BDF_383

Page 1

Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 8 • Número 383

São Paulo, de 1º a 7 de julho de 2010

R$ 2,80 www.brasildefato.com.br

Honduras: um ano de repressão e luta Reprodução

A tranquilidade da atual conjuntura hondurenha propagada pela mídia internacional cai por terra depois de uma simples caminhada por Tegucigalpa. No centro antigo da capital de Honduras, as marcas da resistência ao golpe de Estado estão em toda parte, relata o repórter Renato Godoy de Toledo, enviado do Brasil de Fato. Pichações exigindo a volta do presidente deposto Manuel Zelaya, a coleta de assinaturas para a convocação de uma Assembleia Constituinte e vigílias ou marchas quase que diárias mostram que parte dos hondurenhos não está satisfeita com o atual regime. Reunidos na Frente Nacional de Resistência Popular, movimentos sociais denunciam constantes ameaças a dirigentes, prisões e assassinatos. “Eles vêm em motos e atiram, sem qualquer justificativa. Nós da resistência evitamos sair de noite, nos expor”, revela um militante. Pág. 11

No dia 28 de junho, marcha em Tegucigalpa lembrou o aniversário de um ano do golpe de Estado em Honduras

Reprodução

A limpeza étnica da Palestina: 25 mil demolições Cerca de 25 mil casas de palestinos foram derrubadas pelo Estado de Israel desde 1967. Segundo especialistas, as demolições fazem parte de uma estratégia do governo israelense de limpeza étnica, com alvo nos árabes cristãos e muçulmanos da região. De Jerusalém, a enviada Dafne Melo traz o relato de Fakhri Abu-Diab, ameaçado de perder sua moradia no sub-bairro de Al-Bustán. “Vivemos sob constante medo. Cada vez que entro na minha casa, penso que pode ser a última vez que durmo lá”. Pág. 9

Estadunidenses debatem efeitos da crise sobre sua população De quarta cidade mais rica do mundo dos anos 1940 para um cemitério de prédios e fábricas em 2010. A devastação de Detroit, sede da principal montadora estadunidense, a GM, foi o cenário, entre os dias 22 e 26 de junho, do II Fórum Social Estadunidense, que reuniu cerca de 12 mil pessoas de todos os estados do país. Tomando a cidade como exemplo, os participantes debateram alternativas para as políticas aplicadas pelo governo dos Estados Unidos para conter a crise econômica. Pág. 10

La vida loca

em El Salvador

Pág.12

Em San Salvador, integrantes da Mara 18, gangue rival da Mara Salvatrucha

André Vicente/Folha Imagem

Esquerda deve Jd. Pantanal, construir frente em SP, vive de unidade novo drama

ISSN 1978-5134

Para o jornalista Sávio Bones, as várias candidaturas só reforçam a necessidade de uma frente que aglutine a esquerda. Ele acredita que a divisão interessa apenas aos inimigos e defende uma frente plural, instrumento de mobilização e organização da população. Pág. 8

Os moradores do Jardim Pantanal, em São Paulo (SP), atravessam mais um momento de apreensão. No início do ano, eles sofreram com as chuvas que deixaram o bairro alagado por meses. Agora, enfrentam ameaça de despejo por parte da prefeitura. Págs. 6 e 7

Nilton Costa

Saída da Ford favoreceu RS, avalia Olívio Dutra A decisão da Justiça de condenar a Ford a pagar indenização ao estado do Rio Grande do Sul reacendeu a polêmica sobre a decisão da transnacional de transferir a construção de sua fábrica para a Bahia. Em entrevista, o ex-governador Olívio Dutra (foto), que à época da transferência tentava negociar uma redução dos benefícios que a empresa teria do governo gaúcho, defende que a saída da Ford favoreceu a produção de um desenvolvimento mais igualitário no Rio Grande do Sul. Págs. 4 e 5

Moradores andam em via alagada do Jardim Pantanal


2

de 1º a 7 de julho de 2010

editorial AS GREVES FORAM a principal forma de intervenção da classe trabalhadora na cena política brasileira ao longo do século 20. Neste momento, estamos assistindo a uma retomada das lutas sindicais, com o crescimento no número de greves e paralisações, especialmente no setor privado, a partir de 2008. Embora sejam lutas ainda isoladas, o crescimento das greves mostra uma disposição em recuperar o poder aquisitivo dos salários, aumentar a participação na renda nacional e pôr fim a formas de trabalho precarizado, como a terceirização e o trabalho temporário. Por que esse crescimento das greves, que vem se acentuando nos últimos dois anos, não tem gerado impactos tão significativos no nível de consciência e organização da classe trabalhadora? Por que as campanhas salariais de categorias com capacidade de paralisar a produção permanecem isoladas e não conseguem sustentar seus movimentos? Há um obstáculo central que precisa ser removido. Cada greve esbarra numa blindagem jurídica que acaba esvaziando completamente sua capacidade de pressão. Somente as categorias que não possuem capacidade de pressionar a produção conseguem manter greves por um período maior. Nos últimos anos houve o aperfeiçoamento de uma legislação e jurisprudência que restringiram o exercício do direito de greve. Na medida em que as categorias enfrentam esses mecanismos de forma isolada, permanecem impotentes para alcançar conquistas significativas e sustentam seu

debate

É preciso conquistar novamente o direito de greve movimento até o instante em que o Poder Judiciário determina os “limites da greve”. A greve é uma forma de inviabilizar a produção ou a produtividade de uma atividade econômica, com a finalidade de pressionar em prol do atendimento de interesses dos trabalhadores. Assim, pressupõe uma natureza coativa, já que se prejudica o negócio de alguém com a finalidade de constrangê-lo a conceder uma vantagem que não está prevista na lei ou no contrato. Atualmente, a Justiça do Trabalho exige que as greves mantenham 100% das atividades consideradas essenciais e fixa que somente 90% dos trabalhadores podem participar da greve, sob pena de multas diárias que chegam a R$ 200 mil. Nenhuma categoria profissional vem conseguindo enfrentar isoladamente esses mecanismos repressivos. Qualquer anúncio de greve acarreta rapidamente uma liminar que esvazia completamente a capacidade de pressão do movimento. A greve já apareceu na ordem jurídica sendo definida como crime no Código Penal de outubro de 1890. Com o advento da ditadura militar em 1964, este direito voltou a ser suprimido mediante a implantação de um monstrengo jurídico que, na prática, inviabilizava a

realização de tal ato. O ascenso da luta popular, a partir do final da década de 1970, rompe na prática com os limites jurídicos e conquista através da luta o direito de greve. É nessa correlação de forças que conquistamos a regra prevista na Constituição Federal que assegura o direito de greve, deixando claro que compete “aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo”. A reação patronal não tardou. Meses após a promulgação do texto constitucional surge a chamada “Lei de Greve”. Começa a ofensiva jurídica para cercear o direito. O legislador infraconstitucional estipula que “frustrada a negociação”, “é facultada a cessação coletiva do trabalho”. Neste modelo, portanto, fica clarificado que o pressuposto do exercício do direito de greve é que tenha havido uma negociação preexistente e que a mesma tenha chegado a um impasse. A eclosão da greve sem a prévia tentativa de negociação irá caracterizar abuso de direito. Prazos e regras são criados para “regulamentar o direito de greve”. Surge a lista dos chamados “serviços ou atividades essenciais”. Foi baixada uma relação de atividades e exigida a manutenção de um esquema de emergência durante a paralisação. Esquema este que o Judiciário vem transformando na exigência de 100% de funcionamen-

to. Com isso o direito de greve acaba sendo suprimido indiretamente. A greve se torna um ritual, previsível, completamente esvaziado de seu poder de pressão. Nos primeiros anos, houve intensa batalha jurídica sobre a constitucionalidade da lei de greve. Categorias com maior capacidade de pressão ignoravam essa regras. O cenário se altera com a mudança da correlação de forças na década de 1990. Inicia-se o período da chamada “ofensiva neoliberal” e a luta da classe trabalhadora enfrenta um quadro cada vez mais adverso. A grande batalha se dá com a greve dos petroleiros de 1995. A parlisação, que durou 32 dias, colocou em pauta reivindicações econômicas da categoria e a defesa do monopólio estatal sobre o petróleo, que acabaria por ser quebrado pelo Congresso Nacional, pouco após o fim do movimento. Para reprimir a greve e criar um exemplo para o conjunto do movimento sindical, o governo de Fernando Henrique Cardoso demitiu lideranças sindicais, a imprensa acusou os petroleiros pela falta do gás de cozinha, enquanto, na verdade, os distribuidores especularam com o produto para garantir um aumento do seu preço e o Tribunal Superior do Trabalho decretou a “abusividade” da greve, estabele-

crônica

Wladimir Pomar

A quem serve o “quanto pior, melhor”? ALGUMAS FORÇAS políticas de esquerda acreditam que o Programa Democrático Popular aprovado pelo PT, em 1986, continua atual. Ele responde aos principais problemas estruturais enfrentados pelo Brasil. Também corretamente, avaliam que esse não foi o programa adotado no governo Lula. Mas, estranhamente, ao invés de avaliarem as condições objetivas que levaram o PT a aplicar um programa tático diferente, ou “rebaixado”, como costumam dizer, preferem lamentar-se, ao mesmo tempo em que acusam ao PT de haver abandonado seu programa estratégico. Alguns se dão conta de que, para a maioria do povo brasileiro, as realizações do governo Lula são vistas e sentidas como avanços e conquistas. Mas, ao invés de tomarem isso como possibilidade real para conquistas ainda maiores, mesmo que lentas, preferem se lastimar de que essa maioria popular não tenha percebido a necessidade de retomar a luta por reformas estruturais na sociedade brasileira. Assim, reconhecem que a esquerda está diante de um desafio diferente dos que enfrentou no passado. Mas, além de não considerarem isso como um desafio teórico e prático, o tomam apenas como um desafio organizativo. E, ao invés de partirem dos avanços e conquistas percebidos pela maioria popular, lastimamse de que tais avanços e conquistas foram pequenos, e buscam isolar-se em posições pretensamente revolucionárias. Não conseguem entender que a caminhada pela via institucional é, em primeiro lugar, uma enorme conquista do povo brasileiro. Pela primeira vez na história brasileira as classes dominantes se viram na contingência de permitir que não apenas políticos populares, mas também socialistas e comunistas, ocupassem postos no governo central e governos estaduais e municipais. Isto pode parecer pouco para os que não viveram a ditadura, nem os períodos anteriores de repressão política e clandestinidade. Mas a ciência histórica demonstra facilmente que foi um avanço considerável. Essa conquista, por outro lado, acarreta problemas práticos, teóricos e organizativos de monta para as grandes massas do povo e para as forças de esquerda. Ela pode alimentar, tanto entre essas massas, quanto entre militantes da esquerda, a ilusão de que a burguesia se acomodará e jamais tentará uma saída não-institucional para a perda parcial de um dos aparatos do Estado. Essa conquista também pode nutrir uma esperança desmesurada de que seja possível realizar todas as reformas estruturais pela via institucional, e que a burguesia concordará com essa pretensão.

Gama

O desafio para a esquerda, diante disso, não consiste apenas, como alguns pensam, em fazer propaganda e agitação das questões programáticas contidas no Programa Democrático Popular do PT. Embora isto seja importante, o grande problema consiste em fazer com que as grandes massas populares compreendam que a via eleitoral e os avanços positivos do governo Lula foram uma conquista delas. E que só elas, mobilizadas e organizadas, podem garantir não só a manutenção desses avanços, como novas conquistas. Portanto, esse processo “reformista” e “rebaixado” precisa ser uma importante escola de aprendizado para as grandes massas do povo. É um erro crasso negar-lhe essas conquistas e esse aprendizado, do mesmo modo que é um erro crasso não alertá-las para as tentativas desestabilizadoras de seus inimigos. Nessas condições, a esquerda jamais pode tomar a iniciativa de desqualificar a experiência da via eleitoral e os avanços do governo Lula. Esta é uma missão suja que deve ser deixada a cargo da burguesia tentar. Tudo isso exige que a esquerda esteja junto com as massas populares nessa “experiência”. Sem vivenciar com elas seus aspectos positivos e negativos, e procurar tirar as lições desse processo real, será muito difícil a qualquer setor da esquerda apresentar-se como alternativa para o que quer que seja. Não é por acaso que as forças de esquerda que se negam, ou são contra, participar ativamente da experiência Lula, mesmo não estando no governo, sejam residuais e impotentes diante das tendências populares. Pretender impor às massas populares

um projeto que, por mais correto que seja teoricamente, não faça parte do horizonte atual da experiência de luta e da consciência daquelas massas, só pode levar tais forças a falarem apenas para si próprias. Algo idêntico ocorre agora com os setores que concordam com o caráter plebiscitário das eleições deste ano, mas decidiram omitir-se no primeiro turno. Por quê? Porque o plebiscito, segundo eles, será um embate entre um “projeto rebaixado” e o “retrocesso”. Este foi, em termos relativos, o argumento que levou os comunistas alemães a não se aliarem aos social-democratas no início dos anos 1930, permitindo a vitória eleitoral dos nacional-socialistas, ou nazistas. A analogia é válida para alertar que o argumento de não escolher um “projeto rebaixado”, quando se está frente a um “retrocesso”, pode ser extremamente pernicioso. Estamos, portanto, diante de uma questão tática que pode ter implicações sérias nas perspectivas estratégicas. Alguns talvez pensem que, com isso, a situação vai piorar e as massas irão se mobilizar. Provavelmente, jamais vivenciaram derrotas profundas e o que isso representa de demora para a retomada da luta popular. Para derrotar o Estado Novo getulista foram necessários quase 10 anos, e mesmo assim num contexto histórico de guerra mundial. Para dar fim à ditadura militar e realizar uma transição pactuada foram necessários 20 anos. Será que vamos ter que reaprender que o “quanto pior, melhor” não nos serve? (www.correiocidadania.com.br). Wladimir Pomar é analista político e escritor

cendo uma multa diária de R$ 100 mil enquanto durasse a paralisação, penhorando bens e retendo a receita das contribuições dos sindicalizados. Os trabalhadores conseguiram manter heroicamente a greve até o momento em que a intervenção de tropas militares obrigou a retomada da produção. Desde então a blindagem jurídica foi se aperfeiçoando. Basta cumprir a obrigação legal de comunicar a greve para receber em poucas horas a notícia de uma liminar que esvazia completamente a força do movimento. A exceção repressiva da greve dos petroleiros virou a regra e foi incorporada pelo movimento sindical. Como romper com esses entraves e retomar o direito de greve? Este é o grande desafio enfrentado pelo movimento sindical. Ainda quando ocorrem de forma isolada e com pouca capacidade de pressão, as greves elevam a consciência dos trabalhadores. Porem, nenhum setor conseguirá enfrentar sozinho os mecanismos que impedem o exercício da greve. Retomar o direito de greve exigirá força e articulação entre as principais categorias. E aqui nos deparamos com outro desafio organizativo. Neste momento de rearranjo e fragmentação de nosso movimento sindical, a importância de unificar as campanhas salariais acaba sendo secundarizada. As disputas geradas no processo de autoconstrução dificultam o investimento em campanhas salariais unificadas. Este é o principal desafio para os lutadores que atuam no movimento sindical.

