Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 8 • Número 381
São Paulo, de 17 a 23 de junho de 2010
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br ABr
O ensino e os símbolos religiosos no Plano de DH
Presidente do BC, Henrique Meirelles: conter a inflação ao invés de crescer
“Desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União”. Esse é um dos pontos suprimidos do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos após pressão de setores conservadores. A questão do tratamento dado à diversidade religiosa por um Estado laico é o tema da primeira reportagem de uma série sobre recuos do PNDH-3 produzida pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/ Fiocruz e que o Brasil de Fato começa a publicar nesta edição. Pág. 5 Divulgação
O mundo da mulher antes e depois da pílula Em entrevista, Rose Marie Muraro, pioneira do feminismo no Brasil, fala sobre os impactos provocados pela invenção da pílula nos últimos 50 anos. Ela destaca a importância dos anticoncepcionais para a libertação do corpo da mulher e afirma que seu maior ganho foi a construção da sua identidade. Pág. 4
Avesso ao crescimento, Banco Central privilegia especulação Um dia após o Brasil registrar um aumento de 9% do PIB (Produto Interno Bruto) no primeiro trimestre – em relação ao mesmo período do ano passado –, o Banco Central frustrou aqueles que apostavam em um crescimento continuado. No dia 9, a instituição resolveu manter a curva ascendente da taxa e a elevou para 10,25% ao ano.
Especialistas apontam que foi dada ênfase em demasia aos 9% para justificar a atitude do BC. Para eles, o crescimento deve ser relativizado, já que a base de comparação é um período de crise.“Para o BC, crescimento não é algo desejável”, afirmou o economista Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Pág. 3
União das Nações Unidas
Humanitarian Reliei Foudation IHH
A ação de Israel contra a Frota da Liberdade vista por dentro
No Oriente Médio, novo ator, mesmo teatro Turquia emerge como potência, mas os EUA é que ditam as regras Os últimos acontecimentos no Oriente Médio apontam para uma falsa polarização geopolítica entre Israel e Irã, dizem
analistas. Enquanto a Turquia se legitima como a nova mediadora de conflitos na região, o principal ator desse xadrez político, os
Estados Unidos, acusam o Irã de desenvolver armas nucleares e ignoram o ataque israelense à Frota da Liberdade. Pág. 9
Após 11 anos, Justiça condena Ford a indenizar RS por transferência de fábrica para a Bahia Pág. 6
Única brasileira a integrar o comboio naval humanitário atacado pela marinha israelense no dia 31 de maio, a cineasta Iara Lee conta, em entrevista ao Brasil de Fato, o que viu e ouviu no momento da ação. “Fiquei preocupada, pensando no que estava acontecendo com meus amigos, com o pessoal da minha equipe. Quando subi, vi um monte de mortos, de machucados. Foi um negócio rápido”. Ela relata, ainda, o clima no navio Mavi Marmara, os momentos na prisão em Israel e a suspeita de que agentes israelenses se infiltraram na missão. Pág. 10 ISSN 1978-5134
Partida da Frota da Liberdade de ajuda humanitária a Palestina
Resistência em Honduras segue luta por democracia No dia 28, o golpe de Estado que derrubou o presidente hondurenho Manuel Zelaya completa um ano. No país, a Frente Nacional de Resistência Popular se-
gue na luta por democracia. Em entrevista, o poeta e membro da resistência Candelario Reyes García explica as dificuldades e táticas do movimento. Pág. 12
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editorial A CAMPANHA ELEITORAL deste ano à Presidência da República agora está oficializada. Ou seja, com as convenções nacionais realizadas nas últimas semanas, os principais partidos políticos formalizaram suas candidaturas. É verdade que, nos últimos dias, a mídia corporativa tem se “preocupado” mais com a Copa do Mundo e com a seleção brasileira. Mas o fato é que o tema eleitoral já era tema de pauta desde o ano passado, como “cortina de fumaça” para a crise econômica mundial e muito longe de qualquer debate sobre projeto estratégico para o país. Esta, aliás, deverá ser novamente a marca da campanha presidencial. Isto é , ausência total de verdadeiro debate de projeto político que encare os graves problemas estruturais do Brasil. O PT e o PSDB insistem em tratar a campanha como “plebiscitária” – deve-se escolher entre a continuidade do governo Lula ou o retorno ao período do governo FHC. No entanto, nos programas de governo de ambos os candidatos, não há nada que indique que a economia deixará de ser hegemonizada pelo capital financeiro. Isso se torna evidente nas semelhanças entre as propostas para a agricultura, que privilegiam o agronegócio, braço do capital internacio-
debate
As eleições não são a batalha final nal e especulativo no campo. Mesmo a ideia de que se trata de um embate entre os governos Lula e FHC é sintomática desta despolitização. Por um lado, o PSDB, herdeiro de oito anos de governo FHC e há 16 anos no governo de São Paulo – o Estado mais rico do país e com vergonhosos índices sociais –, significa retomar as privatizações e retroceder nas relações internacionais com o hemisfério sul, realinhando o país subordinadamente aos Estados Unidos. Por outro, o atual governo abandonou bandeiras históricas do seu próprio partido e optou por não enfrentar o capital financeiro internacional. Ao contrário, estimulou setores poderosos da economia, como os próprios bancos e empreiteiras, e blindou-se com um apoio popular, misto de clientelismo com assistencialismo. Portanto, está longe de atender às bandeiras históricas da classe trabalhadora. E, nesse cenário, nos setores de oposição, à esquerda ao governo Lu-
la, vigora a fragmentação e o divisionismo característico dos período de descenso social. O período eleitoral é visto apenas como espaço de agitação política e, consequentemente, há dificuldade de se construir um projeto alternativo, capaz de aglutinar outros setores da sociedade. E, novamente, não se trata de nomes, mas sim de se atacar os problemas concretos e estruturais da sociedade brasileira. No entanto, no conjunto dos movimentos sociais, há um esforço em construir plataformas políticas unitárias que tentam flexionar o debate eleitoral para as questões sociais e econômicas. É neste sentido que resultaram as propostas apresentadas pela Coordenação dos Movimentos Sociais, pelas conferências realizadas pelas diversas centrais sindicais, seja no polo da CUT-CTB ou no da Conlutas-Intersindical, e entre os movimentos da Via Campesina. Há evidentemente uma compreensão deste conjunto de organizações de que aliança do PSDB com o DEM,
representada pela candidatura de José Serra, significa a retomada do projeto privativista, a restituição da política de relações exteriores submissa ao império e a criminalização dos movimentos sociais. Entretanto, os movimentos sociais também vêm insistindo que as eleições não são a batalha final. As conquistas da classe trabalhadora sempre se originaram nas ruas, nas lutas populares, sindicais e estudantis. É ali que a classe trabalhadora é forte e pode, realmente, se fazer ouvir. As eleições – espaço político que poderia ser importante para apresentar projetos para o país e de elevar a consciência política da população brasileira – estão cada vez mais despolitizadas e mais dependentes do poderio econômico. São vergonhosas e imorais as milionárias cifras gastas para eleger os integrantes dos poderes Executivo e Legislativo em nosso país. Montantes que afastam os setores populares das disputas eleitorais e tornam candidatos reféns dos fi-
crônica
Plínio Arruda Sampaio
Governismo disfarçado RICARDO GEBRIM é um homem inteligente e, como tal, capaz de malabarismo verbais extraordinários, na defesa do indefensável. O indefensável que Gebrim defende (em entrevista ao Brasil de Fato, edição 379 – de 3 a 9 de junho) é a posição oficial da Consulta Popular diante da conjuntura política do país. A verdade é que Gebrim e parte da direção da Consulta Popular apoiam Dilma. Mas por razões desconhecidas não querem declarar esse apoio explicitamente. Daí surgem os sofismas, que não resistem à mais perfunctória análise . Primeiro sofisma. Segundo Gebrim, até 2002 o apoio a Lula centralizava a tática da esquerda. O rebaixamento do Programa Democrático Popular de Lula provocou um remanejo tático na esquerda: um grupo decidiu sustentar Lula de qualquer jeito, outro preferiu fazer oposição eleitoral a ele. A Consulta Popular preferiu um terceiro caminho: Lula não é inimigo, mas deve ser enfrentado nas questões agrárias, econômicas, energéticas, e nas ações impopulares, e deve ser apoiado na sua política no Irã. Ora, se Lula está errado na questão agrária, na política econômica, na política energética, obviamente, sua política não pode deixar de ser prejudicial ao povo. E o que faz uma organização de esquerda definir um governante inimigo do povo senão suas políticas? Ainda mais que, além dessas políticas “enfrentáveis”, existem as “ações impopulares”, que também merecem enfrentamento. Quais são elas? (transposição do São Francisco? Reforma da Previdência? Sucateamento da educação e da saúde? Acobertamento do Mensalão?). Quanto ao elogio da aventura iraniana, é preciso esclarecer que a mediação de Lula serve como luva ao propósito do imperialismo, pois consiste em convencer Ahmadinejad a enriquecer urânio na Turquia. O pior é que não foi nem um serviço gratuito, pois respondeu a uma sugestão do próprio Obama, como acabou sendo esclarecido. A bronca posterior foi porque a sugestão de Obama não corresponde ao desejo dos Clinton – senhores do departamento diplomático do governo norte americano. No elogio da política externa, Gebrim esqueceu-se de mencionar o papel servil que as tropas brasileiras estão cumprindo no Haiti. Segundo sofisma. Lula não é o inimigo. O inimigo é o capital. Mas que política Lula executa senão a da defesa do capital? O capital não é um conceito abstrato. Só existe encarnado. Combater o capital, sem encarnálo, é como combater a imoralidade e a injustiça, sem dizer quem é imoral, injusto. E nem me venha com a balela de que combater o inimigo é combater agronegócio. O agronegócio é parte de um todo. A quem interessa ocultar essa realidade? Combater o
Reprodução
capital é combater a ordem capitalista que Lula defende. Terceiro sofisma. Discordando das duas táticas, por responderem à lógica de governo ou de luta eleitoral, a Consulta Popular preferiu centralizar o trabalho de unificação das forças populares, de formação de militantes, de agitação e luta popular. Por isso, no primeiro turno da próxima eleição, não apoia ninguém, libera seus militantes, mas irá denunciar Serra pelo risco do neoliberalismo e do imperialismo. “Qui prodest?” (a quem aproveita?) Quanta incoerência! Qual é a via defendida pelo “atualíssimo Programa Democrático Popular”, senão a via eleitoral? Quer dizer que se Lula estivesse cumprindo o Programa Democrático Popular, o processo eleitoral seria válido? Quarto sofisma. Nos termos de Gebrim, o Programa Democrático Popular continua extremamente atual. Isto significa dizer que o sistema capitalista tem condições de resolver os problemas fundamentais da população brasileira – hipótese negada pela nossa história e pela história da América Latina há oito décadas que reforça o discurso da direita a respeito da inviabilidade de alternativas ao seu domínio. Quanto ao “rebaixamento” desse Programa, a lógica exige que se diga para qual patamar inferior (o neoliberal ou o populista?). Em ambos casos fere os interesses populares. Quinto sofisma. A eleição presidencial deste ano é plebiscitária, afirma Gebrim. O povo escolherá entre o projeto rebaixado e o retro-
cesso. Retrocesso quer dizer: vitória do Serra. A insinuação do voto é evidente, porque a conclusão que o militante desavisado tirará dessa afirmação será naturalmente: “Gente! Que perigo! Votar na Dilma já”. Trata-se de uma versão envergonhada de voto útil, que mal esconde o governismo. Esse malabarismo todo clama por uma explicação. Em 2010 não há engano possível: são três candidaturas da ordem contra uma candidatura anti-sistema com condições de expressar as reivindicações concretas do povo. Tenho sérias dúvidas de que essa posição expresse sentimento majoritários dos companheiros que militam nessa organização. Pelo menos, não coincidem com as manifestações dos militantes quem têm comparecido nos encontros que tenho realizado nos Estados. Plínio Arruda Sampaio é militante histórico da esquerda brasileira, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Atualmente é filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), sigla pela qual é pré-candidato à Presidência da República. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), em 1954 militou na Juventude Universitária Católica, da qual foi presidente, e na Ação Popular, organização de esquerda surgida a partir dos movimentos leigos da Ação Católica Brasileira. Foi promotor público, assessor da Organização Mundial para a Alimentação e Agricultura (FAOONU), deputado federal constituinte e atualmente preside a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), além de dirigir o semanário Correio da Cidadania.
nanciadores milionários. É crescente a sensação, em cada eleição, de que as doações às campanhas eleitorais se constituem em verdadeiros investimentos, feitos pelos grandes grupos econômicos, para os quatro anos seguintes. O que o país precisa é de um projeto de desenvolvimento econômico e social, que promova justiça social e a distribuição da renda e da riqueza produzidas em nosso país. Um projeto desses contraria os interesses dos grandes doadores das campanhas eleitorais. É por isso que, com a conivência dos partidos políticos, o parlamento se torna cada vez mais o espaço da pequena política. Infelizmente, no Brasil, ainda penamos com o longo descenso das lutas de massas e com o rebaixamento da discussão política. Mas as contradições desse modelo econômico – que mesmo em período de crescimento econômico promove a desigualdade social – certamente exigirá uma participação popular na política que vá além do calendário eleitoral. As lutas sociais, a organização e a politização da classe trabalhadora e a implementação de um projeto popular para o país deve alicerçar as políticas que realmente promovam mudanças estruturais que assegurem condições dignas de vida ao povo brasileiro.
