidade policial, que no Rio de Janeiro tem índices de guerras” Política elitista De fato, se analisadas as regiões onde a política foi implantada, fica claro, em primeiro lugar, que se privilegiam comunidades localizadas em áreas ricas da cidade: a chamada “zona sul sociológica”. Quase todas as favelas contempladas com UPP ficam na zona sul ou em bairros de classe média (Jacarepaguá, Tijuca, Centro). Áreas próximas à região portuária, que será completamente reformulada para as Olimpíadas, foram ocupadas. Cidade de Deus, próximo à Barra da Tijuca, onde haverá atividades olímpicas, também. “Os pobres estão sendo expulsos da área dos ricos”, afirma Camilla. Antes do anúncio do Rio como sede dos Jogos de 2016, em visita ao Santa Marta, a representante do Comitê Olímpico Internacional (COI), Nawal El Moutawakel, já ficara “bem impressionada” com a política. Comandante da UPP local, a capitã Priscilla Azevedo viajou a Copenhague, cidade onde foi anunciada a escolha do Rio. Em seu artigo, Machado dá exemplos que simbolizariam a prioridade de determinadas regiões. Segundo o professor, durante entrevista na televisão, um coronel teria alertado criminosos de uma comunidade para deixar a área, porque em Priscila Marotti/ASCOM/SEGEG

Rosana Alves, da UPP da Ladeira dos Tabajaras e Morro dos Cabritos

Apoio popular às UPPs se deve, em parte, à massiva campanha na grande mídia

breve a polícia a ocuparia. E o próprio governador, Sérgio Cabral (PMDB), teria avisado os traficantes da Ladeira do Tabajaras que abandonassem o local, que ganharia em breve uma UPP. Machado argumenta que, se os bandidos foram alertados, ao invés de presos, é sinal de que se aceita que migrem para regiões menos nobres da cidade, onde sua atividade criminosa seria menos incômoda. Direitos humanos Taiguara considera que os êxitos são menos relevantes do que os problemas. “Existe a vantagem da redução da le-

talidade policial, que no Rio de Janeiro tem índices de guerras. Porém, a UPP traz um problema novo, que são as novas formas de violação de direitos. Tornaram-se frequentes as invasões de domicílios, lesões corporais, revistas desrespeitosas, preconceito racial e discriminação contra orientação sexual. Policiamento comunitário sempre foi uma bandeira da esquerda. Mas nós o defendemos pela ótica dos direitos humanos, com fomento à cultura, trabalho, moradia e lazer”, diz. Uma pergunta torna-se, no entanto, natural aos críticos das UPPs. Se a política tem

tantos problemas, porque o apoio popular é tão grande? Uma razão seria a propaganda massiva dos veículos hegemônicos de comunicação, que retratam a “nova vida” nas comunidades de forma frequentemente lúdica. Entretanto, o índice de aprovação é grande, inclusive, dentro de comunidades “pacificadas” – embora menor. Isso se deveria à sensação de alívio provocada pela diminuição do poder dos narcotraficantes. Levantamento recente revelou que moradores de comunidades não veem mais, como em outros tempos, o bandido como herói.

Emblemas de direitos violados Humilhação a cineastas e espancamento de rapper revelam violações que, embora frequentes, não eram veiculadas pelos meios de comunicação do Rio de Janeiro Há quinze dias, os moradores de Cidade de Deus Rodrigo Felha e Fernando Barcellos saíam de casa quando foram abordados por um policial da UPP. De forma desrespeitosa, o soldado mandou que tirassem a roupa, deixandoos apenas de cuecas. A revista dos dois talvez não tivesse ganhado visibilidade, não fossem eles diretor e co-diretor de um episódio do filme “Cinco vezes favela, agora por eles mesmos”. O longa seria exibido, naquela semana, no Festival de Cannes, na França. Relatos semelhantes ocorreram à exaustão na comunidade, sem ganhar a manchete dos jornais. Crítico conhecido da “pacificação”, o rapper Fiell chegou a liderar a confecção de um guia para orientar os moradores do Santa Marta sobre os limites

de abordagem policial – a “Cartilha popular do Santa Marta”. No dia 23 de maio, policiais invadiram o bar de seu sogro, ordenando que se desligasse o som. Fiell começou a ler direitos civis no microfone e recebeu voz de prisão. Foi espancado pelos policiais. “Infelizmente, casos como o meu prevalecem, e as pessoas não denunciam. Passam por constrangimento, mas têm medo da polícia”, disse. A cartilha fora escrita com apoio da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) e do Ministério Público.

Fiell começou a ler direitos civis no microfone e recebeu voz de prisão. Foi espancado pelos policiais As duas violações, aos cineastas e ao rapper, foram divulgadas pelos jornais – talvez por não se tratar de favelados comuns. Vários outros exemplos de arbitrariedade não tiveram igual sorte. Edmilson Almeida, da Cidade de Deus, teve uma briga simples com a mulher, que foi à

UPP reclamar. Os policiais invadiram a casa, espancaram Edmilson, xingaram e teriam, inclusive, ameaçado estuprar a mulher. Revistas e espancamentos são mais frequentes nos primeiros meses de instalação da UPP, quando a repressão é mais forte. Em diversas comunidades, atividades culturais são controladas ou proibidas. No início de abril, na Ladeira dos Tabajaras, próxima a Copacabana, outro caso pouco divulgado chamou a atenção. O abandono da comunidade por uma moradora revelou que o tráfico, muitas vezes, está longe de ter sido eliminado. A mulher foi ameaçada por moradores, incomodados com sua proximidade com os policiais da UPP local. Seriam pessoas próximas a bandidos que dominaram a favela. Segundo a capitã Rosana Alves, comandante da unidade, “eles não são considerados traficantes”. Na Cidade de Deus, os policiais admitem que o tráfico ainda existe, embora não haja mais armas de grande porte. No Pavão-Pavãozinho, um traficante foi preso em março vendendo drogas. Darlan Barbosa reagiu à prisão com um argumento que diz mais do que, a princípio, parece. “Não sabia. Ninguém me avisou que não podia mais”, disse. Após lançar pedras na polícia, o traficante foi perseguido. Foi encontrado num quarto, escondendo as drogas na cueca. (LU)

Expulsos pela renda O aumento do valor imobiliário e o alto custo dos serviços expulsa os mais pobres das comunidades ocupadas do Rio de Janeiro Uma das principais críticas às UPPs diz respeito à chamada “remoção branca”. Pela elevação do custo de vida nos locais onde são implantadas, acabam expulsando moradores, incapazes de arcar com os novos preços, para outras regiões. Como a política tem privilegiado favelas localizadas em regiões ricas das cidades, os pobres acabam sendo expulsos para as regiões distantes dos centros econômicos, reproduzindo a formação geográfica de outras metrópoles, onde os pobres moram, quase sempre, na periferia. Levantamentos recentes comprovam a afirmação. Segundo dados divulgados pelo jornal O Globo, imóveis nas regiões teriam valorizado até 400%. Cada vez mais, as comunidades estariam ganhando casas mais altas e cômodos anexos. O aluguel de uma loja na Cidade de Deus já estaria custando cerca de R$ 500 – 150% a mais do que antes da instalação da UPP. Na favela do Batam, um condomínio grande de classe média foi construído. A maioria das comunidades vai ganhar um Posto de Orientação Urbanística e Social – já existente no Santa Marta e no Morro do Borel. Tarifas antes desconhecidas dos moradores também passam a existir. Em muitas comunidades ocupadas, os “gatos” na luz e na TV a cabo foram eliminados. As pessoas passaram a ter que pagar pelas benesses – e sem a tarifa social, prerrogativa permitida por lei para que os pobres paguem menos por determinados serviços. Na Ladeira dos Tabajaras, a polícia acaba de proibir a atividade de moto-táxis, sem mais explicações. Mais de 30 bares foram fechados no Pavão-Pavãozinho, por estarem sem alvará. (LU)


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O embuste do “progresso” para ampliar o desmatamento no Brasil MEIO AMBIENTE “Aldo Rebelo cria falsa polarização entre progresso nacional e intervencionismo estrangeiro”, critica Frei Sérgio Antônio Cruz/Abr

Eduardo Sales de Lima da Redação O DEPUTADO federal Aldo Rebelo (PC do B) entregou, no dia 8, o relatório final com propostas de mudanças no Código Florestal Brasileiro. ONGs ambientalistas e organizações sociais camponesas, entretanto, criticamno por ter encampado as pautas do setor ruralista do Congresso Nacional. A visão de grande parte dos movimentos, dentre eles a Via Campesina, é a de que, com a aprovação do novo código, o agronegócio consolidará áreas já desmatadas em reservas legais e áreas de proteção permanente (APPs) e, assim, ficarão perdoados grandes produtores rurais que cometeram infrações ambientais. O engenheiro florestal Luiz Zarref, ligado à Via Campesina, afirma que o novo código é resultado de mais um forte lobby no parlamento, sobretudo dos grandes produtores de óleo de palma (dendê), que devastam as florestas tropicais da Indonésia e da Malásia, além dos já conhecidos produtores de celulose (eucalipto). “O objetivo é de que as reservas legais, principalmente na região amazônica, possam ser recompostas por espécies exóticas, como a palma e o eucalipto”, explica. “A proposta que o Rebelo está encampando é a proposta do agronegócio”, adverte Frei Sérgio Görgen, integrante da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). O que reforça tal afirmação é que o relatório com as mudanças no código foi elaborado com a participação de uma consultora jurídica oficial da frente ruralista do Congresso Nacional. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, de 8 de junho, a advogada Samanta Piñeda recebeu R$ 10 mil pela “consultoria”, pagos com dinheiro da verba indenizatória de Rebelo e do presidente da comissão especial, Moacir Micheletto (PMDB-PR).