Roberto Malvezzi (Gogó)

Nordeste de luto É ÉPOCA DE São João, quando o Nordeste se torna mágico. As festas juninas por aqui têm o sabor das festas natalinas em outras regiões do país. Época de comer, brincar de quadrilhas e forró, celebrar, reencontrar a família, experimentar a gratuidade da vida. Este ano ficou diferente. O Nordeste ficou de luto pelas cidades arrasadas pelas águas em Pernambuco e Alagoas. Algumas pessoas me escreveram perguntando: como se explica o que está acontecendo? Aponto três fatores para entendermos um pouco o que acontece. Primeiro, a ilusão alimentada pela indústria da seca de que “no Nordeste não chove”. Terrível inverdade. Poucos sabem que o açude Castanhão, no Ceará, com capacidade de armazenar quase sete bilhões de metros cúbicos de água, foi construído exatamente para aliviar as enchentes diluvianas dos rios Salgado e Jaguaribe. A música “Súplica Cearense”, quando um sertanejo implora a Deus para parar de chover, feita ainda em meados do século passado, ilustra essa dimensão pouco realçada do Nordeste. Em segundo, poucos dias atrás, tivemos na Câmara Nacional de Outorga de Recursos Hídricos, uma oficina para construir os critérios de outorga – licença para uso – das águas dos rios intermitentes do Nordeste. Tive a honra de participar como representante da sociedade civil entre mais de cinquenta técnicos do governo. Nossa conclusão foi unívoca: “esses rios são importantes, mesmo que as águas passem por eles apenas uma semana no ano. Esses rios só podem receber outorga para usar a água para consumo humano e animal, jamais para lançamento de efluentes – todo tipo de esgoto –, pois não têm massa hídrica para diluir os efluentes durante o resto do ano”. Portanto, mesmo que intermitentes, as águas desses rios serão utilizadas pelas populações durante o resto do ano, quando elas ficam armazenadas em açudes, barragens ou pequenos barreiros. Hoje as armazenamos também em cisternas para beber e produzir. Acontece que, em anos de chuvas muito intensas, muitas dessas barragens se rompem, intensificando os desastres que acontecem à jusante. Terceiro, cito o especialista em clima Phillips Fearnside, estadunidense que vive na Amazônia. Em evento promovido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) sobre as Mudanças Climáticas, ele nos apresentou dezoito possíveis cenários para o Nordeste. A maioria falava de aumento das temperaturas e dos períodos de estiagem. Entretanto, um deles falava em chuvas diluvianas para o Nordeste. Por ser o único a projetar esse cenário, foi eliminado. Minha opinião – embora eu não seja técnico, mas vivo aqui e vejo a mudança empiricamente – é que deveria ser mantido. Com o aquecimento do Atlântico grandes volumes de água estão se evaporando, caminhando para o continente, estacionando sobre o Nordeste e produzindo chuvas incalculáveis, como os 230 milímetros em uma chuva em Uauá, sertão da Bahia, ou os 400 milímetros em três dias como essas chuvas sobre Alagoas e Pernambuco. Lembremo-nos ainda das chuvas torrenciais em 2008 sobre Piauí, Ceará e Maranhão. Portanto, os tais fenômenos extremos de que nos falam os estudiosos do clima estão realmente já acontecendo. Somemos esses fatores e teremos um pouco do entendimento do novo Nordeste e da tragédia pernambucoalagoana. Roberto Malvezzi (Gogó), articulista é assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT)

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Mello • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


de 1º a 7 de julho de 2010

3

brasil

Recuos no controle público da mídia PNDH 3 O Brasil de Fato publica a terceira reportagem da série produzida pela Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz sobre os recuos do governo federal em pontos chave do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos. Confira, a seguir, matéria sobre a democratização da mídia Fotos: Reprodução

Raquel Júnia do Rio de Janeiro (RJ) TODOS OS DIAS nos jornais, rádios e canais de TV é possível coletar exemplos de desrespeito aos direitos humanos. A primeira versão do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), lançada em dezembro de 2009 pelo governo federal, tentou criar ou fortalecer mecanismos já existentes para coibir este tipo de postura. Foi o caso da proposta de criação de um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios dos direitos humanos. Da mesma forma, os veículos que cometem violações também estariam elencados. A proposta não era inovadora, já que atualmente a campanha pela ética na TV elabora uma relação dos veículos que atentam contra a dignidade humana. Mas o PNDH 3 a reforçava e sugeria a criação, pelos estados e municípios, de um observatório social destinado a acompanhar a cobertura da mídia em direitos humanos. Entretanto, o decreto 7.177 , de 12 de maio de 2010, retirou do plano a proposta do ranking, além de introduzir outras modificações. Convidado para a aula inaugural do ano letivo da EPSJV/ Fiocruz em 2010, o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, comentou a oposição da mídia comercial ao PNDH 3 e afirmou que, de fato, há programas que fazem campanha contra os direitos humanos. Nesta terceira reportagem da série sobre as modificações no PNDH 3, conheça o que pretendia a versão original do programa no campo da comunicação, as reflexões sobre as modificações feitas pelo decreto presidencial e a concentração midiática no Brasil.

“Chamar isso de censura ou atentado à liberdade de expressão é um disparate” A diretriz 22

A diretriz 22 do PNDH 3 – “Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para a consolidação de uma cultura em direitos humanos” – reúne dez ações programáticas. Na proposta original, a primeira ação programática fala sobre a criação de um marco legal para regulamentar o artigo 221 da Constituição, de maneira a estabelecer o respeito aos direitos humanos nos serviços de radiodifusão concedidos, permitidos ou autorizados. A ação sugere ainda sanções de acordo com a gravidade das violações praticadas, variando de multa até a cassação da concessão. Esta ação também foi modificada pelo decreto presidencial 7.177. A parte final do texto, que falava sobre as punições no caso de desrespeito, foi suprimida. Na opinião do Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes), o PNDH 3 deveria ser implementado integralmente, assim como pensam também várias entidades e movimentos reunidos na Campanha pela integralidade do PNDH 3. Oona Castro, membro do Intervozes, avalia que a mídia teve papel importante na pressão para que o governo federal recuasse e fizesse as modificações no programa. “A mídia não só defendeu seus próprios interesses, recusando e desqualificando tudo que pudesse ser

Big Brother, da Globo, e Pânico na TV, da Rede TV: líderes do ranking da baixaria. Denúncias apontam desrespeito aos direitos humanos

Por pressão de movimentos sociais, o Ministério Público Federal tirou do ar por dois meses o programa Tarde Quente, da Rede TV, apresentado por João Kleber de regulamentação de sua atividade, como também ecoou a voz dos setores conservadores, mesmo em questões que não eram diretamente relacionadas a ela, como a questão da terra e do aborto, por exemplo”, analisa. Para a jornalista, os cortes feitos no texto original comprometem em parte uma regulamentação da mídia, como foi proposto também pela Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009. “Ao vetar o ranking, o que eles fazem é não dar legitimidade para o que já é feito. E isso não pode ser entendido como censura porque o ranking é a posteriori, é uma participação social no processo de avaliação do conteúdo veiculado na mídia. Chamar isso de censura ou atentado à liberdade de expressão é um disparate. Toda vez que eles levantam essa lebre de ameaça à liberdade de expressão, estão defendendo que eles tenham liberdade para fazer tudo o quiserem e que ninguém possa fazer nenhuma avaliação participativa e crítica daquilo que é feito”, analisa. A “Campanha pela ética na TV – Quem financia a baixaria é contra a cidadania” publicou este ano seu 17° ranking. De agosto de 2009 a abril de 2010, foram feitas 391 denúncias. O programa campeão foi o Big Brother, da TV Globo, com 227 denúncias. Em seguida estão os programas Pegadi-

nhas Picantes, do SBT, Pânico na TV, da Rede TV, Se liga bocão, da TV Itapoá-Record, e Bronca Pesada, da TV Jornal-SBT. Na lista de denúncias com relação a estes programas estão o desrespeito à dignidade humana, exposição de pessoas ao ridículo, incitação à violência, apelo sexual, sensacionalismo, entre outros. A realização da Campanha e do ranking da baixaria é uma iniciativa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados em parceria com entidades da sociedade civil. O movimento foi um dos resultados da VII Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 2002. Queda de braço

Para o jornalista e professor do departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Dênis de Moraes, a diretriz 22 do PNDH 3, como foi redigida originalmente, contribuiria para a democratização dos meios de comunicação. Dênis afirma, entretanto, que o retrocesso na questão da mídia dentro do plano não o surpreendeu. O professor elogia a postura do ministro Vannuchi, que considera coerente. Para Dênis, o ministro perdeu “a queda de braço” dentro do governo. O jornalista lembra ainda que nenhuma das resoluções da Conferência Nacional de Comunicação foi implemen-

tada até o momento. “O retrocesso no Plano integra uma cadeia de inércia e de temores em relação à grande mídia por parte do governo federal. Durante as duas gestões, o governo não quis medir forças com os meios de comunicação, que nestes oito anos tiveram poucos dos seus interesses afetados”, afirma. Para ele, o PNDH 3, nos pontos que se referem aos veículos de comunicação, resultou numa “carta de intenções extremamente moderada e inofensiva”. O editor da revista Caros Amigos e professor de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Hamilton Octávio de Souza, observa que foi impressionante a reação dos setores da mídia empresarial ao plano. “Foi uma reação totalmente arbitrária, conservadora e reacionária. Numa sociedade verdadeiramente democrática, isso tem que estar não só num programa que serve de referência, mas contemplado na lei e, mais do que isso, tem que ser algo exigido por toda a sociedade e fiscalizado pelo Estado. Ora, nós temos programas de rádio e TV que incentivam o linchamento das pessoas, estimulam a violência, discriminam setores da sociedade, transformam os movimentos sociais e as populações pobres das favelas em criminosos e inimigos do povo brasileiro”, enumera. Dênis de Moraes lembra duas outras propostas do governo federal durante os dois mandatos do presidente Lula que foram abandonadas devido ao receio em relação a tensões com a mídia comercial: a criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) e de um Conselho Federal de Jornalismo. “A alegação é de que estes dois projetos eram inconsistentes Antonio Cruz/ABr

Paulo Vannuchi diz que existem programas que, de fato, fazem campanha contra os direitos humanos

e que havia problemas. Mas se havia problema, por que não discutir, modificar e aprimorar?”, questiona. Controle público

Oona Castro destaca que hoje são poucos os mecanismos que a população tem para realizar o controle público do que é veiculado nos meios de comunicação. “Os processos de conferência, se continuados, precisam ampliar a participação e os conselhos municipais, estaduais e nacional devem ser implementados. Os canais de participação realmente não existem, apenas pequenas e poucas iniciativas isoladas”, afirma. Em 2005, um episódio mostrou que a sociedade civil organizada pode conseguir resultados importantes na luta pelo respeito aos direitos humanos nos meios de comunicação. Por pressão de movimentos sociais, o Ministério Público Federal tirou do ar por dois meses o programa Tarde Quente, da Rede TV, apresentado por João Kleber, por entender que atentava contra os direitos humanos. No mesmo horário foram exibidos programas de direitos de resposta das minorias ofendidas durante o Tarde Quente. Como recorda Hamilton de Souza, a programação substitutiva tinha um conteúdo muito melhor e comprometido com os direitos humanos. “O Ministério Público tem condições em todo o Brasil de fiscalizar, exigir que as televisões caminhem na direção do respeito aos direitos humanos e possam contribuir para elevar o nível de compreensão da própria realidade da sociedade brasileira”, opina Hamilton.

“O retrocesso no Plano integra uma cadeia de inércia e de temores em relação à grande mídia por parte do governo federal” O jornalista conta outro episódio que revela a postura da mídia comercial quando o assunto é controle público. Em 2007, o Ministério Público de São Paulo tentou realizar um encontro entre lideranças de movimentos e entidades de defesa dos direitos das mulheres e dirigentes de empresas de comunicação para discutir o papel da mulher na televisão brasileira. “Esse encontro era para trocar ideias, para promover es-

clarecimento do que pensam e que críticas os movimentos de mulheres têm com relação à programação da televisão. Os representantes das várias emissoras se negaram a participar do encontro, dizendo que a TV deles não aceita nenhum tipo de intromissão e interferência do que colocam no ar. Isso mostra que eles consideram as concessões não como serviço público que tem que dar satisfação para a sociedade, mas como se fosse uma propriedade privada”, lamenta.