Leonardo Boff
A paz fundada no paradigma do cuidado FATORES DE VIOLÊNCIA e de empecilhos à paz são, entre outros, a vontade de poder de um país sobre outro, o patriarcalismo cultural que ainda marginaliza a mulher e a exploração da natureza em vista do benefício material. O patriarcalismo enfraqueceu a dimensão do feminino que nos faz a todos mais sensíveis, rebaixou a inteligência emocional, nicho do cuidado e da experiência ética e espiritual. Essa parcialidade, negando a dimensão da anima (o feminino) não deixou de afetar fortemente a ética. O núcleo da moralidade clássica herdada dos gregos e aperfeiçoada por Kant, Habermas e Rorty tem por base inconsciente a experiência do animus (masculino). Por isso ela se funda sobre duas pilastras básicas: na justiça que se expressa nos direitos e nos deveres dos homens (deixando invisíveis as mulheres) e na autonomia do indivíduo, na ideia de que somente um ser livre pode ser um ser ético. Ora, esta visão é parcial pois deixa de fora dimensões fundamentais, próprias mas não exclusivas do feminino (anima), como as relações afetivas que se dão na família, com os outros, com a natureza e com todos com os quais nos sentimos envolvidos. Sem tais relações a sociedade perde seu rosto humano. Aqui mais que a justiça vigora a categoria maior que é a do cuidado. O cuidado é um paradigma que se opõe ao da dominação. É aquela relação que se preocupa e se responsabiliza pelo outro, que se envolve e se deixa envolver com a vida em suas muitas formas, que mostra solidariedade e compaixão, que cura feridas passadas e previne feridas futuras. A base empírica é a experiência, tão finamente analisada pelo psicanalista inglês D. Winnicott, de que todos necessitamos de ser cuidados, acolhidos, valorizados e amados e desejamos cuidar, acolher, valorizar e amar. As portadoras privilegiadas, mas não exclusivas, desta experiência são as mulheres. Elas estão ligadas diretamente à vida que precisa de cuidado como na maternidade, na alimentação, no desvelo na enfermidade, no acompanhamento da educação. Estas características são próprias do princípio feminino (anima) que se encontra também no homem e que as realiza a seu jeito. No transfundo desta ética do cuidado há uma antropologia mais fecunda que aquela tradicional, base da ética dominante: parte do caráter relacional do ser humano. Ele é um ser, fundamentalmente, de afeto, portador de pathos, de capacidade de sentir e de afetar e de ser afetado. Além da razão intelectual (logos) vem dotado da razão emocional, sensível e da razão espiritual. Ele é um ser-com-os-outros e para-os-outros no mundo. Ele não existe isolado em sua esplêndida autonomia, mas vive sempre dentro de redes de relações concretas e se encontra permanentemente conectado. Não precisa de um contrato social para poder viver-junto. Sua natureza consiste em viver comunitariamente. Sem dúvida, para termos uma cultura da paz duradoura precisamos de instituições justas. Mas o funcionamento delas não pode ser formal nem burocrático, mas humano, cuidadoso e sensível aos contextos das pessoas e de suas situações. Mais que tudo, devemos nutrir uma cultura generalizada do cuidado para com a Terra, para com as pessoas, especialmente as mais vulneráveis e nas relações entre os povos para evitar a guerra. Ao invés do ganha-perde passa a funcionar o ganha-ganha. Com esta estratégia, se diminuem os fatores de tensão e de conflito. Para que se chegue à paz são relevantes as virtudes assumidas conscientemente, como a transparência, a disposição ao diálogo e à escuta, a acolhida calorosa do outro. Isso o presidente Lula enfatizou ao abordar a questão do Irã sob ameaça da truculência estadunidense e de seus aliados por causa do enriquecimento do urânio para fins pacíficos (pretexto para controlar o petróleo e o gás). Mas há uma dimensão subjetiva e espiritual que reforça a busca da paz. É a capacidade de perdão e de esquecimento de velhas rixas e conflitos. Hoje que as culturas se encontram, deixam manifestas as tensões históricas que separam os povos. O olhar deve ser dirigido para frente na construção da nova relação fundada numa aliança de cuidado entre todos. Está dentro das possibilidades de nosso ser, viver esse tipo de humanismo necessário. É a condição da paz duradoura, vista já por Kant como o fundamento da República Mundial. Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Joana Tavares • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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brasil
Com medo de crescimento, Banco Central sobe os juros novamente ECONOMIA Diante de um PIB recorde e inflação contida, Copom recrudesce conservadorismo e taxa brasileira volta a ser a maior ABr
Renato Godoy de Toledo da Redação NO DIA 8, o Ministério da Fazenda anunciou uma expansão virtuosa de 9% do Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro trimestre de 2010, em relação ao mesmo período do ano anterior. No dia seguinte, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) tratou de conter a euforia. Mesmo com índices de inflação controlados – apresentados no mesmo dia da reunião do conselho, inclusive – os mandatários da política monetária do país optaram por manter a curva de ascensão da taxa básica de juros, a Selic, que agora atinge 10,25% Mesmo com as medidas restritivas, o governo planeja um crescimento forte para 2010: 6,5%. Se a previsão estiver correta, o percentual será o mais alto dos 8 anos do governo Lula. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, apontou que o dado divulgado retrata um momento de auge da economia brasileira e que a tendência para o próximo período é de desaceleração.
“Não tem nada disso de ‘crescimento chinês’. Há coisas que são plantadas na mídia para justificar o comportamento do BC” Base frágil
Por ter como base comparativa o primeiro trimestre de 2009, economistas relativizaram o número apresentado pelo governo. Isto porque a comparação é feita entre um período de aquecimento, de fato, e outro de recessão, motivada pela crise financeira internacional iniciada em 2008. No ano passado, mesmo com um segundo semestre marcado pela retomada, a economia brasileira apresentou desempenho recessivo, ainda que leve. Outra crítica à sobrevalorização dos dados apresentados é o fato de eles ocultarem
Henrique Meirelles, em entrevista, após reunião do Copom
outros problemas da política econômica brasileira, como a opção pela atração de capital especulativo e a consolidação de uma base primário-exportadora, com geração de empregos de menor qualidade. Para a economista Leda Paulani, da Universidade de São Paulo, o excesso de barulho em torno do resultado do PIB pode ser considerado como um movimento orquestrado para justificar a atitude do Copom. “Não tem nada disso de ‘crescimento chinês’. Há coisas que são plantadas na mídia para justificar o comportamento do BC. A taxa anualizada [que leva em conta os últimos 12 meses] foi de 2,7%, o que representa um crescimento de razoável para baixo. Neste ano, o crescimento deve ser de 6% do PIB, e isso dá argumentos para o BC dizer que o país não sustentaria tal aceleramento”, analisa. No entanto, a economista aponta que, realmente, há um problema estrutural no país que pode representar entraves
ao crescimento, daí a necessidade de um planejamento estratégico. “Temos problemas de infraestrutura que tornam um pouco complicada a possibilidade de crescimento acelerado. Em alguns setores estratégicos, como energia, transporte e comunicação, se acelerar abruptamente vai se esbarrar nesse entrave material. Então, o governo tem que ter planejamento para suprir essas carências. Caso contrário, nunca se criarão condições de crescer”, critica. Pró-rentistas
Para o presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro (Corecon – RJ), Paulo Passarinho, a decisão do BC pode ser observada como uma atitude continuada de proteção e subserviência ao sistema financeiro. “Essa navegação por parte do BC para justificar mais uma elevação na taxa tem que ser vista sob a lógica que domina o BC há muitos anos, que o tornou o guardião-mor do interesse dos rentistas. Porque as ex-
“O argumento do BC tem que ser rebatido porque o nível de preços estava no patamar anterior à crise. Há setores que apontam uma deflação, inclusive” plicações técnicas confundem a opinião pública e ocultam os interesses. Estamos tendo um processo de recuperação da estagnação que ocorreu no ano passado. Essa difusão do resultado e a ênfase em torno do percentual de 9% têm seu significado: explorar a comparação com uma base muito reduzida”, aponta. Com tal ênfase, o argumento da provável volta da inflação ganha um contorno mais aceitável, diz o economista, mas trata-se de um engodo. “O argumento do BC tem que ser rebatido porque o nível de preços estava no patamar anterior à crise. Há setores que apontam uma deflação, inclusive”, explica. Previsões de agentes do mercado financeiro apontam
da Redação Apesar de apresentar um crescimento importante, a economia brasileira ainda conta com um fator que pode acarretar em consequências ruins: o déficit em conta corrente. O valor pode atingir 50 bilhões de dólares até o final do ano. O dado demonstra que o país está tendo desvantagem nas transações correntes internacionais e é composto pelos resultados da balança comer-
cial, da conta de serviços e das transferências unilaterais. Este deverá ser o terceiro ano consecutivo em que o país apresenta saldo negativo na conta corrente. “Não é saudável uma política de saldos negativos sucessivos na conta corrente. Neste ano, o déficit vai dobrar em relação ao ano passado. Com isso, acende-se o sinal amarelo para uma crise cambial”, afirma o economista Guilherme Delgado. Diante desse problema, a atitude do Banco Central não tem sido prudente, de acordo com a análise de Delgado. “Não se resolve isso com aumento de juros. Porque, ao aumentar os juros, amplia-se a possibilidade de entrada de capitais de curto prazo e a taxa de câmbio torna-se ultravalorizada”, aponta. De acordo com o Paulo Passarinho, presidente do Conselho Regional de Economia do
“Somos importadores de peças e componentes e não exportamos o suficiente para pagar essas importações de eletroeletrônicos” Rio de Janeiro, o resultado ruim da conta corrente é um reflexo do tipo de desenvolvimento atual no Brasil. “Sob o ponto de vista financeiro, esse modelo implica numa elevação espetacular da remessa de lucros e dividendos para o
Razões para retomada
De acordo com o economista Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o BC reage em relação a uma “potencial” pressão inflacionária. “Apenas potencial, porque não há nada que indique isso”, afirma. Para ele, os fatores que conduziram a retomada do crescimento no Brasil podem ser explicados por ações do setor público e privado. “Os 9% não são necessariamente muito altos, em função da base de comparação. Mas, desde o primeiro trimestre de 2009, a
Noção de desenvolvimento não pode se reduzir ao PIB
Déficit em conta corrente preocupa, diz economista De acordo com Guilherme Delgado, o maior perigo é uma crise cambial
que o país deve cumprir com tranquilidade suas metas de inflação, mantendo o índice abaixo de 6% em 2010 e inferior a 5% em 2011.
recuperação econômica que o país apresenta tem apontado para uma taxa de crescimento que deve atingir de 6 a 7%. Isso reflete a retomada do investimento nos setores que têm metas de energia elétrica e de energia de petróleo. As exportações de commodities continuam altas. Assim como a demanda interna e a recuperação do emprego formal. [O crescimento também foi impulsionado] provavelmente pelas metas de cumprimento do calendário do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] que estão em dia, por conta de ser um ano eleitoral”, avalia. Na opinião do economista, a decisão do BC foi motivada por uma “idiossincrasia”. “Eles têm uma desconfiança permanente em relação ao crescimento. O principal objetivo deles é a meta de inflação, não a taxa de crescimento. Na ideia deles, o crescimento pode ser de, no máximo, 5%. O crescimento para eles não é algo muito desejável”, aponta.
exterior. Por isso, o problema na conta de serviços. Acumulamos problemas muito graves no horizonte. Mas enquanto isso os dominantes ganham muito dinheiro por conta do endividamento do Estado a custa de taxas medíocres de crescimento”, critica. A maneira como o Brasil se insere no mundo – importando produtos manufaturados e exportando commodities, no geral – também prejudica o saldo da conta corrente, segundo Passarinho. “Somos importadores de peças e componentes e não exportamos o suficiente para pagar essas importações de eletroeletrônicos. Sempre que o país começa a crescer um pouco mais, de forma continuada, há uma tendência de ampliar o rombo das nossas contas externas. Passa-se a ter déficit nas transações correntes”, explica. (RGT)
Orientação do gasto público deve ser alterada, diz Leda Paulani da Redação A economista Leda Paulani, da Universidade de São Paulo, defende que o debate em torno do crescimento não pode se restringir à questão numérica do PIB. “Hoje, a discussão de desenvolvimento se reduz ao PIB. É verdade que o crescimento tem aumentado o emprego formal e isso é bom, mas existem outros fatores”, diz. Paulani acredita que o direcionamento do gasto público pode dizer bastante sobre o grau de desenvolvimento de um país. “Um país com a potencialidade do Brasil, com a desigualdade que ainda tem, não pode se dar ao luxo de gastar apenas 0,6% do PIB com política social – e se vangloriar
disso – e gastar entre 7 e 8% com o pagamento de juros que beneficiam uma parcela reduzida da população”, critica. De acordo com a economista, o país precisa controlar a emissão de capitais para o exterior e repensar qual deve ser a sua inserção no mercado internacional. “Certamente precisaria ser feito um controle de capitais para evitar a reprimarização da economia”, aponta. Para ela, a primazia do setor primário-exportador e a política econômica restritiva podem trazer ao país uma consequência grave que é chamada pelos economistas de “doença holandesa”. O fenômeno tem esse nome por conta do aumento da exportação de gás pela Holanda na década de 1960. Segundo os criadores do conceito, o principal sintoma da doença é o declínio do setor manufatureiro e a perda de competitividade de outros produtos. “No caso brasileiro, é uma doença produzida pela política monetária”, explica. (RGT)
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“O mundo da mulher é um antes da pílula e outro depois da pílula” Reprodução
ENTREVISTA Rose Marie Muraro, pioneira do feminismo no Brasil, destaca a importância dos anticoncepcionais na libertação do corpo da mulher
me disseram isso. No mundo desenvolvido, isso é muito mais forte do que no mundo ainda patriarcal e familiar, como no Brasil. Na parte individual, foi o ganho da identidade, e na parte social, estamos transformando a noção de política e economia. Os homens têm a relação opressor/ oprimido dentro de si. A competitividade é uma relação de opressor e oprimido. Tanto que os homens, como os americanos dizem, “marry down”, casam-se com uma mulher inferior para dominá-la, e as mulheres “marry up”, ao contrário, casam com alguém que possa livrá-las da escravidão. O mundo é hierarquizado quando é dominado pelo homem. E o mundo se estabelece em rede quando a mulher entra em cena. Então, os homens não estão acostumados. Eles estão acostumados a mandar, a fazer guerra, e já que encontram uma outra figura que faz frente a eles e diz “não”, eles se apavoram, porque nunca ouviram esse não; é a primeira vez na história.
Graziela Wolfart e Márcia Junges de Porto Alegre (RS) “O HOMEM TEM muito medo da mulher, ele está muito deprimido e dizendo ‘vocês ganharam a batalha’”. A constatação é da escritora Rose Marie Muraro, na entrevista que concedeu, por telefone, à IHU On-Line. Em suas respostas, ela reflete sobre os impactos provocados pela invenção da pílula nesses últimos 50 anos e identifica que, no aspecto individual, o maior ganho das mulheres foi a construção da sua identidade. E, no aspecto social, “estamos transformando a noção de política e economia”. Ela explica: “os homens têm a relação opressor/oprimido dentro de si. A competitividade é uma relação de opressor e oprimido. O mundo é hierarquizado quando é dominado pelo homem. E o mundo se estabelece em rede quando a mulher entra em cena. Então, os homens não estão acostumados. Eles estão acostumados a mandar, a fazer guerra, e já que encontram uma outra figura que faz frente a eles e diz ‘não’, eles se apavoram, porque nunca ouviram esse ‘não’; é a primeira vez na história”.
Que outras libertações a pílula anticoncepcional trouxe para as mulheres?
Como eu sou física, vejo a ciência do ponto de vista do gênero. Tenho um livro chamado Avanços tecnológicos e o futuro da humanidade, pela Editora Vozes. E o subtítulo é “querendo ser Deus”. Os homens agora estão criando vida artificial. E essa vida artificial é assassina, porque está substituindo o ser humano pelo ser tecnológico. Existem dois canalhas no mundo: um se chama Craig Venter, porque fez a vida sintética. E o outro se chama Raymond Kurzweil, que já tem uma universidade nos Estados Unidos, dos transumanistas, para fazer a junção da máquina com o ser humano. Isso nunca poderia ser uma invenção feminina. A invenção da ciência que chega direto a poucos, e não à comunidade, que escraviza grandes porções da humanidade, veio do homem.
“Elas [as mulheres] vão perdendo essa identidade no momento em que vai se descobrindo a figura masculina de Deus” Qual a influência da pílula anticoncepcional e da pílula do dia seguinte para a autonomia das mulheres nos últimos 50 anos?
