Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 8 • Número 382
São Paulo, de 24 a 30 de junho de 2010
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José Cruz/ABr
Por apoio a Dilma, PT se alia no MA à oligarquia Sarney
Acima da lei, Israel faz da prisão uma tática Um dos mecanismos que Israel usa para reprimir a população palestina é prender seus integrantes, na maior parte das vezes, de forma arbitrária, ignorando as leis internacionais. Nos territórios ocupados, cerca de 700 mil pessoas já passaram pelas cadeias israelenses por motivos políticos. Hoje, há cerca de 6.400 presos, que vivem em péssimas condições. Págs. 10 e 11
Em Honduras, um ano de repressão e assassinatos Cinco meses após a saída de cena oficial dos golpistas, a estrutura repressiva em Honduras continua bastante ativa. Assassinatos, sequestros, torturas e detenções ainda são recorrentes. Hoje, a repressão tornou-se mais seletiva, elegendo lideranças sociais como alvos. A explicação para tal situação é simples: os golpistas ainda permanecem incrustados no Estado hondurenho e são quem realmente mandam no governo Porfirio Lobo. Pág. 9
No Rio, a Cidade de Deus por seus moradores Levantamento realizado pelo Ibase com cerca de 1.500 moradores da comunidade Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, revela que sua população é jovem, pobre, de baixa escolaridade e possui acesso precário a serviços. Em média, há três habitantes por residência. Pág. 4
Elza Fiúza/ABr
ISSN 1978-5134
S R
Os petistas Domingos Dutra e Manoel da Conceição são contrários à aliança
No dia 11, o diretório nacional do PT anunciou que o partido apoiará a candidatura de Roseana Sarney (PMDB) para o governo do Maranhão. A decisão reverte a opção que a seção maranhense da legenda havia feito de se engajar na campanha de Flávio Dino (PCdoB). A direção nacional deliberou amparada por resolução do 4º Congresso Nacional do PT que estabelece a eleição de Dilma Rousseff como centro da tática neste ano. Assim, garantiram o apoio da oligarquia Sarney à sua candidata. Em entrevista, o secretário nacional de organização do PT Paulo Frateschi defende a decisão.“É uma questão de aliança eleitoral. Tem que pesar. Você quer manter a chance de ter um terceiro governo do PT? Vale a pena? Vale. É uma aliada? É uma aliada”. Pág. 3 Rodrigo Baleia/Folhapress
GO Plano de direitos humanos não descriminaliza o aborto
Transposição: em encontro, atingidos exigem dignidade e vida
O Brasil de Fato publica nesta edição a segunda reportagem da série sobre os recuos do governo em pontos do PNDH-3, lançado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, do ministro Paulo Vannuchi (foto). O tema, agora, é a descriminalização do aborto. Pág. 5
Em Campina Grande, interior da Paraíba, debates, relatos e propostas marcaram o Encontro de Atingidos e Atingidas pelo Projeto de Transposição do rio São Francisco. O evento reuniu, entre os dias 17 e 19, cerca de 80 pessoas de cinco estados da região Nordeste. Pág. 7
Pág. 8 João Zinclar
Ato público contra a transposição realizado em Campina Grande (PB)
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de 24 a 30 de junho de 2010
editorial A SELEÇÃO brasileira ganhou as duas primeiras partidas que disputou até agora na Copa do Mundo. Deve se classificar em primeiro lugar do seu grupo. Mas seu desempenho (até o fechamento desta edição) preocupa aos que gostam do futebol. A era Dunga, que ressuscitou o estilo Zagalo/Parreira da Copa de 1994, não empolga, e muitos outros interesses condicionam uma seleção de jogadores “europeus”, mais preocupados com dinheiro e carreira pessoal. Saudades do Garrincha e do João Saldanha. Mas, enquanto o futebol toma conta da televisão, da imprensa e da mente da maioria dos brasileiros, não custa lembrar aos nossos leitores e militantes alguns fatos que passaram relativamente desapercebidos nos últimos dias. 1.As chuvas continuam matando pobres brasileiros. As chuvaradas que caíram nos estados de Alagoas e de Pernambuco causaram uma verdadeira tragédia. Mais de cem mortos. Todos eram pobres e moravam em condições desumanas em áreas de risco. O fato não repercutiu na grande imprensa burguesa. E, infelizmente,
debate
A realidade brasileira mais além do futebol morrer de chuva já virou fato corriqueiro sem que ninguém se responsabilize por isso. Ficam as famílias, em geral, sem casa, sem indenização e totalmente desamparadas. 2. Anvisa apreende mais 500 mil litros venenos agrícolas adulterados. No Brasil, existem apenas dez empresas transnacionais que controlam 90% do mercado de venenos agrícolas. Muitos venenos vendidos por aqui já estão há muito tempo proibidos em seus países de origem. Por isso, aceleram as vendas aos irresponsáveis fazendeiros brasileiros que, mesmo assim, compram, ávidos apenas por lucros. E não bastasse isso, tem sido frequente a ação dos nossos heróis brancaleones, os 40 (é verdade!) fiscais da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) do Ministério da Saúde, distribuídos por todo território nacional.
No dia 7, eles apreenderam, numa das empresas transnacionais, 500 mil litros de venenos adulterados. Isso mesmo: adulterados. Ou seja, a fábrica falsifica a fórmula de forma diferente daquela que está no rótulo para aumentar seu poder mortífero. Se fôssemos um país sério, essas fábricas já estariam fechadas há muito tempo. Mas, por ora, o exército de brancaleone segue seu papel de apreender aqui e acolá apenas algumas amostras, dos cerca de 1 bilhão de litros que são vendidos todos os anos e vão parar no nosso solo, na nossa água, e nosso estômago. 3. Comissão da Câmara aprova imposto sobre fortunas. Acredite se quiser! A revista Veja ainda não descobriu para tentar desmoralizar, mas a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou o projeto de lei da deputada Luciana Genro (PSOL-RS), que
Eleições 2010: mudança ou continuidade? II
As jornadas de luta não conseguiram servir de referência para a retomada da unidade da classe. Ao não conseguirem articular a classe em torno de um projeto popular para o Brasil, tais processos se transformam em dias e fases pontuais de reflexão, mas não de luta e contestação sobre o projeto burguês de desenvolvimento. As ações limitam-se ao ato em si e os movimentos que organizam juntos as atividades, voltaram a tocar seus próprios processos de luta cotidiana, sem conseguir promover uma pauta mais ampla que integre encontros permanentes, rumo à consolidação de um projeto popular. 3. Qual debate, qual projeto, qual sujeito representando a classe? Para a atual disputa dentro da esquerda nos deparamos com a história dos sujeitos, sua representação política e a capacidade que os mesmos têm de aparecer como protagonistas, não de um projeto partidário específico, mas de um anseio de governo diferenciado que retrate a unidade da esquerda. Em vez de fortalecermos nossos mecanismos de produção de um projeto antagônico ao que nos últimos 20 anos se executa no país, retomamos a disputa eleitoral, para evidenciar os principais problemas das outras campanhas com projetos comuns (PT e PSDB), sem termos um projeto de classe claro que nos represente em unidade. A esquerda que chega para disputar as eleições é um reflexo da fragmentação da classe. Entra para a disputa, sem chance real de êxito na unidade da própria esquerda, exatamente porque não conseguiu contribuir para fundar as bases do projeto popular que contemple uma parcela majoritária dos brasileiros. Estes sujeitos que vivem da venda obrigatória da sua força de trabalho ao capital. 4. O que esperar da esquerda na disputa?
Nota: No dia 18, morreu José Saramago. Prêmio Nobel de Literatura, que viveu sempre em coerência com suas ideias e em compromisso com a causa socialista. Por isso nosso jornal também está de luto.
Luiz Ricardo Leitão
Lições (prematuras) da Copa
Dada a unidade fragilizada, o projeto popular em stand by a ausência de grandes debates em torno de grandes projetos, resta somente verificar como estes sujeitos se portarão no debate sobre os grandes temas propostos para o país. Ouviremos atentos como espectadores algo que deveríamos estar compartilhando como protagonistas de uma esquerda participativa. Urge, no plano nacional, que os sujeitos deem espaço aos projetos; que as falas integrem outros componentes para além do que já se conhece; que os articuladores políticos sejam capazes de produzir um cenário diferente do que se tem. Urge a reconstrução da unidade da esquerda que na intencionalidade retome a proposta de projetar as necessidades para a classe, a partir de uma práxis que não separa reflexão e ação ao longo do seu projeto popular. Urge que enquanto esquerda assumamos, com um debate e uma formação coletiva, o caráter da organização de um partido de classe com projeto e identidade de classe. Urge à nossa esquerda reconstruir as bases democráticas de reflexão sobre o necessário projeto popular para o Brasil, a partir desta leitura e concreta intervenção na realidade. Nossa esquerda hoje não tem chances reais de chegar ao poder na atualidade, muito menos de se manter nele. Nem por isto deve abrir mão de utilizar o tempo formal da disputa eleitoral para travar um bom debate sobre as farsas apresentadas ao povo brasileiro. Isto é o possível frente à fragmentação na qual por ora nos encontramos. Urge a construção de um projeto popular para o Brasil que nos represente enquanto classe, naquilo que consagramos, no poder institucional, como o inédito viável.
O FUTEBOL FOI, decerto, a primeira paixão de minha vida. Nascido em um pacato subúrbio carioca e criado desde os dez anos na Vila de Noel, bem cedo me encantei com as artimanhas da pelota. Jogava botão e totó (o pebolim dos paulistas) com os colegas de rua e, claro, não perdia uma pelada na escola ou nos campinhos do bairro. Eram ainda os tempos bicudos da ditadura, mas eu só fui despertar para a realidade política do país muito depois da Copa de 1970, que, para mim, representou um autêntico batismo nas lides carnavalizadas de Bruzundanga. Militante clandestino na luta contra o regime militar, jamais dissociei a política do futebol. Torcedor do Botafogo de Garrincha, Didi, Nílton Santos, Gérson, Jairzinho e tantos outros craques, logo me chamou a atenção a postura de Afonsinho e Paulo César Caju, que, cada um a seu estilo, desafiavam a caretice do poder nos anos 1960/ 70. Afonsinho era o protótipo do rebelde cabeludo que cometia a suprema heresia de contestar os dirigentes de seu clube; Caju apoiava a luta dos panteras negras ianques e celebrava seus gols erguendo ostensivamente os punhos no gramado. Ídolos da estrela solitária, ambos me ensinaram precocemente que nem tudo deve ser conformismo nas manifestações da cultura popular. Lembro-me dos dois a cada nova Copa que presencio. Nestes tempos de falência do paradigma neoliberal pós-moderno, é claro que o esporte não logra escapar à sanha midiática e ao assédio bilionário das corporações transnacionais. Mesmo assim, os descaminhos da bola sempre nos propiciam uma rara oportunidade de debater com os pares as contradições deste mundo neoliberalmente ‘globalizado’, ainda mais quando o cenário do evento é a nossa dileta Mãe África, o continente mais espoliado e dilacerado pelo Velho Mundo durante séculos de exploração e pilhagem colonial e neocolonial. Impossível ficar indiferente à alegria dos sul-africanos por receber em sua terra as estrelas do planeta bola, não obstante as decepções que os Bafana Bafana lhes reservam sob a tutela de Parreira, o fiel arauto do “futebol de resultados”. Mas não há como ignorar que aquele estilo criativo de jogo que as seleções africanas exibiam nos anos 1980 está agora submetido aos ditames dos técnicos europeus – a expressão mais cabal do toyotismo na esfera esportiva, reestruturando sob padrões de alta produtividade a fugaz fantasia que teimava em resistir nos pés de Roger Milla e sua turma. Como assinalou o articulista Vinicius Torres Freire, o livre mercado de atletas e a racionalização do negócio sob os padrões do Velho Mundo “uniformizaram e ‘europeizaram’ o esporte” ao final do século 20. A “empresa” futebolística hoje se assemelha cada vez mais às feitorias coloniais: em vez de pagar milhões por jogadores maduros e famosos, os clubes europeus saem atrás dos atletas juvenis e infantis, sobretudo a pródiga ‘matéria-prima’ do 3º Mundo. Tudo isso inspirado pela “maximização do resultado”, dentro e fora dos gramados, e pelos interesses da corporação que comanda o negócio. A mídia, obviamente, faz da Copa o seu prato quase exclusivo. Na Globo, detentora dos direitos de transmissão na rede aberta, os jogos do Brasil respondem por 80% da pauta do Jornal Nacional (na Record, que não comprou o pacote da FIFA, eles ocupam ‘apenas’ 40% do noticiário). Enquanto o show hipnotiza as multidões, as maracutaias prosseguem a todo vapor mundo afora. Não se pense, contudo, que a orgia da bola logra sepultar as iniquidades sociais: ironicamente, ela também permite aos setores mais excluídos da sociedade zulu denunciar ao vivo e em cores os absurdos que padecem, como aquela insólita favela de lata em que estão confinadas milhares de famílias sem-teto há quase quatro anos. Há, por certo, muita gente saudosa do apartheid na terra de Mandela, aguardando tão-somente a morte do carismático líder para restaurar o antigo regime de privilégios africâner, como se pode ver na pequena Orânia, a 650 km de Johanesburgo, onde, no dia 11 de junho, só nove pessoas assistiam à estreia dos Bafana, enquanto os radicais brancos (que torcem pela Holanda, França e Alemanha), jogavam rúgbi nos parques da cidade. Lá não se ouve o ruído persistente das vuvuzelas, que tanto tem irritado os ouvidos mais ‘civilizados’, mas cujo clamor nem a FIFA cogitou proibir. A entidade, afinal, ao contrário da elite europeia, sabe muito bem que não há como calar as vozes – estridentes e rebeldes – de um povo que levou séculos para se emancipar e sequer terminou a primeira etapa de sua longa jornada contra o regime de segregação racial e exploração neocolonial que o Velho Mundo lhe impôs.