“O Brasil está na vanguarda do atraso em termos de comunicação” Brasil atrasado

“O Brasil está na vanguarda do atraso em termos de comunicação, apresenta um dos piores resultados em termos de medidas que possam modificar o cenário de forte concentração dos meios de comunicação”, alerta Dênis de Moraes. O jornalista lançou em 2009 o livro A Batalha da Mídia, sobre iniciativas de comunicação dos governos considerados progressistas na América Latina. Para ele, o Brasil está atrasado em relação a políticas públicas de comunicação tanto de regulação do setor, quanto de criação de mecanismos de democratização, como o apoio e criação de mídias públicas e comunitárias e produção audiovisual. Dênis assegura que a Venezuela, a Bolívia e o Equador estão dando um exemplo mundial de como o poder público eleito pelo povo pode interferir nos meios de comunicação. “Apesar de enfrentarem uma das mais sórdidas campanhas midiáticas e das elites conservadoras, estes países têm mantido o compromisso essencial com a busca de sistemas de comunicação menos concentrados e em defesa da diversidade informativa e cultural”, analisa. Para Hamilton de Souza, a reação da mídia ao PNDH 3 também é uma lição para as pessoas que querem democratizar a comunicação no Brasil. “Mostra que nós temos uma luta muito grande neste país até que consigamos ter um sistema de comunicação que realmente seja respeitador dos direitos humanos, democrático, que contemple a liberdade de expressão para todos os setores da sociedade e não apenas os empresariais”, destaca. (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz)




6

de 1º a 7 de julho de 2010

brasil

Alagados, abandonados, removidos ENCHENTE Poder público aproveita inundação de bairros da zona leste de São Paulo ocorrida em dezembro para pressionar por saída de moradores e alimentar a especulação imobiliária na região Gilberto Marques/Governo SP

Patrícia Benvenuti da Reportagem SEIS MESES depois das enchentes que alagaram a região da várzea do rio Tietê, na zona leste de São Paulo (SP) – matando oito pessoas e atingindo de quatro a cinco mil casas –, a tranquilidade ainda não retornou à vida dos moradores. Ao contrário: em vez de reconstruírem o que foi levado pela enxurrada, as famílias afetadas travam uma batalha para não perderem suas moradias, ameaçadas por mais um projeto de reurbanização da capital paulista. A região foi escolhida para abrigar o que já se anunciou como o maior parque linear do mundo, o Parque Várzeas do Tietê. Parte de uma política compensatória para os danos ambientais causados pelas obras de ampliação da Marginal Tietê, o local terá, segundo informações oficiais, 107 quilômetros quadrados e 75 quilômetros de extensão, com 33 núcleos de lazer, cultura, turismo e esporte. Treze prefeituras, além do governo estadual, participam do empreendimento, que contará com investimentos de R$ 1,7 bilhão. A previsão é de que a primeira parte do projeto esteja concluída em 2012, e que o final da obra ocorra até 2014, ano em que será realizada a Copa do Mundo no Brasil. A implementação do parque, porém, demandará a retirada de milhares de pessoas da área. De acordo com a prefeitura de São Paulo, três mil famílias deverão ser reassentadas em função das obras. Já os moradores garantem que o próprio poder municipal afirmou a eles, em reunião, que serão 28 mil as famílias removidas.

A região foi escolhida para abrigar o que já se anunciou como o maior parque linear do mundo, o Parque Várzeas do Tietê Chuvas Maria Zélia Souza Andrade, integrante do Movimento Terra Livre e moradora da Chácara Três Meninas, uma das comunidades que será atingida pelas obras, explica que a tensão das famílias começou bem antes do lançamento oficial do projeto, em julho de 2009. De acordo com ela, ainda em 2007 a prefeitura paulistana iniciou a demolição de algumas casas no local, juntamente com a apreensão de material de construção dos próprios moradores. “Ouviase comentários sobre o par-

Ao lado do prefeito Gilberto Kassab, o então governador de São Paulo José Serra observa a maquete do Parque Várzeas do Tietê

que, mas nada de oficial”, conta. A situação se agravou, segundo a moradora, depois das enchentes ocorridas em dezembro do ano passado, que alagaram de oito a nove mil residências. Sob alegação de que as casas estavam situadas em áreas de risco, a prefeitura iniciou a demolição de uma série de moradias. Maria Zélia garante que houve grande pressa do poder municipal em realizar as demolições, que teriam sido facilitadas pelas enchentes. A moradora relembra as denúncias de que a própria prefeitura seria a responsável pelas inundações, ao ordenar a abertura das barragens em Mogi das Cruzes (cidade a cerca de 60 quilômetros da capital) e o fechamento da barragem da Penha (bairro da zona leste paulistana), evitando, assim, alagamentos na marginal Tietê. “A gente conversou com quem mora aqui há 50, 60 anos, e nunca tinha alagado a casa delas. E dessa vez [em dezembro] alagou”, explica. Os moradores também reclamam que, até agora, não houve indenização pela perda das casas. A reportagem entrou em contato com a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) que, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que o responsável sobre a questão dos reassentamentos estava com a agenda lotada e não poderia conceder entrevistas. Em nota, a assessoria afirmou que as indenizações serão pagas, mas apenas para os moradores que residiam em “situação regular”. “As moradias regularizadas atingidas pela enchente que tiverem de ser removidas serão indenizadas”, afirma a nota,

sem mencionar prazos para o pagamento. Reassentamento Ainda de acordo com as informações enviadas pela Sehab, os moradores que residem em ocupações irregulares não são proprietários e, por isso, “não cabe desapropriação”. Nesse caso, o que a secretaria realiza é “a avaliação das benfeitorias das casas segundo os critérios da prefeitura”. Assim, as famílias poderão optar entre receber o valor estipulado ou o auxílioaluguel, de R$ 300 mensais e válido por seis meses “até receberem as unidades habitacionais definitivas, que serão construídas nos 8 (oito) terrenos na região, decretados de interesse social em janeiro”. Os prazos de reassentamento, contudo, não foram fixados porque dependem do cronograma das obras, sob responsabilidade do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE). Procurado, o órgão não retornou as mensagens enviadas pelo Brasil de Fato. As garantias de reassentamento da Sehab, no entanto, não são suficientes para tranquilizar os moradores. Na época das enchentes, algumas famílias desabrigadas foram levadas para unidades da Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU) em Itaquaquecetuba (cidade a cerca de 40 quilômetros de São Paulo), mas em péssimas condições. Segundo relatos, 17 pessoas chegaram a ocupar um mesmo apartamento. Além disso, o prédio apresenta rachaduras e não há tratamento de água nem esgoto. Já o chamado “bolsa-aluguel” logo se mostrou insuReprodução

ficiente, já que a distribuição do benefício fez surgir a especulação imobiliária no local. De acordo com Maria Zélia, antes era possível alugar uma casa de dois ou três cômodos por cerca de R$ 200. Atualmente, o custo para o mesmo tipo de imóvel oscila entre R$ 400 e R$ 600. “O aluguel aumentou de forma bem absurda, e quem tem filhos não consegue alugar casa”, conta.

Maria Zélia garante que houve grande pressa do poder municipal em realizar as demolições, que teriam sido facilitadas pelas enchentes Sem assistência Além disso, de acordo com relatos, a parca assistência recebida pelas famílias na época das enchentes – colchões finos e algumas cestas básicas – fez com que muitas famílias usassem o dinheiro para comprar colchões e outros itens de necessidade básica. Assim, restou a elas voltarem para suas antigas casas, que não haviam sido demolidas, ou se acomodarem na casa de amigos e parentes. Com o fim dos seis meses do auxílio-aluguel, muitas famílias também têm tentado renovar o benefício, em vão. “Eles [prefeitura] não estão renovando o cadastro. Muitas

pessoas ligam lá, e eles nem atendem”, diz Maria Zélia. As famílias questionam a demora para a construção nas oito áreas de interesse social. De acordo com Maria Zélia, em nenhum dos terrenos foi iniciada qualquer obra. “Muitos ainda estão em atividade”, revela a moradora. Além disso, a prefeitura estaria querendo financiar as unidades da CDHU, em vez de doá-las a quem perdeu ou perderá sua casa. As incertezas trazem insegurança aos moradores, que se declaram apreensivos com a situação. Ainda em sua casa, na Chácara Três Meninas, Maria Fernanda Brito Moura resume o sentimento das comunidades. “Está todo mundo apavorado. Eu mesma estou apavorada de, a qualquer momento, encostar aí alguém [da prefeitura] sem nenhuma solução de indenização, de moradia, de nada. Porque não tem nenhum projeto”, reclama. “Se queriam fazer tudo isso [construir o parque], por que não pensaram em habitação para o povo?”, questiona Marcia, do Jardim Romano, de onde está prevista a saída de 800 famílias. “Este ano ninguém tem mais sossego. A auto-estima de muitos fica lá embaixo. É um ponto de interrogação que fica”, completa. Acampamento Com o objetivo de denunciar as remoções e pressionar a prefeitura a construir casas populares, cerca de 100 famílias ocuparam, em 17 de abril, um dos terrenos de interesse social, localizado na Vila Curuçá. O acampamento “Alagados do Pantanal”, como ficou conhecido, foi despeja-

do no dia 21 de maio, com forte aparato policial. “Uma coisa interessante é que o dono pediu reintegração de posse, e quem mandou todo o aparato foi a prefeitura, não foi o dono do terreno”, salienta Maria Zélia. No dia seguinte ao despejo, as famílias organizaram uma passeata em direção à subprefeitura de Itaim-Vila Curuçá, mas foram recebidas por bombas de gás lacrimogêneo. Os manifestantes ainda pleitearam uma audiência com o subprefeito, mas conseguiram apenas a inscrição em mais um cadastro. Nesse dia, de acordo com Maria Zélia, foi anunciado pelos representantes da prefeitura que cerca de 28 mil famílias deveriam ser removidas devido às obras do parque. Para a integrante do Movimento Terra Livre, o intuito é utilizar a área para abrigar, além do parque, apartamentos para famílias de classe média alta. Ela frisa que, em alguns locais, já estão sendo construídos prédios que serão, posteriormente, financiados pela Caixa Econômica Federal através do Programa Minha Casa, Minha Vida. “Com certeza, nossa área vai ser toda demolida para construir apartamentos para ricos. Eles não estão falando em reurbanizar a área?”, salienta. Paraisópolis O programa de reurbanização da várzea do rio Tietê repete outros casos da capital paulista. Um exemplo é a comunidade de Paraisópolis, na zona sul da capital paulista, vizinha ao bairro rico do Morumbi, onde dezenas de famílias perderam suas casas devido a obras de intervenção urbanística. Como soluções, a Secretaria de Habitação apresentou, além do vale-aluguel e dos chamados cheques-despejo, albergues apertados e sem infraestrutura. “Eles não estão nem aí para o que chamam de pobreza. Eles querem desinfetar a área, tirar o que chamam de pobre”, sentencia Maria Zélia. O deputado estadual Raul Marcelo (PSol), que tem realizado visitas às comunidades, também condena o abandono das famílias por parte do Estado. Para ele, é “curioso” o fato de o projeto do parque linear citar somente a remoção de residências e não fazer alusão às empresas que atuam na região. Em janeiro deste ano, a empresa de produtos alimentícios Bauducco foi acusada pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente de aterrar a várzea do rio Tietê na área onde fica seu centro de armazenamento, em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Para Marcelo, a prefeitura está perdendo a oportunidade de resolver as questões habitacionais da cidade. “Essas famílias vão ocupar as várzeas, só muda o problema de lugar”, lamenta. Cris Castello Branco/Governo SP

À esquerda, ilustração de trecho do parque linear; à direita, o prefeito Gilberto Kassab e o atual governador de São Paulo, Alberto Goldman, durante visita ao Jardim Pantanal


de 1º a 7 de julho de 2010

7

brasil

Famílias atingidas convivem com pressões e até ameaças de morte Nilton Suenaga/CC

Empresa contratada para realizar o cadastro dos moradores a serem removidos é acusada de tentar forçar saída “espontânea” da Reportagem As demolições efetuadas depois da enchente ocorrida em dezembro foram, segundo Maria Zélia Souza Andrade, integrante do Movimento Terra Livre e moradora da Chácara Três Meninas, o início de uma pressão generalizada para que todas as famílias saíssem da área inundada. A empresa Diagonal Urbana Consultoria, contratada pela Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo (Sehab) para realizar o cadastro dos moradores, é uma das campeãs de reclamações dentro das comunidades. A moradora Marcia Carvalho, do Jardim Romano, conta que foi procurada por uma funcionária da Diagonal, que lhe ofereceu uma quantia para deixar sua casa. Ao recusar a oferta – muito abaixo do valor de mercado –, Marcia foi “avisada” pela funcionária de que, se não aceitasse o dinheiro agora, poderia ficar sem nada depois. “A própria moça da Diagonal disse pra mim que o ‘bolo era grande’ e que, se eu ficasse por último, não pegaria nem uma fatia”, detalha. Marcia também conta que a empresa costuma convidar algumas famílias para negociar e tenta convencê-las a ir embora da região. Em geral, os representan-

Crianças brincam ao lado de casa demolida no Jardim Pantanal

tes da Diagonal oferecem uma soma pelo valor da casa, que costuma variar entre R$ 5 mil e R$ 10 mil (chegando a R$ 40 mil para grandes propriedades) ou passagens de retorno para o local de origem da família. “Nossas casas não estão à venda, mas, se eles [Diagonal] querem comprar, terá que ser pelo preço que nós queremos”, afirma. Já Maria Zélia denuncia que a Diagonal contrata pessoas na própria comunidade para atuarem como assistentes sociais, sem que tenham formação específica. Ela conta que uma amiga chegou a ser procurada para trabalhar no cargo. “Ela perguntou se lá [Diagonal] todas eram [assistentes sociais]. Aí, disseram que só algumas [eram]”, explica. Em sua página na internet, a empresa declara que possui, junto à Prefeitura Municipal de São Paulo, “Contratos de Gerenciamento Social no âmbito dos Programas Habitacionais da Secretaria de Habitação da Prefeitura de São Paulo”. Procurada, a Diagonal informou que seu cliente, a Sehab, entraria em contato com a reportagem para respon-

der os questionamentos acerca da empresa. Em sua nota, porém, a Sehab não se pronunciou sobre tais denúncias.