A pílula fez parte da revolução das mentalidades e permitiu às mulheres controlar a sua fertilidade, entrando, assim, para o mercado de trabalho. E, no momento em que elas entraram para o mercado de trabalho, viveram condições muito desvantajosas, ganhando metade do que ganhavam os homens. Mas foram, pouco a pouco, progredindo, até agora, no século 21, chegar à Presidência da república. Temos, inclusive, duas candidatas ao cargo aqui no Brasil. Isso se deve, primitivamente, ao uso da pílula anticoncepcional e à pílula do dia seguinte, senão elas estariam escravas da sua fertilidade. Por isso é que a mulher ficou oprimida durante tantos milênios. A pílula foi a maior descoberta que se fez para a mulher em todos os tempos. Qual o significado social e cultural de a mulher desligar a sexualidade da maternidade?
Foi muito mais importante do que você imagina. Foi dar uma visão de gênero ao desenvolvimento que era apenas masculino. Foi ter uma visão de mundo em que a mulher passou a ser sujeito da história e a ter uma identidade. Por exemplo, Deus é do gênero masculino. Então, o homem pode se identificar com Deus. Antigamente, na pré-história,
Qual a contribuição da pílula no sentido de a sexualidade ser pensada como uma dimensão fundamental do ser humano?
Interpretada por Jane Fonda no cinema, “Barbarella” (1968) é considerada ícone da revolução sexual e adotada como símbolo por feministas
não era Deus o ser incriado. Era uma mulher, da qual surgia o mundo inteiro. Então, as mulheres tinham uma identidade. Elas vão perdendo essa identidade no momento em que vai se descobrindo a figura masculina de Deus, que é a dominação do homem sobre a mulher. Lacan dizia “a palavra é do homem e o silêncio é da mulher”. Mas, hoje, está se criando uma palavra feminina, uma visão de Estado, de economia, de ciência, de todo o comportamento, principalmente da psicologia, que descobre a noção de gênero. É algo muito profundo o que está acontecendo no mundo agora, principalmente no século 21. Qual é a importância para a mulher ter o controle sobre o próprio corpo?
Eu nunca usei pílula, porque era católica na época em que casei, e tive cinco filhos. Era muito difícil para mim sair de casa, deixar as crianças com a empregada, porque eu tinha que trabalhar, meu dinheiro era essencial em casa. Tive que construir uma carreira e, por sorte, nasci para ser escritora. Tenho 79 anos e posso dizer que nasci para isso. Eu e as outras mulheres que fizemos esse trabalho, ajudamos muitas mulheres a encontrarem sua identidade no Brasil. A primeira fase da identidade de uma pessoa não escra-
va é controlar o próprio corpo. Pois o corpo do escravo pertencia ao dono, assim como o corpo da mulher pertencia ao homem. Então, a mulher era uma escrava do homem. Hoje, a diferença é brutal. O mundo da mulher é o mundo de antes da pílula e depois da pílula. E isto está mudando a visão estrutural de mundo de homens e mulheres. A identidade da mulher leva à vida; a identidade do homem leva à guerra e à morte. A mulher produz seres humanos, e os homens matam seres humanos. Tanto que a mulher não participa das guerras. Eu espero que isso dê uma noção de um mundo completamente diferente. A única coisa que eu acho que as mulheres fazem de grave e terrível é o consumo. As mulheres se vingam da sua escravidão no consumo, e é preciso acabar com isso, porque o que está terminando com o mundo é o consumo. Daí se pode dizer que a mulher contribui muito para acabar com a natureza. E a mulher é uma extensão da natureza. O que mudou em relação ao conceito de sujeito para a mulher a partir da invenção da pílula anticoncepcional?
Ao invés de conceito, prefiro falar na vivência de sujeito, que é muito mais profunda. A vivência de não-sujei-
to e de sujeito é algo que eu sei o que é. Quando eu liguei as trompas, passei a ser sujeito de mim mesma. Enquanto eu não tinha isso, era sujeitada à minha reprodução. Não havia camisinha, os métodos anticoncepcionais eram muito primitivos. Só tomamos o caráter de pessoa plena quando passamos a controlar a maternidade.
“A primeira fase da identidade de uma pessoa não escrava é controlar o próprio corpo” O que caracteriza a revolução provocada pela pílula anticoncepcional?
Foi uma revolução muito mais profunda do que parece. Para a mulher, individualmente, significou construir sua identidade. Quem descobriu a natureza da deusa primitiva foi uma mulher, a Marija Gimbutas. A partir da sua identidade, a mulher construiu a deusa terra, que foi adorada como deusa porque dela saía alimento e vida. Então ela era essencialmente
feminina. A mulher era o gênero hegemônico. Não havia guerras, tudo era de todos. Isso foi na época pré-histórica. Depois que o homo sapiens aparece, é que temos uma visão completamente masculina e truculenta do mundo, uma visão de competição. A cooperação estatisticamente está na mão da mulher e a competição estatisticamente está na mão do homem. Mas a civilização consumista está na mão da mulher e do homem. Essa é a grande amargura que tenho sobre a mulher: o fato de ela ser consumista. A mulher, quando pode, entra na ilusão da tecnologia, e já estamos estressando a Terra. Será que a mulher não tem culpa pela destruição da espécie? É uma reflexão que eu faço. A estrutura do consumo é feita para a sexualidade, para a mulher conquistar o homem, para ela pegar a sua insatisfação e se satisfazer com coisas que dão um buraco mais profundo na alma. O que mudou nesses 50 anos de uso da pílula na postura masculina diante das mulheres? O que muda nas relações de gênero?
É um medo louco. O homem tem muito medo da mulher, ele está muito deprimido e dizendo “vocês ganharam a batalha”. Vários europeus já
A sexualidade era considerada algo inferior e sujo, algo que principalmente as mulheres não deviam viver, só as prostitutas. Existiam duas ordens de mulheres: as privadas e as públicas. Hoje esse duplo padrão não existe mais. A mulher, desde criança, pode usar sua sexualidade. As meninas estão passando batom e usando colares, sapatinho de salto alto. Acho isso um escândalo, porque a infância é a infância. Ela é uma ordem simbólica, em que se vive na fantasia. E as meninas vivem na fantasia de serem mulheres. Quem sabe (isso é para o futuro), a infância e a idade adulta não estão sendo rejuntadas e reintegradas, como foram até a Idade Média. Vamos ver como os séculos se comportam.
Quem é Formada em Física e Economia, Rose Marie Muraro publicou diversos livros, entre eles, sua biografia Memórias de Uma Mulher Impossível (Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999). Nos anos de 1970, foi uma das pioneiras do movimento feminista no Brasil.
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brasil
Símbolos religiosos no Estado laico PNDH 3 O Brasil de Fato dá início à publicação de série de reportagens produzidas pela Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz sobre os recuos do governo federal em pontos chave do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos. Nesta edição, confira discussões acerca da diversidade religiosa ABr
Baixo à cruz cristã, decidem os juízes do Supremo Tribunal Federal em Brasília
Raquel Júnia do Rio de Janeiro (RJ) HÁ SEIS MESES, em 21 de dezembro de 2009, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e 28 ministros publicaram o Decreto nº 7.037, de criação do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos – o PNDH 3. De lá para cá, o texto foi alvo de críticas de setores conservadores, como a bancada ruralista no Congresso, a Igreja Católica, a mídia comercial e militares de direita, que começaram uma batalha contra o programa. Enquanto isso, movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos humanos tentavam contra-atacar em defesa do plano, mas numa correlação de forças desfavorável, sobretudo pela diferença de publicidade das opiniões. O PNDH 3 deixou às claras também as profundas divergências existentes dentro do próprio governo, com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, claramente capitaneando a oposição à iniciativa e o secretário especial de direitos humanos, Paulo Vannuchi, no apoio. No início de maio, cedendo à pressão dos setores contrários ao plano, o presidente Lula publicou um novo decreto modificando itens do PNDH 3. Movimentos sociais e organizações que participaram da Conferência Nacional de Direitos Humanos, de onde partiram as propostas norteadoras da política, começaram a se articular mais fortemente em sua defesa.
“Entendi que esse recuo é ruim para o Brasil, mas como também nem tudo que se consegue de avanço tem que estar num papel escrito, isso não prejudica demais não” O PNDH 3, como foi lançado originalmente, reúne, em mais de 200 páginas, uma série de diretrizes e objetivos a serem alcançados no campo dos direitos humanos. Os setores da sociedade que defendem a proposta a consideram um avanço em relação aos dois PNDHs lançados anteriormente, o de 1996 e de 2002, por formular as ações de maneira a considerar “a interdependência, indivisibilidade e transversalidade dos direitos humanos”.
A laicidade implica que nenhuma religião deve ser professada pelo Estado e, ao mesmo tempo, assegura a existência de todos os cultos Várias organizações lançaram, então, um manifesto em defesa do Plano, pedindo que o decreto presidencial 7.177, de 12 de maio de 2010, que retira partes consideradas polêmicas do PNDH 3, seja revogado. Ao mesmo tempo, estão em curso no Câmara dos Deputados seis projetos de decretos legislativos (PDC) que retiram outros pontos do programa. O deputado federal Chico Alencar (PSOL/RJ) é o relator de quatro deles e é contrário às alterações no PNDH 3. O parlamentar lembra que o PNDH 3 é uma atualização do plano anterior, de 1996, e que foi construído por meio de um processo participativo que envolveu cerca de 70 mil pessoas. “[Com o decreto 7.177,] Minha avaliação é de que a onda conservadora venceu, e a abrangência do programa facilitou esse ataque forte, de diversos lados. No geral, entendi que esse recuo é ruim para o Brasil, mas como também nem tudo que se consegue de avanço tem que estar num papel escrito, num decreto ou, se fosse o caso, numa lei, isso não prejudica demais não. Vamos continuar lutando para conseguir sedimentar uma cultura de direitos no país”, diz. Esta série sobre os pontos retirados do PNDH 3 começa pela ação programática de “desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União”, suprimida da redação original do plano. Na redação do PNDH também consta um trecho que sugere o estabelecimento da história das religiões, especificamente as de matriz africana, nas escolas públicas. É com esse tema, que envolve religião e Estado, que começamos esta série. O ensino religioso Em palestra concedida no dia 12 de março na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), no Rio de Janeiro (RJ), o ministro Paulo Vannuchi justificou a inclusão do trecho que sugere o impedimento de ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos pelo fato de o Estado brasileiro ser laico. A laicidade implica que nenhuma religião deve ser professada pelo Estado e, ao mesmo tempo, assegura a existência de todos os cultos. Dessa maneira, explicou, ter um crucifixo em um Tribunal de Justiça, por exemplo, é uma agressão
a quem não professa aquela crença. Ele exemplificou ainda com situações em que a própria religião estivessem em pauta na questão judicial a ser resolvida. Como garantir a isenção com a ostentação de um símbolo religioso nesse tipo de prédio público? Já a discussão sobre o estudo da história das religiões se confunde muitas vezes com a defesa do ensino religioso. O professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carlos Jamil Cury, concorda com a importância de se estudar a história das religiões na escola, conforme sugere o PNDH. “Eu sou favorável que se conheça a história das doutrinas religiosas, sobretudo num país como o Brasil, que tem uma vinculação no seu nascedouro com o cristianismo, e que tem depois as religiões dos nossos indígenas e as advindas da África Negra. É fundamental estudar isso”, diz. O professor ressalta, entretanto, que isso não significa, de maneira nenhuma, praticar proselitismo religioso, ou seja, a pregação de determinada religião. Ele lembra o exemplo da França, onde já na educação primária, as crianças têm uma introdução sobre o que são as religiões. “Deste ensino [da história das religiões] não deve decorrer outra coisa que não o conhecimento, o respeito e a tolerância”, opina. Formas de educar Diferente dessa história das religiões, que o PNDH propõe, é a discussão sobre o ensino religioso como parte do currículo escolar, que é antiga e polêmica. A mesma Constituição que diz que o Estado brasileiro é laico, garante a existência de ensino religioso nas escolas, o que por vezes, se manifesta de forma confessional (sobre determinada religião em detrimento de outras), já que a Constituição não especifica de que forma devem ser os conteúdos. A Carta diz que a oferta da disciplina é obrigatória no ensino fundamental, mas a adesão dos estudantes à matéria é facultativa. Em 1997, a lei federal 9.475 modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) no que diz respeito ao ensino religioso, incluindo que é vedado qualquer tipo de proselitismo e que os sistemas de ensino devem ouvir uma “entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas,
para a definição dos conteúdos do ensino religioso”. Em 2008, no entanto, o governo federal assinou um acordo com a Santa Sé – órgão máximo de deliberação da Igreja Católica – que prevê, entre outros termos, a garantia do ensino religioso confessional nas escolas públicas de ensino fundamental, tanto católico, quanto de outras confissões. Na ocasião, várias entidades e movimentos sociais protestaram dizendo que o acordo feria a laicidade do Estado, entretanto tanto a Câmara quanto o Senado ratificaram a proposta. Carlos Jamil Cury não concorda que o ensino religioso seja uma disciplina nas escolas. “Minha opinião pessoal sempre foi contrária, o melhor lugar para se desenvolver este tipo de sentimento e conhecimento é nos respectivos cultos. Hoje, há vários cultos que detêm emissoras de rádio, televisão. E existem as famílias também, que podem promover este conhecimento. A escola deve ter uma posição de neutralidade”, afirma. Para o professor, é difícil avaliar a situação da oferta de ensino religioso em todo o Brasil, já que não há uma pesquisa abrangente o suficiente para se garantir um panorama. Ele coloca, entretanto, que se pode dizer que há uma diversidade muito grande na oferta, já que cabe aos sistemas de ensino normatizarem a questão.