Roberta Traspadini é economista, educadora popular, integrante da Consulta Popular/ES.
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).
Gama
TRATAREI NESTE texto sobre o tema dos candidatos de esquerda e sua relação direta com o projeto popular para o Brasil. São quatro perguntas chaves sobre a unidade, as pautas, os projetos, os sujeitos e os desafios colocados para os reais representantes da classe que vive do trabalho.
2. Que debates e pautas articulam a esquerda? Entre os temas geradores da unidade, tivemos a articulação para a consolidação da Assembleia Popular, o dia internacional da mulher, as jornadas de luta dos movimentos sociais, a jornada de abril da Via Campesina, entre outros. Ao mesmo tempo, o 1º de Maio perdeu seu caráter de articulação da classe no projeto de produção cotidiana do novo. E, para discutir o mundo do trabalho, fez-se a opção mercadológica de alienar em vez de refletir com base na continuidade de um processo de formação dos grupos que compõem ditas organizações.
4. Presidente da CTNBio quer aprovar o arroz transgênico da Bayer. O presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança anunciou que no dia 24 de junho irá a votação e – espera ele, servil, – a aprovação do arroz transgênico da Bayer.
crônica
Roberta Traspadini
1. Como está a unidade de esquerda? O que até o ano 2000 aparentava significar um projeto com base na centralidade do trabalho, identificado na figura de um sujeito político envolvido nas causas da classe que vive do trabalho, ao longo do período se mostrou uma fantasia: o programa de disputa eleitoral do PT. As bases sólidas da produção de um projeto de classe foram sendo modificadas para a produção de um consenso coercitivo sobre o possível arranjo da correlação de forças para a vitória eleitoral. Dentro da esquerda, isto gerou uma onda de decepções, enfrentamentos, releituras sobre o instrumento partido PT que até então, no plano institucional da disputa eleitoral, reunia as condições objetivas de representar a classe trabalhadora no poder. A gestão de governo petista no plano nacional foi responsável diretamente por uma intensificação da necessidade de sobrevivência das pautas particulares dos movimentos políticos e sociais, levando a uma ampliação da distância dos trabalhadores que compõem a classe que vive do trabalho em diversas esferas do que fazer cotidiano, seja do campo ou da cidade. A unidade deu passo à organização das pautas particulares, o mundo da disputa reivindicativa absorveu parte expressiva do tempo dos militantes das causas particulares e o projeto popular foi, ao longo do período, engavetado como proposta viável na correlação de forças dos grupos que disputam a governança do país.
institui o imposto progressivo sobre as fortunas. Se você ainda não sabe, está lá no projeto que, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério do Planejamento, a concentração de renda é tão grande no Brasil, que “as 5 mil famílias mais ricas do país têm patrimônio médio de R$ 138 milhões, o que representa 42% do PIB. Só desse grupo de milionários se poderia cobrar apenas 5% de imposto por ano, e renderia ao país o valor de R$ 30 bilhões, o que poderia duplicar o orçamento da educação”, por exemplo.
Essa variedade não apresenta nenhuma pesquisa de segurança para os consumidores. Nem representa aumento da produtividade do arroz, que no caso brasileiro, já é das mais altas do mundo. Ela apenas combina a produção com uso de um veneno da Bayer. A insegurança e a falta de pesquisa, agravadas pelo fato de que toda população se alimenta com arroz, exigiria precaução redobrada. Até agora nenhum, repetindo, nenhum governo do mundo ousou aprová-lo. Até nos Estados Unidos sua liberação foi negada. Na Alemanha, pátria da Bayer, também. Mas, aqui, um bando de irresponsáveis que se escudam no título de cientista, com a desaprovação dos próprios relatores do caso, quer aprovar. Está na hora do governo Lula assumir suas responsabilidades e interferir no caso. E sempre é bom lembrar: se as empresas acham que não tem problema nenhum para a saúde, porque se recusam a colocar no rótulo o aviso de que contém transgênicos?
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Joana Tavares • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
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PT se alia à oligarquia Sarney contra sua própria base no MA POLÍTICA Militantes maranhenses desobedecem imposição do diretório nacional e devem apoiar Flávio Dino para o governo estadual ABr
Eduardo Sales de Lima da Redação
Descaminhos petistas
“HÁ UM sentimento de enorme angústia na militância que tomou uma decisão por maioria no encontro estadual [do Maranhão], cumprindo todas as regras, com o acompanhamento rigoroso da direção nacional.” Essa frase é do membro da executiva estadual do Partido dos Trabalhadores (PT) do Maranhão, Márcio Jardim. Ele e inúmeros outros militantes maranhenses da legenda foram forçados a aceitar a aliança do grupo político do qual pertencem com a oligarquia Sarney. O acordo prevê o apoio petista à candidatura de Roseane Sarney (PMDB) ao governo do Maranhão, em troca da transferência da influência política do presidente do Senado, José Sarney (PMDB/AP), para a campanha de Dilma Rousseff (PT) à Presidência da República.
O deputado federal Domingos Dutra (PT/MA) e o líder camponês Manoel da Conceição encerraram, no dia 18, greve de fome realizada contra a decisão do diretório nacional Para os petistas do estado, tão grave quanto a decisão do diretório nacional foi a forma como se sucederam os fatos. No dia 27 de março, o PT estadual realizou um encontro que decidiu pelo apoio ao candidato do PCdoB ao governo do Maranhão, Flávio Dino. Porém, no dia 11 de junho, o diretório nacional anunciou o apoio à candidatura de Roseana. Como os delegados petistas maranhenses vetaram, por maioria, qualquer apoio à candidatura de Roseana, estabeleceu-se um grande im-
Pragmatismo e falta de democracia levaram PT a atuar como mais um partido “da ordem” da Redação
O deputado Domingos Dutra e o militante Manoel da Conceição durante a greve de fome
passe político dentro do partido. Ainda no dia 11, o deputado federal Domingos Dutra (PT/MA) e o líder camponês Manoel da Conceição, um dos mais importantes fundadores do partido no estado, de 75 anos, iniciaram greve de fome contra a decisão do diretório nacional. O protesto foi encerrado na madrugada do dia 18, após negociação com o diretório nacional. Segundo Márcio Jardim, da executiva maranhense do partido, o acordo para a suspensão da greve de fome conferiu a autonomia reivindicada pelos militantes e candidatos petistas do Maranhão. Ele garante que, agora, os candidatos petistas do estado esta-
rão livres e legitimados para expressar apoio à Flávio Dino. Houve um convite, inclusive, para que o candidato comunista criasse um comitê de campanha no interior da sede do PT estadual. Jardim não descarta, contudo, que problemas futuros relacionados a questões de fidelidade partidária possam ocorrer e tenham que ser analisados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). De seu lado, o TSE, apesar do veto estadual, validou a aliança do PT com a candidatura de Roseana ao governo do Maranhão. Isso porque as diretrizes tomadas no 4º Congresso Nacional do PT, ocorrido em fevereiro, es-
tabeleceram que é de competência da direção nacional a deliberação, em última instância, sobre as questões de tática de alianças nos estados. “É um ato incontestável porque foi uma decisão do diretório nacional, com o direito dado pelo 4º Congresso Nacional do PT para tomar essa decisão”, afirma o secretário nacional de organização do PT, Paulo Frateschi (abaixo, veja entrevista completa com o dirigente). Dessa forma, juridicamente, inexistem problemas em relação à aliança entre o PT e a oligarquia Sarney. Mas, para a militância maranhense, mais importante que questões jurídicas são as éticas e políticas.
Partido quer evitar palanque pró-Serra “Aliança é necessária, pertinente e correta”, defende Paulo Frateschi, secretário nacional de organização do PT da Redação Confrontado pelas críticas relacionadas à aliança com a oligarquia Sarney no Maranhão, Paulo Frateschi, secretário nacional de organização do PT, explica que o partido não rebaixou suas aspirações históricas e que continua exatamente o mesmo. Segundo ele, trata-se somente de uma questão de aliança eleitoral para Dilma Rousseff suceder Lula na Presidência. Ele pondera ainda que, se o partido aprovasse o apoio à candidatura de Flávio Dino (PCdoB) ao governo do estado, estariam postas as “condições para se construir um palanque pró-Serra no Maranhão”. Brasil de Fato – Haverá uma divisão do PT na campanha eleitoral ao governo do Maranhão? Qual é o acordo feito após a greve de fome realizada pelo deputado federal Domingos Dutra e pelo petista histórico Manoel da Conceição?
Paulo Frateschi – A síntese do acordo é que oficialmente o PT vai apoiar a Roseana Sarney (PMDB). Juridicamente esse é um ato incontestável porque foi uma decisão do diretório nacional, com o direito dado pelo 4º Congresso Nacional do PT para tomar essa decisão. Então, o programa de TV é com a Roseana, o material de campanha é com a Roseana. É público e notório que tem uma parte do PT que não faria campanha para ela de jeito nenhum. Então foi um acordo para dizer que nós não queremos briga até o fim da campanha, chega de briga. Se querem fazer lá [apoiar Flávio Dino], façam, nós não vamos perseguir ninguém, o diretório nacional não vai tomar nenhuma atitude legal contra isso. Agora, é claro que eles estão submetidos à legislação, como todos os partidos. Não pode ir para a televisão falar de outro candidato, não pode oficialmente ter campanha com quem a lei não permite. Como você analisa a greve de fome em que criticavam a aliança com
o grupo de Sarney e a falta de democracia dentro do partido? Isso não existe. O Domingos Dutra mesmo falou “eu estou fazendo para chamar atenção”. Na rádio CBN, ele falou que estava fazendo para chamar atenção, que não estava fazendo para morrer, que queria continuar tomando sua “pinguinha” e viver bem. Então, ele mesmo demonstra que foi um factóide que ele inventou para poder chamar atenção. Não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Nós conhecemos esse instrumento de greve de fome e o quanto, em determinados momentos históricos, tem importância. O que ele fez foi desmoralizar isso. Há presos políticos que fazem greve de fome, há protestos muito agudos, que implicam no direito à vida. Neste caso, foi desmoralizado. Não existe isso, num partido político que tem suas regras, sua democracia, seus votos. A aliança com Roseana foi ganha por voto, não se faz greve de fome por isso, foi uma incoerência. Mas essa é a contestação dos petistas do Maranhão, de que lá a maioria foi contra a aliança com Roseana. Eles fizeram um encontro lá [no Maranhão]. Mas nós falamos que o fundamental, o
centro da tática, é a campanha da Dilma. Dentro da tática não é o que militante quer. No Congresso Nacional do PT ficou decidido o fundamental. Foi delegado ao diretório nacional para que, em última instância, resolvesse as alianças para o bem da campanha nacional. Ele tinha legitimidade. Foi pautado, discutido, as pessoas puderam defender suas posições, foi a voto e ganhou que tinha que ocorrer o apoio à Roseana. É a coisa mais normal num partido democrático. Agora, como eles já tinham compromisso lá, e que, entre nós, não são muito com o Flávio Dino não. Estão além do Flávio Dino. O que você quer dizer com isso? Eles tinham outro compromisso com um setor político que estava fazendo campanha para o [ex-governador] Jackson Lago (PDT), que está com o José Serra, e também do Zé Reinaldo [antecessor de Lago e candidato ao Senado pelo PSB], que está com o Serra. Aí é que estava o problema, esse era o problema nosso. Quer dizer, ceder a eles seria esquecer nossa tática nacional. E a gente não ia fazer isso. Se fosse o Flávio Dino, teria todo o nosso respeito, mas ele não era o principal da questão. A candidatu-
Sociólogos ouvidos pela reportagem entendem que o apoio do diretório nacional petista à oligarquia Sarney no Maranhão se explica pelo pragmatismo e pela falta de democracia que tomaram conta do partido após a posse do presidente Lula em 2003. Wagner Cabral da Costa, professor da Universidade Federal do Maranhão e especialista na história do clã Sarney, entende que a intervenção foi resultado de uma ameaça direta do próprio ex-presidente José Sarney. De acordo com ele, o atual presidente do Senado teria condicionado a votação do projeto que estabelece o marco regulatório de exploração do pré-sal ao apoio à candidatura de sua filha, Roseana, ao Palácio dos Leões. Sarney também poderia abandonar a presidência da casa, deixando a votação de projetos importantes do governo federal nas mãos de seu vice, Marconi Perillo (GO), que é do PSDB. “Ele chantageia claramente utilizando esses recursos no interior do próprio poder legislativo do país”, salienta Cabral. Na opinião do sociólogo Rudá Ricci, diretor geral do Instituto Cultiva, o apoio a Roseana reflete também “a falta de democracia interna do partido desde a vitória de Lula”. Para ele, dentro do PT, a tomada de deci-
ra dele era a possibilidade de criar condições para se construir um palanque pró-Serra no Maranhão. Isso a gente não podia permitir. Na política, a gente não pode ser ingênuo a esse respeito.