“A própria moça da Diagonal disse pra mim que o ‘bolo era grande’ e que, se eu ficasse por último, não pegaria nem uma fatia” Ameaças

Os moradores também reclamam de agressões morais cometidas por funcionários da prefeitura, da Polícia Militar e até mesmo da Polícia Ambiental. “A Polícia Ambiental está aí, mas eles não estão perseguindo a devastação da natureza, estão perseguindo os moradores”, acusa. As principais lideranças das comunidades convivem, ainda, com ameaças de morte por parte de

moradores da própria região. “Eles dizem ‘você não é do governo, você não está ganhando nada com isso. Ou sai ou morre’”, relata Maria Zélia. Ela conta também que esses mesmos moradores auxiliam técnicos da prefeitura na derrubada de casas, indicando que algumas delas estão situadas em áreas de risco. Questionada sobre a motivação dos vizinhos para essa postura, Maria Zélia afirma desconhecer as razões, mas estranha o comportamento. “É muito estranho morar na área, estar passando pela mesma necessidade e estar do lado deles [governo]”, opina. O caso é acompanhado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. De acordo com o defensor Bruno Miragaia, coordenador da Regional Leste, a instituição está buscando dados para analisar a condição das famílias e os impactos da construção do parque. De antemão, ele esclarece que, pela magnitude do projeto, a apuração exige tempo e trabalho. “É algo complexo, trata-se de um megaprojeto”, diz. Apesar de não haver conclusões mais precisas, o defensor confirma que existe pressão para que as famílias deixem a área e adianta algumas falhas encontradas no processo de construção do empreendimento, como a falta de participação popular. No dia 11 de fevereiro deste ano, a defensoria obteve da prefeitura, por meio de uma ação civil pública, uma série de compromissos – dentre eles, a suspensão das demolições até a realização de audiências públicas. As remoções, porém, continuam ocorrendo sem que tenha havido audiências públicas para a discussão do projeto do parque. “Parece que não está havendo uma participação efetiva [da população] nessa intervenção”, analisa. (PB)

Fedor e doenças, a realidade cotidiana dos afetados Almeida Rocha/Folha Imagem

População atingida pela enchente convive diariamente com o cheiro de esgoto e enfermidades causadas pela água contaminada

Quase duzentas organizações do movimento negro, quilombola e popular encaminharam manifesto ao governo federal no qual denunciam os ataques da direita contra o sistema de cotas nas universidades públicas, a paralisação nos processos de titulação das terras dos quilombos e o recuo nas medidas e direitos dos negros previstos no Estatuto da Igualdade Racial. As organizações convocam para nova jornada de lutas.

Caos ideológico

Porta voz da direita ruralista, a senadora Kátia Abreu, do DEM, escreveu artigo repleto de elogios ao deputado federal Aldo Rebelo, do PCdoB, por ter incorporado na relatoria da reforma do Código Florestal propostas dos predadores da natureza. Em compensação, a direção do DEM pode apoiar o candidato do PCdoB ao governo do Maranhão. Está provado: fisiologismo e oportunismo não têm limite na política brasileira.

Interesse privado

Uma das propostas dos ruralistas que o deputado Aldo Rebelo incorporou é a que promove ampla anistia aos grandes proprietários de terras – griladas ou não – que foram multados pelo Ibama, até 2008, por desmatamento de área de preservação ambiental. A presidente (Kátia Abreu) e o vice-presidente (Assuero Veronez) da Confederação Nacional da Agricultura são infratores, multados respectivamente em R$ 120 mil e R$ 90 mil, mas, até hoje, não pagaram.

Medida duvidosa

A Advocacia-Geral da União determinou o bloqueio de R$ 6 milhões da empresa Madeireira Barazetti & Barazetti Ltda., que desmatou 1.205 hectares de floresta no estado de Mato Grosso e que há vários anos tem desrespeitado as leis ambientais. O difícil agora é que a ordem seja cumprida pelos bancos e pelo judiciário estadual – que normalmente atuam em cumplicidade com os grileiros e empresários do agronegócio.

Deserto verde

Vários grupos estrangeiros europeus e chineses estão jogando pesado na construção de novas fábricas de celulose no Brasil, no Mato Grosso, Piauí, Maranhão, Bahia e também na região sul. O interesse deles tem a ver com a alta das commodities no mercado internacional, baixo custo de produção e a vantagem de que o eucalipto plantado aqui cresce mais rápido do que em outras regiões. O Brasil entra com a terra, a água e o sol. Lucro fácil! No dia 25 de junho, o empresário Abílio Diniz, do Grupo Pão de Açúcar, fez o papel de cabo eleitoral governista e promoveu encontro em sua casa, em São Paulo, da candidata Dilma Rousseff com 50 esposas de grandes empresários, a fina flor da burguesia paulistana. Após duas horas de reunião, as socialites deixaram o encontro com muitos elogios à candidata do PT. A elite não tem do que reclamar!

Retrocesso – 2

No início deste ano, moradores caminham em rua inundada do Jardim Pantanal

Os moradores entraram com representação no Ministério Público Estadual contra a prefeitura e o governo do Estado, mas, até agora, não houve retorno.

“Enquanto eu andava com água pelos joelhos, na Marginal [Tietê] passava carro”, relembra Maria Zélia Souza Andrade

Investigação

Na época, em entrevista ao Portal UOL, o engenheiro responsável pela barragem da Penha, João Sérgio, confirmou que a decisão foi tomada pela direção da Empresa Metropolitana de Água e Energia, que só liberou a reabertura dois dias depois. “Enquanto eu andava com água pelos joelhos, na Marginal [Tietê] passava carro”, relembra Maria Zélia Souza Andrade, do Movimento Terra Livre, que mora na Chácara Três Meninas, outra comunidade atingida pela água.

Luta anti-racista

Retrocesso – 1

da Reportagem Pelas ruas do Jardim Romano, na zona leste de São Paulo (SP), ainda é possível sentir um forte cheiro de esgoto na rua. Pelas bocas-de-lobo, é possível ver a água retornando para as calçadas. O bairro foi um dos mais impactados pelas enchentes do dia 8 de dezembro do ano passado, que castigaram toda a várzea do rio Tietê. Em toda a região, pelo menos oito pessoas morreram e estima-se que entre quatro e cinco mil casas tenham sido atingidas. No caso do Jardim Romano, foram 70 dias de inundação. Seis meses após o episódio, no entanto, nenhum dos responsáveis pelos alagamentos foi punido. Os moradores acusam a prefeitura e o governo do Estado de provocarem a enchente, ao ordenarem a abertura das barragens em Mogi das Cruzes e o fechamento da barragem da Penha. Para evitar um alagamento na Marginal Tietê, teriam optado por inundar as comunidades construídas sobre a várzea do rio.

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

De acordo com o defensor público Bruno Miragaia, coordenador da Regional Leste da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o órgão busca esclarecer os fatos ocorridos em dezembro. No entanto, segundo ele, é cedo para conclusões. “Precisamos apurar com mais cautela”, afirma. O deputado estadual Raul Marcelo (PSol), que acompanhou os efeitos das enchentes, também defende a investigação dos responsá-

veis. Para ele, no entanto, é preciso garantir que não haja novas inundações. Segundo Marcelo, porém, até agora a prefeitura não realizou as limpezas necessárias na região, o que pode contribuir para que os alagamentos voltem a ocorrer. “A situação continua a mesma. E nós não podemos dizer que no final do ano, quando voltar a chover, não vai acontecer o mesmo“, avalia. Consequências

Os reflexos das enchentes continuam presentes, inclusive, na saúde dos moradores. Muitos ainda apresentam enfermidades em decorrência do tempo exposto à água contaminada. No Jardim Pantanal, uma criança de cinco anos enfrenta problemas cardíacos, e uma série de pessoas apresentam doenças raras, sobretudo de pele. Maria Zélia mostra à reportagem um menino, que aparenta dez anos, coberto de feridas pelo rosto. “Isso aí é tudo por causa da enchente”, conta a moradora, referindo-se à infecção. Ela reclama também da falta de assistência médica para tratamento das doenças. “Você não consegue um dermatologista. Nem uma pomadinha simples. Se você quiser, tem que

comprar. Eles [prefeitura] não dão assistência nenhuma”, acusa. Nem nos primeiros dias da enchente, de acordo com ela, o atendimento foi o necessário. Apesar do aumento do número de pessoas doentes, com vômito e diarreia, o número de médicos nos postos de saúde continuou o mesmo. “Na época, se dissesse que [a doença] era [resultado] da enchente, o descaso era pior. Chegava lá e tinha que esperar, o dia todo”, revela. Manipulação

As consequências das enchentes para a saúde dos moradores, contudo, podem ser maiores do que se imagina, já que os hospitais são acusados de omitir as causas verdadeiras das doenças nos laudos. A leptospirose teria sido uma das doenças mais “camufladas”. “Teve um rapaz que falaram que tinha leptospirose. Mas, na hora de pegar o laudo, o hospital liberou como se fosse uma infecção qualquer”, relata Renata Nery, moradora do Jardim Pantanal. Em outro caso, de acordo com Maria Zélia, a causa da morte de um rapaz, inicialmente diagnosticado com leptospirose, também teria sido alterada no laudo. “Disseram que foi cirrose”, aponta. (PB)

Caminha a passos largos a destruição moral e política do Partido Socialista Brasileiro (PSB) no estado de São Paulo, onde o candidato a governador da agremiação é o ex-presidente da poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf. Em seu primeiro discurso como candidato, o empresário defendeu a privatização da Universidade de São Paulo (USP). É o fim da picada: não sobrou nada de socialista no PSB.

Repressão policial

No dia 22 de junho, a Polícia Militar de Rondônia reprimiu duramente os trabalhadores da Usina de Santo Antônio, no rio Madeira, que há vários meses protestam contra as péssimas condições de trabalho, responsáveis por vários acidentes e mortes. Os 12 mil operários reclamam dos baixos salários, alimentação ruim, falta de atendimento médico e, ainda por cima, da perseguição e agressão constante por parte dos empregadores. Até quando?

Pressão privada

O capital é insaciável: pesquisa divulgada recentemente pela Câmara Americana de Comércio concluiu que o empresariado defende maior participação da “iniciativa privada” em várias atividades “competitivas”, entre as quais, a produção e distribuição de energia elétrica, exploração de petróleo, pesquisa e desenvolvimento tecnológico e educação superior. Ou seja, o que não foi privatizado até agora continua sendo cobiçado. Todo cuidado é pouco!


8

de 1º a 7 de julho de 2010

brasil

A divisão só interessa aos inimigos Reprodução

ENTREVISTA Para o jornalista Sávio Bones, atual quadro de candidaturas só reforça a necessidade de uma frente que aglutine a esquerda, partidária ou não Nilton Viana da Redação JÁ PASSOU DA hora de ter responsabilidade e coragem para construir uma frente de unidade popular no Brasil. Essa é a convicção do jornalista Sávio Bones. Para ele, o quadro de várias candidaturas só reforça a necessidade de uma frente que aglutine a esquerda, partidária ou não. Em entrevista, Bones diz que os partidos de massas – que não podem ser confundidos com partidos com base de massas – não encarnam mais uma alternativa das mudanças estruturais na sociedade. Para ele, o recente ciclo da esquerda brasileira encerrouse. O jornalista acredita que “o próximo período exige passos concretos para equacionar alguns dos pontos que nos têm aprisionado”. Um deles, segundo ele, é enfrentar e resolver, teórica e praticamente, o problema político e a necessidade estratégica da unidade popular no Brasil. “Está claro que o caminho da esquerda brasileira é negar a divisão, perseguir uma aliança popular ampla e aceitar o desafio de arquitetar o novo. É construir uma frente plural, um instrumento de mobilização, unificação e organização da população”. Brasil de Fato – Em 2008, o capitalismo, com a crise financeira iniciada nos EUA, abalou todo o mundo e deu sinais de que o sistema entraria em colapso total. Atualmente, a Grécia é a bola da vez, gerando impactos em toda a Europa. Que avaliação você faz da crise? Sávio Bones – O capitalismo vive uma crise estrutural que se já se arrasta desde a década de 1970. O neoliberalismo foi uma tentativa de superá-la e inaugurar um novo período de prosperidade. As dificuldades dos tempos atuais mostram que esse período foi de curta estabilidade e vem chegando ao fim. Tanto em 2008, como recentemente, o que verificamos foram manifestações conjunturais da crise, ou seja, são agudizações, picos de um fenômeno muito maior e de longa duração. A primeira teve como epicentro os EUA e a segunda é a crise na União Europeia e não de um ou outro país. Creio que é preciso evitar duas posições: uma, bem ao gosto conservador, trata as manifestações da crise como fenômenos desconexos, que devem ser equacionados em cada momento; outra, apocalíptica, enxerga em cada espasmo o anúncio do colapso total do capitalismo, que ruiria por si só. Como vimos recentemente, o imperialismo, os grandes conglomerados monopolistas-financeiros, os Estados e outros centros estruturadores do capital construíram mecanismos e medidas de controle e redução de danos, que diminuem no curto prazo os efeitos, embora sejam inúteis como respostas duradouras. Creio que não há o que comemorar nas manifestações da crise, afinal, quem mais padece são as classes trabalhadoras. A nós cabe buscar caminhos de combate à crise que abram possibilidades

para as grandes e decisivas transformações sociais, indispensáveis para o atendimento das necessidades e anseios dos grandes contingentes populares. O capitalismo utiliza cada vez mais a repressão, a violência e a barbárie. Esses mecanismos são essenciais para a sustentação do atual modelo? São, como sempre foram. A repressão às lutas populares, sob o Estado burguês e sua democracia, sempre existiu aberta ou velada, institucionalmente ou não. A história da América é repleta de exemplos de alternância de momentos de maior liberdade e outros de terrorismo de Estado. No Brasil de hoje presenciamos uma alteração nos padrões repressivos, que passam a contar com amparo legal e legitimidade no interior da sociedade, fruto de uma correlação de forças ainda desfavorável.