“Você não pode comparar o grau de organização que a Igreja Católica tem com igrejas reformadas que são articuladas, mas que não têm uma centralização de poder como tem a Católica” Além disso, Cury pontua que existem muitas dificuldades para que funcione uma entidade civil, como garantido pela LDB, com a função de definir o conteúdo do ensino religioso. “Eu tenho uma suspeita, pelo que já avaliei e estudei, que a constituição desta ‘sociedade civil’ é bem pequena. Você não pode comparar o grau de organização que a Igreja Católica tem com igrejas reformadas que são articuladas, mas que não têm uma centralização de po-
der como tem a Católica. E, nas igrejas pentecostais, budistas, espíritas e para outras formulações de caráter transcendental, existe uma variabilidade muito grande”, analisa. Segundo ele, uma questão a ser levantada também é se as escolas deixam claro no momento da matrícula que o ensino religioso é facultativo. O professor explica ainda que a LDB afirma que caso o estudante opte por não assistir a disciplina, a escola deve oferecer uma outra atividade. “Nas antigas legislações educacionais isto estava colocado em lei, atualmente foi normatizado em dois pareceres do Conselho Nacional de Educação. O Conselho deixou claro que os alunos que não optam não podem ficar ao léu, devem ter atividades paralelas cujo conteúdo e metodologia precisam fazer parte do projeto pedagógico da escola”, aponta Cury, que era presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação quando os pareceres foram aprovados. O jornalista Márcio Alexandre Gualberto, do Ilê Axé Iya Omo Eja e da Plataforma Brasileira pelas Ações Afirmativas, também acredita que o ensino religioso não deve se constituir como uma disciplina nas escolas. “Se vai falar de uma religião, seria necessário falar de todas e, para estudar a história das religiões, inclusive a de matriz africana, há outras disciplinas que dão conta disso. No caso das religiões africanas, poderia se estudar dentro de história da África”, opina. Cury argumenta que o ensino deve ter uma abordagem transversal, como a LDB incita. “Isso você pode aprender, por exemplo, se eventualmente ler uma poesia, um conto, que de repente envolva uma dimensão religiosa, e aí se diz que o autor da poesia, por exemplo, é muçulmano. E aí você diz: o que é muçulmano? E pode começar a explicar”, distingue. O pesquisador identifica que em alguns casos, onde há a sociedade civil constituída como regula a LDB, a comissão tem apostado em um estudo mais aberto, baseado em valores transcendentais, de forma mais ecumênica, sem falar de alguma religião especificamente. Intolerância Márcio Alexandre lembra o caso de uma professora da cidade de Macaé, no Rio de Janeiro, que sofreu uma punição da direção da escola por ensinar conteúdos relacionados à religião africana. A professora chegou a ser afastada da sala de aula. “Ela foi explicar o que significa Exu, que é o responsável pela comunica-
ção entre os seres humanos e os orixás. Mas existe uma interpretação equivocada que relaciona a imagem de Exu com o diabo, quando, na verdade, não existe esta dicotomia entre bem e mal no candomblé. Aí, por a professora ter tentado fazer essa explicação, virou um banzé na escola”, conta. Para Márcio, existe esta intolerância, sobretudo, com relação às religiões de matriz africana, porque as pessoas não as conhecem de fato. “Há uma visão reducionista de que o candomblé é todo mundo recebendo santo e nada mais, quando isso é apenas a ponta do iceberg. Quando a pessoa conhece, passa a não discriminar. Quando as pessoas entenderem o que é o candomblé, verão que não tem nenhum bicho de sete cabeças”, aposta.
“Há uma visão reducionista de que o candomblé é todo mundo recebendo santo e nada mais, quando isso é apenas a ponta do iceberg. Quando a pessoa conhece, passa a não discriminar” O jornalista conta que está em curso a campanha “Quem é de axé diz que é!”, promovida pelo Coletivo de Entidades Negras (CEN) com o apoio de várias organizações. A campanha pretende incentivar as pessoas que professam religiões de matriz africana a responderem corretamente sobre a religião que pertencem no censo de 2010. Segundo Márcio, pelo preconceito que ainda há em torno dos praticantes dos cultos africanos, muitas pessoas omitem esta informação. “Para além do PNDH, queremos sensibilizar o governo federal para a necessidade de convocar a Conferência Nacional de Liberdade Religiosa”, afirma. Márcio diz que a expectativa é a de que a Conferência seja realizada em 2011 e que o diálogo com outras religiões e com o próprio governo para que a atividade aconteça começou já. “A gravidade deste preconceito é muito maior do que a gente imagina, podendo causar até a morte, como já aconteceu”, conclui. (Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz)
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fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Justiça condena Ford a pagar R$ 130 mi ao Rio Grande do Sul
Revolta eleitoral
Pelo menos duas importantes lideranças do PT se rebelaram contra a imposição do presidente Lula para que o partido apóie candidatos do PMDB: em Minas Gerais, Sandra Starling se recusou a engrossar a campanha do global Hélio Costa; e, no Maranhão, o antigo líder camponês Manoel da Conceição deixou claro que não tem a menor condição de apoiar a oligarquia Sarney. Só topa o caudilhismo quem não tem espinha dorsal.
Violência policial
Na noite de 11 de junho, uma operação policial na comunidade de Nova Holanda, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, resultou na morte de duas pessoas e de quatro feridos, entre os quais uma criança de cinco anos de idade. Com a chamada “Polícia Pacificadora” ou não, a política de segurança aplicada pelo governo do Rio (PMDB) continua sendo de discriminação, perseguição e execução dos moradores pobres. Não dá mais! Fábrica da Ford em Camaçari (BA)
INDENIZAÇÃO Juíza condena transnacional por romper contrato e transferir montadora para a Bahia Clarissa Pont de Porto Alegre (RS) A AÇÃO ORDINÁRIA ajuizada pelo Estado do Rio Grande do Sul contra a Ford Brasil Ltda. recebeu sentença favorável, que condena a transnacional a indenizar em R$ 130 milhões, mais correções, o Tesouro gaúcho e reconhece o rompimento contratual por parte da montadora. O maior imbróglio vivido pelo mandato de Olívio Dutra (PT – 1999-2002) como governador toma, a partir da decisão judicial, de dezembro de 2009, rumos distintos em relação àqueles da época da saída da Ford do estado e sua instalação na Bahia, em 1999. Já houve apelação por parte da empresa e a decisão, portanto, não é definitiva. No documento ao qual o jornal Sul 21 teve acesso, o Estado alega que havia celebrado com a Ford um contrato de implantação de indústria, acompanhado de 49 anexos, em 21/03/1998. Havia também um contrato de financiamento com o Banrisul, disponibilizando à empresa a quantia de R$ 210 milhões, liberados em três parcelas, de acordo com cronograma acordado entre as partes.
A versão, da oposição ao governo de Olívio, de que ele era o responsável pela perda da montadora, não resiste a uma mínima pesquisa histórica Na época, o governo noticiou que a primeira parcela havia sido liberada, ficando o acesso às demais condicionada à comprovação da vinculação dos gastos das parcelas anteriores à execução do projeto. Diz a ação que o Estado gaúcho, no início de 1999, frente ao conjunto de obrigações assumidas no contrato, procurara, amigavelmente, rever algumas cláusulas que considerava nulas e prejudiciais ao patrimônio público. Ainda segundo o documento, no final de março de 1999, a montadora estava ciente de que deveria prestar contas e apresentou grande quantidade de documentos e um rol de alegados gastos com o programa Amazon, relativos ao período de julho de 1997 a março de 1999, os quais foram remetidos à contadoria da Audi-
toria Geral do Estado (CAGE), que concluiu que a comprovação era insuficiente. Antes mesmo da conclusão dos trabalhos da CAGE, a Ford já havia se retirado do empreendimento por iniciativa própria, anunciando a ida para a Bahia, sem encerrar tratativas oficiais com os representantes do Poder Público Estadual no RS. “A Ford, consoante supramencionado, quando notificou o Estado de que estava desocupando a área onde seria implantada a indústria e sustentou, equivocadamente, o descumprimento do contrato pelo Estado que negava-se a repassar a segunda parcela do financiamento, indiscutivelmente tornou-se a responsável pela rescisão contratual. Diz-se equivocadamente, porque estava o Estado amparado nas disposições contratuais quando negou o repasse da segunda parcela do financiamento, em face da já mencionada pendência da prestação de contas pela Ford, daqueles valores repassados, concernente à primeira parcela do financiamento”, diz o documento. Segundo matéria do jornalista Fredi Vasconcelos publicada na revista Fórum em 2008, o custo da disputa para tirar a fábrica do Rio Grande do Sul vinha sendo revelado aos poucos, já que as negociações foram secretas, sem nenhuma participação da sociedade. O contrato original fechado pela Ford com o então governador Antonio Britto (PMDB – 1995-1998) para a construção da fábrica previa o repasse de R$ 419 milhões (234 milhões em obras de infraestrutura e 185 milhões em finan-
ciamento de capital de giro e concessão de créditos de ICMS). Algo parecido com os incentivos dados para a fábrica da General Motors, que acabou sendo construída no Rio Grande do Sul.
Antes mesmo da conclusão dos trabalhos da Auditoria Geral do Estado, a Ford já havia se retirado do empreendimento por iniciativa própria A Ford e a Bahia O prazo do Regime Automotivo Especial para serem concedidos novos incentivos fiscais às montadoras no Nordeste havia terminado em maio de 1997. O jornal Gazeta Mercantil, de 21 de outubro de 2001, afirmou: “O fato, porém, é que a Bahia não mais contava, naquele momento, com condições de atrair uma montadora de automóveis”; e, “para viabilizar a instalação da Ford na Bahia, o deputado federal Jose Carlos Aleluia (PFL-BA), relator da MP 1740, que tratava de ajustes no sistema automotivo brasileiro, incluiu no documento a prorrogação, por alguns meses, da vigência do Regime Espe-
cial do Nordeste”. Foi aprovado o projeto por voto simbólico das bancadas, transformando-se em lei, no dia 29 de junho de 1999. A Gazeta Mercantil também revelou que o então secretário executivo do Ministério da Fazenda, Pedro Parente, do PSDB, foi decisivo para garantir a Ford na Bahia. A versão, repetida à exaustão na época pela oposição ao governo de Olívio Dutra, de que ele era o responsável pela perda da montadora, não resiste a uma mínima pesquisa histórica a respeito do fato. O então secretário de governo José Luiz Moraes, que participou das negociações de revisão dos contratos, disse na época que, desde o início, a Ford foi intransigente. “No primeiro encontro, o negociador designado já chegou dizendo que não estava autorizado e não tinha delegação para conversar”, declarou em entrevista ao jornal Extra Classe. Moraes, que faleceu em março de 2009, revelou que na proposta final do Rio Grande do Sul ficavam mantidos os incentivos fiscais e investimento de R$ 70 milhões em recursos, mais R$ 85 milhões em obras, o que daria cerca de R$ 255 milhões. Além de R$ 75 milhões que seriam investidos no porto de Rio Grande. Moraes afirmava também que o desinteresse da Ford se deveu muito à mudança do mercado brasileiro, em que havia a perspectiva de produzir e vender de 3,5 milhões a 4 milhões de carros, o que não aconteceu. (Publicado originalmente no jornal SUL21, acessível no endereço www.sul21.com.br)
Leia abaixo trechos da decisão “Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE a Ação Ordinária ajuizada pelo Estado do Rio Grande do Sul contra a FORD Brasil Ltda. para o efeito de DECLARAR RESCINDIDO o contrato celebrado entre as partes objeto da presente demanda, por inadimplemento contratual da ré e CONDENAR a ré na restituição ao autor dos seguintes valores: R$ 42.000.000,00 (quarenta e dois milhões de reais), que deve ser corrigido pelo IGPM a contar de 23/03/1998 e acrescido de juros legais de 6% ao ano a contar da citação até a entrada em vigor do novo Código Civil, em 10/01/2003, e de 12% ao ano a contar de tal data, do qual deve ser abatido o valor de R$ 6.349.768,96 ( seis milhões, trezentos e quarenta e nove mil, setecentos e sessenta e oito reais e noventa e seis centavos), atualizado pelo IGPM a contar de 1º/11/2001; R$ 92.100.949,58 (noventa e dois milhões, cem mil, novecentos e quarenta e nove reais e cinquenta e oito centavos), a ser corrigido pelo IGPM a contar da data de cada apropriação conforme planilha apresentada pelo perito contábil na fl. 2089, e acrescido de juros legais de 6% ao ano a contar da citação até a entrada em vigor do novo Código Civil, em 10/01/2003, e de 12% ao ano a contar de tal data; e R$ 32.989,60 (trinta e dois mil, novecentos e oitenta e nove reais e sessenta centavos), atualizado pelo IPGM a contar da data do ajuizamento do pedido e acrescido de juros legais de de 6% ao ano a contar da citação até a entrada em vigor do novo Código Civil, em 10/01/2003, e de 12% ao ano a contar de tal data. Considerando a sucumbência recíproca, arcará o autor com as custas no percentual de 10% e a ré, com o restante. Condeno, ainda, o autor, no pagamento de honorários advocatícios em favor do procurador da ré, que fixo em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), e a ré, no pagamento de honorários advocatícios ao procurador do autor, que arbitro em R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais), observada a natureza da causa, o tempo que tramita o feito e o trabalho desenvolvido, com compensação. Publique-se. Registre-se. Intimem-se.” Porto Alegre, 15 de dezembro de 2009. Lílian Cristiane Siman, Juíza da 5ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de Porto Alegre.
Rádio comunitária
No dia 18 de julho, a emissora comunitária Rádio Cantareira, da região da Brasilândia, na periferia de São Paulo, será inaugurada oficialmente – depois de ficar quatro anos fora do ar devido à perseguição da Anatel e da Polícia Federal. A volta da Cantareira – uma das poucas rádios comunitárias autorizadas na capital paulista – representa importante conquista dos moradores daquela região. Uma vitória da comunicação popular!
Tortura estatal
O Dia Internacional de Luta contra a Tortura – 24 de junho – será marcado por manifestações em várias cidades brasileiras, especialmente para denunciar as violências praticadas por agentes do Estado contra os pobres, os negros, os jovens e os movimentos sociais populares que lutam por melhores condições de vida. Em São Paulo, haverá ato público na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, às 14 horas.
Terra estrangeira
De acordo com o jornal Correio Braziliense (09.06.2010), mais de 4,3 milhões de hectares de terras foram comprados por empresas estrangeiras nos últimos anos, principalmente nas regiões Centro-Oeste e Sudeste. Estão plantando soja, cana, algodão e eucalipto – tudo para exportação. Essa movimentação provocou o aumento nos preços das terras em mais de 300%. O que vai sobrar para o povo brasileiro?
Avanço predador
O deputado federal Aldo Rebelo, do PCdoB, se juntou aos ruralistas para alterar o Código Florestal e reduzir áreas de proteção ambiental nas propriedades rurais. Em nome de um suposto desenvolvimento e de uma suposta ampliação da produção de alimentos, as mudanças propostas representam mais um retrocesso para favorecer o latifúndio, o agronegócio e o capital estrangeiro, com sérios danos ambientais.
Piada pronta
Em discurso na 1ª Conferência Internacional Infanto-Juvenil Vamos Cuidar do Planeta, no dia 11, o ministro da Educação, Fernando Haddad, conclamou os presentes para o desafio de proteger o meio ambiente. Até parece que ele não está num país que estimula a monocultura do agronegócio, permite o uso abusivo de agrotóxicos proibidos em outros países e premia o desmatamento com incentivos fiscais. Pode?
Cursinho popular
O Instituto Voz Ativa, de Campinas, inaugurou dia 12 o seu cursinho popular pró-vestibular para jovens que não têm condições de pagar um cursinho privado. Tenta, assim, contribuir para que um número maior de alunos de escolas públicas que conclui o ensino médio consiga ingressar na faculdade. Atualmente apenas 12% dos jovens de 18 a 24 anos chegam ao ensino superior. Informações pelo telefone (19) 4141-4746.
Assalto central
O Banco Central promoveu novo aumento na taxa básica de juros, passou de 9,50% para 10,25% ao ano. O Brasil tem transferido anualmente mais de 6% do PIB para os especuladores de sempre, uma minoria de banqueiros e rentistas. Essa quantia é maior do que o orçamento federal da educação e de outras áreas sociais juntas. É um assalto aos cofres públicos que perpetua a desigualdade. Até quando?