“Nós conhecemos esse instrumento de greve de fome e o quanto, em determinados momentos históricos, tem importância. O que ele [Domingos Dutra] fez foi desmoralizar isso” Mesmo assim como você vê essa polêmica aliança que o PT faz com a família Sarney? Isso está dentro do quadro político nacional. Qual é o problema? É uma opção tática. A resolução do Congresso Nacional do PT disse “nós vamos nos aliar, vamos montar um bloco de aliados que conta com o PMDB”. A família Sarney está no PMDB. Eu não estou aqui para fazer retrospectiva de vida política de ninguém, e nem sei te fazer. A
são político-eleitoral não está mais circunscrita aos mecanismos legais e formais de participação do filiado. “Este é um dos motivos de esvaziamento da famosa militância petista: deixaram a cadeira cativa e vieram para a geral. Até é emocionante, mas não se vê o jogo com nitidez”, compara. Já Wagner Cabral lembra que a escolha de Dilma Rousseff para concorrer à Presidência foi de cima para baixo. “Ela nunca foi uma militante partidária com credenciais e sequer foi votada internamente no PT”, destaca. Desradicalização
Wagner Cabral entende que a “desradicalização” do PT desde que chegou ao poder federal ajuda a explicar o alinhamento do partido com velhas oligarquias nordestinas, como a de Fernando Collor, em Alagoas. Já a aliança com Sarney significa, para ele, o extremo dessa “desradicalização”, “que é transformação do PT num partido da ordem”. Já Rudá Ricci prevê que o PT, após as eleições de outubro, enfrentará sérios problemas políticos para tentar retomar seu protagonismo político, já que foi totalmente desqualificado pelo lulismo.
Resistentes
Entretanto, até a realização das eleições, pelo menos é o que assegura o membro da executiva estadual do PT do Maranhão, Márcio Jardim, não haverá desfiliação em massa dos militantes. “Vamos trabalhar para eleger a Dilma, mas é evidente que há uma indignação em relação a essa decisão da direção nacional”, pondera. Jardim, contudo, faz questão de asseverar que o PT maranhense continua petista: “o PT da bandeira vermelha, que não se rendeu”. (ESL)
tarefa é a seguinte, tem que fazer uma tática eleitoral, ter um centro tático definido. Aliás, eu vejo mais do ponto de vista nacional que do ponto de vista do Maranhão. E do ponto de vista nacional, o presidente Sarney é o presidente do Senado. A Roseana nos apoiou, ela foi líder do governo no Senado. Onde que está o erro? Perguntei isso porque petistas históricos reforçam o antagonismo presente nas origens de luta social do PT com a família Sarney. O PT nasceu dos movimentos populares e continua com os movimentos populares. Não abriu mão de nenhum ponto programático. Nada, nenhum. Não rebaixou suas aspirações históricas, enfim, continua exatamente o mesmo. Aqui é uma questão de aliança eleitoral. Tem que pesar. Você quer manter a chance de ter um terceiro governo do PT, que vai suceder o governo Lula? Vale a pena? Vale. É uma aliada? É uma aliada. Roseana é aliada, foi líder do governo Lula. Então, do ponto de vista tático é pertinente essa aliança? É necessária, pertinente e correta. Não tem nenhum problema. E existem compromissos políticos que temos de seguir; deixamos de ser confiáveis ao nível nacional se a gente não seguir. (ESL)
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O Rio a partir da Cidade de Deus DESCASO Levantamento na comunidade revela população jovem, pobre, com acesso precário a serviços e baixa escolaridade Pedro Victor Brandão/CC
Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) NA CIDADE DE Deus, emblemática comunidade do Rio de Janeiro, predominam moradores essencialmente jovens, muito pobres e de baixa escolaridade. Têm acesso aos utensílios básicos em suas casas, como TV e fogão, mas sonham com serviços simples, fartos em outras regiões. Em média, há três moradores por casa. Estas são algumas das constatações do relatório “Levantamento socioeconômico na comunidade de Cidade de Deus do Rio de Janeiro”. O estudo foi realizado pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que ouviu, em 2009, 1548 dos cerca de 65 mil moradores da favela. A intenção inicial era criar um arsenal de dados que possibilitasse ao governo municipal elaborar políticas públicas. Entretanto, a pesquisa fornece artifícios que vão além disso.
“Isso é um retrato do drama em que a gente vive. Como você quer melhorar a vida do pobre sem condições de educação?” A princípio, o estudo é parte de um projeto focado no desenvolvimento, com um recorte específico de economia solidária, formação profissional e inserção no mercado de trabalho. Três regiões da cidade condensam a maior parte do trabalho a ser realizado, uma na Zona Oeste (Cidade de Deus), outra na Zona Norte (Grande Tijuca) e uma última na Zona Sul (Santa Marta, em Botafogo). Essa pesquisa, porém, tomou lugar apenas na Cidade de Deus. Futuramente, pretende-se utilizar as constatações para consolidar a Agência de Desenvolvimento Local da Cidade de Deus. Com 53,3% de sua população com menos de 30 anos, a Cidade de Deus é uma comunidade habitada essencialmente por jovens. As causas variam da maior taxa de na-
Três em cada dez moradores da Cidade de Deus têm renda familiar de até um salário mínimo
talidade a uma alta incidência de mortes de jovens, seja pelas condições precárias de vida ou por envolvimento com o tráfico de drogas. Outro dado inquietante é a quantidade de adultos que não completou o ensino fundamental: 44% do total, quase metade da população madura. E apenas 6% teve acesso a ensino superior (completo ou não). “Isso é um retrato do
drama em que a gente vive. Como você quer melhorar a vida do pobre sem condições de educação?”, pergunta Inácio de Souza, funcionário público morador da favela. Três em cada dez moradores da Cidade de Deus têm renda familiar de até um salário mínimo (R$ 581). O acesso a eletrodomésticos é razoável. Enquanto 93% afirmam possuir fogão, televisão
e geladeira em casa, 34% possuem também microcomputador. A porcentagem dos que tem vídeo ou DVD é de 74%. Outra constatação é a importância da informalidade na economia da região. Dentre os habitantes da favela, 23% são trabalhadores informais. Os dados são considerados equivalentes ao da maioria das regiões pobres do Rio de Janeiro.
O relatório foi realizado com o trabalho de campo dos próprios moradores, treinados pelo Ibase. Um questionário de 66 perguntas era respondido pelas famílias. As pessoas também fizeram suas reivindicações. As demandas mais frequentes, como era de se esperar, foram por educação, trabalho e salário. A comunidade foi escolhida justamente porque, além de ser a
Sucesso nas telas e polêmicas
Cidade dos homens
A projeção conquistada pelo filme “Cidade de Deus” gerou debates ricos e variados
Nascida das remoções de Carlos Lacerda, a comunidade cresceu longe dos centros econômicos
do Rio de Janeiro (RJ) Para os brasileiros, a “Cidade de Deus” se tornou amplamente conhecida a partir de um filme homônimo de 2002. Dirigida por Fernando Meirelles, a obra foi um marco no cinema nacional, mudando a vida da população local. O longa contava a história da comunidade a partir de um personagem fictício, o fotógrafo Buscapé. Baseado no romance de Paulo Lins, concorreu a quatro Oscars e ganhou uma infinidade de prêmios. Em 2009, foi apontado pela revista estadunidense Time como um dos 100 melhores filmes de todos os tempos. Entretanto, sua recepção em seu país, e especialmente na comunidade que lhe dá nome, foi sempre marcada pela polêmica. Enquanto alguns moradores sentem orgulho da fama gerada pelo filme – certamente o brasileiro mais exibido internacionalmente na última década – outros enxergam pon-
tos negativos. Reclamam da associação entre a vida em favela e criminalidade e da imagem negativa que a comunidade teria conquistado no mundo. Quando o rapper MV Bill, que até hoje mora no local, fez elogios ao longa, foi amplamente criticado na comunidade. Durante muito tempo, tornara-se proibido elogiar o filme na Cidade de Deus. Hoje, pelo reconhecimento alcançando em diversos países, já há uma aceitação maior. No meio acadêmico, novas polêmicas. Ivana Bentes, diretora da Escola da Comunicação da UFRJ (Eco/UFRJ), chegou a utilizar o filme como exemplo do que classificou como “Cosmética da Fome” (Ivana tem doutorado em Glauber Rocha, autor do conceito de Estética da Fome). A diretora criticava a chamada “esteticização da pobreza” – grosso modo, o tratamento da estética dos pobres com um requinte que lhe dá certa beleza. O filme seria exemplo da utilização dos problemas sociais brasileiros para produzir mero entre-
tenimento. Num debate, Ivana e Fernando Meirelles discutiram de forma áspera. Embora “Cidade de Deus” tenha sido recebido no exterior como filme de denúncia, os intelectuais brasileiros costumam classificá-lo como filme de ação. Alguns o consideram o marco da estabilização da retomada do cinema nacional. Outra consequência curiosa do filme, visível após oito anos de seu lançamento, é a mudança que ele causou na vida da equipe de produção, e de dezenas de pessoas. A maioria do elenco, por exemplo, era formada pelos chamados “não atores” – conceito criado pelo neorrealismo italiano onde se procura utilizar “atores” sem experiência em atuar, mas com história de vida semelhante a de seus personagens. A consequência é que muitos deles – Leandro Firmino, Phellipe Haagensen e Douglas Silva, por exemplo – tornaram-se atores muito ativos na televisão e no cinema brasileiros. Meirelles também criou a escola hoje chamada Cinema Nosso com parte da equipe do filme. Dezenas de jovens oriundos de comunidades carentes já se formaram em cinema no local. (LU)
do Rio de Janeiro Cidade de Deus já nasceu de uma injustiça. Em 1960, o governo de Carlos Lacerda, do antigo estado da Guanabara, adotou com frequência – como o atual – a política de remoções de favelas. Várias famílias carentes foram instaladas no local, então muito distante do centro econômico carioca – Barra da Tijuca e Jacarepaguá, próximos à comunidade, eram insignificantes nessa época. Em 1966, o governador Francisco Negrão de Lima levou à favela dezenas de famílias afetadas pelas fortes enchen-
tes de então. Anunciada como provisória, a medida acabou por se tornar definitiva. Ao longo dos anos, a favela foi crescendo e se organizando, principalmente com o aumento dos serviços na Barra, cujo crescimento passa a ser estimulado nos anos de 1970.