“A reserva legal é um espaço privilegiado para desenvolver alimentos saudáveis com conservação da natureza” Há denúncias de que os ruralistas teriam impedido a participação plena de inúmeras organizações sociais, além de terem apressado o processo de consulta pública. Todas as dezenove audiências públicas comandadas pela co-

Audiência pública da Comissão da Amazônia que discutiu propostas de alteração do Código Florestal e da Lei de Crimes Ambientais

“O interesse do capital externo é destruir toda a nossa floresta, transformar ela em carvão para a extração de minérios, substituir por cana, gado e algodão” missão especial da Câmara dos Deputados foram realizadas em “capitais” do agronegócios. Raquel Izidoro, membro da Associação Brasileira de Estudantes de Engenharia Florestal (Abeef), esteve na audiência do dia 3 de fevereiro em Ribeirão Preto (SP) e reclama da falta de democracia que presenciou na ocasião. “O código de 1965 veio de uma época de muitas lutas sociais, o que não está acontecendo agora. Na audiência em Ribeirão Preto, o tempo das organizações sociais era bem controlado, ao contrário do tempo daqueles que se pronunciavam defendendo os interesses do agronegócio”, recorda. Equívocos De acordo com Luiz Zarref, o deputado Aldo Rebelo, ao assumir os anseios de expansão espacial do setor ruralista e rebater veementemente as críticas de ONGs ambientalistas estrangeiras contra ele, sobretudo o Greenpeace, incorre em “erro de leitura política”. “Ele está considerando o debate público de criação de novo código florestal como uma disputa entre nacionalismo e intervenção estrangeira. Ora, ele está esquecendo que o agronegócio é, justamente, uma grande injeção de capital estrangeiro dentro do país”. Zarref denuncia que “o interesse do capital externo é

destruir toda a nossa floresta, transformar ela em carvão para a extração de minérios, substituir por cana, gado e algodão para exportar, transformando tudo em commodities”. Relacionados a isso ou não, cifras da última campanha eleitoral podem elucidar certas atitudes. De acordo com a página na internet da ONG Transparência Brasil, a campanha de Aldo para as eleições de 2006 recebeu R$ 300 mil da Caemi-Mineração e Metalúrgica, R$ 50 mil da Bolsa de Mercadorias e Futuros e mais R$ 50 mil da Votorantim Celulose e Papel. Segundo Frei Sérgio, a polarização que o deputado Aldo Rebelo engendra, a de que existe uma intervenção de ONGs internacionais que não querem que o país progrida, é falsa. “Não é proteção da nação que ele está fazendo, é justamente entregar nossos rios, nossas florestas para meia dúzia de transnacionais”, conclui. Manejo Entre os argumentos do deputado federal e da frente ruralista para a implementação de um novo Código Florestal Brasileiro, está o de que a agropecuária precisa de mais espaço. Em recente estudo coordenado por Gerd Sparovek, professor do departamento de solos da Escola Superior de Agricultura Luiz de Marcello Casal Jr./ABr

O deputado federal Aldo Rebelo, relator do projeto

Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), que ainda será publicado, o atual código já permite que 104 milhões de hectares sejam desnecessariamente, mas legalmente, desmatados. Sparovek destaca, por outro lado, que a agricultura pode se desenvolver pela expansão territorial sobre áreas ocupadas com pecuária extensiva. O estudo aponta que a pecuária brasileira para o corte ocupa 211 milhões de hectares. A conclusão de seu estudo é de

que a integração da agricultura com a pecuária, o manejo mais intensivo das pastagens através da correção do solo e sua adubação ainda são práticas pouco aplicadas pelos pecuaristas no Brasil. Noves fora o espaço mal utilizado pelo agronegócio, mais um “erro” do deputado Aldo Rebelo, segundo Zarref, é enxergar a incompatibilidade entre o respeito à natureza e produção agropecuária. “Quando se fala do sistema convencional de pro-

dução agropecuária, baseado em monocultura, mecanização pesada e produtos químicos, aí, de fato, isso é totalmente incompatível com a natureza. Agora, quando se fala de sistemas complexos e agroecológicos de produção de alimentos saudáveis, não há essa incompatibilidade entre natureza e produção”, explica Zarref. O engenheiro florestal defende que o agronegócio não dá conta de produzir e preservar o meio ambiente, e a agricultura camponesa, sim. “Estamos falando que a reserva legal é um espaço privilegiado para desenvolver alimentos saudáveis com conservação da natureza; e ele [Aldo Rebelo] só consegue enxergar a produção convencional, baseada na revolução verde”, pondera. De acordo com Zarref, o código atual permite um manejo de reservas legais, mas é necessária uma regulamentação para este manejo e assistência técnica qualificada. Ele defende que a viabilidade econômica do manejo poderia ser potencializada com recursos financeiros voltados à implementação de projetos de recuperação e garantia de comercialização para os produtos oriundos do manejo da reserva legal e APP. A intenção da frente ruralista é levar a proposta ao plenário da Câmara antes das eleições. A assessoria de imprensa do deputado federal Aldo Rebelo informou à reportagem que, por estar concluindo o relatório, o parlamentar estaria momentaneamente impossibilitado de conceder entrevistas.

Impactos ambientais e humanos Se implementado, novo Código Florestal desmataria áreas protegidas, prejudicaria pequenos produtores e causaria problemas jurídicos da Redação O atual Código Florestal Brasileiro é considerado um dos mais completos do mundo, mas não tem funcionado direito. De acordo com dados do professor Gerd Sparovek, da USP, nos 278 milhões de hectares ocupados pelo setor agropecuário no Brasil, pelo menos 83 milhões estão em situação de “não conformidade” com o código e teriam que ser recuperados.

No período de cinco anos de moratória, os produtores rurais em desacordo com a lei não poderiam ser multados O engenheiro florestal Luiz Zarref considera que, se intensificada a diminuição das áreas de proteção ambiental, seriam gerados impactos diretos tanto na natureza quanto para os pequenos produtores agrícolas. “Com menos área de preservação permanente, aumenta o assoreamento

dos rios e as erosões e diminuem os recursos essenciais para os camponeses, como a água”, explica. Além do problema prático ocasionado aos pequenos agricultores, o relatório de Aldo Rebelo prevê uma moratória que retarda condenações a infratores ambientais, comumente os grandes ruralistas. No período de cinco anos de moratória, os produtores rurais em desacordo com a lei não poderiam ser multados. Caso o projeto seja aprovado e entre em vigor em 2011, as punições começariam apenas em 2016. Para o coordenador da Campanha de Código Flo-

restal do Greenpeace, Rafael Cruz, o perdão, além de não frear o desmatamento, não permitiria a recuperação de áreas degradadas e, além disso, “perpetuaria a instabilidade jurídica”, pois “quem cumpriu as normas se sentiria desrespeitado”, afirmou em entrevista à Agência Brasil. Somado a isso, a possibilidade de os estados e o Distrito Federal regularem as florestas, fator que também se insere no relatório de Aldo Rebelo, provocaria muita confusão, visto que “haveria 27 leis diferentes para dar conta de seis biomas”, critica o ambientalista. (ESL)

Áreas protegidas Entre suas principais atribuições, o atual Código Florestal Brasileiro regulariza, sobretudo, as áreas de proteção permanente (APPs) e as reservas legais (RLs). As primeiras visam, sobretudo, a conservação dos recursos hídricos, não permitindo que marginais dos rios, declives íngremes e altitudes elevadas sejam utilizados para qualquer atividade produtiva. De uso exclusivo para a conservação, as APPs devem estar cobertas por vegetação natural. A reserva legal é uma proporção de vegetação de cada imóvel rural. Alguns usos produtivos são permitidos, como a extração de produtos florestais e a apicultura. Porém tais usos são incompatíveis com a produção mecanizada de produtos como a soja, milho, cana-de-açúcar e a pecuária com base em pastos plantados. Na Amazônia Legal, por exemplo, a proporção de RL varia de 80% nas áreas de floresta em que não há Zoneamento Ecológico e Econômico (ZEE) e 50% naquelas em que há ZEE. Nas áreas de Cerrado, o índice atual é 35%; a proposta dos ruralistas é de que mude para 20%. (ESL)


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Desafios e perspectivas da Assembleia Popular Douglas Mansur/Novo Movimento

MOVIMENTOS Vanderlei Martini, do MST, e a irmã Delci Franzen, da CNBB, fazem um balanço da 2ª Assembleia Popular

Direitização – 1

A se considerar correta a pesquisa do Datafolha, segundo a qual 45% da população seriam contra punir os torturadores da ditadura (e apenas 40% a favor da punição), significa que o discurso do esquecimento e da conciliação – defendido por setores do governo Lula e pela maioria do Supremo Tribunal Federal – conseguiu conquistar muita gente nos últimos anos. Aos poucos a tese da “ditabranda” vai se impondo na sociedade.

Direitização – 2

A 2ª Assembléia Popular nacional reuniu milhares de militantes em Luziânia (GO)

Douglas Mansur/Novo Movimento

“Estamos na ofensiva”

Que diferenças podem ser apontadas entre o documento lançado pela 1ª Assembleia Popular, em 2005, e o que será divulgado agora?

No processo de preparação da 2ª AP revisitamos o documento anterior, em torno do qual foi feito um trabalho de base muito grande. Vieram várias contribuições. Um dos pontos mais importantes do documento é a manutenção da crítica ao capitalismo e às suas instituições. Nesse sentido, surge o apoio à luta por projetos que se opõem a este modelo – principalmente ao imperialismo – e que lutam contra o endividamento de países em desenvolvimento, como o Brasil. Outro item importante no documento é a presença da análise da crise ecológica. Junto da análise de outras crises, como a econômica, a política e a energética, essa reflexão está cada vez mais presente entre as entidades e na própria Igreja. O documento também constrói com clareza a relação da sociedade civil com o Estado brasileiro. Um Estado que favorece o atual modelo capitalista, principalmente como investidor e financiador, a serviço do capital, é altamente criticado. Foi retomada com muita firmeza a Plataforma BNDES, que propõe a reorganização do banco para o projeto popular, em contraposição ao do capital e das grandes empresas. Em que medida as pastorais sociais e a Igreja Católica estão comprometidas com a construção e o enraizamento da Assembleia Popular?

Nós nos sentimos parte da ori-

É inacreditável a omissão das autoridades sanitárias do Brasil em relação aos agrotóxicos usados nas lavouras dos principais produtos alimentícios. O caso mais escandaloso é o do endosulfam, que é altamente cancerígeno, está proibido em mais de 60 países e continua sendo utilizado nas plantações de café, cacau, soja, cana-de-açúcar etc. Por que a Anvisa e o Ministério da Agricultura silenciam? Depois da Grécia, a Hungria também enveredou pela crise econômica do capitalismo globalizado. O efeito dominó aponta que outros países, entre os quais Portugal e Espanha, estão na lista da derrocada. O Brasil paga de várias formas: queda de exportação para a Europa, aumento de remessa de lucro para as matrizes, redução do investimento produtivo e aumento do capital especulativo. Tudo nas costas dos trabalhadores.

A MANUTENÇÃO da crítica ao sistema capitalista, o referencial teórico do marxismo para compreender as lutas sociais, a discussão sobre a crise ecológica e a realização de campanhas e plebiscitos nacionais integram as principais contribuições do documento final da 2ª Assembleia Popular (AP) Nacional, que reuniu, entre os dias 25 e 28 de maio, centenas de representantes das cinco regiões do Brasil e de diversas redes, organizações, movimentos e pastorais sociais em Luziânia (GO). Para fazer um balanço do encontro, confira nesta página entrevistas com a irmã Delci Franzen, assessora das Pastorais Sociais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e com o Vanderlei Martini, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Delci Franzen – Precisamos usar espaços como a AP para tentar construir consensos, superar diferenças e potencializá-las no debate. Devemos explicitar nosso projeto e o documento final do encontro, que será divulgado em agosto, vai trazer isso, a clareza do Brasil que queremos. Estamos propositivos, indo além das pautas que o modelo capitalista está impondo ao povo. A gente já deu a volta, dobrou a esquina, estamos na ofensiva. Pode parecer muito otimista, mas acho que esta é uma característica que acompanhou esta AP, a confiança mútua, a parceira. Eu vejo uma semente da reorganização da esquerda no Brasil nesse espaço, que não é o único, mas é muito importante.

Veneno cotidiano

Crise galopante

Maria Mello de Luziânia (GO)

Brasil de Fato – Quais os acúmulos e expectativas da 2ª Assembleia Popular Nacional para o debate e a prática da construção de um novo projeto para o país?

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

gem da AP, porque ela congregou ali todo o movimento que vinha da Igreja, com a Semana Social Brasileira. Hoje, as pastorais se sentem profundamente comprometidas e fazem constantemente a autocrítica em relação à construção deste espaço. Nosso compromisso é com o enraizamento da AP para dentro das pastorais, para fortalecê-la e multiplicá-la em tudo o que é canto, nos bairros, no mundo urbano e no campo. É muito importante que a AP vá para as bases e sabemos que as pastorais sociais têm uma capilaridade muito grande. Esse é o nosso compromisso: fazer com que a AP seja do povo, que chegue às bases.