“A história da América é repleta de exemplos de alternância de momentos de maior liberdade e outros de terrorismo de Estado” Marx continua atual como referencial analítico para o atual estágio do capitalismo? Marx formulou uma síntese filosófica de validade permanente e uma doutrina social insuperável enquanto durar a sociedade capitalista. São dele também os elementos basilares do processo de superação da ordem do capital e de construção de um novo mundo, possível e necessário, baseado na “livre associação de homens livres”. O pensamento de Marx, hoje e mais do que nunca, é a base intelectual para quem busca superar a préhistória da Humanidade. O atual estágio de desenvolvimento capitalista tem colocado novas formas de produção, um novo mundo do trabalho, alteração das relações sociais etc. A esquerda, na sua avaliação, tem se colocado à altura desse “novo mundo”? Há um endeusamento das mudanças promovidas pelas novas tecnologias e formas de organização do trabalho. É bom destacar que nenhuma delas foi capaz de mudar as condições estruturais do capitalismo e superar o ponto sobre o qual se ergue a sociedade capitalista: a exploração do trabalho pela extração de mais-valia, baseada na produção socializada nos marcos da apropriação privada dos meios de produção. As várias transformações não eliminaram a centralidade do trabalho ou o proletariado como quer a cultura chamada de pós-moderna. O que houve foi, por exemplo, uma alteração no perfil do proletariado e do conjunto das classes trabalhadoras. Assistimos hoje a uma proletarização crescente de vários segmentos – como, por exemplo, dos camponeses e dos trabalhadores em serviços. Presenciamos uma necessidade de qualificação profissional cada vez maior, um estoque brutal de trabalho sobrante, uma precarização das relações trabalhistas. Nesse “museu de grandes novidades” é preciso reafirmar a centralidade do trabalho e retomar a crítica ao capitalismo a partir da realidade concreta das pessoas, reencontrar a imagi-

nação perdida na formulação de táticas e mediações, adotar atitudes próprias para o momento e, sobretudo, enterrar a fragmentação e a divisão. Tudo isso com um objetivo: voltar a encantar multidões e promover a autoconfiança e a unidade das camadas populares para que elas possam descortinar por elas mesmas um caminho novo. Os instrumentos políticos da esquerda, principalmente os partidos políticos, ao seu ver, têm sido capazes de fazer frente à atual realidade brasileira? Apesar de fragmentadas, até agora, as organizações do campo popular, incluindo aquelas de caráter partidário, movimentos, centrais, fóruns, assembleias, resistiram e têm sobrevivido aos tempos de defensiva. Já o potencial transformador dos partidos que surgiram ou se reconstruíram no ocaso da ditadura militar esgotou-se. Os partidos de massas – que não podem ser confundidos com partidos com base de massas – não encarnam mais uma alternativa das mudanças estruturais na sociedade. Os partidos que mantêm o horizonte revolucionário não têm conseguido aglutinar forças capazes de reordenar as várias vertentes da esquerda e impulsionar uma aliança política ampla e uma nova alternativa de massas. Creio que o recente ciclo da esquerda brasileira encerrouse. O próximo período exige passos concretos para equacionar alguns dos pontos que nos têm aprisionado. Um deles é enfrentar e resolver, teórica e praticamente, o problema político e a necessidade estratégica da unidade popular no Brasil. Já passou da hora de ter responsabilidade e coragem para construir uma frente de unidade popular no Brasil. Esse ano teremos eleições no Brasil. Como você vê o cenário eleitoral brasileiro? Basicamente, são três campos em disputa: a oposição de direita, arraigada à ortodoxia neoliberal, apresentou a candidatura de José Serra e tem no PSDB-DEM seu eixo articulador. O situacionismo social-liberal tem Dilma Rous-

seff como candidata, está reforçado pelo PMDB e conquistou apoio de setores populares organizados, inclusive de esquerda. Esses dois lados adversários estão polarizando a disputa. Entre os dois está a candidata do PV, Marina Silva, que não constitui um campo próprio. O oposicionismo de esquerda é o terceiro campo e tem reduzida inserção social e pouca densidade eleitoral. A construção das candidaturas deixou clara a divisão no seu interior. Plinio Arruda Sampaio aparece como o candidato que reúne as melhores possibilidades para combater a oposição de direita, apresentar propostas avançadas de interesse dos trabalhadores e defender posições que acumulem para a unificação das forças populares. Não por acaso, já recebeu o apoio da Refundação Comunista e da Corrente Comunista Luiz Carlos Prestes. O quadro de candidaturas só reforça a necessidade de uma frente que aglutine a esquerda, partidária ou não. Esta divisão só interessa aos nossos inimigos e aos nossos adversários.

“O quadro de candidaturas só reforça a necessidade de uma frente que aglutine a esquerda, partidária ou não. Esta divisão só interessa aos nossos inimigos e aos nossos adversários” Em entrevista ao Brasil de Fato, o jornalista José Arbex Jr. defendeu a criação de um novo partido, instrumento político, impulsionado pelo movimentos sociais. Como você vê essa proposta? Arbex manifestou uma interrogação de vários segmentos da esquerda: como

superar a dispersão e abrir um novo caminho no Brasil? Para mim, está claro que o caminho da esquerda brasileira é negar a divisão, perseguir uma aliança popular ampla e aceitar o desafio de arquitetar o novo. É construir uma frente plural, um instrumento de mobilização, unificação e organização da população. Um espaço de unidade das lutas populares e uma alternativa também para as disputas eleitorais. Um movimento que arranque conquistas, que alargue a influência das ideias progressistas e avançadas, que se imponha na disputa contra-hegemônica e que deixe explícita a ideia de ruptura com a situação vigente. Uma aliança ampla entre partidos, correntes, agrupamentos, movimentos, fóruns, assembleias, setores religiosos, dirigentes políticos, intelectuais e personalidades identificados com os anseios nacionais, democráticos e populares. Uma frente que se abra à adesão e à filiação massiva de militantes e ativistas, bem como de todas as pessoas que se identificarem com seu programa e sua plataforma de reivindicações. Como você avalia que deva ser um instrumento político que seja capaz de fazer frente ao atual estágio do capitalismo no Brasil? Uma unidade popular orgânica baseada num programa de luta social por reformas profundas, de caráter anti-imperialista, antimonopolista e antilatifundiário. Um programa que aprofunde a soberania e equacione as questões nacionais pendentes. Que combata os oligopólios financeiros. Que avalize o alargamento das liberdades e dos direitos democráticos. Que garanta o desenvolvimento econômico e a elevação do nível de vida do povo e o bem estar das grandes maiorias. Que realize a reforma agrária, a democratização da cultura e a correta relação com o meio ambiente. Que lute pela eliminação de todas as formas de discriminação. Enfim, que promova o progresso social do país e aponte para o socialismo. Uma frente de esquerda pelo conteúdo programático, pela composição social, pela

abordagem das diversas formas de luta e pelas formas de organização e não pela simples autoafirmação. O centro das ações da frente popular é o combate radical às políticas neoliberais e atitudes governamentais antipovo, em defesa dos interesses econômicos e sociais, imediatos e permanentes, dos assalariados, dos desempregados, dos camponeses, dos segmentos médios e pequeno-burgueses em contradição com o grande capital, das mulheres, da juventude, dos setores discriminados, da intelectualidade libertária e dos demais segmentos explorados e oprimidos. Do ponto de vista da organização, os partidos, movimentos e setores que participarem da aliança poderiam manter seus instrumentos e estruturas funcionando normalmente, assumindo apenas o compromisso de construir a frente como um fórum de unidade popular e de divulgar suas ideias e propostas. Penso num funcionamento baseado no consenso nas questões importantes e na rejeição da disputa interna permanente como método de decisão. A unidade popular não tem receita, mas exigirá, sobretudo, determinação. É no próprio movimento de construção da frente que serão superadas as dificuldades previsíveis. A experiência, a formação e a inventividade de quadros e militantes serão adquiridas e lapidadas enquanto a frente se constrói. Fico imaginando o espectro político do jornal Brasil de Fato envolvido numa empreitada dessa. Na força que tem a militância partidária, da Consulta, da Assembleia Popular, da Via Campesina e de outras organizações juntas. Nos milhares de dirigentes, militantes e ativistas hoje incomodados, insatisfeitos e desmobilizados. No contingente da população ainda presa ao passado, mas aberta para o futuro. Imagine esta gente promovendo debates, encontros e reuniões. Discutindo pontos programáticos e ações comuns. Dirigentes, militantes e personalidades reconhecidos percorrendo o Brasil, mobilizando as pessoas e reacendendo a esperança perdida. Construindo uma opção orgânica que significa o novo encarnado na unidade popular. Mexeríamos ou não com a pasmaceira e a mesmice que assola o país? Enfrentaríamos nossos inimigos de forma mais radical e, fundamentalmente, iríamos voltar a ser perigosos. Você acha que o Programa Democrático Popular construído pelo PT em 1986 ainda está atual? Um programa democrático e popular não é patrimônio de qualquer partido ou movimento. É fruto das necessidades históricas, das lutas e dos acúmulos teóricos e políticos de nossa gente. Enquanto o povo não conquistar autonomia em relação ao imperialismo e aos monopólios, não realizar as reformas democráticas – como, por exemplo, a reforma agrária – e não criar condições para melhorias substanciais na vida das grandes maiorias, as transformações democráticas e populares estarão na ordem do dia. Arquivo pessoal

Quem é Sávio Bones é jornalista, assessor sindical e diretor do Instituto 25 de Março.


de 1º a 7 de julho de 2010

9

internacional

Demolições: faces da limpeza étnica PALESTINA Estado de Israel demoliu, entre 1967 e 2009, cerca de 25 mil casas de palestinos Michael Ramallah

notícia na qual os colonos afirmaram que, caso a polícia de Israel não execute as ordens de despejo e demolição, eles mesmos irão contratar milícias particulares para forçar a saída das famílias. Nos últimos dias, Silwan tem estado todos os dias nos noticiários israelenses, palestinos e também tem chamado a intenção da imprensa internacional. Quase diariamente, há embates entre os moradores árabes e a polícia. No dia 27, um adolescente de 17 anos perdeu o olho esquerdo após ser atingido por uma bala de borracha. De acordo com testemunhas, os confrontos têm começado a partir da ação das milícias particulares contratadas pelos colonos judeus.

Dafne Melo enviada a Jerusalém (Palestina) “VIVEMOS SOB constante medo. Cada vez que entro na minha casa, penso que pode ser a última vez que durmo lá”. A frase do líder comunitário Fakhri Abu-Diab revela o medo de todos palestinos que moram na região de Silwan, em Jerusalém Oriental. Desde a década de 1990, o bairro árabe – com 45 mil habitantes – está no alvo do Estado de Israel, que tenta resignadamente expulsar os moradores palestinos da região. A exemplo do que ocorre em diversos outros pontos da Palestina, um dos objetivos é colocar no lugar colônias judias, num esforço de judaicização da cidade sagrada. Abu-Diab conta que, em novembro de 2004, a prefeitura da cidade, sob comando dos israelenses, mandou ordens de despejo e demolição de 88 casas do sub-bairro de Al-Bustán, onde vivem cerca de 1500 pessoas, metade delas crianças. “Há seis anos, a prefeitura de Jerusalém nos avisou que nossas casas são ilegais. Mas essas casas foram construídas antes de 1967, na verdade, algumas delas antes mesmo de 1948”, conta Abu-Diab, que é um dos líderes do comitê popular em AlBustán, cuja casa também está sob ameaça de demolição. “Eu nasci em um dos quartos da casa onde moro. Ela foi do meu avô, foi do pai dele e assim por diante”. No início de 2005, a prefeitura chegou a demolir duas casas, mas diante da mobilização popular e da repercussão internacional, recuou. Em 2008, o governo municipal retomou o projeto de demolição e ofereceu uma compensação financeira para que as pessoas fossem morar em outro lugar. A oferta foi negada pelos palestinos, de quem ainda é cobrada uma taxa de demolição, pela prefeitura. Recorrer à justiça não é um recurso com o qual contam os palestinos. Pesquisas mostram que a possibilidade de um palestino ganhar uma causa movida contra o Estado de Israel não chega a 5%. Medo e resistência Diante da negativa dos moradores de Al-Bustán, a prefeitura deu novas ordens de despejo e demolição às famílias. Abu-Diab conta que, apesar de pagarem impostos, a prefeitura alega que suas casas são ilegais. “Se eu estou ilegal, como podiam me cobrar impostos? A prefeitura não faz nada aqui, nunca construiu uma escola, mal recolhe o lixo. Eles têm, além de tudo, uma agenda racista. Em bairros onde a maioria é