A quantidade de habitações consideradas “irregulares” impressiona A favela atraiu, nos anos seguintes, migrantes do Rio de Janeiro e de fora dele e tornou-se extremamente populosa. A quantidade de habitações consideradas “irregulares” impressiona. A densidade demográfica é uma das maiores da capital. Em 2009, Cidade de Deus – também chamada de CDD – ganhou uma
maior entre as áreas pesquisadas, condensa complexidades que enriquecem o estudo. As características podem ser tomadas como exemplo da realidade nas comunidades da capital fluminense. “Isso tem a ver com a forma como a cidade se constituiu”, diz Itamar Silva, do Ibase, que coordenou a pesquisa. Iguais na diferença Há, entretanto, diferenças entre as regiões, que dados dos levantamentos futuros devem registrar. Entre os moradores das favelas da Zona Sul, região mais rica da cidade, é provável que se encontre maior acesso a serviços. A oferta de escolas de ensino médio também tende a ser maior. Na Cidade de Deus, existe apenas uma instituição como essa, para toda a população da comunidade. A escassez de escolas e a precariedade do ensino na região foi uma das reclamações mais frequentes dos moradores. Os dados também contestam a ideia comum de que há maior solidariedade entre os favelados. Segundo a pesquisa, apenas 26% afirmam participar de práticas social-comunitárias, e 71% afirmam não fazê-lo. Itamar afirma que a ideia “é um mito. As favelas refletem a sociedade. Ela não está fora desta cidade marcada por individualismo, competição”. O pesquisador quer agora estimular a economia solidária na região, visando justamente dar fôlego a práticas mais coletivas, na contramão da competitividade. Ele cita campos como o artesanato, a culinária e cooperativas de construção civil como espaços já existentes com potencial solidário maior. O levantamento foi realizado nas cinco regiões que compõem a Cidade de Deus (Caratê, Lazer, Apartamentos, Quinze e Edgard Werneck). A ONG italiana Arci Cultura e Sviluppo, dedicada ao desenvolvimento de regiões pobres, ajudou na execução do estudo. A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico Solidário esteve presente, em apoio, no dia do lançamento da pesquisa. E a Secretaria Municipal de Habitação já solicitou alguns dados aos pesquisadores. O Ibase planeja ampliar a utilização dos dados a partir da própria divulgação da pesquisa, que tem se dado amplamente através dos instrumentos locais de mídia.
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Dentre todas as já instaladas talvez seja a menos efetiva. Diversas denúncias de abuso policial já foram realizadas – a comunidade chegou a ficar oito meses sem direito a manifestação cultural. O narcotráfico, como admite a polícia, não foi extinto. Entretanto, o trânsito de traficantes com armas e o modelo clássico de “boca de fumo”, não existem mais no local. A droga é vendida de forma mais sigilosa. A região ainda é procurada por muitos turistas que vêm ao Rio. Um professor negro estadunidense, Skip Gates, preso por engano em 2009, ao tentar arrombar a própria casa, e depois recebido pelo presidente Barack Obama, como gesto de desculpas, passou pela comunidade no último mês. Ele estaria filmando um documentário. A comunidade também abriga a principal sede da Central Única de Favelas (CUFA), criada por MV Bill, que hoje existe em diversas cidades do Brasil. (LU)
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Modernização interrompida PNDH 3 O Brasil de Fato publica a segunda reportagem da série produzida pela Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz sobre os recuos do governo federal em pontos chave do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos. Abaixo, veja matéria sobre a descriminalização do aborto Raquel Júnia do Rio de Janeiro (RJ) O 3º PLANO Nacional dos Direitos Humanos (PNDH 3), em uma das ações estratégicas, dizia: “apoiar a aprovação de projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre os seus corpos”. No entanto, o decreto 7.177, de 12 de maio de 2010, modifica pontos do programa, inclusive este. A redação agora ficou assim: “considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde”. Assim, o tema da descriminalização foi suprimido do PNDH 3. A modificação foi criticada por movimentos de mulheres e organizações em defesa dos direitos humanos, muitas delas articuladas na campanha pela integralidade do PNDH 3. Como informou a primeira reportagem desta série, sobre ensino e símbolos religiosos no Estado laico (publicada na edição 381), a campanha quer a revogação do decreto 7.177. A descriminalização do aborto é tema de pelo menos dois projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados – um deles em discussão desde 1991. Outros vários projetos falam sobre a permissão do aborto em casos de enfermidade congênita grave apresentada pelo feto, como a anencefalia. Atualmente, a
gestante que pratica o aborto pode sofrer pena de um a três anos de prisão. A prática é assegurada, no entanto, em situações nas quais a mulher corre risco de vida ou está grávida em decorrência de um estupro. Nesta segunda reportagem da série sobre as modificações no PNDH 3, a EPSJV/Fiocruz pretende estimular reflexões sobre a descriminalização do aborto. Esta matéria traz dados de pesquisa recente sobre quantas e quem são as mulheres que abortam no país, além de um panorama sobre como o tema tem sido tratado na esfera legislativa.
Reprodução
Mudança não agrada Segundo a doutora em sociologia da religião, Regina Jurkewicz, membro da coordenação da entidade feminista Católicas pelo Direito de Decidir, o PNDH 3 é fruto de um processo de reuniões que resultaram na Conferência Nacional de Direitos Humanos e, portanto, não poderia ser modificado. “Não é algo que saiu da cabeça de alguém, foi feito com a contribuição da sociedade organizada. A nossa primeira reação foi no sentido de parabenizar o ministro Paulo Vannuchi [secretário especial de Direitos Humanos da Presidência da República], porque o plano, como foi concebido, é ousado, toca em questões de fundo”, destaca. Ela lembra, entretanto, que Elza Fiúza/ABr
O ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi
a pressão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) contribuiu para a modificação do texto original. “O fato é que houve esse jogo de forças e pressão que fizeram com que o plano fosse alterado. Defendemos a posição integral que apareceu no primeiro texto, porque é muito mais forte você pensar em apoiar projetos em favor da descriminalização do que passar pelo reconhecimento do aborto como questão de saúde pública, que é algo que já vem sendo afirmado pe-
20% das mulheres já praticou o aborto Maioria é casada, tem filhos e professa alguma religião do Rio de Janeiro (RJ) Uma pesquisa inédita sobre a prática de aborto foi divulgada em maio. Coordenada pelos pesquisadores da Universidade de Brasília (Unb) e do Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero–Anis, Débora Diniz e Marcelo Medeiros, a pesquisa revela que uma em cada cinco mulheres de 40 anos já abortou pelo menos alguma vez na vida. Na faixa entre 18 e 39 anos, 15%, ou 5,3 milhões, já interromperam uma gravidez, sendo que, dentre estas, a maioria é casada, tem filhos e professa alguma religião. “Aí já se quebra o primeiro mito: de que a mulher que aborta é uma jovem ou adolescente irresponsável. Na realidade, é uma mulher absolutamente comum, que inclusive já conhece a maternidade”, aponta a professora Débora Diniz. A pesquisa foi financiada pelo Fundo Nacional de Saúde e realizada em todo o Brasil urbano. As regiões rurais não entraram na amostra pesquisada porque os altos
índices de analfabetismo impediam a realização de uma das etapas da pesquisa, que consistia em que as mulheres respondessem de próprio punho a um questionário.
“Metade das mulheres teve que ficar internada para finalizar um aborto, isso define um fenômeno como de saúde pública” De acordo com Débora Diniz, a metodologia utilizada diminui a margem de erro. A porcentagem de mulheres que responderam que já fizeram aborto foi elevada e como se tratou de um questionário sigiloso, no qual as mulheres não precisaram se identificar, é muito pouco provável que elas tenham mentido nas respostas. Os resultados da pesquisa mostram ainda que meta-
de das mulheres que abortaram usaram medicamentos para interromper a gestação. “Mas, e a outra metade, aborta como? Onde elas estão indo abortar? Metade das mulheres teve que ficar internada para finalizar um aborto, isso define um fenômeno como de saúde pública. Imagine a pressão no sistema de saúde em todos os seus níveis e o impacto na saúde das mulheres”, observa a pesquisadora. Para ela, houve um evidente retrocesso quando o governo federal modificou no PNDH 3 o item que apoiava projetos de lei pela descriminalização do aborto. “Quando você trata de 5 milhões de mulheres presas, é óbvio que está falando do tema da descriminalização. Mas além disso, nós temos metade delas internadas, o que é uma questão de saúde pública. O que se optou foi: ‘não vamos olhar o marco legal, mas vamos olhar para a saúde das mulheres’. As duas coisas andam juntas, mas esse retrocesso foi a negociação a partir da imensa pressão que [o governo] sofreu por se falar do tema do aborto como uma questão de direitos humanos”, avalia. (RJ)
lo presidente Lula e pelo ministro [da Saúde José Gomes] Temporão”, analisa. Segundo Regina, já que houve a mudança PNDH 3, é preciso defender que se coloque em prática pelo menos o conteúdo que está no texto atual – a garantia de que o problema seja tratado pelo viés da saúde pública. Ela ressalta que atualmente os serviços de saúde públicos não contemplam sequer os casos previstos em lei para a prática do aborto e que as mulheres pobres, que não têm
recursos para pagar clínicas clandestinas, recorrem aos hospitais públicos para realizar a curetagem (procedimento cirúrgico para limpeza do útero). “Mais cedo ou mais tarde vai se esbarrar de novo no problema da descriminalização”, antecipa. Se, por um lado, o movimento de mulheres ficou descontente com as mudanças feitas no PNDH 3 original, por outro, parlamentares que são contra a descriminalização do aborto também não ficaram satisfeitos. É o caso do deputado petista Odair Cunha (PT-MG), autor de um projeto de lei que cria o Estatuto do Nascituro. A proposta caracteriza o “nascituro” como um ser humano concebido, mas ainda não nascido, inclusive os concebidos in vitro, “ou através de clonagem ou outro meio científica e eticamente aceito”. O PL foi rejeitado recentemente na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados não por
seu conteúdo, mas por haver outra proposta com teor idêntico a dele, dos deputados Luiz Bassuma (PV-BA) e Miguel Martini (PHS-MG). “[O item sobre a descriminalização do aborto no texto original do PNDH 3] é um equívoco. Fala em direitos humanos, mas e o humano que há no nascituro não deve ser garantido? Tanto que o governo fez uma revisão. Tratar como saúde pública é diferente de descriminalizar o aborto. Nunca achei que a mulher não deve ser atendida no sentido de saúde, mas isso não significa que ela se verá livre de problemas com a justiça. A versão atual aponta no sentido de garantir o direito humano. Mas acho que esse tema não deveria ser tratado no PNDH, então nenhum dos dois textos é adequado”, avalia Odair.