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Maior aquífero do mundo pode ser entregue para estrangeiros MEIO AMBIENTE Agência Nacional de Águas pretende abrir licitação internacional para estudar aquífero Alter do Chão Zilda Ferreira
Zilda Ferreira de Santarém (PA) O GOVERNO federal estaria em vias de iniciar a privatização do maior aquífero, em volume de água, do mundo. A preocupação é manifestada pelo geólogo Milton Matta, da Universidade Federal do Pará (UFPA), responsável pela descoberta, anunciada em abril, de que Alter do Chão é um aquífero quase duas vezes maior (86 mil quilômetros cúbicos de água ) do que o Guarani (45 mil km³), tido até então como o mais volumoso do planeta. De acordo com ele, a Agência Nacional de Águas (ANA) pretende abrir uma concorrência internacional para pesquisar o aquífero. “Não entendemos porque que a licitação teria que ser internacional. O aquífero Alter do Chão é exclusivamente brasileiro e amazônico”, afirma em entrevista que pode ser lida na íntegra nesta página. Os moradores da vila balneário Alter do Chão, localizada às margens do rio Tapajós no município de Santarém (PA), observam com apreensão a movimentação de algumas gigantes transnacionais na região. O HSBC- Hong Kong and Shangai Banking Corparation, o maior banco do mundo com sede em Londres, já está em Alter do Chão. A instituição financia atualmente dois projetos da ONG Vila Viva. Os alemães, por seu lado, já fincaram os pés na região de Santarém há mais tempo, princi-
O maior aquífero do mundo se encontra ameaçado por interesses econômicos
Para o professor Edilberto Ferreira da Costa, agora, o eldorado dos europeus é a região do Alter do Chão palmente através da Fundação Konrad Adenauer. Para o professor Edilberto Ferreira da Costa, formado em letras e pesquisador de
folclore, de origem indígena Borari, agora, o eldorado dos europeus é a região do Alter do Chão. Isso porque eles não buscam mais ouro amarelo,
Região foi objeto de diversos estudos de Santarém (PA) O aquífero Alter do Chão, cujo volume de água poderia abastecer a população mundial durante 100 anos, tem uma abrangência genuinamente nacional. Ele se estende pelo oeste da Amazônia brasileira, nos estados do Pará, Amazonas e Amapá. Entretanto, para que se possa afirmar com precisão sua extensão, ainda é necessário um estudo mais aprofundado. Restam, contudo, poucas dúvidas de que não seja o que possui o maior em volume de água, uma vez que está abrigado debaixo da maior bacia hidrográfica do mundo, a amazônica.
Segundo o professor de geografia Daniel Lima Fernandes, o aquífero foi descoberto em 1958 pela Petrobras, quando a empresa perfurou Alter do Chão à procura de petróleo. Diversos pesquisadores brasileiros já se debruçaram sobre a região. Fernandes, por exemplo, participou, em l996, do “Estudo Primaz Alter do Chão”, coordenado por uma equipe de geólogos da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM). Esse estu-
Para professor paraense, licitação planejada pela ANA não tem sentido de Santarém (PA) Confira abaixo entrevista na qual o geólogo Milton Matta, da Universidade Federal do Pará (UFPA), comenta as potencialidades e analisa o risco de privatização do aquífero de Alter do Chão. Brasil de Fato – Há quanto tempo o senhor e a equipe de pesquisadores da UFPA estudam o Aquífero Alter do Chão?
Terezinha da Costa nasceu e sempre morou em Alter do Chão
do já citava a tese de doutorado “Recursos Hídricos Subterrâneos de Santarém”, ainda não publicada, do pesquisador Antonio Carlos F.N.S. Tancredi, da UFPA, na qual registrava que os dados hidrológicos levantados pela equipe do Primaz, na área urbana de Santarém, se referiam basicamente ao sistema aquífero de formação Alter do Chão. Essa história é confirmada por dona Terezinha Lobato da Costa, 75 anos, de origem Borari, que nasceu e sempre morou em Alter do Chão: “Eu conhecia bem o pessoal da Petrobras, que esteve aqui de 1953 até 1958”. Além do “Estudo Primaz”, há pesquisas feitas pela comunidade acadêmica da Universidade Federal do Pará e também pelo Inpa, desde a década de 60.
Alerta
Outro fato que merece destaque é a pregação do cientista político alemão Michael Dutschke, autor de um dos capítulos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) defendendo a internacionalização da Amazônia, conforme noticiou a Folha do Meio Ambiente, em novembro de 2007, quando ele esteve no Brasil.
“Acho isso um absurdo” Zilda Ferreira
“Eu conhecia bem o pessoal da Petrobras, que esteve aqui de 1953 até 1958”
querem o ouro azul, a água. “Não é à toa que o príncipe Charles veio aqui [em março de 2009]. Antes vieram muitos cientistas, principalmente europeus. Em l852, Henry Wallter Bates passou nove dias em Alter do Chão. A minha maior honra é ser o primeiro, nascido em Alter, a escrever sobre a história da Vila. Tudo na nossa cultura gira em torno da água”.
O Tratado de Lisboa, ou Tratado Reformador, que emenda os anteriores, foi assinado em 2007 e entrou em vigor em dezembro de 2009, pouco antes da Conferência de Copenhague. Ele destaca que a luta contra as alterações climáticas e o aquecimento global são objetivos da União Européia. Há denúncias de que esse tratado é intervencionista e o alvo é a Amazônia. Darciley Viana de Vasconcelos, líder comunitária, tomou conhecimento do Aquífero há 10 anos, através de um pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), mas não tinha dimensão do potencial do aquífero Alter do Chão. Agora, a divulgação assusta e pode acelerar a privatização de riquezas brasileiras, como a terra e, principalmente, a água. “Aqui é uma comunidade tradicional de origem indígena Borari. E, como se sabe, índio, normalmente, não tem documento da terra e, por isso, alguns já foram expulsos e tiveram suas casas queimadas. O problema fundiário está se agravando e eu gostaria de fazer parte do MST, porque eles são organizados. Na minha opinião, a denúncia da revista Veja de que há falsos índios em Alter do Chão é um alerta do que vem por aí. É preciso que o governo assegure aos habitantes do lugar o que eles têm direito”, concluiu Darciley, depois de lamentar a situação precária dos índios para enfrentar a especulação imobiliária.
Em 1996, o professor Antonio Carlos F.N.S. Tancredi, do Centro de Geociências da UFPA, curso de pós-graduação em Geologia e Geoquímica, apresentou a tese para obtenção do grau de doutor em ciências, na área de geoquímica, “Recursos Hídricos Subterrâneos de Santarém”, que destaca o sistema hidrológico da Formação Alter do Chão com detalhes, onde ele enfatiza o seu potencial. Porém, de modo geral, a população da região de Santarém só soube do potencial de água do aquífero Alter do Chão pela TV Globo, neste ano. As pessoas se sentiram traídas e desrespeitadas, pois o problema de falta d’água em Santarém é crônico há décadas. E estão em cima de um tesouro, ao qual nem sempre têm acesso. (ZF)
Milton Matta – O Aquífero Alter do Chão já é nosso conhecido e de toda a comunidade científica da Amazônia, desde a década de 60, mas ninguém jamais expressou vontade de estudar isso de forma sistemática. Eram somente poços isolados que abasteciam comunidades específicas. Meu grupo de pesquisa, depois que defendi minha tese de doutorado, em 2002, e calculei a reserva hídrica de outro sistema aquífero [aquífero Pirabas] resolveu investigar o aquífero Alter do Chão mais de perto. Isso iniciou ano passado. Como o senhor concluiu que havia a possibilidade deste Aquífero ter o maior volume de água do planeta?
Quando iniciamos o cálculo de sua reserva hídrica, percebemos que sua enorme espessura, extensão lateral e propriedades hidrodinâmicas eram compatíveis com os números que foram divulgados.
Qual foi o volume estimado e qual a região
de abrangência do Aquífero Alter do Chão?
O volume estimado é de 86 mil quilômetros cúbicos de água. O suficiente para abastecer 31,4 trilhões de piscinas olímpicas; 29,3 milhões de Maracanãs, 35,2 mil Baías da Guanabara e 8.600 vezes o volume de óleo do pré-sal.
“Hoje não se tem qualquer controle sobre o que vai ser feito com esse aquífero. Não se tem nem planos para uso e proteção de suas águas” Porque a população de Santarém e da Vila Alter do Chão – e os paraenses de modo geral – tomaram conhecimento do potencial deste aquífero pela TV Globo?
Não sei. Quem liberou todas as notícias fui eu. E eu dei notícia pela primeira vez para uma jornalista do jornal Diário do Pará, que deve ter pequena circulação na região de Santarém. Depois disso, a notícia se espalhou muito rápido por vários elementos da mídia, saindo em diversos idiomas, inclusive. Como a Rede Globo é a cadeia de maior penetração no Pará, pode ser que muita gente tenha sabido disso pela TV Globo.
Ninguém pode preservar aquilo que não conhece. Há perigo de poluírem essas águas. O senhor não acha que esta falta de conhecimento da população é uma falha da academia?
Porque da academia? A academia, por meu intermédio, estudou e divulgou o assunto. Mas não pode, não tem essa função e nem tem verba pra dar conhecimento disso à população. Há muito medo da população da Vila de Alter do Chão de que a água do aquífero seja privatizada. Essa preocupação tem fundamento?
Tem sim. Hoje não se tem qualquer controle sobre o que vai ser feito com esse aquífero. Não se tem nem planos para uso e proteção de suas águas. Soube-se que a ANA vai divulgar um edital fazendo uma licitação internacional para contratar estudos sobre o Alter do Chão. Eu, particularmente, acho isso um absurdo. A licitação em si não teria sentido, uma vez que existe um grupo que o conhece, que o está estudando, que é da região e que por isso mesmo conhece as condições socioeconômicas e políticas locais. Isso, associado à competência profissional desse grupo, sua vasta experiência na matéria, demonstrada pelos inúmeros trabalhos publicados nas últimas décadas sobre o assunto, já justificaria a não realização de licitação.
O senhor e a comunidade acadêmica da UFPA aprovam a proposta da ANA de abrir edital internacional de licitação para pesquisar o potencial do Aquífero do Chão?
Já respondi parte disso na questão anterior. E não entendemos porque que a licitação teria que ser internacional. O aquífero Alter do Chão é exclusivamente brasileiro e amazônico. O aquífero que é transfronteiriço é o Guarani, esse sim, precisa de arranjos internacionais para seu uso e proteção, uma vez que passa por diferentes países. (ZF)
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cultura
Documentário denuncia desastre ambiental em ilha fluminense
Fotos: FioCruz
IMPACTOS AMBIENTAIS Filme que será lançado ainda neste ano mostra como a vida dos moradores da Ilha da Madeira foi afetada por grande projetos econômicos Talita Rodrigues do Rio de Janeiro (RJ) AS AGRESSÕES ambientais ocorridas na Ilha da Madeira, localizada no município de Itaguaí (RJ), e as consequências desses impactos na vida dos pescadores do local são o tema central do documentário “Território de sacrifício ao deus do capital: O caso da Ilha da Madeira”. O vídeo foi produzido por pesquisadores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e mostra como a vida dos moradores da ilha foi afetada com a chegada de grandes empreendimentos econômicos à região do Porto de Itaguaí. Considerada estratégica economicamente por estar localizada entre os maiores centros industrias do país e sediar um dos maiores portos do Brasil, a região sofreu grandes impactos ambientais a partir da década de 1950. Além das indústrias que se instalaram na própria Ilha da Madeira, as empresas do entorno também geram vários poluentes industriais que trazem consequências para a vida, o trabalho e a saúde dos moradores da localidade.
“Eles dizem que o poder público mudou até o nome da Ilha da Madeira, que é muito associada a conflitos ambientais, e passaram a chamá-la de Porto de Itaguaí” O nome do documentário é uma referência ao termo “Zona de Sacrifício”, utilizado por alguns autores para definir áreas determinadas pelo poder público para receber empreendimentos econômicos. Normalmente, são regiões vulneráveis socialmente, com população de baixo nível socioeconômico. “No caso da Ilha da Madeira, os moradores e pescadores foram coagidos pelo poder público a aceitar as indenizações e imposições das
empresas. Eles minam as resistências da população para que ela aceite coisas como se mudar de suas casas, por exemplo, para abrir espaço para a instalação das indústrias”, conta Marcelo Bessa, coordenador do projeto de pesquisa “A construção compartilhada de cenários exploratórios e prospectivos entre atores envolvidos em conflitos socioambientais – O caso do passivo ambiental da Companhia Mercantil e Industrial Ingá”, que gerou o filme. A ideia de produzir o documentário foi dos próprios moradores que participaram da pesquisa e que queriam dar mais visibilidade à situação que enfrentam. “Muitos relatam que se sentem invisíveis e sem identidade. Eles dizem que o poder público mudou até o nome da Ilha da Madeira, que é muito associada a conflitos ambientais, e passaram a chamá-la de Porto de Itaguaí”, diz Marcelo. No filme, moradores e pescadores da ilha fazem relatos sobre o conflito ambiental e como isso afeta suas vidas. Eles contam como era a ilha antes da chegada das indústrias e falam sobre as pressões feitas pelo poder público para que os moradores deixem suas casas e abram espaço para a instalação das empresas. “Todo o filme foi feito com a colaboração dos moradores, que participaram de diversas oficinas durante a produção do documentário e ajudaram a elaborar o roteiro do vídeo”, afrima Marcelo, acrescentando que será realizada uma sessão especial para que os moradores possam assistir ao resultado final. O documentário foi dirigido por Fabiana Melo Sousa, do Laboratório Territorial de Manguinhos (LTM) e teve o apoio do Núcleo de Tecnologias Educacionais (Nuted) da EPSJV. O documentário estará disponível, em breve, no site da EPSJV (www.epsjv. fiocruz.br) e também poderá ser solicitado por pessoas ou instituições que tenham interesse no vídeo gerado pela pesquisa. Madeira e Ingá A Ilha da Madeira é um bairro do município de Itaguaí, reduto tradicional de pescadores, que hoje tem cerca de três mil habitantes. Inicialmente, a localidade foi povoada por portugueses que a batizaram com o mesmo nome da famosa ilha pertencente ao seu país natal.