Casa demolida em Nablus

“É uma agenda política. Eles podem falar que é a importância religiosa do local, mas o que querem é tirar os árabes de Jerusalém” árabe, não aparecem nunca; só para demolir”. O líder comunitário conta que, além do abandono em que vivem, têm que lidar cotidianamente com o medo, que afeta especialmente as crianças. “Estão ocupando nossas cabeças, as mentes das crianças. Meus filhos me perguntam quando vão demolir a casa. Por isso, não se trata só da demolição de casas, mas de famílias, de tudo que temos”, resume. Abu-Diab conta a história de um amigo e companheiro do comitê, cujo filho de sete anos começou a ter baixo aproveitamento escolar repentinamente. O professor chamou os pais e perguntou se algo estava acontecendo, pois o menino, até então bom aluno, “se mantinha sentado, quieto, mas sem esboçar reações e não estava aprendendo nada”. Os pais começaram a tentar conversar com a criança, que se esquivava. Decidiram então assumir outra tática e se dispuseram a tentar ajudar com o dever de casa. Quando o pai abriu a mochila, viu que não tinha nenhum livro ou caderno, apenas os brinquedos. “Ele perguntou ao menino o porquê daquilo e ele saiu correndo, chorando. Depois, disse aos pais que havia escutado os dois falando que a casa se-

ria demolida, e então, estava levando os brinquedos para que não os perdesse se a casa fosse abaixo enquanto ele estivesse na escola”. Histórico A demolição e confisco de casas, entretanto, não é novidade em Silwan, nem mesmo na Palestina, onde, desde 1967, de acordo com o Comitê Israelense Contra a Demolição de Casas (ICAHD, sigla em inglês), cerca de 25 mil casas de palestinos já fo-

ram demolidas, somente nos territórios ocupados em 1967 (Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental). Em 1991, a prefeitura de Jerusalém, apoiada por associações de colonos judeus, tomaram as residências de palestinos no sub-bairro de Wadi Hilweh. Na época, 5500 foram expulsos de suas próprias casas. Para Abu-Diab, as novas investidas em seu bairro mostram a disposição das forças sionistas em seguir com a limpeza étnica do povo palestino em seu próprio território. “É uma agenda política. Eles podem falar que é a importância religiosa do local, mas o que querem é tirar os árabes de Jerusalém”, afirma. No final de maio, a prefeitura notificou 22 casas que se-

Violência Na região, há também pouquíssimos judeus vivendo em colônias dentro de Silwan, que encorajam e apoiam a prefeitura a seguir com os despejos. Uma delas, Beit Yehonatan, com cerca de 10 famílias. No dia 24 de junho, o jornal israelense Haaretz publicou uma

As demolições já vêm colecionando críticas internacionais e até mesmo internas. Alguns membros do governo declaram que agora – logo após o ataque à flotilha humanitária que deixou nove mortos – é cedo para Israel tomar outra atitude que os coloque em uma má posição diante da comunidade internacional. O Departamento de Estado dos EUA criticou a decisão de demolir as casas, afirmando que esse tipo de atitude mina as possibilidades de um acordo de paz entre palestinos e israelenses.

Prefeitura usa argumento bíblico para derrubar casas Segundo especialistas, justificativa esconde a real motivação para a ação: retirar os palestinos da cidade sagrada

Dafne Melo

da enviada a Jerusalém (Palestina)

O líder comunitário Fakhri Abu-Diab

riam demolidas para a construção de um parque em homenagem ao Rei David. “Quando viram que tínhamos documentos da propriedade de nossas casas, datados de antes da criação do Estado de Israel, começaram a usar um argumento religioso”, conta Abu-Diab. “O que é mais importante? Nossas casas e as pessoas que moram aqui ou um parque para o Rei David?”, questiona.

De acordo com testemunhas, os confrontos têm começado a partir da ação das milícias particulares contratadas pelos colonos judeus

A chamada Cidade Velha, em Jerusalém, é hoje um dos principais pontos turísticos da cidade. Por suas ruas estreitas, concentram-se centenas de estabelecimentos comerciais na parte de baixo das construções antigas. Em cima, ficam residências de famílias, na sua maioria, árabes. Dos 20 mil habitantes da Cidade Velha, apenas 2500 são judeus, que obtiveram suas casas após a expulsão das famílias árabes que viviam ali antes de 1967. As ruas onde há judeus morando na parte superior são fáceis de reconhecer. Além da bandeira israelense que alguns colonos fazem questão de colocar na janela, há grades colocadas horizontalmente entre o andar superior e o de baixo. Serve para proteger os árabes, que possuem lojas logo abaixo, do lixo jogado propositalmente pelos colonos, algo que

mil palestinos foram expulsos do país e cidades árabes foram destruídas

portante sobre Silwan. Ali, está uma fonte de água que abastece boa parte de Jerusalém. Israel controla todo consumo de água, não só em seu território, mas também na Cisjordânia.

também se repete em outras cidades, como Hebron, na Cisjordânia. A Cidade Velha, porém, é mais conhecida por reunir lugares santos para as três religiões, como o Santo Sepulcro, o Muro das Lamentações e a mesquita de Al-Aqsa; estes dois últimos, colados um no outro. Silwan fica a apenas 300 metros desses lugares e, por isso, desde a ocupação do Estado de Israel em Jerusalém Oriental (1967), o bairro convive com as escavações feitas por arqueólogos israelenses, que buscam relíquias e outros indícios arqueológicos ligados ao judaísmo. As escavações produziram túneis subterrâneos que prejudicaram a estrutura de algumas casas. Fahkri Abu-Diab, do comitê popular em Al-Bustán, um sub-bairro de Silwan, conta que a prefeitura tem usado o argumento de que aquele era um lugar onde o Rei David costumava frequentar e que por isso tem importância religiosa e arqueológica. Na entrada do bairro, o poder municipal colocou placas em hebraico apontando o bairro como “Cidade de David”. Há ainda outro dado im-

Limpeza étnica No que depender do Estado de Israel, a cidade que é sagrada para o islamismo, o cristianismo e o judaísmo ficará cada vez mais judia. Ocupada em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, Jerusalém sempre foi um dos maiores objetos de desejo dos sionistas. O Estado de Israel a considera sua capital federal, ainda que a comunidade internacional mantenha suas embaixadas em Tel Aviv, justo por não reconhecer a anexação feita pelo Estado sionista há pouco mais de 40 anos. No plano de partilha das Nações Unidas de 1947, Jerusalém seria um território internacional. Em 1949, porém, após a primeira ocupação, se delineou a linha verde do armistício, que dividiu a cidade em duas, a parte Ocidental – mais rica, onde estão as colônias mais luxuosas – e a Oriental, que ficou com os árabes, não só muçulmanos, mas também cristãos. Desde então, assim como faz na Cisjordânia e fazia na Faixa de Gaza – até antes da retirada dos colonos após o Hamas ganhar as eleições em 2006 –, Israel mantém seu plano de ocupação e expulsão dos árabes da Palestina, que começou ainda em 1948 –,

Quanto

800 531

o que muitos historiadores e pesquisadores qualificam como uma limpeza étnica: 800 mil palestinos foram expulsos do país e 531 cidades árabes foram destruídas. Desde então, além do confisco de terras e demolição de casas, o Estado de Israel faz um esforço para tirar o direito de residência dos palestinos da cidade sagrada. Quando da ocupação, deram cidadania aos árabes que ali viviam, mas criaram leis que dificultam sua manutenção. Somente em 2008, o número de palestinos que tiveram suas cédulas de Jerusalém caçadas foi de 4.577. Ao que indicam os números, porém, o desejo dos sionistas está longe de ocorrer. A população árabe possui uma taxa de natalidade muito superior à judia. Em 1967, havia 70 mil palestinos na cidade, hoje existem 280 mil, um crescimento de 255%. Já a população judia teve crescimento, no mesmo período, de 135%. Ainda são a maioria dos habitantes, já que os árabes se agrupavam mais nas áreas rurais, em economia de subsistência, e não concentravam sua população nas grandes cidades. Abu-Diab explica que não lhes interessa expulsar os judeus ou disputar espaço. “Não somos contra os israelenses, os judeus ou qualquer outro ser humano, não temos nada contra os judeus, mas não aceitamos deixar nossas casas”, finaliza. (DM)


10

de 1º a 7 de julho de 2010

internacional

A luta no epicentro da crise capitalista Charity A. Schmidt

EUA Doze mil pessoas se reuniram no Fórum Social Estadunidense para apresentar uma alternativa às políticas praticadas pelo governo do país

jas de bebida, além de casas de penhor e crédito fácil.

João Alexandre Peschanski de Detroit (EUA) A ANTIGA capital do capitalismo está em ruínas. A quarta cidade mais rica do mundo nos anos de 1940, Detroit, no centro-leste estadunidense, transformou-se em um cemitério de prédios e fábricas. A Estação Central de Michigan simboliza a crise da cidade: inaugurada em 1913 e abandonada desde 1988, a estação de trens de dezoito andares e centenas de janelas quebradas domina o horizonte e lembra, continuamente, que Detroit está devastada. A prefeitura estima que 44% da população está desempregada; diante desse cenário, muitas pessoas deixam Detroit, buscando trabalho em outros lugares. Desde 1970, metade da população se foi – aproximadamente 800 mil pessoas vivem na cidade atualmente. Em Corktown, bairro da estação de trem, em média duas em cada cinco casas estão abandonadas ou destruídas. De acordo com informações de um jornal local, a cidade tem 33,5 mil residências abandonadas e 91 mil áreas onde casas foram demolidas. Os dados de habitação – com tantas moradias inutilizadas – contrastam com outra estatística: Detroit tem uma das maiores populações em situação de rua dos Estados Unidos, estimada em mais de 20 mil pessoas. A polícia e a Justiça reprimem ocupações de casas abandonadas e, sem poder abrigar-se nas construções vagas, famílias dormem em ruas ou parques.

12 mil pessoas se reuniram de 22 a 26 de junho no Segundo Fórum Social Estadunidense, realizado em Detroit “Outra Detroit” Mas “uma outra Detroit está acontecendo”. Foi esse um dos principais lemas do II Fórum Social Estadunidense, realizado nessa cidade entre 22 e 26 de junho, que reuniu cerca de 12 mil pessoas, de todos os estados do país. Apesar de ser um encontro nacional, oficinas e debates sobre a situação de Detroit dominaram a agenda, pois, como explicou na marcha de abertura do fórum Linda Ray, do Sindicato Internacional dos Empregados em Serviços, “o que acontece [na cidade] prenuncia o que vai ocorrer no resto dos Estados Unidos”. A crise financeira de 2007 teve como epicentro Detroit, sede da principal montadora estadunidense, o grupo General Motors (GM) – que controla a Chevrolet e a Cadillac, entre outras marcas –, que foi à falência e se reestruturou em julho de 2009. Apenas nesse mês, a empresa fechou 900 de suas 6.900 concessionárias e demitiu 22,5 mil funcionários, sob supervisão do governo dos Estados Unidos, que ofereceu, na época, um empréstimo de

4,7 bilhões de dólares para impedir a falência definitiva. O prédio da sede da GM, no centro de Detroit, tornou-se o símbolo midiático da crise, na medida em que, como a Estação Central de Michigan, perigava tornar-se uma nova ruína do capitalismo. A ajuda do governo salvou a empresa, mas as consequências sociais do colapso da montadora e da economia da cidade se alastraram. “O bailout [a ajuda do governo estadunidense a corporações sob risco de falência] não serviu em nada o povo, pois não houve contrapartida social”, denuncia Natalia Harris, do movimento estudantil da Universidade do Leste de Michigan. Desde o bailout, de acordo com estatísticas oficiais, a pobreza e o desemprego de Detroit e dos Estados Unidos aumentaram, por mais que a GM e outras empresas beneficiadas pela ajuda do governo tenham divulgado lucros milionários. A cidade alternativa Movimentos sociais de Detroit se uniram para limitar e reverter as consequências da

crise. Por isso, uma outra Detroit está acontecendo. A cidade alternativa se fundamenta em quatro pilares. O primeiro, a formação de uma coalizão pelo direito à habitação e contra os despejos de pessoas que não conseguem pagar aluguéis ou prestações de suas residências (leia mais sobre despejos em Detroit na matéria “O pesadelo da casa própria”). No fórum, organizações de todo o país iniciaram discussões para uma campanha pela moratória das dívidas de famílias pobres com bancos quando estão relacionadas a casas. No dia 25, centenas de militantes empunhavam cartazes com os dizeres “Façam um bailout para o povo, não para os bancos”, num protesto em frente ao banco Chase, beneficiado pela ajuda financeira do governo no início da crise. O segundo pilar é a organização de hortas comunitárias para recuperar áreas abandonadas da cidade e melhorar o acesso da população a comida de qualidade. A Rede de Segurança Alimentar da Comunidade Negra de Detroit, formada em 2006 mas ativa espe-

Charity A. Schmidt

O pesadelo da casa própria Por ano, há, em média, 40 mil despejos em Detroit, e 4.400 famílias enfrentam, atualmente, processos de expulsão de suas casas de Detroit (EUA) Rua Lasher, número 6.582. O endereço na periferia de Detroit, Estados Unidos, emociona sua antiga residente, a assistente social Sandra Hines, de 59 anos: “a casa era de minha família havia 39 anos, mas, como minha irmã e eu não tínhamos dinheiro para pagar um empréstimo, a perdemos em 2007”. Sandra estava desempregada na época e sua irmã, funcionária da General Motors, teve metade de seu salário cortado durante a crise, o que as forçou à insolvência. Tomaram um em-

préstimo com um banco local, Wachovia, e, segundo ela, não haviam entendido que, se não conseguissem pagar, perderiam sua casa. “Os empréstimos são um verdadeiro esquema. Primeiro, o agente financeiro é alguém do seu bairro, alguém que você conhece, alguém com quem há um vínculo de confiança. Segundo, os termos do contrato não são claros. Terceiro, os pagamentos são flutuantes, assim que, em 2007, tínhamos de pagar três vezes o valor inicial das mensalidades”. Sandra e sua família conseguiram uma nova moradia, e ela começou a participar de um movimento contra despejos, a Coalizão pela Moratória Imediata, pois queria ajudar pessoas que estivessem enfrentando situações similares: “só no meu quarteirão, seis famílias perderam suas casas, ao mesmo tempo que eu”. Despejos Por ano, há, em média, 40 mil despejos em Detroit, e 4.400 famílias enfrentam, atualmente, processos de expulsão de suas casas. Os dados, divulgados no dia 22, durante o II Fórum Social