“É preciso repensar o discurso. Incorporar a arte, a cultura local, ouvir, fazer com que o povo se escute e entenda que processos locais estão ligados a um processo nacional” Como resgatar o trabalho de base? Como a ala progressista da Igreja, que historicamente desenvolveu essa prática, pode contribuir nesse processo atualmente?

Temos um legado importante dos anos de 1980, do trabalho popular das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que precisa ser repensado do ponto de vista do método. Essa metodologia tem que ser reavaliada em contextos novos, principalmente no contexto urbano. É preciso estar junto com o povo, organizar pequenos grupos, levar a proposta do projeto popular para discussão, ouvir dentro das novas realidades do mundo urbano, na área da moradia, do meio ambiente, dos novos movimentos do povo da rua, do movimento feminista. Colocar a AP no meio das iniciativas da economia solidária, no meio camponês, principalmente com relação às iniciativas de agroecologia. Estes são espaços novos que têm metodologia própria. É preciso repensar o discurso. Incorporar a arte, a cultura local, ouvir, fazer com que o povo se escute e entenda que processos locais estão ligados a um processo nacional. (MM)

O envolvimento de empresários, banqueiros e oligarquias regionais nas principais campanhas presidenciais evidencia que a composição política do próximo governo tende a ficar à direita dos dois governos Lula, mesmo porque ninguém fala em mudanças, mas apenas em mais do mesmo. Como as forças do capital sustentam o tipo de campanha que se faz no Brasil, a cobrança virá após a abertura das urnas. É só confirmar!

Água mentirosa

Organizações sociais querem retomar o debate de um projeto comum

União por um projeto Como a Assembleia Popular pode se consolidar enquanto espaço de construção de lutas unitárias nesse período de cisão da esquerda, em um cenário tão voltado para o debate das eleições?

Vanderlei Martini – A crise que se abateu na esquerda social brasileira caracteriza-se pela falta de unidade e debate em torno de um projeto popular, alternativo para o Brasil, pela falta de lutas unitárias e massivas e pelo rebaixamento do debate em torno da questão eleitoral. Boa parte das organizações sociais, sejam elas centrais sindicais, movimentos populares ou partidos, está tentando encontrar uma saída individual para esta difícil conjuntura. Configura-se assim uma espécie de corrida maluca, na tentativa de achar os rumos e retomar o debate em torno de um projeto comum. Sabemos que as saídas não são somente de curto prazo, nem fáceis, mas, para o próximo período, a 2ª AP apontou os desafios da formação, da organização e das lutas de massas como fundamentais para resistir ao período adverso que vivemos. Nenhuma organização de caráter sindical ou partidário, por mais forte e representativa que seja, consegue sozinha, em períodos de crise, aglutinar o conjunto das organizações e canalizar o debate em torno de um projeto comum e representá-lo como um todo perante a sociedade brasileira. Daí a importância da AP, pois queremos debater com a sociedade brasileira os rumos do país, a necessidade de construção de um projeto que mexa nas estruturas de poder da sociedade brasileira, que se perpetuam há mais de 500 anos. Como o MST e a Via Campesina leem o plebiscito sobre o limite

da propriedade da terra, consequência dos processos de plebiscitos que a AP impulsionou nos últimos anos?

Limitar a propriedade da terra no Brasil é de extrema importância para o conjunto da sociedade brasileira. O Brasil possui um dos maiores índices de concentração da propriedade da terra do mundo e é um dos poucos países que não fez reforma agrária e que não tem limite da propriedade da terra. É fundamental a realização de um plebiscito nacional sobre este tema. Com o limite, teremos mais terra disponível para a reforma agrária e consequentemente mais alimento barato e de melhor qualidade na mesa do povo brasileiro. Ao longo de cinco anos, a Assembleia Popular incorporou uma boa e profícua experiência em campanhas e plebiscitos nacionais. Ela possibilita a massificação do debate em todo o território nacional, e no conjunto de organizações que a compõem. Podemos destacar a campanha da tarifa social de energia, o plebiscito da Alca e o plebiscito da Vale. Assim, para este ano, é acertada a decisão da AP de priorizar o plebiscito sobre o limite da propriedade da terra. Temos pouco tempo para a realização do plebiscito, que vai acontecer na semana do dia 7 de setembro. Por isso, devemos debater urgentemente em todas as instâncias, em todos os nossos assentamentos, acampamentos, comunidades e fazer a coleta de assinaturas. Podemos aproveitar este momento para debatermos a atualidade da luta pela terra no Brasil, a necessidade da reforma agrária popular, a ofensiva da direita contra o MST e a reforma agrária. Devemos nos preparar também para o plebiscito continental, sobre o clima, puxado pela Bolívia, que acontecerá em abril do ano que vem. (MM)

O Ministério Público Federal do Pará divulgou uma relação de empresas que industrializam água comum como sendo água mineral, praticam irregularidade no rótulo das embalagens para enganar os consumidores. O MPF pede à Justiça e ao Departamento Nacional de Produção Nacional uma fiscalização rígida no setor para exigir a identificação correta e a qualidade da água vendida para a população. Deveria valer para todo o Brasil!

Dois coelhos

A plantação na mídia de suposto dossiê sobre esquema do tucano José Serra, que alimentou o noticiário durante alguns dias, resultou em duas consequências concretas: afastou o publicitário mineiro Luiz Lanzetta da campanha petista, como queria o pessoal de São Paulo; e obrigou o exprefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, a apoiar a candidatura de Hélio Costa (PMDB) ao governo mineiro, como queria a cúpula do PT. Deu tudo certo!

Opção eleitoral

Lançado no dia 7, o Plano Agrícola e Pecuário 2010/2011 promete um volume recorde de recursos para o setor: R$116 bilhões, contra R$107,5 bilhões do ano passado. Do total, R$100 bilhões são destinados ao agronegócio das grandes empresas e transnacionais da exportação; e apenas R$16 bilhões para a agricultura familiar, que é responsável pela produção de mais de 70% dos alimentos consumidos no Brasil. A opção é clara!

Farsa judicial

Acusado injustamente de homicídio em 2002, durante uma ocupação de terras, o militante Gegê, do Movimento de Moradia do Centro e da Central de Movimentos Populares, será julgado em 16 de setembro. Como a Justiça negou vários pedidos para ele responder em liberdade, está foragido. Amigos e companheiros do Gegê iniciaram nova campanha para a sua total liberação desse processo – que é pura perseguição política.

Petróleo rico

Em audiência pública sobre o futuro do pré-sal, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o representante da Petrobras, Rosemberg Pinto, destacou – segundo a Agência Petroleira de Notícias – que a exploração da camada do pré-sal irá gerar cerca de R$ 7 trilhões, dos quais 60% poderão “ser empregados no combate à pobreza, em educação e em cultura”. Será mesmo que o capital privado e seus lobbies vão deixar?


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Ocupação completa 2 anos na terra de Dantas. Agora, área é produtiva PARÁ Acampamento do MST muda condições precárias deixadas pela criação de gado em fazenda do grupo de Daniel Dantas Eduardo Sales de Lima

Márcio Zonta de Eldorado dos Carajás (PA) NO DIA 25 de julho, 390 famílias completam dois anos acampadas na fazenda Maria Bonita, do grupo Santa Barbara, ligado ao banqueiro Daniel Dantas, em Eldorado dos Carajás (PA). O cenário, antes de pastagem e desmatamento, vai dando lugar à diversidade de plantação. Hoje, os acampados plantam mandioca, batata, mamão, maracujá, arroz, feijão e todos os tipos de hortaliça, além da produção artesanal de farinha. A fazenda Maria Bonita, segundo o técnico de saúde Enivaldo Alves dos Santos, um dos coordenadores do acampamento, era, antes da ocupação, a área que mais tinha boi por hectares na região do Pará. “Chegamos aqui e tinha só pasto e boi. Agora, plantamos de tudo para comer e vender”, explica. Segundo o professor de agronomia da Universidade Federal do Pará (UFPA), Fernando Michelotti, o acampamento e o futuro assentamento dessas famílias na região seria propício “para a recuperação de áreas devastadas para a criação de gado, até porque o fazendeiro desmata 4 mil hectares por ano, enquanto o pequeno agricultor, no mesmo período, desmata 3, 4 hectares ”. Mas, para o grupo de Dantas, isso parece não ser relevante. “Depois que tudo que plantamos começou a crescer, passou um avião jogando veneno em nossa plantação”, conta o acampado Francisco dos Santos.

Para entender Acampamento na fazenda Maria Bonita, em Eldorado de Carajás, no Pará

“É bonito quando ocupamos uma área e começamos a dar vida onde antes não tinha, ainda mais produzindo” Chico não desanima e, empolgado, afirma: “mas é bonito quando ocupamos uma área e começamos a dar vida onde antes não tinha, ainda

mais produzindo”. Ele lembra que, antes das áreas virarem pastagem, elas eram tomadas por castanheiras típicas da região do Pará.

Para o acampado, grupos financeiros de origem internacional ávidos por matéria-prima também fomentam a destruição da floresta e o fim da agricultura familiar. “O capital internacional em busca desses insumos acaba contribuindo para o fortalecimento dessas grandes fazendas para monocultura e o fim do pequeno agricultor”, lamenta.

Na Amazônica, “desenvolvimento” implica destruição da floresta

Segundo o professor Michelotti, a criação do gado se dá realmente para a exportação da carne e do couro. E as fazendas em posse dos grupos financeiros são compradas, geralmente, de grileiros da região. Descobrimento

Além de recuperarem uma área antes destruída e torná-la produtiva, outra preo-

Para professor da UFPA, projetos pautados na pecuária extensiva e na mineração possuem profundo caráter predatório

“Substituir a floresta por projetos de desenvolvimento”. Essa é a premissa que ronda a região amazônica, na avaliação do professor de agronomia da Universidade Federal do Pará (UFPA), Fernando Michelotti. Esses projetos de desenvolvimento perpassam principalmente a expansão agropecuária e a mineração. Para Michelotti, tratamse de ações que resultarão em ainda mais “desmatamento da floresta, trabalho escravo, crimes ambientais e conflitos agrários”. O professor aponta que essas ações predatórias na floresta vêm ocorrendo desde décadas passadas. “Nos anos de 1970, já é implantada uma política de expansão que fere a região amazônica e seus povos”. Hoje a atividade que mais destrói a região é a criação de gado, pois, para Michelotti, “pastagem é inconcebível com floresta”. Ele chama atenção para alguns dados do Censo Agropecuário relativos a 2006: “agricultura familiar responde por 84% de empregos na região contra apenas 16% gerados nas grandes fazendas pecuaristas, porém ocupa apenas 24% da região contra 75% desses grandes grupos de latifundiários”. Michelotti observa diferenças cabais entre a agricultura

familiar e a expansão da criação de gado no que diz respeito à sobrevivência da floresta. “Esses projetos de desenvolvimento são oriundos de grandes empresas, com vistas à acumulação do capital, no assalariado simples, substituindo a natureza pelo trabalho. Além disso, é acrítico, faz por fazer, sem pensar nas consequências ambientais e sociais”, completa. Já a agricultura familiar se pauta pela “diversidade na produção, reprodução para a família, potencializa o trabalho junto à natureza, trava lutas sociais que buscam o respeito à diversidade, ao meio ambiente e o direito à terra para todos, assim sendo crítica em seus procedimentos”.

cura de outros espaços a fim de explorar mais até acabar, essa é a lógica”. Entre essas grandes companhias, em especial na região sul do Pará, está a Santa Bárbara, especializada em agropecuária extensiva e ligada ao banqueiro Daniel Dantas. Segundo Gomes, a empresa pratica “crimes ambientais, trabalho escravo e lavagem de dinheiro”. Michelotti estima que o grupo empresarial ligado a Dantas tem em suas fazendas, na região sul do Pará, 1 milhão de cabeças de gado.