A partir da década de 1950, Ilha da Madeira passa a sofrer com problemas ambientais
A Companhia Mercantil e Industrial Ingá, que era beneficiadora de zinco para exportação, se instalou na Ilha da Madeira na década de 1950 e encerrou suas atividades no final dos anos de 1980, quando faliu Na década de 1950, o local foi ligado ao continente por meio de um aterro, para facilitar o acesso. A Companhia Mercantil e Industrial Ingá, que era beneficiadora de zinco para exportação, se instalou na Ilha da Madeira na década de 1950 e encerrou suas atividades no final dos anos de 1980, quando faliu. Durante esse período, a Ingá criou um grande passivo ambiental para a localidade, pois, para a produção do zinco, que é extraído da calamina (um tipo de minério), há um processo industrial que gera subprodutos como o cádmio, o níquel e o próprio zinco. Esses resíduos, que chegaram a 3,5 milhões de toneladas, eram depositados em uma lagoa artificial, criada pela empresa e ligada à Baía de Sepetiba, e causaram a contaminação do solo, da água subterrânea, da água do mar, dos manguezais e da própria baía. “A relação entre a Ingá e os pescadores sempre foi conflituosa e, com o passar dos anos, só piorou. São duas atividades difíceis de conciliar: uma é industrial e poluente e a outra é extrativa e artesanal”, explica Marcelo. A Ingá chegou à Ilha da Madeira antes da criação da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente
(Feema), atual Instituto Estadual do Ambiente (Inea), o que aconteceu na década de 1970. “A empresa se instalou antes de existir uma política estadual de controle ambiental. Depois, a Ingá foi notificada várias vezes pela Feema, mas continuou poluindo”, destaca Marcelo. Com a falência da Ingá e o fim de suas operações na Ilha da Madeira, o poder público elegeu um síndico para administrar a massa falida e o passivo ambiental da empresa, incluindo as indenizações dos moradores prejudicados pela atividade industrial. Em 2008, a Usiminas arrematou a massa falida da Ingá em um leilão. Com isso, a Usiminas teria, entre outras coisas, que indenizar os moradores, mas esse leilão gerou ainda mais conflitos e é questionado por diversas ações judiciais. Projeto O projeto de pesquisa de Marcelo foi iniciado em 2009 e concluído neste ano, com financiamento da Coordenação Geral de Vigilância em Saúde Ambiental do Ministério da Saúde (CGVAM/ SVA/MS). Os pesquisadores do Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde (Lavsa) da EPSJV trabalharam em conjunto com as associações de
pescadores da localidade – Aplim (Associação de Pescadores e Lavradores da Ilha da Madeira) e Apaim (Associação de Pescadores Artesanais da Ilha da Madeira). “O objetivo do projeto era desenvolver uma metodologia participativa, que possibilitasse aos moradores da região uma melhor capacidade de denúncia e de organização em seu território. Nossa intenção era conhecer os interesses, preocupações e percepções dos envolvidos no conflito ambiental da Ilha da Madeira”, explica Marcelo. Por meio de entrevistas semi-estruturadas, grupos focais, oficinas de planejamento local e pesquisa documental, os moradores foram estimulados a falar sobre sua realidade e seu futuro, reconhecendo seus problemas e propondo soluções. Nas falas, os pescadores identificaram como principais problemas da ilha as transformações acontecidas no território, com a instalação das empresas e do porto, e a degradação do ecossistema marinho e do ambiente urbano. Uma das consequências diretas no cotidiano dos moradores é que, com a instalação do Porto de Itaguaí e, futuramente, do Porto Sudeste e de um estaleiro da Marinha, a área de navegação é cada vez mais restrita, reduzindo o espaço de trabalho dos pescadores. “Além da contaminação, que diminui a qualidade e a quantidade do pescado, ainda há a restrição da produção. Alguns tipos de frutos do mar, como as ostras, mariscos e camarões são altamente vulneráveis à contaminação. O mangue também está totalmente contaminado porque o sedimento
poluente se deposita no leito dos rios”, observa Marcelo.
Uma das consequências diretas no cotidiano dos moradores é que, com a instalação do Porto de Itaguaí e, futuramente, do Porto Sudeste e de um estaleiro da Marinha, a área de navegação é cada vez mais restrita, reduzindo o espaço de trabalho dos pescadores O não pagamento das indenizações devidas aos moradores por causa do passivo ambiental da Ingá também é apontado como um dos principais problemas. Como soluções para os problemas identificados, os moradores indicam a maior mobilização da comunidade, maior publicização dos problemas, a revisão dos processos de indenização e a implantação de projetos para cultivo de mexilhões e criação de algas marinhas, para gerar renda para os habitantes do local. (Publicado originalmente no site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz)
A instalação do porto restringiu o trabalho dos pescadores e provocou a contaminação do meio ambiente
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internacional White House
Oriente Médio refém dos EUA
Alinhados, presidentes dos Estados Unidos e Israel enfrentam críticas da comunidade internacional
GEOPOLÍTICA Imperialismo estadunidense ainda se sobrepõe à emergência turca Eduardo Sales de Lima da Redação UM PAÍS FOI sancionado pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), controlado pelos Estados Unidos. O outro atacou uma flotilha que levava alimento e ativistas pacifistas à Faixa de Gaza. Irã e Israel. Os dois países remexeram, nos últimos anos, o xadrez geopolítico do Oriente Médio. A tensão ampliou-se, sucederam-se novos atores. Entretanto, só haverá efetividade na busca pela paz na região quando os Estados Unidos decidirem que isso ocorra. Com o ataque à Frota da Liberdade, em 31 de maio, Israel tentou, por meio da intimidação, limitar a atuação diplomática de novos atores globais. Na edição 379 do Brasil de Fato, o jornalista palestino-estadunidense Ramzy Baroud lembrava que “Israel precisou agir para criar o tipo de caos que poderia levar a região a uma confrontação e, posteriormente, ao envolvimento dos Estados Unidos, desencorajando atores de fora, como o Brasil, da tentativa de mediação”. Ele afirmava que, quando a tempestade abaixasse, “a Turquia teria que se reposicionar.” De fato, é necessário que o mundo espere o “baixar da
“A política externa de seus principais aliados, Turquia, Arábia Saudita e Israel, é influenciada e abonada por Washington” poeira”, pois não será simples dividir “bons” e maus”, “islâmicos e ocidentais”, simplesmente porque não existirá semelhante polarização. De acordo com o professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Virgílio Arraes, existe um número significativo de potências médias na região e adjacências – Israel, Arábia Saudita, Turquia, Irã, Síria e mesmo Egito, que se emaranham entre acordos pontuais. “Nenhuma delas aceitaria a primazia das demais, basta lembrar a tentativa do nacionalismo pan-arábico, sob liderança do então presidente Gamal Abdel Nasser do Egito, como contraponto ao sionismo nos anos 1950. O resultado foi efêmero”, recorda Arraes. “Chutar amigos” Mesmo em meio à poeira, é a Turquia que se sobrepõe. A relação Turquia-Israel, bem antes do ataque à flotilha, desmorona há meses. Em janeiro, Israel convocou o embaixador turco em Tel-Aviv para dar explicações sobre um seriado turco que exibia israelenses matando civis. O diplomata foi propositalmente colocado em um sofá rebaixado, cena que enfureceu os turcos. Logo depois, a Turquia cancelou exercícios militares que faria com Israel em seu território. Ancara exigiu o pedido de desculpas e Israel, muito relutantemente, acatou.
Para Arlene Clemesha, professora da USP especialista em história árabe, apesar do fato parecer apenas um litígio diplomático, o episódio não pode ser visto de modo isolado. “É muito estranho que o governo israelense tenha destratado aquele que até então era seu maior aliado entre os países islâmicos”, lembra Clemesha. A voz do sociólogo José Farhat engrossa o coro com a da historiadora. Para ele, “seria inimaginável há alguns meses que esse país, de maioria islâmica, assumisse iniciativas completamente contrárias aos interesses de Tel Aviv”. Veio então o ataque à flotilha, e Israel conseguiu reforçar um posicionamento turco avesso à sua política externa. Fez também com que “os países árabes que reconheciam o Estado judeu se afastassem dele”, como afirma Farhat. Por afastar até possíveis aliados, o sociólogo destaca que “Israel prima por matar inimigos e chutar amigos, aliados ou mais ou menos”. Virgílio Arraes explica, por meio da história recente turca, a existência de um certo “desejo natural” do país de atuar como mediador de conflitos na região. De acordo com ele, por completar quase um século de proximidade política da Europa e aspirar a reiteração disso por meio de seu ingresso na União Europeia desde 2005, o andamento do processo está naturalOrganização das Nações Unidas
O primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, pediu punições a Israel pelo ataque à frota
mente vinculado à conservação do país como alinhado ao Ocidente. Além disso, segundo ele, o país trabalha como contrapeso laico ao crescente fundamentalismo na região médio-oriental. “A Turquia, por ser sucessora do Império Otomano, deseja posicionar-se como mediadora constante e natural na região; portanto, não subscreverá a posições extremadas por lá”, salienta Arraes. Império A “chutada” Turquia ganha peso numa nova conformação geopolítica da região, em que a divisão tácita entre países pró-Irã ou pró-Israel é descartada tanto por Arraes, como por Clemesha. Entretanto, apesar da complexidade política interna e da emergência turca, existe o fator Estados Unidos, imprescindível para deduzir novas conjunturas e novas alianças no Orien-
te Médio; seu peso decisório prepondera sobre qualquer tipo de acordo regional. Para ilustrar, ao passo que no dia 9 de junho o Conselho de Segurança da ONU, capitaneado pelos Estados Unidos, aprovou a quarta rodada de sanções econômicas contra o Irã, devido ao seu suposto programa nuclear bélico, os estadunidenses consideraram como “um passo à frente” o anúncio feito por Israel, de que o próprio governo irá investigar o ataque à Frota da Liberdade, no dia 31 de maio. Na ocasião, nove militantes turcos foram assassinados e 20 pessoas foram feridas por integrantes das forças armadas israelenses. De acordo com Arraes, o destino da região liga-se diretamente à postura da política externa de Barack Obama sobre ela. “A política externa de seus principais aliados, Turquia, Arábia Saudita e
Israel, é influenciada e abonada por Washington”, destaca. Quer dizer, para ele, uma mudança de postura de seus aliados só ocorrerá quando a Casa Branca alterar a sua política, “o que não é possível vislumbrar no curto prazo”. Mais que se vislumbrar, à curto prazo, já é possível testemunhar o aumento da tensão bélica na região, apoiada justamente por tal política da Casa Branca. Em dezembro de 2009, houve um acordo entre os dois países para aumentar a quantidade de armas para um valor de 800 milhões de dólares, incluindo foguetes, bombas e veículos blindados. De acordo com o jornal israelense Ha’aretz, o país também deseja comprar dos Estados Unidos mais bombas guiadas por satélite, já utilizadas no ataque ao Líbano em 2006 e em sua ofensiva a Gaza no final de 2008 e começo de 2009.
Pior cenário para Israel Egito e Turquia oferecem mediação para reconciliação entre Hamas e Fatah da Redação O presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, disse à emissora turca “NTV” que a melhor resposta ao ataque de Israel à Frota da Liberdade seria uma reconciliação entre o Fatah e o Hamas. Tratam-se das duas principais organizações políticas palestinas. O Hamas, que controla a Faixa de Gaza, e o Fatah, que governa na Cisjordânia, romperam relações em meados de 2007. As negociações entre os dois grupos foram retomadas após a ofensiva militar israelense em Gaza, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009. A ofensiva matou mais de 1,3 mil palestinos e danificou boa parte da infraestrutura do território. O Hamas não descarta uma reconciliação, o que é bastante relevante, e aceitaria a mediação do Egito, tradicional aliado de Israel e que, inclusive, ajudava com o cerco à Gaza, fechando a fronteira entre Gaza e Egito. Entretanto, além do Egito, mais um país está disposto a participar dessa reconciliação. No dia 7 de junho,
O Hamas não descarta uma reconciliação, o que é bastante relevante, e aceitaria a mediação do Egito, tradicional aliado de Israel a Turquia, por meio do seu primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, afirmou em Istambul que está disponível para desempenhar um papel ativo num processo de reconciliação entre as duas organizações palestinas.
“Essa união seria o pior cenário para Israel; em vários planos; seja na pressão política entre os governos, seja na mudança na opinião pública internacional”, destaca a historiadora Arlene Clemesha. (ESL)
Novas sanções O Conselho de Segurança da ONU aprovou, no dia 9 de junho, novas sanções contra o Irã por causa de seu programa nuclear, segundo países ricos, contendo objetivos bélicos. Trata-se da quarta rodada de sanções, que abrangem o veto a investimentos exteriores iranianos em atividades e instalações ligadas à produção de urânio. Somadas a isso, serão estabelecidas restrições na venda de armas convencionais ao Irã. O país também será proibido de fabricar mísseis com capacidade de carregar ogivas nucleares. Em relação às operações financeiras e comerciais, as novas restrições buscam atingir, mais uma vez, a influência financeira da Guarda Revolucionária. O efeito disso, segundo diversos especialistas, é apenas simbólico. (ESL)
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internacional
“Eles vieram e mataram mesmo” Humanitarian Reliei Foudation IHH
MASSACRE EM ALTO MAR Em entrevista, a cineasta brasileira Iara Lee, integrante da Frota da Liberdade, conta sua experiência a bordo do navio atacado por Israel Igor Ojeda da Redação IARA LEE, a única brasileira integrante da missão humanitária atacada por Israel a caminho da Faixa de Gaza, na Palestina, não tem outro adjetivo para se referir ao incidente: carnificina. A ação, ocorrida em 31 de maio, deixou, até o momento, um saldo de nove mortos, todos integrantes do navio Mavi Marmara, onde ela estava. “Fiquei preocupada, pensando no que estava acontecendo com meus amigos, com o pessoal da minha equipe. Quando subi, vi um monte de mortos, de machucados. Foi um negócio rápido”, conta. Em entrevista ao Brasil de Fato, ela relata, entre outros assuntos, o ataque, os momentos na prisão em Israel e a suspeita de que agentes israelenses se infiltraram na missão. Brasil de Fato – Como você começou a entrar em contato com a causa palestina?
Iara Lee – Em 2003, eu fiquei injuriada que os EUA, mesmo com milhões de pessoas na rua protestando, invadiram o Iraque e começaram a matar o pessoal por lá. Então, fui ver o que rolava naquela parte do mundo, para entender um pouco mais. Desde então, tenho tido uma devoção total a tentar entender e aprender, a ver qual é o lado deles. Obviamente, ninguém é santo, mas a situação de calamidade em que se encontram os palestinos é uma coisa terrível. É muito triste ver que oprimidos viram opressores. Os judeus tiveram todos esses problemas no passado e, agora, comportam-se pior ainda.
“Os israelenses acharam que ninguém ia ver a carnificina porque tinham cortado todos nossos satélites. Mas a gente tinha um satélite de backup, então, conseguiu transmitir um pouco o ataque” Nessa época, você também esteve na Palestina ou só no Iraque?
Na verdade, não consegui entrar no Iraque. Fiquei na Jordânia, tentando entrar. Na Palestina, também. Quando tentei entrar, não deixaram. Tentei entrar de novo em 2004. Mas, do aeroporto de Tel-Aviv, botaram-me na prisão e, depois, me deportaram. E falaram que eu nunca mais iria poder entrar. Vocês sabem como eles são, né? Se você mostra um pouco de solidariedade aos palestinos, já te colocam na lista negra. Finalmente, consegui entrar em Gaza entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010, com a Gaza Freedom March [Marcha da Liberdade de Gaza]. Fiquei dois dias e meio e já nos mandaram embora. Fomos obri-
Frota de ajuda humanitária internacional parte da Turquia para Gaza, mas no caminho é atacada por Israel
gados a sair. E, agora, estava voltando para Gaza com essa carga humanitária quando ocorreu essa carnificina. O que você viu em Gaza quando esteve lá nesses três dias? Qual foi sua impressão? A coisa é tão feia quando a gente imagina?