“Mais cedo ou mais tarde vai se esbarrar de novo no problema da descriminalização” O autor do outro projeto, deputado Luiz Bassuma, também critica a proposta. “Como o tema estava, nós achamos um absurdo, como ele está agora, virou alguma coisa em cima do muro. Fica na posição de quem não quer se desgastar e prefere agrupar uma posição dúbia: fala que continua sendo uma questão de saúde pública, mas nem remete para a legalização do aborto e muito menos diz que é contra”, afirma. Em visita à EPSJV/Fiocruz, onde foi o convidado da aula inaugural do ano letivo, no dia 12 de março, Paulo Vannuchi argumentou a favor da descriminalização do aborto. Ele lembrou, entre outras coisas, que não há comprovações científicas de que a vida começa na concepção. (Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz)
Projetos de lei acentuam perseguição do Rio de Janeiro (RJ) Em maio, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 478/2007, que cria o Estatuto do Nascituro. A proposta caracteriza o “nascituro” como um ser humano concebido, mas ainda não nascido, e lhe estende os direitos da pessoa nascida. Diz ainda que é vedado ao Estado ou a qualquer pessoa “provocar dano ao nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores”. “O coração e pulmão deste projeto é regulamentar o artigo 5º da Constituição brasileira no que se refere à garantia da vida, uma vez que lá, evidentemente, não estava definido quando começa a vida. E de 1988 para 2010 houve avanços extraordinários na ciência, entendemos que não pode haver mais dúvida sobre a origem do começo da vida: no momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozóide”, diz o deputado Luiz Bassuma, um dos autores da proposta. Para a pesquisadora Débora Diniz, o estatuto tem teor religioso e fere o princípio do Estado laico, ou seja, que não professa nenhuma religião, mas garante a existência de todas. “O próprio conceito
de nascituro é religioso. O desafio neste debate é se essa pergunta tem que ser feita para a democracia ou para as comunidades morais e religiosas. O equívoco dele é de ponto de partida”, diz. Mais criminalização Já o PL (7022/10), de autoria do deputado federal Rodovalho (PP/DF), torna obrigatório o registro público da condição de gravidez pelas mulheres. Na justificativa da proposta, o autor afirma que o objetivo é impedir a “prática impune do aborto”. Regina acredita que tem havido um recrudescimen-
to de posições conservadoras no sentido de não garantir os direitos femininos. “Nós sabemos que existe um fortalecimento das posições fundamentalistas e uma entrada estratégica e bem pensada nos espaços políticos de decisão, como Câmara e Senado. Cada vez mais, há organizações, frentes parlamentares para conseguir aprovar leis neste sentido. Em um Estado democrático, todas as posições devem ser colocadas no cenário, mas o que não está bom é que o Estado se deixe levar por pressões de setores religiosos”, aponta. (RJ)
Descriminalização está parada no Congresso Desde 1991, está tramitando na Câmara o Projeto de Lei nº 1.135, de autoria do ex-deputado Eduardo Jorge (PT/ SP), que propõe suprimir do Código Penal o artigo 124, que inclui a prática de aborto como crime e estipula pena de detenção de um a três anos para quem o comete. A última movimentação do PL remonta a 2008, quando esteve prestes a ser arquivado. Na ocasião, o deputado federal José Genoíno (PT/SP) apresentou um recurso para que fosse apreciado no plenário. Apensado ao PL 1.135, tramita uma proposta do próprio Genoíno (PL 176/95) que garante que a mulher possa abortar até os 90 dias de gestação, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com acompanhamento médico, psicológico e de assistência social. Porém, o parlamentar acha que dificilmente haverá debate sobre o projeto em 2010, posto que é ano eleitoral. (RJ)
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Com gosto de derrota, Lula dá reajuste aos aposentados Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
PREVIDÊNCIA Apesar de considerar aumento importante, movimento sindical mirava fim do fator previdenciário
Profecia incompleta
Aposentados e pensionistas acompanham sessão do Senado
do que retarda a aposentadoria dos trabalhadores. Deputados da base governista asseguram que não há possibilidade de o assunto voltar à pauta antes das eleições. Saldo negativo Para o presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Wagner Gomes, com a decisão de Lula, os trabalhadores obtiveram um resultado mais negativo do que positivo. “A nossa primeira reação foi lamentar que essa medida tenha vindo do presidente Lula. O fim do fator previdenciário era o ponto mais importante, já que o reajuste aos aposentados – que não deixa de ser positivo – só vale para este ano. Ano que vem volta ao mesmo patamar”, considera. Para o sindicalista, o assunto do fator previdenciário ainda não está encerrado. “A briga não acabou. Vamos nos reunir com o movimento sindical para definir uma estratégia para derrubar o veto e impor um fim ao fator previdenciário”, diz.
A Central Única dos Trabalhadores (CUT) também criticou o veto presidencial e ressaltou que o movimento sindical tem trabalhado em torno de uma proposta alternativa ao fator previdenciário. A CUT defende que o fim do fator seja condicionado à formula 85/95. Segundo a proposta, as mulheres que somassem 85 anos de idade e de serviço, poderiam se aposentar. Enquanto os homens teriam que somar 95 anos. Falso déficit Para Wagner Gomes, o fato de o argumento de um suposto déficit da Previdência ter sido colocado pelo governo é mais um motivo para lamentar a decisão. A suposta previdência deficitária é apresentada a partir de uma engenharia financeira que desvia verbas da seguridade social – composta por Saúde, Previdência e serviço social. O dispositivo que retira verbas do setor é a desvinculação das receitas da união (DRU), a qual permite tomar para o pagamento de ju-
Em versão tímida, Estatuto da Igualdade Racial é aprovado
Jorge Américo de São Paulo (SP) O MOVIMENTO negro classificou a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial como a maior derrota dos últimos 60 anos. O texto final, votado no dia 16 de junho, eliminou reivindicações históricas. Entre elas, as cotas nas universidades, serviço público e partidos políticos. A demarcação das terras quilombolas, combatida pelos ruralistas, também acabou rejeitada. Foi negada ainda a atenção às doenças com maior incidência entre os negros, como a anemia falciforme. O projeto original tinha sido apresentado em 2003. Depois de sofrer três alterações, foi aprovado mediante acordo firmado entre o autor, senador Paulo Paim (PT/ RS), e o relator, senador Demóstenes Torres (DEM/GO). A mediação do acordo foi feita pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), órgão consultivo da Presidência da República. Na véspera da votação, mais de 120 organizações do movimento social e negro enviaram uma carta aberta ao Senado. Elas pediam a retirada definitiva do projeto. O objetivo era reiniciar o debate na próxima legislatura. Reginaldo Bispo, integrante do Movimen-
O capital estrangeiro não tem o que reclamar da política econômica do governo brasileiro: no primeiro quadrimestre de 2010, as empresas europeias enviaram para suas matrizes 4,4 bilhões de dólares, 76% a mais do que no mesmo período do ano passado. Tudo é lucro obtido com a baixa remuneração dos trabalhadores, isenção de impostos para o capital e financiamentos vantajosos do BNDES. É como tirar pirulito de criança. Relatório do governo dos Estados Unidos, divulgado dia 14, aponta o Brasil entre os países com graves problemas de trabalho escravo: “O Brasil é uma fonte de homens, mulheres, garotas e garotos sujeitos ao tráfico de pessoas, especialmente forçados à prostituição no país e no exterior, assim como é fonte de homens e de garotos forçados a trabalhar no país”. Por que essa situação nunca é superada?
ros uma parte dos recursos de tributos cuja receita deveria ir direto à seguridade.
“A nossa primeira reação foi lamentar que essa medida tenha vindo do presidente Lula” Nesse sentido, o déficit proclamado pelos órgãos do governo e de imprensa só pode ser observado a partir de uma visão que contraria os preceitos da Constituição de 1988, que determina o destino de tributos como CSLL, Cofins e contribuições ao INSS. No entanto, apesar da mordida da DRU, o conjunto da seguridade social tem se apresentado superavitário.
MOVIMENTO NEGRO
Acordo da base governista com ruralistas veta reivindicações históricas
Pura espoliação
Trabalho escravo
Renato Godoy de Toledo da Redação EM MEIO À expectativa nacional em torno da estreia do Brasil na Copa do Mundo, no dia 15 de junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva aprovou o reajuste de 7,7% aos aposentados, mas vetou o fim do fator previdenciário. Tal como o sofrido 2 a 1 sobre a Coreia do Norte, a decisão do presidente pode ser considerada uma vitória magra. Se a tática presidencial era abafar o possível resultado negativo da medida na imprensa, o êxito foi alcançado, já que o noticiário esportivo ocultou a reação das organizações sindicais. Ainda que o reajuste aos aposentados fosse reivindicado pelo movimento sindical, o peso maior era dado ao fim do fator previdenciário, já que este representaria quase que uma contra-reforma da Previdência, anulando alguns dos principais malefícios ao setor impostos pelos governos FHC e Lula. O fator previdenciário reduz o valor da aposentadoria de quem contribui por menos tempo, o que, de certa forma, obriga o trabalhador a permanecer mais tempo em seu posto para garantir um benefício razoável. O cálculo para aposentadoria muda conforme aumenta a expectativa de vida no país. O fim do fator e o reajuste aos aposentados foram aprovados no Congresso. Após a decisão presidencial, especulou-se que o Legislativo poderia derrubar o veto do presidente, mas a medida não deve ganhar força. Os sindicatos, no entanto, prometem manter a luta contra este méto-
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
to Negro Unificado (MNU), questiona o texto aprovado, por ele ser autorizativo e não prever verbas que garantam a implementação de políticas públicas. “Ele realmente se constitui numa camisa de força para o movimento negro e para os avanços da luta do povo negro no Brasil. Este é, rigorosamente, o pior cenário que a gente vivenciou nos últimos 60 anos, desde a lei Afonso Arinos, de 1950. Era preferível que ficássemos mais dez anos tentando construir um estatuto, mas que tivesse base popular de interesse da população e que elegesse deputados e senadores para bancar no Congresso, do que aceitar essa construção das elites”, compara. Identidade política Demóstenes Torres explica ter eliminado os critérios raciais para a aplicação de políticas públicas direcionadas por considerar que todos os pobres vivem no mesmo patamar. “É preciso enfrentar essa questão étnica, uma vez que raça não existe. Existem ainda muitos brasileiros que merecem acesso à proteção social, em decorrência de sua origem humilde, e isso não é promovido pelo Estado brasileiro”, afirma. Na contramão da tese do senador, o professor de história Douglas Belchior, do Conselho Geral da Uneafro Brasil, acredita que, enquanto não ocorrerem mudanças estruturais, é preciso sanar a demanda imediata. “As universidades são espaços de poder, que devem ser ocupados pelos negros. A raça como identidade política (e não como fator biológico) é um elemento que deu ao movimento
negro condições de mostrar que as desigualdades sociais no Brasil são marcadas pela cor da pele. É uma realidade da sociedade escravocrata e racista que os dois únicos artigos da Lei Áurea não conseguiram estancar.”
“Ele tem um valor simbólico que ilumina o caminho dos que lutam pela igualdade de direitos e por ações afirmativas” Para Belchior, as alterações no projeto do estatuto são decorrentes de uma articulação maior, que envolve intelectuais e jornalistas. “Na academia e em alguns setores da imprensa brasileira, vemos um movimento muito forte no sentido de tentar provar que ‘não somos racistas’. São pessoas que defendem a soldo essas idéias. O senador Demóstenes Torres bebeu dessa fonte para manifestar seus temores quanto ao acirramento do ódio racial. Vivemos uma falsa harmonia e as ações policiais que têm vitimado a juventude negra dispensam argumentos”, analisa. O governo já recebeu diversas críticas de setores do movimento negro por não ter colocado seus principais ministros em defesa da proposta original. No entanto, em entrevista à Agência Senado, o senador Paulo Paim demonstrou satisfação pela aprovação de um “estatuto possível”, diante da correlação de forças no Congresso.
“Ele tem um valor simbólico que ilumina o caminho dos que lutam pela igualdade de direitos e por ações afirmativas”, comemorou. O ministro da SEPPIR, Elói Ferreira de Araújo, classificou a aprovação do Estatuto como “uma vitória fantástica”. Senado e no STF Como o artigo que tratava da implantação de cotas nas universidades federais foi eliminado, o Senado retomará as discussões do PLC 180/08, que reserva 50% das vagas nas universidades e escolas técnicas federais para estudantes formados em escolas públicas. Conforme o projeto, que aglutinou propostas semelhantes, metade dessas vagas estariam reservadas para pobres, negros, pardos e indígenas. A senadora Serys Slhessarenko (PT/MT), relatora do projeto, apresentou parecer em abril de 2009. Porém, para ser votado, o relatório depende da indicação do presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), o senador Demóstenes Torres. No início de março, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski convocou uma audiência pública para discutir a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), movida pelo partido Democratas e uma ação da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenem). Ambas questionam os critérios raciais empregados na política de cotas da Universidade de Brasília (UnB). A UnB foi a primeira universidade federal a instituir reserva de vagas para negros, em junho de 2004. Entre as públicas de grande porte, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) é pioneira, tendo iniciado seu programa em 2001. Atualmente, aproximadamente 100 instituições públicas de ensino superior adotam alguma modalidade de ação afirmativa.
Dia 21 de junho completou 180 anos do nascimento de Luiz Gama, precursor do abolicionismo. Em carta para o filho, afirmou: “Faze-te o apóstolo do ensino, desde já. Combate com ardor o trono, a indigência e a ignorância. Trabalha por ti e com esforço inquebrantável para que este país em que nascemos, sem rei e sem escravos, se chame Estados Unidos do Brasil”. Mais de cem anos depois, os reis têm outros nomes e o trabalho escravo persiste.
Avacalhação total
Depois que o Supremo Tribunal Federal anistiou os torturadores da ditadura, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu anistiar agora os funcionários fantasmas do Congresso Nacional, como Luciana Cardoso, filha do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o mordomo da ex-senadora Roseana Sarney, e outros, que recebiam altos salários do erário público sem prestar qualquer serviço público. Alguém ainda acredita nessas instituições?