Estima-se que os sem-teto dos EUA sejam mais de 20 mil

Estadunidense, revelam, de acordo com Ted Phillips, advogado da Coalizão Unificada por Habitação Comunitária, a dinâmica urbana de Detroit: “bairros inteiros estão sendo dizimados, casas abandonadas são vendidas a preços baixos a investidores, que acumulam terra na esperança que valorizem”. A sala 421 da 36ª Corte Distrital de Michigan é a que recebe as famílias que foram vítimas de expulsões de suas casas. Numa conversa informal, um funcionário do tribunal conta que, até às 11h30 do dia 25 de junho, quando a reportagem foi ao local, 157 pessoas já haviam passado na sala; no dia anterior, haviam sido 253. “Trabalhar aqui parte o coração. Na minha concepção, um despejo é tão grave como um estupro. Chegam policiais em sua casa, co-

meçam a tomar seus objetos e põem tudo na rua. Se você não achar um lugar rápido para morar, seus objetos ficam na rua e são roubados ou se quebram”, comenta o funcionário, que disse haver três casas abandonadas por conta de despejos no quarteirão onde vive. Rotina Kim Braxton, de 40 anos, já sofreu 20 despejos. “É como digo: ‘despejo’ é meu nome do meio”, diz a afroestadunidense desempregada, sentada no banco ao lado da sala 421. No tribunal, jornalistas não são bem-vindos. Máquinas fotográficas e gravadores são bloqueados no detector de metais na entrada do prédio. Mas, sem parecer que dava uma entrevista, pois estas também são proibidas, Braxton fala:

cialmente após o colapso econômico de 2007, ocupa lotes vagos e parques sem cuidado e, quando obtém reconhecimento legal, monta neles hortas orgânicas e populares. “O direito a comida de qualidade, a áreas verdes e uma vida sustentável são os fundamentos da ideia de segurança alimentar”, explicou Malik Yakini, da Rede, num debate sobre soberania alimentar no fórum. A iniciativa das hortas populares se torna uma alternativa à falta de acesso dos habitantes de Detroit a comida: a organização Equipe de Projetos para Pessoas de Baixa Renda considera a cidade um “deserto de alimentos”, ou seja, uma área de relativa exclusão onde pessoas se deparam com barreiras físicas e econômicas para encontrar comida saudável. De acordo com jornais locais, dentre as principais cidades estadunidenses, Detroit é a que tem, proporcionalmente, menos supermercados e feiras. Em regiões pobres, como o oeste, quase não há locais onde se possa comprar comida; os principais comércios da região são ferros-velhos e lo-

“Eu me sinto sem voz. Venho à Corte, o juiz me fala ‘cala a boca’ e me calo. A assistência a desempregados que recebo não é suficiente, mas para quem vou reclamar?”. No seu caso, despejos ocorrem quando não consegue pagar pelo menos três alugueis. Na maioria das vezes, diz, sofre despejos porque deve ou a bancos ou ao proprietário da casa valores como R$ 800. Foi despejada pela primeira vez quando tinha 19 anos. É um despejo por ano, e nunca teve dinheiro para contratar representação legal que pudesse ajudá-la nos processos. “Não tem emprego, não tem ajuda social, não tem ninguém, e vai continuar sendo assim”, lamenta. No Fórum Social, movimentos sociais tentam mudar a realidade dos despejados. O advogado Jerry Goldberg, fundador da Coalizão pela Moratória Imediata, pressiona o governo para deixar de criminalizar a população pobre que não consegue pagar empréstimos e alugueis. “Estamos numa situação excepcional do capitalismo e é preciso proteger a vida dos mais afetados. Pressionamos o governo do estado de Michigan para decretar uma moratória às famílias pobres endividadas, mas a governadora [Jennifer Granholm] nos responde: ‘Os bancos não gostariam’”, explica. (JAP)

Politização O terceiro pilar é a educação e politização de jovens de bairros pobres, especialmente afroestadunidenses. E foram justamente esses jovens um dos principais grupos participantes do fórum, organizados pela Jovens Construtores de Detroit. A entidade montou uma escola profissionalizante que atende, anualmente, em programas intensivos, 250 jovens de 18 a 24 anos. A formação na escola cria uma perspectiva para enfrentar as dificuldades do mercado de trabalho. Numa conversa informal, um dos estudantes disse que, nas salas de aula, aprende não apenas técnicas, como carpintaria, mas também como contribuir com sua comunidade e tornar-se um modelo para outros jovens em seu bairro. Por último, a organização de trabalhadores é um dos eixoschave das articulações sociais em Detroit, tema que influenciou decisivamente a agenda do Fórum Social Estadunidense. A cidade é um dos berços do sindicalismo estadunidense, onde se formou o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Automobilística (da sigla em inglês, UAW), que liderou importantes mobilizações entre os anos 1950 e 1970, conquistando benefícios sociais importantes para os trabalhadores. Em 1970, mais de 1,5 milhão de trabalhadores integravam o UAW; os sindicatos estadunidenses entraram em crise e, hoje, têm menos de 355 mil integrantes. “A crise dos sindicatos se deve à falta de combatividade, ao abandono de bandeiras históricas e à priorização da negociação com donos de empresa, em vez de mobilização. No momento, os trabalhadores estão sob ataque constante, o “sonho americano” não existe mais, e é preciso rever nossas formas de organização para reconstruir a luta dos trabalhadores”, afirma Caleb Maupin, do Partido dos Trabalhadores do Mundo. Eleito uma semana antes do fórum, o presidente do UAW, Bob King, manifestou-se pela multiplicação de protestos contra empresas que não cumprirem com os direitos dos trabalhadores, especialmente em Detroit.

Obama, o grande ausente de Detroit (EUA) O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, não foi explicitamente convidado para o II Fórum Social Estadunidense, realizado em Detroit de 22 a 26 de junho – e provavelmente não teria vindo se tivesse recebido o convite –, mas uma característica marcante do evento foi a falta de um balanço sobre seu governo. No I Fórum Social Estadunidense, em Atlanta, em 2007, as políticas de Washington foram tema central dos debates, lembra a sindicalista Linda Ray. Em oficinas e plenárias, Obama era às vezes mencionado, mas sem se estimular debates. E os militantes sociais estadunidenses teriam motivos para discutir as políticas de Washington. Obama pretende investir mais na ocupação do Afeganistão. Mais do que sanar as mazelas sociais da crise, as políticas do governo têm agravado a situação da população pobre estadunidense. Na plenária final do fórum, entretanto, o nome do presidente foi silenciado. (JAP)


de 1º a 7 de julho de 2010

11

américa latina

Resistência hondurenha clama por constituinte e Manuel Zelaya 1 ANO DE GOLPE Heterogênea, frente contra o golpe tornou-se a maior força social do país e denuncia abusos praticados pelo regime Renato Godoy de Toledo enviado a Tegucigalpa (Honduras)

democracia, que tampouco é reconhecida pela Organização dos Estados Americanos (OEA).

A APARENTE normalidade da situação hondurenha, transmitida pelo noticiário internacional, cai por terra após uma simples caminhada pelas ruas de Tegucigalpa. Não há um quarteirão sequer do antigo centro da capital de Honduras sem as marcas da resistência ao golpe de Estado que derrubou o presidente Manuel Zelaya, há um ano. Pichações da Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), constituída também há um ano, exigem a volta imediata de “Mel” Zelaya ao país. “Urge Mel” é o dizer mais lido nos muros da cidade. Xingamentos dirigidos aos golpistas e a jornalistas dos meios de comunicações tradicionais também são frequentes. Nas principais vias de passagem da população, militantes contrários ao golpe colhem assinaturas para a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Até o momento, mais de 600 mil cidadãos subscreveram o manifesto. A expectativa da FNRP é coletar 1,2 milhão até setembro. Em 28 de junho de 2009, os hondurenhos iriam às urnas para decidir se, nas eleições gerais de novembro do mesmo ano, haveria também uma consulta sobre a instalação ou não de uma constituinte. Mas o pleito foi frustrado pelo sequestro do presidente Zelaya, surpreendido de pijama na residência oficial e levado à Costa Rica. Mesmo diante do entusiasmo nacional em torno da participação pífia da seleção nacional na Copa do Mundo pela segunda vez, as mobilizações não cessaram. Quase todos os dias, há algum tipo de vigília ou marcha para pressionar pelo fim ao que os movimentos hondurenhos chamam de falsa

Democracia aparente O direito à livre manifestação – parcialmente assegurado pelo regime hondurenho – pode trazer a imagem de um arrefecimento da repressão. No entanto, os movimentos sociais denunciam constantes ameaças a dirigentes, prisões e assassinatos. Estes últimos têm crescido de forma vertiginosa na capital, em San Pedro Sula e outros centros urbanos. De acordo com dados oficiais, trata-se de um aumento da violência urbana. Mas opositores do regime hondurenho apontam que os crimes políticos estão sendo travestidos de crimes comuns. De janeiro – quando o atual presidente, Porfirio Lobo, tomou posse após ser o vencedor das eleições de novembro, organizadas pelo regime golpista – a abril de 2010, mais de 1.200 pessoas foram assassinadas no país. Tais números já superam o total de homicídios durante todo o ano de 2009. “Eles vêm em motos e atiram, sem qualquer justificativa. Nós da resistência evitamos sair de noite, nos expor. Se há qualquer confusão e estivermos passando, vão tentar nos incriminar e nos deter. Definitivamente, não nos sentimos mais seguros, nem em casa”, revela um militante da FNRP. O temor faz sentido. Dias após o golpe de Estado, grupos paramilitares ou estatais – não se sabe ao certo – passaram a espalhar terror pelo país atirando a esmo contra a casa de pessoas identificadas com os movimentos sociais. Se a resistência se faz presente nos muros da capital, a violência do golpe não deixa por menos. Na sede da Via Campesina na cidade, ainda há uma marca de bala na porta do sobrado. De acordo com

CMI/Honduras

Resistência ainda sofre forte repressão de grupos – não se sabe ao certo – paramilitares ou estatais

De acordo com dados oficiais, trata-se de um aumento da violência urbana. Mas opositores do regime hondurenho apontam que os crimes políticos estão sendo travestidos de crimes comuns a organização, os disparos foram feitos dias após o golpe, mas ninguém foi atingido. Uma professora, que prefere manter sua identidade em sigilo, afirma que sofre perseguição no trabalho e ameaças no celular. “Como sabem que estou 100% envolvida na resistência, sou visada no trabalho. Já mataram muitos companheiros nossos e as ameaças são constantes”, explica. Frente heterogênea A resistência continua forte e como a maior força social do país, porém, sofre com cisões. O então partido de esquerda União Democrática (UD), por exemplo, não boicotou as eleições pós-gol-

Opositores do golpe temiam uso político da Copa Estrutura do futebol hondurenho, que participou do mundial de futebol, tem ligação íntima com golpistas do enviado a Tegucigalpa (Honduras)

A classificação de Honduras para a Copa do Mundo de 2010, 28 anos depois de sua primeira participação, deu-se no momento de maior instabilidade política do país. O presidente constitucional Manuel Zelaya encontrava-se exilado na embaixada do Brasil em Tegucigalpa, enquanto o golpe se consolidava do lado de fora. “Los Catrachos” – maneira carinhosa de se referir à equipe e ao povo hondurenhos – conseguiram a vaga na última rodada das eliminatórias graças a um gol dos Estados Unidos contra a Costa Rica aos 50 minutos do segundo tempo. A ajuda do país norte-americano fez, inclusive, com que boa parte dos hondurenhos apoiasse os EUA contra Gana nas oitavas de final – em vão. Quando da classificação de Honduras, o então presidente golpista Roberto Micheletti anunciou feriado nacional para o dia seguinte. Essa união também pôde ser vista durante os jogos do

país na Copa do Mundo. O 0 x0 contra a Suíça acarretou na eliminação da seleção local na primeira fase, mas foi comemorado como uma vitória. “Saída honrosa”, estampou o diário esportivo Diez, em sua capa.

Algumas pichações na cidade ironizavam a participação no torneio realizado na África do Sul. “Goooooool!pe”, dizia uma delas Passados dias da eliminação de Honduras, a camisa da seleção nacional ainda é o traje mais comum nas ruas. Membros da FNRP também apoiaram a seleção e trajam, sem problemas, a camisa da “bicolor”, mas não deixam de questionar o uso político que se tem feito em torno do mundial.