É claro! Se você está atacando a infra-estrutura básica do país... os caras não têm nem saneamento básico, nem acesso à água limpa. Isso é um absurdo. Os israelenses bombardearam os prédios da ONU, a única fábrica de farinha, as escolas, os hospitais... isso é um crime internacional. É uma crise humanitária total. Mas aí que está. Nunca acontece nada com Israel. Os EUA batem nas costas de Israel e falam assim: “ó, não faz não, tá?”. Os israelenses acharam que ninguém ia ver a carnificina porque tinham cortado todos nossos satélites. Mas a gente tinha um satélite de backup, então, conseguiu transmitir um pouco o ataque. E o mundo inteiro viu e ficou abismado. Vendo esse material, você decide por si mesmo o que foi aquilo. A gente que estava esperando para atacálos ou eles que vieram e atacaram a gente? Era um barco de amor ou de ódio? Você decide por si próprio. Antes da ação, as autoridades israelenses já afirmavam para a opinião pública de Israel que a missão humanitária tinha o objetivo de prestar apoio ao terrorismo. Inclusive usaram essa expressão, “barco do ódio”. O que você acha dessa campanha do governo israelense?
Mas mesmo essa acusação o governo israelense acabou assumindo que era mentira. Não conseguiram provar. Eles jogam uma mentira atrás da outra, o mundo absorve, começam a escrevê-las na imprensa e, depois que as mentiras são desvendadas, a imprensa não desvenda junto. Por isso que a gente tem que fazer, com nossos veículos pequenos, nossas estruturas pequenas, com que a informação verdadeira chegue às pessoas. A gente continua trabalhando, com foto, com vídeo, com depoimento, com investigações, com o que puder. O intuito maior é o de fazer uma pressão internacional para realmente haver uma investigação internacional e independente sobre o que aconteceu e se aplicar a lei internacional. Acho que a gente tem que continuar lutando. Podem me ameaçar de morte, desaparecer comigo, mas eu vou continuar trabalhando. Não vou ficar me submetendo às ameaças. Eu não vou parar de fazer meu trabalho, porque é uma obrigação moral. É uma obrigação que todos nós, seres humanos decentes, trabalhemos pela Justiça. Não é possível ficar só olhando, assistindo pela televisão a todas essas injustiças acontecerem.
“Podem me ameaçar de morte, desaparecer comigo, mas eu vou continuar trabalhando. Não vou ficar me submetendo às ameaças dos caras. Eu não vou parar de fazer meu trabalho, porque é uma obrigação moral” Qual era o perfil dos integrantes da frota? Era muito variado?
Era muito misturado. Tinha desde uma criancinha de um ano até pessoas de 85, 86 anos. O mais velhinho que eu entrevistei tinha 85 anos. Eram pessoas de várias áreas. Religiosos...
Católicos, muçulmanos...?
Católicos, muçulmanos, ateus, agnósticos, tinha de tudo. Foi a viagem mais importante da minha vida, porque eu sentia no ar aquela motivação pela Justiça. Eram de várias áreas. Jornalistas, artistas, voluntários humanitários, enfermeiros... uns que eram só pais de família, outros que estavam lá porque queriam fazer alguma coisa...
Como estava o clima dentro do barco, as conversas...? Vocês estavam confiantes de que poderiam chegar à Faixa de Gaza?
Eu acho que as pessoas eram bem inocentes. Obviamente, não posso falar porque não entrevistei as 400 pessoas. Mas as que eu entrevistei sempre tinham esse otimismo e diziam: “chegaremos lá, vamos abraçar todo mundo que vai estar esperando a gente”. Chegaram ao ponto de falar: “Iara, você que é muito negativa! Você é maluca, você é uma exagerada, uma alarmista. Imagina que os caras vão atacar a gente aqui!”. E eles tiveram o atrevimento, vieram e mataram mesmo! Uma coisa incrível.
Então ninguém esperava uma ação desse tipo. Talvez esperassem uma interceptação, mas não desse tipo, não é?
Claro que não. A gente esperava que ia ser no verbal, com tiros para o ar... Eu, por exemplo, estava ciente de que a gente ia parar na prisão. Já havia lido que eles já tinham limpado uma prisão nova para nós. Mas não imaginava que fossem matar as pessoas! Isso é um absurdo!
E como foi? Onde você estava, o que viu, o que ouviu?
Às 11 horas da noite, mais ou menos, estávamos no meio de águas internacionais e vimos uns dois navios da marinha israelense. Passaram-se as horas, e as pessoas lá, escrevendo na internet, rezando, conversando, outros dormindo... aquela coisa meio tensa, mas ninguém achando que eles nos atacariam no meio da escuridão e em mares internacio-
nais. Mas tiveram a petulância. Cortaram toda a comunicação de satélite e, às 4 horas da manhã, quando tiveram a segurança de que não haveria mais comunicação com o resto do mundo, chegaram e começaram a atacar. Eram vários botes de borracha... Você estava acordada?
Sim. Muita gente estava dormindo, mas muita gente estava acordada. Estava meio tenso o clima. Então, eles mandaram esses barcos, bem silenciosos, cheios de soldados. E já começaram a operação. De repente, eu olhei para o lado e já tinha um helicóptero descendo com um monte de comando. Aí, comecei a ouvir uns tiros. Falei: “nossa, os caras estão atirando!”. Então, gritaram: “mulheres para baixo!”. Eu desci também, e fiquei preocupada, pensando no que estava acontecendo com meus amigos, com o pessoal da minha equipe. Quando subi, vi um monte de mortos, de machucados. Foi um negócio rápido.
A essa hora, você já tinha parado de ouvir os tiros?
Não, os tiros foram contínuos. E eu vendo aquele sangue todo, aquela gente toda. Foi uma coisa muito surreal. Aí, gritaram de novo: “mulheres para baixo!”. Eu já estava quase vomitando...
Quem gritava “mulheres para baixo”? Os soldados ou o pessoal do barco?
Os próprios passageiros. Por isso que não teve nenhuma mulher morta. Quando eu já estava de novo com as mulheres, ouvimos, de repente, um megafone: “olha, acabou a história, não resistam, não se movam, fiquem calmos, porque os caras já pegaram a liderança do navio, estão usando balas mesmo, e não tem nem jeito de vocês quererem resistir com sua cadeira, com sua vassoura...”. Logo em seguida, vieram esses caras com a roupa preta, só mostrando os olhinhos, com aquelas armas gigantescas, como se estivessem numa guerra total. Apontando as armas para a gente, falaram: “olha, fica todo mundo quieto aí, a gente vai começar a algemar todo mundo”. Então, algemaram um por um e mandaram todos para cima, os homens e as mulheres. Nos sequestraram e nos levaram para o porto de Ashdod. Lá, tiraram nossas digitais, confiscaram nossos passaportes e pertences, botaram-nos nos camburões e nos mandaram para a prisão. Ficamos lá, por dois ou três
dias, até conseguirmos fazer com que a embaixada viesse, conseguirmos um advogado, fazermos uma ligação... Depois do terceiro dia, às 6 horas da manhã, começaram a gritar: “vocês vão para casa”. No aeroporto de Tel-Aviv, descobrimos que o primeiro-ministro da Turquia [Recep Tayyip Erdogan] tinha mandado um avião da Turkish Airlines para tirar todo mundo daquela zona. Foi uma grande solidariedade do governo da Turquia. Eles ficaram tão assustados e surpresos com essa agressão que se responsabilizaram por cuidar de todo mundo. Você chegou a afirmar à imprensa que foram mais de nove mortos, porque ainda haveria desaparecidos.
Eu não falo de forma oficial porque, senão, cria muita confusão. Eu perguntei para uma enfermeira e ela disse que eram 14 mortos. Mas ela era turca, ou seja, de repente, teve problema de tradução. Ela não fala inglês e, de repente, não entendeu o que eu perguntei. A gente fica comentando o que um viu, o que não viu. É só especulação. Ontem [dia 11], eu ouvi dizer que não tinha ninguém procurando por esses desaparecidos. Então, algumas pessoas estão especulando de que [os desaparecidos] eram agentes do Mossad [a polícia secreta de Israel]. Isso tudo é especulação, mas, obviamente, eles tinham os espiões lá. Como a gente tinha acesso à internet, víamos que saía no The Jerusalem Post o que a gente estava fazendo nos navios. Como que os caras sabiam, uma hora depois, que a gente tinha feito uma reza, cantado uma canção? Deve ter tido uma certa infiltração. Parece que, quando eles começaram a contatar os navios, sabiam o nome de cada capitão. Teve um soldado que derrubou um caderninho que continha as fotos dos VIPs [lideranças], dos militantes em cada barco... eles sabiam tudo.
morou um tempão para se fazer a checagem dos passageiros. Porque a organização humanitária tinha uma lista, o pessoal do avião outra, Israel outra. Foi aquela confusão para saber se tinha entrado todo mundo no avião ou não. Por isso que é muito importante fazer um esforço e pressão para se ter uma investigação independente. Há ainda muitas questões não respondidas. Uma coisa é certa: foi um crime da parte do governo de Israel, e isso tem que ser levado à Justiça.
“‘Iara, você que é muito negativa! Você é maluca, você é uma exagerada, uma alarmista. Imagina que os caras vão atacar a gente aqui!’” Gostaria que você contasse um pouco como foram os momentos de detenção em Israel. Como os soldados agiam, o que eles falavam?
A gente não sofreu agressões físicas. Não teve aquele abuso de tortura...
Mas eles falavam alguma coisa para vocês?
Aquela grosseria do dia-adia deles. Mas, na parte onde estavam os homens, parece que muitos foram fisicamente torturados. Hoje mesmo [dia 12] recebi uma informação de que foram espancados. Em quem abria a boca e tentava confrontar, os caras batiam mesmo.
O que me chamou a atenção é que todos os mortos eram turcos (um deles, estadunidense de origem turca). Por que aconteceu isso? Foi coincidência?
Como eu disse antes, a gente só pode especular. Obviamente as pessoas ficam intrigadas. A maioria das pessoas de nosso navio era turca. Eu até perguntava se os que foram mortos eram os cabeças dessa organização humanitária [IHH] ou só passageiros. Há muitas perguntas que ainda não foram respondidas. Eu, por exemplo, nem sei onde estão todos os machucados. Quando saímos de TelAviv, não conseguimos evacuar todas as pessoas porque alguns estavam feridos demais. Se os tirássemos por duas horas até chegar em Istambul, eles morreriam. Quando a gente já estava no avião, de-
Quem é Iara Lee é uma cineasta brasileira radicada em Nova York, nos EUA. É autora dos documentários Synthetic Pleasures (1995) e Modulations (1998), entre outros. Membro do conselho do International Crisis Group e da National Geographic Society, já morou no Líbano e no Irã. Militante pela paz no Oriente Médio, colabora com diversas iniciativas nesse sentido, entre elas, a Campanha Internacional pela Eliminação de Bombas de Fragmentação.
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As últimas cartadas de Mockus COLÔMBIA Santos lidera pesquisas e Mockus expõe planos de governo para tentar alcançar concorrente Juan Manuel Vargas
Thaís Romanelli de São Paulo (SP) O FAVORITISMO do candidato situacionista à presidência da Colômbia, Juan Manuel Santos (do Partido Social da União Democrática), no segundo turno das eleições, segue crescendo, de acordo com novas pesquisas divulgadas pela mídia local. Faltando pouco para a eleição, marcada para o dia 20, a corrida pelo voto se intensifica e o candidato opositor do Partido Verde, Antanas Mockus, tenta correr atrás de novos adeptos para alcançar o concorrente. De acordo com levantamento realizado pela Invamer Gallup, empresa de pesquisa de mercado e opinião pública, no segundo turno Santos teria 66,5% das intenções de voto, enquanto Mockus 27,4%. Já o Centro Nacional de Consultoria atribui 60,8% para o candidato do presidente Alvaro Uribe contra 28,3% para o nomeado do Partido Verde. Aparentemente preocupado com a diferença expressa pelas pesquisas, Mockus alfinetou Santos durante viagem de campanha pelas cidades de Medellín e Cartagena. Ele lembrou que, até agora, o candidato do Partido da União Democrática não debateu a questão da corrupção, um dos principais problemas do governo Uribe. Além disso, o oposicionista aproveitou o momento para expor seu plano de governo para o setor educativo, um dos pilares da campanha, e centrou seu discurso em enfatizar que cada voto é importante, porque ele “não é o mesmo que seu rival”. “Não vamos ser puros exportadores de carvão, gás e petróleo. Vamos exportar conhecimento”, disse aos jornalistas no Museu de Arte Moderna de Medellín, durante um ato com centenas de simpatizantes, em sua maioria jovens. Para Mockus, aqueles que têm a “responsabilidade” de melhorar a Colômbia, como ele, precisam “pensar grande”. Um modelo econômico com competitividade, ao lado dos investimentos em educação, é um dos aspectos que o candidato colocou como crucial para não limitar a política colombiana à “sobrevivência a curto prazo”.
As relações entre Bogotá e Caracas entraram em crise há meses, principalmente por causa da assinatura de um acordo militar entre Estados Unidos e Colômbia “Todos dizem que a educação é importante, mas ninguém a incentiva, porque os resultados são colhidos dez ou 15 anos depois”, disse Mockus, que é matemático, filósofo e ex-prefeito de Bogotá. “Precisamos olhar além”, completou. O ex -prefeito de Medellín e candidato a vice-presidente, Sergio Fajardo, será o encarregado de apresentar o programa educativo que o Partido Verde aplicará se chegar ao governo. Para ele, a educação deve ser “um motor de transformação social” e uma das principais medidas a ser priorizadas. “Um projeto de vida começa por um projeto educativo”, insistiu Fajardo. Em sua primeira aparição pública depois de uma operação no quadril que o manteve afastado da campanha durante semanas, Fajardo lembrou que “nunca na história” da Colômbia se pensou em criar um
Juan Manuel Santos, candidato de Uribe, segue crescendo no segundo turno das eleições
imposto “extraordinário” para financiar a educação, como foi o “imposto à guerra” do governo de Uribe, usado sobretudo para combater as Farc e com o qual foram arrecadados mais de 10 trilhões de pesos (equivalente a 5 bilhões de dólares).