Mais entreguismo
Aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 29/2007, que regulamenta o funcionamento da TV paga, permite que empresas de telefonia – nacionais e estrangeiras – possam também produzir conteúdos sem as restrições definidas na Constituição Federal. A nova lei exige apenas três horas e meia de produção nacional por semana. É o massacre da indústria cultural estrangeira!
Retrocesso federal
Em carta ao povo maranhense, o deputado federal Domingos Dutra e o líder camponês Manoel da Conceição protestaram contra a imposição de Lula de obrigar o PT do Maranhão a apoiar a reeleição de Roseana Sarney: “o Código de Ética do Partido para doar o PT para uma oligarquia corrupta. Violentaram a democracia interna para eternizar o poder de uma família”. Será que esses petistas estão fazendo o jogo da direita?
Alimentos saudáveis
O Movimento dos Atingidos por Barragens implantou novo método na produção de alimentos nos assentamentos de Laranjeira, em Capão Alto (SC), São Sebastião, em Esmeralda (RS), e Primeira Conquista, em Barracão (RS), baseado na construção de galinheiro rodeado por hortas circulares, estufa e pomar com 150 mudas frutíferas. O projeto – de baixo custo – deverá beneficiar 10 mil famílias com alimentos de qualidade e geração de renda.
Obra faraônica
No dia 21 de junho mais de 400 pessoas – moradores da região de Altamira, no Pará – bloquearam a Rodovia Transamazônica por algumas horas em protesto contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, que deverá causar danos ambientais e afetar a vida de ribeirinhos, agricultores e indígenas. As empresas construtoras querem acelerar as obras para ter o fato consumado antes do término do governo Lula.
Exemplo africano
A África do Sul gastou uma fortuna incalculável para a realização da Copa do Mundo de Futebol, especialmente com obras de urbanização, construção de estádios, meios de transportes etc, que beneficiam as parcelas mais ricas da população. Os mais pobres, os vendedores ambulantes e os moradores das periferias estão sendo duramente reprimidos pela polícia e afastados do contato com os turistas. É o ensaio da Copa no Brasil!
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brasil
Sedentos de respeito, dignidade e vida SEMI-ÁRIDO Atingidos e atingidas pelo projeto de transposição do rio São Francisco se reúnem na Paraíba para um encontro pioneiro no Brasil Henrique França de Campina Grande (PB) “A HISTÓRIA do rio São Francisco é maior que essa tal transposição”. Com essa frase, entoada como um cântico sertanejo, aproximadamente 80 pessoas de cinco estados do Nordeste brasileiro abriram um evento pioneiro no
João Zinclar
país – um ajuntamento modesto em proporções e gigante na vontade por mudança. Entre os dias 17 e 19 de junho, Campina Grande, interior da Paraíba, foi o local de debates, relatos e propostas que marcaram o Encontro de Atingidos e Atingidas pelo Projeto de Transposição do Rio São Francisco. O evento causou impacto porque foi além das projeções tidas como pessimistas dos estudiosos antitransposição e expôs casos reais de nordestinos que já provaram o efeito nocivo da obra encampada pelo governo federal. Caso dos índios Trukás, moradores errantes de terras pernambucanas do município de Cabrobó. Até hoje sem a tão sonhada demarcação de território, pelo menos cinco mil deles amargam a chegada das obras do canal que pretende levar o leito do Velho Chico estado adentro.
Operários trabalham na construção do canal da transposição
Ato público no maior São João do mundo de Campina Grande (PB) Era noite do dia 18 de junho quando os participantes do Encontro de Atingidos e Atingidas pelo Projeto de Transposição do Rio São Francisco, em massa, entraram no Parque do Povo, local do chamado Maior São João do Mundo, em Campina Grande (PB). Vestidos com chapéu de couro, cabacinha na cintura, faixa nas mãos, apito nos lábios, firmeza nos pés e esperança nos olhos esses sertanejos, vindos de estados diferentes, mostraram ao público presente à festa naquela noite a unidade por uma só bandeira: a de quem brada por respeito à sua gente, à sua cultura, ao seu legado. Entre quadrilhas, xaxados e forrós juninos, os versos ser-
“Ao demonstrarmos isso através das faixas, as pessoas no Parque do Povo puderam ter acesso sobre o que de fato está acontecendo” tanejos vinham em forma de protesto, escrito em faixas: “Não à transposição. Conviver com o semiárido é a solução” e “Transposição: somos todos atingidos”. Para Socorro Fernandes, integrante da Frente Paraibana em Defesa da Terra, das Águas e dos Povos do Nordeste e presidente da Associação Paraibana dos Amigos da Natureza (Apan), a mobilização no maior São João do mundo alcançou seu objetivo. “A importância do ato é ter dado visibilidade a essa problemática
dos atingidos e atingidas pela transposição. E, ao demonstrarmos isso através das faixas, da caracterização, as pessoas presentes no Parque do Povo puderam ter acesso e ficar cientes de algumas informações sobre o que de fato está acontecendo nesse projeto faraônico do governo federal. O que está faltando são informações verdadeiras sobre o projeto, já que o número de pessoas que direta e indiretamente estão e serão afetadas negativamente com a vinda desse canal é muito grande”. (HF)
O medo exibido na tela e fora dela Filme mostra a experiência de outros canais já construídos no país de Campina Grande (PB) Informação. Essa foi a matéria prima do Encontro de Atingidos e Atingidas pelo Projeto de Transposição do Rio São Francisco realizado em Campina Grande. Quem está sofrendo as consequências, quais as condições dos que já se encontraram com as máquinas perfurando o subsolo cinco metros abaixo, quem teve as paredes de casa rachadas pelo impacto das dinamites usadas para abrir caminho por onde o governo quer fazer passar as águas do rio São Francisco. Cenas assim foram reveladas no videodocumentário “Transposição do Rio São Francisco: conhecemos essa história de outros canais”, exibido na noite de abertura do evento. Ao longo dos pouco mais de 18 minutos de projeção, frases como “a gente tem medo” e “antes era melhor” chamam a atenção de quem não está acostumado a ouvir relatos negativos sobre uma obra considerada a salvação para a seca no semiárido nordestino. De Engenhos Ávidos, na Paraíba, a Apodi, no Rio Grande do Norte, as palavras registradas pelas câmeras revelam insegurança e apreensão quanto à passagem do São Francisco transposto em terra estrangeira. O depoimento do sertanejo Ademilson Ferreira, de São José da Lagoa Tapada, interior paraibano, chama a atenção. Sua pequena propriedade está localizada a poucos metros de onde passará a trans-
posição. Apesar disso, ele decidiu construir uma cisterna para abastecer sua plantação e os animais. “Creio que vai ser preciso a gente pagar os direitos para receber essa água”. Mesmo que não haja cobrança pecuniária pela água transposta, muita gente já está pagando por ela com a liberdade. Em Jaguaribara, no Ceará, o depoimento de Francisco Saldanha surpreende. “Temos hoje mais de 500 famílias retiradas do local onde agora passa o rio e que foram deixadas em assentamentos, sem qualquer atenção. Até mesmo a água do canal a gente não tem acesso, não tem direito a usar. Se tem um animal, não pode tirar água para o bicho. Eu mesmo já fui ameaçado de ser preso. A polícia veio atrás de mim duas ou três vezes porque eu estava tirando água do canal”, relata o sertanejo. Do lado de cá da tela, seu Edílson Oliveira de Morais, de 56 anos, admite a apreensão. “Alguns vizinhos já receberam a visita dos homens do governo. Eles disseram ‘a partir de hoje não faça mais nada na terra’”, relata seu Edílson, que nasceu em Apodi e mora no mesmo local desde os cinco anos de idade. Hoje posseiro, esse sertanejo garante seu abastecimento de água com um poço no quintal de casa. Mas seu sossego foi abalado há alguns dias, quando encontrou técnicos perfurando suas terras para fazer análise. “Eles chegaram sem avisar e disseram que não iam mexer comigo. Mas, como não, se es-
tavam dentro do meu terreno fazendo pesquisa?”, questiona. “Pela experiência de outros companheiros, tenho medo de perder a terra”.
“Eu mesmo já fui ameaçado de ser preso. A polícia veio atrás de mim duas ou três vezes porque eu estava tirando água do canal” Cícera Soares, da coordenação do MST na Paraíba, conta que famílias moradoras da zona rural de São José de Piranhas, sertão do estado, tiveram que deixar suas terras e retornar à cidade por causa das obras da transposição. “Eu sou assentada em Sousa, onde o canal vai passar diretamente. É lá onde está o Rio Piranhas e o Canal da Redenção. Estamos tendo um enfrentamento direto com o Estado, mas queremos organizar os atingidos e atingidas pela transposição na luta por sua dignidade. Muitas pessoas vão perder sua cultura, suas origens pra viver das migalhas que o governo vai oferecer a elas. Queremos mobilizar a sociedade para debater o projeto e não esperar que ele caia nas mãos do agronegócio”. (HF)
“Em 2007, fizemos acampamento no trecho onde o Exército estaria chegando com as máquinas. Passamos dez dias lá até que o Ministério da Integração Nacional entrou com uma reintegração de posse e nos afastou da área. Os estudos sobre essa delimitação já foram concluídos, mas até agora nada. Não temos informações sobre prazos e dimensão das terras indígenas. Hoje, cerca de 80% da obra já está concluída em Cabrobó. E os trabalhadores da localidade chamados para a transposição estão sendo demitidos. Para nós, foi uma surpresa amarga. Esperávamos a demarcação das nossas terras e de repente vem uma obra desse tamanho”, lamenta o truká Francisco Ferreira da Silva, o Nenê, atual secretário de Assuntos Indígenas de Cabrobó, que esteve presente ao evento em Campina Grande.
Os números cegos da transposição de Campina Grande (PB) A matemática financeira do governo federal para a transposição do rio São Francisco é altíssima. Estimam-se gastos em torno de R$ 6 bilhões. O agora chamado Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional pretende assegurar água a 12 milhões de habitantes de cidades do semiárido de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. De acordo com informações do Ministério da Integração Nacional, responsável direto pelo empreendimento, o projeto será possível “com a retirada contínua de 26,4 m³/s de água, o equivalente a 1,4% da vazão garantida pela barragem de Sobradinho (1850 m³/s) no trecho do rio onde se dará a captação. Este montante hídrico será destinado ao consumo da população urbana de 390 municípios do Agreste e do Sertão dos quatro estados do Nordeste Setentrional. Nos anos em que o reservatório de Sobradinho estiver vertendo, o volume captado poderá ser ampliado para até 127 m³/s, contribuindo para o aumento da garantia da oferta de água para múltiplos usos”. Analisando de outro aspecto, porém, os números não parecem tão positivos assim para saciar a sede do sertanejo. Pelo projeto, nada menos que 70% das águas que passarão pelos canais da transposição serão destinadas à irrigação; 24% serão para uso urbano e industrial e apenas 4% irão para o consumo humano (população rural difusa). “Os beneficiários da transposição do São Francisco serão as empreiteiras, os in-
dustriais, o grande capital. O povo está sendo iludido, não terá acesso a uma gota de água sequer da transposição. Não está claro no projeto como essa água sairá das grandes represas para abastecer o povo. Está claro que a água irá caminhar nos 700 km de canais e abastecerá as principais represas do Nordeste, para promover aquilo que as autoridades estão chamando de sinergia hídrica, que é a forma dessas represas não virem a secar”, denuncia João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e estudioso do rio São Francisco há mais de 15 anos.