“Se findarem os insumos naturais de determinada região, eles vão à procura de outros espaços a fim de explorar mais até acabar”

Nome aos bois

Michelotti acrescenta que o Brasil não tem uma política nacional de reforma agrária, o que propicia a grandes grupos empresariais ocupar e destruir cada vez mais espaços, principalmente na região amazônica. Para o diretor do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular(Cepasp), Raimundo Gomes, os “grupos empresariais têm apenas projetos temporários, não projetos que tragam benefício social no longo prazo, mas apenas exploratório. Se findarem os insumos naturais de determinada região, eles vão à pro-

Antonio Marques de Oliveira, conhecido como Baiano Doido – hoje acampado junto a 119 famílias em terras griladas em parte da fazenda Itacaúnas, no Pará –, diz que trabalhar para esses grandes grupos é muito ruim. “Os ‘homi’, os fazendeiros, pagam R$ 20 por dia para trabalhar na fazenda deles. Gasto R$ 8 de condução e ainda tenho que levar minha bóia. Sobram R$ 12, como vou dar de comer aos meus filhos? Por isso estou aqui acampado, lutando por um espaço de terra”, revela. Para Charles Trocate, diri-

gente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pará, trata-se de um modelo agrário perverso e excludente na distribuição da riqueza à sociedade. “Chegaremos a uma barbárie social dessa maneira”, alerta. Olha o trem

Os trens da mineradora Vale apitam ao fundo do acampamento Nossa Senhora da Aparecida, algo corriqueiro aos acampados, mas que representa “o envio de nossas riquezas para o resto do mundo”, conforme pensa Maria Elza da Silva, líder do acampamento. O destino do trem que passa atrás do acampamento é São Luís (MA), para onde leva o ferro que será processado e exportado a outros países. E se a criação de gado de um lado é o principal fator de desmatamento da região amazônica, a mineração, que também fomenta a destruição, possui mais um agravante: atinge em cheio a saúde dos trabalhadores que atuam nas empresas. Gomes revela que, na região de mineração no sul do Pará, 60 trabalhadores da Vale já perderam sua capacidade de vida com apenas 40 anos, seja por problemas físicos ou cardíacos, “além de ser um trabalho que só é possível em condições análogas à escravidão”. Segundo informações do governo federal, mais de dois terços do trabalho escravo do país se concentra nessa região. Para Trocate, essa situação de exploração que desrespeita o trabalhador e a natureza é algo sem precedentes na região. “Estamos na civilização da morte”, reflete. (MZ)

O banqueiro Daniel Dantas, um dos líderes do Grupo Oportunity, teve prisão preventiva decretada em julho de 2008 após uma investigação desencadeada pela Polícia Federal que revelou que ele era o chefe de uma organização criminosa envolvida na prática de diversos crimes, entre lavagem de dinheiro, corrupção, evasão de divisas, sonegação fiscal e formação de quadrilha.

Pistolagem privada ganha força no Pará de Marabá (PA)

de Marabá (PA)

cupação dos acampados é a educação dos filhos. “Quando se ocupa, a primeira coisa que fazemos é organizar uma escola”, diz Chico. Dentro da escola do acampamento, dividida em 7 salas com aulas em três períodos, 380 crianças aprendem não só o conteúdo escolar obrigatório das cartilhas distribuídas pelo Estado, mas refletem sobre o contexto onde vivem. Cartazes espalhados pelas salas de aula tratam do respeito à natureza e à vida humana, questionando também sobre o verdadeiro papel do solo e da vegetação. Assim, numa das aulas, a professora Leide Laura, ao falar sobre a escravização dos índios, deixa claro mais uma vez o sentido da educação dada aos sem-terrinha. Ela explica que Pedro Álvares Cabral não descobriu o Brasil, como sustentam as cartilhas do governo, mas sim, como ainda ocorre na região, invadiu e explorou como pôde os recursos naturais e humanos brasileiros.

“As empresas de segurança privada no Estado do Pará são a modernização da pistolagem”, acusa Charles Trocate, dirigente do MST no Pará, sobre o crescimento das empresas especializadas em dar segurança às fazendas contra ocupações ou na prática de execuções sumárias a mando dos latifundiários. Atualmente, segundo dados da Polícia Federal, responsável pela regulamentação e fiscalização da atividade de segurança privada, só na cidade de Marabá (PA), a aproximadamente 600 quilômetros da capital Belém, o número de profissionais em atuação nas seis empresas que oferecem o serviço é de 533.

Oito pessoas do acampamento já foram baleadas, apesar de não ter ocorrido nenhum assassinato A quantidade é quase quatro vezes maior que a do efetivo de policiais militares de Marabá, 150 homens. Para ser um segurança privado aprovado pela Polícia Federal é simples: basta ser maior de 21 anos, ter completado o 4º

Quanto

533

pessoas trabalham no setor de segurança privada em Marabá. O efetivo da PM na região é de 150 profissionais.

ano do ensino fundamental, não ter antecedente criminal e passar por curso de formação num dos centros autorizados pela Polícia Federal. Violência

Entretanto, a prova e as marcas da atuação desses seguranças estão nos corpos de vários trabalhadores rurais que lutam pela reforma agrária. É o que mostra Francisco do Santos, do acampamento da fazenda Maria Bonita. “Tomei de raspão um tiro no peito”, diz, levantando e indicando o local do ferimento. Oito pessoas do acampamento já foram baleadas, apesar de não ter ocorrido nenhum assassinato. “Mas, se te pegarem, eles te matam e alegam que foi em legítima defesa”, critica. Para o advogado da organização Terra de Direitos, Darci Frigo, os grandes grupos latifundiários, sobretudo as transnacionais, se valem de uma fachada nova que são as empresas de segurança, “que, em parte, estão dentro dos marcos legais, porque têm alvará e licença dada pela própria Polícia Federal; mas, ao agirem, se utilizam de velhos expedientes da pistolagem”. (MZ)


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cultura

A vida em imagens Adriana Medeiros

FOTOGRAFIA Em sua primeira exposição, a fotógrafa Adriana Medeiros retrata a beleza do início da vida humana, na gravidez feminina Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) NÃO SE TRATA de uma fotógrafa qualquer. Ativista histórica do movimento de mulheres, Adriana Medeiros vive em busca do clique preciso para as questões femininas. Ora fotografando a luta pelas Casas de Parto, ora retratando a conscientização sobre a questão do aborto, busca o enquadramento mais didático das lutas da mulher. E também empresta seu talento para a representação de outras bandeiras progressistas. Fotógrafa experiente, intercala seus trabalhos artísticos com o fotojornalismo clássico, de esquerda. Desde 1° de junho, Adriana está na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) com sua primeira exposição, “InCorpos – Mutação e Criação”. Lá, o visitante vai se deparar com um belíssimo ensaio fotográfico sobre a plasticidade e a estética do nascimento no movimento de mutação dos corpos femininos. O trabalho é fruto do acompanhamento, por cinco anos, de histórias de partos reais. As 15 fotografias em exibição buscam no parto a relação sensitiva entre mãe e espectador.

“O corpo na fotografia é o mais rico, expressivo e mais fotografado assunto. Parece inesgotável” Na inauguração, foi realizada uma exibição de dança contemporânea com o bailarino Gilmar Rodrigues, acompanhado por instrumentos ancestrais. Alguns deles costumam ser utilizados em trabalhos de parto na África. O evento terminou na mesa “O valor da interação como cuidado obstétrico, materno e parental”, com a presença massiva de jovens e adultos. Com curadoria de Walter Firmo, a exposição e as atividades interligadas seguem pelo mês de junho, e têm entrada franca. Confira, a seguir, entrevista com a fotógrafa.

Exposição reúne histórias de partos reais capturadas durante cinco anos

“Acredito que todo deslocamento dentro do estabelecido status quo de um assunto já gera uma reflexão” Brasil de Fato – Conte um pouco de sua história e de como você conheceu a fotografia. Adriana Medeiros – Venho de experiências diversas com a imagem. Diversas com relação ao suporte e à linguagem. Comecei no papel em branco, com desenhos, caricaturas, ilustração, depois veio a história em quadrinhos e o desenho de animação. Até que fui trabalhar em uma escola/agência de fotografia, antiga FotoInCena, atual Ateliê da Imagem. Foi lá onde o exercício do olhar se voltou para quadros nada em branco: personagens reais, histórias de vida, espaços em movimento. Era um desafio vivo e compartilhado o ato de fotografar. Conheci Walter Firmo, mestre, amigo e atual curador da exposição. Com ele, a imagem tem licenças poéticas que revelam a essência, a síntese dos retratos e das situações brasileiras. Ousado, ágil, com muita alegria de criar e com grande plasticidade, me motivou muito na experiência e aventura de olhar. A arte sempre me acompanhou. Outros campos de interesse eram a educação e a história. Quando meu envolvimento com a fotografia me levou a buscar um ca-

minho profissional, conheci João Roberto Ripper, fotógrafo documental, criador do Imagens da Terra, Imagens Humanas e Imagens do Povo. Quando fui aceita como sua assistente, começava uma trajetória-identidade, onde poderia reunir arte, educação e história. Com Ripper, beleza e magia estão na realidade e nas pessoas e é isso que realmente alimenta seguir com sua fotografia de denúncia: a fé na transformação, primeiramente na visão de mundo. Daí em diante, tenho conhecido grandes pessoas, mestres, movimentos de luta e histórias, e fui seguindo e construindo e mudando; a fotografia é uma mensageira de mundos e sempre volta diferente do que foi. Como surgiu a ideia de fazer uma exposição com esse tema? Percebi que a ideia de nascimento trazia uma questão de contundente concretude ligada ao corpo. Ao corpo sexuado – relacionado ao sexo feminino; à forma grávida – forma única, padronizada de corpo grávido; ao corpo seccionado da capacidade reprodutora e funcional, associado ao evento expulsivo do parto. Onde estava toda a longa hisAdriana Medeiros

Para Adriana, durante o parto, o corpo feminino atinge sua maior potência de força e beleza

tória da sexualidade, da sensualidade e individualização e expressão corporal? Onde estava a participação masculina e de assistência da concepção e da informação? Onde estava a mulher e a família? E o espaço, o ambiente? Por outro lado, o corpo na fotografia é o mais rico, expressivo e mais fotografado assunto. Parece inesgotável. Por que justo o corpo feminino em sua maior potência de força e beleza sofreria de tamanho ocultamento e repressão? Como não suporto injustiça, decidi revelar com quantos corpos se faz uma mulher e um futuro. Qual a possibilidade, na sua opinião, de a fotografia engajada levar uma reflexão de quem a vê? Acredito que todo deslocamento dentro do estabelecido status quo de um assunto já gera uma reflexão. E para chegar a esse deslocamento possível, um caminho que percebo é aprofundar-se no assunto. Conhecer aquilo que fotografa e assim expressar na melhor síntese o que pensa sobre esse assunto.