Ligações íntimas Algumas pichações na cidade ironizavam a participação no torneio realizado na África do Sul. “Goooooool!pe”, dizia uma delas. Apesar de a alegria da classificação ao mundial atingir todos os segmentos da sociedade, a estrutura do futebol hondurenho tem uma íntima ligação com os setores que levaram o golpe a cabo. A Fenafuth – a “CBF hondurenha” – é dirigida por um expresidente da República, Rafael Leonardo Callejas, que defendeu o golpe do ano passado, assim como os anteriores ocorridos no país. O principal patrocinador da seleção é o banco Ficohsa, cujos proprietários prestaram apoio logístico e financeiro à investida contra Manuel Zelaya. O presidente atual, Pepe Lobo, que mantém os arquitetos do golpe em diversas esferas de poder, esteve na África do Sul acompanhando os jogos da seleção. Voltou ao país sem ver nenhum gol e deparou-se com a maior manifestação popular desde o início de seu mandato. (RGT)

pe, como clamavam as organizações sociais. Como resultado, obteve a pior votação de sua história, amargando a última colocação. Antes, a UD era a terceira força política do país, atrás do Partido Nacional e do Partido Liberal – uma confusa agremiação que abriga, ao mesmo tempo, políticos golpistas e pró-Zelaya. Com a mudança de posição da UD, o governo de Porfirio “Pepe” Lobo a agraciou com cargos governamentais, como o importante Instituto Nacional Agrícola. Dando mais complexidade ao espectro político hondurenho, há setores da UD que participam de atividades da resistência, como na marcha do

dia 28 de junho, que marcou o aniversário do golpe. “A Frente é integrada por indígenas, camponeses, sindicalistas e artistas. Todos os segmentos da sociedade, o que é muito importante. Por isso, tem se convertido na principal força social e política do país”, analisa Rafael Alegría, dirigente da Via Campesina e da FNRP. Eleições? Há um debate, na FNRP, sobre uma possível institucionalização do movimento, com vistas a uma eventual participação eleitoral. “Isso está em discussão. Temos a constatação de que somos uma força social e política. O que se discute é se será constituída uma frente ampla, um partido político ou se a FNRP é uma força aglutinadora e mobilizadora da consciência do nosso povo. Creio que, agora, não há porque se mobilizar para um processo eleitoral, pois, nos marcos atuais, isso seria impossível, já que o controle político e a estrutura das eleições estão nas mãos

da ditadura. Não me refiro a esta de Micheletti [Roberto Micheletti, que assumiu a presidência com a deposição de Zelaya], mas a uma ditadura de mais de 100 anos de dois partidos políticos”, aponta Alegría. Alguns setores da frente, como o do dirigente da Via Campesina, deixam claro que a prioridade para o momento é a luta para a aprovação de uma constituinte. Já os setores identificados com o Partido Liberal apontam que a volta de Zelaya ao país e a Assembleia Constituinte são bandeiras urgentes e indissociáveis. Por essa razão, eles acabam sofrendo críticas internas pelo suposto excesso de culto à personalidade do ex-mandatário. Rasel Tomé, membro do Partido Liberal e assessor de Zelaya, afirma que, a pedido do presidente, os seus correligionários tentam manter a unidade da legenda dentro da FNRP, ainda que haja aqueles que apoiam o golpe. “Nós integramos a frente como políticos progressistas. Nós, liberais de resistência, estamos cada vez mais unidos. Se houver divisão, deixaremos o país na mão das oligarquias. Estamos unidos dentro da diversidade”, avalia. De acordo com Tomé, o processo da constituinte deve ser atrelado à volta de Zelaya ao país porque ele seria o maior entusiasta do projeto. No entanto, o ex-presidente voltaria a Honduras como um cidadão comum, com garantias de segurança. Não seria uma volta ao poder, “como querem fazer crer as oligarquias”. O presidente atual, Pepe Lobo, chegou a convidar Zelaya a retornar ao país. No entanto, os apoiadores de Mel apontam que um retorno na atual conjuntura não lhe garantiria direitos políticos, por conta da composição da Corte Suprema, nem preservação de sua integridade física.

No aniversário do golpe, movimentos demonstram força Em marcha pacífica, FNRP celebra um ano de resistência ao regime imposto com a deposição de Manuel Zelaya do enviado a Tegucigalpa (Honduras) Tal como no dia 28 de junho de 2009, chovia em Tegucigalpa. Milhares de manifestantes tomaram as ruas da capital hondurenha e lembraram o aniversário de um ano do golpe de Estado. Dessa vez, não houve repressão por parte da polícia. De acordo com jornalistas locais e dirigentes de movimentos sociais, havia uma orientação clara do governo federal para que os policiais não adotassem medidas violentas. A postura mais “compreensiva” dos órgãos que reprimiram fortemente a resistência no ano passado faz parte de uma estratégia do governo de Pepe Lobo para buscar legitimidade junto a países como o Brasil e organismos como a Organização dos Estados Americanos (OEA), que não reconhecem o regime hondurenho. A “passividade” dos policiais soa até estranha para quem tem como base de comparação a Polícia Militar de São Paulo, por exemplo. Pouco antes de as manifestações se iniciarem, cerca de cinco policiais armados entraram no meio de uma multidão para tentar conversar com dirigentes sobre o tra-

jeto da marcha. Tiveram que sair dali sob gritos de “assassinos” e de “estudar e aprender, para policial nunca ser”.

Sobretudo desde carros mais novos, alguns proferiam xingamentos aos manifestantes e dizeres como “vão trabalhar”. A resposta mais comum era: “golpista!” Entre a solidariedade à marcha e o medo de eventuais ações dos manifestantes – que não ocorreram –, lojas e, sobretudo, redes de fast-food como Burger King e Pizza Hut só abriram as portas após o meio-dia. “No ano passado, foi mais forte. Quebraram todos os vidros aqui”, disse um atendente da Pizza Hut, que, timidamente, “confessou” ser simpatizante de Zelaya e da resistência.

Simpatia e repúdio A marcha contou com a simpatia de vários transeuntes, como taxistas e motoqueiros que acenavam para os manifestantes. No entanto, pode-se também observar uma tensão latente. Sobretudo desde carros mais novos, alguns proferiam xingamentos aos manifestantes e dizeres como “vão trabalhar”. A resposta mais comum era: “golpista!”. Apesar de lembrar um acontecimento triste para os hondurenhos, o tom das avaliações ressaltou o orgulho por se estar resistindo há um ano. “É um dia grandioso para nós. Estamos fazendo manifestações como essa em distintas zonas do país. O povo hondurenho está expressando o seu reconhecimento a todos os países que se solidarizaram conosco e desconhecem os golpistas, como é o caso dos governos do Brasil e da maioria dos países latinoamericanos”, afirmou Carlos Reyes, sindicalista que retirou sua candidatura à presidência em 2009 para não legitimar o golpe de Estado. Ele é um dos que podem notar a diferença de comportamento da polícia: dias após o golpe, Reyes foi ferido em uma manifestação. (RGT)


12

de 1º a 7 de julho de 2010

américa latina

O delírio salvadorenho Fotos: Reprodução

ANÁLISE Violência e guerra de gangues no menor país da América Central evidenciam as estruturas de privilégios que geram corrupção e inviabilizam o avanço social e econômico Aleksander Aguilar NO LIMITE DO macabro. Assustadoramente desafiante e revelador. O crime ocorrido em El Salvador no dia 20 de junho põe em evidência o nível de barbárie e extremismo a que chega a situação da violência na América Central. Um caso sintomático nesse que é, ao mesmo tempo, o territorialmente menor e o mais violento país do continente. Um indicativo de que, analogicamente ao Brasil, há espaços na sociedade em que a segurança pública é controlada pelo crime organizado e de que isso, se seguir seu ritmo crescente, pode abalar a estabilidade nacional. No início da noite daquele domingo, um ônibus do serviço de transporte urbano da capital, San Salvador, foi metralhado e incendiado com todos os passageiros dentro. Quatorze pessoas, incluindo menores de idade, foram mortas, todas queimadas vivas, dentro do veículo. Eram cidadãos comuns, em suas rotinas diárias, no percurso da sobrevivência de uma sociedade que massificou o medo e trivializou a violência ao nível do absurdo. Imediatamente após a matança, apenas duas vítimas tinham sido identificadas: uma mulher de 37 anos e uma menina de um ano e meio. Os demais estavam irreconhecíveis e apenas testes de DNA poderiam confirmar suas identidades. A tragédia ocorreu quando todas as unidades da Polícia Nacional Civil (PNC) e quase metade das tropas do exército do país estão nas ruas cumprindo um controvertido plano anti-delinquência do governo, na tentativa de frear a criminalidade.

Eram cidadãos comuns, em suas rotinas diárias, no percurso da sobrevivência de uma sociedade que massificou o medo e trivializou a violência ao nível do absurdo Violência endêmica

El Salvador é, atualmente, segundo as estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), o país mais perigoso da América Latina e um dos mais violentos do mundo. Os índices de homicídios são de 76 para cada 100 mil habitantes, os mais altos do continente e quase iguais aos que havia durante a guerra civil dos anos 1980. El Salvador é um Estado sobrevivente dessa “delirante” guerra, como define a própria ONU no informe da Comissão da Verdade sobre o conflito. O fratricídio que vigorou oficialmente entre os anos de 1980 e 1992 deixou um saldo de mais de 70 mil mortos e desaparecidos – mais de 3% da popula-

ção total do país. Hoje, é uma nação que busca a paz e o equilíbrio em meio às condições de insegurança, desigualdade social e falta de justiça que se arrastam como consequência de processos não finalizados e de lutos não superados. Os Acordos de Paz de 1992 puseram um fim à guerra entre o governo e as organizações marxistas revolucionárias salvadorenhas, e isso deu passo a uma nova fase na história política do país. No entanto, a partir disso, também se passou a assumir que o fim da hostilidade bélica significava viver em paz. Como mostra o estremecedor evento do dia 20, um estado de paz significa muito mais do que a mera ausência de guerra. Um grupo pequeno que pertence a uma grande organização, articulada e coordenada, planejou deter um ônibus, metralhá-lo e incendiá-lo com todos os passageiros dentro. Trata-se de um exemplo de força – e crueldade abismal – dessas organizações que extorquem, roubam, sequestram, matam e se digladiam em um conflito aberto entre si, diante da incapacidade do Estado em pará-las. Gangues

Consequência indireta das imigrações provocadas pela guerra civil e pela globalização, jovens imigrantes centroamericanos criaram, em Los Angeles, nos Estados Unidos, no início dos anos de 1980, as duas principais gangues (“maras”, no jargão da região) que atualmente se enfrentam na América Central: a Mara Salvatrucha (MS) e a Mara 18. Cada uma delas possui sua linguagem codificada, seus rituais, suas tatuagens e seu ódio visceral. Oriundos do istmo que separa a América do Sul e o Império, uma região quase sempre esquecida mesmo no contexto latino-americano, jovens desorientados pela imigração forçada desenvolveram, no breve espaço de uma década, organizações criminosas estruturadas e hierarquizadas para defender seus territórios e negócios ao custo da vida dos seus inimigos. A primeira foi a MS, mas logo surgiu a 18, que ocupava, precisamente, a rua 18, no sul de Los Angeles. Em 1996, Washington aprovou as terríveis “Immigration Reform” e a “Immigrant Responsability Act”, que permitiram às autoridades dos Estados Unidos expulsarem imediatamente mais de 100 mil

No alto, membro da gangue Mara Salvatrucha; abaixo, cena do filme La Vida Loca, de Christian Poveda

Jovens desorientados pela imigração forçada desenvolveram (...) organizações criminosas estruturadas e hierarquizadas para defender seus territórios e negócios ao custo da vida dos seus inimigos membros de gangues para a América Central. Esse fluxo de delinquência gangrenou a ordem social, principalmente, de Honduras, Guatemala, Nicarágua e El Salvador. Marcas da guerra

Os anos da guerra em El Salvador deixaram marcas profundas. Hoje, há uma violência endêmica alimentada por mais de 400 mil armas de fogo que circulam no país e que podem ser compradas por preços irrisórios. O nível de consumo de drogas é alto e aumenta com a liberalização, a toda velocidade, da economia – dolarizada desde 2001 –, o que desestabiliza o tecido social do país. No informe de 2007 do Escritório das Nações Unidas para o controle de Drogas e Delitos, El Salvador aparece como a terceira nação do mundo em consumo de cocaína. O país, juntamente com o México (onde o exército também foi mandado às ruas para tentar combater o narco-

tráfico), é o corredor pelo qual passa 90% da cocaína que chega aos Estados Unidos. Os números oficiais de membros de gangues são muito variáveis, devido às dificuldades de se calcular o nível de envolvimento dos jovens com as organizações, mas estimase um mínimo de 10 mil mareros em El Salvador. No começo dos anos 2000, o presidente salvadorenho Francisco Flores adotou o programa “Mão Dura” para combater as maras, utilizando um forte aparato repressivo. Mas, dos mais de 16 mil suspeitos detidos, apenas 807 foram considerados culpados. Essa legislação foi, então, considerada inconstitucional e criticada por não enfrentar os problemas ligados à miséria e à violência familiar que determinam a marginalização dos jovens e o desenvolvimento de vínculos com as maras. Sem ideologia

Os subúrbios de San Salvador são ninhos de casebres e

pequenas favelas que formam um limbo, um espaço que separa a capital de sua cadeia de vulcões, o que, segundo o cineasta franco-espanhol Christian Poveda (assassinado em 2009 pela mesma mara que retratou no documentário internacionalmente premiado La Vida Loca), conforma a topografia ideal para a violência. Ao contrário dos guerrilheiros dos anos 1970 e 1980, os jovens mareros rechaçam ideologias e expressam sua rebeldia por meio de uma violência que ultrapassa as raias do absurdo. Faltam hoje, em El Salvador, vontade política e recursos financeiros para combater a violência urbana. A inédita e histórica chegada da FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) – a antiga guerrilha convertida em partido institucional depois dos Acordos de Paz – ao Executivo do país no ano passado trouxe consigo a expectativa de mudanças substanciais na nação centroamericana. Porém, ainda não se iniciou o desmonte de estruturas de privilégios na sociedade que geram corrupção e inviabilizam o avanço social e econômico. Um Estado com alta sonegação de impostos obstrui a distribuição de recursos e as instituições nacionais terminam debilitadas e incapazes.

Paz positiva

A violência constante em El Salvador se inicia desde a política e a educação. A violência direta, resultado da violência estrutural vigente, conforma a inconsistente base sobre a qual se tenta realizar a reconstrução da sociedade salvadorenha. A conformação de uma cultura de violência está determinada pela incidência de um sistema de normas e valores que aceitam, toleram e retroalimentam culturas violentas. O conflito salvadorenho não está encerrado, senão manifesto em atos abomináveis como o ocorrido na capital no dia 20 de junho. Ele precisa ser transformado tendo como norte o estabelecimento de uma paz positiva, sem violência estrutural, que permita o desenvolvimento de uma cultura de paz. Isso passa por uma diferente atitude do Estado diante de suas dívidas em matéria de verdade, justiça e reparação em relação a seu próprio passado recente; uma nova postura do setor privado diante de seus compromissos para com o país; e a decisão do Estado em enfrentar decididamente as enormes falhas do seu sistema político e judicial. Aleksander Aguilar é jornalista, licenciado em Letras e Mestre em Estudos Internacionais


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.