“O projeto de transposição é um presente de grego. A propaganda oficial não enxerga as transformações que a região vem passando” Outros estudos batem de frente com a propaganda do governo federal. Sobre a capacidade da barragem que é ponto de partida da transposição, o engenheiro civil e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, João Abner Guimarães Jr., aponta que em um período de seis meses Sobradinho reduziu em 85% seu armazenamento de água. “O projeto de transposição é um presente de grego. A propaganda oficial
não enxerga as transformações que a região vem passando. Durante os últimos 100 anos, o governo federal desenvolveu na região receptora o maior programa de açudagem do mundo. Essa extraordinária infraestrutura, por si só, sem contar as captações subterrâneas, tem capacidade de atender plenamente as demandas regionais, mesmo nos períodos de seca extrema”. Ruben Siqueira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ratifica a capacidade hídrica da região e questiona veementemente o objetivo da transposição. “O semiárido brasileiro é a região, entre os semiáridos do mundo, que mais concentrou água, que mais fez açudes. São 70 mil deles. São grandes cemitérios de água, porque essas águas estão lá e não estão sendo usadas, ou são usadas pelos grandes latifundiários. Para que, então, exportar água? Alguns falam que a transposição dará segurança hídrica às águas do nordeste. Mas nós perguntamos: aumentar a oferta hídrica para quem? Para fazer o que? A que custo? Qual o desenvolvimento que está por trás da transposição? Esse debate não está sendo feito. Essa água acumulada, por lei, deve ser acessível à população do árido, mas não é”. Há ainda outra questão a ser considerada: o preço. “Os custos altos da água, para que sejam viáveis a usos econômicos, serão distribuídos a todos que pagam conta de água. É o sistema conhecido por ‘subsídio cruzado’, algo que acontece atualmente com a energia elétrica. Em Minas Gerais, por exemplo, a energia doméstica é 60 centavos o mw/h para que a das empresas seja apenas 6 centavos”, alerta Siqueira. (HF) João Zinclar
Gastos da obra estão estimados em R$ 6 bilhões
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cultura
José Saramago
Suspiros lusitanos Ademar Bogo
Se um suspiro, leve e lusitano Zumbir nas almas das nações imensas É o comunista que para além das crenças Silenciosamente da vida física se dispensa. Vai pessoalmente viver a eternidade E olhar de perto na tez do criador Que pelas criaturas foi subjugado E obrigado a justificar o horror. Irá verificar que as guerras entre os deuses não existem Pois são apenas conflitos da existência Que os homens criam e põe-se a conflitar Pedindo a Deus que tome providências. E faça sempre o mais forte vitorioso Abençoado pelas cruéis vitórias Para deixar nos livros registrados Os escritos que reflitam a superior memória. Tudo o que disse são sobre os seus dilemas Ficam como dizeres formulados Se não dava nem acreditava em conselhos É porque queria vê-los por conta experimentados. Os próprios passos seriam os conselheiros E os conselheiros caminhantes e aprendizes; Se os erros deveriam ser experienciados Com os acertos formariam matrizes. Era a crença de um apaixonado Que a si mesmo o saber se concedeu Porque acima de todas as verdades Acreditava que não existe o absoluto ateu. Por sobre as oliveiras e as corticeiras Versos e letras irradiarão verdades A qualquer tempo virarão consciências E viverás nos povos em forma de saudades. Assim abrimos o tempo enlutado Para purgar a dor do prejuízo humano Se no passado choramos escravizados Hoje, nossos suspiros também são lusitanos*.
Pastor de fábulas, lanterna dos afogados
Reprodução
Luiz Ricardo Leitão “Após escrever tantas páginas, fez-se-me a convicção que devemos levantar do chão nossos mortos, afastar dos seus rostos, agora só ossos e cavidades vazias, a terra solta, e recomeçar a aprender a fraternidade por aí.” (José Saramago, Manual de pintura e caligrafia) QUANDO MORRE um escritor do porte de José Saramago, perde-se não apenas um artista, mas também um intérprete singular da cultura de um povo e de toda a humanidade. O romancista português, único de nossa língua a ser agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, cumpriu de fato com rara maestria a dupla missão que ele próprio se impôs ao longo de seus fecundos 87 anos de vida: foi um engenhoso pastor de fábulas e também uma providencial lanterna dos afogados para todos nós que quase sucumbimos ao tsunami pós-moderno deste planeta neoliberalmente globalizado. Li-o pela primeira vez nos anos 1980, quando me chegou às mãos um exemplar encadernado de Memorial do convento (1982). Encantei-me de imediato com a história de Baltasar e Blimunda, duas criaturas simples e resolutas cujo novelo amoroso se enreda na saga do padre voador Bartolomeu de Gusmão, um brasileiro visionário que em plena corte de D. João V, no século 18, reeditava os desígnios de Da Vinci e sonhava alçar aos céus a sua passarola. Eu logo compreendi que somente o neto de um guardador de porcos e herdeiro da secular tradição oral dos camponeses do Alentejo saberia tornar universais criaturas tão telúricas, cuja grandeza moral e espírito empreendedor se contrapunham ao ócio da nobreza e à opressão da Igreja Católica. O pastor de fábulas já se mostrava ali em plena maturidade, arrebanhando nos pastos do imaginário de sua gente os causos fabulosos que calavam tão fundo no coração dos leitores. Esse sopro de realismo mágico também se fez presente nas páginas de A jangada de pedra (1986), outra narrativa quase surreal do autor, cujo argumento me soou como uma monumental alegoria da condição a que foram relegados portugueses e espanhóis no Velho Mundo. Após uma fissura dos Pirineus, a Península Ibérica se desgarra do continente e permanece à deriva no Atlântico. No texto de Saramago, o oceano abriga um caudal de mitos e evocações históricas, em que há lugar inclusive para D. Quixote e os peregrinos que na Idade Média cruzavam a trilha de Santiago de Compostela. Em certa medida, esse tom de fábula apocalíptica seria reencenado mais tarde em Ensaio sobre a cegueira (1995), em que o aparente ceticismo capitula em face da esperança, aquele sentimento último que se esconde na caixa de Pandora da imaginação. Nenhuma obra, porém, me pareceu tão ímpar e iluminada quanto O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), em que o escritor se ocupa de nos descrever o filho de José como um ser absolutamente humanizado, que se rebela contra o seu destino e pas-
HOMENAGEM da Redação
O escritor português José Saramago morreu aos 87 anos, dia 18, em sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde vivia há vários anos Segundo a página eletrônica (http://www.josesaramago.org/) da fundação que leva o nome do escritor, sua morte foi “consequência de uma múltipla falha orgânica, após uma prolongada doença”. A nota informou ainda que Saramago “morreu estando acompanhado pela sua família, despedindo-se de uma forma serena e tranquila”. Considerado o responsável pelo reconhecimento internacional da literatura em prosa em língua portuguesa, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1998. Entre seus livros mais conhecidos estão O evangelho segundo Jesus Cristo, A balsa de pedra, A viagem do elefante e Ensaio sobre a cegueira, adaptado para o cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles. Seu último romance editado foi Caim, publicado no ano passado. Saramago nasceu em 16 novembro de 1922 na aldeia Azinhaga, no Ribatejo, concelho de Golegã. Conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, era membro do Partido Comunista Português e foi diretor do jornal Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Miguel Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC).
sa a questionar a figura divina, os dogmas do cristianismo e a própria Igreja, assim como o estigma metafísico do sofrimento e da morte. Publicada na mesma época em que os profetas da pósmodernidade apregoavam o fim da história, a obra ecoou dentro de mim como uma canção da Legião Urbana, em que a insólita e terrena paixão de Cristo e Madalena mesclavam a dicção lírica de Camões e a solene inflexão da epístola de São Paulo: ainda que falássemos a língua dos homens e a língua dos anjos, sem amor – fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente – nós nada seríamos... É óbvio que suas opções estéticas e ideológicas lhe renderam censuras e vetos anacrônicos de governos e de corporações da fé. Se, de um lado, a Igreja portuguesa identificava no Evangelho uma série de “alucinações religiosas”, por outro, a Secretaria de Cultura (?) de Portugal proibiria, em 1992, a inscrição do livro na disputa do Prêmio Literário Europeu, por considerá-lo “ofensivo para o catolicismo do povo lusitano”. Era apenas mais uma de tantas admoestações que os prepostos da hipocrisia lhe fariam, como atestam as declarações do Vaticano logo após o anúncio de sua morte, há uma semana, condenando-o pelas supostas heresias e pela explícita adesão ao comunismo. A simpatia por Marx, aliás, não incomodou apenas o clero: em um país de triste passado salazarista, a incisiva solidariedade de Saramago às mais diversas causas e movimentos revolucionários do planeta (desde a luta dos palestinos contra o Estado fascista de Israel até o clamor do valoroso Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST por uma reforma agrária radical na pátria dos coronéis) também suscitou reações coléricas da mídia burguesa e da (pseudo) intelligentsia a seu serviço, sempre pronta a ta-
chá-lo de “fanático” ou “intolerante”. Nada disso impediu que esse prodigioso contador de histórias viesse a conquistar um público fiel e numeroso nos mais diversos rincões do globo. Um mérito único do genial prosador, cuja ficção logra ao mesmo tempo arrebatarnos e revelar-nos as contradições profundas do passado e do presente, alumiando o passo dos cegos e instalando preciosos grãos de dúvida sobre as verdades cristalizadas dos poderosos. Saramago se inscreve, enfim, naquela galeria ímpar de romancistas que, com o barro da ficção, modelam sob a forma de tramas e personagens memoráveis a es-
sência última dos homens. O camarada russo Fiódor Dostoiévski decerto o acolherá com muito gosto em sua nova morada. Quem sabe até o nosso solene Machado de Assis o aguarde ao lado de Brás Cubas, o célebre “defunto autor”, a fim de relatar-lhe os mais recentes caprichos das elites do Novo Mundo, pródigas na arte de prometer mudanças que nunca se concretizam. Não sei como será a conversação dos gajos na tertúlia dos astros. Aqui embaixo, continuamos todos nós a infindável sina de abrandar estas pedras, suando-se muito em cima ou a de tentar despertar terra sempre mais extinta, como já can-
tou mestre João Cabral. Faço votos, porém, que, com a sanção definitiva desta morte, a sábia ficção de Saramago nunca deixe de ser recitada em voz alta nas escolas ao redor do mundo, inclusive cá nesta Bruzundanga em que diariamente nos levantamos do chão para recomeçar a aprender a inesgotável lição da fraternidade. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de O campo e a cidade na literatura brasileira (2007) e de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).
*Os lusitanos (povos Lusis) constituíram um conjunto de povos ibéricos pré-romanos de origem indo-europeia que habitaram a parte Oeste da Península Ibérica Em 29 a.C., tendo à frente o líder Viriato, resistiram a invasão, através de guerrilhas e emboscadas. Mais tarde foi criada a província romana da Lusitânia nos territórios, que atualmente é Portugal. Por esta razão, os povos que falam línguas que têm como tronco a língua indo-europeia, como português e espanhol, principalmente, somos todos descendentes do povo guerreiro, lusitano. Por isso, choramos a morte do irmão e companheiro José Saramago, falecido em 18 de junho de 2010
Saramago, um camarada de todas as horas dos sem terra do Brasil Douglas Mansur
Em nota, o MST lamenta a morte do escritor português. “O MST sente profundamente a perda desse grande intelectual, mas, acima de tudo, sentimos a perda de um amigo e camarada” Por todo o mundo, se lamenta a morte do grande escritor comunista português José Saramago. A literatura universal perde um de seus maiores mestres. De origens camponesas, apesar de ter trabalhado em diversos ofícios antes de se dedicar à escrita, Saramago nos propõe, a partir de seus romances, que reflitamos sobre
João Pedro Stedile, José Saramago, Sebastião Salgado e Chico Buarque no lançamento do livro Terra, em 1997, em São Paulo
alguns dos principais dilemas humanos. Logo naquele que é considerado seu primeiro grande livro, chamado Levantado do Chão, nos descreve tão bem a tragédia do camponês do sul de Portugal na luta para ver a terra dividida. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) sente profundamente a perda desse grande intelectual. Mas, acima de tudo, sentimos a perda de um amigo e camarada.