“Conseguimos levar a ideia deslocada de nascimento a outras formas geradoras de conhecimento e arte” Foi difícil viabilizar a exposição do ponto de vista financeiro? Como foi isso? Não tive patrocínio. Tentei editais, agências, empresas. Está difícil desenvolver trabalhos autorais. O que fiz foi buscar apoios, fazer permutas e parcerias, a UERJ foi uma grande parceira que cedeu o espaço e deu uma bela contrapartida de infraestrutura e recursos humanos. O que faltou foi investimento antecipado meu. Mas, uma coisa positiva desse processo todo foi que, humanizando a viabilização da exposição, acabei agregando muitas ideias e talentos de outras áreas que compuseram a exposição como um corpo

mais amplo que se traduz nas atividades paralelas de mesaredonda, dança, música. Conseguimos levar a ideia deslocada de nascimento a outras formas geradoras de conhecimento e arte. E dialogando uns com os outros, olhando cara-a-cara uns aos outros. Foi realmente bonito e uma grande experiência. Com o ativismo político que pratica, você também costuma tratar da questão do nascimento e da maternidade. Esse trabalho seria, de alguma forma, a união de seus ramos de atuação? Esse ensaio está inserido em um trabalho muito maior de documentação, no qual documento os modos de nascer, e aí o nascimento e a maternidade estão em casa, em instituições, no movimento de mulheres, em campanhas, no meio rural e urbano. Esta exposição é uma estratégia de sensibilização para o tema, para que esse assunto seja democratizado e identificado com o interesse coletivo. Explico: só o fato de estarmos contribuindo para sua visibilidade, atraindo para o interesse não só na área de saúde, mas artística, acadêmica e científica em geral, já é uma militância e uma subversão. As mulheres sofrem violências de toda sorte e ninguém vê. É assunto de mulher, é assunto privado, assunto íntimo. Acontece que essas mulheres particulares são 50% da população total e cuidam e educam dos outros 50% da população. Os “assuntos de mulher” deveriam ser discutidos nas escolas e ser uma das grandes prioridades nas políticas

públicas. Comecei pelos corpos, que são nossa primeira morada, alvo de violência, padronização, discriminação, mas capazes de reagir, de deslocar, de mudar, de resistir. A estética é outro território de poder, de domínio dos padrões.

“Os ‘assuntos de mulher’ deveriam ser discutidos nas escolas e ser uma das grandes prioridades nas políticas públicas” Quais as dificuldades, hoje, do fotógrafo engajado, militante? Sem dúvida, a distribuição e veiculação de suas imagens. Também é difícil a produção de pautas engajadas e autorais. O advento da internet já aponta para uma solução de formação de redes e coletivos que se mobilizem nesse sentido. A dificuldade não inviabiliza e, quando é superada, sempre fortalece a ideia e o grupo envolvido.

Serviço “InCorpos – Mutação e Criação” Local: Galeria Gustavo Schnoor Centro Cultural (UERJ/SR-3/Decult) Teatro Noel Rosa Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã Horário: 18h30 Tel.: (21) 2334 0114 ENTRADA FRANCA Mauricio Scerni

A fotógrafa Adriana Medeiros


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américa latina

Um DNA dos jornais argentinos Reprodução

DITADURA Justiça determina a realização de testes genéticos para saber se os filhos adotados pela diretora do Clarín foram roubados por militares durante o regime Stella Calloni de Buenos Aires (Argentina) SOB UM CLIMA de tensões e preocupações, começaram no dia 7, no Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), as perícias para determinar se as duas crianças adotadas pela diretora do jornal e do Grupo Clarín, Ernestina Herrera de Noble, durante a última ditadura argentina (19761983), são filhos de desaparecidos políticos. Depois de se esquivar de todo tipo de obstáculos impostos pelos advogados de Ernestina para impedir o exame, a Justiça argentina conseguiu se impor e fazer reunir dados genéticos importantes que podem determinar, entre 29 e 45 dias, se Felipe e Marcela Noble estão entre as 500 crianças roubadas pelos militares. No BNDG, está guardada uma quantidade de mostras de DNA de familiares, recolhidas depois de um árduo trabalho das Avós da Praça de Maio, que procuram seus netos e denunciam há anos o plano sistemático utilizado pelos agentes da ditadu-

Os irmãos Marcela e Felipe, que foram adotados em 1976 por Ernestina Herrera de Noble

Tais testemunhos (...) conformam os relatos mais terríveis sobre a cumplicidade de grupos econômicos e meios de comunicação com a ditadura ra, que mantinham com vida as mulheres grávidas que sequestravam em operações de guerra suja e, depois que estas tinham seus filhos em condições atrozes, nos centros clandestinos de detenção ou hospitais das Forças Armadas, os arrancavam para entregá-los para a adoção. Obstáculos Mais de cem crianças foram encontradas, já jovens, em mãos de militares, policiais ou amigos destes. Há anos, Ernestina Herrera de Noble burla as disposições judiciais.

Seus advogados pediram a recusa da juíza Sandra Arroyo Salgado, que ficou à frente da causa depois de ter ordenado o afastamento do magistrado anterior, Conrado Bergesio, que cometeu irregularidades para impedir os testes de DNA. A Câmara Federal de San Martín estuda o assunto. A juíza não aceitou a recusa da família Noble e demonstrou que tem documentados todos os passos que deu, para impedir que se tente forçar seu afastamento do caso, como se fez até agora.

Tal medida já foi tomada em outros momentos. Vale lembrar o caso de Evelyn Vázquez – apropriada pelo militar da Marinha Policarpio Vázquez e sua esposa Ana Ferra –, que se negava a cumprir a lei que obriga a determinar a identidade nesses casos. Em fevereiro de 2008, a Justiça ordenou a polícia a entrar em sua residência para retirar material pessoal. O Banco de Dados confirmou, finalmente, que a jovem era filha de Susana Pegoraro e Rubén Bauer, desaparecidos durante a ditadura. A vice-presidente da Avós da Praça de Maio, Rosa Roisinblit, lembrou que, “durante 20 anos, Evelyn disse que não queria prejudicar seu pai. Agora que se sabe quem são seus pais, vai se dar conta de que não o prejudicará, porque ele mesmo reconheceu o delito de apropriação”.

Abraço simbólico Outros jovens filhos de desaparecidos que recuperaram sua identidade nos últimos dois anos denunciaram as ações dos advogados dos Noble, que tentam pôr em dúvida o BNDG. Eles destacaram que, se alguém pode burlar a lei porque é poderoso economicamente, então tudo que se conseguiu até agora para se fazer justiça se perderá. Centrais sindicais como a Central de Trabalhadores Argentinos (CTA) e outras organizações sociais deram, no mesmo dia 7, um abraço simbólico no Hospital Durand, onde fica o BNDG, para defender a lei em um tema tão sensível como o das crianças apropriadas e repartidas como botim de guerra. No ato de abertura dos envelopes que guardavam as prendas dos filhos de Ernes-

tina Herrera de Noble, estiveram presentes a juíza Sandra Arroyo, peritos, advogados das partes e o jornalista e advogado Pablo Llonto, denunciante nessa causa. Escândalo Enquanto isso, continua crescendo o escândalo pela forma com que os grupos de comunicação Clarín, La Nación e La Razón passaram a controlar a companhia Papel Prensa, produtora de papel de jornal, durante a ditadura. Ao testemunho da viúva de David Graiver – dono original da empresa, morto em um estranho acidente de avião –, que relatou as terríveis torturas que ele sofreu durante o regime militar para que entregasse suas ações, se uniu a voz de Rafael Ianover, que foi vice-presidente da companhia entre 1973 e 1977. Ele afirmou que, em agosto de 1976, ao regressar à sua casa, encontrou sua família sendo ameaçada por um grupo armado que havia revirado todo o local. A partir de então, começou um processo extorsivo e se chegou ao extremo de fazerem-no assinar um documento de venda sem se estabelecer preço ou condições. “Assina que não vai te acontecer nada”, lhe disseram. Pouco tempo depois, Rafael foi preso. Tais testemunhos, assim como o do ex-diretor do diário La Opinión, Jacobo Timermman, que esteve sob torturas em um centro clandestino de detenção em La Plata, província de Buenos Aires, conformam os relatos mais terríveis sobre a cumplicidade de grupos econômicos e meios de comunicação com a ditadura. (La Jornada) Tradução: Igor Ojeda


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internacional

Violência de Israel faz parte do dia-a-dia do povo palestino PALESTINA Todas as sextasfeiras, cidades palestinas da Cisjordânia realizam manifestações em frente ao muro construído por Israel Dafne Melo enviada a Ni’lin (Palestina) PARA OS muçulmanos, a sexta-feira é um dia sagrado, assim como o domingo para os cristãos e o sábado para os judeus. Ao meio-dia, pelos alto-falantes colocados na torre de cada mesquita, começa a ecoar uma oração. É o chamado para que a comunidade vá até a mesquita, não só para rezar, mas também para onde será feito o khutbah, uma espécie de sermão onde são discutidas inclusive questões sociais e políticas ligadas à comunidade. Desde o início da construção do muro pelo Estado de Israel (ver box), o ritual religioso é seguido por uma manifestação política em diversas cidades da Cisjordânia por onde passa o muro. Esse é o caso de Ni’lin, próxima à cidade de Ramallah, bem como de diversas outras na Cisjordânia. Hoje há manifestações, tradicionalmente, em todas as cidades por onde passa o muro e também em cidades onde há ocupação sionista, como Hebron. No dia 4 de junho, além das bandeiras palestinas, bandeiras turcas decoraram a marcha, em apoio ao governo da Turquia e aos ocupantes da flotilha atacada por Israel no dia 31 de maio, quando nove ativistas foram assassinados e dezenas de pessoas ficaram feridas, em mais uma ação militar do Estado de Israel.