Venezuela Durante a viagem por Medellín e Cartagena, Mockus disse que, se eleito, irá “zelar pela relação entre a Colômbia e a Venezuela”. O candidato, que reiterou não ser “chavista”, esclareceu que sempre teve prudência ao falar sobre o líder venezuelano e disse que chegou até a ser convidado por opositores de Chávez para ir a Venezuela, porém, o convite não foi aceito por ser coerente entre o que diz e o que faz com relação ao governo do país vizinho. As relações entre Bogotá e Caracas entraram em crise há meses, principalmente por causa da assinatura de um acordo militar entre Estados Unidos e Colômbia que permite forças estadunidenses a usarem sete bases no país andino para combater o narcotráfico e o terrorismo. Diante disso, Chávez “congelou” em agosto de 2009 as relações com a Colômbia, o que provocou graves consequências para o comércio bilateral. A partir daí, o governo venezuelano deteve, segundo Bogotá, cerca de 20 colombianos acusados de espionagem. Duelo Diante dos resultados expostos pelas últimas pesquisas eleitorais, Mockus advertiu que ainda pode haver uma “surpresa”, como aconteceu no dia 30 de maio. Para o primeiro turno, as pesquisas previam um empate entre Santos e Mockus, mas o candidato governista conquistou mais de 25 pontos de vantagem sobre seu rival. Na ocasião, Santos obteve 46,6% dos votos contra 21,5% de Mockus. “Se apenas ‘a metade’ dos aproximadamente 51% eleitores que não votaram no dia 30 de maio for às urnas no segundo turno, essa surpresa pode acontecer” disse Mockus aos jornalistas, pedindo que as pessoas atuem “com responsabilidade” e exerçam seu direito ao voto. No entanto, os analistas colombianos preveem que, em um país onde o voto não é obrigatório, a abstenção de 20 de junho será ainda maior que a do primeiro turno, já que serão disputadas três partidas da Copa do Mundo no mesmo dia. (do Opera Mundi)
ANÁLISE
Não temos em quem votar Reprodução
Jorge Enrique Robledo Teria sido mais provável que uma vidente, dessas que leem o futuro por meio das cinzas de cigarro ou cartas de baralho, tivesse acertado o resultado das eleições do dia 30 de maio do que as pesquisas de opinião. Não há precedentes, na Colômbia, de tamanha manipulação dessas pesquisas, o que causou muito dano ao Polo Democrático Alternativo (PDA), partido que há quatro anos, com Carlos Gaviria, obteve mais de 2,6 milhões de votos, a segunda votação do país, cifra porcentualmente maior que a obtida por Antanas Mockus e que nunca se qualificou como um “fenômeno” nacional. Deve ter havido festa na Casa de Nariño (sede do governo colombiano) quando as pesquisas apontaram que Gustavo Petro não estaria nos comícios de 20 de junho.
Se restavam dúvidas acerca do pensamento de Mockus, este, igual a Santos, se reuniu com o presidente Uribe para lhe assegurar que cuidaria bem de suas políticas fundamentais O segundo fato a ser comentado são os votos de Juan Manuel Santos, os quais, em uma grande proporção, respondem ao caráter sistemático que este governo deu à manipulação política e a seu enorme aparato de coação clientelista, instrumentos definitivos que levaram ao vergonhoso espetáculo de transfiguração por parte dos barões liberais e conservadores que migraram para o santismo antes do primeiro turno, violando seus compromissos com Rafael Pardo
Antanas Mockus, do Partido Verde, em campanha, tenta correr atrás de novos adeptos
(Partido Liberal Colombiano) e Noemí Sanín (Partido Conservador Colombiano). A campanha do Polo teve que enfrentar a pressão clientelista e uma longa e cínica campanha de calúnias e infâmias, encabeçada pelo próprio chefe de Estado e que contou, segundo a Promotoria, com uma “empresa criminal” dentro do Departamento Administrativo de Segurança (DAS), conspiração encarregada de promover a divisão do Polo e mentir, apresentando seus dirigentes como corruptos e partidários da luta armada. Nestas circunstâncias, os 1,3 milhão de votos obtidos por Gustavo Petro e pela candidata a vice Clara López constituem um resultado satisfatório, pois – assim como os 900 mil obtidos para o Senado em condições ainda piores – mantêm o Polo como opção de poder e de mudança na Colômbia, pois foram alcançados com propostas diferentes das neoliberais dos demais aspirantes e com o decisivo respaldo de um partido que soube mostrar unidade e dar apoio ao seu candidato. A decisão unânime do Comitê Executivo Nacional do Polo de chamar o boicote no segundo turno é fácil de entender. O nome de Santos sequer foi considerado, dado que representa a continuidade do governo de Uribe. Antanas Mockus, do outro lado, rechaçou um acordo formal sobre cinco pontos pro-
Santos teve a astúcia de chamar de “unidade nacional” o que não é outra coisa que a defesa dos interesses das mesmas minorias protegidas pelo governo Uribe gramáticos, entre eles considerar a saúde e a educação como direitos humanos fundamentais e uma política exterior determinada pela soberania econômica, militar e política. Se restavam dúvidas acerca do pensamento de Mockus, este, igual a Santos, se reuniu com o presidente Uribe para lhe assegurar que cuidaria bem de suas políticas fundamentais. As reuniões com Hillary Clinton acabaram por evidenciar sua identidade. O cúmulo teria sido se o Polo tivesse aceitado renunciar a cada uma de suas convicções para respaldar Mockus e, como se fosse pouco, fazer isso mediante uma adesão, submetendo-se à indignidade de atuar de forma parecida como impuseram ao Partido da Integração Nacional (PIN) comportarse quando este aderiu a Juan Manuel Santos. Os fatos mostraram que temos razão e as críticas hoje são preferíveis a não ter a integridade de advertir desde o princípio que as invocações à honra não constituíam razões suficientes para respaldar determinado candidato.
Tudo indica que a horrível noite impulsionada pelo uribismo não irá acabar. Inclusive, pode se tornar mais escura. Santos teve a astúcia de chamar de “unidade nacional” o que não é outra coisa que a defesa dos interesses das mesmas minorias protegidas pelo governo Uribe. Passadas as eleições, poderão regressar ao reduto uribista, convertendo os opositores em comensais. Se pintaram como anjos, tudo para que não exista oposição e se perpetue o reino do esconde-esconde, deixando a concepção falsamente democrática neoliberal sem opositores. Paradoxalmente, essa “Frente Nacional” revitalizada, piorada por meio de séculos de políticas atrasadas, cinismos e corrupção, não demonstra a fortaleza de seus mentores, mas sim sua debilidade. Seguramente, a resistência civil continuará em prol da soberania e da autêntica democracia. (Da Alai) Jorge Enrique Robledo é senador pelo Polo Democrático Alternativo.
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américa latina
O golpe de Estado em Honduras e a necessidade de protagonismo popular ENTREVISTA Poeta e membro da resistência, Candelario Reyes García faz um balanço da situação em Honduras um ano após o golpe Léster Rodríguez y Mayra Oyuela
Adital NO DIA 28, o golpe de Estado em Honduras contra o presidente Manuel Zelaya completará um ano. No decorrer deste período, foram registrados tantos atos de violência e perseguição quanto durante os dias mais próximos ao golpe. Decidida a resistir bravamente contra o cenário de guerra e de ilegalidade que foi construído em Honduras, a população resolveu fundar a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) para conduzir no país uma luta pacífica. Hoje, a principal bandeira levantada pela Frente é o estabelecimento de Assembleia Nacional Constituinte que dê origem a uma Nova Constituição, inclusiva e para o povo, pautada na “dignidade, no bem, na justiça e na paz”. Confira a seguir entrevista com o poeta e membro da resistência Candelario Reyes García, na qual ele discorre sobre a Honduras pós-golpe, o que o episódio provocou na população, os planos e a atuação da Frente. No dia 28 de junho, completa-se um ano do golpe de Estado. Como integrante ativo de mobilizações, como você avalia este período? Como se encontra a resistência da população?
A resistência surgiu como uma resposta imediata ante o golpe, em meio ao silêncio cúmplice dos meios de massa da oligarquia e de uma militarização do país. De início, foi uma reação individual e já na rua, como diz o poema de Mario Benedetti, “cotovelo a cotovelo, fomos muito mais que dois”. Iniciou nas ruas de Tegucigalpa pelas oito ou nove da manhã do dia 28 de junho de 2009 e enfrentou com o protesto aos homens de uniformes manchados e armas de assalto. De maneira individual, um a um, uma a uma, sem mais convocação que o grito interior de sua consciência, o povo começou a sair e foi até a Casa Presidencial para certificar-se e reclamar, ao dar-se conta que a casa, que só um dia antes era de portas abertas para o povo, agora estava militarizada.
“Há um povo que assumiu a dignidade, apesar da grande repressão e da campanha de terror, midiática, militar, policial e paramilitar, que a oligarquia empreendeu contra a resistência” E dessa grande luta surgiu um órgão de condução: a Frente Nacional de Resistência Popular, guiado por uma moral de dignidade, uma proposta cívica pacífica de resistência e uma visão: a refundação de Honduras, estabelecendo uma Assembleia Nacional Constituinte, mediante a qual se redija e ponha em vigência uma nova Constituição Nacional que permita corrigir os grandes desajustes sociais e os atropelos políticos que atualmente prevalecem, de modo que a pátria seja um seio digno sem exclusões, generoso para todos os hondurenhos e hondurenhas.
Em Honduras, a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) segue protestando para conduzir o país numa luta pacífica à democracia
“Iniciou-se em Honduras um processo de aprendizagem, de tomada de consciência, de tirar-se a venda dos olhos, as cordas dos pés, as cordas das mãos e do pescoço” Assim, eu avaliaria que esta etapa foi caracterizada por um processo de crescimento, que foi desde a resposta ao golpe até a consolidação de uma visão ampla de dignidade e luta por refundar novamente Honduras a partir de uma perspectiva biocêntrica, equitativa, respeitosa dos direitos humanos, popular e planetária. E, com a formação da Frente Nacional de Resistência Popular, eu diria que foi estabelecida uma força social e política com um horizonte claro, que progressivamente vai adquirindo maior organicidade e experiência de assumir os desafios políticos da nação necessária para todos e todas. Agora, sem confusões nem dúvidas, há um povo que assumiu a dignidade, apesar da grande repressão e da campanha de terror, midiática, militar, policial e paramilitar que a oligarquia empreendeu contra a resistência, que é a essência do povo hondurenho. Há uma série de propostas pacíficas para este mês de junho. Pode falar um
pouco sobre como seriam essas mobilizações?
Há uma só proposta, única. A coleta de assinaturas da manifestação soberana solicitando o estabelecimento de uma Assembleia Nacional Constituinte para a redação e colocação em vigência de uma Nova Constituição em Honduras que corrija, desde suas causas, o golpe de Estado perpetrado contra a nação e encabeçado por dez famílias oligárquicas donas de 80% do território nacional, recursos, meios para o desenvolvimento, instituições públicas e privadas, o comércio, a indústria, o exército, partidos políticos, a polícia e a mentira dos três poderes do Estado. Em torno dessa proposta, há uma dinâmica que inclui assembleias, capacitações, manifestações, concertos, escrutínios públicos para fazer a contagem de assinaturas da consulta, marchas etc. Também há greves de fome, comparecimentos públicos de solidariedade com os parceiros e parceiras presos políticos ou cercados militarmente, como os camponeses de Bai-
xo Aguán ou da Ilha de Zacate Grande. Mas tudo se moldura dentro do processo de apresentação da proposta de uma Assembléia Nacional Constituinte pela dignidade, o bem, a justiça e a paz de Honduras. Qual foi o grande resultado que deixou este episódio, que terminou demonstrando o empoderamento do povo hondurenho?
Não tanto lição, senão pela primeira vez uma aprendizagem: que foi responder por meios pacíficos a uma guerra intensa montada por uma oligarquia violenta que assassinou nossos filhos, irmãos, pais, professores. Violador, sanguinário e, sobretudo, impune. Uma aprendizagem selada com dor e esperança ao mesmo tempo. Iniciou-se em Honduras um processo de aprendizagem, de tomada de consciência, de tirar-se a venda dos olhos, as cordas dos pés, as cordas das mãos e do pescoço. De dizer “Basta Já” de abusos, de impunidade, de golpes! E vencer o medo e apelar pela vida, pelo bem, pela justiça, por um mundo de melhores e maiores oportunidades para todos e todas, sem criminosos na ponta, acumulando poder, privilégios e dilapidando a pátria, assaltando-a, vendendo-a. Claro, isso não é fácil, a resposta bestial do outro lado –
poderosa, armada, manipuladora com seus meios em massa de terror – foi a morte, a ameaça, a perseguição, o cárcere, a guerra suja. Os artistas mostraram um grande desempenho na luta a favor da democracia no país. Como se produziu essa articulação?
Tem sido uma energia surgida desde a mesma resposta unitária da resistência. A capacidade de convocatória da verdade e da justiça tem sido inacreditável. A criatividade, a valentia, a capacidade de sacrifício, de esticar o tempo, de nos abraçar, de termos confiança, de nos valorizar, de nos admirar, de nos querer, tem sido essa energia. Tem crescido na individualidade, rompendo com o individualismo, indo até o coletivo. Eu, vendo as décadas anteriores que os artistas viveram em Honduras, quero dizer que descubro minha cabeça e tiro meu chapéu a esta geração de artistas da juventude. Que maravilha! A grandeza de sua modéstia, a plenitude da entrega, da abertura e da liberdade. Tem surgido artistas em todas as partes, em todos os pedacinhos de Honduras, em aldeias da área rural, nos bairros, nas ruas. Não tem sido a academia, e sim a vida que tem provido. O respeito, a credibilidade, a entrega, o trabalho permanente e uma moral de compromisso com nossos mártires é a fonte abastecedora da arte da resistência em Honduras: teatro, música, pintura, escultura, poesia, ficção, jornalismo popular criativo etc. Somos a gama universal da resistência das cores populares de dignidade e bem.
Existem muitas denúncias relativas às violações aos direitos humanos – como mortes e perseguições – durante o atual governo de Porfírio Lobo. Como definir a situação política atual de Honduras?
Saída para corrigir a situação do país é a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte
Bem, estamos vivendo uma segunda etapa do golpe de Estado a partir uma estratégia coordenada pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos (como mostra disso, só é preciso ouvir ou ler as declarações tendenciosas que o Embaixador de Estados Unidos em Honduras dá à imprensa de maneira constan-
te). Portanto, prevalece o estado de abuso e impunidade contra os que reclamam justiça e castigo aos crimes, terra, trabalho, que nos permita viver e desempenharmos de maneira digna a manifestação livre de nossas ideias, liberdade de organização, pátria, salários dignos, equidade de gênero, reconhecimento e valorização da diversidade, tolerância diante das minorias, melhor distribuição da riqueza e uma Assembleia Nacional Constituinte que sane a pátria do crime imperante.
“Eu, vendo as décadas anteriores que os artistas viveram em Honduras, quero dizer que descubro minha cabeça e tiro meu chapéu a esta geração de artistas da juventude” O senhor crê que os organismos internacionais poderão reverter a situação do país? Qual seria o caminho?
O protagonismo pertence ao povo de Honduras. E a única coisa que pode corrigir a situação do país de maneira coerente e sólida é uma Assembleia Nacional Constituinte que ponha em vigência uma refundação da nação. Uma nação de paz e equidade. O que os organismos internacionais devem fazer é ter a ética de retomar os princípios que regem sua existência e facilitar os meios, reconhecendo a Frente Nacional de Resistência Popular, oferecendolhe apoio para que conquiste seus objetivos de reconciliar Honduras a partir da paz, sem violência, de maneira democrática, seguindo o princípio universal de soberania de que esta pertence ao povo, que deve exercê-la dignificando-se e abrindo horizontes de bem, não só para um país, mas para a humanidade inteira. (da Agência de Informação Frei Tito para América Latina – Adital)