Amigo que sempre tivemos por perto na defesa das mesmas bandeiras de reforma agrária, igualdade e justiça social, sem nunca esconder a sua posição política. Amigo do qual recebemos sempre solidariedade. Seja na forma de palavras, seja com ações concretas, como a que teve para conosco quando se somou à exposição e livro de fotografias Terra, juntamente com Sebastião Salgado e Chico Buarque, em 1997. Graças a essa iniciativa, pudemos ini-
Ademar Bogo é da coordenação nacional do MST
ciar a construção de nossa escola nacional. Ou quando recusou, em agosto de 1999, receber o título de doutor “honoris causa” no Pará, em sinal de protesto contra o andamento do julgamento do massacre de 19 sem terra em Eldorado dos Carajás, em 17 de abril de 1996. Nós, sem terra do Brasil, seremos sempre gratos à sua solidariedade. E nossa maior homenagem lhe prestamos por meio da nossa luta por uma vida digna para os trabalhadores rurais do Brasil e do mundo. Assim como ele seguiremos solidários com todos os povos oprimidos, como do Haiti e da Palestina. Suas palavras e seu exemplo continuarão sempre a incitar a nossa reflexão e luta, como essas: O mal é não estarmos organizados, devia haver uma organização em cada prédio, em cada rua, em cada bairro, Um governo, disse a mulher, Uma organização, o corpo também é um sistema organizado, está vivo enquanto se mantém organizado, e a morte não é mais do que o efeito de uma desorganização,… (José Saramago, em Ensaio Sobre a Cegueira) Direção Nacional do MST
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américa latina
Um golpe de Estado ainda em vigor Reprodução
HONDURAS Apesar da saída de cena oficial dos golpistas em janeiro, estes ainda mandam no Estado, que continua reprimindo lideranças sociais pelo país Igor Ojeda da Redação HÁ UM ANO, em 28 de junho, executava-se o segundo golpe de Estado bem-sucedido do século 21 na América Latina– o outro foi em 2004, quando o presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide foi deposto. O presidente constitucional hondurenho, Manuel Zelaya, sequestrado por militares e enviado à Costa Rica, era substituído pelo presidente do Congresso, Roberto Micheletti. Desde então muita coisa aconteceu. Grande parte da população se levantou, realizou mobilizações, foi reprimida, detida e assassinada. Zelaya voltou a seu país e se refugiou na embaixada do Brasil – onde ficou por quatro meses. Sob o controle dos golpistas, as eleições presidenciais previstas para novembro foram realizadas, e Porfirio Lobo Sosa, o vencedor, tomou posse em 27 de janeiro. Cinco meses depois, tudo parece ter voltado à normalidade. Os golpistas passaram o bastão e a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, tenta, com a oposição de nações como o Brasil e Venezuela, reincorporar Honduras à Organização dos Estados Americanos (OEA), de onde havia sido expulsa após o golpe. Afinal, a democracia retornou ao país centro-americano, defende. “Ditadura” ainda vigente No entanto, a realidade é muito diferente desse panorama pintado por Hillary, denunciam movimentos sociais e organizações de direitos humanos de Honduras. O constante clima de terror e a repressão contínua indicam claramente que o golpe de Estado – ou a ditadura, como o classificam as organizações populares – permanece vigente. Desde que o novo governo assumiu, inúmeros casos de violações relacionadas ao conflito político que se seguiu ao golpe têm chegado ao Comitê de Familiares de Desaparecidos de Honduras (COFADEH). Além de assassinatos, constam denúncias de agres-
ex-chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas e, como tal, principal militar entre os que derrubaram Manuel Zelaya. Atualmente, ele exerce um cargo bastante estratégico: o de diretor-geral da Hondutel (estatal hondurenha de comunicações). Segundo Berta, hoje, muitos dos golpistas estão recebendo concessões para a construção, juntamente com as transnacionais, de “centenas de represas, com a finalidade de se privatizar a água e a energia e para complementar a exploração mineral ou metálica”.
sões sexuais, torturas, sequestros, detenções ilegais e invasões de residências em bairros e comunidades populares. “O regime continua impondo um estado de terror. O país está militarizado, sob o pretexto de que tal mobilização responde à necessidade de combater o crime organizado, especialmente o narcotráfico”, opina Gilberto Ríos, secretário-executivo da Fian (Food First Information & Action Network) Honduras. “A perseguição e o temor generalizado têm obrigado muitas pessoas a mudar de cidade ou de casa, e os que tiveram a oportunidade já saíram do país”, completa. Conflito agrário Tal realidade teve sua mostra mais recente no dia 20 de junho pela manhã. Duas patrulhas policiais chegaram à Cooperativa La Aurora, do Movimento Camponês Unificado de Aguán (Muca), e dispararam contra camponeses locais. Um deles, Óscar Geovanny Ramírez, de 16 anos, morreu na hora. Outros cinco foram detidos, sob a acusação – sem provas – de porte ilegal de armas e associação ilícita. Na delegacia, foram duramente “espancados e torturados”, informou à imprensa Yony Rivas, dirigente do Muca. Desde dezembro de 2009, as cooperativas afiliadas ao movimento decidiram recuperar suas terras, ocupadas ilegalmente pelos latifundiários Miguel Facussé, René Morales e Reinaldo Canales. No entanto, a reação destes, contando com o apoio dos corpos de segurança do Estado, já deixou oito camponeses mortos, além de dezenas de ameaçados e, inclusive, 26 processados judicialmente. Facussé, empresário mais poderoso – econômica e politicamente – de Honduras, foi um dos mais importantes promotores e executores do golpe contra Manuel Zelaya. Golpistas no poder Segundo Berta Cáceres, dirigente do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH), as estruturas de re-
O constante clima de terror e a repressão contínua indicam claramente que o golpe de Estado – ou a ditadura, como o classificam as organizações populares – permanece vigente pressão do Estado hondurenho continuam se reforçando e ganhando cada vez mais apoio logístico e tecnológico, além de contar com significativos aumentos orçamentários. Contudo, de acordo com ela, “essas estruturas não são conformadas apenas pelo exército e pela polí-
cia, mas também por esquadrões da morte, corpos de inteligência, pistoleiros, mercenários nacionais e internacionais, assessorados e reforçados pelo Mossad [polícia secreta israelense], CIA [agência de inteligência estadunidense] e mercenários colombianos, entre outros”.
A explicação para tal situação é bastante simples: os executores do golpe de 28 de junho de 2009 permanecem incrustados no Estado hondurenho e, consequentemente, seguem dando a linha em muitas áreas do governo Porfírio Lobo. “Os três poderes continuam mancomunados com o plano traçado pela oligarquia nacional”, sentencia Gilberto, da Fian. De acordo com Berta Cáceres, nos casos em que os golpistas não fazem parte diretamente da nova gestão, eles possuem dentro dela “seus peões e cotas de poder”. O caso mais emblemático é o de Romeo Vásquez Velásquez,
Asfixia econômica e política
Refundar Honduras
Governo Porfirio Lobo enfrenta grave crise financeira e pressões de empresários golpistas
Movimento de resistência ao golpe ganha força e resume sua pauta na demanda pela instalação de uma Assembleia Constituinte
da Redação Cinco meses após tomar posse, Porfirio Lobo vive, hoje, um péssimo momento, apesar de fazer parte da mesma classe política que executou o golpe de Estado que derrubou o presidente Manuel Zelaya, em 28 de junho de 2009. A crise econômica originada da convulsão social que se seguiu ao golpe e, também, como resultado dos efeitos da crise mundial estão tornando insuportável a pressão sobre seu governo. “Eu sinto que ele queria fazer as coisas mais ou menos bem, mas a pressão que sofre de parte dos grupos de poder não lhe permite. Além
disso, os que deram o golpe continuam no poder. E isso estamos vendo no discurso duplo de Lobo. Por um lado, ele diz querer a reconciliação nacional, mas, por outro, setores como os militares, policiais e empresariais querem agir em benefício próprio. Há momentos em que sentimos que quem manda não é ele, mas sim os militares”, analisa Mabel Márquez, do setor de comunicação da Via Campesina em Honduras.
“Os empresários não gostaram das novas cargas tributárias” Medidas econômicas De acordo com Gilberto Ríos, secretário-executivo da Fian Honduras, Porfirio Lobo foi obrigado a tomar medidas para superar a crise financeira e cumprir com as condições impostas por organismos de financiamento internacional para poder contratar novos emprésti-
mos, assim como as exigidas por governos e órgãos multilaterais para reconhecer seu governo. “No entanto”, diz, “os empresários não gostaram das novas cargas tributárias aprovadas pelo Congresso Nacional. Argumentam que, com o aumento, o país não crescerá e o desemprego subirá”. Além disso, as medidas econômicas do governo Lobo causaram a elevação nos custos da cesta básica e dos serviços públicos. Para piorar, “não há mais o apoio do Petrocaribe e da Alba [os quais, na gestão Zelaya, Honduras passou a integrar]: aumentaram-se os preços dos derivados do petróleo, e não há mais doações e créditos a juros baixos para a pequena e média produção provenientes dessas fontes”, explica Gilberto. “Muitos dos ministros de Lobo andam de um lado a outro tentando restabelecer as relações diplomáticas com os demais países. Certamente, sentem que estão asfixiando, sem dinheiro sequer para pagar os empregados públicos”, revela Mabel. (IO)
da Redação
– “a diversidade dentro da resistência continua sendo uma de suas grandes riquezas” – apostam fortemente no trabalho de organização e de formação política, além, é claro, na mobilização. De acordo com Mabel Márquez, do setor de comunicação da Via Campesina em Honduras, hoje, a frente já é reconhecida como uma força política na sociedade e, a cada dia, organiza-se melhor. “Inicialmente, diziam que se tratavam apenas de algumas pessoas”.
Se, por um lado, o golpe de Estado de junho de 2009 serviu para Honduras retroceder em temas como políticas sociais, democracia participativa e integração latino-americana, por outro, a ação das Forças Armadas e da oligarquia hondurenha deu origem a uma das organizações mais massivas e bem organizadas da história do país: a Frente Nacional de Resistência contra o Golpe de Estado. Segundo Berta Cáceres, dirigente do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH), as inúmeras comunidades, movimentos, coletivos e grupos políticos de todo tipo
Assembleia Constituinte Entre as pautas unitárias, estão a luta contra as transnacionais, mineradoras, privatizações, organismos financeiros internacionais e pelos direitos culturais de povos indígenas e negros. “Essas demandas vão se conformando como os grandes temas a se debater na possível Assembleia Nacional Constituinte Popular”, destaca Berta. A proposta de se instalar uma Constituinte foi um dos principais motivos que levaram à queda de Manuel Zelaya. Hoje, pode-se dizer que é a reivindicação mais importante das organizações populares hondurenhas.
Repressão seletiva Mas a repressão posta em prática contra os opositores ao golpe do ano passado não foi apenas reforçada financeira e tecnologicamente nos últimos meses. A dinâmica de contenção popular também foi alterada. Se no período que sucedeu a queda de Zelaya os aparatos de segurança do Estado se voltaram para uma ação mais generalizada, hoje desenvolvem uma estratégia de repressão mais seletiva. Os alvos: líderes de organizações sociais, dirigentes históricos da esquerda, comunicadores sociais do movimento de resistência ao golpe e ex-integrantes do governo deposto. “Quando há mobilizações, a polícia e o exército sempre aparecem, mas ficam só observando. O que acontece é que, por várias vezes, depois que a atividade termina, vemos que foram detidos certos companheiros, que são soltos somente depois de pressões de outros companheiros e defensores de direitos humanos”. Quando os expedientes utilizados não são as detenções, sequestros e assassinatos, lança-se mão de processos judiciais e demissões. Em maio, três juízes e uma magistrada – todos eles, membros da Associação de Juízes pela Democracia – foram exonerados pela Corte Suprema de Justiça por terem condenado o golpe de Estado. Para completar o panorama, os EUA, acusados de estarem por trás do golpe e de serem dúbios em relação ao ocorrido, decidiram retomar o apoio militar a Honduras com a doação de 25 caminhões ao exército, entregues pelo subchefe do Comando Sul do Departamento de Defesa estadunidense, general Ken Keen. O valor total da ajuda chega a 812 mil dólares.
Nesse sentido, a Frente de Resistência iniciou um processo de recolhimento de assinaturas para pressionar por sua convocação. A ideia é reunir 1,25 milhão de adesões até 15 de setembro, data da independência de Honduras. “Até o momento, já são mais de 500 mil assinaturas”, revela Mabel. Volta de Zelaya O mesmo processo de recolhimento de assinaturas inclui a exigência da volta ao país de Manuel Zelaya, exilado na República Dominicana, que teme ser preso caso entre em território hondurenho. Contudo, apesar do apoio que os movimentos sociais lhe concedem desde sua expulsão pelos militares golpistas, o presidente deposto é cobrado a ter uma postura mais clara em relação a sua participação política na resistência ao golpe. “Esperamos que ele dê um salto qualitativo [em tal postura] e não aposte no resgate de um partido morto [Partido Liberal, do qual faz parte], instrumento da oligarquia que, com toda sua ‘institucionalidade’, foi um grande ator golpista”, adverte Berta Cáceres. (IO)
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de 24 a 30 de junho de 2010