“A passeata é pacífica, mas para eles não existe ‘pacífico’. É sempre assim, quando chegamos perto do muro já começam a atirar gás” Ritual

Pouco tempo depois do chamado, dezenas de pessoas começam a se concentrar, não na mesquita, mas em um terreno a mais ou menos 1,5 quilômetro do muro. Ainda na cidade, no caminho até o terreno, Fuad Khauadja, da União de Comitês Agrícolas, que acompanha a reportagem do Brasil de Fato, para em uma venda onde um jovem com cerca de 16 anos se levanta da cadeira para cumprimentá-lo com dificuldade. Com a muleta nas mãos, tro-

cam algumas palavras. “Ele levou um tiro em uma das manifestações de sexta-feira, na região do abdômen e na perna, e por isso tem dificuldade para andar”, conta. Já no terreno, grupos de pessoas vão se sentando abaixo das oliveiras, para se proteger do sol, aguardando o chamado para rezar. Depois, se dispõem em três fileiras grandes em frente ao líder religioso e por pouco mais de dez minutos oram e, em seguida, caminham em marcha até um terreno inclinado, cheio de pedras, oliveiras e restos de bombas de gás lacrimogêneo usadas em outras sextas-feiras. Adultos com crianças seguem até certa parte da caminhada. Na medida em que o grupo se aproxima do muro, soldados israelenses começam a atirar as bombas de gás lacrimogêneo com morteiros por detrás do muro. Uma parte do grupo se retira e alguns, na maioria os mais jovens, com fundas nas mãos, começam a atirar pedras para o outro lado do muro. Hoje, o vento forte está a favor dos palestinos. O gás se dispersa rápido e é levado em direção aos soldados. Força desigual

Um dos símbolos do judaísmo é a estrela de David, personagem bíblico que derrotou Golias com uma funda e uma pedra. Agora, quem empunha a pedra contra o gigante são os palestinos. “A passeata é pacífica, mas para eles não existe ‘pacífico’. É sempre assim, quando chegamos perto do muro já começam a atirar gás. A maioria recua, alguns jovens ficam para atirar pedras”, explica Taicir Karaja, brasileiro filho de palestinos que vive há dez anos na cidade vizinha de Saffa. Algumas vezes, os soldados saem de trás do muro, fortemente armados, e disparam contra os manifestantes. Fuad Khauadja conta que, desde o início da construção do muro, 80 pessoas de Ni’lin foram presas e cinco pessoas foram assassinadas. Um deles, um menino de 10 anos, Ahmed, que brincava com outras crianças após a manifestação. Segundo testemunhas, um soldado israelense foi até o lugar e disparou contra o menino com uma metralhadora à queima-roupa, na cabeça. Nada foi feito, nenhuma punição foi realizada. “Israel é um Estado que não obedece a nenhuma lei, faz o que quer, nunca é punido, não importa o que faça”, diz, com revolta, Taicir. Khauadja afirma que as manifestações já deixaram um saldo de 150 feridos, sendo que 25 deles têm sequelas, tal como o jovem que encontramos no caminho da manifestação. “Eles procuram atirar em regiões do corpo onde há ossos, para deixar sequelas”, denuncia Khauadja. O Crescente Vermelho Palestino, ligado à Cruz Vermelha, mantém ambulância e profissionais equipados com macas e máscaras para proteger do gás ao lado da manifestação. Hoje, felizmente, nenhum ferido.

Marcelo Buzetto

Palestinos em marcha: “Israel é um Estado que não respeita nenhuma lei”

Ni’lin, exemplo da ocupação ilegal de Israel Cidade da Cisjordânia teve quase 90% de seu território tomado pelo Estado de Israel desde 1948 da enviada a Ni’lin (Palestina) Ouvir a história de uma família palestina é necessariamente ouvir histórias de como o Estado de Israel roubou casas e terras dos palestinos. No país, não há uma pessoa sequer que não tenha um caso de desalojamento forçado dentro da família para contar, muitas vezes mais de um caso, muitas vezes sendo o próprio interlocutor uma das vítimas da ocupação sionista. Ni’lin é apenas um dos inúmeros casos. A cidade fica no interior da região comumente chamada de Cisjordânia, próxima Ramallah, onde está a sede da Autoridade Nacional Palestina (ANP). “Nós palestinos não usamos a palavra “Cisjordânia”, que é a que eles usam para nos designar, mas sim Daffa”, conta Taicir Karaja, brasileiro de pais palestinos, nascido em Venâncio Aires, Rio Grande do Sul. De acordo com o acordo de Oslo, firmado em 1993 entre o governo de Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), então presidida por Yasser Arafat, toda a região da Cisjordânia ficaria sob comando da ANP, sendo Israel obrigado a retirar todas as suas tropas da região (bem como da Faixa da Gaza). O muro construído por Israel, porém, não respeita a fronteira, além do Estado sionista continuar construindo colônias em toda região. Uma delas, Matityahu, tem até mesmo uma página na internet (www.matityahu.org). O mapa não leva em consideração a parte árabe da região, nem nomeia as cidades palestinas. Apartheid Ahmad Jaradar, do Centro de Informação Alternativo (AIC, sigla em inglês), afirma que hoje existem cerca de 500 mil colonos em 145 colônias na Cisjordânia. “Daffa está totalmente recortada por colônias israelenses, de norte a sul, de leste a oeste, cortando a comunicação entre as cidades palestinas”, conta. Em Ni’lin, além do muro, uma estrada construída para

atender a colônia corta a cidade. Aos palestinos não é permitido o acesso a essas estradas, geralmente cercadas com arame farpado e que contam com os chamados “check points”, barreiras militares construídas por Israel para barrar a circulação dos palestinos. O controle nas estradas também é feito pelas placas. As amarelas, de Israel, podem circular por todo território; já as brancas, da ANP, têm acesso restrito. Fuad Khauadja, da União de Comitês Agrícolas, conta que as estradas e o lugar onde foram construídas as colônias impedem o acesso dos agricultores a suas próprias terras, impossibilitando a atividade agrícola, mais precisamente na região, o cultivo de oliveiras. Taicir, que vive na cidade vizinha de Saffo, conta que o muro fez com que ele perdesse 70% de sua plantação. O muro, porém, é apenas um capítulo mais recente da história da ocupação ilegal da cidade palestina. Para se ter uma ideia, antes da primeira ocupação israelense, em 1948, a cidade tinha cerca de 57 mil metros quadrados. Hoje, restaram aos árabes apenas 7 mil metros quadrados. O resto foi todo tomado pelo Estado israelense. Expulsão e controle Outro dado que mostra o processo de expulsão dos palestinos da área é o do cres-

cimento populacional. Em 1948, havia 2.500 habitantes. Mais de 60 anos depois, a cidade possui apenas 5 mil, um crescimento pequeno para a quantidade de tempo transcorrido. Cálculos apontam, afirma Khauadja, que se Ni’lin tivesse seguido um crescimento natural, essa população deveria estar em torno de 30 mil. “O que Israel quer é pressionar o povo palestino para que a gente saia daqui. O único motivo do muro é esmagar o povo palestino, não tem nada a ver com segurança”, afirma. Hoje, quase 90% do muro está pronto. “Como constroem colônias ilegais no meio de cidades palestinas, o governo israelense ainda tem projetos de construir pontes e estradas monitoradas pelo Exército para facilitar a locomoção dos colonos sem que

tenham que passar pelas cidades e povoados palestinos, o que na prática significa mais ocupação, mais roubo de terras”, aponta Khauadja. Hoje, as colônias não são habitadas exclusivamente por judeus. Israel dá incentivos aos judeus de todo mundo para que venham morar em Israel, oferecendo casa e emprego. Nos últimos anos, porém, devido à diminuição da migração judaica, o Estado sionista tem dado incentivo à imigração de russos, habitantes do leste europeu e latino-americanos. A ideia é não prescindir da mão-deobra palestina. Ahmad Jaradar, do Centro de Informação Alternativa, explica que nem todos os colonos têm motivação ideológica e religiosa para imigrar. “Grande parte vem apenas por razões econômicas”, afirma. (DM)

O muro do apartheid israelense A construção do muro iniciou-se em 2002, ainda sob o governo de Ariel Sharon. O objetivo foi separar a Cisjordânia do restante do território. A construção, entretanto, não respeita as fronteiras da Cisjordânia, conhecida como Linha Verde, definida no armistício de 1967. A obra também descumpre o Acordo de Oslo, de 1993. Apenas cerca de 20% do muro coincide com a Linha Verde; os 80% restantes situam-se em território de Daffa – ou Cisjordânia. A obra é vista como um símbolo do apartheid a que Israel submete os palestinos, além de mostrar o total descumprimento e descaso do Estado sionista em relação às resoluções internacionais. Embora diversas organizações internacionais tenham condenado o muro, Israel não sofreu nenhuma punição. (DM)

Ataque abre possibilidade de impor derrota a Israel da enviada a Ni’lin (Palestina) Uma das maiores dificuldades da luta do povo palestino é a de impor derrotas ao Estado de Israel, sempre amparado pelos Estados Unidos. Para muitos palestinos, o inimigo sionista é talvez o único que conta com a complacência e silêncio internacional diante de qualquer ação, nunca tendo sido seriamente punido pelas violações dos direitos humanos, de resoluções das Nações Unidas e de qualquer outra regra que não tenha saído do próprio Estado de Israel. A única resolução da ONU a que Israel obedece é a que o criou, em 1947. Entre os militantes palestinos, o comentário – e a esperança – em relação ao ata-

que à flotilha é de que Israel tenha dado um “tiro no pé”. A julgar pelas declarações de países europeus e dos Estados Unidos – geralmente coniventes com as ilegalidades cometidas por Israel, dessa vez o país sionista parece estar isolado. O Egito, que mantinha o bloqueio à Faixa de Gaza – governada pelo Hamas – junto com Israel, abriu sua fronteira dois dias após o ataque e afirmou que deverá manter a abertura indefinidamente, enfraquecendo o cerco à região que é a mais populosa e pobre da Palestina. A União Europeia promete entregar, nos próximos dias, um pedido formal ao governo israelense para que o bloqueio a Gaza seja levantado. O ministro das relações exteriores das Espa-

nha, Miguel Angel Moratinos, confirmou à imprensa a iniciativa. Até mesmo os Estados Unidos, tradicional aliado do país sionista, qualificou o bloqueio de “insustentável”. “Acredito que dessa vez será imposta uma importante derrota a Israel”, opina Ahmad Jaradar, do Centro de Informação Alternativa, para quem o bloqueio a Gaza deverá ser levantado, ainda que parcialmente. “Acredito que como está hoje, não ficará”, aposta. Jaradar acrescenta que o fato de o cerco a Gaza ter falhado representa mais uma derrota do imperialismo na região do Oriente Médio. “Não podemos esquecer que os Estados Unidos não conseguiram controlar a situação no Iraque”, finaliza. (DM)


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internacional

Israel alimenta antiamericanismo entre os aliados estadunidenses Reprodução

ANÁLISE O episódio da Frota da Liberdade dissipou o benefício da dúvida que os países árabes concederam às promessas do presidente Barack Obama de mudanças na política externa dos EUA na região Nicola Nasser O ATAQUE DA força de elite da Marinha israelense ao barco de bandeira turca Mavi Marmara, que deixou oito turcos e um turco de cidadania estadunidense mortos e muitos outros feridos, encurralou os EUA em uma posição diplomática defensiva destinada a conter os danos regionais e internacionais causados pelo fiasco militar da “Operação Vento do Céu”, que seu aliado regional lançou contra a frota humanitária. “[O ataque] põe os EUA em uma posição extremamente difícil”, escreveu Marina Ottaway em um artigo publicado pelo Carnegie Endowment for International Peace, em 31 de maio. A contenção da reação irada dos árabes e das repercussões adversas nas relações árabesestadunidenses provavelmente esteve na agenda do encontro entre o vice-presidente dos EUA Joe Biden e o presidente egípcio Hosni Mubarak, no dia 7. No entanto, Biden é o menos qualificado para amainar a ira árabe, pois é o mais retórico entre as autoridades estadunidenses na “legitimação” do erro crasso de Israel. O episódio da Frota da Liberdade dissipou o benefício da dúvida que os aliados árabes concederam às promessas do presidente Barack Obama de mudanças na política externa dos EUA em sua região. Para recuperar essa confiança, é preciso mais do que visitas de autoridades estadunidenses, pois, no fim das contas, política não tem a ver com “boas intenções”, e sim com “boas ações”, de acordo com o analista político egípcio Fahmy Howeidy.

O episódio “levantará questões – não pela primeira vez – sobre se o primeiroministro israelense Benjamin Netanyahu pode ser um parceiro confiável para os EUA” De trunfo a fardo O comandante do Mossad [serviço secreto israelense], Meir Dagan, foi mais direto ao ponto quando disse, recentemente, que “para os EUA, Israel está gradualmente se transformando de um trunfo em um fardo”. No começo do ano, o comandante do Comando Central dos EUA (Centcom), general David Petraeus, disse ao Comitê de Serviços Armados do Senado estadunidense que “a raiva árabe em relação à questão palestina limita a força e a profundidade das parcerias

Reunião de emergência dos ministros de relações exteriores realizada dia 2, no Egito

estadunidenses com governos e povos na área de operações do Centcom, e enfraquece a legitimidade de regimes moderados no mundo árabe”. Israel parece determinado a complicar a missão de Petraeus. O episódio “levantará questões – não pela primeira vez – sobre se o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu pode ser um parceiro confiável para os EUA”, escreveu Michele Dunne. Ironicamente, o fiasco da ação israelense criou um conflito do tipo “bola de neve” não entre Israel e seu auto-proclamado arquiinimigo Irã, mas com a Turquia, tradicionalmente seu único amigo regional. Uma potência-chave regional, um membro da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan), um aliado dos EUA e um possível membro da União Europeia: o país que tanto Israel quanto os EUA procurarão para formar uma frente unificada anti-Irã e que é parceiro de ambos no processo de paz entre árabes e israelenses. Neutralização Israel não está tornando fácil a vida dos EUA na região. Alon Ben Meir, professor de relações internacionais da Universidade de Nova York, concluiu em um artigo: “O governo Netanyahu parece avaliar mal as mudanças dos interesses estratégicos estadunidenses no Oriente Médio, especialmente no despertar nas guerras no Afeganistão e Iraque”. No entanto, as autoridades de Washington, até agora, atuam e discursam no sentido de conter os danos que o episódio da Frota da Liberdade gerou nas relações bilaterais com Israel. Do contrário, faria uma situação ruim ficar ainda pior: é só lembrar que o acontecimento fez Netanyahu cancelar um encontro de cúpula com Obama – depois, ele foi forçado a encurtar sua visita ao Canadá – marcado especificamente para aparar as arestas entre os dois países. Mas a moção apresentada no dia 7 ao Parlamento israelense pela líder da oposição, Tzipi Livni, para um voto de não-confiança ao governo pois este, como ela disse, “não representa o Estado de Israel diante do mundo” e prejudica “as relações com os EUA”, tornou público o que a gestão Obama vem tentando manter longe dos holofotes. Tentando neutralizar as repercussões da ação de Israel, os EUA persuadiram o país judeu a libertar centenas de pacifistas turcos que estavam a bordo do Mavi Marmara, contou ao The Jerusalem Post, no dia 3, Selim Yenel, sub-secretário do Ministério das Relações Exteriores da Turquia. Alimentar o antiamericanismo entre árabes e muçulmanos certamente não

é do interesse dos EUA, mas é exatamente a que se resumem as políticas atuais de Israel. O distanciamento das relações entre Israel e EUA foi o primeiro efeito do ataque israelense.

O campo do Oriente Médio liderado pelos EUA parece, agora, fraturado e dividido. O campo oposto, comandado por Irã e Síria, parece mais confiante e unido Aliados divididos O plano estratégico dos EUA para a região foi seu segundo interesse ameaçado pelo incidente. Tanto os árabes quanto os turcos aliados dos EUA se veem agora no lado oposto do conflito árabe-israelense, que estava à beira de um histórico avanço sob a base da chamada “solução dos dois estados” apoiada pelos estadunidenses, que se aproveitam do suporte das principais potências mundiais graças unicamente ao fato de todas elas estarem do mesmo lado. O campo do Oriente Médio liderado pelos EUA parece, agora, fraturado e dividido. O campo oposto, comandado por Irã e Síria, parece mais confiante e unido. A posição estadunidense está mais fraca, enquanto a outra está mais forte. Washington parece perder a iniciativa na região para seus adversários graças ao fato de Israel ter começado um conflito com os aliados moderados dos EUA na região. Para Israel e seus procuradores estadunidenses, isso deveria fazer acender um sinal vermelho. Nesse contexto, o enviado dos EUA para as negociações de paz na região, George Mitchell, que já estava na região tentando, ainda sem sucesso, superar a reação adversa desses mesmos aliados a outros erros israelenses, deve ter lamentado seu azar e se arrependido de sua missão. O secretário-geral da Liga Árabe, Amr Mousa, disse que “tudo” está, agora, “suspenso”, incluindo, principalmente, as “conversações de aproximação” entre palestinos e israelenses, o foco da missão de Mitchell. Reações No contexto mais geral, a reunião de emergência dos ministros de relações exteriores árabes no Cairo (Egito), no dia 2, explicitou a oposição ao comportamento dos EUA em

relação ao ataque de Israel, mas, especialmente, às justificativas dos EUA e de Israel para a continuação do bloqueio a Gaza. Para deixar clara sua exigência de levantamento do cerco, Mousa visitaria Gaza nos próximos dias. Sem citar os EUA, eles enfatizaram que o apoio contínuo a Israel “por parte de alguns estados” e o fato de dar “imunidade” a seus desrespeitos às leis internacionais, “em um precedente que ameaça todo o sistema internacional, é um grande erro político”. Eles reiteraram que a Iniciativa Árabe de Paz [aprovada pela Liga Árabe em 2002, propõe o reconhecimento dos países árabes ao Estado de Israel em troca da retirada dos territórios ocupados em 1967] “não permanecerá sobre a mesa por muito tempo”. Agora, 60% dos árabes acreditam que Obama está muito debilitado para proporcionar um acordo de paz, de acordo com uma pesquisa divulgada no dia 4 pelo instituto de pesquisa YouGov. O núcleo duro árabe do grupo de moderados ligados aos EUA é formado pelas seis nações do Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico (GCC, em sua sigla em inglês). Em um comunicado, eles condenaram o ataque como um ato de “terrorismo de Estado”. O Kuwait, um dos membros do GCC, é um exemplo instrutivo de como Israel está alimentando o antiamericanismo na região. Esse país, que abriga cerca de 20 mil soldados estadunidenses em aproximadamente um terço do seu território, em apoio à “Operação Liberdade aos Iraquianos”, tinha 16 de seus cidadãos a bordo do Mavi Marmara. Como resposta, em uma votação por consenso no parlamento kuwaitiano – do qual os ministros são membros – recomendou a retirada do país da Iniciativa Árabe de Paz. Com o Irã do outro lado do golfo e a explosiva situação nas fronteiras setentrionais com o Iraque, o eco do alerta do general Petraeus reverbera mais alto ali. Lados opostos Em terceiro lugar, o ataque de Israel pôs os turcos e os aliados dos EUA na Otan em lados opostos na divisão internacional que se seguiu. Ancara se viu em uma ferrenha disputa diplomática não com Israel, mas com os EUA, no Conselho de Segurança da ONU, no Conselho de Direitos Humanos da ONU e na reunião de emergência da Otan, onde Washington atuou como porta-voz e advogado de Israel. A Turquia está, pela primeira vez, experimentando o jogo duplo dos EUA e sua política enviesada pró-Israel, dos quais os árabes têm sido vítimas por décadas. É

interessante notar que tanto Turquia quanto a Grécia, dois aliados dos EUA e da Otan, deixaram de lado a histórica hostilidade entre ambos para publicamente discordarem dos EUA ao defenderem o rompimento do bloqueio israelense à Gaza. “A resposta estadunidense para o uso desproporcional da violência, por parte de Israel, contra civis inocentes, constitui um teste para a credibilidade dos EUA no Oriente Médio”, escreveu Suat Kiniklioglu, o líder da bancada dos deputados do partido turco no governo. No mesmo artigo para o Carnegie Endowment, Marina Ottaway afirmou esperar repercussões potencialmente adversas no Oriente Médio. “Além da previsível reação árabe, houve uma resposta mais dura que o normal dos países europeus. Isso pode reabrir as tensões entre EUA e Europa que floresceram durante a guerra do Iraque e que tinham começado a se dissipar vagarosamente sob a gestão Obama”. Como pode um observador sensível interpretar esse fracasso da política externa estadunidense – particularmente nas relações dos Estados Unidos com árabes e turcos – apenas como resultado de má sorte ou de um erro tático não-intencional de Israel? A única outra interpretação para justificar o recurso de Israel à força é dizer que este não podia mais tolerar uma frente de paz na região unindo os países árabes, Turquia e EUA e apoiada pela comunidade internacional.

A tradicional diplomacia estadunidense pró-Israel sempre esteve nas mãos de extremistas israelenses, mas, dessa vez, está contra os próprios interesses estratégicos declarados dos EUA Mensagem clara Ao abortar uma missão de paz internacional patrocinada por árabes moderados e estados regionais, Israel envia uma clara mensagem de que os quer fora do jogo e prefere negociar apenas com os atores pró-violência, o que corrobora uma popular crença árabe, estabelecida após anos de conflito, de que Israel compreende apenas a linguagem da força.

Israel sabe muito bem que sua beligerância tem sido a principal fonte de antiamericanismo na região. Os EUA também sabem. As repercussões do ataque israelense parecem atingir aquilo que o presidente Obama classificou, em meados de abril, como um “interesse vital de segurança nacional dos EUA”, ou seja, resolver o conflito árabe-israelense. Promovendo uma escalada militar e respondendo de forma desproporcional, o governo de extrema-direita de Israel está agindo, premeditadamente, com olhos abertos para se antecipar à evolução de uma frente regional e internacional consensual para uma solução de dois estados para o conflito. E a melhor forma de dividir esse já crescente consenso é inflamar o antiamericanismo regional como uma tática já comprovada para desintegrar qualquer pressão que a frente árabe, turca e estadunidense possa fazer para que Israel adira aos ditames da paz.

A Turquia está, pela primeira vez, experimentando o jogo duplo dos EUA e sua política enviesada próIsrael, dos quais os árabes têm sido vítimas por décadas Jogando contra A tradicional diplomacia estadunidense pró-Israel sempre esteve nas mãos de extremistas israelenses, mas, dessa vez, está contra os próprios interesses estratégicos declarados dos EUA. No entanto, Washington atua como se buscasse uma política suicida; sua política externa enviesada e seu jogo duplo contrariam seus aliados regionais, além de, principalmente, contribuírem para a alimentação israelense do anti-americanismo regional. O Irã não teve nenhum papel na missão de paz da frota humanitária. Os holofotes estavam voltados, principalmente, para turcos, árabes e pacifistas europeus, que vinham da Europa, EUA, Austrália e Turquia. A maioria dos árabes era do Kuwait, Argélia, Jordânia, Líbano e Iêmen, todos aliados estadunidenses. Até a Síria, que é acusada de ser uma aliada do Irã, manteve uma relativa descrição no episódio e tampouco teve papel na missão, embora tenha liderado a oposição ao posterior comportamento dos EUA durante a reunião de emergência de ministros árabes. Israel não poderia de nenhum modo argumentar que a missão tinha qualquer conexão com o Irã para justificar sua ação em alto-mar. Tampouco os organizadores permitiriam algo assim. A estadunidense Greta Berlin, cofundadora do Movimento Gaza Livre, foi citada pela agência AP, em 4 de junho, dizendo que o grupo rechaçou as ofertas de doações do Irã e afirmando que o grupo não aceita doações de organizações ou estados radicais. Igualmente, o governo de facto do Hamas em Gaza rechaçou uma sugestão do comandante das Guardas Revolucionárias do Irã de fornecer “proteção” para frotas similares no futuro. (The Palestine Chronicle) Nicola Nasser é uma jornalista árabe radicada em Bir Zeit, na Cisjordânia. Tradução: Igor Ojeda e Luís Brasilino


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américa latina

“Transição à democracia mal começou” PARAGUAI Em entrevista, ministro da Comunicação de Fernando Lugo analisa as dificuldades para a implementação das mudanças no país APC

Washington Uranga de Assunção (Paraguai) AUGUSTO DOS Santos, de 49 anos, é jornalista e sempre se imaginou exercendo essa tarefa, e não como participante da gestão do governo de Fernando Lugo, onde desempenha, atualmente, o cargo de secretário de Informação e Comunicação para o Desenvolvimento, uma pasta com status ministerial criada pelo presidente. Católico como Lugo, conhece o atual mandatário por ter compartilhado com ele espaços eclesiásticos a partir da mesma trincheira. Santos é um profissional apaixonado pelo rádio e dirigiu várias emissoras, entre elas a poderosa Rádio Cáritas, de Assunção. Fala o guarani com a mesma fluência que o castelhano. Homem de amplas vinculações na América Latina, trabalhou, também, como capacitador para a Associação Latino-americana de Educação Radiofônica (ALER). Pode ser definido claramente como um militante da comunicação, em seu país e no continente. Na entrevista a seguir, ele analisa as dificuldades para se implementar as mudanças no Paraguai: a herança ainda vigente da ditadura, o obstrucionismo dos partidos tradicionais, o clientelismo etc. Como caracteriza a situação política do Paraguai dois anos após a chegada ao poder do presidente Fernando Lugo?

Augusto dos Santos – O resultado eleitoral de 20 de abril de 2008 não produziu necessariamente uma mudança na cultura da cidadania e dos atores políticos. De fato, havia muitas esperanças que hoje puderam ser desfeitas. Eram esperanças de que o Paraguai mudaria a partir de 21 de abril de 2008. Isso não foi possível porque fomos castigados pelo mesmo tipo de ditadura que outros países viveram, mas, além disso, pela intolerância e o clientelismo político que se projetaram durante 20 anos após a queda da ditadura. A política funcionava exclusivamente através da clientela e produziu o que se pode chamar de 20 anos perdidos da transição democrática. Tecnicamente, a transição está começando agora, 20 anos depois do fim da ditadura. E, nessas condições, é muito difícil conjugar as expectativas com as possibilidades de mudança.

“A política funcionava exclusivamente através da clientela e produziu o que se pode chamar de 20 anos perdidos da transição democrática. Tecnicamente, a transição está começando agora, 20 anos depois do fim da ditadura” É o único motivo?

Não. Também há a enorme resistência dos setores que detinham o poder. Não somente o poder político – que é o poder menor no Paraguai –, mas o poder de fato: as máfias que controlam todo o sistema de contrabando, que manejam essa prodigiosa indústria da falsificação; a máfia dos cigarros,

O presidente paraguaio Fernando Lugo ao lado do secretário Augusto dos Santos

“Somos um governo conformado por um projeto político absolutamente heterogêneo, partidos que se encontraram no caminho e que disseram ‘façamos a mudança política’” que levam fumaça a todos os países vizinhos, e a máfia das drogas. Esses são os vários cartéis que durante muito tempo sustentaram uma forma de construção política e que, agora, veem seus negócios seriamente em perigo por um processo que pretende tornar a gestão mais decente. E, a terceira coisa, que é inevitável mencionar, são os nossos próprios erros. Somos um governo conformado por um projeto político absolutamente heterogêneo, partidos que se encontraram no caminho e que disseram “façamos a mudança política”. Mas, além disso, as pessoas que se encontram neste momento na gestão provêm, em sua grande maioria, de Organizações Não Governamentais e outros empreendimentos desse tipo, e ainda demoram para entrar em sintonia, não com a gestão, mas com essa enciclopédia de vícios burocráticos semeados pelo processo anterior. Vendo de fora, dá a sensação de que o governo de Fernando Lugo está “cercado”.

É. A única mudança que se pode produzir no funcionalismo público é nas ilhas dos cargos de confiança. Temos uma legislação que impede outro tipo de mudanças. Em grande medida, o funcionalismo público responde politicamente ao partido que já não está no governo, porque os funcionários públicos se alinham com esses políticos. E a relação com o Parlamento?

É outro elemento que produz essa sensação de captura do Poder Executivo. Um Parlamento adverso, eminentemente obstrucionista, com algumas situações aleivosas, como o caso da obstrução para a nomeação de embaixadores. Eu não descarto erros nossos, mas o mais difí-

cil neste momento é construir o consenso com o Parlamento. Há uma posição obstrucionista e, em alguns atores, existe claramente um interesse destituinte. Também não se conseguiu uma mesa de diálogo capaz de construir uma agenda de prioridades. E na cidadania?

O panorama é totalmente diferente e absolutamente esperançoso. As organizações sociais querem coordenar ações e seguem firmes as esperanças de que suas expectativas sejam cobertas pelo governo que, por sua vez, quer manter uma interlocução direta com a cidadania.

Em meio a essa situação, quais são as conquistas que se podem ver nesses dois anos?

Construímos uma estrutura institucional, uma estação de decolagem. Unimos em um único corpo um arquipélago de instituições que funcionavam em diferentes âmbitos, apontavam em todas as direções e não tinham nenhum tipo de coordenação. Na área social, com um ministério social que funciona. Na área da comunicação, também. A luta contra a corrupção não pode ser apenas policialesca. Para eliminar a corrupção, é preciso construir uma institucionalidade consistente. Nesse caso, se está trabalhando com bastante êxito. Por outro lado, a rede social está sendo construída. Em dois anos, esse governo já percorreu três vezes todo o país, passou em todas as capitais departamentais e tomou contato com as autoridades e com as redes sociais. Já está instalada uma rede capilar do processo. Falta um passo muito mais decisivo: que isso comece a funcionar. E não está funcionando simplesmente porque o Parlamento se encarregou de nos afogar em termos de recursos.

O que se conseguiu em termos de gestão?

Avançou-se em obras e tarefas emblemáticas, como o caso da reivindicação sobre Itaipu. A hidrelétrica tem 35 anos e nenhum governo quis discutir com o Brasil a reivindicação paraguaia de um trato justo em relação à imensa riqueza que esse empreendimento binacional produz. De forma inédita, no dia 20 de julho do ano passado se instalou uma mesa de discussão e os presidentes dos dois países já estão dando testemunho dos avanços a esse respeito. Essa foi uma bandeira muito forte do governo. Outro tema no qual ainda não se pôde dar passos mais transcendentais, mas para o qual já há um plano, é a reforma agrária. Este país tem uma distribuição injustíssima da terra. Parece uma discussão do século 19, mas continua atual. Definiu-se, também, uma estrutura que tem que funcionar. Em termos sociais, os planos de ajuda condicionada, que durante os governos anteriores chegavam apenas a 13 mil famílias, se estenderam paulatinamente a 100 mil famílias e, para o fim do ano, estaremos chegando a 200 mil famílias. Pela primeira vez na história do Paraguai, declarou-se a gratuidade da saúde, em dezembro de 2008. Isso demonstra como os recursos eram definitivamente dilapidados em vez de serem aplicados em questões tão simples como garantir a saúde universal. E as questões pendentes?

São muitas. Fundamentalmente, construir uma resposta apesar das obstruções. Esse governo precisa de um Plano A, baseado no consenso político, e de um plano B que, sem gerar turbulência alguma na institucionalidade das instituições do Estado, saiba enfrentar a pobreza no marco das piores obstruções que possam existir. Esse é o desafio mais importante. O processo de construção está em marcha e eu creio que estamos em condições de assumir algumas dessas alternativas. Reitero: não estamos falando de confrontos institucionais, mas, simplesmente, de como faríamos para construir um projeto que dê maiores possibilidades aos setores mar-

ginalizados sem contar com um devido acompanhamento orçamentário por parte do Parlamento. Estamos recorrendo inclusive à cooperação internacional. E o Paraguai não é um país difícil de mudar; é um país pequeno, de seis milhões de habitantes. É lamentável que não exista um consenso político, é miserável qualquer processo de obstrução, é simplesmente roubar um prato de comida. Mas é preciso conviver com essas questões.

“Já está instalada uma rede capilar do processo. Falta um passo muito mais decisivo: que isso comece a funcionar” Lendo os jornais e escutando as rádios, as críticas ao governo aparecem em toda parte. Paradoxalmente, no meio desse cenário, acusou-se o governo de restringir e limitar a liberdade de expressão.

Não há nenhuma medida, sequer um único gesto do governo nessa direção. É uma caricatura lamentável, que somos obrigados a aguentar porque acreditamos que ainda necessitamos atravessar um tempo importante de consolidação institucional para poder discutir certas coisas como, por exemplo, o tema da regulação dos meios de comunicação. Enquanto isso, creio que a opção mais importante é a consolidação dos meios de comunicação estatais. Os meios de comunicação públicos no Paraguai podem ser muito mais incidentes que em qualquer outro país do mundo. É um país pequeno, com seis milhões de habitantes, com muita homogeneidade cultural. Estamos falando de meios de comunicação públicos e não de meios de comunicação do governo.

De que meios de comunicação públicos o país dispõe?

Praticamente de nenhum. Os processos anteriores desmantelaram e destruíram os meios de comunicação públicos. Ficamos com duas emissoras de rádio. A Rádio Nacional do Paraguai, com equipamentos totalmente obsoletos e 43 discos, mesmo após ter sido a maior discoteca do Paraguai, e a Rádio de Pilar, da qual, em um ano, trocamos o transmissor depois de 50 anos. Estamos por fazer a mesma coisa com a Rádio Nacional. Já não pensamos no passado, acreditamos que o desafio, agora, é construir meios de comunicação públicos que sejam fortalecidos no compromisso do processo de mudança. Este é um país que tem 17 províncias ou departamentos. Estamos no processo de instalar dez rádios públicas entre este e o próximo ano. E o grande sonho é inaugurar, até 14 de maio de 2011, o primeiro canal público de televisão do Paraguai. Tudo está bem encaminhado. Não podemos falhar porque não temos dinheiro para jogar fora. Estamos condenados a não falhar, a que todos os nossos empreendimentos sejam certeiros. O projeto da televisão pública inclui um canal, um sistema satelital e 17 repetidoras em todo o país com pequenos canais locais. Mas, em meio a tudo isso, estamos na exótica iniciativa de transformar os nossos meios de comunicação de governo em meios públicos. As pessoas começam a ouvir falar sobre meios de comunicação públicos e, muitas vezes, nos sentimos discutindo com ninguém essas ideias. Mais: muitas vezes, nos sentimos discutindo no interior do próprio governo. Como os meios de comunicação de governo serviam exclusivamente para promover os ministros e companhia, mudar esses processos acarreta também em enfrentamentos com as culturas de gestão. É possível?

Não há outra alternativa. A corresponsabilidade na gestão dos meios de comunicação públicos entre o Estado e a sociedade civil é empoderar a cidadania, e isso pode ser absolutamente transcendente. (Página/12 – traduzido pelo Portal Vermelho)


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